Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
NEVE
Primeira Parte
Na década de noventa, depois de anos de exílio na Alemanha, o poeta turco Ka volta a Istambul para o enterro da mãe. De lá, segue para a remota Kars, na fronteira com a Geórgia, a pretexto de fazer uma reportagem sobre uma onda de suicídios entre jovens islâmicas. Durante essa visita, uma nevasca bloqueia todas as estradas, insulando a cidade do resto do mundo, e é nesse clima de isolamento que um veterano ator e sua mulher aproveitam para liderar um golpe militar. Embora tenha se distanciado da política há muitos anos, Ka é alçado a protagonista involuntário dessa revolução.
Nada menos apropriado para o escritor cujo desejo — além de se casar com Ipek, antiga colega de escola que reencontrou em Kars — é apenas registrar as poesias que lhe escapam há anos, mas que agora passam a fluir com extrema naturalidade. O confronto intransigente e muitas vezes sangrento dos islamitas radicais com um estado que quer ser secular, a violência do aparelho repressivo, o medo de que os radicais cheguem ao poder pela democracia e os crimes cometidos pelos dois lados: é nesse turbilhão que Ka vaga por três dias, tentando salvar a si mesmo e a seu recém-descoberto amor por Ipek. Enquanto o poeta tenta se equilibrar entre as diversas facções em choque, vê a cidade se tornar um microcosmo dos conflitos raciais, políticos e étnicos da Turquia, além de palco da sua tragédia pessoal.
A ação de Neve se passa alguns anos após o golpe e a fatídica nevasca. Um amigo de Ka, obcecado por encontrar seu caderno de poesias, visita Kars a fim de refazer os passos do poeta e de entender as mudanças radicais que aqueles três dias provocaram em sua vida. A grande habilidade de Pamuk está em combinar um tema presente, atual — a relação entre islamismo e política — com questões atemporais, que se manifestam nas inquietações espirituais e artísticas de Ka. Expondo as relações intrínsecas do motor social com a subjetividade de suas engrenagens — são jornalistas, políticos, terroristas, cidadãos — este é um romance complexo, multifacetado, uma visão original e arrebatadora da realidade, como só a ficção permite.
A viagem para Kars
O silêncio da neve, pensou o homem que estava sentado logo atrás do motorista do ônibus. Se aquilo fosse o começo de um poema, poderia chamar o que sentia em seu íntimo de o silêncio da neve.
Pegara o ônibus de Erzurum para Kars, com apenas alguns segundos de folga. Mal chegara à estação rodoviária num ônibus vindo de Istambul — depois de dois dias de viagem, sob tempestade e neve — e começara a andar para cima e para baixo nos corredores úmidos e sujos arrastando a mala e procurando a sua conexão, quando alguém lhe disse que o ônibus para Kars partiria imediatamente.
Ele conseguiu encontrar o ônibus, um velho Magirus, mas o motorista acabara de fechar o bagageiro e, como estava “com pressa”, recusou-se a abri-lo novamente. Assim, nosso viajante foi obrigado a entrar no ônibus com a bagagem. A grande mala vermelho-escura Bally estava agora enfiada entre suas pernas. Ele estava sentado perto da janela e trajava um grosso casaco cor de carvão que comprara na Kaufhof, em Frankfurt, cinco anos antes. É bom deixar claro, desde já, que aquele casaco macio e delicado seria motivo de vergonha e inquietação para ele nos dias que passaria em Kars, ao mesmo tempo que lhe proporcionaria uma sensação de segurança.
Assim que o ônibus partiu, nosso viajante grudou os olhos na janela; esperando talvez ver alguma coisa nova, esquadrinhava as lojinhas, as padarias ordinárias e os cafés arruinados que se alinhavam nas ruas dos subúrbios de Erzurum. E, enquanto isso, começou a nevar. Era uma neve mais densa e pesada que a que vira cair entre Istambul e Erzurum. Se não estivesse tão cansado e tivesse prestado atenção aos flocos de neve que revoluteavam no céu como plumas, teria percebido que avançava diretamente para uma nevasca; teria visto desde o começo que estava embarcando numa viagem que iria mudar sua vida para sempre e teria voltado atrás.
Mas esse pensamento nem sequer lhe passou pela cabeça. Quando caiu a noite, ele se abandonou à luz que tardava no alto do céu; nos flocos de neve que redemoinhavam ao vento ainda com mais fúria, ele não via o anúncio de uma nevasca iminente mas antes uma promessa, um sinal indicando o caminho de volta à felicidade e à pureza que conhecera em criança. Nosso viajante passara os anos de felicidade e infância em Istambul; voltara uma semana antes, pela primeira vez em doze anos, para os funerais de sua mãe e, tendo lá permanecido durante quatro dias, resolvera fazer essa viagem a Kars. Anos mais tarde ele ainda haveria de rememorar a extraordinária beleza da neve naquela noite; a felicidade que ela lhe proporcionou fora, de longe, muito maior que qualquer outra que experimentara em Istambul. Era um poeta e, como ele próprio escrevera — num de seus primeiros poemas, ainda desconhecido dos turcos —, neva apenas uma vez em nossos sonhos.
Enquanto olhava a neve cair do lado de fora da janela, lenta e silenciosamente como num sonho, o viajante mergulhou num devaneio havia muito esperado e desejado; purificado pelas lembranças inocentes da infância, ele se rendeu ao otimismo e ousou acreditar estar à vontade neste mundo. Logo depois ele sentiu mais uma coisa que não sentia fazia muito tempo e adormeceu em seu banco.
Vamos aproveitar essa calmaria para sussurrar alguns dados biográficos. Embora tivesse passado os últimos doze anos em exílio político na Alemanha, nosso viajante nunca se envolvera muito com política. Sua verdadeira paixão, seu único pensamento, era a poesia. Tinha quarenta e dois anos, era solteiro, nunca tinha se casado. Ele era alto para um turco, embora não fosse fácil perceber isso vendo-o encolhido em seu banco; tinha cabelos castanhos e um rosto pálido, que ficara ainda mais pálido durante a viagem. Era tímido e gostava de ficar sozinho. Se pudesse imaginar o que iria acontecer tão logo adormecesse — com o balanço do ônibus sua cabeça iria descair primeiro sobre o ombro do homem ao seu lado, depois em seu peito —, ele se sentiria muito envergonhado. Pois o viajante que estamos vendo recostado no passageiro ao seu lado é um homem honesto e bem-intencionado, cheio de melancolia, como aqueles personagens de Tchekhov tão cheios de virtudes, que não conseguem nada na vida. Teremos muito a dizer sobre melancolia mais adiante. Mas como, ao que parece, ele não vai ficar dormindo por muito mais tempo nessa posição incômoda, por agora basta dizer que o nome do viajante é Kerim Alakusoglu, que ele não gosta desse nome e prefere ser chamado de Ka (suas iniciais) e que assim eu farei neste livro. Ainda nos tempos de escola, nosso herói insistia em se assinar como Ka em suas tarefas e provas; ele assinou Ka nos formulários de inscrição da universidade e aproveitava todas as oportunidades para defender seu direito de continuar a fazê-lo, ainda que isso implicasse conflito com professores e funcionários públicos. Sua mãe, sua família e seus amigos o chamavam de Ka e, tendo também publicado uma coletânea de poesias sob esse nome, gozava de uma pequena fama enigmática como Ka, tanto na Turquia como nos círculos turcos da Alemanha.
Isso é tudo o que posso adiantar por enquanto. Como o motorista do ônibus desejou aos passageiros uma boa viagem quando partimos da estação rodoviária de Erzurum, permitam-me acrescentar apenas estas palavras: “Que sua estrada esteja aberta, meu caro Ka”. Mas não quero enganá-los. Sou um velho amigo de Ka e começo esta história sabendo tudo o que vai acontecer com ele em Kars.
Depois de deixar Horasan, o ônibus rumou para o norte, indo diretamente para Kars. Enquanto subia pela pista tortuosa, o motorista teve de pisar com força no freio para evitar chocar-se contra um cavalo que surgira do nada, puxando uma carroça, numa das curvas fechadas, e Ka acordou. O medo já havia criado um forte sentimento de solidariedade entre os passageiros, e não demorou muito para Ka sentir-se um deles. Embora estivesse sentado logo atrás do motorista, Ka logo estava agindo exatamente como os passageiros atrás dele: toda vez que o ônibus diminuía a velocidade para fazer uma curva ou evitar cair num precipício, ele se levantava para ver melhor; quando o passageiro diligente que se dispusera a ajudar o motorista limpando a condensação do pára-brisa deixava de limpar uma área do vidro, Ka a apontava com o indicador (colaboração que passava despercebida), e quando a nevasca ficou tão forte que os limpadores já não conseguiam impedir que a neve se acumulasse sobre o pára-brisa, Ka juntou-se ao motorista para tentar adivinhar o caminho.
Era impossível ler as placas rodoviárias, que estavam cobertas de neve. Quando a tempestade de neve começou a mostrar sua fúria, o motorista desligou o farol alto e diminuiu as luzes dentro do ônibus, na esperança de fazer a estrada surgir da penumbra. Os passageiros caíram num silêncio apreensivo, olhos fitos na cena lá fora: a neve cobrindo as ruas das aldeias pobres, as casas periclitantes de um só pavimento, parcamente iluminadas, as estradas para aldeias mais distantes, já fechadas, e as ravinas que mal se podiam ver para além das luzes dos postes. Quando falavam, era num murmúrio.
Assim, foi quase cochichando que o passageiro ao lado de Ka, o homem em cujo ombro Ka adormecera pouco antes, perguntou-lhe por que estava indo para Kars. Era fácil perceber que Ka não era do lugar.
“Sou jornalista”, respondeu Ka baixinho. O que era mentira. “Estou interessado nas eleições municipais — e também nas jovens que se suicidaram.” Isso era verdade.
“Quando o prefeito de Kars foi assassinado, todos os jornais de Istambul deram a notícia”, respondeu o vizinho de Ka. “E tem sido a mesma coisa com as mulheres que estão se matando.” Ka não saberia dizer se o tom de voz do homem deixava transparecer orgulho ou vergonha. Três dias depois, parado na neve que cobria a avenida HalitPasa, com lágrimas nos olhos, Ka veria novamente aquele aldeão delgado.
Durante a conversa sem rumo certo que se seguiu pelo resto da viagem de ônibus, Ka ficou sabendo que o homem acabara de levar a mãe para Erzurum porque o hospital de Kars não era muito bom, que revendia animais de granja nas aldeias próximas de Kars, que enfrentara muitas dificuldades mas não se tornara um rebelde, e que — por motivos misteriosos que não revelou a Ka — lamentava não a própria sorte mas a de seu país e estava feliz em ver que um homem culto, um cavalheiro como Ka se dera ao trabalho de viajar de Istambul para se inteirar dos problemas da cidade. Havia uma tal nobreza na simplicidade de sua fala e no orgulho que exibia, que Ka sentiu respeito por ele.
A própria presença dele inspirava calma. Nem uma vez nos doze anos de Alemanha, Ka sentira tanta paz interior; fazia muito tempo que tivera o prazer fugaz de experimentar empatia com alguém mais fraco que ele. Ele se lembrou de ter tentado ver o mundo pelos olhos de um homem capaz de sentir amor, simpatia e ternura. Ao fazer a mesma coisa naquele momento, já não sentia tanto medo da nevasca incessante. Sabia que não estavam destinados a cair num abismo. O ônibus iria se atrasar, mas chegaria ao destino.
Quando, às dez horas da noite, três horas depois do previsto, o ônibus começou a avançar lentamente pelas ruas cobertas de neve de Kars, Ka não reconheceu a cidade de modo algum. Ele nem ao menos viu a estação ferroviária, aonde ele chegara vinte anos antes numa maria-fumaça, nem tampouco qualquer sinal do hotel para o qual o motorista o levara naquele dia (depois de percorrer toda a cidade): o Hotel República, “um telefone em cada quarto”. Era como se tudo tivesse sido apagado, estivesse perdido sob a neve. Ele teve um vislumbre dos velhos tempos nas charretes ali e acolá, esperando em garagens, mas a cidade parecia muito mais pobre e mais triste que aquela de que ele se lembrava. Pelas janelas geladas do ônibus, Ka viu os mesmos prédios de apartamentos de concreto que tinham se multiplicado por toda a Turquia nos últimos dez anos, os mesmos painéis de Plexiglas; viu também faixas com slogans da campanha eleitoral penduradas em todas as ruas.
Ele desceu do ônibus. Quando seu pé afundou no macio tapete de neve, uma lufada de ar frio cortante entrou-lhe pelas pernas da calça. Ele reservara um quarto no Hotel Palácio de Neve. Quando procurou o motorista para lhe perguntar onde ficava o hotel, viu duas ou três fisionomias que lhe pareceram familiares entre os passageiros que esperavam a bagagem, mas, com a neve caindo tão densa e rapidamente, ele não conseguiu descobrir quem eram.
Ka os viu novamente no Café Campos Verdejantes, para onde foi depois de deixar a bagagem no hotel: um homem cansado e preocupado, mas ainda bonito e atraente, com uma mulher gorda porém vivaz que parecia ser sua companheira de toda a vida. Ka os vira representar em Istambul na década de 70, quando eles eram os expoentes do teatro revolucionário. O nome do homem era Sunay Zaim. Enquanto contemplava o casal, deixou a cabeça divagar e finalmente chegou à conclusão de que a mulher lhe lembrava uma colega do primário. Havia outros homens na mesa deles, todos com aquela palidez mortal que revela uma vida passada no palco; o que uma pequena companhia de teatro estaria fazendo naquela cidade esquecida, ele se perguntou, numa nevoenta noite de fevereiro? Antes de sair do restaurante, que vinte anos antes estivera cheio de funcionários públicos de alto escalão, em paletó e gravata, Ka pensou ter visto um dos heróis da esquerda militante sentado a outra mesa. Mas era como se um manto de neve tivesse recoberto suas lembranças daquele homem, do mesmo modo como fizera com o restaurante e com a própria cidade combalida e ofegante.
As ruas estavam vazias por causa da neve, ou aquelas calçadas geladas viviam sempre desertas? Enquanto andava, ia observando atentamente os anúncios que se viam nas paredes — cartazes da campanha eleitoral, anúncios de escolas e restaurantes e os novos cartazes com que as autoridades municipais esperavam conter a onda de suicídios: OS SERES HUMANOS SÃO OBRAS-PRIMAS DE DEUS, E O SUICÍDIO É UMA BLASFÊMIA. Pelas vidraças cobertas de gelo de uma casa de chá meio vazia, Ka avistou um grupo de homens amontoados ao redor de um aparelho de tevê. Ele se alegrou um pouco ao ver ainda de pé aquelas velhas casas de pedra em estilo russo, que tinham feito de Kars um lugar tão especial em sua lembrança.
O Hotel Palácio de Neve era um desses elegantes edifícios em estilo báltico. Tinha dois andares, com janelas compridas e estreitas, que davam para um pátio, e uma arcada voltada para a rua. A arcada tinha cento e dez anos e era alta o bastante para dar passagem, com facilidade, a charretes puxadas por cavalos; Ka sentiu um arrepio de excitação ao passar por baixo dela, mas estava cansado demais para se perguntar por quê. Digamos apenas que tinha algo a ver com uma das razões que o levaram a Kars.
Três dias antes, Ka visitara a redação do Republicano em Istambul, para ver um amigo de juventude. E aquele amigo, Taner, lhe falara das eleições municipais que se aproximavam e também do extraordinário número de jovens mulheres que — como na cidade de Batman — sucumbira à onda de suicídios. Taner chegou a dizer que se Ka quisesse escrever sobre esse assunto e ver qual era realmente a situação da Turquia depois de sua ausência de doze anos, devia pensar em ir a Kars; como não havia ninguém disponível para essa tarefa, ele podia lhe conseguir uma credencial de jornalista; e além do mais, disse ele, Ka poderia estar interessado em saber que sua ex-colega de escola Ipek residia agora em Kars. Embora separada do marido, Muhtar, ela continuava na cidade e estava morando com o pai e a irmã no Hotel Palácio de Neve. Enquanto ouvia as palavras de Taner, que escrevia comentários políticos para o Republicano, Ka se lembrava de quanto Ipek era bonita.
Cavit, o recepcionista, estava no saguão do hotel com pé-direito muito alto, assistindo à televisão. Ele entregou a chave a Ka, que subiu ao segundo andar, encaminhando-se para o quarto 203; tendo fechado a porta atrás de si, sentiu-se mais calmo. Depois de cuidadosa análise, concluiu que, apesar dos temores que o assaltaram durante a viagem, nem seu coração nem sua cabeça estavam perturbados ante a possibilidade de Ipek se encontrar no hotel. Depois de uma vida em que toda experiência amorosa trazia a marca da vergonha e do sofrimento, a perspectiva de apaixonar-se deixava Ka tomado de um medo intenso, quase instintivo.
No meio da noite, antes de ir dormir, Ka atravessou o quarto de pijama, abriu as cortinas e observou os flocos grossos e pesados de neve que caíam sem cessar.
Os bairros da periferia
Escondendo, como de costume, a sujeira, a lama e a escuridão, a neve continuaria a falar de pureza a Ka mas, depois do seu primeiro dia em Kars, já não lhe prometia inocência. A neve ali era tediosa, irritante, assustadora. Nevara a noite inteira. Continuou a nevar durante toda a manhã enquanto Ka percorria as ruas bancando o repórter intrépido — entrando nos cafés cheios de curdos desempregados, entrevistando eleitores, tomando notas — e , ainda estava nevando mais tarde, quando ele subiu as ruas íngremes e geladas para entrevistar o ex-prefeito, o subprefeito e as famílias das moças que tinham se matado. Mas aquilo não o levava mais de volta às ruas cobertas de neve da sua infância; não o fazia mais pensar — como quando era criança ao olhar pelas janelas das sólidas casas de Nisantas — que estava contemplando a paisagem de um conto de fadas; ele não tinha mais voltado a um lugar onde podia desfrutar a vida de classe média de que sentia tanta falta que chegava a visitá-la em sonhos. Em vez disso, a neve lhe falava de desespero e de aflição.
Naquela manhã bem cedo, antes que a cidade acordasse, e antes de se deixar vencer pela neve, ele fez uma rápida caminhada, passando pela favela logo abaixo do Atatürk Boulevard, e tomou o rumo da região mais pobre de Kars, um bairro chamado Kalealti. As cenas que ele contemplou enquanto andava a passos rápidos sob os galhos cobertos de gelo dos plátanos silvestres e dos oleandros — os velhos edifícios russos decadentes, com chaminés apontando de cada janela, a centenária igreja armênia sobranceando os depósitos de madeira e os geradores de eletricidade, o bando de cães latindo para cada transeunte de uma ponte de pedra de quinhentos anos enquanto a neve caía nas águas semicongeladas do rio que corria lá embaixo, as finas fitas de fumaça elevando-se dos minúsculos barracos de Kalealti que quedavam sem vida sob o manto de neve — fizeram-no sentir uma tal melancolia que lhe vieram lágrimas aos olhos. Havia duas crianças na margem oposta, uma menina e um menino que tinham saído cedinho para comprar pão e lá se iam, ora balançando os pães quentes para a frente e para trás, ora apertando-os contra o peito, parecendo tão felizes que Ka não pôde deixar de sorrir. Não era a pobreza ou o desamparo que o perturbavam, mas o que ele haveria de ver inúmeras vezes durante os dias seguintes — as vitrines vazias das lojas de artigos fotográficos, as vidraças cobertas de gelo das casas de chá apinhadas de gente onde os desempregados da cidade passavam o tempo jogando cartas, e as praças vazias cobertas de neve. Aquelas visões lhe falavam de uma estranha e densa solidão. Era como se ele estivesse num lugar de que o mundo inteiro se esquecera, era como se nevasse no fim do mundo.
A boa sorte acompanhou Ka durante toda a manhã, e quando, ao perguntar, as pessoas ficavam sabendo quem ele era, todas queriam apertar-lhe a mão; elas o tratavam como a um famoso jornalista de Istambul — do subprefeito ao homem mais humilde, todos abriam suas portas e conversavam com ele. Foi apresentado à cidade por Serdar bei, o editor da Gazeta da Cidade Fronteiriça (tiragem de trezentos e vinte exemplares), que por vezes mandava notícias locais para o Republicano de Istambul (que em geral não eram publicadas). Tinham recomendado a Ka que fizesse uma visita ao “nosso correspondente local” antes de mais nada, logo que deixasse o hotel pela manhã. Assim que encontrou o velho jornalista escondido em seu escritório, percebeu que o homem sabia tudo o que havia para se saber em Kars. Foi Serdar bei quem primeiro lhe fez a pergunta que ele ouviria centenas de vezes durante sua estada de três dias.
“Bem-vindo à nossa cidade fronteiriça. Mas o que o senhor veio fazer aqui?”
Ka explicou que viera cobrir as eleições municipais e talvez escrever sobre o suicídio das jovens.
“Da mesma forma como aconteceu em Batman, essas histórias de suicídio foram exageradas”, respondeu o jornalista. “Vamos, vou apresentá-lo a Kasim bei, o subchefe de polícia. Por via das dúvidas, eles devem saber que você chegou.”
Que todos os recém-chegados, mesmo os jornalistas, devessem visitar a polícia, era um costume provinciano que remontava à década de 40. Como era um exilado político recém-chegado ao país depois de muitos anos de ausência e porque — embora ninguém tivesse tocado no assunto — sentira a presença dos guerrilheiros separatistas curdos (PKK) na cidade, Ka não fez objeção.
Eles saíram para a nevasca, atravessando um mercado de frutas e passando pelas lojas de autopeças e ferragens da avenida Kâzim Karabekir, pelas casas de chá onde homens desempregados, deprimidos, olhavam a televisão e a neve caindo, e por lojas de laticínios que exibiam grandes queijos amarelos redondos; levaram quinze minutos para cruzar a cidade em diagonal.
No caminho, Serdar bei parou para mostrar a Ka o lugar onde o ex-prefeito fora assassinado. Conforme um boato, ele fora morto por causa de uma simples disputa municipal: a demolição de uma sacada ilegal. Pegaram o agressor três dias depois, na aldeia para onde tinha fugido; quando o encontraram escondido num celeiro, ele ainda estava com a arma. Mas houvera tanta fofoca durante os três dias de sua captura que ninguém queria acreditar que ele era o verdadeiro culpado: a simplicidade de sua motivação desapontava.
O quartel da polícia de Kars ocupava um comprido edifício de três andares na avenida Faikbey, onde as velhas construções de pedra, outrora pertencentes a russos e armênios abastados, agora, em sua maioria, sediavam órgãos do governo. Enquanto esperavam pelo subchefe de polícia, Serdar bei chamou a atenção para os altos tetos ornamentados e explicou que entre 1877 e 1918, durante a ocupação russa da cidade, aquela mansão com quarenta quartos fora a princípio a residência de um rico armênio, e depois, um hospital russo.
Kasim bei, o subchefe de polícia, veio com sua barriga de cerveja recebê-los no corredor e os conduziu à sua sala. Ka logo percebeu que estavam diante de um homem que não lia jornais nacionais como o Republicano, pois os considerava de esquerda. Notou também que ele não ficou especialmente impressionado ao ver Serdar bei elogiar alguém simplesmente por ser poeta, mas que o temia e respeitava pelo fato de ser proprietário do principal jornal local. Depois que Serdar bei terminou de falar, o subchefe de polícia voltou-se para Ka.
“Você quer proteção?”
“Como?”
“Estou sugerindo apenas um policial à paisana. Para que você fique tranqüilo.”
“Será que preciso mesmo disso?”, perguntou Ka no tom inquieto de um homem cujo médico tivesse acabado de recomendar que passasse a usar uma bengala.
“Nossa cidade é um lugar tranqüilo. Pegamos todos os terroristas que estavam semeando a discórdia entre nós. Mas ainda assim eu recomendo que se faça isso, por via das dúvidas.”
“Se Kars é um lugar tranqüilo, eu não preciso de proteção”, disse Ka. No íntimo ele esperava que o subchefe de polícia lhe garantisse novamente que Kars era um lugar tranqüilo, mas Kasim bei não repetiu a afirmação.
Eles rumaram em direção norte, para Kalealti e Bayrampasa, os bairros mais pobres. Ali os barracos eram feitos de pedra, tijolos e alumínio corrugado dos lados. Sob a neve que continuava a cair, foram andando de casa em casa: Serdar bei batia numa porta e, se uma mulher atendia, ele perguntava se podia falar com o homem da casa; quando Serdar bei o reconhecia, falava-lhe, num tom que inspirava confiança, que seu amigo, jornalista famoso, viajara de Istambul a Kars para escrever sobre as eleições e também para descobrir algo mais sobre a cidade — para escrever, por exemplo, sobre o porquê de tantas mulheres estarem se suicidando —, e se aqueles cidadãos pudessem dividir com ele suas preocupações, estariam fazendo uma boa coisa para Kars. Uns poucos se mostraram muito amistosos, talvez porque pensassem que Ka e Serdar bei eram candidatos e estavam lhes trazendo latas de óleo de girassol, caixas de sabão ou pacotes de biscoitos e de macarrão. Se eles resolviam convidar os dois homens para entrar por curiosidade ou simples hospitalidade, a primeira coisa que diziam a Ka era que não tivesse medo dos cães. Alguns abriam suas portas temerosos, imaginando, depois de tantos anos de intimidação por parte da polícia, que se tratava de mais uma batida, e mesmo depois de perceberem que aqueles homens não eram do governo, mantinham-se em silêncio. Quanto às famílias das jovens que se tinham suicidado (em pouco tempo, Ka ouvira falar de seis casos), todas insistiam que suas filhas não tinham dado previamente nenhum motivo para preocupação, deixando-os a todos horrorizados e consternados com o acontecido.
Eles se sentavam em velhos sofás e cadeiras tortas nas minúsculas salas geladas com pisos de terra cobertos por carpetes feitos à máquina, e toda vez que passavam de uma casa a outra, o número de moradias parecia ter se multiplicado. Toda vez que eles saíam de uma casa, tinham de abrir caminho por entre crianças que chutavam de um lado para outro carros de plástico quebrados, bonecas de um braço só, ou garrafas e caixas de chá e remédio vazias. Quando se sentavam junto de fogareiros que só aqueciam se continuamente atiçados, de aquecedores que funcionavam à base de ligações elétricas clandestinas e de aparelhos de televisão silenciosos que ninguém nunca desligava, ouviam as aflições intermináveis de Kars.
Eles ouviam mães em lágrimas porque seus filhos estavam desempregados ou na cadeia, atendentes de casas de banho que trabalhavam em turnos de doze horas no hamam,* sem ganhar o bastante para sustentar uma família de oito pessoas, e homens desempregados que já não sabiam se podiam dar-se ao luxo de ir à casa de chá por causa do alto preço de uma xícara de chá.
* Ver Glossário, no final do volume.
Aquelas pessoas não paravam de se queixar do nível de desemprego, de sua má sorte, da prefeitura e do governo, atribuindo todos os seus problemas à nação e ao Estado. A medida que foram passando de casa em casa, ouvindo aquelas histórias de privações, chegou um momento em que, apesar da luz branca que atravessava as janelas, Ka começou a sentir que tinham entrado num mundo de sombras. As salas eram tão escuras que mal podiam perceber as formas dos móveis, de modo que quando ele era obrigado a olhar para a neve lá fora, ela o cegava — era como se uma cortina de tule tivesse descido diante dos seus olhos, como se ele tivesse se recolhido ao silêncio da neve para fugir àquelas histórias de aflição e pobreza.
As histórias dos suicídios que ele ouviu naquele dia foram as piores; elas o perseguiriam pelo resto da vida. O mais chocante para Ka não eram os aspectos relacionados à pobreza e ao desamparo. Tampouco eram os constantes espancamentos a que as jovens eram submetidas, nem a insensibilidade de pais, que nem ao menos as deixavam sair de casa, nem a vigilância implacável de maridos ciumentos. O que chocou e assustou Ka foi a forma como aquelas meninas se matavam: de forma abrupta, sem nenhum ritual ou aviso, no meio de sua rotina diária.
Houve uma mocinha de dezesseis anos, por exemplo, que fora obrigada a noivar com um velho, dono de uma casa de chá; ela fizera a refeição da noite com sua mãe, seu pai, seus três irmãos e a avó paterna, como sempre fazia; depois que ela e suas irmãs tiraram a mesa, com as risadinhas e briguinhas de sempre, ela passou da cozinha, aonde fora para pegar a sobremesa, ao jardim, e de lá subiu pela janela até o quarto dos pais, onde se matou com um rifle de caça. A avó, que ouviu o tiro, correu e encontrou a garota que se supunha estar na cozinha jazendo morta no soalho do quarto dos pais numa poça de sangue; a velha senhora não conseguia nem entender como a menina conseguira passar da cozinha ao quarto, quanto mais por que ela se matara. Houve também outra mocinha de dezesseis anos que, depois das disputas de sempre com os irmãos em torno do que ver na televisão e de quem ficaria com o controle remoto, e depois que o pai viera acabar com a briga lhe dando duas fortes pancadas, foi direto ao seu quarto e, tendo encontrado um grande frasco de remédio veterinário, Mortalin, tomou-o de um trago como se fosse uma garrafa de soda. Outra mocinha, que fizera um casamento feliz aos quinze anos de idade, dera à luz seis meses antes; então, aterrorizada com as surras que levava do marido deprimido e desempregado, trancou-se na cozinha depois da briga de todo dia. O marido desconfiou de sua intenção, mas ela já tinha preparado a corda e fixado um gancho no teto, e antes que ele tivesse tempo de arrombar a porta ela se enforcou.
O que assombrava Ka era a rapidez com que aquelas meninas mergulhavam da vida na morte. As providências que tinham tomado — os ganchos fixados no teto, os rifles carregados, os frascos de remédio levados da despensa para o quarto — traíam pensamentos suicidas alimentados por longo tempo.
A primeira suicida desse tipo tinha vindo da cidade de Batman, a cem quilômetros de Kars. No mundo todo, os homens se matam três ou quatro vezes mais que as mulheres; quem primeiro notou que em Batman o número de suicídios femininos era três vezes maior que o de masculinos e quatro vezes maior que a média mundial para mulheres foi um jovem funcionário do Departamento Nacional de Estatísticas de Ancara. Mas quando um amigo seu do Republicano publicou essa análise numa pequena nota, ninguém na Turquia tomou conhecimento. Muitos correspondentes de jornais franceses e alemães, porém, interessaram-se pelo assunto, e só depois que eles foram a Batman e publicaram os casos na imprensa européia é que a imprensa turca começou a dar-lhe atenção: a essa altura, vários repórteres turcos visitaram a cidade.
Segundo os funcionários graduados do governo, o interesse da imprensa só serviu para fazer que mais meninas se matassem. O subprefeito de Kars, um homem com cara de esquilo e bigode cerrado, disse a Ka que os suicídios locais não tinham atingido o nível estatístico de Batman, e que “no momento” não fazia nenhuma objeção a que Ka conversasse com as famílias, mas pediu-lhe que evitasse usar demais a palavra suicídio ao falar com aquela gente e que tivesse o cuidado de não carregar nas tintas quando escrevesse sobre o assunto para o Republicano. Uma comissão de especialistas em suicídio — em que havia psicólogos, policiais, juizes e funcionários do Departamento de Assuntos Religiosos — já se preparava para transferir-se de Batman para Kars; como primeira medida, o Departamento de Assuntos Religiosos cobriu a cidade com seus cartazes com os dizeres O SUICÍDIO É UMA BLASFÊMIA, e o gabinete do governo ia distribuir um panfleto tendo por título esse slogan. Ainda assim, o subprefeito temia que essas medidas produzissem o resultado oposto ao esperado — não apenas porque as mocinhas, ouvindo que outras se suicidaram, teriam a idéia de imitá-las, mas também porque muitas poderiam fazer o mesmo, exasperadas pelos constantes sermões dos maridos, dos pais, dos pregadores e do Estado.
“O certo é que as moças foram levadas ao suicídio porque eram extremamente infelizes. Não temos dúvidas quanto a isso”, disse o subprefeito a Ka. “Mas se a infelicidade é um motivo legítimo para o suicídio, metade das mulheres da Turquia iria se matar.” Ele afirmou que as mulheres poderiam se aborrecer se tivessem de ouvir um coro de vozes masculinas advertindo: “Não se suicidem!”. Foi por isso, disse ele a Ka com orgulho, que escrevera para Ancara pedindo que o comitê de propaganda contra o suicídio incluísse pelo menos uma mulher.
A idéia de que o suicídio pudesse se espalhar como uma praga fora ventilada pela primeira vez quando uma menina viajou de Batman para Kars só para se matar. Sua família recusou-se a deixar Ka e Serdar bei entrar em sua casa, mas o tio materno da menina concordou em conversar com eles na rua. Fumando um cigarro, sentado sob os oleandros de um jardim coberto de neve no bairro Atatürk, ele contou a história da sobrinha. Ela se casara dois anos antes. Obrigada a cumprir as tarefas domésticas de manhã até à noite, ainda tinha de suportar as recriminações da sogra por não conseguir conceber um filho. Mas essas razões não bastariam para levá-la ao suicídio; era evidente que a idéia lhe viera das outras mulheres que se mataram em Batman. Sem sombra de dúvida a querida jovem que se fora parecia absolutamente feliz em sua visita à família ali em Kars, o que tornou tudo ainda mais chocante quando — na manhã em que ela deveria voltar para Batman — eles encontraram uma carta sobre a sua cama dizendo que tomara duas caixas de pílulas para dormir.
Um mês depois que a idéia do suicídio, por assim dizer, contagiou Kars, a prima dessa mocinha de dezesseis anos praticou o primeiro suicídio por imitação. Persuadidos pelo tio, e tendo conseguido de Ka a promessa de contar toda a história em sua reportagem, seus lacrimosos pais explicaram que a menina fora levada ao suicídio depois que seu professor a acusara de não ser virgem. Quando o boato se espalhou por toda a Kars, o noivo da jovem anulou o noivado, e os outros jovens pretendentes — que ainda vinham à sua casa para pedir a mão da linda jovem, apesar de ela estar noiva — também pararam de procurá-la. A essa altura, a avó materna da jovem tinha começado a dizer: “Pois muito bem, parece que você nunca vai conseguir um marido”. Então, certa manhã, quando toda a família assistia a uma cena de casamento na televisão, e seu pai, que estava bêbado na ocasião, começou a chorar, a menina surrupiou as pílulas de dormir da mãe e, depois de tomá-las todas, foi para a cama (não apenas a idéia do suicídio mas também o método se mostrara contagioso). Quando a autópsia revelou que a jovem na verdade ainda era virgem, seu pai responsabilizou não apenas o professor por ter divulgado uma mentira, mas também a filha de seu parente por ter vindo de Batman para se matar. E assim, para afastar os boatos infundados sobre a castidade de sua filha e desmascarar o professor que espalhara a mentira nefasta, a família resolvera contar toda a história a Ka.
Ka achou estranhamente deprimente que as jovens suicidas tivessem de lutar para conseguir um momento de privacidade para se matarem. Mesmo depois de terem tomado suas pílulas, mesmo quando jaziam imóveis, morrendo, eram obrigadas a dividir seu quarto com outras pessoas. Ka crescera em Nisantas lendo literatura ocidental, e em suas fantasias de suicídio ele sempre imaginara ser importante ter bastante tempo e espaço; no mínimo, você precisaria de uma sala onde pudesse ficar durante dias sem que ninguém batesse à porta. Em suas fantasias, o suicídio era uma cerimônia solene, com pílulas de dormir e uísque, um ato final, de livre-arbítrio, levado a cabo sozinho; na verdade, toda vez que ele se imaginara acabando com a própria vida, o que o assustara fora a indispensável solidão do ritual. Por essa razão, ele tinha de admitir, nunca tivera uma propensão séria para o suicídio.
O único suicídio que o levou de volta àquela solidão foi o da jovem que usava manto, que se matara quase seis semanas antes. Essa suicida era uma das famosas “moças de manto”. Quando as autoridades proibiram o uso de mantos nas instituições de ensino de todo o país, muitas mulheres se recusaram a obedecer; as jovens rebeldes do Instituto de Educação de Kars foram impedidas de entrar primeiro nas salas de aula, depois no próprio campus, por um edito de Ancara. Entre as famílias que Ka conheceu, a da moça de manto era a mais próspera; o infortunado pai era dono de uma pequena mercearia. Oferecendo a Ka uma Coca-Cola do refrigerador da loja, ele contou que a filha discutira seus planos com a família e os amigos. Quanto à questão do manto, com certeza a mãe dela, que também usava, dera o exemplo — com a aprovação de toda a família —, mas a pressão efetiva veio das colegas de escola que fizeram uma campanha contra a proibição do uso do manto no Instituto. Com certeza foram elas que lhe puseram na cabeça que o manto era um símbolo do “islã político”. E contrariando o desejo expresso dos pais de que tirasse o manto, a moça recusou, fazendo com que ela própria fosse retirada pela polícia, e em diversas ocasiões, dos corredores do Instituto de Educação. Quando viu algumas de suas amigas desistindo e descobrindo a cabeça, e outras substituindo os mantos por perucas, a moça começou a dizer ao pai e a suas amigas que a vida não tinha sentido e que não queria mais viver. Mas como àquela altura o Departamento de Assuntos Religiosos e os islamitas tinham se juntado para condenar o suicídio como um dos maiores pecados e por toda a cidade cartazes e folhetos proclamavam essa mesma verdade, ninguém esperava que uma moça tão piedosa tirasse a própria vida. Ao que parece, a moça, Teslime, passara sua última noite assistindo em silêncio a um programa de televisão chamado Marianna. Depois de fazer o chá e servi-lo aos pais, foi para o próprio quarto, preparou-se para suas orações lavando a boca, os pés e as mãos. Terminadas as abluções, ajoelhou-se no tapete de orações e entregou-se por algum tempo aos seus pensamentos, depois às preces, e em seguida amarrou o manto no suporte da lâmpada em que se enforcou.
Pobreza e história
Criado em Istambul em meio aos confortos de classe média de Nisantas — pai advogado, mãe dona-de-casa, urna irmã muito amada, uma criada dedicada, salas mobiliadas, um rádio, cortinas —, Ka nada conhecia da pobreza; era algo que existia para além da casa, em outro mundo. Envolto numa escuridão perigosa e impenetrável, esse outro mundo assumia um caráter metafísico na imaginação infantil de Ka. Por isso talvez seja difícil entender que a sua súbita decisão de viajar para Kars tenha sido motivada, pelo menos em parte, por um desejo de voltar à infância.
De volta para Istambul depois de doze anos em Frankfurt, ao procurar os velhos amigos e revisitar as ruas, lojas e cinemas que freqüentara na infância, não encontrou quase nada que pudesse reconhecer — quando não tinham sido demolidos, haviam perdido a alma. Quanto a Kars, embora estivesse vivendo no exterior por algum tempo, Ka ainda tinha noção de que se tratava de uma das cidades mais pobres e esquecidas da Turquia. Por essa razão, pode ter sido tomado pelo desejo de ir buscar mais longe a infância e a pureza: se o mundo que conhecera em Istambul já não podia ser encontrado, sua viagem a Kars podia ser vista como uma tentativa de sair um pouco dos limites de sua infância de classe média, para finalmente aventurar-se no outro mundo que ficava mais além. De fato, quando viu nas vitrines de Kars as coisas de que se lembrava da infância, coisas que já não existiam em Istambul — calçados esportivos de Gislaved, fogões Vesúvio e a primeira coisa que toda criança aprendia sobre Kars, aquelas caixas redondas do famoso queijo fabricado na cidade, dividido em seis fatias em forma de cunha —, ele se sentiu feliz a ponto de esquecer das jovens suicidas: Kars lhe deu aquela paz de espírito que ele um dia conhecera.
Por volta do meio-dia, depois que Serdar bei e ele se separaram, Ka se encontrou com os porta-vozes do Partido Igualitário do Povo e dos azerbaijanos, e depois dessas entrevistas saiu novamente para a saraivada de flocos de neve — como eram grandes! — a fim de fazer uma caminhada solitária pela cidade. Passando pelos cães que latiam na avenida Atatürk, dirigiu-se com triste determinação para os bairros mais pobres em meio a um silêncio só perturbado pelo latido de outros cães. Como a neve cobria as montanhas escarpadas, não mais visíveis à distância, e cobrisse também o castelo Seljuk e os barracos espalhados em meio às ruínas, tudo parecia ter sido varrido para um outro mundo, um mundo fora do tempo; quando lhe ocorreu que era a única pessoa a perceber isso, seus olhos se encheram de lágrimas. Ele passou por um parque em Yusuf Pasa, cheio de balanços e escorregadores quebrados; ali perto havia um terreno baldio onde um grupo de meninos jogava futebol. Os altos postes de luz do depósito de carvão lhes proporcionavam um mínimo de iluminação, e Ka parou algum tempo para observá-los. Ouvindo-os gritar, xingar e deslizar sobre a neve, e olhando para o céu branco e para o pálido brilho amarelo das lâmpadas dos postes, a solidão e o ar desolado do lugar o feriram com tal força que ele sentiu Deus dentro de si.
Era menos uma certeza que uma pálida imagem, como acontece quando se faz um esforço para lembrar de um determinado quadro depois de uma rápida passagem pelas galerias de um museu. Tenta-se evocar a pintura apenas para voltar a perdê-la em seguida. Não era a primeira vez que Ka tinha aquela sensação.
Ka crescera numa família republicana secular e não tivera nenhuma educação religiosa, além da que recebera na escola. Embora tivesse sido surpreendido por visões semelhantes em algumas ocasiões nos últimos anos, elas não haviam lhe causado nenhuma inquietação, nem inspirado nenhum impulso poético. No máximo, sentia-se feliz pelo fato de o mundo ser um lugar tão bonito de se contemplar.
Quando voltou para o quarto do hotel para se aquecer e descansar um pouco, passou algum tempo folheando prazerosamente as histórias de Kars que trouxera de Istambul, misturando o que lia às histórias que ouvira o dia todo e aos contos de fadas da infância, de que aqueles livros o faziam lembrar.
Vivia outrora em Kars uma grande e próspera classe média, que, embora tivesse se distanciado do mundo de Ka, estava ligada a todos os rituais de que ele se lembrava da infância; grandes bailes tiveram lugar naquelas mansões, festas que se prolongavam por dias. Kars era uma escala importante na rota comercial para a Geórgia, Tabriz e o Cáucaso. Situada na fronteira entre dois impérios agora extintos, o Otomano e o russo, a cidade montanhosa gozara também da proteção de tropas regulares que cada potência enviara sucessivamente para lá com esse fim. Durante o período Otomano, muitos povos diferentes se estabeleceram em Kars. Ali tinha havido uma grande comunidade armênia. Suas igrejas milenares ainda ostentavam todo o seu esplendor, embora a comunidade não mais existisse. Ao longo dos anos, muitos persas que fugiam, primeiro do exército mongol, depois do iraniano, fixaram-se em Kars; havia gregos cujas raízes remontavam aos períodos de Bizâncio e do Ponto; havia também georgianos, curdos e circassianos de diversas tribos. Alguns muçulmanos foram expulsos em 1878, quando o exército russo se apoderou do castelo de quinhentos anos da cidade, e em conseqüência disso as mansões do paxá, os hamams e os edifícios otomanos das encostas mais abaixo do castelo entraram em declínio. Kars ainda era próspera e multifacetada quando os arquitetos do czar se puseram a trabalhar ao longo da margem sul do rio Kars; logo construíram uma magnífica cidade nova, definida por cinco avenidas perfeitamente paralelas e por ruas que cruzavam essas avenidas em ângulos retos, coisa nunca vista no Oriente. O czar Alexandre vinha ali para caçar — e para encontrar-se secretamente com a amante. Para os russos, Kars era uma passagem para o sul e para o Mediterrâneo, e, com vistas ao controle das rotas comerciais que passavam por ali, fizeram grandes investimentos em obras públicas. Foram esses aspectos que impressionaram Ka em sua estada na cidade vinte anos antes. As ruas e os amplos calçamentos de pedra, os plátanos e oleandros plantados depois da fundação da República Turca davam à cidade um ar melancólico, desconhecido em cidades otomanas, cujas casas de madeira haviam se incendiado durante os anos de luta nacionalista e de guerras tribais.
Depois de intermináveis guerras, rebeliões, massacres e atrocidades, a cidade foi ocupada pelos exércitos armênio e russo em diferentes épocas, e até mesmo, por breve período, pelo britânico. Durante pouco tempo, quando as forças russas e otomanas deixaram a cidade depois da Primeira Guerra Mundial, Kars se tornou um Estado independente — em outubro de 1920, o exército turco ficou sob o comando de Kâzim Karabekir, o general cuja estátua agora se via na praça da Estação. Essa nova geração de turcos tirou o máximo proveito do grande projeto iniciado pelos arquitetos do czar quarenta e três anos antes: a cultura que os russos trouxeram para Kars então se adequava perfeitamente ao intento de ocidentalização da República. Mas quando se tratou de renomear as cinco grandes avenidas russas, não se conseguiu pensar em um número suficiente de grandes nomes da história da cidade que não fossem soldados, então terminaram homenageando cinco grandes paxás.
Aqueles foram os tempos de ocidentalização da cidade, como Muzaffer bei, o ex-prefeito do Partido Popular, informava com orgulho e ódio ao mesmo tempo. Ele falou dos grandes bailes dos centros cívicos e das competições de patinação que se faziam sob as agora enferrujadas e arruinadas pontes de ferro batido que Ka atravessara na sua caminhada matinal. Quando uma companhia de teatro de Ancara veio apresentar Édipo Rei, a burguesia de Kars recebeu-a com entusiasmo, ainda que não tivessem se passado vinte anos desde a guerra com a Grécia. Os ricos anciãos em casacos com gola de pele saíam a passeio em trenós puxados por robustos cavalos húngaros enfeitados com rosas e borlas de prata. Nos Jardins Nacionais, organizavam-se bailes sob as acácias para angariar fundos para o time de futebol, e a gente de Kars ia dançar as danças da moda ao som de pianos, acordeons e clarinetas tocados ao ar livre. No verão, as moças podiam usar vestidos de mangas curtas e andar de bicicleta pela cidade sem ser incomodadas. Muitos estudantes do liceu que iam para a escola deslizando em seus patins expressavam seu fervor patriótico pelas informais gravatas-borboleta. Em sua juventude, Muzaffer bei fora um deles, e, quando já advogado, de volta à cidade, ansioso para concorrer a um cargo público, começou a usá-las novamente, seus colegas de partido o advertiram de que aquela moda o faria perder votos, de que seria tomado por um poseur da pior espécie, mas Muzaffer não lhes deu ouvidos.
Agora aqueles intermináveis invernos frios estavam perdidos, e a acreditar no que dizia Muzaffer bei, era como se isso explicasse o mergulho na penúria, na depressão e na ruína. Tendo descrito a beleza daqueles invernos — demorando-se especialmente nas faces empoadas dos atores seminus que tinham vindo de Ancara para apresentar peças gregas —, o ex-prefeito passou a contar que, no final dos anos 40, ele mesmo convidara um grupo jovem para apresentar uma peça revolucionária num centro cultural do município. “Essa obra fala do despertar de uma jovem que passou sua vida embrulhada num manto preto”, disse ele. “No fim, ela o arranca e queima.” No final da década de 40, eles vasculharam toda a cidade para achar o manto que seria usado na peça; por fim tiveram de telefonar para Erzurum e pedir que mandassem um de lá. “Agora as ruas de Kars estão cheias de jovens mulheres com mantos de todo tipo”, acrescentou Muzaffer. “E como foram proibidas de entrar nas salas de aula por ostentarem esse símbolo do islã político, elas começaram a se suicidar.”
Ka evitou fazer perguntas, agindo de igual maneira pelo resto de sua estada em Kars toda vez que alguém mencionava a ascensão do islã político ou a questão do manto. Ele evitou também perguntar por que — se era verdade que no final da década de 40 não havia um único manto para cabeça em Kars — um grupo de jovens entusiastas sentira necessidade de apresentar uma peça revolucionária estimulando as jovens a não cobrirem a cabeça. Em suas longas caminhadas pela cidade naquele dia, Ka prestara pouca atenção aos mantos que vira e não procurou distinguir os que tinham uma conotação política dos demais; tendo voltado ao país havia apenas uma semana, ainda não desenvolvera a secular habilidade de detectar a motivação política ao ver na rua uma mulher coberta com um manto, uma vez que, verdade seja dita, depois da infância ele não tivera muitas oportunidades de observar mulheres com manto. Nos círculos ocidentalizados da alta classe média da Istambul de sua juventude, uma mulher com manto era com certeza uma pessoa vinda dos arredores da cidade — dos vinhedos de Kartal, por exemplo — para vender uvas. Podia ser também a mulher do leiteiro ou alguma outra pessoa de classe baixa.
A certa altura, eu também haveria de ouvir muitas histórias sobre os antigos proprietários do Hotel Palácio de Neve, onde Ka estava hospedado. Um deles foi um professor universitário de tendências ocidentais que o czar exilara para Kars (uma opção melhor que a Sibéria); outro era um armênio negociante de gado; em seguida, o edifício tinha abrigado um orfanato grego. O primeiro proprietário equipara a construção de cento e dez anos com o sistema de aquecimento típico de tantas casas de Kars à época: uma estufa por trás das paredes, de modo a irradiar calor para quatro quartos à sua volta. Foi apenas quando Kars se tornou parte da República Turca que o prédio ganhou seu primeiro proprietário turco e se converteu em hotel, mas, incapaz de entender como funcionava o sistema de aquecimento russo, o último dono instalou uma grande estufa de cobre ao lado da porta que dava acesso ao pátio. Só muito tempo depois ele se capacitou da excelência do aquecimento central.
Ka estava deitado na cama de casaco, perdido em devaneios, quando bateram à porta; levantou-se de um salto para atender: era Cavit, o recepcionista do hotel, que passava os dias ao lado da estufa assistindo à televisão. Viera dizer a Ka algo de que tinha se esquecido quando este entrou.
“Esqueci de dizer que Serdar bei, o dono da Gazeta da Cidade Fronteiriça, quer ver o senhor imediatamente.”
“Tendo descido as escadas, Ka estava prestes a sair do saguão quando estacou, como que paralisado: naquele exato momento, pela porta atrás do balcão de recepção, surgiu Ipek. Ele se esquecera do quanto ela era bonita em seus tempos de universidade, e agora, com a lembrança subitamente reavivada, sentiu-se um tanto nervoso em sua presença. Era exatamente isso — ela era bonita a esse ponto. Primeiro trocaram um aperto de mão à maneira da burguesia ocidentalizada de Istambul, mas, depois de um instante de hesitação, inclinaram a cabeça para a frente, abraçaram-se, sem deixar que seus corpos se tocassem, e beijaram-se nas faces.
‘Eu sabia que você viria”, disse Ipek, dando um passo atrás. Ka ficou surpreso em ouvi-la falar de forma tão desenvolta. “Taner ligou para me contar.” Ela fitou-o diretamente nos olhos ao dizer isso.
“Vim para cobrir as eleições municipais e o caso do suicídio das garotas.”
“Por quanto tempo você vai ficar?”, perguntou Ipek. “Agora estou muito ocupada, trabalhando com meu pai, mas há um lugar chamado Confeitaria Vida Nova, ao lado do Hotel Ásia. Vamos nos encontrar lá à uma e meia. Então poderemos pôr a conversa em dia.”
Se eles tivessem topado um com o outro em Istambul — digamos, em algum lugar em Beyoglu —, teriam tido uma conversa normal: era por estar ocorrendo em Kars que ele se sentia tão estranho. Ka não sabia ao certo que parcela daquela agitação poderia ser atribuída à beleza de Ipek. Depois de andar por algum tempo na neve, surpreendeu-se pensando: “Estou tão feliz por ter comprado este casaco!”.
A caminho da redação do jornal, seu coração lhe revelou uma ou duas coisas que sua cabeça se recusou a aceitar: primeiro, voltando de Frankfurt para Istambul pela primeira vez em doze anos, seu propósito era não apenas assistir aos funerais da mãe mas também encontrar uma jovem turca com quem se casar; segundo, foi por esperar secretamente que essa jovem fosse Ipek que Ka empreendera a viagem de Istambul para Kars.
Se um amigo íntimo tivesse sugerido essa segunda possibilidade, Ka nunca o perdoaria; essa verdade iria fazê-lo sentir-se culpado e envergonhado pelo resto da vida. Como vocês podem ver, Ka era um daqueles moralistas que acreditam que a maior felicidade advém de não se fazer nada tendo em vista a própria felicidade. E, acima de tudo, pensava que não era adequado para um homem instruído, ocidentalizado e intelectualizado como ele, pôr-se em campo à procura de um casamento com alguém que mal conhecia. Apesar disso, ele estava muito contente quando chegou à Gazeta da Cidade Fronteiriça. Isso porque seu primeiro encontro com Ipek — a coisa com que vinha sonhando desde que tinha entrado no ônibus em Istambul — fora muito melhor do que poderia ter imaginado.
A Gazeta da Cidade Fronteiriça ficava na avenida Faikbey, uma rua abaixo do hotel de Ka, e sua redação e gráfica ocupavam um espaço apenas um pouco maior que o pequeno quarto de hotel em que ele estava hospedado. Era um estabelecimento de duas salas com divisão de madeira, na qual se viam pendurados retratos de Atatürk, calendários, modelos de cartões de visita e de convites de casamento (um serviço gráfico adicional), e fotografias do dono com importantes funcionários do governo e outros turcos famosos que tinham visitado Kars. Havia também um exemplar emoldurado do primeiro número do jornal, publicado quarenta anos antes. Ao fundo ouvia-se o som tranqüilizador do vaivém do pedal da impressora. Esta tinha cento e dez anos e fora fabricada em Leipzig, pela Empresa Baumann, para seus primeiros proprietários, gente de Hamburgo. Depois de usá-la por um quarto de século, eles a venderam para um jornal de Istambul (isso foi em 1910, durante o período de liberdade de imprensa que se seguiu à instituição da segunda monarquia constitucional). Em 1955 — quando a máquina estava para ser vendida como ferro-velho — o saudoso pai de Serdar bei comprou-a e despachou-a para Kars.
Ka encontrou o filho de vinte e dois anos de Serdar bei umedecendo o dedo com saliva, prestes a colocar uma folha em branco na máquina com a mão direita, enquanto removia habilmente a folha impressa com a esquerda — a cesta coletora se quebrara durante uma briga com o irmão mais novo, onze anos antes. Mas mesmo fazendo aquela manobra complicada, ele conseguiu acenar para Ka. O segundo filho de Serdar bei estava sentado a uma mesa preta retinta, cujo tampo era dividido em inúmeros compartimentos pequenos e rodeado por fileiras de letras de chumbo, matrizes e chapas. O filho mais velho parecia-se com o pai, mas, quando Ka olhou para o mais novo, viu a figura da mãe, gorda, baixinha, de rosto redondo e olhos oblíquos. Imprimindo manualmente anúncios do número que devia sair dentro de três dias, o rapaz mostrava a paciência metódica de um calígrafo que tivesse renunciado ao mundo para se dedicar à sua arte.
“Agora você está vendo em que condições difíceis nós, da imprensa da Anatólia Oriental, temos de trabalhar”, disse Serdar bei.
Naquele mesmo instante, houve um apagão. Enquanto a impressora parava com um chiado e a oficina mergulhava numa escuridão encantada, Ka sentiu-se tocado pela beleza da brancura da neve que caía lá fora.
“Quantos exemplares você imprimiu?”, perguntou Serdar bei. Acendendo uma vela, ele fez Ka sentar-se numa cadeira na sala da frente.
“Fiz cento e sessenta, pai.”
“Quando a luz voltar, complete trezentos e quarenta. Com a vinda da companhia de teatro, nossas vendas devem aumentar.”
A Gazeta da Cidade Fronteiriça era vendida apenas em um ponto, bem em frente ao Teatro Nacional, no lado oposto da rua, e esse ponto vendia em média vinte exemplares de cada edição; incluindo-se as assinaturas, a circulação do jornal era de trezentos e vinte, fato que inspirava não pouco orgulho em Serdar bei. Destes, duzentos e quarenta iam para as repartições do governo e estabelecimentos comerciais; muitas vezes Serdar bei era obrigado a noticiar suas realizações. Os outros oitenta iam para “pessoas de bem, importantes e influentes”, que tinham se mudado para Istambul mas ainda mantinham laços com a cidade.
Quando a eletricidade voltou, Ka notou na fronte de Serdar bei uma veia saltada, que traía sua irritação.
“Depois que você nos deixou, andou se encontrando com as pessoas erradas, e essas pessoas lhe disseram coisas erradas sobre esta nossa cidade fronteiriça”, disse Serdar bei.
“Como você sabe onde eu estive?”, perguntou Ka.
“Naturalmente, a polícia estava seguindo você”, disse o jornalista. “E por razões profissionais, nós ouvimos a comunicação entre os policiais neste rádio transistor. Noventa por cento das notícias que publicamos vêm do palácio do governo e do quartel da polícia de Kars. Toda a força policial está inteirada de que você andou perguntando a todo mundo por que Kars é tão atrasada e pobre e por que tantas jovens estão se suicidando.”
Ka ouvira muitas explicações sobre por que Kars caíra em tal penúria. O comércio com a União Soviética tinha acabado durante a Guerra Fria, diziam uns. Os postos alfandegários da fronteira fecharam. Os guerrilheiros comunistas que infestaram a cidade durante a década de 70 fizeram o dinheiro ir embora. Os ricos retiraram todo o capital que conseguiram e mudaram-se para Istambul e Ancara. A nação voltara as costas para Kars, e Deus também. E não devemos esquecer as intermináveis disputas entre a Turquia e a vizinha Armênia...
“Resolvi lhe contar a verdadeira história”, disse Serdar bei.
Com uma lucidez e um otimismo que não sentia havia anos, Ka viu imediatamente que a questão essencial ali era a vergonha. Fora também para ele, durante os anos que passara na Alemanha, mas ele a escondera de si mesmo. Somente agora, ao ter encontrado a esperança de felicidade, é que se sentiu forte para admitir a verdade.
“Nos velhos tempos todos eram irmãos”, disse Serdar bei. Ele falava como se estivesse revelando um segredo. “Mas nos últimos anos todo mundo começou a dizer, sou azerbaijano, sou um curdo, sou terekemiano. Claro que aqui temos povos de todas as nações. Os terekemianos, que também chamamos de karakalpaks, são os irmãos dos azerbaijanos. Quanto aos curdos, que preferimos considerar como uma tribo, nos velhos tempos eles nem ao menos sabiam que eram curdos. E assim foi durante todo o período Otomano: nenhum dos povos que decidiram ficar saiu por aí batendo no peito e gritando ‘Nós somos otomanos!’. Os turcomenos, os lazes da cidadezinha de Posof, os alemães que foram expulsos para cá pelo czar — todos estavam aqui, mas nenhum sentia orgulho de se proclamar diferente. Foram os comunistas e sua rádio de Tiflis que incitaram o orgulho tribal, e fizeram isso porque queriam dividir e destruir a Turquia. Agora todo mundo está mais orgulhoso... e mais pobre.”
Quando teve certeza de que seus argumentos encontraram eco em Ka, Serdar bei mudou de assunto.
“Quanto aos islamitas, eles vão em grupo de porta em porta, visitando as casas, e dão panelas, frigideiras, essas máquinas de espremer laranja, caixas de sabão, triguilho e detergente às mulheres. Concentram-se nos bairros pobres, procurando conquistar-lhes a simpatia: trazem agulhas curvas e costuram fios dourados nos ombros das crianças para protegê-las do mal. Eles dizem: ‘Dê seu voto ao Partido da Prosperidade, o partido de Deus; nós caímos nessa miséria porque nos desviamos do caminho do Senhor’. Os homens falam com os homens, as mulheres, com as mulheres. Eles conquistam a confiança dos desempregados revoltados e humilhados; conversam com suas mulheres, que não sabem de onde virá a próxima refeição, e lhes dão esperança; prometendo mais presentes, conseguem em troca a promessa de votos. Não estamos falando apenas dos que estão nos estratos mais baixos. Mesmo pessoas com empregos — e até comerciantes — os respeitam, porque esses islamitas são mais trabalhadores, mais honestos e mais modestos que quaisquer outros.”
O proprietário da Gazeta da Cidade Fronteiriça acrescentou que o prefeito recém-assassinado era desprezado por todos. Não porque, ao chegar à conclusão de que os cavalos e carroças eram ultrapassados demais para a cidade, tivesse tentado proibi-los. (Sem nenhum resultado, como se viu depois, pois quando ele morreu o plano foi abandonado.) Não, insistiu Serdar bei, o povo de Kars odiava o prefeito porque ele aceitava subornos e não tinha pulso. Mas os partidos republicanos de direita e de esquerda não conseguiram tirar vantagem desse ódio; divididos como estavam por rixas violentas, disputas étnicas e outras rivalidades destrutivas, fracassaram em apresentar um candidato único em condição de vencer. “O único candidato em quem o povo confia é o que está concorrendo pelo Partido de Deus”, disse Serdar bei. “E esse candidato é Muhtar bei, o ex-marido de Ipek Hanim, cujo pai, Turgut bei, é dono do hotel em que você está hospedado. Muhtar não é lá muito brilhante mas é curdo, e os curdos representam quarenta por cento de nossa população. O novo prefeito será do Partido de Deus.”
Lá fora a neve estava caindo densa e pesada como nunca; apenas de olhá-la, Ka já se sentia solitário. Ele também temia que o mundo ocidentalizado que conhecera na infância estivesse chegando ao fim. Quando estava em Istambul, voltara às ruas da sua infância, procurando os velhos edifícios elegantes onde seus amigos tinham morado, edifícios cuja construção remontava ao início do século XX, mas descobriu que muitos foram destruídos. As árvores tinham mirrado ou sido derrubadas; os cinemas, fechados dez anos antes, ainda estavam lá, rodeados de escuras e estreitas lojas de vestuário. Não era apenas o mundo da sua infância que estava morrendo — era o seu sonho de um dia voltar a morar na Turquia. Se a Turquia fosse dominada por um governo islâmico fundamentalista, ele pensava agora, nem mesmo sua irmã poderia sair de casa com a cabeça descoberta.
O luminoso de neon da Gazeta da Cidade Fronteiriça criara um pequeno halo de luz na escuridão lá fora; os flocos de neve gigantes ondulando lentamente através da luminescência eram a essência mesma dos contos de fadas, e observando-os cair sem cessar, Ka se viu com Ipek em Frankfurt: eles estavam na mesma Kaufhof em que ele comprara o casaco cinza-carvão que agora envolvia seu corpo; estavam fazendo compras juntos no primeiro andar, na seção de sapatos femininos...
“Isso é obra do movimento islâmico internacional, que quer transformar a Turquia num novo Irã”, disse Serdar bei.
“Acontece o mesmo com as jovens suicidas?”, perguntou Ka voltando-se.
“Agora estamos reunindo denúncias de pessoas que dizem achar uma vergonha essas moças terem sido tão iludidas, mas como não queremos aumentar a pressão sobre outras jovens, correndo o risco de levá-las ao suicídio, ainda não publicamos nenhuma de suas declarações. Elas dizem que Azul, o infame terrorista muçulmano, está em nossa cidade para aconselhar as jovens que cobrem a cabeça — e as suicidas também.”
“Os muçulmanos não são contra o suicídio?”
Serdar bei não respondeu a essa pergunta. A impressora parou e fez-se silêncio na sala. Ka voltou o olhar para a miraculosa neve. Saber que logo iria ver Ipek o estava deixando nervoso. Os problemas de Kars eram uma distração bem-vinda, mas tudo o que desejava naquele momento era pensar em Ipek e se preparar para o encontro na confeitaria; faltavam dez minutos.
Com a pompa e solenidade mais condizentes com um presente feito à mão, Serdar bei ofereceu a Ka uma cópia da primeira página que seu enorme filho mais velho acabara de imprimir. Os olhos de Ka, acostumados a procurar o próprio nome em jornais literários, logo o localizaram no canto:
KA, NOSSO FAMOSO POETA, CHEGA A KARS
KA, o célebre poeta cuja fama se espalha pela Turquia, veio visitar a nossa cidade fronteiriça. Ele conquistou a admiração de todo o país com duas coletâneas intituladas Cinzas e tangerinas e Os jornais vespertinos. Nosso jovem poeta, que também ganhou o Prêmio Behcet Necatigil, veio à nossa cidade para cobrir as eleições municipais para o Republicano. Durante muitos anos, KA estudou poesia ocidental em Frankfurt.
“Meu nome está escrito errado”, disse Ka. “O A devia estar em caixa-baixa”, continuou, lamentando ter de dizer isso. “Mas parece muito bom”, acrescentou, como se a pedir desculpas por seus maus modos.
“Meu caro, foi por não sabermos ao certo o seu nome que tentamos entrar em contato com o senhor”, disse Serdar bei. “Filho, olhe aqui, você imprimiu errado o nome de nosso poeta.” Mas enquanto recriminava o rapaz não havia surpresa em sua voz. Ka desconfiou não ter sido ele o primeiro a notar que seu nome fora impresso errado. “Corrija isso agora mesmo.”
“Não é preciso”, disse Ka. No mesmo instante viu o próprio nome impresso corretamente no último parágrafo que acabara de ser composto em tipos de chumbo.
NOITE DE TRIUNFO PARA A TRUPE DE SUNAY ZAIM
NO TEATRO NACIONAL
A Companhia de Teatro Sunay Zaim, conhecida em toda a Turquia por suas homenagens teatrais a Atatürk, à República e ao iluminismo, apresentou um espetáculo para uma platéia extasiada e entusiástica no Teatro Nacional ontem à noite. O espetáculo, que se prolongou até o meio da noite e contou com a presença do subprefeito, do candidato ao governo municipal e dos cidadãos mais importantes de Kars, foi interrompido várias vezes por estrondosas palmas e aplausos. O povo de Kars, que havia muito estava ansioso por um evento artístico dessa dimensão, pôde assistir não apenas do auditório superlotado, mas também de suas casas. A Televisão Fronteiriça de Kars trabalhou incansavelmente para organizar essa primeira transmissão ao vivo em sua história de dois anos, para que toda a Kars pudesse assistir ao esplêndido espetáculo. Embora ainda não disponha de equipamento para transmissão ao vivo, a Televisão Fronteiriça de Kars conseguiu estender um cabo de seus estúdios, na avenida HalitPasa, ao longo de duas ruas, até a câmera que se colocou no Teatro Nacional. Era tal o espírito de boa vontade presente entre os cidadãos de Kars que alguns moradores tiveram a gentileza de deslocar o cabo para suas casas, para evitar que a neve o danificasse. (Por exemplo, nosso dentista, Fadil bei, e sua família permitiram que se passasse o cabo pela janela que dá para a sacada da frente e o estendessem pelos jardins dos fundos da casa.) O povo de Kars agora espera ter novas oportunidades de desfrutar de programas de grande sucesso desse tipo.
O diretor da Televisão Fronteiriça de Kars também anunciou que estando em curso a primeira transmissão ao vivo da cidade, todos os estabelecimentos industriais e comerciais de Kars tiveram a gentileza de contribuir para a divulgação.
O programa, que foi visto por toda a população de nossa cidade, incluía vinhetas republicanas, as mais belas cenas das mais importantes obras de arte do iluminismo ocidental, esquetes teatrais criticando os comerciais que visam solapar nossa cultura, as aventuras de Vural, o famoso goleiro, e poemas em honra de Atatürk e da nação. Ka, o famoso poeta, que está visitando nossa cidade, recitou seu último poema, “Neve”. O ponto máximo do evento foi a apresentação da peça Minha pátria ou meu lenço, a obra-prima iluminista dos primeiros anos da república, numa nova versão intitulada Minha pátria ou meu manto para a cabeça.
“Não tenho nenhum poema chamado ‘Neve’ e não vou ao teatro esta noite. Seu jornal vai dar a impressão de ter errado.”
“Não tenha tanta certeza. Tem gente que nos despreza por escrevermos as notícias antes que elas aconteçam. Eles nos temem não por sermos jornalistas, mas porque conseguimos prever o futuro; você precisa ver como ficam espantados quando as coisas acontecem exatamente como as relatamos. E muitas coisas só acontecem porque as relatamos antes. Isso é que é jornalismo moderno. Sei que você não vai se opor a que sejamos modernos — você não vai querer nos desgostar —, e é por isso que tenho certeza de que vai escrever um poema chamado ‘Neve’ e virá ao teatro para o ler.”
Examinando o resto do jornal — anúncios de vários comícios, notícias sobre uma vacina de Erzurum que estava sendo aplicada nos liceus da cidade, um artigo entusiasmado contando que todos os moradores de Kars iriam ter um prazo suplementar de dois meses para pagar suas contas de água — Ka notou uma notícia que não tinha visto antes.
TODAS AS ESTRADAS PARA KARS ESTÃO FECHADAS
A neve que está caindo há dois dias cortou todas as nossas ligações com o mundo exterior. A estrada de Ardahan foi fechada esta manhã, e a estrada para Sankamis, ficou intransitável à tarde. Devido ao excesso de neve e de gelo na área atingida, o fechamento das estradas obrigou um ônibus da Empresa Yilmaz a voltar para Kars.
O serviço meteorológico informou que o ar frio vindo diretamente da Sibéria e a nevasca decorrente vão continuar por mais três dias. Assim, nesse período, a cidade de Kars vai ter de se portar como nos invernos de antigamente, virando-se com seus próprios recursos. Isso vai nos dar uma oportunidade de pôr nossa casa em ordem.
Quando Ka estava se levantando para ir embora, Serdar bei levantou-se de um salto e segurou a porta como para certificar-se de que suas últimas palavras seriam ouvidas.
“Quanto a Turgut bei e suas filhas, quem sabe o que vão lhe contar?”, disse ele. “São pessoas instruídas que hoje à noite estão recebendo muitos amigos, como é o meu caso, mas não se esqueça: o ex-marido de Ipek, Muhtar bei, é o candidato a prefeito do Partido de Deus. O pai dela, Turgut bei, e ex-comunista. Sua irmã, que veio completar seus estudos aqui, segundo dizem é a líder das moças que usam mantos. Imagine a situação! Não há uma só pessoa em Kars que tenha a menor idéia de por que resolveram vir para cá durante o período mais difícil de nossa cidade, quatro anos atrás.”
Ka sentiu um aperto no coração quando ouviu essas notícias perturbadoras, mas não deixou transparecer nenhuma emoção.
Ka se encontra com Ipek na Confeitaria Vida Nova
Por que, apesar das más notícias que acabara de receber, havia um leve sorriso no rosto de Ka enquanto andava na neve, indo da avenida Faikbey para a Confeitaria Vida Nova? Alguém estava tocando “Roberta”, de Pepino di Capri, uma canção pop melodramática da década de 6o, e aquilo o fez sentir-se como o melancólico herói de um romance de Turgueniev saindo para se encontrar com uma mulher com quem sonhara durante anos. Para falar a verdade, Ka amava Turgueniev e seus romances elegantes, e, como o escritor russo, estava cansado dos intermináveis problemas do seu país e chegou a desprezar o seu atraso, só para acabar se surpreendendo a olhar para trás com amor e saudade depois de mudar-se para a Europa. Ka não sonhava com a imagem de Ipek, mas trazia na cabeça a visão de uma mulher muito parecida com ela. Talvez Ipek tivesse entrado em seus pensamentos de tempos em tempos, mas só começou a pensar nela depois de ter ouvido falar de seu divórcio; na verdade, era justamente por não ter sonhado com ela o bastante que agora estava tão interessado em avivar seus sentimentos com música e romantismo à la Turgueniev.
Mas tão logo entrou na confeitaria e reuniu-se a ela em sua mesa, todos aqueles pensamentos românticos desapareceram, porque Ipek parecia ainda mais bonita naquele momento do que no hotel, mais ainda do que nos tempos de universidade. A verdadeira dimensão de sua beleza — lábios levemente maquiados, tez pálida, olhos brilhantes, olhar franco, afetuoso — perturbava Ka. Houve um momento em que ela pareceu tão espontânea que ele temeu não conseguir sustentar sua atitude estudada. (Esse era seu maior medo, depois do de escrever poemas ruins.)
“Vindo para cá, vi operários arrastando um cabo de transmissão desde a Televisão Cidade Fronteiriça até o Teatro Nacional. Eles o estendiam como um varal”, disse ele, na esperança de quebrar o embaraçoso silêncio. Não querendo, porém, parecer criticar as deficiências da vida da província, teve o cuidado de não sorrir.
Sustentar a conversa exigiu um certo esforço, mas os dois empenharam-se na tarefa com admirável determinação. A neve era uma coisa que podiam discutir com facilidade. Quando eles esgotaram esse assunto, passaram a falar da pobreza de Kars. Em seguida, do casaco de Ka. Depois ambos confessaram ter achado que o outro não tinha mudado nada, e que nenhum dos dois tinha conseguido parar de fumar. O assunto seguinte foi o dos amigos distantes: Ka acabara de ver muitos deles em Istambul. Mas foi a descoberta de que suas mães agora estavam mortas e enterradas no Cemitério Feriköy, em Istambul, que os levou à maior proximidade que ambos desejavam. E então, quando descobriram pertencer ao mesmo signo astrológico, a revelação — ilusória ou não — produziu um frisson que os aproximou ainda mais.
Então, já relaxados, conseguiram conversar (por um breve tempo) sobre suas mães e (mais demoradamente) sobre a demolição da velha estação de trem de Kars. Logo voltaram a atenção para a confeitaria onde se encontravam — fora uma igreja ortodoxa até 1967, quando a porta foi removida e levada para o museu. O mesmo museu tinha uma seção em memória do Massacre Armênio (naturalmente, disse ela, alguns turistas vinham esperando ver remanescentes do massacre turco dos armênios, e era sempre um choque descobrir que nesse museu a história era contada de forma diferente). O assunto seguinte foi o único garçom da confeitaria, meio surdo, um tanto parecido com um fantasma. Depois o preço do café, o qual, ao que parecia, já não era vendido nas casas de chá da cidade por ser muito caro para a clientela desempregada. Em seguida, passaram a discutir as opiniões políticas do jornalista que acompanhara Ka em sua volta pela cidade, as dos vários jornais locais (todos apoiavam o exército e o atual governo) e a edição do dia seguinte da Gazeta da Cidade Fronteiriça, que Ka agora sacava do bolso.
Enquanto observava Ipek examinar a primeira página, Ka sentiu-se dominar pelo medo de que, como seus velhos amigos de Istambul, ela estivesse tão envolvida nos problemas internos e nas mesquinhas intrigas políticas da Turquia que nem ao menos consideraria a possibilidade de viver na Alemanha. Ele contemplou por longo tempo as pequenas mãos de Ipek e seu rosto gracioso — sua beleza ainda o perturbava.
“Baseado em que artigo você foi condenado, e qual a duração da pena?”
Ka contou a ela. Os pequenos jornais políticos do final da década de 70 se permitiram uma liberdade de expressão muito maior do que o código penal autorizava. Todos que foram julgados e considerados culpados de insulto ao Estado tendiam a sentir-se orgulhosos disso. Mas ninguém foi parar na prisão, pois a polícia não fez nenhum esforço sério para procurar os editores, escritores ou tradutores em seus domicílios, constantemente alterados. Mas depois do golpe militar de 1980, as autoridades começaram pouco a pouco a localizar todo mundo que se esquivara da prisão simplesmente mudando de endereço, e foi a essa altura que Ka, que fora processado por um artigo de jornal, impresso de afogadilho, que nem ao menos escrevera, fugiu para a Alemanha.
“Foi difícil para você na Alemanha?”, perguntou Ipek.
“O que me salvou foi não ter aprendido alemão”, disse Ka. “Meu corpo recusava a língua, assim pude preservar minha pureza e minha alma.”
De repente receou estar fazendo papel de bobo, mas em sua alegria de ter Ipek como ouvinte, ele se dispôs a contar uma história que nunca contara a ninguém: a do silêncio enterrado em seu íntimo, o silêncio que não lhe permitira escrever nem ao menos um poema nos últimos quatro anos.
“Aluguei um pequeno apartamento, próximo à estação de trem, com vista para os telhados de Frankfurt. A noite, quando rememorava o dia, descobria que minhas lembranças estavam envoltas numa espécie de silêncio. A princípio, desse silêncio nascia um poema. Com o passar do tempo, conquistei certo reconhecimento na Turquia como poeta, e agora começo a receber convites para fazer leituras públicas de poemas. Os convites vêm de imigrantes turcos, de prefeituras municipais, bibliotecas e escolas de terceiro grau que pretendem atrair o público turco, e também de turcos desejosos de apresentar a seus filhos um poeta que escreve em turco.”
Então, quando convidado, Ka pegava um daqueles impecáveis e pontuais trens alemães que tanto admirava; pelo vidro embaciado da janela contemplava as delicadas torres de igreja elevando-se sobre aldeias longínquas. Perscrutava as florestas de faias, procurando a escuridão que escondiam em seu seio. Via as crianças robustas voltando da escola com suas mochilas, e o mesmo silêncio descia sobre ele — como não entendia a língua do país, sentia-se tão seguro e à vontade como se estivesse na própria casa, e era então que escrevia seus poemas.
Nos dias em que não estava viajando, saía de casa às oito da manhã, caminhava ao longo da Kaiserstrasse, ia à biblioteca municipal, na avenida Zeil, e lia livros. “Havia livros em inglês o bastante para ler por dez vidas.” Lá ele lia magníficos romances do século XIX, poesia romântica inglesa, livros de história da engenharia e assuntos correlatas, catálogos de museus — lia o que bem queria, e lia tudo com o prazer de uma criança consciente de que a morte se encontra distante demais para ser imaginada. Enquanto estava na biblioteca virando as páginas, parando de vez em quando para examinar as ilustrações de velhas enciclopédias, relendo os romances de Turgueniev de ponta a ponta, conseguia isolar-se do zumbido surdo da cidade; era envolvido pelo silêncio, da mesma forma que o era nos trens. Mesmo depois do anoitecer, quando voltava por outro caminho, passando em frente ao Museu Judaico e caminhando ao longo do rio Meno, mesmo nos fins de semana, quando andava de uma ponta à outra da cidade, o silêncio ainda o envolvia.
“Quatro anos atrás esses silêncios dominavam toda a minha vida. Eu precisava de barulho — só quando eu eliminava o barulho conseguia escrever poesia”, disse Ka. “Mas agora eu vivia em completo silêncio. Não falava com nenhum alemão, e minhas relações com os turcos tampouco eram boas — eles me evitavam, considerando-me meio louco, um intelectual decadente. Eu não estava me encontrando com ninguém, não falava com ninguém, nem escrevia poemas.”
“Mas o jornal diz que você vai ler seu último poema hoje à noite.”
“Se não tenho um último poema, como posso lê-lo?”
Havia apenas outros dois fregueses na confeitaria. Estavam sentados a uma mesa do outro lado do salão, num canto próximo à janela. Um deles era um jovem baixinho; seu companheiro, velho, magro e cansado, estava tentando, pacientemente, explicar-lhe alguma coisa. Atrás deles, para além do vidro espelhado das janelas, caíam grandes flocos de neve na escuridão; o luminoso de neon da confeitaria tingia os flocos de rosa. Recortados contra esse cenário, os dois homens mergulhados numa intensa conversação no canto mais afastado da confeitaria pareciam personagens de um filme granulado preto-e-branco.
“Minha irmã Kadife estava na universidade em Istambul, mas não passou nas provas finais do primeiro ano”, disse Ipek. “Ela conseguiu transferir-se para o Instituto de Educação aqui de Kars. O homem magro atrás de mim, lá no fundo, é o doutor Yilmaz, diretor do Instituto. Quando minha mãe morreu num acidente de carro, meu pai, que adora minha irmã e não queria ficar sozinho, resolveu mudar-se para cá e trazê-la para morar com meu marido e comigo. Mas logo que meu pai mudou para cá — três anos atrás — Muhtar e eu nos separamos. Por isso, agora nós três moramos juntos. Nós e alguns parentes somos donos do hotel, um lugar cheio de fantasmas e almas penadas. Nós ocupamos três quartos.”
Durante os anos em que pertenceram à esquerda no movimento estudantil, Ka e Ipek nada tiveram um com o outro. Quando, aos dezessete anos, entrou pela primeira vez nos corredores de pé-direito alto do departamento de literatura, Ka não notou Ipek logo — havia muitas outras moças bonitas —, e quando eles se conheceram no ano seguinte, ela já estava casada com Muhtar. Muhtar era um poeta amigo de Ka que pertencia ao mesmo grupo político; como Ipek, ele era de Kars.
“Muhtar passou a dirigir a loja do pai, distribuidora exclusiva dos produtos Arçelik e Aygaz”, disse Ipek, “e, logo que nos instalamos aqui, tentei ficar grávida. Como nada acontecia, ele começou a me levar a médicos em Erzurum e Istambul; quando se tornou claro que mesmo assim eu não engravidava, nós nos separamos. Mas, em vez de se casar novamente, Muhtar se entregou à religião.”
“Por que de repente tanta gente está se voltando para a religião?”, perguntou Ka.
Ipek não respondeu, e por algum tempo eles fitaram a televisão em preto-e-branco no console da parede.
“Por que todo mundo na cidade está se suicidando?”, perguntou Ka.
“Não é todo mundo que está se suicidando, são só moças e mulheres”, disse Ipek. “Os homens se dedicam à religião, e as mulheres se matam.”
“Por quê?”
Ipek lançou-lhe um olhar como a dizer que ele não conseguiria nada pressionando-a para ter respostas rápidas; ele ficou com a sensação de ter se excedido. Por alguns instantes, os dois ficaram em silêncio.
“Tenho que conversar com Muhtar como parte do trabalho de cobertura das eleições municipais”, disse Ka.
Ipek levantou-se imediatamente, foi até a caixa registradora e fez um telefonema. “Ele vai estar na sede do partido até as cinco”, disse ela ao voltar. “Então, vai esperar você.”
Caiu outro silêncio entre eles, e Ka começou a entrar em pânico. Se as estradas não estivessem fechadas, ele teria pulado no primeiro ônibus que saísse de Kars. Sentiu uma súbita pontada de desespero por essa cidade decadente e por seu povo desamparado. Num gesto mecânico, voltou a cabeça para olhar pela janela. Por longo tempo, ele e Ipek ficaram contemplando a neve distraidamente, como se tivessem todo o tempo do universo e não se preocupassem com o mundo. Ka sentia-se impotente.
“Ê verdade que você veio aqui para cobrir as eleições municipais e os suicídios?”, perguntou Ipek finalmente.
“Não”, disse Ka. “Fiquei sabendo em Istambul que você e Muhtar tinham se separado. Vim aqui para me casar com você.”
Ipek riu como se Ka tivesse contado uma piada muito boa, mas logo seu rosto corou vivamente. Durante o longo silêncio que se seguiu ele olhou nos olhos de Ipek e percebeu que ela lia dentro dele. Quer dizer então que você nem se deu um tempo para me conhecer, seus olhos diziam a ele. Você não pôde nem dispor de alguns minutos para flertar comigo. Você está tão impaciente que não pôde esconder suas intenções. Não tente fingir que veio aqui porque sempre me amou e não conseguia me esquecer. Você veio aqui porque soube que estou divorciada, lembrou-se de como eu era bonita e achou que eu era mais acessível agora que vim parar em Kars.
Àquela altura Ka estava tão envergonhado pelo seu desejo de felicidade, e tão resolvido a se punir por sua insolência, que imaginou Ipek proferindo a mais cruel das verdades: o que nos liga é o fato de que ambos diminuímos nossas expectativas em relação à vida. Mas, quando ela falou, disse algo muito diferente do que ele imaginara.
“Eu sempre soube que você daria um bom poeta”, disse ela. “Eu queria cumprimentá-lo pelo seu trabalho.”
As paredes da confeitaria, como as de todas as casas de chá, restaurantes e saguões de hotel da cidade, eram decoradas com fotografias de montanhas — não as belas montanhas de Kars, mas as montanhas da Suíça. Empilhados nas vitrines do balcão, havia tabuleiros de chocolate e de roscas doces cujas superfícies e coberturas untuosas brilhavam à luz fraca. O velho garçom que acabara de lhes servir o chá agora estava sentado junto à caixa registradora, de frente para a mesa de Ka e Ipek, mas de costas para os outros fregueses e assistindo todo contente a um filme na televisão da parede, depois de aumentar o volume para conseguir ouvir. Ka, ansioso para evitar os olhos de Ipek, concentrou toda a sua atenção na televisão. Uma atriz turca, loira, de biquíni, corria na areia, perseguida por um homem de bigode farto. Naquele instante, o homenzinho que estava sentado na mesa escura no fundo da confeitaria pôs-se de pé e, apontando um revólver para o diretor do Instituto de Educação, murmurou algumas coisas que Ka não conseguiu ouvir. Quando o diretor respondeu, o revólver disparou — mas Ka só entendeu o que se passava depois. O revólver quase não fez barulho nenhum; quando viu o corpo do diretor sacudir-se violentamente e cair da cadeira, Ka percebeu que o homem levara um tiro no peito.
Vendo o horror estampado no rosto de Ka, Ipek se voltou para ver o que acontecera.
Ka olhou para o lugar onde o garçom se encontrava um minuto antes, mas ele não estava mais lá. O homenzinho, ainda no mesmo lugar, continuava apontando a arma para o diretor, que jazia imóvel no chão. O diretor ainda estava tentando dizer-lhe alguma coisa, mas com a televisão num volume tão alto era impossível entender o que ele dizia. O homenzinho enfiou mais três balas no corpo da vítima, dirigiu-se à porta atrás de si e desapareceu. Ka não vira seu rosto.
“Vamos embora”, disse Ipek. “A gente não deve ficar aqui.”
“Socorro!”, disse Ka numa voz aguda e fraca. Em seguida acrescentou: “Vamos chamar a polícia”. Mas ele não conseguia mover um músculo. Instantes depois ele estava correndo atrás de Ipek. Quando passaram a toda pelas portas duplas da confeitaria e desceram à rua pelas escadas, não viram ninguém.
Chegando à calçada cheia de neve, começaram a andar bem depressa. Ninguém nos viu sair, disse Ka consigo mesmo, e isso lhe trouxe um certo alívio, porque agora ele se sentia como se fosse o assassino. Isso era o que conseguira — como merecia — por ter pedido Ipek em casamento de forma tão abrupta. Só de lembrar, encolheu-se de vergonha. Não conseguiria olhar ninguém nos olhos.
Os temores de Ka não se tinham dissipado quando eles chegaram à esquina da avenida Kâzim Karabekir, embora os disparos lhes tivessem dado um segredo para compartilhar, e ele estivesse contente por ter essa intimidade silenciosa com ela. Mas à luz que brilhava nos engradados de laranjas e de maçãs em frente à galeria Halil Pasa e àquela da lâmpada nua refletida no espelho da barbearia ao lado, Ka ficou assustado de ver lágrimas nos olhos de Ipek.
“O diretor do Instituto de Educação estava barrando a entrada de moças de cabeça coberta nas salas de aula”, explicou Ipek. “Foi por isso que o pobre homem foi morto.”
“Vamos contar à polícia”, disse Ka, ainda que se lembrasse de que em outros tempos, quando ele era do movimento estudantil, isso teria sido impensável.
“Não é preciso; eles vão descobrir de qualquer forma. Provavelmente eles já estão sabendo. O diretório do Partido da Prosperidade fica no primeiro andar daquela galeria.” Ipek apontou para a entrada do mercado. “Conte a Muhtar o que você viu, para que ele não se surpreenda quando o MIT o prender. E tem mais uma coisa que preciso lhe dizer: Muhtar quer casar comigo novamente, portanto, cuidado com o que diz.”
A primeira e última conversa entre o assassino e sua vítima
Quando, diante de Ka e de Ipek, o homenzinho da Confeitaria Vida Nova atirou na cabeça e no peito do diretor do instituto de Educação, este levava consigo um gravador escondido. O aparelho — um Grundig importado — fora preso ao seu peito com fita adesiva pelos zelosos agentes da seção local do MIT. O diretor recebera inúmeras ameaças depois de proibir o ingresso de jovens de manto nas salas de aula. Quando os agentes de segurança civis que acompanhavam as atividades dos fundamentalistas confirmaram que essas ameaças eram sérias, a seção local entendeu que era tempo de dar alguma proteção à potencial vítima. Mas o diretor não quis saber de ter um agente seguindo-o a passos pesados feito os de um urso. Embora se considerasse como pertencendo ao campo político secular, acreditava no destino, como qualquer homem religioso. Ele preferia gravar as ameaças de morte, para que mais tarde os culpados fossem presos. Ele entrou no Confeitaria Vida Nova num impulso, para comer um daqueles croissants de nozes de que tanto gostava. Quando viu o desconhecido se aproximar, ligou o gravador, como já se tornara um hábito em tais circunstâncias. O aparelho foi atingido por duas alas o que não foi suficiente para salvar-lhe a vida —, mas as fitas ficaram intactas. Anos depois, consegui uma transcrição com a viúva do diretor, cujas lágrimas ainda não tinham secado, e com sua filha, que então se tornara uma modelo famosa.
— Olá, senhor. O senhor me reconhece?
— Não, acho que não.
— Foi o que imaginei que ia dizer, senhor. Porque não nos conhecemos. Tentei encontrar o senhor na noite passada e novamente hoje de manhã. Ontem a policia me expulsou da porta da escola. Esta manhã consegui entrar, mas a sua secretária não me deixou chegar ao senhor. Eu queria pegá-lo antes que o senhor entrasse na sala de aula. Foi então que o senhor me viu. Agora está se lembrando de mim, senhor?
— Não, não estou.
— O senhor quer dizer que não se lembra de mim ou que não se lembra de ter me visto?
— Por que queria se encontrar comigo?
— Para ser franco, eu queria falar com o senhor durante horas, e até mesmo dias, sobre tudo que há sob o sol, O senhor é um homem eminente, esclarecido e instruído. Infelizmente, eu não consegui continuar meus estudos. Mas há um assunto que conheço de cor e salteado, e era sobre ele que eu queria discutir com o senhor. Desculpe-me. Não estou tomando muito tempo do senhor?
— De modo algum.
— Desculpe-me, senhor, não se importa que eu me sente? Temos muito chão pela frente.
— Por favor, esteja à vontade.
(O ruído de alguém puxando uma cadeira)
— Vejo que o senhor está comendo um doce com nozes. Temos muitas nogueiras em Tokat. O senhor já foi a Tokat?
— Sinto dizer que não.
— Lamento tanto ouvir isso, senhor. Se algum dia o senhor for lá, deve ir à minha casa. Passei a vida inteira em Tokat, todos os meus trinta e seis anos. Tokat é muito bonita. A Turquia também é muito bonita. Mas é uma pena que conheçamos tão pouco o nosso pais, que o amor dos nossos não esteja em nosso coração. Em vez disso, nós admiramos aqueles que desrespeitam nosso pais e traem o seu povo. Espero que não se importe que eu lhe faça uma pergunta, senhor. O senhor não é ateu, é?
— Não, não sou.
— O senhor é muçulmano?
— Sim. Louvado seja Deus, eu sou.
— O senhor está sorrindo. Gostaria de lhe pedir que leve minha pergunta a sério e a responda da melhor forma. Porque eu viajei de Tokat até aqui na pior fase do inverno para ouvir a sua resposta.
— Como o senhor ouviu falar de mim em Tokat?
— Não há nada nos jornais de Istambul, meu senhor, sobre sua decisão de proibir o acesso às salas de aula das jovens que cobrem a cabeça, como prescreve sua religião e o sagrado Corão. Todos esses jornais se preocupam com escândalos envolvendo modelos. Mas na bela Tokat temos uma rádio muçulmana chamada Bandeira, que nos mantém informados sobre as injustiças perpetradas contra os fiéis em cada canto de nosso pais.
— Eu nunca cometeria uma injustiça contra um crente. Eu também temo a Deus.
— Levei dois dias para chegar aqui, senhor, dois dias em estradas fustigadas pela neve e pela tempestade. Quando eu estava sentado no ônibus só pensei no senhor, e pode acreditar, eu sabia o tempo todo que o senhor iria me dizer que tem temor a Deus. E esta é a pergunta que pensei em fazer ao senhor em seguida. Com o devido respeito, professor Nuri Yilmaz, se o senhor tem temor a Deus, se acredita que o sagrado Corão é a palavra de Deus, vamos ouvir sua opinião sobre o belo trigésimo primeiro verso do capitulo intitulado Luz Celestial.
— Sim, é verdade. Esse verso afirma de forma muito clara que as mulheres devem cobrir a cabeça e mesmo as faces .
— Parabéns, senhor! É uma bela resposta correta. E agora, com sua permissão, senhor, gostaria de perguntar outra coisa. Como o senhor pode conciliar o mandamento de Deus com sua decisão de impedir a entrada de moças cobertas nas salas de aula?
— Nós vivemos num Estado secular. Foi o Estado secular que proibiu a entrada dessas moças tanto nas salas de aula como nas escolas.
— Desculpe-me, senhor. Posso lhe fazer uma pergunta? Pode uma lei imposta pelo Estado anular a lei de Deus?
— Essa é uma pergunta muito boa. Mas num Estado secular essas coisas são separadas.
— Mais uma boa resposta correta, senhor. Posso beijar a sua mão? Por favor, senhor, não tenha medo. Dê-me sua mão. Dê-me sua mão e veja com quanto carinho eu a beijo. Oh, Deus seja louvado. Obrigado. Agora o senhor sabe o grande respeito que lhe tenho. Posso fazer mais uma pergunta, senhor?
— Por favor. Vá em frente.
— Minha pergunta é esta, senhor. A palavra secular significa ateu?
— Não.
— Nesse caso, como o senhor pode explicar o porquê de o Estado estar expulsando tantas moças das salas de aula em nome do secularismo, quando elas estão apenas obedecendo às leis da sua religião?
— Francamente, meu filho. Discutir isso não vai levar você a lugar nenhum. Essas coisas se discutem dia e noite na televisão de Istambul, e aonde isso nos leva? As moças continuam recusando-se a tirar os mantos da cabeça e o Estado continua proibindo-as de entrar nas salas de aula.
— Nesse caso, senhor, posso lhe fazer mais uma pergunta? Desculpe-me, mas quando penso nessas nossas jovens que trabalham duro — às quais se negou instrução, que são tão bem-educadas, tão trabalhadoras e que já curvaram a cabeça só Deus sabe a quantos decretos — , a pergunta que não posso deixar de fazer é: como se pode conciliar tudo isso com o que nossa Constituição diz sobre a liberdade de educação e de religião? Por favor, diga-me. Sua consciência não lhe pesa?
— Se essas jovens fossem tão obedientes como você diz que são, elas teriam tirado o manto. Qual o seu nome, meu filho? Onde você mora? Em que você trabalha?
— Eu trabalho na Casa de Chá Irmãos Felizes, que fica ao lado da famosa hamam A Mariposa de Tokat. Sou encarregado dos fogões e dos bules. Meu nome não interessa. Ouço a rádio Bandeira o dia inteiro. De vez em quando, fico chocado com alguma coisa que ouço, com uma injustiça feita a um crente. E porque vivo numa democracia e sou um homem livre que pode fazer o que bem entende, às vezes tomo um ônibus e viajo até o outro lado da Turquia para pegar o culpado, onde quer que esteja, e ajustar contas com ele. Então, por favor, senhor, responda à minha pergunta. O que é mais importante, um decreto de Ancara ou a lei de Deus?
— Esta discussão não leva a lugar nenhum, meu filho. Em que hotel você está hospedado?
— O quê, o senhor está pensando em me entregar à policia? Não tenha medo de mim, senhor. Não pertenço a nenhuma organização religiosa. Eu desprezo o terrorismo. Eu acredito no amor de Deus e na livre troca de idéias. É por isso que nunca termino uma troca de idéias agredindo ninguém, ainda que tenha o sangue quente. Só quero que o senhor responda a essa pergunta. Então, por favor, me desculpe, senhor, mas quando o senhor pensa na forma cruel como tratou aquelas pobres meninas na porta de seu instituto — quando o senhor lembra que essas meninas estavam apenas obedecendo à palavra de Deus tal como está expressa claramente nos capítulos Clãs Confederados e Luz Celestial do sagrado Corão — sua consciência não lhe pesa nem um pouco?
— Meu filho, o Corão diz também que os ladrões devem ter suas mãos cortadas, mas o Estado não faz isso. Por que você não se opõe a isso?
— É uma excelente resposta, senhor. Deixe-me beijar-lhe a mão. Mas como o senhor pode comparar a mão de um ladrão com a honra de nossas mulheres? Segundo as estatísticas divulgadas pelo professor muçulmano negro americano Marvin King, a incidência de estupros nos países islâmicos em que as mulheres se cobrem é muito baixa, praticamente inexistente, e nem se ouve falar de assédio. Isso porque uma mulher que se cobre está marcando uma posição. Pela sua maneira de vestir, ela diz: Não me moleste. Então, por favor, senhor, posso lhe fazer uma pergunta? Será que desejamos mesmo empurrar nossas mulheres cobertas para a margem da sociedade, negando-lhes o direito à educação? Se continuarmos a admirar as mulheres que descobrem a cabeça (e também quase todo o resto), não corremos o risco de degradá-las na esteira da revolução sexual? E se conseguirmos degradar nossas mulheres, não estamos correndo o risco também — perdoe-me o. termo — de nos tornarmos gigolôs?
— Terminei de comer meu doce, filho. Preciso ir embora.
— Continue sentado, senhor. Continue sentado, e aí não vou ter de usar isto. Está vendo o que é isto, senhor?
— Sim. É um revólver.
— Está certo, senhor. Espero que não se incomode. Eu vim de muito longe para encontrar o senhor. Não sou idiota. Ocorreu-me que o senhor iria se recusar a me ouvir. Foi por isso que tomei minhas precauções.
— Qual é o seu nome, filho?
— Vahit Süzme. Salim Fesmekân. Francamente, senhor, que diferença faz? Eu sou o defensor anônimo dos heróis anônimos que sofreram inúmeras injustiças quando buscavam manter suas crenças religiosas numa sociedade presa do materialismo secular. Não sou membro de nenhuma organização. Eu respeito os direitos humanos e sou contra o uso da violência. É por isso que estou guardando a arma no bolso. É por isso que só espero do senhor que responda à minha pergunta.
— Ótimo.
— Então vamos voltar ao começo, senhor. Vamos lembrar o que o senhor fez com aquelas moças cuja criação exigiu anos de carinhosa dedicação. Que eram as meninas-dos-olhos de seus pais. Que eram muito, mas muito inteligentes. Que estudavam com muito afinco. Que estavam entre as primeiras de suas classes. Quando veio a ordem de Ancara, o senhor tratou de negar a existência delas. Se uma delas escrevia o nome na lista de presença, o senhor o apagava — só porque ela cobria a cabeça com um manto. Se sete moças estavam sentadas com o professor, o senhor agia como se a que estava de cabeça coberta não existisse, e pedia seis xícaras de chá. O senhor sabe o que fez com essas jovens? O senhor as fez chorar. Mas a coisa não parou por aí. Logo veio outra ordem de Ancara, e depois disso o senhor as proibiu de entrar nas salas de aula. O senhor as relegou aos corredores, depois as expulsou dos corredores e as pôs no meio da rua. E então, quando um grupo dessas heroínas se juntou às portas da escola para se fazer ouvir, o senhor pegou o telefone e chamou a polícia.
— Não fomos nós que chamamos a polícia.
— Sei que o senhor está com medo da arma em meu bolso. Mas por favor, senhor, não minta. Sua consciência não doeu quando foi dormir, no dia em que mandou agarrar à força e prender aquelas jovens? Essa é a minha pergunta.
— Claro, mas a verdadeira questão é saber quanto sofrimento causamos às mulheres do povo quando transformamos os mantos em símbolos e usamos as mulheres como fantoches no jogo político.
— Como pode chamá-lo de jogo, senhor? Quando essa jovem que teve de escolher entre sua honra e sua educação — que pena! — caiu em depressão e se matou... tratava-se de um jogo?
— Você está muito agitado, meu rapaz. Mas nunca lhe ocorreu que pode haver potências estrangeiras por trás disso tudo? Você não vê como talvez tenham politizado a questão do manto para tornar a Turquia uma nação fraca e dividida?
— Se o senhor deixasse as jovens voltarem à escola, não haveria mais a questão do manto.
— Você acha mesmo que a decisão é minha? Essas ordens vêm de Ancara. Minha esposa usa o manto na cabeça.
— Pare de me bajular. Responda à pergunta que lhe fiz.
— Que pergunta?
— Sua consciência lhe pesa?
— Meu filho, eu também sou pai. Claro que sinto por essas jovens.
— Ouça. Sei muito bem me controlar. Mas quando perco a paciência, acabou. Quando eu estava na prisão, espanquei um homem só porque ele se esqueceu de cobrir a boca quando bocejou. Ah, sim, eu transformei todos eles em homens lá dentro. Eu curei os maus hábitos de todos os homens daquele pavilhão da prisão. Consegui até fazê-los orar. Por isso pare de se esquivar. Quero ouvir uma resposta a minha pergunta. O que acabei de dizer?
— O que você acabou de dizer, filho? Abaixe a arma.
— Não lhe perguntei se tinha uma filha, mas se o senhor lamenta.
— Desculpe-me, filho. O que você perguntou?
— Não precisa me bajular só porque está com medo do revólver. Basta lembrar-se do que lhe perguntei.
(Silêncio)
— O que você me perguntou?
— Eu lhe perguntei se sua consciência não lhe pesa, infiel!
— Claro que me pesa.
— Então por que persiste? Será porque não tem vergonha?
— Meu filho, sou um professor. Tenho idade para ser seu pai. Está escrito no Corão que você deve apontar armas para os mais velhos e insultá-los?
— Não ouse pronunciar o nome do Corão, está ouvindo? E pare de olhar por cima do meu ombro como se pedisse socorro. Se gritar por socorro, não vou hesitar. Eu atiro, entendeu?
— Sim, entendi.
— Então responda a esta pergunta: O que o pais ganha se as mulheres descobrem a cabeça? Dê-me uma única boa razão. Diga alguma coisa em que o senhor acredite de todo o coração. Diga, por exemplo, que com isso os europeus vão começar a tratá-las como seres humanos. Assim finalmente eu vou entender quais são os seus motivos e não vou atirar no senhor. Vou deixá-lo ir embora.
— Meu caro menino. Eu tenho uma filha. Ela não usa manto. Não interfiro em sua decisão, assim como não interfiro na decisão de minha mulher de usá-lo.
— Por que sua filha resolveu descobrir-se — ela quer virar estrela de cinema?
— Ela nunca disse nada que se aproxime disso. Está em Ancara estudando relações públicas. Mas me apoiou muito quando começaram a me atacar por causa dessa questão do manto. Sempre que fico perturbado com as coisas que o povo diz, sempre que sou caluniado ou ameaçado, sempre que tenho de enfrentar o ódio de meus inimigos — ou de pessoas como você, que têm todo o direito de estar com raiva —, ela me liga de Ancara e...
— E diz: Agüente firme, papai. Vou ser uma estrela de cinema.
— Não, filho, ela não diz isso. Diz: Querido pai, se eu tivesse de ir a uma classe cheia de jovens de cabeça coberta, não ousaria ir descoberta. Eu usaria um manto, mesmo que não quisesse.
— O que aconteceria então se ela não quisesse se cobrir, que mal adviria?
— Francamente, não saberia lhe dizer. Você me pediu para dar um motivo.
— Então me dê, seu bruto sem-vergonha. Você quer dizer que era isso que estava pensando quando deixou a policia espancar essas jovens piedosas que cobriram a cabeça em obediência a Deus? Está tentando me dizer que você as levou ao suicídio somente para contentar sua filha?
— Há muitas mulheres na Turquia que pensam como minha filha.
— Considerando-se que noventa por cento das mulheres deste pais usam mantos na cabeça, é difícil saber era nome de quem essas estrelas de cinema pensam que estão falando. Você deve ter orgulho de ver sua filha se expondo, seu tirano sem-vergonha, mas ponha isto na cabeça. Posso não ser um professor, mas sei muito mais sobre esse assunto que você.
— Meu bom homem, por favor, não aponte essa arma para mim. Você está muito agitado. Se essa arma dispara, você vai se arrepender.
— Por que haveria de me arrepender? Por que teria viajado dois dias sob essa neve miserável senão para eliminar um infiel? Como determina o sagrado Corão, é meu dever matar qualquer tirano que trate crentes com crueldade. Mas porque estou com pena de você, vou lhe dar uma última chance. Dê-me apenas uma razão pela qual sua consciência não lhe pesa quando você manda as mulheres se descobrirem, e juro que não vou atirar em você.
— Quando uma mulher tira o manto da cabeça, ela passa a ocupar um lugar mais confortável na sociedade e ganha mais respeito.
— Isso deve ser o que sua filha estrela de cinema pensa, mas a verdade é exatamente o contrário disso. Os mantos protegem as mulheres de assédio, estupro e degradação. É o manto que dá às mulheres respeito e um lugar mais satisfatório na sociedade. Ouvimos isso de muitas mulheres que decidiram cobrir-se já bem tarde em suas vidas. Mulheres como a ex-dançarina da dança do ventre Melahat Sandra. O manto salva as mulheres dos instintos animalescos dos homens da rua. Ele as poupa do tormento da disputa com as outras mulheres em matéria de beleza. Elas não têm de viver como objetos sexuais, elas não têm de usar maquiagem o dia inteiro. Como já observou o professor muçulmano negro americano Marvin King, se a famosa estrela de cinema Elizabeth Taylor tivesse passado os últimos vinte anos protegida pelo manto, ela não teria de sofrer tanto por estar gorda. Ela não teria acabado num hospital psiquiátrico. Ela teria sido um pouco mais feliz. Desculpe-me, senhor. Posso lhe fazer uma pergunta? Por que está rindo, senhor? O senhor pensa que estou querendo fazer gracinha? (Silêncio) Vá em frente e me responda, ateu sem-vergonha. Por que está rindo?
— Meu querido filho, por favor, acredite. Não estou rindo! E se eu ri, foi de nervoso.
— Não, não foi isso. Você estava rindo com muita convicção!
— Por favor, acredite em mim. Eu só sinto compaixão por todas as pessoas deste pais — como você, como as moças que se cobrem com mantos — que estão sofrendo por esse motivo.
— Puxar meu saco não vai lhe adiantar nada. Não estou sofrendo nem um pouco. Mas você vai sofrer agora por ter rido das jovens que se suicidaram. Agora que riu delas, não há a menor chance de que você demonstre remorso. Então, deixe-me dizer era que pé estão as coisas agora. Faz algum tempo que os Combatentes da Liberdade pela Justiça Islâmica condenaram você à morte. Eles o sentenciaram em Tokat, cinco dias atrás, e me mandaram aqui para executar a sentença. Se você não tivesse rido, eu teria abrandado e perdoado você. Pegue essa folha de papel. Vamos ouvi-lo ler sua sentença de morte. (Silêncio) Pare de chorar feito uma mulher. Leia isso com voz firme. E vamos logo, seu estúpido sem-vergonha. Se você não se apressar, vou atirar.
— “Eu, professor Nuri Yilmaz, sou ateu.” Meu querido filho, eu não sou ateu!
— Continue a ler.
— Meu filho, você não vai atirar em mim enquanto leio isto, vai?
— Se você não continuar lendo, vou atirar em você.
— “Confesso ser um títere num plano secreto para despojar os muçulmanos da República Turca secular de sua religião e de sua honra, para transformá-los em escravos do Ocidente. Quanto às jovens que se recusaram a se descobrir, porque eram piedosas e atentas ao que está escrito no Corão, eu lhes infligi tanto sofrimento que uma jovem não conseguiu suportar e se suicidou...” Meu caro filho, com a sua permissão gostaria de fazer uma objeção quanto a isso. Agradeceria muito se você pudesse transmitir isso ao comitê que o enviou. Essa moça não se enforcou porque foi impedida de entrar na sala de aula. Também não foi por causa da pressão do pai. O MIT já nos informou que ela estava sofrendo uma desilusão amorosa.
— Não foi isso que ela disse no bilhete que deixou.
— Por favor, desculpe-me, meu filho, mas acho que você deve saber — por favor, abaixe essa arma — que, mesmo antes de se casar, essa jovem sem instrução foi ingênua o bastante para entregar-se a um policial vinte e cinco anos mais velho que ela. E — o que é tremendamente lamentável — foi depois que ele lhe disse que era casado e não tinha intenção de se casar com ela...
— Cale a boca, desgraçado. Isso é o que a prostituta da sua filha faria.
— Não faça isso, meu filho, não faça isso. Se você atirar em mim, só vai arruinar o seu futuro.
— Diga que está arrependido.
— Estou arrependido, filho. Não atire.
— Abra a boca. Quero enfiar o revólver dentro. Agora ponha o dedo em cima do meu e puxe o gatilho. Você vai continuar sendo um infiel, mas pelo menos terá morrido com honra. (Silêncio)
— Meu filho, veja a que ponto cheguei. Na minha idade, estou chorando. Estou pedindo a você. Tenha piedade de mim. Tenha pena de você mesmo. Você ainda é muito jovem. E vai virar um assassino.
— Então puxe o gatilho você mesmo. Veja como o suicídio é doloroso.
— Meu filho, eu sou muçulmano. Sou contra o suicídio.
— Abra a boca. (Silêncio) Pare de chorar assim. Nunca lhe passou pela cabeça que um dia você teria de pagar pelo que fez? Pare de chorar ou atiro.
(A voz do velho garçom ao longe)
— Quer que traga chá a esta mesa, senhor?
— Não, obrigado. Já vou sair.
— Não olhe para o garçom. Continue lendo a sentença de morte.
— Meu filho, por favor, me perdoe.
— Eu disse pra você ler.
— “Estou envergonhado de todas as coisas que fiz. Sei que mereço morrer e na esperança de que Deus Onipotente vai me perdoar...”
— Continue lendo.
— Meu querido filho. Deixe este velho chorar por alguns instantes. Deixe-me pensar em minha mulher e em minha filha pela última vez.
— Pense nas moças cuja vida você destruiu. Uma teve um colapso nervoso, quatro foram expulsas a pontapés da escola no terceiro ano. Uma se suicidou. As que ficaram trêmulas na porta de sua escola tiveram febre e adoeceram. A vida delas foi arruinada.
— Sinto muitíssimo, meu caro, caro filho. Mas de que adiantará me matar e se tornar um assassino? Pense nisso.
— Certo. Vou pensar. (Silêncio) Pensei um pouco sobre isso, senhor. E ouça a que conclusão cheguei.
— Qual?
— Vaguei pelas ruas miseráveis de Kars durante dois dias, sem chegar a lugar nenhum. Então conclui que era o destino, e comprei minha passagem de volta para Tokat. Eu estava tomando minha última xícara de chá quando...
— Meu filho, se você acha que pode me matar e fugir no último ônibus que parte de Kars, vou lhe avisar. As estradas estão fechadas por causa da neve. O ônibus das seis horas foi cancelado. Não vá se arrepender depois.
— Justo quando eu ia retornar, Deus o fez entrar na Confeitaria Vida Nova. E se Deus não vai perdoar você, por que eu perdoaria? Diga suas últimas palavras. Diga “Deus é grande”.
— Sente-se, filho. Estou avisando... nosso Estado vai pegar vocês todos... e enforcá-los.
— Diga “Deus é grande”.
— Acalme-se, meu filho. Pare. Sente-se. Pense um pouco mais sobre isso. Não puxe o gatilho. Pare. (Som de um tiro. Som de cadeira sendo derrubada) Não faça isso, meu filho! (Mais dois tiros. Silêncio. Um gemido. O som de uma televisão. Mais um tiro. Silêncio)
Amor, religião e poesia: a triste história de Muhtar
Depois que Ipek o deixou na entrada da galeria Halil Pasa e voltou para o hotel, Ka esperou antes de subir as escadas para o diretório local do Partido da Prosperidade, que ficava no primeiro andar. Passou algum tempo em meio aos aprendizes, desempregados e aos pobres desocupados que vagavam pelos corredores do térreo. Mentalmente, continuava a ver o diretor do Instituto de Educação caído no chão agonizante; atormentado pelo remorso e pelo sentimento de culpa, disse a si mesmo que deveria estar ligando para algumas das pessoas a quem fora apresentado esta manhã: o subchefe de polícia, talvez, ou alguém em Istambul, ou para a redação do Republicano, ou para algum outro conhecido seu. Mas ainda que o prédio estivesse cheio de casas de chá e barbearias, ele não conseguiu achar um só lugar com telefone.
Continuando a procurar, ele entrou num estabelecimento em cuja porta se lia ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DOS ANIMAIS. Lá havia um telefone, mas estava sendo usado. E àquela altura ele já não sabia ao certo se queria mesmo fazer a ligação. Passando pela porta entreaberta do escritório, chegou a um salão cujas paredes eram decoradas com pinturas de galos; no meio do salão havia uma pequena rinha. De repente, Ka entendeu que estava apaixonado por Ipek. E percebendo que aquele amor iria determinar o curso do resto da sua vida, sentiu-se dominar pelo medo.
Entre os ricos amigos dos animais que gostavam de briga de galos, havia um homem que haveria de se lembrar muito bem de quando Ka entrou no salão naquele dia, sentou-se num dos bancos vazios da arquibancada e pareceu perder-se em seus pensamentos. Ele tomou chá e leu as regras do esporte, afixadas em letras grandes na parede:
É proibido tocar em qualquer galo sem a permissão do dono.
O galo que cair 3 vezes seguidas, sem atacar o rival, perde a luta.
Os donos têm 3 minutos para tratar um esporão ferido e 1 minuto para consertar uma unha quebrada.
Caso um galo caia no chão e seu rival pise em seu pescoço, o galo caído será levantado, e a luta continuará.
Caso falte luz, tem-se um prazo de quinze minutos de espera. Se nesse período a luz não voltar, a briga será cancelada.
Quando saiu da Associação dos Amigos dos Animais, às duas e vinte, Ka estava tentando imaginar como poderia convencer Ipek a fugir de Kars com ele. Agora as luzes estavam apagadas na sede do Partido do Povo, do velho advogado Muzaffer bei, que, Ka agora reparou, ficava apenas três portas adiante do Partido da Prosperidade de Muhtar — separados pela Casa de Chá dos Amigos e pela Alfaiataria Verde. Tinham acontecido tantas coisas com Ka desde sua visita ao advogado naquela manhã que, no momento mesmo em que entrava na sede do Partido da Prosperidade, ele mal conseguia acreditar que estava de volta ao mesmo lugar.
Fazia doze anos que Ka não via Muhtar. Depois de abraçá-lo e beijá-lo em ambas as faces, notou que agora o outro estava barrigudo, os cabelos ralos e grisalhos, mas isso era mais ou menos o que ele esperava. Mesmo em seus tempos de universidade, Muhtar não tinha nada de especial. Agora, como naquela época, pendia do canto de sua boca um daqueles cigarros que ele fumava sem parar.
“Mataram o diretor do Instituto de Educação”, disse Ka.
“Ele não morreu; acabaram de falar no rádio”, disse Muhtar. “Como você sabe disso?”
“Ele estava na confeitaria de onde Ipek ligou para você”, disse Ka. “Na Confeitaria Vida Nova.” Ele contou a Muhtar o que tinham visto.
“Vocês chamaram a polícia?”, perguntou Muhtar. “O que vocês fizeram depois?”
Ka lhe disse que Ipek voltara para o hotel, e ele fora procurá-lo imediatamente.
“Só faltam cinco dias para a eleição, e todo mundo sabe que vamos ganhar, por isso o Estado está urdindo uma carapuça para enfiar em nossa cabeça. Está pronto para dizer qualquer coisa para nos derrubar”, disse Muhtar. “Em toda a Turquia, nosso apoio às jovens que usam o manto é a expressão máxima da nossa visão política. Agora alguém tentou assassinar o desgraçado que impediu a entrada dessas moças no Instituto de Educação, e um homem que estava na cena do crime vem direto à sede de nosso partido, sem nem ao menos parar para chamar a polícia.” Muhtar fez uma pausa para se recompor e acrescentou, com alguma delicadeza: “Agradeceria se você ligasse para a polícia agora mesmo. Por favor, conte-lhes tudo”. Ele passou o fone a Ka, com o gesto orgulhoso de alguém que oferece uma bebida a um convidado. Quando Ka o pegou, Muhtar procurou o número do telefone e discou.
“Conheço o subchefe de polícia. Seu nome é Kasim bei”, disse Ka.
“De onde você o conhece?”, perguntou Muhtar num tom desconfiado que irritou Ka.
“Ele foi a primeira pessoa que Serdar bei, o dono do jornal, me levou para visitar esta manhã”, disse Ka, mas antes que pudesse continuar, a moça da mesa telefônica completara a ligação para o subchefe de polícia. Ka contou-lhe exatamente o que vira na Confeitaria Vida Nova. Muhtar inclinou-se para ele e, com um gesto desajeitado, que ao mesmo tempo lembrava um flerte, colou o ouvido ao de Ka e tentou ouvir. Para que o outro pudesse ouvir melhor, Ka levantou o fone e colocou-o mais perto do ouvido dele. Agora estavam tão próximos que cada um sentia a respiração do outro no rosto. Embora Ka não tivesse a mínima idéia de por que Muhtar queria ouvir sua conversa com o subchefe de polícia, o instinto lhe dizia para continuar, Ele explicou que não vira o rosto do agressor, mas descreveu-o como sendo de baixa estatura, e teve o cuidado de repetir essas informações.
“O senhor poderia vir para cá imediatamente para que possamos ouvir seu depoimento?”, disse o chefe de polícia num tom amistoso.
“Estou na sede do Partido da Prosperidade”, disse Ka. “Logo estarei aí.”
Houve um silêncio do outro lado da linha.
“Aguarde um instante”, disse o chefe da polícia.
Ka e Muhtar ouviram-no cobrir o fone e cochichar para os colegas.
“Espero que não se incomode, mas vamos mandar uma radiopatrulha para buscá-lo”, disse o chefe da polícia. “Essa neve não pára. Em poucos minutos uma radiopatrulha irá pegá-lo aí na sede do partido.”
“Foi bom dizer a eles que está aqui”, disse Muhtar quando Ka desligou. “De qualquer modo, já sabiam. Eles têm olheiros por toda parte. E não quero que tenham uma impressão errada das coisas potencialmente suspeitas que acabei de lhe dizer.”
Ka foi invadido por uma onda de raiva que o remeteu a seus primeiros passos políticos, na escola, em sua época burguesa em Nisantas. O jogo consistia em fazer as pessoas denunciarem umas às outras, principalmente seus inimigos políticos, como informantes da polícia. Foi o medo dos carros da polícia e o medo de ser pego numa situação em que fosse obrigado a delatar — informando à polícia que casas deveriam sofrer diligência — que afastou Ka da política de uma vez por todas. Lá estava Muhtar agora disputando as eleições pelo partido fundamentalista islâmico, algo que ele teria achado indigno dez anos antes, e lá estava Ka ainda se desculpando por aquilo e por tantas coisas mais.
O telefone tocou. Muhtar reassumiu a pose respeitável e se pôs a regatear com alguém da Televisão Fronteiriça de Kars o preço de um comercial da loja de sua família, a ser veiculado na transmissão ao vivo daquela noite.
Depois que ele desligou o telefone, os dois homens ficaram em silêncio, como duas crianças constrangidas, sem saber o que dizer um ao outro — e enquanto estavam nisso, Ka imaginou-se conversando com ele sobre todas as coisas que lhes tinham acontecido durante os doze anos transcorridos desde seu último encontro. Primeiro imaginou cada um contando o que lhe passava pela cabeça: Agora que ambos fomos forçados ao exílio, sem ter conseguido realizar nada nem ter tido êxito em coisa alguma, nem mesmo em encontrar a felicidade, podemos pelo menos concordar que a vida foi durai E tampouco basta ser poeta... e é por isso que a política lança tal sombra sobre nossas vidas. Mas mesmo se tivesse dito isso, nenhum dos dois teria a coragem de acrescentar o que não podiam admitir nem para si mesmos: é por termos falhado em encontrar a felicidade na poesia que agora sentimos nostalgia da sombra da política.
Mais do que nunca Ka desprezava Muhtar. Mas então lembrou a si mesmo que Muhtar devia estar sentindo uma ponta de felicidade por estar na iminência de uma vitória eleitoral, assim como ele, Ka, também tivera o seu quinhão, conquistando uma certa fama como poeta — o que era melhor do que fama nenhuma. Mas como nenhum dos dois jamais iria admitir a felicidade advinda dessas coisas, não podiam abordar o grande assunto, a amarga verdade que se erguia entre eles: o fato de terem se habituado ao fracasso e à cruel injustiça da vida. Ka temia que o desejo de ambos por Ipek fosse uma forma de escapar desse estado de espírito derrotista.
“Ouvi dizer que você vai ler seu último poema no espetáculo desta noite”, disse Muhtar, com um sorriso que mal se percebia.
Por alguns instantes, Ka fitou raivosamente os belos olhos castanhos daquele homem que fora marido de Ipek. Ele não conseguiu notar nem mesmo a sombra de um sorriso neles.
“Você encontrou Fahir quando estava em Istambul?”, perguntou Muhtar, desta vez com algo mais parecido com um sorriso.
E então Ka conseguiu sorrir com ele, e não sem naturalidade: o homem mencionado por Muhtar era alguém por quem ele tinha um certo respeito. Fahir era de sua época, e havia vinte anos vinha defendendo a poesia modernista ocidental. Estudara no liceu francês Saint Joseph; uma vez por ano ele metia a mão na herança de sua louca mas rica avó — que se dizia ter nascido num palácio — e partia para Paris, onde enchia a mala de coletâneas de poemas dos livreiros de Saint-Germain. De volta a Istambul, ele publicava traduções turcas desses livros, suas próprias poesias e as de outros poetas turcos modernos em revistas que ele próprio editava e em coleções de poesia de editoras que ele vivia fundando e levando à falência. Mas embora todos o respeitassem por esse esforço, a poesia do próprio Fahir — que dava a impressão de ser escrita sob a influência dos poemas que ele traduzira para um “turco puro” afetado — era em geral considerada, no melhor dos casos, sem inspiração e, no pior, incompreensível.
Ka disse a Muhtar que não conseguira se encontrar com Fahir em Istambul.
“Houve um tempo em que eu desejava que Fahir gostasse da minha poesia”, disse Muhtar. “Infelizmente, ele desprezava poetas como eu, interessados não por poesia pura, mas pelo folclore e pelas belezas de nosso país. Passaram-se os anos, os militares tomaram o poder e fomos todos para a prisão; como todo mundo, quando fui solto andei à deriva feito um idiota. As pessoas que um dia tentei imitar tinham mudado, aquelas cuja aprovação eu desejava tinham sumido, e nenhum dos meus sonhos se realizou, nem na poesia nem na vida. Em vez de continuar minha agitação frenética e sem dinheiro em Istambul, preferi voltar para Kars e assumir a loja de meu pai, que outrora me causava tanta vergonha, mas mesmo com todas essas mudanças eu não me sentia feliz. Não conseguia levar as pessoas daqui a sério, e quando as via eu tinha a mesma atitude de Fahir diante de meus poemas: torcia o nariz. A cidade de Kars e seus habitantes... era como se não fossem reais. Todos queriam morrer ou ir embora. Mas eu já não tinha para onde ir. Era como se eu tivesse sido apagado da história, banido da civilização. O mundo civilizado parecia bem longe, e eu não conseguia imitá-lo. E Deus nem ao menos me deu um filho que pudesse realizar tudo o que não realizei, que me libertasse de minha aflição tornando-me o indivíduo ocidentalizado, moderno e seguro de si que sempre sonhei ser.”
Sempre impressionava Ka a forma como Muhtar vez por outra conseguia rir de si mesmo; seu tênue sorriso parecia irradiar-se de dentro.
“A noite eu costumava beber e, para evitar discutir com minha bela Ipek, chegava tarde em casa. Certa vez, já bem tarde, numa dessas noites de Kars em que tudo, mesmo os pássaros do céu, parece ter congelado, eu fui o último freguês a sair do Café Campos Verdejantes. Eu estava andando em direção à avenida do Exército, onde Ipek e eu morávamos, a menos de dez minutos de caminhada, mas muito longe pelos padrões de Kars. O raki me subira à cabeça, e eu não tinha andado mais de dois quarteirões quando me perdi. Não havia vivalma nas ruas. Kars parecia uma cidade abandonada, como sempre acontece nessas noites frias; nem quando bati numa porta tive resposta, fosse porque se tratava de uma dessas casas armênias desabitadas havia oitenta anos, fosse porque seus moradores estavam debaixo de muitos cobertores e, como animais hibernando, não desejavam deixar o calor de suas tocas.
“Agradava-me, de certo modo, ver toda a cidade parecendo abandonada e deserta. Logo uma doce sonolência começou a se espalhar pelo meu corpo, por causa da bebida e do frio. Resolvi deixar esta vida, então avancei mais três ou cinco passos e me deitei na calçada gelada sob uma árvore, para esperar que o sono e a morte se apossassem de mim. Num estupor ébrio, pode-se suportar esse tipo de frio por quatro ou cinco minutos antes de morrer congelado. Enquanto a branda sonolência se espalhava por minhas veias, vi diante de mim o filho que nunca tive. Que alegria foi ver aquele filho, um rapaz, já crescido, de gravata, seus modos diferentes de nossos burocratas engravatados — não, esse meu filho era um verdadeiro europeu. Bem na hora em que estava prestes a me dizer alguma coisa, ele parou e beijou a mão de um ancião. Esse ancião irradiava luz em todas as direções. No mesmo instante, um raio de luz irrompeu no lugar em que eu jazia, entrou-me nos olhos, atravessou o meu corpo e me acordou.
“Sentindo vergonha e esperança em igual medida, pus-me de pé. Olhei e vi na minha frente uma luz que saía de uma porta, enquanto as pessoas saíam e entravam. A voz dentro de mim mandou que eu entrasse junto com elas. Os recém-chegados me aceitaram em seu grupo e me levaram para dentro da casinha iluminada e aquecida. Em nada se pareciam com a gente desesperada e oprimida que povoava a cidade de Kars; eram pessoas felizes e, ainda mais surpreendente, eram todas de Kars; eu até conhecia algumas delas. Percebi então que se tratava da residência temporária secreta de sua excelência Saadettin efêndi, o sheik curdo sobre o qual eu ouvira tantos boatos. Haviam me dito que ele tinha muitos discípulos entre os funcionários públicos e também entre os ricos, que seu número aumentava a cada dia e que, a convite destes, descera de sua aldeia nas montanhas para realizar seus rituais para os pobres, desempregados e desamparados da cidade; sabendo, porém, que a polícia nunca haveria de permitir tal manifestação anti-republicana, eu não dera muita atenção a esses boatos.
“Agora lá estava eu, subindo a escadaria do sheik, degrau por degrau, as lágrimas escorrendo-me dos olhos. Estava acontecendo uma coisa que por muito tempo temi secretamente e que em meus anos de ateísmo teria denunciado como fraqueza e atraso: eu estava voltando para o islã. Essas caricaturas que a gente vê de sheiks em suas vestes longas, barbas arredondadas... a verdade é que eu as achava assustadoras; por isso, mesmo subindo as escadas de livre e espontânea vontade, comecei a chorar. O sheik foi gentil. Ele me perguntou por que estava chorando. Naturalmente que eu não ia dizer estou chorando porque caí num antro de sheiks reacionários e seus discípulos. De qualquer modo, estava também profundamente envergonhado por causa dos vapores de raki que saíam de minha boca como fumaça de uma chaminé. Eu disse que tinha perdido minha chave. Isso deve ter me ocorrido porque de fato eu tinha deixado minha chave cair no lugar onde me deitara para morrer. Minha declaração fez com que os sicofantas dos seus seguidores começassem uma discussão sobre os possíveis sentidos metafóricos de chave, mas o sheik logo mandou que todos fossem procurar a chave de verdade. Quando ficamos sozinhos, ele sorriu amavelmente. Percebi então que era o velho bondoso do meu sonho e relaxei.
“Eu sentia tal reverência por aquele homem venerável, com aquela expressão de santidade, que beijei sua mão. Então ele fez uma coisa que me espantou muito: ele beijou minha mão também. Fui tomado por uma sensação de paz que havia muitos anos não sentia. Entendi imediatamente que podia conversar com ele sobre qualquer coisa, contar-lhe tudo da minha vida, e ele me traria de volta para o caminho em que sempre havia acreditado, no âmago do meu ser, mesmo quando ateu: o caminho para o Deus Onipotente. Eu não cabia em mim de contente à mera expectativa dessa salvação. Nesse meio-tempo, eles acharam minha chave.
“Fui para casa e dormi, e de manhã lembrei-me do que acontecera e senti vergonha. Minhas lembranças eram vagas, até porque eu preferia não me lembrar de nada daquilo. Prometi a mim mesmo nunca mais voltar à residência do sheik. Mas eu me preocupava com o que podia acontecer se cruzasse com um dos discípulos que me tinham visto lá. Então, certa noite, novamente a caminho de casa, vindo do Café Campos Verdejantes, meus pés me levaram outra vez para lá. Apesar de minhas crises noturnas de vergonha, isso tornava a se repetir, noite após noite. O sheik fazia-me sentar ao seu lado; enquanto ouvia minhas mágoas, enchia-me o coração com o amor de Deus. Eu ficava chorando, e isso me trazia a paz. Durante o dia, eu tratava de esconder os segredos da residência do sheik levando comigo o Republicano, o jornal mais secular da Turquia, e fazendo discursos contra os pregadores religiosos, inimigos da República, que estavam tomando o país de assalto; eu perguntava por que a Associação do Pensamento de Atatürk não estava mais se reunindo.
“Minha vida dupla continuou até a noite em que Ipek me perguntou se eu tinha outra mulher. Debulhei-me em lágrimas e contei-lhe tudo. Ela também chorou. ‘Agora que você abraçou a religião, vai envolver minha cabeça com um manto?’ Prometi-lhe que nunca iria lhe pedir isso. E temendo que ela pensasse ser minha mudança devida a razões econômicas, apressei-me em lhe dizer que tudo estava indo bem na loja e que apesar dos constantes apagões os novos fogões Arçelik estavam vendendo bem. Eu disse tudo isso para tranqüilizá-la. Para dizer a verdade, eu estava feliz por agora poder orar em casa e comprei um manual de orações na livraria. Minha nova vida estendia-se diante de mim.
“Depois que me recompus, certa noite me veio uma inspiração repentina e escrevi um importante poema. Nesse poema contei toda a crise: minha vergonha, o amor de Deus que crescia dentro de mim, a paz, a primeira vez que subi as escadas do sheik, e até os sentidos reais e metafóricos de minha chave. Como poema, era impecável. Juro que era tão bom como aqueles poemas elegantes ocidentais que Fahir traduzia para o turco. Enviei a ele uma cópia pelo correio imediatamente. Esperei seis meses, mas o poema nunca foi publicado na A tinta de Aquiles, sua revista à época. Mas então eu escrevera mais três poemas. A cada dois meses, eu os enviava a ele. Esperei com impaciência durante um ano, mas ele não publicou nem ao menos um.
“Minha única infelicidade naquela época nada tinha a ver com o fato de continuar sem um filho, nem com a resistência de Ipek aos ensinamentos do islã, e tampouco com o escárnio de meus velhos amigos esquerdistas seculares que souberam de minha guinada para a religião. Tanta gente estava se voltando para a religião com o mesmo entusiasmo, que eles mal tinham tempo de prestar atenção em mim. Não, a coisa mais inquietante era o fato de que os poemas que enviara para Istambul não estavam sendo publicados. No início de cada mês, com a edição de cada novo número de A tinta de Aquiles, as coisas se aquietavam. Toda vez eu me consolava dizendo para mim mesmo que finalmente, naquele mês, eles iriam publicar um poema. As verdades que havia naqueles poemas mereciam ombrear com as verdades da poesia ocidental. Em minha opinião, a única pessoa na Turquia capaz de fazer que isso acontecesse era Fahir.
“A injustiça dessa contínua indiferença começou a me irritar e a envenenar a alegria que encontrei no islã. Chegou ao ponto em que eu ficava pensando em Fahir mesmo quando estava orando na mesquita; mais uma vez, eu estava infeliz. Certa noite resolvi revelar minha dor ao sheik, mas ele nada sabia de poesia modernista, de René Char, a frase interrompida, Mallarmé, Joubert, o silêncio de uma linha era branco.
“Isso abalou minha confiança no sheik. Afinal de contas, já fazia algum tempo que ele não me oferecia nada de novo, apenas ‘Mantenha seu coração limpo, e o amor de Deus livrará você da opressão’ e oito ou dez frases desse tipo. Não quero tirar os seus méritos, pois ele não é um simplório; só que seus conhecimentos são muito limitados. Foi nesse ponto que algum demônio interno — meio utilitarista, meio racionalista, remanescente de meus tempos de ateu — começou a me espicaçar. Pessoas como eu só encontram a paz quando estão lutando por uma causa num partido político com gente que pensa da mesma forma. Foi por isso que ingressei no Partido da Prosperidade; sabia que isso iria me propiciar uma vida espiritual mais profunda e mais significativa que a que eu encontrara com os homens na casa do sheik. Afinal de contas, trata-se de um partido religioso, um partido que valoriza o lado espiritual. Minha experiência como membro do partido na época em que eu era marxista me preparou bem.”
“Em que sentido?”, perguntou Ka.
As luzes se apagaram. Houve um longo silêncio,
“Acabou a luz”, disse Muhtar finalmente, em tom de mistério.
Ka não respondeu; deixou-se ficar na escuridão, completamente imóvel.
Na sede do partido, na delegacia de polícia e novamente nas ruas
Causava certa sensação de fantasmagoria ficar ali em total silêncio, mas Ka preferia aquilo a estar numa sala bem iluminada e conversando com Muhtar como velhos amigos. Agora tudo o que tinham em comum era Ipek, e embora uma parte de Ka ansiasse para falar sobre ela, a outra tinha a mesma ânsia de esconder seus sentimentos. Ele temia também que Muhtar contasse mais histórias, revelando ser ainda mais estúpido, caso em que Ka se veria obrigado a se perguntar por que Ipek ficara casada com aquele homem durante tantos anos. Ele não tinha nenhuma vontade de descobri-la indigna de sua veneração.
Assim sendo, ele relaxou quando Muhtar, perdendo a paciência com sua própria história, mudou de assunto e passou a falar de seus amigos da esquerda e exilados políticos que tinham fugido para a Alemanha. Ka sorriu e contou-lhe o que ouvira dizer de Tufan, o amigo de cabelo encaracolado de Malátia, que em certa época escrevera sobre temas relacionados ao Terceiro Mundo para vários jornais: ao que parecia, ele enlouquecera. A última vez que Ka o viu fora na estação central de Stuttgart; tinha na mão um cabo comprido, com um pano molhado amarrado na ponta, e se movia depressa para a frente e para trás, esfregando o chão, assobiando enquanto trabalhava. Então Muhtar perguntou sobre Mahmut, o homem que, não tendo papas na língua, costumava criar tantos problemas. Ka contou que Mahmut se juntara ao grupo fundamentalista de Hayrullah efêndi, e que agora se entregava às disputas internas com a mesma fúria argumentativa que mostrara quando esquerdista, com a ressalva de que agora a disputa era para decidir quem tinha poder sobre que mesquita. Quanto ao amável Süleyman, Ka sorriu ao contar que ele estava vivendo dos donativos de uma instituição de caridade da igreja que acolhera tantos exilados políticos do Terceiro Mundo, mas que, tendo se cansado da vida na cidadezinha de Traunstein, voltara para a Turquia, mesmo sabendo muito bem que o poriam na cadeia tão logo chegasse.
Ka falou sobre Hikmet, que morrera em circunstâncias misteriosas quando trabalhava como motorista em Berlim; de Fadil, que se casara com uma velha viúva de um oficial nazista e agora administrava um pequeno hotel junto com ela; e de Tarik, o teórico, que fizera fortuna trabalhando com a máfia turca em Hamburgo. Quanto a Sadik, que, junto com Muhtar, Ka, Taner e Ipek, em certa época dobrava os jornais recém-saídos da impressora, agora chefiava uma gangue que introduzia imigrantes ilegais na Alemanha, fazendo-os entrar pelos Alpes. Muharrem, famoso por seu mau humor, agora vivia uma alegre vida underground com sua família no metrô de Berlim, numa daquelas estações-fantasma abandonadas na época da Guerra Fria e do Muro. Quando o trem passava em velocidade entre as estações Kreuzberg e Alexanderplatz, os socialistas turcos aposentados a bordo ficavam em posição de sentido, repetindo a mesma saudação dos velhos bandidos de Istambul sempre que passavam por Arnavutköy fitando as águas turbulentas onde um legendário gângster fora empurrado da ribanceira e perecera. Ainda que não se conhecessem, os exilados políticos em posição de sentido no vagão lançavam olhares furtivos à volta, para ver se algum dos outros passageiros também estava prestando homenagem ao legendário herói de sua causa secreta. Foi num daqueles vagões do metrô que Ka se encontrou com Ruhi, que outrora se mostrara tão crítico com seus amigos esquerdistas por sua recusa em aderir à psicologia; Ka ficou sabendo que Ruhi agora trabalhava como cobaia para medir o impacto de uma campanha publicitária para um novo tipo de pizza de pastrami de cordeiro destinada aos trabalhadores turcos de menor poder aquisitivo.
De todos os exilados políticos que Ka encontrou na Alemanha, o mais feliz era Ferhat, que entrara no PKK e agora estava atacando as várias agências da Companhia Aérea Turca com grande fervor revolucionário; ele também fora visto na CNN, jogando coquetéis Molotov em consulados turcos; ao que parecia, ele agora estava estudando curdo e sonhando em futuramente escrever poemas nessa língua. Quanto aos outros dos quais Muhtar procurou se informar, num estranho tom de preocupação, Ka havia muito os esquecera; Ka só podia imaginar que eles tivessem seguido o caminho de tantos outros, que entraram em grupos menores, trabalhavam para os serviços secretos ou para algum segmento do mercado negro, ou então sumiram ou entraram na clandestinidade. Alguns, sem dúvida, terminaram indo parar no fundo do canal, tendo sido mortos de algum modo violento.
Seu velho amigo agora tinha acendido um fósforo, e Ka pôde ver a mobília fantasmagórica da sede do partido, e assim que enxergou a mesinha de centro e o aquecedor a gás, levantou-se e foi até janela, onde fixou a atenção na neve que caía.
Os flocos que passavam por ele eram imensos e rápidos. Ka descobria uma serena elegância em sua abundância lenta e branca, que ficava ainda mais luminosa quando uma luz azulada de uma parte desconhecida da cidade brilhava através deles. Sua cabeça voltou às noites nevoentas de sua infância, quando as tempestades causavam apagões, e por toda a casa de Ka se ouviam sussurros assustados — Deus proteja os pobres! — e seu coração de criança batia mais depressa e ele se sentia feliz por ter uma família. Olhou com tristeza para um cavalo que, puxando uma carroça, pelejava contra a neve: na escuridão, só conseguia enxergar a cabeça da criatura sobrecarregada, balançando de um lado para outro.
“Muhtar, você ainda vai visitar seu sheik?”
“Você se refere à sua excelência Saadettin efêndi?”, perguntou Muhtar. Sim, de vez em quando. Por que você pergunta?”
“O que esse homem tem a lhe oferecer?”
“Um pouco de compreensão e, ainda que isso não dure muito, um pouco de solidariedade. Ele é bem informado.”
Em seu tom de voz Ka percebeu não serenidade, mas desilusão. “Eu vivo uma vida muito solitária na Alemanha”, disse Ka, insistindo obstinadamente na conversa. “Quando olho os telhados de Frankfurt no meio da noite, sinto que o mundo e minha vida não são destituídos de sentido. Ouço sons dentro de mim.”
“Que tipo de sons?”
“Devem ter a ver com o medo de ficar velho e de morrer”, disse Ka meio sem jeito. “Se eu fosse um autor e Ka um personagem de livro, eu diria: ‘A neve faz Ka lembrar-se de Deus!’. Mas não estou bem certo de que isso corresponderia exatamente à verdade. O que me aproxima de Deus é o silêncio da neve.”
“A direita religiosa, os muçulmanos conservadores deste país” — agora Muhtar falava depressa, como se desejando deixar-se levar por uma falsa esperança —, “depois de meu tempo de esquerdista ateu, essa gente chegou como um grande alívio. Você precisa conhecê-los. Tenho certeza de que você também ia gostar deles.”
“Você acha mesmo isso?”
“Bem, antes de mais nada, esses homens religiosos são modestos, gentis e compreensivos. Ao contrário dos turcos ocidentalizados, não desprezam instintivamente as pessoas comuns; eles são compassivos e também se sentem discriminados. Se o conhecessem, iriam gostar de você. Não haveria palavras ásperas.”
Como sabia Ka desde o começo, naquela parte do mundo a fé em Deus não era coisa que se alcançasse engendrando pensamentos sublimes e estendendo a própria capacidade criativa ao seu limite máximo; tampouco era uma coisa que se podia alcançar sozinho; acima de tudo significava juntar-se a uma mesquita, fazer parte de uma comunidade. Apesar disso, Ka estava desapontado em ver que Muhtar falava tanto sobre seu grupo, sem falar em Deus ou em sua própria fé uma só vez. Ele desprezou Muhtar por isso. Mas enquanto pressionava a testa contra a janela, disse uma coisa totalmente diferente.
“Muhtar, se eu começasse a acreditar em Deus, você ficaria decepcionado, e acho que iria me desprezar.”
“Por que?”
“A idéia de um indivíduo ocidentalizado solitário cuja fé em Deus é particular é muito ameaçadora para você. Para você, é muito mais fácil confiar num ateu que pertence a uma comunidade que num homem solitário que acredita em Deus. Para você, um homem solitário é muito mais desprezível e pecador que um descrente.”
“Eu sou um homem solitário”, disse Muhtar.
O fato de que ele pudesse dizer aquelas palavras com tanta sinceridade e convicção encheu Ka de rancor e piedade. Parecia-lhe que a escuridão dera aos dois certa confiança ébria. “Sei que não vou me tornar um, mas digamos que eu me tornasse o tipo de crente que ora cinco vezes por dia. Por que isso haveria de perturbar você? Talvez porque você só pode abraçar sua religião e sua comunidade se secularistas ateus como eu estiverem cuidando dos negócios e dos assuntos de governo. Um homem não pode orar para satisfazer o próprio coração nesse país, a menos que possa contar com a eficiência do ateu que é especialista no lidar com o Ocidente e com os outros aspectos dos negócios mundanos.”
“Mas você não é um desses homens de negócios ateus. Posso levar você para conhecer sua excelência o sheik quando você quiser.”
“Acho que nossos amigos policiais chegaram!”, disse Ka.
Através da janela cheia de gelo eles viram dois policiais à paisana lutando para sair da radiopatrulha estacionada logo ali embaixo, na entrada da galeria.
“Agora vou lhe pedir um favor”, disse Muhtar. “Num instante aqueles homens vão subir as escadas e nos levar para a delegacia. Eles não vão prendê-lo, apenas tomar seu depoimento e liberar você. Você pode voltar para o seu hotel, e à noite Turgut bei vai convidá-lo para jantar, e você sentará à sua mesa. Naturalmente suas dedicadas filhas também estarão lá. Então, eu gostaria que você dissesse o seguinte a Ipek, está me ouvindo? Diga a Ipek que quero casar de novo com ela! Eu errei em pedir-lhe que se cobrisse em obediência à lei islâmica. Diga-lhe que agi como um marido provinciano ciumento e que estou envergonhado e arrependido da pressão que fiz sobre ela quando estávamos casados!”
“Você já disse essas coisas a ela?”
“Disse, mas não adiantou nada. Talvez ela não tenha acreditado em mim porque sou o chefe local do Partido da Prosperidade. Mas você é outro tipo de homem; você veio de Istambul, e até mesmo da Alemanha. Se você lhe disser, ela vai acreditar.”
“Sendo você o chefe local do Partido da Prosperidade, não vai lhe causar problemas políticos o fato de sua mulher não se cobrir?”
“Com a permissão de Deus, vou ganhar a eleição dentro de quatro dias e me tornar prefeito”, disse Muhtar. “Mas é muito mais importante para mim que você diga a Ipek o quanto estou arrependido; com certeza vou ficar detrás das grades. Irmão, você pode fazer isso por mim?”
Ka teve um momento de indecisão, então disse: “Sim, farei”.
Muhtar abraçou Ka e beijou-o em ambas as faces. Ka sentiu um misto de piedade e repugnância; ele se desprezava por não ser puro e sincero como Muhtar.
“E eu agradeceria muito se você levasse este poema para Istambul e entregasse em mãos a Fahir”, disse Muhtar. “E aquele de que acabei de falar, seu título é ‘A escadaria’.”
Ka estava colocando o poema no bolso quando três policiais à paisana entraram na sala escura. Dois deles traziam enormes lanternas. Eram capazes e eficientes, e era claro pelo seu comportamento que sabiam exatamente o que Ka estava fazendo ali com Muhtar. Para Ka, era evidente que eles eram do MIT. Não obstante, eles insistiram em ver o documento de identidade de Ka e em perguntar sobre suas atividades. Ka disse mais uma vez que viera para cobrir as eleições municipais e fazer uma matéria sobre as moças suicidas para o Republicano.
“É porque gente como você anda escrevendo sobre elas em Istambul que as moças daqui começaram a se suicidar”, disse um dos policiais.
“Não, não é”, disse Ka, inflexível.
“Que explicação você dá, então?”
“Elas se suicidam porque são infelizes.”
“Nós também somos infelizes e não nos matamos.”
Enquanto essa conversa continuava, eles varriam a sede do partido com suas lanternas, abriam armários, tiravam gavetas, esvaziavam-nas em cima de mesas e folheavam arquivos. Viraram a mesa de Muhtar de cabeça para baixo para procurar armas e puxaram um dos pesados arquivos para procurar atrás dele. Deram a Ka um tratamento bem melhor que a Muhtar.
“Depois que você viu o diretor do Instituto ser baleado, por que veio diretamente para cá, em vez de ir direto à polícia?”
“Eu tinha marcado um encontro aqui.”
“Por quê?”
“Fomos colegas de universidade”, disse Muhtar, em tom de desculpa. “E a filha do dono do Hotel Palácio de Neve, onde ele está hospedado, é minha mulher. Pouco antes da ocorrência, eles ligaram para mim e marcaram uma conversa. Como os telefones aqui da sede do partido estão grampeados, não vai ser difícil verificar isso.”
“Que história é essa de que grampeamos seus telefones?”
“Desculpe-me”, disse Muhtar, sem sombra de aborrecimento. “Eu não tenho certeza — estava só supondo. Talvez eu esteja errado.”
Ka sentiu uma ponta de respeito por Muhtar, que procurava ganhar a simpatia do policial que o tratava grosseiramente, agüentava seus repuxões com tranqüilidade e, como o restante de Kars, não se importava com os apagões nem com as estradas terrivelmente enlameadas.
Tendo vasculhado cada canto da sede do partido, revirado cada gaveta e esvaziado cada pasta do arquivo, os policiais amarraram uns poucos achados com um barbante, anotando o que tinham encontrado para o relatório oficial, e jogaram o pacote num saco. Então levaram Ka e Muhtar para o carro de patrulha. Quando os dois se sentaram lado a lado no banco de trás como duas crianças caladas e culpadas, Ka viu a submissão voltar às enormes mãos brancas que descansavam como dois velhos cachorros gordos nos joelhos de Muhtar.
Enquanto o carro da polícia avançava pelas ruas escuras cobertas de neve, os dois lançavam um olhar angustiado às fracas luzes alaranjadas que brilhavam através das cortinas entreabertas das velhas mansões armênias, aos velhos que carregavam sacolas de plástico andando penosamente nas calçadas cobertas de gelo, às velhas casas escuras e vazias, solitárias como fantasmas. No painel em frente ao Teatro Nacional um cartaz anunciava o espetáculo da noite. Os operários ainda estavam nas ruas instalando o cabo para a transmissão ao vivo. As multidões que vagueavam em volta da estação rodoviária pareciam ainda mais impacientes com as estradas até então fechadas.
Os flocos de neve agora pareciam grandes como aquelas boules de neige com que Ka brincara quando criança. Enquanto o carro da polícia rodava lentamente na neve, ele sentiu como se estivesse num conto de fadas. Como o motorista dirigia com muito cuidado, mesmo aquela curta viagem levou seis ou sete minutos, mas durante todo o percurso ele trocou apenas um olhar com Muhtar. Ka tinha certeza, pelo olhar angustiado de resignação do amigo, de que quando eles chegassem à central de polícia Muhtar ia ser espancado, ao passo que ele próprio seria poupado.
Ele viu mais alguma coisa no olhar que seu amigo lhe deu, e que o acompanharia por muitos anos: Muhtar achava que merecia a surra que estava prestes a levar. Mesmo tendo certeza de que ganharia a eleição dentro de quatro dias, havia alguma coisa tão inquietante em sua calma que o fazia parecer arrependido pelo que ainda não tinha acontecido; era quase como se ele estivesse pensando, eu mereço essa surra não por ter insistido em me estabelecer nesta cidade abandonada por Deus, mas por ter sucumbido uma vez mais ao desejo de poder; não vou deixar que eles abalem o meu ânimo, mas mesmo assim odeio a mim mesmo por saber tudo isso, e então me sinto inferior a você. Por favor, quando me olhar nos olhos, não reflita a minha vergonha, devolvendo-a a mim.
Embora os policiais à paisana não tivessem separado Ka de Muhtar depois de estacionar o carro no pátio interno da delegacia, havia uma notável diferença no tratamento dispensado aos dois homens. Ka era um famoso jornalista de Istambul que poderia, se escrevesse alguma coisa crítica, causar-lhes um bocado de problemas, por isso eles o tratavam como uma testemunha que estava lá para ajudar as autoridades na investigação. Mas no que se referia a Muhtar, era como se dissessem “Não! Você novamente?”. E quando se voltavam para Ka era como se lhe dissessem “O que um homem como você está fazendo com um homem como ele?”. Simploriamente, Ka imaginava que foram as respostas conciliadoras de Muhtar que os fizeram pensar ser ele, por um lado, estúpido (você acha mesmo que nós íamos deixar vocês assumirem o controle do país?) e, por outro, confuso (se ao menos você pudesse pôr um pouco de ordem em sua vida). Só muito depois Ka haveria de fazer a dolorosa descoberta de que a polícia estava seguindo uma linha totalmente diferente.
Esperando que ele pudesse identificar o homenzinho que atirara no diretor do Instituto de Educação, eles levaram Ka a uma sala contígua para examinar um arquivo de cerca de cem fotografias em preto-e-branco. Lá estavam todos os islamitas políticos de Kars e dos arredores que tinham sido detidos pelo menos uma vez pela polícia. Quase todos eram jovens curdos das aldeias ou então desempregados, mas havia também fotografias de frente e de perfil de ambulantes, alunos de escolas secundárias religiosas ou de universidades, professores e turcos sunitas. Enquanto Ka examinava foto após foto de jovens tristes olhando angustiados para a câmera fotográfica da polícia, pensou ter reconhecido dois adolescentes que vira em sua caminhada pela cidade naquela manhã, mas não encontrou ninguém que se parecesse com o homem baixinho e, ao que lhe parecia, mais velho que cometera o assassinato.
Ka voltou e encontrou Muhtar derreado no mesmo banco, mas seu nariz sangrava e um olho tinha uma mancha vermelha. Muhtar fez um ou dois gestos que traíam a vergonha que sentia e cobriu o rosto com um lenço. No silêncio, Ka imaginou ter Muhtar encontrado a redenção no espancamento que sofrera; aquilo devia tê-lo libertado da culpa e da agonia espiritual que sentia diante da miséria e estupidez de seu país. Dali a dois dias, pouco antes de receber a mais triste notícia de sua vida — e estando reduzido ao mesmo estado de Muhtar —, Ka teria motivos para relembrar aquela sua louca fantasia.
Momentos depois, eles levaram Ka novamente à sala ao lado para colher seu depoimento. Sentado diante de um jovem policial que usava a mesma velha máquina Remington que ele se lembrava de ter visto seu pai, advogado, usar quando trazia serviço para casa, Ka descreveu o assassinato do diretor do Instituto de Educação, e enquanto falava lhe ocorreu que eles lhe mostraram Muhtar para assustá-lo.
Ka foi liberado pouco depois, mas o rosto de Muhtar permaneceu diante dos seus olhos por algum tempo. Nos velhos tempos, a polícia provinciana não se mostrava tão disposta a espancar conservadores religiosos. Mas Muhtar não era de um dos partidos de centro-direita; ele defendia o islã radical. Mais uma vez Ka se perguntou se aquela posição tinha alguma coisa a ver com a personalidade de Muhtar. Ele andou pela neve por muito, muito tempo. No fim da avenida do Exército, sentou-se numa mureta e fumou um cigarro, enquanto olhava um grupo de crianças deslizando e escorregando numa rua transversal, à luz da lâmpada do poste. A pobreza e a violência que ele vira naquele dia o cansaram, mas se sentia estimulado pela esperança de que, com o amor de Ipek, conseguiria começar uma nova vida.
Mais tarde, continuando a andar na neve, encontrou-se na calçada oposta à da Confeitaria Vida Nova. A vitrine estava quebrada e a luz azul-marinho em cima do carro da polícia estacionado à sua frente rutilava. Ela lançava um brilho quase espiritual sobre os empregados da loja e sobre as crianças aglomeradas em volta do carro, dando a impressão de infundir na neve que caía uma paciência divina. Quando Ka se juntou à multidão, a polícia ainda estava interrogando o velho garçom.
Alguém bateu timidamente no ombro de Ka. “Você é Ka, o poeta, não é?” Era um adolescente com grandes olhos verdes, um rosto infantil e aspecto afável. “Meu nome é Necip. Eu sei que você veio para Kars para cobrir as eleições e escrever sobre as jovens suicidas para o Republicano, e que já se encontrou com muitos grupos. Mas há uma pessoa mais importante em Kars com quem você devia conversar.”
“Quem?”
“Podemos nos afastar um pouco?”
Ka gostou do ar de mistério do adolescente. Eles se deslocaram para a frente do Buffet Moderno, “mundialmente famoso por seus sharbats e seus saleps”.
“Recebi instruções de só dizer o nome da pessoa que você precisa conhecer, se antes concordar em se encontrar com ela.”
“Como posso concordar em encontrar alguém sem primeiro saber de quem se trata?”
“Tem razão”, disse Necip. “Mas essa pessoa está escondida. Não posso lhe dizer de quem ele se esconde, a menos que você concorde em ir falar com ele.”
“Está bem, concordo”, disse Ka. E fazendo uma pose vinda diretamente de um gibi de aventuras, acrescentou: “Espero que não seja uma armadilha”.
“Se você não é capaz de confiar nas pessoas, nunca vai conseguir chegar a lugar nenhum na vida”, disse Necip, assumindo também uma pose de revista em quadrinhos.
“Eu confio em você”, disse Ka. “Quem é essa pessoa que preciso encontrar?”
“Depois que souber seu nome, você vai se encontrar com ele. Mas você também precisa guardar segredo sobre o lugar onde ele está escondido. Então, pense mais um pouco. Devo dizer quem é ele?”
“Sim”, disse Ka. “Você tem de confiar em mim também.”
“O nome dessa pessoa é Azul”, disse Necip num tom cheio de reverência. Ele pareceu desapontado quando Ka não mostrou nenhuma reação. “Nunca ouviu falar sobre ele quando você estava na Alemanha? Na Turquia ele é famoso.”
“Eu sei”, disse Ka num tom tranqüilizador. “Estou disposto a conhecê-lo.”
“Mas eu não sei onde ele está”, disse Necip. “E mais: eu mesmo nunca o vi em toda a minha vida.”
Por um instante eles trocaram um sorriso meio incerto.
“Outra pessoa vai levá-lo até Azul. Minha tarefa é ajudá-lo a entrar em contato com essa pessoa.”
Eles foram andando juntos pela avenida Pequeno Kâzimbey, por entre cartazes e bandeirolas da campanha eleitoral. Havia algo no corpo magro de Necip e em seus modos nervosos e infantis que fazia Ka lembrar-se de si mesmo quando tinha a sua idade, por isso ele se tomou de simpatias pelo rapaz. Por um instante ele se pegou tentando imaginar que aspecto teria o mundo visto através daqueles olhos verdes.
“O que você ouviu falar de Azul na Alemanha?”, perguntou Necip.
“Li nos jornais turcos que ele era um militante islamita”, disse Ka. “Li outras coisas sórdidas sobre ele também.”
Necip apressou-se em interrompê-lo. “Militante islamita é só um nome que os ocidentais e os secularistas dão a nós, muçulmanos, que estamos dispostos a lutar por nossa religião”, disse ele. “Você é um secularista, mas por favor não se deixe enganar pelas mentiras sobre Azul publicadas na imprensa secular. Ele não matou ninguém, nem mesmo na Bósnia, para onde foi para defender seus irmãos muçulmanos, e tampouco em Grozny, onde uma bomba russa o deixou mutilado.”
Quando chegaram a uma esquina, ele deteve Ka.
“Está vendo aquela loja do outro lado da rua, a Livraria Comunicação? Ela pertence aos Seguidores, mas todos os islamitas de Kars a usam como lugar de reunião. A polícia sabe disso, como todo mundo. Alguns dos balconistas espionam para eles. Sou aluno da escola secundária religiosa. Não me e permitido ir lá. Se eu for, serei castigado, mas tenho de informar as pessoas lá de dentro que você está aqui. Dentro de três minutos você vai ver um jovem alto e barbudo com um solidéu vermelho vir até a porta. Siga-o. Quando tiverem passado por duas travessas, se não houver policiais à paisana por perto, ele vai se aproximar de você e conduzi-lo ao lugar aonde tem de ir. Está entendendo? Que Deus o ajude.”
Com isso, Necip sumiu numa nuvem de flocos de neve. O coração de Ka o acompanhou.
Azul e Rüstem
Ka parou na calçada do lado oposto ao da Livraria Comunicação. Agora a neve caía mais depressa, e àquela altura ele estava cansado de esperar e sacudir a neve da cabeça, do casaco, dos sapatos. Estava prestes a voltar para o hotel quando olhou para o outro lado da rua e, à fraca luz do poste, viu um jovem alto e barbudo na frente da livraria. Quando se deu conta de que a neve tornara branco o solidéu vermelho do rapaz, seu coração disparou, e ele correu atrás do jovem.
Depois de percorrerem toda a avenida Kâzim Karabekir — a qual o candidato a prefeito do Partido da Pátria, seguindo a nova moda lançada em Istambul, prometera transformar em calçadão — eles entraram na avenida Faikbey e então pegaram a segunda à direita na praça da Estação. A estátua do general Kâzim Karabekir, que Ka se lembrava de ter visto no meio da praça, agora estava soterrada sob a neve e parecia um gigantesco cone de sorvete. Mesmo no escuro, Ka conseguiu ver que o jovem barbudo entrara na estação ferroviária. Ele apressou-se a segui-lo. Como não encontrou ninguém no hall de entrada, imaginou que seu guia tinha ido para a plataforma, e também foi para lá; no final da plataforma ele mal pôde discernir alguém movendo-se lá adiante na escuridão. Ka então seguiu pelos trilhos. No exato momento em que Ka imaginava que, se ele fosse morto a tiros ali, seu corpo só haveria de ser descoberto na primavera, viu-se cara a cara com o jovem barbudo.
“Ninguém está nos seguindo”, disse ele, “contudo, você ainda pode mudar de idéia. Mas, se você resolver continuar, terá de manter a boca fechada de agora em diante. Você não pode dizer a ninguém como chegou aqui. O castigo para a traição é a morte.”
Essa ameaça não intimidou Ka, mesmo porque, pronunciada com voz aguda, soava quase engraçado. Eles continuaram andando ao longo dos trilhos, passaram pelo silo, depois entraram na rua da Caldeira, logo adiante do quartel militar, onde o jovem barbudo apontou para um prédio de apartamentos e indicou-lhe a campainha que devia tocar.
“Não seja grosseiro com o Mestre”, disse ele. “Não o interrompa, e quando tiver terminado não se demore: levante-se e vá embora.”
Assim Ka descobriu que os admiradores de Azul o chamavam de Mestre. Mas aquilo era praticamente a única coisa que Ka sabia sobre Azul — afora o fato de ele ser um militante islamita de certa notoriedade. Ele se lembrou de ter visto nos jornais turcos que de vez em quando lia na Alemanha que Azul se envolvera num assassinato anos antes. Todavia, muitos militantes islâmicos matavam, e nenhum deles ficara famoso. A notoriedade de Azul se devia ao fato de ter sido responsabilizado pela morte de uma personalidade do mundo televisivo, o efeminado e exibicionista Güner Bener, em cujo programa de perguntas e respostas, transmitido por uma pequena emissora, os candidatos disputavam prêmios em dinheiro. Bener usava roupas espalhafatosas e gostava de fazer observações obscenas e contar piadas sobre as pessoas ignorantes”. Certo dia, durante uma transmissão ao vivo, o sardento mestre do sarcasmo estava ridicularizando um de seus mais pobres e desajeitados concorrentes quando deixou escapar uma observação inconveniente sobre o profeta Maomé.
Muito possivelmente aquilo só foi notado por uns poucos crentes que cochilavam em frente aos seus aparelhos de televisão, que certamente esqueceram a pilhéria logo depois de ouvi-la, mas Azul enviou uma carta a todos os jornais de Istambul ameaçando matar o apresentador, a menos que ele apresentasse desculpas formais no programa seguinte e prometesse não mais repetir aquele gracejo. Os jornais de Istambul recebem ameaças desse tipo tempo todo, e não devem ter dado atenção àquela. Mas tão engajado estava o canal de televisão em sua linha de provocação secularista que, também para provar o quão radicais eram aqueles militantes islâmicos, seus diretores convidaram Azul a ir ao programa. Ele aproveitou a oportunidade para fazer ameaças ainda mais terríveis, e fez tal sensação como o “islamita de olhar feroz manejador de cimitarras” que foi convidado a repetir a performance em outros canais.
Por aquela época, o promotor público expediu uma ordem de prisão contra ele, por ter feito uma ameaça pública de morte, e então Azul marcou essa sua estréia na notoriedade entrando na clandestinidade. Nesse meio-tempo Güner Bener, que agora também era alvo de muita atenção por seu papel naquela história, apareceu em seu programa diário ao vivo para desafiar seus pretensos assassinos, proclamando com uma veemência inesperada que “não tinha medo de pervertidos anti-republicanos que odiavam Atatürk”; no dia seguinte, no quarto de hotel em Esmirna onde ele ficava quando ia fazer o programa, encontraram-no estrangulado com a mesma gravata berrante, estampada com figuras de bolas de praia, que usara durante a transmissão.
Azul tinha um álibi — estava participando de uma reunião de apoio às jovens que cobriam a cabeça —, mas continuou escondido para evitar a imprensa, que àquela altura já informara a todo o país sobre o ocorrido e sobre o papel de Azul na história toda. Parte da imprensa islâmica se mostrou tão crítica quanto os secularistas; ela acusou Azul de “manchar de sangue” as mãos do islã político, de fazer o jogo da imprensa secularista, de desfrutar da fama de forma pouco condizente com um muçulmano, de estar a soldo da CIA. Isso explicaria por que Azul caíra na clandestinidade e assim se manteve durante muito tempo. Foi nessa época que começou a circular um boato nos círculos islâmicos de que ele teria ido para a Bósnia combater os sérvios e de que fora ferido quando lutava heroicamente contra os russos em Grozny, mas muitos diziam serem falsas aquelas histórias.
(Quem quiser conhecer a versão do próprio Azul para esses fatos, pode consultar sua curta autobiografia intitulada “Minha Execução”, que figura na quinta página do capítulo 35, “Ka com Azul em sua cela”, com o subtítulo EU NÃO SOU AGENTE DE NINGUÉM, embora eu não esteja certo da exatidão das afirmações de Azul.)
Temos de convir que se contaram muitas mentiras sobre Azul. O fato é que muitas delas alimentaram seu mito, e com certeza se poderia dizer que Azul se comprazia daquela notoriedade envolta em mistério. Houve quem dissesse também que, calando-se, Azul concordava tacitamente com as farpas atiradas por alguns círculos islâmicos que atraíra com as declarações que fizera anteriormente; alguns chegaram a dizer que um muçulmano que aparecia tanto na mídia burguesa secularista e sionista só tivera o que bem merecera. Na verdade, como nossa história vai mostrar, Azul gostava mesmo era de falar na mídia.
Quanto às suas razões para estar em Kars, como acontece tantas vezes com os boatos em lugares pequenos, as histórias se espalhavam depressa, mas não levavam a nada. Alguns diziam que ele viera para dar suporte às operações locais da organização islâmica curda, agora que o governo tinha fechado o centro de operações nacionais sediado em Diyarbakir. Dizia-se que Azul fora mandado para Kars para “salvaguardar informações sigilosas da organização”. Outros afastavam essa hipótese, visto que a organização em questão não tinha membros em Kars, à exceção de um ou dois lunáticos desvairados. Havia quem dissesse que Azul viera restabelecer as relações entre os curdos revolucionários marxistas e os curdos islamitas — havia um crescente conflito entre eles nas cidades do Leste. Segundo essa versão, sua missão seria a de instar para que todos procurassem atuar como militantes disciplinados. A tensão entre os curdos revolucionários-marxistas e os curdos islamitas começara com discussões violentas, troca de insultos, espancamentos, brigas de rua, e em muitas cidades a coisa descambara para agressões com facas e cutelos. Nos últimos meses os guerrilheiros andaram trocando tiros e matando uns aos outros, fazendo reféns e interrogando-os sob tortura (com ambos os lados usando métodos conhecidos como derramar plástico derretido na pele do prisioneiro ou comprimir-lhe os testículos), e falou-se também da ocorrência de estrangulamentos. Comentava-se a formação de um grupo secreto de mediadores para os quais aquela guerra “só aproveitava ao Estado”, e por isso desejavam acabar com aquilo. Dizia-se que esse grupo enviara Azul para examinar a situação das regiões afetadas pelo conflito. Segundo seus inimigos, porém, o passado negro de Azul e sua relativa juventude o desqualificavam para tão importante missão. Havia outros boatos, espalhados pelos jovens sectários do islamismo, de que ele viera para Kars para “dar um jeito em” Hakan Özge, o jovem espalhafatoso e efeminado apresentador e disc jockey da Televisão Fronteiriça de Kars, que andara emitindo piadinhas maliciosas e insinuações veladas contra o glorioso islã, e que agora fazia constantes referências a Deus e à hora da oração em seu programa. Ainda outros imaginavam que Azul era um mensageiro de um grupo terrorista islâmico internacional. Dizia-se até que as unidades de inteligência e de segurança de Kars tiveram notícias de uma rede apoiada pelos sauditas, com planos para aterrorizar milhares de mulheres — vindas aos montes da antiga União Soviética para trabalhar como prostitutas —, assassinando algumas delas. Azul nada fizera para desmentir esses boatos, assim como nada fizera para desmentir os boatos sobre as jovens suicidas de cabeças cobertas ou o boato de que viera para observar a eleição municipal. O fato de não responder ao que diziam dele e sua recusa em sair da clandestinidade davam-lhe um ar de mistério que lhe valia a simpatia e admiração dos alunos da escola secundária religiosa e dos jovens em geral. Ele não estava se escondendo apenas da polícia; ficava longe das ruas como uma forma de manter sua lenda, e para esse fim convinha-lhe deixar que as pessoas ficassem se perguntando se ele estava ou não em sua cidade.
Ka tocou a campainha que o jovem de solidéu lhe indicara, e imediatamente decidiu que o homenzinho que lhe deu as boas-vindas no apartamento fora o autor dos disparos contra o diretor do Instituto de Educação na Confeitaria Vida Nova, uma hora e meia antes. O coração de Ka começou a bater mais rápido.
“Espero que não leve a mal”, disse o homem, erguendo os braços para sugerir que o visitante fizesse o mesmo. “Nos dois últimos anos tentaram matar o chefe três vezes, por isso vou revistar você.”
Ka levantou os braços para ser revistado, e aquilo o fez lembrar seu tempo de universidade. Enquanto as mãos do homenzinho deslizavam com cuidado em sua camisa, Ka receou que ele notasse o quanto o seu coração batia depressa. Terminada a revista, porém, ficou mais calmo e seu coração voltou ao ritmo normal. Não, na verdade aquele não era o assassino do diretor. Aquele amável homem de meia-idade, que se parecia antes com Edward G. Robinson, não parecia resoluto nem forte o bastante para atirar em ninguém.
Ka ouviu os soluços de um bebê e o doce murmúrio da mãe tentando acalmá-lo.
“Devo tirar os sapatos?”, perguntou enquanto os tirava, sem esperar a resposta.
“Aqui nós somos convidados”, disse uma segunda voz. “Não queremos incomodar os donos da casa.”
Ka se deu conta de repente de que havia mais alguém na pequena entrada. Embora logo percebesse tratar-se de Azul, ainda lhe restou alguma dúvida; talvez ele estivesse esperando por um encontro mais bem encenado. Ele seguiu Azul a uma sala parcamente mobiliada, onde havia uma televisão preto-e-branco ligada. Lá uma criancinha com o punho na boca fitava com olhos alegres e profundamente sérios a mãe, que trocava sua roupa sussurrando-lhe docemente em língua curda. Seus olhos primeiro fitaram Azul, depois Ka, quando eles entraram na sala. Como em todas as velhas casas russas, não havia corredor. Os dois homens passaram a uma segunda sala.
A cabeça de Ka estava em Azul. Ele viu uma cama tão bem-arrumada que passaria por uma inspeção militar e um pijama listrado impecavelmente dobrado ao lado do travesseiro; na cama havia um cinzeiro em que se lia ELÉTRICA ERSIN, e na parede um calendário com vistas de Veneza; havia uma ampla janela, as venezianas abertas, que dava para as luzes melancólicas da cidade coberta de neve. Azul fechou a janela e voltou-se para encarar Ka.
Seus olhos eram azul-escuros — quase violáceos —, uma cor que quase não se vê num turco. Cabelos castanhos, sem barba, muito mais jovem do que Ka imaginara; tinha nariz aquilino e uma pele surpreendentemente pálida. Ele era extraordinariamente bonito, mas sua distinção provinha da autoconfiança. Em suas maneiras, em sua expressão e aparência não havia nada do fundamentalista provinciano, truculento e barbudo que a imprensa secularista descrevia com uma arma na mão e um rosário de contas na outra.
“Por favor, não tire o casaco enquanto a sala não esquentar... É um belo casaco. Onde você o comprou?”
“Em Frankfurt.”
“Frankfurt... Frankfurt”, murmurou Azul levantando os olhos para o teto e perdendo-se em seus pensamentos. Então ele explicou que “algum tempo atrás” ele fora enquadrado no artigo 163 por promover o estabelecimento de um Estado baseado em princípios religiosos e por isso fugiu para a Alemanha.
Houve um silêncio. Ka sabia que devia aproveitar a oportunidade para estabelecer relações amistosas com Azul naquela ocasião, quando então deu branco em sua cabeça e começou a entrar em pânico. Ele percebeu que estava falando para se acalmar.
“Quando eu estava na Alemanha, em qualquer associação muçulmana que estivesse visitando, em qualquer cidade — fosse Frankfurt ou Colônia, em algum lugar a meio caminho entre a catedral e a estação, ou num dos bairros ricos de Hamburgo — por onde quer que estivesse andando, sempre havia um alemão que se destacava da multidão como um objeto de fascinação para mim. O importante não era o que eu pensava dele, mas o que eu imaginava que ele estava pensando de mim; tentava ver a mim mesmo pelos olhos dele e imaginar o que ele devia estar pensando sobre minha aparência, minhas roupas, a maneira como eu andava, minha história, de onde eu estava vindo e para onde estava indo, quem eu era. Aquilo fazia que eu me sentisse muito mal, mas se tornou um hábito; fiquei acostumado a me sentir degradado, e entendi como meus irmãos se sentiam... Na maioria das vezes, não são os europeus que nos depreciam. O que acontece quando olhamos para eles é que nós nos depreciamos. Quando nós empreendemos a peregrinação, não é apenas para fugir da tirania em nossa terra, mas também para atingir as profundezas de nossa alma. Chega o dia em que se tem de voltar para salvar aqueles que não tiveram a coragem de partir. Por que você voltou?”
Ka continuou em silêncio. A sala malconservada, com paredes sem pintura e reboco cheio de rachaduras, não inspirava confidências, tampouco a luz da lâmpada nua que pendia do teto, ferindo seus olhos.
“Não quero aborrecê-lo com perguntas”, disse Azul. “Quando o saudoso mulá Kasim Ensari recebia visitas em seu acampamento tribal às margens do rio Tigre, a primeira coisa que dizia era: “Estou muito contente em recebê-lo, senhor. Agora o senhor poderia me dizer para quem está espionando?”.
“Eu estou espionando para o Republicano”, disse Ka.
“Até aí eu sei. Mas ainda tenho de perguntar por que eles estão interessados em Kars a ponto de se darem ao trabalho de enviar alguém até aqui.”
“Eu me ofereci para fazer isso. Ouvi falar também que meu velho amigo Muhtar e sua esposa estavam morando aqui.”
“Mas eles se separaram... não lhe disseram?”, corrigiu Azul, olhando-o nos olhos.
“Sim”, disse Ka ruborizando-se. Pensando em tudo o que Azul devia estar percebendo naquele mesmo instante, Ka o odiou.
“Espancaram Muhtar na delegacia?”
“Sim, espancaram.”
“Ele merece ser espancado?”, perguntou Azul, num tom estranho, quase aliciante.
“Não, claro que não”, respondeu Ka, furioso.
“E por que eles não bateram em você? Você está satisfeito consigo mesmo?”
“Não tenho idéia de por que não me bateram.”
“Claro que sabe por quê: porque você pertence à burguesia de Istambul. Qualquer um pode dizer, só de ver sua pele e sua postura. Ele deve ter amigos bem situados — foi isso que eles disseram uns para os outros, não há a menor dúvida. Quanto a Muhtar, basta um olhar para ver que não tem amigos influentes, não tem nenhuma importância. Na verdade, a principal razão pela qual Muhtar entrou na política foi o desejo de elevar-se acima dessa gente da forma como você pode fazer. Mas mesmo que ganhe a eleição, para assumir o cargo ele ainda vai ter de provar ser o tipo de pessoa capaz de suportar uma surra do Estado. É por isso que certamente ele está contente de ter sido surrado.”
Azul não estava sorrindo nem um pouco; sua expressão era até triste.
“Ninguém pode se sentir feliz com uma surra”, disse Ka, sentindo-se vulgar e superficial em comparação a Azul.
O rosto de Azul dizia: Vamos tratar do assunto pelo qual estamos aqui. “Você andou visitando as famílias das jovens que se suicidaram”, disse ele. “Por que você quis conversar com elas?”
“Para colher material para um artigo.”
“Para jornais do Ocidente?”
“Sim, para jornais do Ocidente”, disse Ka com um certo orgulho, apesar de não ter nenhum contato com a imprensa alemã. “E também da Turquia, o Republicano”, acrescentou ele embaraçado.
“A imprensa turca só se interessa pelos problemas de seu país quando a imprensa ocidental se interessa antes”, disse Azul. “Do contrário, é desagradável discutir pobreza e suicídio; eles falam dessas coisas como se estivessem acontecendo numa terra fora do mundo civilizado. O que significa que você também vai ser obrigado a publicar seu artigo na Europa. E por isso que eu quis me encontrar com você: você não deve escrever sobre as jovens suicidas, seja para um jornal turco, seja para um europeu! O suicídio é um pecado terrível. É uma doença que piora à medida que você lhe dá atenção, principalmente no caso mais recente. Se você escrever que se tratava de uma jovem muçulmana tomando uma posição sobre o manto na cabeça, isso vai ser mais letal para você do que veneno.”
“Mas é verdade”, disse Ka. “Antes de se suicidar, a jovem fez suas abluções rituais e disse suas preces. Acho que as moças que cobrem a cabeça a respeitam muito por ela ter feito isso.”
“Jovens que se suicidam nem ao menos são muçulmanas!”, disse Azul. “E é errado dizer que elas estão marcando posição em relação aos mantos. Se você publicar mentiras como essas, só vai conseguir espalhar mais boatos — sobre disputas entre as moças que cobrem a cabeça, sobre as infelizes que lançaram mão de perucas, sobre como elas foram destruídas pela pressão da polícia, dos pais e das mães. Foi para isso que você veio aqui? Para estimular outras pobres moças a se suicidarem? Essas jovens que pelo amor a Deus se vêem divididas entre a escola e a família se sentem tão angustiadas e tão sozinhas que não vêem outra saída senão imitar o mártir suicida.”
“O subprefeito disse que os suicídios de Kars foram superestimados.”
“Por que você se encontrou com o subprefeito?”
“Pela mesma razão que me fez ir à polícia: para que eles não se sentissem obrigados a me seguir o dia inteiro.”
“Quando eles souberam que as moças expulsas da escola por cobrir a cabeça estavam se suicidando, ficaram muito satisfeitos!”, disse Azul.
“Vou escrever as coisas tal como as vejo”, disse Ka.
“Essa insinuação se dirige não exatamente contra o Estado e o subprefeito, é dirigida contra mim também. Quando você sugere que nem o governante secular nem os militantes islâmicos querem que se escreva sobre as jovens suicidas, está tentando me provocar.”
“Sim, estou.”
“Aquela jovem não se matou porque foi expulsa da escola, ela se matou por causa de uma desilusão amorosa. Mas se você escrever que uma jovem que usa manto se matou — pecando contra Deus — por causa de uma desilusão amorosa, os rapazes da escola religiosa vão ficar furiosos. Kars é um lugar pequeno.”
“Eu estava querendo discutir tudo isso com as próprias jovens.”
“Ótimo”, disse Azul. “Por que você não pergunta a essas jovens se elas vão gostar que você escreva na imprensa alemã sobre suas irmãs que, tendo defendido o direito de cobrir a cabeça, foram tão arrasadas pelas conseqüências que partiram deste mundo em estado de pecado?”
“Vou ter o maior prazer em lhes perguntar!”, respondeu Ka, obstinadamente, ainda que começasse a sentir medo.
“Tenho outro motivo para querer ter você aqui”, disse Azul. “Você acaba de testemunhar o assassinato do diretor do Instituto de Educação. Ele é conseqüência direta da raiva de nossos crentes contra a crueldade que o Estado exerceu sobre nossas jovens que usam o manto. Mas claro que a coisa toda é uma intriga do Estado. Primeiro eles usaram o pobre diretor para fazer cumprir as cruéis medidas, depois incitaram algum louco a matá-lo para pôr a culpa nos muçulmanos.”
“Você está assumindo a responsabilidade ou condenando o ocorrido?”, perguntou Ka de modo áspero, como se realmente fosse um jornalista.
“Não vim para Kars por motivos políticos”, disse Azul. “Vim, talvez, para acabar com essa onda de suicídios.” De repente ele pôs as mãos nos ombros de Ka, puxou-o para perto de si e beijou-o em ambas as faces. “Você é um dervixe dos tempos modernos. Você se afastou do mundo para se dedicar à poesia. Você nunca devia ser um fantoche daqueles que querem difamar muçulmanos inocentes. Como resolvi confiar em você, você resolveu confiar em mim — e você atravessou toda essa neve para vir me encontrar. Agora, para lhe mostrar minha gratidão, gostaria de lhe contar uma história com uma moral.” Mais uma vez ele fitava Ka nos olhos. “Posso lhe contar a história?”
“Conte-me a história.”
“Há muito, muito tempo atrás houve um guerreiro incansável, corajoso como ninguém, que vivia no Irã. Todos os que o conheciam o amavam. Eles o chamavam Rüstem, e assim também o chamaremos. Certo dia, quando caçava, ele se perdeu na floresta, e à noite, enquanto dormia, perdeu o cavalo. Enquanto procurava Raksh, seu cavalo, Rüstem foi parar em Turan, que era uma terra inimiga. Mas como sua fama o precedeu, eles o trataram bem. O xá de Turan acolheu-o como hóspede e organizou uma festa em sua homenagem. Depois da festa a filha do xá procurou Rüstem em seu quarto para declarar seu amor por ele. Ela lhe disse que queria ter um filho seu. Ela o seduziu com sua beleza e com suas belas palavras, e logo os dois estavam fazendo amor.
“Na manhã seguinte, Rüstem voltou para seu país, mas deixou uma lembrança — um pequeno bracelete — para o filho que ia nascer. Quando a criança nasceu, chamaram-no Suhrab, então assim também vamos chamá-lo. Anos depois, sua mãe lhe contou que seu pai era ninguém menos que o legendário Rüstem. ‘Eu vou para o Irã’, disse o rapaz, ‘para depor o perverso xá Keykavus e colocar meu pai no lugar dele... e então vou voltar para Turan e fazer exatamente a mesma coisa com o perverso xá Efrasiyab, e quando tiver feito isso, assumo o lugar dele. E então meu pai Rüstem e eu reinaremos com justiça sobre o Irã e Turan — em outras palavras, todo o universo!’
“Assim falou o puro e generoso Suhrab, mal sabendo que seus inimigos eram muito mais espertos e astutos que ele. Porque Efrasiyab, o xá de Turan, dava seu apoio na guerra contra o Irã, mas ao mesmo tempo colocou espiões no exército para garantir que Suhrab não iria reconhecer o pai.
“Depois de muitas trapaças, astúcias, cruéis reviravoltas do destino e coincidências, tramadas todas elas, ao que ele sabia, pelo Sublime Todo-Poderoso, chegou o dia em que Suhrab e seu pai Rüstem se viram face a face no campo de batalha, cada um com um exército atrás de si. Nenhum dos dois conhecia o rosto do outro, mas pouco importa: ambos estavam com armadura — e nem é preciso dizer que não se reconheceram. Rüstem, naturalmente, desejava continuar anônimo dentro de sua armadura: do contrário, aquele herói à sua frente poderia investir com toda a sua fúria e sua força especialmente contra ele, Rüstem. Quanto a Suhrab, seu coração infantil só lhe permitia uma visão, a de seu pai no trono do Irã, portanto ele nunca parava para se perguntar quem era seu adversário. E assim aconteceu que esses dois grandes e generosos guerreiros, que eram pai e filho, à frente de seus respectivos exércitos e observados por eles, lançaram-se para a frente e sacaram suas espadas.”
Azul fez uma pausa. Antes de olhar Ka nos olhos, acrescentou numa voz infantil: “Embora eu tenha lido essa história centenas de vezes, sempre sinto um arrepio ao chegar nessa parte, e meu coração dispara. Não sei por que, mas por alguma razão me identifico com Suhrab quando ele se prepara para matar o pai. Quem poderia querer matar o próprio pai? Que alma poderia suportar a dor desse crime, o peso desse pecado? Especialmente meu próprio Suhrab com seu coração inocente! A única esperança é a de que a essa altura Suhrab mate seu adversário sem saber quem ele é”.
“Enquanto esses pensamentos perpassam minha cabeça, os dois guerreiros começam a lutar, e numa luta que dura horas nenhum dos dois consegue derrotar o outro. Molhados de suor e exaustos, eles embainham suas espadas. Quando chegamos ao anoitecer do primeiro dia, estou tão preocupado pelo pai como pelo filho, e quando continuo a história, é como se eu a estivesse lendo pela primeira vez. Ouso sonhar que o pai e o filho não serão capazes de matar um ao outro e encontrarão alguma forma de contornar aquela terrível situação.
“No segundo dia, os dois exércitos se alinham mais uma vez, e mais uma vez o pai e o filho, protegidos por suas armaduras, travam um combate implacável. Depois de uma longa luta, a sorte sorri para Suhrab — mas podemos chamar isso de sorte? — e ele derruba Rüstem do cavalo e o imobiliza no chão. Ele saca da espada e, quando está prestes a cortar o pescoço do pai, falam para ele: ‘No Irã um herói não costuma cortar a cabeça de um inimigo na primeira ocasião. Não o mate; seria cruel demais’. Então Suhrab não mata o pai.
“Quando leio essa parte fico muito confuso. Sinto muito amor por Suhrab. Qual o sentido desse destino que Deus traçou para esse pai e esse filho? Quanto ao terceiro dia de luta, um dia que esperei com tanta ansiedade — contra todas as minhas expectativas, ele acaba num instante. Rüstem derruba Suhrab do cavalo e, saltando para a frente, enfia a espada nele e o mata. A rapidez desse ato é terrível, chocante. Quando vê o bracelete e se dá conta de que matou o filho, Rüstem se ajoelha, toma nos braços o corpo do filho e chora.
“Nesse ponto da história eu sempre choro também, não exatamente porque partilho o sofrimento de Rüstem, mas porque agora entendo o significado da morte de Suhrab. É o amor de Suhrab pelo pai que o mata. Mas então eu vou além do infantil e generoso amor de Suhrab pelo querido pai; o que sinto mais intensamente agora é a muito mais profunda e nobre angústia do pai que luta para honrar ambos, o filho e os preceitos a que deve obediência. Minhas simpatias, que estiveram o tempo todo com o rebelde e individualista Suhrab, agora vão para Rüstem, o pai forte, responsável e digno.”
Azul parou por um momento. Ka sentiu inveja de sua capacidade de contar essa história — ou, na verdade, qualquer história — com tanta convicção.
“Mas eu não lhe contei essa bela história para lhe dizer o que ela significa para mim ou o que tem a ver com minha vida; eu contei para chamar a atenção para o fato de que foi esquecida”, disse Azul. “Essa história milenar está no Chah-name de Firdusi. Há muito tempo, milhões de pessoas a conheciam de cor — de Tabriz a Istambul, da Bósnia a Trebizonda — e quando a recordavam, encontravam um sentido para suas vidas. A história lhes fala da mesma forma como o assassinato cometido por Édipo contra o pai e a obsessão de Macbeth com o poder e com a morte falam à gente de todo o mundo ocidental. Mas agora que estamos sob o fascínio do Ocidente, esquecemos nossas próprias histórias. Eles tiraram todas as velhas histórias dos livros escolares. Hoje em dia, você não encontra um único livreiro que tenha o Chah-name em toda a Istambul! Como você explica isso?”
Ambos ficaram calados.
“Deixe-me tentar adivinhar o que você está pensando”, disse Azul. “Essa história é tão bela que um homem pode matar por ela? É isso o que você está pensando, não é?”
“Não sei”, disse Ka.
“Então pense sobre isso”, disse Azul, e saiu da sala.
Um descrente que não quer se matar
Quando Azul saiu da sala, Ka não soube ao certo o que fazer. A princípio pensou que Azul iria voltar para o interrogar sobre seus “pensamentos”, mas logo começou a perceber que não entendera bem aquele homem. Em suas atitudes, em seus modos insinuantes, Azul estava lhe passando uma mensagem. Ou seria uma ameaça?
Em qualquer dos casos, Ka não experimentava a sensação de perigo, mas antes a de ser um estranho àquele ambiente. A sala em que ele vira a mãe e o bebê agora estava vazia. Vazia também estava a entrada do apartamento. Quando ele fechou a porta da frente atrás de si, teve de se controlar para não descer as escadas correndo.
Quando levantou os olhos para o céu, a primeira impressão de Ka foi a de que os flocos de neve tinham parado de se mover. Quando ele os observou pairando no alto do céu, pareceu-lhe que o próprio tempo havia parado. Pareceu-lhe também que tinha havido uma grande mudança e que se passara muito tempo enquanto ele estava lá dentro. Mas o encontro de Ka com Azul durara apenas vinte minutos.
Ele andou ao longo dos trilhos do trem, passou pelo silo coberto de neve que assomava no alto como uma grande nuvem branca, e logo se encontrou novamente dentro da estação. Enquanto atravessava o edifício vazio e sujo, viu um cachorro aproximar-se balançando amistosamente a cauda encaracolada. Era um cachorro preto com uma mancha redonda na testa. Quando olhou do outro lado do saguão da estação, Ka viu três jovens que estavam tentando atrair o cão com pãezinhos de gergelim. Um deles era Necip; ele se afastou dos amigos e correu em direção a Ka.
“Não deixe de forma alguma meus colegas saberem que eu tinha conhecimento de que você ia passar por aqui”, disse ele. “Meu melhor amigo, Fazil, tem uma pergunta muito importante a lhe fazer. Se você lhe der um pouco do seu tempo, ele vai ficar muito contente.”
“Está bem”, disse Ka, e andou em direção ao banco onde os outros rapazes estavam sentados.
Um cartaz na parede atrás deles lembrava aos viajantes quão importantes eram as ferrovias para Atatürk; outro procurava despertar medo no coração de toda jovem que pensasse em suicídio. Os rapazes se puseram de pé para apertar a mão de Ka, mas então se deixaram vencer pela timidez.
“Antes que Fazil faça a pergunta, Mesut gostaria de lhe contar uma história que ouviu”, disse Necip.
“Não, eu acho que não sei contar”, disse Mesut, mal contendo a própria agitação. “Por favor, você poderia contá-la por mim?”
Enquanto Necip contava a história, Ka olhava o cachorro preto brincando na estação suja, mergulhada na semi-escuridão.
“A história se passa numa escola secundária religiosa em Istambul, ou pelo menos foi isso que me disseram”, começou Necip. “Um típico lugar improvisado num subúrbio da periferia da cidade. O diretor dessa escola tinha uma reunião com uma autoridade municipal num daqueles novos arranha-céus de Istambul que vemos na televisão. Ele entrou no enorme elevador e começou a subir. Havia um outro homem no elevador, um homem alto, mais novo que ele; o homem mostrou ao diretor um livro que levava na mão, e como algumas páginas ainda estavam por abrir, sacou uma faca com cabo de madrepérola enquanto recitava alguns versos. Quando o elevador parou no décimo nono andar, o diretor saiu.
“Nos dias seguintes, ele começou a se sentir muito estranho. Tornou-se obcecado pela morte, não tinha vontade de fazer nada e não conseguia parar de pensar no homem do elevador. O diretor da escola era um homem piedoso, então ele foi procurar alguns dervixes cerrahi, esperando encontrar algum consolo e orientação. Ele ficou lá até de manhã, desabafando, contando todas as suas angústias, e depois de ter feito isso, o famoso sheik fez o seguinte diagnóstico:
“‘Ao que parece, você perdeu a fé em Deus’, disse ele. ‘E o que é pior, você nem ao menos se deu conta disso. Como se não bastasse, você até se orgulha de não saber disso! Você contraiu essa enfermidade do homem do elevador. Ele transformou você num ateu.’ O diretor levantou-se às lágrimas, para negar o que o ilustre sheik dissera, mas ainda havia pureza e honestidade numa parte de seu coração, e essa parte lhe garantia que o sheik estava dizendo a verdade.
“Infectado pelo vírus do ateísmo, o diretor começou a fazer uma pressão desmedida sobre seus pequenos e encantadores alunos, tentou ficar a sós com suas mães e roubou de outro professor a quem ele invejava. E, o que é pior, sentia orgulho de ter cometido esses pecados. Ele reuniu toda a escola para acusá-los de ter uma fé cega, disse-lhes que suas tradições não tinham sentido nenhum e lhes perguntou por que não podiam ser livres como ele era. Não conseguia fazer uma frase sem enchê-la de palavras francesas e gastou o dinheiro roubado com os últimos lançamentos da moda européia. Aonde quer que fosse, fazia questão de mostrar às pessoas o quanto ele as desprezava por serem ‘atrasadas’.
“Não demorou muito, e a escola caiu na anarquia. Um grupo de alunos violentou uma bela colega, outro grupo espancou um velho professor de Corão, e toda a escola estava à beira da revolta. O diretor ia para casa às lágrimas, pensando em suicídio, mas como não tinha coragem para tanto, alimentava a esperança de que alguém o matasse. Para fazer que isso acontecesse, ele — Deus nos defenda — imprecou contra sua excelência, o profeta Maomé, diante de seu aluno mais devoto. Mas já sabendo àquela altura que ele tinha enlouquecido, seus alunos não encostaram a mão nele. Ele saiu às ruas proclamando — Deus nos defenda — que Deus não existia, que as mesquitas deviam ser transformadas em discotecas, e que nós só ficaríamos ricos como o povo do Ocidente se nos convertêssemos ao cristianismo. Mas quando os jovens islamitas quiseram matá-lo, ele fraquejou em sua decisão e se escondeu deles.
“Desesperado e incapaz de encontrar uma forma de satisfazer seu desejo de morrer, o diretor voltou ao mesmo arranha-céu fatal de Istambul e, entrando no mesmo elevador, se viu novamente cara a cara com o homem alto que o levara ao ateísmo. O homem sorriu dando a entender que sabia toda a história do diretor, e então apresentou o livro como o fizera da primeira vez — a cura do ateísmo também devia ser procurada ali. Quando o diretor estendeu a mão trêmula, o homem sacou a faca com cabo de madrepérola, como se fosse abrir as páginas do livro, mas, com o elevador ainda em movimento, enfiou a faca no coração do diretor.”
Quando Necip terminou a história, Ka se deu conta de que já a ouvira antes, contada por turcos islamitas na Alemanha. Na versão de Necip, não se identificava o misterioso livro do fim da história, mas naquele momento Mesut mencionou um ou dois escritores judeus conhecidos como agentes de ateísmo, e também vários colunistas que lideraram a campanha da mídia contra o islã político — um deles haveria de ser assassinado três anos depois.
“O diretor não é o único a se sentir angustiado — há muitos ateus em nosso meio. Eles foram corrompidos pelo diabo e agora andam entre nós, procurando ansiosamente a paz e a felicidade”, disse Mesut. “Você concorda com esse ponto de vista?”
“Não sei.”
“O que você quer dizer com ‘não sei’?”, perguntou Mesut, um pouco aborrecido. “Você também não é ateu?”
“Não sei”, disse Ka.
“Então me responda uma coisa: você não acredita que Deus Onipotente criou o universo e todas as coisas que nele existem, até mesmo a neve que cai do céu em rodamoinhos?”
“A neve me lembra Deus”, disse Ka.
“Sim, mas você acredita que Deus criou a neve?”, insistiu Mesut.
Houve um silêncio. Ka olhou o cão preto passar correndo pela porta na direção da plataforma para brincar na neve sob o fraco halo da luz de neon.
“Você não está me respondendo”, disse Mesut. “Se uma pessoa conhece e ama a Deus, nunca duvida da Sua existência. Parece-me que você não está me dando uma resposta porque é muito tímido para admitir que é ateu. Mas nós já sabemos disso. E por isso que eu queria lhe fazer uma pergunta em nome de meu amigo Fazil. Você sente a mesma angústia terrível do pobre ateu dessa história? Você quer se matar?”
“Independentemente de quão infeliz eu esteja, ainda acho o suicídio pavoroso.”
“Mas por quê?”, perguntou Fazil. “É porque é contra a lei? Mas quando o Estado fala sobre a inviolabilidade da vida humana, faz a maior confusão. Por que você tem medo de se suicidar? Explique isso.”
“Por favor, não leve a mal a insistência de meu amigo”, disse Necip. “Fazil está lhe fazendo essa pergunta por um motivo — um motivo muito especial.”
“O que eu queria perguntar”, disse Fazil, “é o seguinte: Você não está tão perturbado e infeliz que deseja suicidar-se?”
“Não”, disse Ka. Ele estava começando a ficar incomodado.
“Por favor, não tente esconder nada de nós”, disse Mesut. “Não vamos fazer nada de mau a você só porque é ateu.”
Houve um silêncio carregado de tensão. Ka se pôs de pé. Querendo evitar que eles vissem como se sentia, começou a se afastar.
“Aonde você está indo? Por favor, não vá”, disse Fazil. Ka estacou, mas não disse nada.
“Talvez quem deva falar seja eu”, disse Necip. “Nós três estamos apaixonados por jovens que arriscaram tudo por causa de sua fé. A imprensa secular as chama de moças cobertas. Para nós, elas são apenas moças muçulmanas, e o que elas fazem para defender sua fé é o que todas as moças muçulmanas deviam fazer.”
“E os homens também”, disse Fazil.
“Claro”, disse Necip. “Estou apaixonado por Hicran. Mesut está apaixonado por Hande. Fazil estava apaixonado por Teslime, mas agora ela está morta. Ou ela se suicidou. Mas não conseguimos acreditar que uma jovem muçulmana pronta a sacrificar-se por sua fé seja capaz de se suicidar.”
“Talvez ela não conseguisse mais suportar o seu sofrimento”, disse Ka. Afinal de contas, ela fora expulsa da escola, e sua família pressionava-a para que tirasse o manto.”
“Nenhum grau de sofrimento pode justificar o pecado de um crente”, disse Necip, agitado. “Mesmo quando a gente esquece ou perde as preces matinais, ficamos tão preocupados com nossa situação de pecado que mal conseguimos dormir à noite. Quanto mais isso acontece, mais corremos de volta para a mesquita. Quando a fé de uma pessoa é tão forte, ela tudo fará para evitar cometer esse pecado — até submeter-se a uma vida de torturas.”
“Nós sabemos que você procurou a família de Teslime”, disse Fazil. “Eles acham que ela se suicidou?”
“Acham, sim. Ela assistiu a Marianna na televisão com os pais, banhou-se e disse as suas orações.”
“Teslime nunca via novelas”, disse Fazil em voz baixa.
“Você a conhecia bem?”, perguntou Ka.
“Eu não a conhecia pessoalmente; de fato, nós nunca nos falamos”, disse Fazil, meio sem jeito. “Eu a vi uma vez, de longe, e ela estava muito bem coberta. Mas sendo ela minha alma gêmea, eu a conhecia muito bem. Quando você ama uma pessoa mais do que todas as outras, você sabe tudo o que há para saber sobre ela. A Teslime que eu conhecia nunca se suicidou.”
“Talvez você não a tenha conhecido muito bem.”
“E talvez os ocidentais o tenham mandado para cá para encobrir o assassinato de Teslime”, disse Mesut insolentemente.
“Não, não, nós confiamos em você”, disse Necip. “Nossos líderes dizem que você é uma pessoa solitária, um poeta. E por confiarmos em você que queremos conversar sobre uma coisa que está nos deixando muito infelizes. Fazil gostaria de pedir desculpas pelo que Mesut acabou de dizer.”
“Peço desculpas”, disse Fazil. Seu rosto estava vermelho feito um pimentão. Lágrimas começavam a aflorar em seus olhos.
Mesut permaneceu em silêncio, enquanto se restabelecia a paz.
“Fazil e eu somos irmãos de sangue”, disse Necip. “Na maior parte do tempo, pensamos as mesmas coisas; lemos o pensamento um do outro. Ao contrário de mim, Fazil não se interessa por política. Agora gostaríamos de saber se você pode nos fazer um favor. O problema é que ambos podemos aceitar o fato de que Teslime possa ter sido levada ao pecado do suicídio por causa das pressões dos pais e do Estado. E muito doloroso; Fazil não consegue parar de pensar que a jovem a quem amava cometeu o pecado do suicídio. Mas se, em seu íntimo, Teslime era atéia como o homem da história, se ela era uma daquelas almas desventuradas que nem ao menos sabem ser atéias, ou se suicidou por ser atéia, para Fazil isso é uma catástrofe: significa que ele estava apaixonado por uma atéia.”
“Você é a única pessoa que pode aplacar essa terrível suspeita que está nos torturando. Você é a única pessoa que pode dar algum consolo a Fazil. Você entende o que nós estamos pensando?”
“Você é ateu?”, perguntou Fazil com olhos súplices. “E se você é ateu, você deseja se matar?”
“Mesmo nos dias em que tenho mais certeza de que sou ateu, não sinto vontade de me suicidar”, disse Ka.
“Obrigado por dar uma resposta direta a nossa pergunta”, disse Fazil, parecendo estar mais calmo. “Seu coração é cheio de bondade, mas você tem medo de acreditar em Deus.”
Vendo que Mesut ainda lhe lançava olhares furiosos, Ka estava ansioso para afastar-se dele. Seus pensamentos agora estavam longe, bem longe. Ele sentiu um desejo nascendo dentro de si, e um sonho ligado a esse desejo, mas ao mesmo tempo não conseguia entregar-se ao sonho por causa das coisas que aconteciam à sua volta. Mais tarde, quando pudesse refletir com cuidado, ele iria entender que aquele sonho nascera de seu desejo por Ipek e também de seu medo de morrer e de sua incapacidade de acreditar em Deus. E no último instante, Mesut acrescentou outra coisa.
“Por favor não nos entenda mal”, disse Necip. “Não temos nada contra alguém se tornar ateu. Sempre há lugar para ateus nas sociedades muçulmanas.”
“Salvo pelo fato de que os cemitérios têm de ser separados”, disse Mesut. “Jazer nos mesmos cemitérios que os ateus traria inquietação às almas dos crentes. Quando as pessoas passam a vida escondendo sua falta de fé, trazem desassossego não apenas para o mundo dos vivos, mas também para os cemitérios. Não é somente o tormento de ter de ficar ao lado dos ateus até o Dia do Juízo; o mais horrível seria levantar-se no Dia do Juízo para dar de cara com um infeliz ateu... Senhor Poeta, Ka bei, você não escondeu o fato de que já foi ateu. Talvez você ainda seja. Então, diga-nos: Quem faz a neve cair do céu? Qual é o segredo da neve?”
Por um instante todos olharam para fora para ver a neve caindo nos trilhos vazios.
O que estou fazendo neste mundo?, perguntou-se Ka. Quão deploráveis parecem esses flocos de neve desta perspectiva, quão deplorável é minha vida. Um homem vive sua vida e então desaparece e não sobra nada. Ka sentiu como se metade de sua alma tivesse acabado de abandoná-lo, mas a outra metade ainda permanecia; ainda havia amor em si. Como um floco de neve, ele haveria de cair quando chegasse a hora. Ele iria se devotar de corpo e alma ao melancólico curso pelo qual sua vida enveredara. Seu pai ficava com certo perfume depois de barbear-se, e agora aquele perfume voltava para ele. Pensou em sua mãe preparando o café-da-manhã, os pés doloridos dentro dos chinelos no piso frio da cozinha; ele teve a visão de uma escova de cabelo; lembrou-se da mãe dando-lhe um xarope cor-de-rosa doce quando ele acordava tossindo no meio da noite, sentiu a colher em sua boca, e enquanto se entregava a todas as outras pequenas coisas que fazem uma vida e percebia como se uniam em um todo, ele viu um floco de neve...
Foi assim que Ka ouviu o chamado do fundo de si: o chamado que ele ouvia nos momentos de inspiração, o único som que podia fazê-lo feliz, o som de sua musa. Pela primeira vez em quatro anos, um poema vinha até ele. Embora ainda precisasse ouvir as palavras, ele sabia que já estava escrito; mesmo aguardando em seu lugar escondido, o poema irradiava a força e a beleza do destino. O coração de Ka se encheu de alegria. Ele disse aos três jovens que precisava deixá-los e afastou-se rapidamente pela neve, pensando sem cessar no poema que iria escrever quando chegasse ao hotel.
Neve e felicidade
Ka arrancou o casaco fora logo que chegou ao quarto, abriu o caderno verde que trouxera de Frankfurt e escreveu o poema como lhe veio, palavra por palavra. Era como copiar um poema que outra pessoa lhe sussurrasse ao ouvido, mas ainda assim dava toda a atenção às palavras da página. Como nunca tinha escrito um poema daquela forma, num ímpeto de inspiração, de uma só vez, um canto de sua cabeça duvidava da sua qualidade. Mas à medida que os versos se seguiam, um após outro, parecia-lhe que era perfeito em todos os aspectos, o que fez seu coração feliz bater mais rápido. E assim continuou escrevendo quase sem interrupção, deixando espaços apenas aqui e ali para as palavras que não tinha ouvido direito, até ter escrito trinta e quatro versos.
O poema se compunha de muitos dos pensamentos repentinos que lhe ocorreram havia poucos instantes: a neve que caía, cemitérios, o cão preto correndo alegremente pela estação, algumas recordações de infância, e a imagem que o chamara de volta ao hotel: Ipek. Como ficava feliz só em lembrar o seu rosto — e como ficava apavorado também! Ele intitulou o poema “Neve”.
Muito depois, quando pensou na forma como escrevera o poema, Ka teve a visão de um floco de neve. Esse floco de neve, pensou, era o resumo de sua vida, e ele agora via o poema que havia revelado o sentido de sua vida no centro dela. Mas — assim como o próprio poema resiste a uma explicação fácil — é difícil dizer quanto de sua vida ele decidiu naquele momento, e quanto foi determinado pelas simetrias ocultas que este livro procura desvelar.
Antes de terminar, Ka foi em silêncio até à janela e olhou a paisagem lá fora: os grandes flocos de neve flutuando graciosamente no ar. Teve a sensação de que, simplesmente contemplando a neve cair, seria capaz de levar o poema ao fim a que estava predestinado.
Bateram à porta. No mesmo instante em que a abria, os dois últimos versos lhe vieram, mas então ele os perdeu — eles haveriam de ficar perdidos durante sua permanência em Kars.
Era Ipek. “Trouxe uma carta para você”, disse ela entregando-a para Ka.
Ka pegou a carta, jogou-a num canto sem nem ao menos olhar. “Estou tão feliz”, disse ele.
Ele sempre pensara que só pessoas vulgares diziam coisas como “Estou tão feliz”, mas quando o disse naquele momento, não sentiu a menor vergonha.
“Entre”, disse ele a Ipek. “Você está muito bonita.”
Ipek entrou tranqüilamente, à vontade, como se conhecesse os quartos do hotel tão bem como a sua casa. O tempo que passaram separados pareceu a Ka apenas ter aumentado a intimidade entre eles.
“Não sei dizer como aconteceu”, disse Ka, “mas é possível que este poema tenha vindo para mim graças a você.”
“O estado do diretor do Instituto de Educação piorou”, disse Ipek.
“E uma boa notícia, considerando-se que já o julgávamos morto.”
“A polícia está ampliando a sua área de buscas. Eles já deram uma batida nos alojamentos de estudantes da universidade, e agora estão nos hotéis. Eles vieram aqui, olharam nossos livros e perguntaram por cada um de nossos hóspedes.”
“O que você disse sobre mim? Você lhes disse que vamos nos casar?”
“Você é um encanto, mas minha cabeça agora está em outras coisas. Acabamos de ouvir que pegaram Muhtar e o espancaram. Mas parece que depois o liberaram.”
“Muhtar me pediu que lhe desse um recado: está disposto a qualquer coisa para se casar com você novamente. Pede mil desculpas por ter tentado obrigá-la a cobrir a cabeça.”
“Muhtar já me disse isso, ele diz isso todo dia”, disse Ipek. “O que você fez depois que a polícia liberou você?”
“Andei pela cidade”, disse Ka. Ele teve um momento de indecisão.
“Vamos, conte-me.”
“Levaram-me até Azul. Disseram-me que não contasse a ninguém.”
“Então você não devia fazer isso”, disse Ipek. “E você não deve dizer nada a Azul sobre nós nem sobre meu pai.”
“Você o conheceu?”
“Durante um certo tempo Muhtar esteve encantado com Azul, então ele veio algumas vezes à nossa casa. Mas quando Muhtar entendeu que queria uma forma de islamismo mais moderada e mais democrática, Azul se afastou.”
“Ele disse que veio para cá por causa das jovens suicidas.”
“Você deve temer por ter ouvido isso, e não conte a mais ninguém”, disse Ipek. “É muito provável que o esconderijo de Azul esteja sob escuta da polícia.”
“Então por que não o prendem?”
“Eles o farão quando lhes parecer conveniente.”
“Por que você e eu simplesmente não vamos embora desta cidade agora mesmo?”, disse Ka.
Ka notou ascender dentro de si aquele sentimento que experimentava sempre desde criança e quando jovem em momentos de extraordinária felicidade: a antecipação de uma angústia e de um desespero por vir.
Em pânico, procurou pôr fim àquele momento feliz: assim esperava poder diminuir a infelicidade que estava certo de que iria se abater sobre ele depois. A maneira mais segura de se acalmar, pensou, era simplesmente aceitar o inevitável: que o amor que sentia por Ipek — a fonte de sua ansiedade — seria sua perdição; que qualquer intimidade que pudesse desfrutar com ela iria dissolvê-lo como o sal dissolve o gelo; que não merecia aquela felicidade, mas apenas a desgraça e a difamação que se seguiriam. Preparou-se para isso.
Mas não foi o que aconteceu. Em vez disso, Ipek o envolveu em seus braços. Primeiro se abraçaram, depois o abraço amistoso tornou-se apaixonado; começaram a se beijar e logo estavam deitados lado a lado na cama. Seu pessimismo nada podia contra a excitação sexual. Logo se deixou dominar por um desejo intenso; em breve, sonhava ele, estariam tirando as roupas um do outro e fazendo amor por horas e horas.
Mas Ipek se levantou. “Acho você muito atraente, e eu também quero fazer amor, mas faz três anos que não fico com ninguém e não estou preparada”, disse ela.
Há quatro anos não faço amor com ninguém, Ka disse para si mesmo. E teve certeza de que Ipek podia ler aquelas palavras em seu rosto.
“E mesmo que estivesse”, disse Ipek, “eu nunca poderia fazer amor tendo meu pai tão perto, na mesma casa.”
“Seu pai precisa estar fora do hotel para você ficar nua na cama comigo?”, perguntou Ka.
“Sim. E ele raramente sai do hotel. Não gosta muito das ruas geladas de Kars.”
“Está bem, então, não vamos fazer amor agora, mas vamos nos beijar mais um pouco”, disse Ka.
“Está bem.”
Ipek inclinou-se para Ka, que estava sentado na beira da cama, e lhe deu um longo e sério beijo antes de permitir que ele se aproximasse.
“Deixe-me ler meu poema para você”, disse quando teve certeza de que o beijo terminara. “Você não quer saber como ele é?”
“Primeiro leia essa carta. Um jovem entregou na porta.”
Ka abriu a carta e leu-a em voz alta.
Ka, meu caro filho:
“Se você preferir que não o chame de filho, apresento-lhe minhas sinceras desculpas. Na noite passada eu o vi em sonhos. Nevava em meu sonho, e cada floco de neve que caía na terra brilhava com divino esplendor. Perguntei a mim mesmo se seria um sinal, e então esta tarde vi lá fora a mesma neve que vira em meu sonho caindo bem na frente da minha janela. Você passou pela minha humilde casa, na rua Baytarhane, número 18. Nosso querido amigo Muhtar, que Deus Onipotente acaba de submeter a uma severa prova, explicou-me o sentido que você vê nessa neve. Somos peregrinos na mesma estrada. Estou esperando pelo senhor.
Assinado:
Saadettin Cevher”
“O sheik Saadettin”, disse Ipek. “Procure-o imediatamente. Então você vai poder voltar e jantar com meu pai esta noite.”
“Eu tenho de apresentar meus cumprimentos a cada lunático de Kars?”
“Eu lhe disse para tomar cuidado com Azul; não se apresse tanto em dispensá-lo, tomando-o por um lunático. O sheik também é hábil, e não é estúpido.”
“Quero esquecer tudo sobre eles. Posso ler meu poema agora?”
“Vá em frente.”
Ka sentou-se na mesinha e começou a ler numa voz agitada mas confiante, e então parou. “Vá até ali”, disse ele a Ipek. “Quero ver o seu rosto enquanto leio.” Quando teve certeza de que podia vê-la com o canto dos olhos, recomeçou a ler o poema. “E bonito?”, perguntou Ka a ela, momentos depois.
“Sim, é bonito!”, disse Ipek.
Ka leu mais alguns versos em voz alta e perguntou novamente: “É bonito?”.
“Sim, é bonito”, respondeu Ipek.
Quando ele terminou de ler o poema, perguntou: “Então, o que faz a beleza deste poema?”.
“Não sei”, respondeu Ipek. “Mas achei bonito.”
“Muhtar algum dia leu um poema como esse para você?”
“Nunca”, disse ela.
Ele começou a ler o poema em voz alta novamente, dessa vez com mais força, mas parou novamente nos mesmos versos para perguntar “E bonito?”. Ele parou também em outros versos para dizer “É mesmo muito bonito, não é?”.
“Sim, é muito bonito”, respondia Ipek.
Ka estava tão feliz que sentia (como havia sentido apenas uma vez antes, no começo de sua carreira, quando escreveu um poema para uma criança) como se uma estranha e bela luz o envolvesse, e vendo num raio dessa luz a imagem de Ipek, sentiu-se ainda mais feliz. Tomando aquilo como um sinal de que as regras foram suspensas, começou a abraçar Ipek de novo, mas então ela se afastou com suavidade.
“Escute. Vá imediatamente até o nosso querido sheik. Ele é considerado uma pessoa muito importante aqui, muito mais importante do que você imagina; muita gente nesta cidade vai visitá-lo, mesmo pessoas que se consideram seculares, muitos oficiais do exército. Dizem até que a esposa do governador vai lá, e muita gente rica, muitos soldados. Ele está do lado do Estado. Quando ele disse que as universitárias deviam descobrir a cabeça, o Partido da Prosperidade não deu um pio. Num lugar como Kars, quando um homem poderoso como esse lhe faz um convite, você não o recusa.”
“Foi você quem mandou o pobre Muhtar visitá-lo?”
“Você está com medo de que o sheik descubra um lado devoto em você e o mande de volta ao aprisco a toque de caixa?”
“Estou muito feliz agora, não tenho necessidade de religião”, disse Ka. “E, de qualquer forma, não foi isso que me fez voltar à Turquia. Só uma coisa poderia trazer-me de volta: seu amor... Nós vamos nos casar?”
Ipek sentou-se na beira da cama. “Ora, vá”, disse ela. Ela lhe deu um sorriso caloroso e sedutor. “Mas tenha cuidado. Não há ninguém melhor que ele para descobrir um ponto fraco em sua alma e, como um gênio, ele vai penetrar em seu íntimo.”
“O que ele vai fazer comigo?”
“Ele vai falar com você, e de repente se jogará no chão. Vai tomar uma coisa qualquer que você disser e dirá o quanto é sábia; insistirá em que você é uma pessoa autêntica. A essa altura algumas pessoas chegam a pensar que ele as está ridicularizando. Mas esse é o talento especial de sua excelência. Ele o faz de forma tão convincente que você acaba acreditando na sua sinceridade quando ele disse que suas palavras são sábias e que, como você, acredita de todo o coração. Ele age como se houvesse algo de grande dentro de você. Depois de algum tempo, você também começa a ver essa beleza interior, e como nunca a percebeu, você pensa que deve ser a presença de Deus, e isso o faz feliz. Em outras palavras, o mundo se torna um belo lugar quando se está perto desse homem. E você vai amar o nosso estimado sheik porque ele lhe proporcionou essa felicidade. Durante todo esse tempo, outra voz fica sussurrando dentro de você que tudo não passa de um jogo do sheik e que você é um pobre idiota. Mas até onde posso imaginar, pelo que Muhtar me disse, a essa altura já não se tem a força para ser esse pobre idiota. Você está tão desgraçadamente infeliz que só quer que Deus o salve. Então, sua cabeça — que nada sabe dos desejos de sua alma — resiste um pouco, mas não o bastante; você toma então a estrada indicada pelo sheik, porque é a única estrada do mundo que o fará erguer-se sobre as próprias pernas. O maior talento do sheik efêndi é fazer o desgraçado que está à sua frente sentir-se especial. Para a maioria dos homens de Kars, é como se isso fosse um milagre, pois sabem muito bem que ninguém mais na Turquia pode ser mais desgraçado, pobre e fracassado do que eles. Então começa-se a acreditar primeiro no sheik, depois nos ensinamentos há muito esquecidos da sua fé islâmica. Ao contrário do que pensam na Alemanha e do que dizem os intelectuais secularistas, isso não é ruim. Você se torna igual a qualquer um, você pode se sentir fazendo parte do povo e, ainda que seja por um breve período de tempo, você consegue se livrar da infelicidade.”
“Eu não estou infeliz”, disse Ka.
“Na verdade, alguém tão infeliz não é de modo algum infeliz. Mesmo as pessoas mais angustiadas têm consolos e esperanças ocultas que acalentam secretamente. Não é como em Istambul; não existem descrentes zombeteiros. Aqui as coisas são mais simples.”
“Eu vou lá agora, mas só porque você quer que eu vá. Onde fica a rua Baytarhane? Quanto tempo devo ficar lá?”
“Fique até encontrar algum consolo!”, disse Ipek. “E não fique com medo de acreditar.” Ela ajudou Ka a vestir o casaco. “Seu conhecimento do islã está em dia?”, perguntou ela. “Você se lembra das preces que aprendeu na escola primária? Você pode se confundir.”
“Quando eu era criança, nossa criada costumava me levar à mesquita de Tesvikiye”, disse Ka. “Ela ia à mesquita mais para se encontrar com as outras criadas que para rezar. Enquanto esperavam o começo das orações, elas se entregavam a longos mexericos, e eu ficava fazendo piruetas nos tapetes com as outras crianças. Na escola, eu decorava todas as orações para ficar bem com o professor — ele nos ajudava a decorar o fatiha nos batendo, puxando-nos os cabelos, apertando nossas cabeças contra o tampo de nossas carteiras onde o ‘livro sagrado’ estava aberto. Aprendi tudo o que eles ensinaram sobre o islã, mas esqueci. Agora é como se tudo o que sei sobre o Corão viesse de Maomé, o mensageiro de Alá, aquele filme com Anthony Quinn.” Ka sorriu. “Estava passando há pouco tempo no canal turco na Alemanha — mas, sabe-se lá por quê, em versão alemã. Você vai estar aqui esta noite, não é?”
“Sim.”
“Porque eu quero ler meu poema para você outra vez”, disse Ka, enquanto punha o caderno no bolso. “Você não acha que ele é bonito?”
“Sim, é bonito mesmo.”
“O que há de bonito nele?”
“Não sei, é bonito e pronto”, disse Ipek. Ela abriu a porta para sair.
Ka envolveu-a com os braços e beijou-a na boca.
Ka com o sheik efêndi
Ka saiu do hotel a toda pressa; muitas pessoas me disseram depois que se lembravam de tê-lo visto correndo pela neve, sob uma longa fileira de bandeirolas de propaganda eleitoral, em direção à rua Baytarhane. Ele estava tão feliz que, exatamente como nos momentos mais alegres de sua infância, dois filmes estavam passando simultaneamente no cinema de sua imaginação. No primeiro, ele estava em algum lugar da Alemanha — mas não em sua casa em Frankfurt — fazendo amor com Ipek. O filme dava guinadas, e às vezes o lugar onde eles estavam fazendo amor era o quarto do hotel. Na segunda tela imaginária, ele via palavras e visões relacionadas aos dois últimos versos de seu poema “Neve”.
Ele parou primeiro no Café Campos Verdejantes para se informar sobre como chegar à rua. Lá, inspirado pela fileira de garrafas na prateleira ao lado do retrato de Atatürk e das paisagens suíças, sentou-se a uma mesa e — com a determinação de um homem com muita pressa — pediu um raki duplo, uma porção de queijo branco e grãos-de-bico torrados. Segundo o anunciante da televisão, os preparativos para a primeira transmissão ao vivo de Kars estavam quase completos, apesar da intensa nevasca; seguiu-se um resumo das notícias locais e nacionais. Pelo visto, no interesse da paz e para evitar maiores problemas para o subprefeito, as autoridades tinham ligado para a emissora para impedi-la de noticiar o atentado contra o diretor do Instituto de Educação. Enquanto ouvia aquilo, Ka engoliu o raki duplo como um copo de água.
Depois de enxugar um terceiro raki, ele se dirigiu à residência temporária do sheik; quatro minutos depois, a porta foi aberta pelo controle situado no piso superior. Enquanto subia a escadaria, degrau por degrau, lembrou-se de que ainda trazia no bolso do casaco o poema de Muhtar, “A escadaria”. Tinha certeza de que tudo correria bem ali, mas ainda assim sentia aquele friozinho na espinha que uma criança sente a caminho do consultório médico, mesmo quando tem certeza de que não vai tomar uma injeção. Quando chegou ao alto da escada, arrependeu-se de ter vindo.
Ka não teve dúvida de que o sheik percebeu o medo em seu coração no momento em que apareceu. Mas havia algo no sheik que o impediu de se sentir envergonhado. Na parede do patamar da escada, havia um espelho numa moldura de nogueira entalhada. Foi nesse espelho que Ka viu, de relance, o sheik efêndi pela primeira vez. A própria casa estava tão abarrotada que a sala transpirava calor dos hálitos e dos corpos. Um instante depois, ele se viu beijando a mão do sheik, antes mesmo de ter tempo de dar ao menos uma olhada em volta ou ver quem mais estava na sala.
Havia umas vinte outras pessoas, que tinham vindo assistir à cerimônia simples que se fazia toda terça-feira, para ouvir conselhos do sheik e desabafar as mágoas. Uns cinco ou seis eram comerciantes, proprietários de casas de chá ou de laticínios, que aproveitavam qualquer oportunidade para estar com o sheik, pois isso os fazia felizes; havia também um jovem paraplégico, um gerente de empresa de ônibus estrábico, um homem idoso amigo do gerente, um vigia noturno da companhia de eletricidade, um homem que trabalhara como porteiro do hospital de Kars durante quarenta anos e mais alguns.
Vendo o embaraço no semblante de Ka, o sheik se curvou para beijar a sua mão. Havia algo quase pueril naquele gesto: era como se ele estivesse apresentando seus cumprimentos. E embora aquilo fosse exatamente o que Ka esperava que o sheik fizesse, o gesto não deixou de lhe causar espanto. Cientes de que todos os demais presentes os estavam observando, os dois homens começaram a conversar.
“Deus o abençoe por ter aceitado meu convite”, disse o sheik. “Eu o vi em meu sonho. Estava nevando.”
“Eu vi vossa excelência em meu sonho”, disse Ka. “Vim aqui em busca da felicidade.”
“Alegra-nos saber que foi em Kars que teve origem sua felicidade”, disse o sheik.
“Este lugar, esta cidade, esta casa... elas me dão medo”, disse Ka, “porque todos vocês me parecem estranhos. Porque sempre evitei essas coisas. Nunca desejei beijar a mão de ninguém — ou deixar que alguém beijasse a minha.”
“Parece que você fala de forma mais franca da beleza que há dentro de você com nosso irmão Muhtar”, disse o sheik. “Diga-nos então, o que essa bendita nevada o faz lembrar?”
Na ponta do sofá em que o sheik estava sentado, logo à direita do canto da janela, agora Ka viu Muhtar. Havia alguns curativos em sua testa e em seu nariz. Para esconder as manchas roxas em volta dos olhos, ele usava grandes óculos escuros como os dos velhos que ficaram cegos por causa da varíola. Ele sorria para Ka, mas sua expressão estava longe de ser amistosa.
“A neve me fez lembrar Deus”, disse Ka. “A neve me fez lembrar a beleza e o mistério da criação, a alegria essencial que é a vida.”
Ele ficou em silêncio por um momento; todos os olhos na sala apinhada continuavam fixos nele. Vendo o sheik tão sereno como sempre, Ka se aborreceu.
“Por que me convocou para vir aqui?”, perguntou ele.
“Por favor, não diga uma coisa dessas!”, exclamou o sheik. “Depois que Muhtar bei nos contou o que você disse a ele, pareceu que você queria abrir seu coração para nós, falar conosco, encontrar um amigo.”
“Está bem, então vamos conversar”, disse Ka. “Antes de vir para cá, tomei três copos de raki.”
“Mas por que você está com tanto medo de nós?”, perguntou o sheik arregalando os olhos, como se estivesse surpreso; ele era apenas um amável homem gordo. Todos à sua volta tinham no rosto o mesmo sorriso franco. “Não quer nos dizer por que tem tanto medo de nós?”
“Eu vou lhe dizer, mas não quero que me leve a mal.”
“Não vamos levar a mal”, disse o sheik. “Por favor, venha para cá, sente ao meu lado. E muito importante saber por que está com medo de nós.”
A expressão do sheik era meio séria, meio jocosa, pronta para fazer seus discípulos rirem de uma hora para outra. Ka gostou do jeito dele, e, logo que sentou ao seu lado, sentiu-se tentado a imitá-lo.
“Sempre desejei que este país prosperasse, se modernizasse... Eu desejei liberdade para seu povo”, disse Ka. “Mas me parecia que nossa religião sempre estava contra tudo isso. Talvez eu esteja enganado. Peço desculpas. Talvez eu esteja confessando isso porque bebi demais.”
“Por favor, não diga uma coisa dessas!”
“Cresci em Istambul, em Nisantas, entre gente da sociedade. Eu queria ser como os europeus. Não conseguia ver como poderia conciliar essa minha nova identidade européia com um Deus que exigia que as mulheres se cobrissem com mantos, então tratei de excluir a religião de minha vida. Mas quando fui para a Europa, entendi que lá poderia haver um Alá diferente do Alá dos reacionários barbados provincianos.”
“Na Europa eles têm um Deus diferente?”, perguntou o sheik em tom de brincadeira, dando um tapinha nas costas de Ka.
“Eu quero um Deus que não me peça para tirar os sapatos em sua presença e que não me obrigue a me pôr de joelhos para beijar a mão das pessoas. Eu quero um Deus que entenda minha necessidade de solidão.”
“Só existe um Deus”, disse o sheik. “Ele vê tudo e entende a todos — mesmo sua necessidade de solidão. Se você acreditasse nele, se você soubesse que ele entende sua necessidade de solidão, não ia se sentir tão sozinho.”
“Isso é verdade, excelência”, disse Ka, sentindo como se na verdade estivesse falando para todos os que estavam na sala. ‘ É por ser solitário que não consigo acreditar em Deus. E como não posso acreditar em Deus, não posso livrar-me da solidão. Que devo fazer?”
Embora ele estivesse embriagado e inesperadamente satisfeito por estar falando com tanta coragem com um sheik de verdade, uma parte dele ainda sabia que estava entrando num terreno perigoso; por isso, quando o sheik ficou em silêncio, ele sentiu medo.
“Você quer mesmo que eu o oriente?”, perguntou o sheik. “Nós somos essas pessoas que você acaba de mencionar: reacionários provincianos barbudos. Mesmo que raspemos a barba, não há cura para o provincianismo.”
“Eu também sou provinciano, e quero me tornar ainda mais provinciano. Quero ser esquecido no mais remoto e desconhecido canto do mundo, sob um lençol de neve”, disse Ka.
Ele beijou a mão do sheik novamente. Quando ele viu como lhe era fácil fazer aquilo, sentiu-se satisfeito consigo mesmo. Mas uma parte de sua cabeça ainda funcionava de forma diferente, à maneira ocidental, por isso ao mesmo tempo ele se desprezava.
“Espero que me perdoe, mas antes de vir aqui eu bebi”, repetiu ele. “Eu me sentia culpado por ter-me recusado, durante toda a minha vida, a acreditar no mesmo Deus das pessoas não instruídas — as tias com a cabeça coberta com mantos, os tios com rosários de contas nas mãos. Havia muito orgulho na minha recusa em acreditar em Deus. Mas agora eu quero acreditar num Deus que faz essa bela neve cair do céu. Existe um Deus que concede toda a atenção à simetria oculta do mundo, um Deus que nos fará a todos mais civilizados e aperfeiçoados.”
“Claro que existe, meu filho”, disse o sheik.
“Mas esse Deus não está entre vocês. Ele está lá fora, na noite vazia, na escuridão, na neve que cai no coração dos proscritos.”
“Se você quer encontrar Deus por seus próprios meios, vá em frente — vá para a escuridão, deleite-se com a neve, use-a para se encher com o amor de Deus. Não temos nenhum desejo de desviar você desse caminho. Mas não se esqueça de que homens arrogantes que se atribuem um grande valor terminam sozinhos. Deus não tem tempo para orgulho. Foi o orgulho que expulsou Satã do céu.”
Mais uma vez, Ka sentiu-se dominar pelo medo de que tanto se envergonharia depois. Temia pelo que certamente iriam dizer dele quando fosse embora. Ele estava prestes a beijar a mão do sheik novamente, mas mudou de idéia. Tinha certeza de que todos à sua volta sabiam quão confuso, e quão bêbado, ele estava, e o desprezavam por isso. “Eu quero acreditar no Deus em que você acredita e ser como você, mas como em mim há um ocidental, minha cabeça está confusa.”
“Se as suas intenções são tão sinceras, isso é um bom começo”, disse o sheik. “A primeira coisa que você precisa aprender é a humildade.”
“Como posso fazer isso?”, perguntou Ka. Mais uma vez, ele sentia o diabo zombeteiro dentro de si.
“Depois da refeição da noite, todos os que querem falar comigo vêm me encontrar neste canto, nesse sofá em que você está sentado agora”, disse o sheik. “Cada um aqui é um irmão.”
E então Ka se deu conta de que a grande aglomeração de homens sentados nas cadeiras e nas almofadas em volta dele na verdade formava uma fila para sentar-se naquele canto do sofá. Imaginou que o que o sheik mais queria dele era o respeito àquela fila imaginária, então o melhor a fazer seria ir para o fim da fila e esperar pacientemente como um europeu; tendo isso em mente, ele se pôs de pé, beijou a mão do sheik mais uma vez e foi sentar-se numa almofada do outro lado da sala.
Sentado ao seu lado estava um homem baixo e amável, com molares cobertos de ouro, que trabalhava numa das casas de chá da avenida Inönü. Tão baixinho era o homem e tão aturdido estava Ka que se pegou perguntando-se se o homem viera ver o sheik para se curar do nanismo. Quando ele era criança em Nisantas, havia um anão muito elegante que ia toda noite até os ciganos na praça para comprar um buquê de violetas e um único cravo. O homenzinho disse a Ka que o vira passando na frente de sua casa de chá mais cedo, naquele mesmo dia; lamentou o fato de Ka não ter entrado e ficaria feliz se desse um pulinho lá no dia seguinte. A essa altura o gerente da empresa de ônibus e seu amigo idoso entraram na conversa; baixinho, disse a Ka que passara maus momentos por causa de uma jovem — ele se entregara à bebida, tornando-se rebelde a ponto de não ter mais olhos para Deus — mas finalmente conseguira deixar tudo para trás. Antes que Ka pudesse perguntar “Você se casou com a jovem?”, o gerente da empresa de ônibus acrescentou “Terminamos por perceber que a jovem não era boa para nós”.
Então o sheik disse algumas palavras contra o suicídio. Os homens próximos a ele ouviram em silêncio, alguns acenando com a cabeça em sinal de assentimento, enquanto os três que estavam no canto continuaram aos cochichos.
“Houve mais alguns suicídios”, disse o homenzinho, “mas o Estado resolveu não nos dizer, pela mesma razão que decide não nos dizer quando a temperatura está caindo — eles não querem nos assustar. Mas eis a verdadeira razão para essa onda de suicídios: é porque estão vendendo essas moças a velhos funcionários, homens a quem elas não amam.”
O gerente da empresa de ônibus discordou. “Quando minha mulher me conheceu”, disse ele, “também não me amava.” Ele então falou que a onda de suicídios se devia a vários fatores: desemprego, preços altos, imoralidade e falta de fé, por exemplo. Como concordava com tudo o que ambos os homens diziam, Ka começou a se sentir hipócrita. Quando o mais velho começou a cabecear de sono, o gerente estrábico o acordou.
Houve um longo silêncio. Uma grande sensação de paz tomou conta de Ka. Eles estavam tão longe do centro do mundo que nem lhes era possível imaginar ir até lá. Enquanto se deixava fascinar pelos flocos de neve que pareciam pairar lá no céu, Ka começou a se perguntar se entrara num mundo sem gravidade.
Quando já mais ninguém prestava atenção a Ka, veio-lhe um outro poema. Ele estava com seu caderno e, como aconteceu com o primeiro poema, ele se entregou totalmente à voz que soava dentro de si, mas dessa vez escreveu todos os trinta e seis versos do poema de uma vez só. Como sua cabeça ainda estava enevoada por causa da bebida, ele não podia julgar se o poema tinha algum valor. Mas quando uma nova onda de inspiração o arrebatou, ele se pôs de pé e, depois de se desculpar com o sheik, saiu depressa da sala; quando se sentou nos degraus para ler o que escrevera, pôde perceber que aquele poema, como o primeiro, era perfeito.
O poema inspirava-se nos acontecimentos que Ka acabara de viver e testemunhar. Quatro versos mencionam uma conversa com um sheik sobre a existência de Deus; há também referências ao olhar envergonhado de Ka em seguida à sua menção do Deus do homem sem instrução, algumas propostas relativas à solidão, a simetria oculta do mundo e a criação da vida; há um homem com dentes de ouro, um estrábico e um anão gentil com um cravo na mão, todos ao seu lado, contando a história de suas vidas.
Perturbado com a beleza de suas próprias palavras, Ka não pôde deixar de se perguntar “O que significa tudo isso?”. Parecia ser um poema que outra pessoa escrevera — era por isso, pensou ele, que conseguia ver sua beleza. Mas ao mesmo tempo, achá-lo bonito era um verdadeiro choque, considerando o seu conteúdo, considerando sua própria vida. Como entender a beleza desse poema?
A luz da escadaria desligou automaticamente e ele ficou mergulhado na escuridão. Quando encontrou o botão e ligou novamente a luz, deu uma última olhada no caderno, e lhe ocorreu o título: “Simetria oculta”. Mais tarde apontou a rapidez com que aquilo acontecera como uma prova de que aquele e todos os outros poemas que se seguiram não eram — assim como o próprio mundo — criação sua. Com isso em mente, ele iria movê-lo para a posição do primeiro poema, para o eixo da razão.
A triste história de Necip e Hicran
Ao sair da casa de sua excelência, Ka tomou o caminho do hotel, e enquanto avançava penosamente na neve, seus pensamentos se voltaram para Ipek. Não iria demorar para vê-la, pensou. Na avenida HalitPasa, passou primeiro por um grupo de pessoas que faziam campanha pelo Partido do Povo, depois por um grande grupo de estudantes que voltava do curso pré-vestibular. Os estudantes conversavam sobre o que iriam ver na televisão aquela noite e como fora fácil enganar o professor de química; eles cutucavam uns aos outros tão impiedosamente quanto Ka e eu na idade deles.
Ka viu uma mãe e um pai levando pela mão o filho, que estava aos prantos. Acabavam de sair de um edifício onde tinham ido ao dentista com a criança. Pelas roupas que usavam percebia-se que o casal mal tinha meios para sobreviver, mas decidira que o querido filho não iria a um serviço público de saúde, mas consultar um dentista particular, esperando que o tratamento fosse menos doloroso. Pela porta aberta de uma loja que vendia meias femininas, tecidos de algodão, lápis de cor, pilhas e fitas de áudio, ouviu mais uma vez a canção de Pepino di Capri, “Roberta”, e se lembrou de tê-la ouvido no rádio quando era criança, numa ocasião em que seu tio fora passear com ele às margens do Bósforo.
Como seu coração começasse a planar alto, Ka teve impressão de que um novo poema estava a caminho, entrou na primeira casa de chá que encontrou e, sentando-se à primeira mesa vazia, pegou o lápis e o caderno.
Depois de fitar com olhos marejados a página vazia por algum tempo, reconsiderou aquela impressão: na verdade, nenhum poema estava a caminho, mas aquilo não o desanimou nem um pouco. A casa de chá estava lotada de desempregados e estudantes, e, ao seu redor, as paredes se mostravam todas cobertas não apenas de paisagens suíças mas também com cartazes de teatro, cartuns de jornal, recortes variados, um edital de um concurso público e uma tabela dos jogos de futebol a serem disputados pela equipe de Kars naquele ano. O resultado das partidas já realizadas — na maioria das quais o time perdera — estava escrito em diferentes caligrafias; ao lado dos 6 a 1 para a equipe de Erzurum, alguém escreveu os versos que Ka incorporaria ao “Toda a humanidade e as estrelas”, o poema que escreveria no dia seguinte, sentado a uma mesa da Casa de Chá Irmãos Felizes:
Mesmo que sua mãe descesse do céu para pegá-lo nos braços,
Mesmo que seu pai malvado a deixasse ir sem uma surra ao menos por uma noite,
Ainda assim você ia continuar sem tostão, sua merda congelaria, sua alma murcharia, não há esperança!
Se você tem o azar de viver em Kars, melhor é dar descarga e descer vaso abaixo.
Ele sorria contente enquanto copiava esses versos no caderno, quando Necip, que estava numa mesa do fundo, se juntou a ele. Por sua expressão, dava para perceber que estava espantado de ver Ka naquele lugar e parecendo tão satisfeito.
“Estou tão feliz por você estar aqui”, disse Necip. “Você está escrevendo um poema? Queria pedir desculpas por meus amigos, principalmente pelo que o chamou de ateu. É a primeira vez na vida deles que se vêem frente a frente com um não-crente. Mas me parece que você não poderia ser de fato ateu, porque é uma pessoa muito boa.” Ele disse mais algumas coisas que não conseguira dizer antes: ele e seus amigos tinham faltado à aula para assistir ao show no teatro naquela noite, mas iam se sentar bem no fundo, porque naturalmente não queriam ser vistos na televisão pelo diretor da escola. Necip estava feliz e orgulhoso por ter matado aula para ir encontrar os amigos no Teatro Nacional. Todos eles sabiam que Ka ia recitar um poema no teatro. Todo mundo em Kars escrevia poemas, mas Ka era a primeira pessoa que Necip conhecera a ter seus poemas publicados. Ele podia oferecer um chá a Ka?
Ka explicou que estava sem tempo.
“Nesse caso, só vou lhe fazer uma pergunta, uma última pergunta”, disse Necip. “Não sou como meus amigos, não estou querendo desrespeitar você. Só estou com muita curiosidade.”
“Sim.”
Necip acendeu um cigarro com mãos trêmulas. “Se Deus não existe, isso significa que o céu também não existe. E isso significa que os pobres do mundo, esses milhões que vivem na pobreza e na opressão, nunca irão para o céu. E se é assim, então como você explica todo o sofrimento dos pobres? Para que estamos aqui, e por que temos de suportar tanto sofrimento, se é tudo em vão?”
“Deus existe. E o céu também.”
“Não, você está dizendo isso só para me confortar, porque você sente pena de nós. Tão logo esteia de volta à Alemanha, vai começar a pensar que Deus não existe, como fez antes.”
“Pela primeira vez em muitos anos, estou muito feliz”, disse Ka. “Por que eu não posso acreditar nas mesmas coisas que você?”
“Porque você pertence à intelligentsia”, disse Necip. “As pessoas da intelligentsia nunca acreditam em Deus. Elas acreditam naquilo em que os europeus acreditam, e se acham melhores do que as pessoas comuns.”
“Eu posso pertencer à intelligentsia da Turquia”, disse Ka. “Mas na Alemanha sou um zero à esquerda. Lá eu estava me acabando.”
Os belos olhos de Necip voltaram-se para dentro, e era evidente para Ka que o jovem estava refletindo sobre seu caso, tentando se colocar em seu lugar. “Então por que você ficou irritado com seu país e fugiu para a Alemanha?”, perguntou. Vendo o rosto de Ka murchar, ele disse: “Não se preocupe! De qualquer jeito, se eu fosse rico, teria tanta vergonha de minha situação que iria acreditar mais ainda em Deus.”
“Um dia, se Deus quiser, todos seremos ricos”, disse Ka.
“Não é tão simples como você diz — é isso que eu acho. Tampouco sou tão ingênuo assim, e não quero ser rico. O que eu quero é ser escritor. Estou escrevendo um romance de ficção científica. Ele pode ser publicado — num dos jornais de Kars, o Lança —, mas não quero ser publicado num jornal que vende setenta e cinco exemplares; quero ser publicado num jornal de Istambul, que vende milhares. Tenho um resumo do romance aqui comigo. Se eu o ler para você, você pode me dizer se acha que tem condição de ser publicado num jornal de Istambul?”
Ka consultou o relógio.
“É bem curto”, disse Necip.
As luzes se apagaram, e toda a cidade mergulhou na escuridão. A única luz na casa de chá era a do aquecedor. Necip correu até o balcão e pegou uma vela. Acendeu-a, fixou-a num prato com algumas gotas de cera e o pôs sobre a mesa. Tirando algumas folhas de papel amassado do bolso, começou a ler numa voz hesitante, parando de vez em quando para engolir em seco, excitado.
“No ano 3579 havia um planeta vermelho que ainda não tínhamos descoberto. Seu nome era Gazzali, seu povo era rico, e sua vida era muito mais fácil que as nossas atualmente, mas ao contrário do que os materialistas poderiam imaginar, suas vidas ricas e fáceis não proporcionavam nenhuma satisfação espiritual aos habitantes do planeta. Ao contrário, todos viviam angustiados com a questão do ser e do nada, do homem e o universo, de Deus e seu povo.
“E então aconteceu que muitos gazzalianos viajaram para o mais remoto canto de seu planeta para fundar o Liceu Islâmico para o Estudo da Ciência e da Oração. Eles aceitavam apenas os alunos mais inteligentes e mais aplicados.
“Dois amigos íntimos freqüentavam esse liceu. Inspirados em livros escritos mil e seiscentas anos antes, livros que esclareciam tão maravilhosamente a questão Oriente-Ocidente que poderiam ter sido escritos no dia anterior, eles se chamavam um ao outro Necip e Fazil. Juntos liam e reliam O Grande Oriente, o mais perfeito livro de seu venerado mestre, e à noite se encontravam secretamente na cama de Fazil, que era a de cima do beliche, onde, sob as cobertas, ficavam deitados lado a lado, olhando os flocos de neve azuis caírem no teto de vidro acima deles, desaparecendo como se fossem planetas. Então cochichavam ao ouvido um do outro sobre o sentido da vida e sobre as coisas que esperavam fazer quando ficassem mais velhos.
“Os maldosos tentavam em vão conspurcar aquela amizade pura com piadinhas maliciosas, inspiradas pela inveja. Mas um dia uma sombra caiu sobre eles. Aconteceu que os dois apaixonaram-se ao mesmo tempo pela mesma jovem, uma donzela chamada Hicran. Mesmo quando descobriram que o pai de Hicran era ateu, não conseguiram se curar de seu desesperado anelo; muito ao contrário, seu amor se tornou ainda mais intenso.
“E foi assim que ambos chegaram à conclusão de que não havia mais lugar em Gazzali para os dois; no fundo do coração sabiam que um deles teria de morrer. Mas então fizeram o seguinte pacto: depois de passar algum tempo no outro mundo, independentemente de quantos anos-luz distasse deste mundo, aquele que morresse deveria voltar a este mundo para visitar o amigo ainda vivo, e responder a suas perguntas mais urgentes — sobre a vida após a morte.
“Quanto à questão de quem mataria quem e de como se faria isso, eles não conseguiram chegar a uma decisão — principalmente porque ambos sabiam que a verdadeira felicidade só seria possível para aquele que sacrificasse a própria vida pela do outro. Então, por exemplo, se um deles — digamos que fosse Fazil — dissesse Vamos enfiar a mão em soquetes ao mesmo tempo para nos eletrocutarmos’, Necip logo veria o que estava acontecendo: um esperto truque que Fazil inventara para se sacrificar pelo amigo (com toda a certeza, Fazil tomaria providências para que o soquete de Necip estivesse desconectado). Depois de muitos meses de hesitações, meses que lhes causaram muito sofrimento, o problema foi resolvido em questão de segundos: ao voltar de suas aulas noturnas, Necip encontrou seu querido amigo morto em sua cama, crivado de balas.
“No ano seguinte, Necip se casou com Hicran, e, na noite do casamento, contou-lhe o que se passara entre ele e seu amigo e que um dia Fazil iria voltar do mundo dos espíritos. Hicran lhe contou que na verdade amara Fazil; depois da sua morte ela chorara durante dias, chorara tanto que correra sangue dos seus olhos, e só se casara com Necip porque era amigo de Fazil e havia entre eles uma certa semelhança. Decidiram não consumar o casamento e manter essa decisão até Fazil voltar do outro mundo.
“Com o passar dos anos, porém, começaram a se desejar. Primeiro era uma atração espiritual, depois tornou-se física. Certa noite, durante uma inspeção interplanetária, quando apontavam seus fachos de luz para uma cidade da Terra conhecida pelo nome de Kars, eles não conseguiram mais se controlar — caíram um nos braços do outro, como loucos, e se amaram apaixonadamente. Vocês podem pensar que isso significa que tinham esquecido Fazil, cuja lembrança por tanto tempo os atormentou como uma dor de dente. Mas não o tinham esquecido, e a vergonha em seus corações os alarmava à medida que crescia a cada dia.
“Certa noite os dois acordaram de repente, tendo ambos decidido ao mesmo tempo que aquele coquetel de medo e outras emoções iria acabar por destruí-los. No mesmo instante, a televisão no outro extremo da sala ligou sozinha, e lá, brilhando intensamente, a figura fantasmagórica de Fazil tomou forma. Os tiros mortais em sua testa pareciam recentes, e de seu lábio inferior e de outras feridas ainda gotejava sangue.
“‘Sou torturado pela dor’, disse Fazil. ‘Não há um único canto do outro mundo que eu não tenha visto [Vou escrever sobre essas viagens detalhadamente inspirando-me nas Vitórias de Meca, de Gazzali e em Ibn Arabi, disse Necip.] Recebi os maiores elogios dos anjos de Deus e viajei para o que se considera como sendo o plano mais alto do céu. Presenciei os terríveis castigos que são aplicados no inferno a ateus engravatados e a arrogantes colonialistas positivistas que fazem pouco das pessoas comuns e de sua fé — mas em toda parte a felicidade me escapava, porque meu espírito estava aqui, com vocês.’
“Marido e mulher ficaram siderados por uma admiração cheia de temor ao ouvir o triste fantasma.
“‘O que me fez tão infeliz durante todos esses anos não foi imaginar que um dia eu os veria tão felizes juntos, como os vejo esta noite. Ao contrário, eu almejava pela felicidade de Necip, mais que pela minha própria. Por causa da profunda afeição que havia entre nós, fomos incapazes de encontrar uma forma de nos matarmos, fosse a nós mesmos ou um ao outro. Porque cada um de nós prezava mais a vida do outro que a própria, era como se ambos usássemos uma armadura que nos tomava imortais. Como isso me fazia feliz! Mas minha morte me mostrou que eu estava errado em acreditar nesse sentimento.’
“‘Não!’, exclamou Necip. ‘Nunca dei mais valor à minha própria vida que à sua!’
‘Se isso fosse verdade, eu não teria morrido’, disse o fantasma de Fazil, ‘e você nunca teria se casado com a bela Hicran. Eu morri porque você alimentava um desejo secreto — um desejo tão secreto que você escondia até de si mesmo —, o desejo de me ver morto.’
“Necip refutou veementemente essa acusação, mas o fantasma não quis ouvir.
‘“Não foi apenas a suspeita de que você desejava a minha morte que me privou da paz no outro mundo’, disse o fantasma. ‘Mas foi o fato de você ter participado de meu assassinato, pois foi você quem traiçoeiramente atirou em minha cabeça, e aqui, e aqui, quando eu estava na cama dormindo. E eu tinha outro medo também — o medo de que você estivesse agindo como agente dos inimigos do sagrado Corão.’ Aquela altura, Necip desistira de contestar as acusações e se mantinha calado.
“‘Só há um modo de me libertar do sofrimento e me reconduzir ao céu, e só por esse mesmo modo você poderá livrar-se da suspeita desse crime abominável’, disse o fantasma. ‘Descubra meu assassino, seja lá quem for. Em sete anos e sete meses não encontraram um único suspeito. E quando você descobrir quem me matou ou desejou a minha morte, quero que o crime seja vingado. Olho por olho. Enquanto esse miserável continuar impune, não terão paz nesta vida, nem haverá paz para você nesse mundo passageiro que vocês insistem em chamar de verdadeiro mundo.’
“Nem Necip nem Hicran souberam o que responder; eles ficaram olhando atônitos, aos prantos, o fantasma desaparecer da tela.”
“E então? O que aconteceu depois?”, perguntou Ka.
“Ainda não decidi”, disse Necip, “mas se eu escrever a história inteira, você acha que eu poderia vendê-la?” Quando ele viu que Ka hesitava, acrescentou: “Ouça, cada linha que escrevo vem do fundo do meu coração. Todas elas expressam minhas mais profundas convicções. O que essa história significa para você? O que sentiu quando a li para você?”.
“Ela me tocou profundamente, porque me mostrou que você acredita, de todo o coração, que este mundo nada mais é que uma preparação para o outro mundo.”
“Sim, eu acredito nisso”, disse Necip, alvoroçado. “Mas isso não é o bastante. Deus quer que sejamos felizes neste mundo também. Mas isso é a coisa mais difícil.”
Eles ficaram em silêncio, refletindo sobre a coisa mais difícil.
Depois de um instante voltou a luz, mas as pessoas da casa de chá continuaram tão caladas como estavam na escuridão. E a tela da televisão continuou escura; o proprietário começou a esmurrá-la.
“Já faz vinte minutos que estamos sentados juntos aqui”, disse Necip. “Meus amigos devem estar morrendo de curiosidade.”
“Quem são os seus amigos?”, perguntou Ka. “Um deles é Fazil? E esses são seus verdadeiros nomes?”
“Não, claro que não. Estou usando um nome de guerra, da mesma forma que o Necip da história. Você não é um policial; pare de me interrogar! Quanto a Fazil, ele se recusa a vir a um lugar como este”, disse Necip, assumindo ares misteriosos. “Fazil é o mais religioso de nosso grupo, e é a pessoa em quem mais confio neste mundo. Mas ele receia que, se se envolver em política, termine fichado pela polícia e expulso da escola. Ele tem um tio na Alemanha que vai mandar buscá-lo, e nós gostamos um do outro tanto quanto os rapazes da história; portanto, se alguém me matasse, tenho certeza de que ele me vingaria. Na verdade, a coisa se passa exatamente como na história — somos tão ligados que, por mais distantes que estejamos um do outro, sabemos com certeza o que o outro está fazendo.”
“Então o que Fazil está fazendo agora?”
“Hummm”, fez Necip, assumindo uma pose estranha. “Ele está no alojamento de estudantes, lendo.”
“Quem é Hicran?”
“Esse nome também não é verdadeiro. Mas não é um nome que ela adotou, é um nome que nós lhe demos. Alguns de nós escrevemos o tempo todo poemas e cartas de amor para ela, mas não temos coragem de enviá-los. Se eu tivesse uma filha, queria que fosse tão bonita, tão inteligente e corajosa quanto ela. Ela é a líder das jovens que se recusam a se descobrir, e não tem medo de nada. Pensa por conta própria.
“Para falar a verdade, no começo ela era uma infiel — isso porque estava sob a influência do pai ateu. Era modelo em Istambul, ia à televisão, mostrava o traseiro e exibia as pernas. Veio para cá fazer um comercial de xampu para a televisão. No comercial, ela ia andando pela avenida Ahmet Muhtar, o Conquistador — a rua mais pobre e suja de Kars, mas também a mais bonita. Então, quando parou diante da câmera, devia sacudir como uma flâmula os magníficos cabelos castanhos que lhe desciam até a cintura e dizer ‘Mesmo na sujeira da bela cidade de Kars, meus cabelos continuam limpos e brilhantes — graças a Blendax’. O comercial ia ser exibido por toda parte; o mundo inteiro iria rir de nós.
“Naquela altura, o caso do manto do Instituto de Educação tinha acabado de estourar, e duas moças viram Hicran na televisão e a reconheceram pelas fotografias das revistas de fofocas que falavam sobre seu comportamento com os rapazes ricos de Istambul. As moças a admiravam em segredo, então a convidaram para um chá. Hicran aceitou, embora para ela aquilo não passasse de uma grande brincadeira. Ela logo ficou muito entediada com as moças, e sabe o que ela lhes disse? ‘Se a sua religião — não, ela não disse nossa religião, ela disse a sua — ‘se a sua religião exige que vocês escondam seu cabelo, e o Estado proíbe o uso do manto na cabeça, por que vocês não fazem como fulana — aqui ela falou o nome de uma cantora de rock estrangeira — e raspam o cabelo e usam um brinco no nariz? Aí o mundo inteiro iria acordar e tomar conhecimento!’
“Nossas pobres meninas ficaram tão perplexas em ouvir tais afrontas que nem ao menos conseguiram deixar de rir com ela! Isso tornou Hicran ainda mais ousada, então ela disse: ‘Esses mantos fazem vocês voltarem para a Idade Média. Por que vocês não os arrancam e mostram seus belos cabelos?’.
“E quando Hicran estava prestes a tirar o manto da garota mais tola, sua mão ficou paralisada. De repente, Hicran se jogou aos pés da garota tola — essa garota é irmã de um colega nosso, e ele é tão estúpido que até os retardados o chamam de retardado — e pediu-lhe perdão. Hicran voltou no dia seguinte, depois no outro e terminou por se juntar a elas, em vez de voltar para Istambul. Ela é uma das santas que vão ajudar a transformar o manto na bandeira das mulheres muçulmanas oprimidas da Anatólia — pode tomar nota!”
‘Então por que você não disse nada sobre ela na história, exceto que ela era uma donzela?”, perguntou Ka. “Por que Necip e Fazil não pediram sua opinião antes de resolverem se matar por causa dela?”
Houve um silêncio carregado de tensão, durante o qual Necip levantou seus belos olhos, um dos quais, dentro de duas horas e três minutos, iria ser estourado por uma bala; ele olhou para a rua escura para ver a neve cair devagar, como um poema. Então sussurrou: “Olha ela lá. É ela!”.
“Quem?”
“Hicran! Ela está ali na rua!”
Uma caminhada na neve com Kadife
Ela estava usando uma capa de chuva roxa, os olhos escondidos por trás de óculos escuros futuristas, e usava na cabeça um daqueles mantos comuns que Ka vira centenas de mulheres usando desde que ele era criança e que agora era o símbolo do islã político. Quando viu que a jovem que entrava na casa de chá vinha diretamente em sua direção, Ka se pôs de pé de um salto, como se o professor tivesse acabado de entrar na sala de aula.
“Sou Kadife, a irmã de Ipek”, disse a mulher, esboçando um sorriso. “Todos o estão esperando para o jantar. Meu pai me mandou avisá-lo.”
“Como você sabia que eu estava aqui?”, perguntou Ka.
“Em Kars todo mundo sempre sabe tudo o que está acontecendo”, disse Kadife. Agora ela não estava de modo algum sorrindo. “Se estiver acontecendo em Kars, é claro.”
Ka percebeu uma certa angústia em seu semblante, mas não tinha idéia de sua causa. Necip fez as apresentações: “Apresento-lhe meu amigo poeta e romancista”, disse ele. Eles trocaram um rápido olhar mas não se apertaram as mãos. Ka viu naquilo um sinal de tensão. Muito depois, rememorando esses acontecimentos, ele iria concluir que a omissão era em respeito ao código islâmico. Necip ficou branco feito um lençol, olhando para Kadife como se estivesse diante de uma Hicran recém-chegada do espaço sideral, mas os modos de Kadife eram tão comuns que nenhum homem, na casa de chá apinhada de gente, se voltou para olhá-la. Além disso, ela não era tão bela quanto a irmã.
Mas andando pela neve com ela na avenida Atatürk, Ka se sentia muito feliz. Ela estava envolta num manto, e embora seu rosto fosse mais comum que o da irmã, era agradável e harmonioso. Quando ele olhou para ela diretamente nos olhos, castanhos como os de Ipek, sentiu que podia lhe falar abertamente, o que a tornava atraente para ele; tanto que sentiu como se estivesse traindo sua irmã mais velha.
Primeiro, para surpresa de Ka, eles conversaram sobre meteorologia. Kadife sabia tudo sobre o assunto: desfiava os detalhes como um desses velhos que passam o dia inteiro ouvindo rádio. Ela lhe disse que a frente de baixa pressão vinda da Sibéria iria durar mais dois dias, que, se a nevasca continuasse, as estradas ficariam fechadas por outros dois dias, que caíra cento e sessenta centímetros em Sankamis, e que os habitantes de Kars não acreditavam mais em boletins meteorológicos. Na verdade, disse ela, todos estavam comentando o fato de que o Estado, para não alarmar a população, normalmente noticiava temperaturas cinco ou seis graus acima da real (ninguém tinha dito isso a Ka), Ela contou que, quando crianças, em Istambul, ela e Ipek sempre torciam para que a neve continuasse. A visão da neve fazia-a pensar como a vida é curta e bela, e que, apesar de todas os desentendimentos, as pessoas tinham muito em comum. Comparado com a eternidade e a grandeza da criação, o mundo em que viviam era muito limitado. Era por isso que a neve reunia as pessoas. Era como se lançasse um véu sobre os ódios, a ganância e a violência, fazendo todos se sentirem mais próximos uns dos outros.
Eles ficaram em silêncio por algum tempo. Todas as lojas da rua Sehit Cengiz Topel estavam fechadas, e eles não viram vivalma. Aquela caminhada na neve com Kadife provocou em Ka tanto ansiedade como alegria. Ele mantinha os olhos fixos nas luzes da vitrine de uma loja no final da rua, como se temesse voltar-se para olhar o rosto de Kadife e terminar se apaixonando por ela. Será que estava mesmo apaixonado pela irmã mais velha? Seu desejo de se apaixonar perdidamente tinha a sua lógica — até aí ele sabia. Quando chegaram ao fim da rua, ele parou para olhar um aviso na janela da Cervejaria da Alegria, escrito num pedaço de papel de carta:
Devido ao espetáculo teatral desta noite, o ilustre Zihni Sevük, candidato pelo Partido do Povo Livre, adiou a reunião desta noite.
Através da vidraça da pequena e estreita Cervejaria da Alegria, ele avistava Sunay Zaim, sentado à cabeceira de uma mesa, com toda a sua trupe; apenas vinte minutos antes de começar o espetáculo, estavam todos bebendo sofregamente.
Quando examinava atentamente os anúncios da campanha eleitoral na vidraça da cervejaria, seus olhos demoraram-se num cartaz amarelo em que se lia: “SERES HUMANOS SÃO OBRAS-PRIMAS DE DEUS E O SUICÍDIO É UMA BLASFÊMIA”, e isso foi a deixa para Ka perguntar a Kadife o que achava do suicídio de Teslime.
“Tenho certeza de que você já sabe o bastante para transformar Teslime numa história muito interessante para seus amigos na Alemanha — para não falar da imprensa de Istambul”, disse ela, ligeiramente aborrecida.
“Acabo de chegar a Kars”, disse Ka. “Mesmo que venha a entender como as coisas funcionam aqui, estou começando a achar que nunca conseguirei explicar para ninguém de fora. Fico de coração apertado quando vejo a condição precária de vida dessas pessoas e seu sofrimento desnecessário.”
“As únicas pessoas que se preocupam com sofrimento desnecessário são os ateus que nunca sofreram nada”, disse Kadife. “Porque, afinal de contas, basta o menor incômodo para que os ateus entendam que não podem mais suportar a vida sem fé, e a próxima coisa que se fica sabendo é que eles voltaram ao aprisco.”
“Mas o sofrimento de Teslime era tão grande que ela abandonou o rebanho e se suicidou”, disse Ka, a quem a bebida tinha tornado rebelde.
“Bem, se Teslime realmente se matou, pode-se dizer que ela cometeu um terrível pecado. Se você for ao vigésimo nono verso da surata do glorioso Corão, vai ver que o suicídio é claramente proibido. Mas a idéia de que ela deve ter pecado e se suicidado não é nada comparada ao amor que sentimos por ela; ainda há um cantinho em nossos corações em que a lembramos com profundo amor e afeição.”
“Então você quer dizer que mesmo que essa jovem infeliz tenha cometido uma afronta contra nossa fé, nós ainda a podemos amar”, disse Ka, tentando adiantar-se a Kadife. “Já não acreditamos em Deus de todo o coração; já não precisamos disso, porque agora, como no Ocidente, submetemos nossa crença ao exame da razão e da lógica. É isso que você está querendo dizer?”
“O sagrado Corão é a palavra de Deus, e quando Deus dá uma ordem clara e precisa, não cabe a meros mortais questionar”, disse Kadife. Ela parecia muito segura de si. “Mas nem por isso você deve supor que nossa religião não deixa margem à discussão. Digo-lhe apenas que não vou discutir minha fé com um ateu, e nem mesmo com um secularista. Desculpe-me.”
“Você tem razão.”
“Não sou uma dessas islamitas detestáveis que saem por aí tentando convencer secularistas de que o islã pode ser uma religião secular”, acrescentou Kadife.
“Tem razão, novamente”, disse Ka.
“E a segunda vez que você diz que tenho razão”, disse Kadife com um sorriso, “mas eu não acho que você realmente pensa isso.”
“Não; mais uma vez você tem razão”, disse Ka, mas sem sorrir.
Por algum tempo eles andaram em silêncio. Será que ele iria se apaixonar por Kadife, e não por sua irmã? Ka sabia muito bem que nunca haveria de sentir atração sexual por uma mulher coberta com um manto, mas não conseguia deixar de brincar com esse pensamento secreto.
Quando eles se juntaram à multidão da avenida Karadag, Ka dirigiu a conversa para sua poesia, e então, numa manobra desajeitada, falou que Necip também era poeta e perguntou a ela se estava ciente de ter alguns admiradores na escola secundária religiosa que a veneravam sob o nome de Hicran.
“Que nome?”
Ka lhe contou algumas das outras histórias que ouvira sobre Hicran.
“Nenhuma dessas histórias é verdadeira”, disse Kadife. “Eu não ouvi nenhum dos rapazes que conheço da escola secundária religiosa contá-las.” Ela deu mais alguns passos e então disse: “Mas já ouvi a história do xampu antes”. Ela sorriu. Na verdade, não fora ela mas um rico e muito odiado jornalista de Istambul quem tivera a idéia de sugerir que as moças que usam mantos raspassem a cabeça — e aquilo foi dito apenas para chamar a atenção da mídia do Ocidente e fazer as jovens parecerem importantes. “Só há uma coisa verdadeira nessas histórias. A primeira vez que fui me encontrar com as moças que usam mantos, eu fui para ridicularizá-las, mas também por curiosidade. Vamos colocar as coisas nestes termos: eu fui por uma curiosidade diabólica.”
“E então, o que aconteceu?”
“Vim para Kars porque o Instituto de Educação me aceitou, e também porque minha irmã já estava aqui. Assim, afinal, essas moças eram minhas colegas, e se você continua sem acreditar em mim, vá visitá-las em suas casas quando elas o convidarem. Suas mães e pais as educaram para serem como são. O mesmo fez a instrução religiosa que receberam nos estabelecimentos do Estado. Então, de repente, depois de passarem a vida toda ouvindo que deviam cobrir a cabeça, ouviram a contra-ordem: ‘O Estado quer que vocês tirem seus mantos’.”
“Quanto a mim”, continuou Kadife, “eu enverguei o manto um dia para marcar uma posição política. Fiz isso para me divertir, mas ao mesmo tempo aquilo era assustador. Talvez por lembrar que eu era filha de um homem que fora inimigo do Estado desde sempre. Tenho absoluta certeza de que pretendia usar o manto apenas por um dia; foi um daqueles gestos revolucionários de que a gente ri anos depois, quando relembra os bons velhos tempos em que fazia política. Mas o Estado, a polícia e a imprensa local me bateram tão pesado que eu já não podia considerar aquilo uma brincadeira — eu tinha me metido numa história e não conseguia mais sair. Eles nos prenderam sob a acusação de organizar uma manifestação ilegal. Mas quando nos soltaram no dia seguinte, se eu dissesse comigo mesma: ‘Esqueça o manto; de qualquer forma, eu nunca quis usá-lo mesmo’, toda a cidade iria cuspir em meu rosto. Agora, percebo que Deus me submeteu a todo esse sofrimento para me ajudar a encontrar o caminho da verdade. Eu também já fui descrente como você. Não me olhe desse jeito; você me olha como se tivesse pena de mim.”
“Não estou olhando você assim.”
“Sim, está. Não acho que minha situação seja mais risível do que a sua. Tampouco me sinto superior a você — e quero que você saiba disso.”
“O que seu pai diz disso tudo?”
“Até agora estamos levando. Mas do jeito que as coisas vão, não tenho certeza de quanto tempo ainda podemos agüentar — e isso nos assusta, porque nós gostamos muito um do outro. A princípio, meu pai tinha orgulho de mim; no dia em que fui à escola com a cabeça coberta, ele agiu como se eu tivesse descoberto uma nova forma de expressar minha revolta. Ele ficou comigo diante do velho espelho de minha mãe com moldura de metal, enquanto eu experimentava o manto, e, quando ainda estávamos na frente do espelho, ele me deu um beijo. Embora nunca falássemos muito sobre o caso, uma coisa estava clara: o que eu estava fazendo era válido não como uma defesa do islã, mas como um desafio ao Estado. Era como se ele dissesse ‘Minha filha está agindo bem’, mas no fundo ele estava tão assustado quanto eu.
“Percebi que ele estava assustado quando me jogaram na cadeia, e sabia que ele se sentia culpado. Ele insistiu que a polícia política não se preocupava comigo, mas ainda estava de olho nele. Nos velhos tempos, o MIT mantinha arquivos sobre esquerdistas e democratas, mas agora estava mais interessado nos islamitas; e assim, você pode imaginar por que ele via isso como a mesma velha arma sendo apontada agora para sua filha.
“E foi ainda mais difícil quando comecei a levar mais a sério a minha posição. Meu pai fazia todo o possível para me ajudar a cada passo, mas era muito difícil para ele. Você sabe como às vezes são as pessoas mais velhas — por mais que haja barulho na casa, por mais que o fogão crepite, por mais alto que a mulher se queixe, por mais que os gonzos da porta ranjam — o que quer que lhes chegue aos ouvidos, elas não escutam. Bem, assim é meu pai quando se trata da questão do manto. Se uma dessas moças vem à minha casa, ele às vezes encarna o ateu mau-caráter, mas logo se põe a incitá-las a enfrentar o Estado. E como tratei de fazer com que essas moças amadurecessem o bastante para enfrentá-lo, estou fazendo reuniões em casa. Uma delas vai estar conosco esta noite; o nome dela é Hande.
“Depois que Teslime se suicidou, os pais de Hande fizeram pressão para que ela descobrisse a cabeça e ela o fez, mas não está nem um pouco satisfeita com a decisão. Meu pai diz que tudo isso lhe lembra seus velhos tempos de comunista. Há dois tipos de comunistas: os arrogantes, que entram na briga esperando transformar as pessoas em homens e fazer a nação progredir; e os inocentes, que se engajam por acreditarem na igualdade e na justiça. Os arrogantes são obcecados pelo poder; eles imaginam pensar por todo mundo; deles não pode sair nada de bom. Mas, e os inocentes? O único mal que fazem é a si mesmos. Mas é tudo o que sempre quiseram. Eles se sentem culpados pelo sofrimento dos pobres, e têm tal ânsia de partilhar esse sofrimento que desgraçam as próprias vidas deliberadamente.
“Meu pai era professor, mas aí eles lhe tiraram o emprego. Durante uma sessão de tortura arrancaram-lhe uma unha; depois de outra sessão, jogaram-no na prisão. Não obstante, ele fez o que pôde. Durante anos ele e minha mãe tiveram uma papelaria, tiravam xerox, chegaram até a traduzir romances franceses para o turco. Às vezes eles iam de porta em porta vendendo enciclopédias à prestação. Quando a pobreza beirava o insuportável, ele nos abraçava e se punha a chorar. Ele sempre teve muito medo de que acontecesse alguma coisa ruim conosco. E então, quando a polícia nos procurou depois que atiraram no diretor do Instituto de Educação, ele ficou muito assustado — embora tenha resmungado com eles também. Ouvi dizer que você foi se encontrar com Azul. Por favor, não diga isso ao meu pai.”
“Não vou dizer”, disse Ka. Ele parou para tirar a neve do casaco. “Não vamos por aqui... direto para o hotel?”
“Pode-se ir por aqui também. A neve não acaba, tampouco a lista de coisas que temos para conversar. Além disso, quero lhe mostrar a rua dos Açougues... O que Azul queria com você?”
“Nada.”
“Ele falou alguma coisa sobre nós — meu pai ou minha irmã?”
Ka viu uma expressão de ansiedade no rosto de Kadife. “Não me lembro”, disse ele.
“Todos têm medo dele. Nós também... Estes são os açougues mais famosos da cidade.”
“Como seu pai passa os dias?”, perguntou Ka. “Alguma vez ele sai de casa, do hotel?”
“É ele quem administra o hotel. Ele dá ordens à governanta, à faxineira, à lavadeira, aos ajudantes de garçom. Minha irmã e eu ajudamos. Mas meu pai quase nunca sai de casa. Qual é o seu signo?”
“Gêmeos”, disse Ka. “Diz-se que os geminianos contam muitas mentiras, mas não estou tão certo disso.”
“Você quer dizer que não está bem certo se os geminianos contam mentiras ou se você conta?”
“Se você acredita em astrologia, deve ser capaz de imaginar por que o dia de hoje é tão importante para mim.”
“Sim, minha irmã me contou; hoje você escreveu um poema.”
“Sua irmã lhe conta tudo?”
“Aqui nós temos duas diversões. Falamos sobre tudo o que nos acontece e vemos televisão. E até conversamos enquanto vemos televisão. E enquanto conversamos, vemos televisão também. Minha irmã é muito bonita, você não acha?”
“Sim, ela é muito bonita”, disse Ka num tom reverente. “Mas você também é bonita”, acrescentou ele delicadamente. “E agora você vai contar isso para ela também?”
“Não, não vou lhe contar. Vamos ter um segredo para partilhar. É a melhor maneira de iniciar uma amizade.” E ela sacudiu a neve que se acumulara em sua comprida capa de chuva roxa.
A conversa durante o jantar versou sobre amor, mantos e suicídio
Eles viram uma multidão movendo-se confusamente na frente do Teatro Nacional; o espetáculo ia começar dentro de poucos minutos. A nevasca incessante parecia não ter assustado ninguém, ou talvez tivesse levado as pessoas a concluir que, com tanta coisa dando errado, elas deviam aproveitar aquela oportunidade para passar uma noite agradável. Muitos dos que se aglomeravam na calçada em frente ao velho edifício de cento e dez anos provinham das fileiras dos desempregados; havia jovens que tinham vindo de casa e dos alojamentos de estudantes envergando camisa e gravata, meninos que saíram às escondidas de suas casas. Muitos trouxeram os filhos. Pela primeira vez desde que chegara a Kars, Ka viu um guarda-chuva preto aberto. Kadife sabia que Ka estava no programa e que deveria recitar um poema, mas quando ele disse que não pretendia participar e que de resto não tinha tempo para isso, ela não tentou fazê-lo mudar de idéia.
Ele sentiu que outro poema estava vindo. Parou de falar e correu para o hotel o mais depressa que pôde. Antes, pediu desculpas, dizendo que precisava dar uma corrida até o seu quarto para se refazer; mal abriu a porta, atirou longe o casaco, sentou-se à mesinha e começou a rabiscar furiosamente. Os principais temas do poema eram amizade e intimidade. Falava também de flocos de neve e estrelas, e de numerosos motivos que lembravam dias especialmente felizes.
Muitas observações de Kadife foram incorporadas diretamente ao poema, sem alterações. Enquanto um verso se seguia a outro, Ka examinava a página com o prazer e a excitação de um pintor olhando uma pintura aparecer em seu cavalete. Agora ele percebia que sua conversa com Kadife tinha uma lógica oculta; nesse poema, intitulado “As estrelas e seus amigos”, ele desenvolveu a teoria de que toda pessoa tem uma estrela, cada estrela tem um amigo, e para cada pessoa que tem uma estrela há outra pessoa que a reflete, e cada um, como um confidente, leva esse reflexo no coração. Embora ele conseguisse ouvir a música do poema em sua cabeça e o exaltasse em sua perfeição, aqui e ali pulara uma ou outra palavra, que lhe havia escapado; faltavam também alguns versos. Mais tarde ele haveria de dizer que aquilo se devia à sua preocupação com Ipek, ao fato de não ter jantado e de estar feliz como nunca antes.
Logo que terminou o poema, ele desceu depressa para o vestíbulo e entrou nas dependências reservadas aos proprietários. Sentado a uma mesa fartamente servida no meio de uma sala espaçosa, com pé-direito alto, rodeado por suas filhas, Kadife e Ipek, estava Turgut bei. Havia também uma terceira jovem, sentada a um lado; cobria-lhe a cabeça um elegante manto roxo, e Ka logo concluiu que aquela devia ser Hande, a amiga de Kadife. Do outro lado da mesa, em frente a ela, estava Serdar bei, o jornalista; ele parecia bastante à vontade naquele grupo. Enquanto lançava um olhar a cada um dos pratos da mesa — que estranha e bela desordem — e observava a criada curda, Zahide, que se movia lépida e graciosa entre a sala e a cozinha, ele imaginou que Turgut bei e suas filhas costumavam passar longas noites àquela mesa.
“Estive pensando em você o dia inteiro, e o dia inteiro fiquei preocupado com você”, disse Turgut bei. “Por que chegou tão tarde?” Ele se pôs de pé e se inclinou para abraçar Ka, de tal maneira que este pensou que o homem ia chorar. “Coisas terríveis podem acontecer a qualquer momento”, disse ele, com ar trágico.
Ka se sentou no lugar que Turgut bei lhe indicara, à sua frente, na outra ponta da mesa; a criada lhe serviu uma tigela de sopa de lentilhas, que ele tomou com avidez. Os outros dois homens voltaram ao seu raki, dirigindo o olhar para a televisão bem atrás dele; quando Ka viu que todo mundo tinha feito o mesmo, fez uma coisa com que vinha sonhando fazia muito tempo: pôs-se a olhar o belo rosto de Ipek.
Como mais tarde ele iria descrever seu êxtase infindável de forma muito vivida em suas anotações, sei exatamente o que sentiu naquele momento — como uma criança feliz, não conseguia manter os braços e as pernas quietos. Ka não poderia estar mais nervoso e impaciente se ele e Ipek estivessem correndo para pegar o trem para Frankfurt. Olhou para a mesa de trabalho de Turgut bei — com pilhas de livros, jornais, recibos, livros de registro do hotel — e enquanto fitava o círculo projetado pela lâmpada embaixo do abajur, evocou a visão de outro círculo de luz, em sua própria mesa de trabalho, num escritório que ele iria partilhar com Ipek, quando voltasse para viver feliz com ela em Frankfurt.
Naquele mesmo instante viu que os olhos de Kadife estavam pousados nele. Ao cruzar seu olhar, Ka pensou ter visto um lampejo de ciúme perpassar-lhe o rosto, que não era tão belo quanto o da irmã, mas ela procurou escondê-lo com um sorriso de cumplicidade.
Seus companheiros de jantar permaneciam hipnotizados pela televisão; mesmo no calor da conversa, eles continuavam a assistir com o rabo do olho. A transmissão ao vivo do Teatro Nacional tinha começado; o alto e magro mestre-de-cerimônias, zanzando de um lado para o outro do palco, era um dos atores que Ka vira quando desceu do ônibus na noite anterior. Não havia muito tempo que eles estavam assistindo quando Turgut bei pegou o controle remoto e mudou de canal. Por muito tempo ficaram olhando uma imagem indistinta, cheia de pontinhos brancos; eles não tinham idéia do que estavam vendo, mas parecia ser em preto-e-branco.
“Pai”, disse Ipek, “o que você está vendo?”
“É a neve”, disse ele. “E isso pelo menos é uma descrição exata de nosso tempo aqui. Vale como se fossem notícias de verdade. De qualquer forma, você sabe que, se passo muito tempo num só canal, sinto-me roubado em minha dignidade.”
“Então, pai, por que simplesmente não desliga a televisão? Há uma outra coisa que está se passando aqui que nos priva a todos de nossa dignidade.”
“Bem, conte ao nosso convidado o que aconteceu”, disse o pai, parecendo um pouco intimidado. “Fico incomodado pelo fato de ele não saber.”
“Também me sinto assim”, disse Hande. Havia raiva em seus belos olhos negros. Por um instante, todos ficaram em silêncio.
“Por que você não conta a história, Hande?”, disse Kadife. “Não há nada de que se envergonhar.”
“Não, não é verdade. Há muito de que se envergonhar, e é por isso que quero falar sobre ela”, disse Hande. Seus grandes olhos brilharam com uma alegria estranha. Ela sorriu como recordando um momento feliz e disse: “Faz exatamente quarenta dias que nossa amiga Teslime se suicidou. De todas as moças de nosso grupo, Teslime era a mais dedicada à luta pela religião e pela palavra de Deus. Para ela, o manto não era apenas um símbolo do amor a Deus: ele também proclamava sua fé e defendia sua honra. Nenhuma de nós jamais poderia imaginar que ela iria se matar. Apesar da pressão que sofria na escola e em casa para que se descobrisse — seu pai e seus professores não lhe davam trégua —, Teslime resistia bravamente. Ela estava para ser expulsa da escola em seu terceiro ano de estudos, já perto de se formar. Então um dia seu pai foi procurado por gente da polícia; disseram-lhe que se ele não mandasse a filha para a escola sem o manto na cabeça, eles fechariam sua mercearia e o expulsariam de Kars.
“O pai a ameaçou de expulsar de casa, e quando essa tática falhou, ele começou a negociar o casamento dela com um policial de quarenta e cinco anos que perdera a mulher. As coisas tinham chegado a um ponto que o policial vinha à loja trazendo flores. Teslime ficou tão revoltada com aquele viúvo de olhos cinza, como ela própria nos contou, que estava pensando em descobrir a cabeça, se isso a pudesse livrar daquele casamento, mas ela simplesmente não conseguia tirar o manto.
“Algumas de nós concordaram que ela devia descobrir a cabeça para evitar se casar com o viúvo de olhos cinza, e algumas de nós dissemos: ‘Por que você não ameaça seu pai com o suicídio?’. Eu fui uma das que mais a incitaram a isso. Eu não queria de modo algum que Teslime abandonasse o manto. Não sei quantas vezes disse a ela: ‘Teslime, é muito melhor se matar do que descobrir a cabeça’. Mas eu dizia isso da boca para fora, era só uma maneira de falar. Nós acreditávamos no que os jornais diziam — que as jovens suicidas se mataram porque não tinham fé, porque eram escravas do materialismo, porque eram infelizes no amor; o que eu estava tentando fazer era dar um susto no pai de Teslime. Teslime era uma jovem piedosa, por isso achei que ela nunca pensaria seriamente em suicídio. Mas quando ouvimos que ela se enforcara, fui a primeira a acreditar. E, o que é pior, eu sabia que, se eu estivesse em seu lugar, teria feito a mesma coisa.”
Hande começou a chorar. Ipek foi para perto dela, deu-lhe um beijo e começou a agradá-la; Kadife juntou-se a elas. Vendo as moças abraçadas umas às outras, Turgut bei deixou de lado o controle remoto e logo também tentava consolar Hande. Dentro em pouco todos estavam contando piadas para fazê-la parar de chorar. Como se tentasse distrair uma criança chorona, Turgut bei apontou as girafas na tela; então, como uma criança incerta quanto a poder ceder, Hande olhou para a tela com os olhos cheios de lágrimas. Por longo tempo, as jovens se esqueceram de suas próprias vidas enquanto olhavam duas girafas movendo-se em câmera lenta numa terra distante, talvez no meio da África, num campo sombreado por denso arvoredo.
“Depois do suicídio de Teslime, Hande resolveu descobrir a cabeça e voltar para a escola; ela não queria mais desgostar os pais”, explicou Kadife. “Eles tinham feito tantos sacrifícios, tinham se privado de tantas coisas para lhe proporcionar alguma formação; as coisas que a maioria dos pais faz para um filho único, eles fizeram para ela. Seus pais sempre acharam que um dia Hande poderá sustentá-los, porque ela é muito inteligente.”
Ela estava falando baixinho, quase num sussurro, mas ainda alto o bastante para que Hande a ouvisse, e como todos os demais na sala, Hande estava ouvindo, mesmo com os olhos cheios de lágrimas fixos na tela da televisão.
“A princípio nós outras tentamos dissuadi-la de descobrir-se, mas quando nos demos conta de que era melhor descobrir a cabeça que suicidar-se, apoiamos sua decisão. Uma vez que uma garota aceita o manto como a palavra de Deus e o símbolo da fé, custa-lhe muito tirá-lo. Hande passava dias trancada dentro de casa tentando concentrar-se.”
Como os demais na sala, àquela altura Ka estava se revirando de constrangimento, mas quando seu braço roçou o de Ipek, uma onda de felicidade percorreu-lhe o corpo. Enquanto Turgut bei pulava de um canal para outro, Ka tentava encontrar mais felicidade roçando o braço contra o de Ipek. Quando Ipek fez o mesmo, ele esqueceu tudo sobre a história triste que acabara de ouvir.
Mais uma vez, a televisão estava sintonizada no Teatro Nacional. O homem alto e magro estava dizendo quanto se sentia orgulhoso por participar da primeira transmissão ao vivo de Kars e anunciou a programação da noite, prometendo fenomenais interpretações das melhores histórias do mundo, as confissões secretas de um goleiro turco famoso, revelações chocantes que cobririam de vergonha nossa história política, cenas inesquecíveis de Shakespeare e Victor Hugo, desventuras amorosas, as maiores e mais brilhantes estrelas do cinema e do teatro turcos, além de piadas, canções e surpresas sensacionais. Ka ouviu a descrição que faziam dele como “nosso maior poeta, que voltou ao país na surdina, depois de muitos anos”. Ipek pegou a mão de Ka por baixo da mesa.
“Eu entendo que você não queira tomar parte no programa”, disse Turgut bei.
“Estou muito feliz aqui, senhor, muito feliz mesmo”, disse Ka, encostando o braço contra o de Ipek ainda com mais força.
“Pode acreditar que eu não gostaria de fazer nada para perturbar sua felicidade”, disse Hande, deixando todos na sala nervosos, “mas vim aqui hoje à noite para conhecer você. Não li nenhum livro seu, mas para mim basta que você seja um poeta e tenha estado em lugares como a Alemanha. Você se importa se eu lhe perguntar se escreveu poemas ultimamente?”
“Muitos poemas me ocorreram desde que cheguei a Kars”, disse Ka.
“Eu queria conhecer você porque pensei que poderia me dizer como fazer para me concentrar. Posso fazer uma pergunta? Como você escreve poemas? Não é se concentrando?”
Toda vez que ele fazia declamações para turcos na Alemanha, essa era a pergunta mais comum entre as mulheres do auditório, e toda vez que elas perguntavam, Ka recuava como se lhe tivessem feito uma pergunta pessoal. “Não tenho nenhuma idéia de como os poemas são escritos”, disse ele. “Um bom poema sempre parece ter vindo de fora, de muito longe.” Ele viu o olhar de Hande se encher de desconfiança, e acrescentou: “Por que você não me explica o que quer dizer quando diz a palavra concentrar-se?”.
“Eu tento o dia inteiro, mas não consigo evocar a visão de mim mesma sem o manto na cabeça. Em vez disso, fico vendo todas as coisas que quero esquecer.”
“Por exemplo?”
“Quando eles notaram que muitas de nós estavam usando mantos na cabeça, mandaram uma mulher de Ancara para tentar nos convencer a tirá-los. Essa ‘agente de persuasão’ ficava na mesma sala horas a fio, conversando com cada uma de nós em particular. Ela perguntava coisas como ‘Seus pais batem em você? Quantos irmãos você tem? Quanto seu pai ganha por mês? Que tipo de roupa você usava antes de adotar o traje religioso? Você gosta de Atatürk? Que tipo de quadro vocês têm nas paredes de sua casa? Quantas vezes por semana você vai ao cinema? Em sua opinião, os homens e as mulheres são iguais? Deus é maior do que o Estado, ou o Estado é maior do que Deus? Quantos filhos você quer ter? Você sofreu maus-tratos em casa?’. Ela nos fazia centenas de perguntas como essas, e anotava todas as nossas respostas, preenchendo uma longo formulário sobre cada uma de nós.
“Ela era uma mulher muito elegante — unhas pintadas, cabelos tingidos, cabeça descoberta, claro — e usava o tipo de roupa que a gente vê nas revistas, mas ao mesmo tempo ela era... como dizer?, simples. Ainda que algumas perguntas suas nos fizessem chorar, nós gostávamos dela. Nós até torcíamos para que as ruas sujas de Kars não lhe causassem muitos problemas. Depois comecei a vê-la em meus sonhos. A princípio eu não prestava muita atenção neles, mas agora, sempre que tento imaginar-me andando por entre a multidão com os cabelos flutuando à minha volta, vejo-me como a ‘agente de persuasão’. Nos olhos de minha mente sou tão elegante quanto ela, usando salto alto e vestidos ainda mais curtos que os dela, e os homens me olham com interesse. Acho isso agradável — e ao mesmo tempo muito vergonhoso.”
“Hande, você não precisa falar de sua vergonha, a menos que queira”, disse Kadife.
“Não, vou falar sobre ela. Ainda que eu sinta vergonha em meus sonhos, isso não significa que tenho vergonha dos meus sonhos. Mesmo que eu descubra a cabeça, não acho que vou me tornar o tipo de mulher que flerta com homens ou que só consegue pensar em sexo. Afinal de contas, quando eu tirar meu manto, não estarei fazendo isso de livre e espontânea vontade. Ainda assim, sei que as pessoas podem ser dominadas por desejos sexuais mesmo quando fazem alguma coisa sem convicção, e mesmo sem querer. Há uma coisa que todos os homens e mulheres têm em comum. Todos nós pecamos em nossos sonhos com pessoas que nem remotamente nos interessariam quando acordados. Não é verdade?”
“Agora basta, Hande”, disse Kadife.
“Mas não é?”
“Não, não é”, disse Kadife. Ela se voltou para Ka. “Dois anos antes de tudo isso acontecer, Hande estava noiva de um adolescente curdo muito bonito. Mas o pobre rapaz se meteu em política e o mataram...”
“Isso não tem nada a ver com minha relutância em descobrir a cabeça”, disse Hande com raiva. “A verdadeira razão é que não consigo me concentrar, não consigo me imaginar sem um manto na cabeça.
“Sempre que tento me concentrar, ou me torno uma estranha má como a ‘agente de persuasão’, ou uma mulher que não consegue parar de pensar em sexo. Se eu conseguisse fechar os olhos só uma vez e imaginar-me passando de cabeça descoberta pelos portões da escola, andando no corredor e entrando em minha classe, eu encontraria forças para ir até o fim e então, se Deus quisesse, eu estaria livre. Eu teria tirado o manto de livre e espontânea vontade, e não porque a polícia me obrigou. Mas por enquanto eu simplesmente não consigo me concentrar, não consigo me obrigar a imaginar esse momento.”
“Então pare de dar tanta importância a esse momento”, disse Kadife. “Ainda que você tropece aqui e ali, você ainda será minha querida Hande.”
“Não, não serei”, disse Hande. “É isso o que mais me angustia desde que abandonei você e decidi descobrir a cabeça — saber que você me despreza.” Ela se voltou para Ka. “Ás vezes consigo imaginar uma jovem entrando na escola com os cabelos esvoaçando à sua volta, consigo vê-la andando pelo corredor e entrando em minha sala de aula favorita — oh, como sinto falta daquela sala!; consigo até imaginar o cheiro do corredor e a frieza e umidade do ar. Então eu olho pela vidraça que fica entre a sala e o corredor e vejo que a jovem não sou eu, mas outra pessoa, e começo a chorar.”
Todos pensaram que Hande ia começar a chorar novamente.
“Não tenho tanto medo de me tornar outra pessoa”, disse Hande. “O que me dá medo é pensar em nunca ser capaz de voltar a ser a pessoa que sou agora — e até esquecer quem é essa pessoa. E isso o que faz as pessoas se suicidarem.” Ela se voltou para Ka. “Você já teve vontade de se suicidar?” Seu tom era de flerte.
“Não, mas depois de ouvir falar das mulheres de Kars, a gente não consegue deixar de se fazer perguntas difíceis.”
“Se muitas jovens em nossa situação estão pensando em suicídio, pode-se dizer que isso tem a ver com o desejo de controlar nossos próprios corpos. É isso o que o suicídio oferece às jovens que foram seduzidas para ceder sua virgindade, e é o mesmo para as virgens que se casaram contra a vontade. Para essas jovens, o desejo de suicídio é um desejo de inocência e pureza. Você escreveu algum poema sobre suicídio?” Ela se voltou instintivamente para Ipek. “Será que agora fui longe demais? Será que estou incomodando seu amigo? Está bem, então. Se ele não se importar de me dizer apenas de onde vieram esses poemas que lhe chegaram em Kars, prometo deixá-lo em paz.”
“Quando sinto que me vem um poema, meu coração se enche de gratidão por aquele que o envia, porque me sinto muito feliz.”
“Trata-se da mesma pessoa que sopra a alma em sua poesia? Quem é essa pessoa?”
“Não tenho bem certeza, mas acho que é Deus que me envia os poemas.”
“Isso porque você não está bem certo da existência de Deus, ou simplesmente não sabe se é mesmo Deus que os envia?”
“É Deus quem me envia os poemas”, disse Ka fervorosamente.
“Ele notou o avanço do islã político”, disse Turgut bei. “Talvez eles o tenham ameaçado, obrigando-o assim a se tornar um crente.”
“Não, é algo que vem de dentro”, disse Ka. “Eu quero participar, ser como todo mundo.”
“Desculpe-me. Você está com medo, e eu ainda o recrimino.”
“Sim, claro que estou com medo”, disse Ka levantando a voz. “Estou com muito medo.”
Ka levantou-se de um salto de repente, como se alguém estivesse apontando uma arma para ele — ou pelo menos assim pareceu a todos os que estavam à mesa. “Onde ele está?”, gritou Turgut bei, como se também ele sentisse que havia alguém prestes a atirar neles.
“Eu não estou com medo”, disse Hande. “Não ligo a mínima para o que acontece comigo.”
Como todo mundo, ela estava olhando para Ka e tentando adivinhar onde estava o perigo. Anos depois, Serdar bei me contou que o rosto de Ka ficou cinza naquela hora, mas não havia nada em sua expressão que sugerisse medo ou vertigem; o que Serdar bei lembrava de ter visto em seu rosto era uma sublime alegria. A criada foi mais longe e me disse que uma luz entrou na sala, banhando todos os presentes com divino esplendor. Ao seu ver, ele alcançara a santidade. Alguém falou claramente “Um poema chegou” — anúncio que causou mais medo e assombro que a arma imaginária.
Segundo o relato mais comedido das anotações de Ka, a atmosfera tensa e expectante da sala lhe trouxe a lembrança de sessões espíritas a que nós assistíramos quando éramos crianças, um quarto de século antes, numa casa em uma das ruas afastadas e pobres de Nisantas. Aquelas sessões eram organizadas por uma mulher gorda, mãe de um amigo nosso; ela ficara viúva ainda muito jovem; quase todos os seus convidados eram donas-de-casa infelizes, mas havia também um pianista com dedos paralisados, uma estrela de cinema neurótica de meia-idade (mas só porque a gente sempre pedia que viesse), sua irmã que não parava de bocejar, um oficial reformado que fazia a corte à estrela já meio passada, e também, quando nosso amigo conseguia nos fazer entrar de fininho, Ka e eu. Durante o inquieto período de espera, alguém dizia “Oh, espírito, se voltaste para nós, fala!”, e depois de um longo silêncio ouvia-se um ruído quase imperceptível, o arrastar de uma cadeira, um gemido, e às vezes o som de um rápido chute na perna da mesa, quando então alguém anunciava em voz trêmula: “O espírito chegou”. Mas quando se dirigiu à cozinha, Ka não parecia um homem que fizera contato com os mortos. Seu rosto estava radiante de alegria.
“Ele bebeu muito”, disse Turgut bei, e então, voltando-se para Ipek, que já ia correndo atrás de Ka: “Sim, vá ajudá-lo, filha”.
Ka lançou-se numa cadeira perto da cozinha, pegou o caderno e a caneta. “Não consigo escrever com todos vocês à minha volta olhando para mim”, disse ele.
“Vou levá-lo para outro lugar”, disse Ipek.
Precedido por Ipek, Ka atravessou a cozinha, que recendia ao doce aroma da calda que Zahide derramava sobre o pudim de pão; eles atravessaram um quarto frio e entraram num outro mergulhado em penumbra.
“Você acha que consegue escrever aqui?”, perguntou Ipek acendendo a luz.
Olhando em volta, Ka viu uma peça em perfeita ordem, com camas arrumadas de forma impecável. Havia uma mesinha de centro e um criado-mudo sobre o qual as irmãs enfileiraram vários tubos de creme, batom, frasquinhos de água-de-colônia, livros, uma bolsinha com zíper e mais algumas substâncias guardadas em garrafas de álcool ou de óleo de cozinha. Uma velha caixa de chocolate suíço estava aberta sobre a mesa, cheia de escovas, canetas, amuletos contra mau-olhado, colares e pulseiras.
Ka sentou-se na cama, ao lado da vidraça da janela coberta de gelo. “Aqui eu consigo escrever”, disse ele. “Mas não me deixe sozinho.”
“Por que não?”
“Não sei”, disse ele, acrescentando: “Estou preocupado”.
Ele se pôs a trabalhar no poema, que começava com a descrição de outra caixa de chocolate, que seu tio lhe trouxera da Suíça quando Ka era criança. A caixa era decorada com as mesmas paisagens suíças que ele vira o dia inteiro nas casas de chá de Kars. De acordo com as anotações feitas por Ka tempos depois, quando retomou os poemas escritos em Kars para interpretá-los, classificá-los e organizá-los, a primeira coisa que surgiu da caixa de Ipek foi um relógio de brinquedo; dois dias depois ele iria descobrir que Ipek brincara com aquele relógio quando criança. E Ka usaria aquele relógio para voltar no tempo e dizer algumas coisas sobre a infância e mesmo sobre a vida...
“Não quero que você me deixe nunca”, disse Ka a Ipek. “Fiquei loucamente apaixonado por você.”
“Mas você mal me conhece”, disse Ipek.
“Há dois tipos de homem”, disse Ka em tom professoral. “O primeiro não se apaixona antes de ver como a jovem come um sanduíche, como ela penteia o cabelo, com que tipo de bobagem ela se preocupa, por que ela tem raiva do pai, o que as pessoas comentam sobre ela. O segundo tipo de homem — aquele em que me enquadro — só se apaixona por uma mulher quando não sabe quase nada sobre ela.”
“Em outras palavras, você se apaixonou por mim porque não sabe nada sobre mim? Você acha mesmo que se pode chamar isso de amor?”
“Se você se entrega por inteiro, é assim que acontece”, disse Ka.
“Quer dizer que quando você souber como eu como um sanduíche e o que uso no cabelo, deixará de me amar.”
“Não, porque a essa altura a intimidade que se criou entre nós se aprofundará, transformando-se num desejo que envolverá nossos corpos, e estaremos ligados para sempre por nossas lembranças felizes.”
“Não se levante; continue sentado na cama”, disse Ipek. “Não consigo beijar ninguém quando meu pai está sob o mesmo teto.” Ela não se esquivou de seus primeiros beijos, mas depois o afastou. “Quando meu pai está em casa, não gosto disso.”
Ka tentou beijá-la nos lábios mais uma vez, depois voltou a sentar-se na beira da cama. “Temos que nos casar e sair correndo deste lugar tão logo seja possível. Sabe quanto podemos ser felizes em Frankfurt?”
Houve um silêncio. Então: “Como você pode apaixonar-se por mim sem nem me conhecer?”.
“Porque você é muito bonita... porque já vi em meus sonhos como seremos felizes juntos... porque consigo lhe dizer qualquer coisa sem a menor vergonha. Em meus sonhos não consigo nunca parar de nos imaginar fazendo amor.”
“O que você fazia quando estava em Frankfurt?”
“Eu pensava um bocado sobre os poemas que não conseguia escrever... Eu me masturbava... A solidão é essencialmente uma questão de orgulho; você mergulha em seu próprio cheiro. E sempre assim com todos os verdadeiros poetas. Se alguém passa muito tempo se sentindo feliz, se torna banal. Da mesma forma, se você fica infeliz por muito tempo, perde sua capacidade poética... A felicidade e a poesia só podem coexistir por um prazo brevíssimo. Depois disso, ou a felicidade embota o poeta ou o poema é tão verdadeiro que destrói sua felicidade. Morro de medo da infelicidade que me espera em Frankfurt.”
“Então fique em Istambul”, disse Ipek.
Ka olhou-a atentamente. “E em Istambul que você quer viver?”, perguntou num sussurro. Seu maior desejo naquele momento era que Ipek lhe pedisse alguma coisa.
Ipek também percebeu isso. “Eu não quero nada”, disse ela.
Ka sabia que a estava pressionando. Algo lhe dizia que ele não ficaria em Kars por muito tempo — que logo não conseguiria mais respirar ali —, por isso precisava pressionar, como se sua vida dependesse daquilo. Por alguns instantes eles ouviram fragmentos de uma conversa ao longe; então passou uma carroça puxada por um cavalo, e eles ficaram ouvindo o ruído das rodas avançar pela neve. De pé no vão da porta, devagar e meticulosamente, Ipek tirava fios de cabelo da escova em sua mão.
“A vida aqui é tão pobre e tão sem esperança que as pessoas, mesmo pessoas como você, se esquecem de como se deseja alguma coisa”, disse Ka. “Não podemos pensar em vida aqui, só em morte... Você vem comigo?” Ipek não respondeu. “Se você for me dar uma resposta negativa, não me responda”, disse Ka.
“Eu não sei”, disse Ipek, olhos fitos na escova. “Estão esperando por nós na outra sala.”
“Há alguma intriga em curso por aqui, mas não tenho idéia do que se trata”, disse Ka. “Por que você não me explica?”
As luzes se apagaram. Como Ipek ficasse imóvel, Ka quis abraçá-la, mas estava tão preocupado com a idéia de voltar para Frankfurt sozinho que também não se mexeu.
“Você não vai conseguir escrever um poema nesta escuridão de breu”, disse Ipek. “Vamos.”
“Qual a coisa que você mais deseja de mim? O que posso fazer para que você me ame?”
“Seja você mesmo”, disse Ipek. Ela se levantou e encaminhou-se para a porta.
Ka sentira-se tão feliz sentado na beirada da cama que precisou de um grande esforço para se levantar. Ele voltou a sentar-se no frio quarto ao lado da cozinha, e à luz bruxuleante da vela se lembrou do poema intitulado “A caixa de chocolate”, que estava no seu caderno verde.
Quando se ergueu de novo, encontrou Ipek bem à sua frente; ele se avançou para abraçá-la e mergulhar nos seus cabelos, mas seus pensamentos se interpuseram; era quase como se estes também estivessem cambaleando na escuridão.
Ali, afogueadas à luz da vela da cozinha, estavam Ipek e Kadife. Com os braços ao redor do pescoço uma da outra, enlaçavam-se como amantes.
“Papai mandou procurar você”, disse Kadife.
“Está tudo bem, querida.”
“Ele não conseguiu escrever o poema?”
“Eu escrevi”, disse Ka, emergindo da sombra. “Mas agora eu estava esperando poder ajudar vocês.”
Ele entrou na cozinha; à luz da vela, não viu ninguém. Mais que depressa, encheu um copo de raki e tomou-o puro. Quando as lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, ele emborcou um copo de água.
Quando saiu da cozinha, encontrou-se mergulhado numa escuridão ameaçadora. Então viu ao longe uma vela sobre a mesa de jantar e se encaminhou para lá. As pessoas que estavam ali sentadas voltaram-se para olhar Ka e a sombra gigantesca que ele projetava na parede.
“Você conseguiu escrever o poema?”, perguntou Turgut bei. Antes de perguntar, ficou alguns instantes em silêncio, como se quisesse imprimir à pergunta um certo ar de troça.
“Sim.”
“Parabéns.” Ele empurrou um copo de raki para a mão de Ka e começou a enchê-lo. “E sobre o quê?”
“Sobre todos a quem entrevistei desde que cheguei aqui, todos com quem conversei. Concordo com todos. O medo que eu sentia em Frankfurt quando andava na rua, agora está dentro de mim.”
“Eu o entendo perfeitamente”, disse Hande com ar de quem sabia das coisas.
Ka sorriu agradecido. Não descubra sua cabeça, belezinha, ele teve vontade de dizer.
“Se, quando você fala que acredita em todos que ouviu aqui”, disse Turgut bei, “está querendo me dizer que acreditava em Deus quando estava em companhia do sheik efêndi, então deixe-me esclarecer uma coisa. O sheik efêndi não fala em nome do Deus que veneramos em Kars!”
“Então, quem fala em nome de Deus aqui?”, perguntou Hande.
Turgut bei não se irritou com ela. Embora fosse turrão e briguento, tinha o coração mole demais para ser um ateu implacável. Ka também percebeu que, por mais que Turgut bei sofresse com a infelicidade das filhas, sofria ainda mais com a possibilidade de desintegração dos próprios hábitos e do seu mundo. Não se tratava de uma preocupação política, mas da preocupação de um homem que, mais que qualquer outro, temia perder seu lugar à mesa, de um homem cujo único prazer era passar as noites com as filhas e seus convidados discutindo durante horas sobre política e sobre a existência ou não-existência de Deus.
A energia voltou, e a sala ficou iluminada de repente. Aquela altura eles já estavam tão acostumados com as idas e vindas casuais da luz que ninguém mais se incomodava com os rituais de interrupção de energia elétrica que Ka lembrava da sua infância em Istambul — ninguém comemorava a volta da luz nem perguntava se a máquina de lavar roupas parara no meio de um ciclo; não havia nada daquela alegria que ele sentia outrora em dizer “Deixem que eu apago as velas”; em vez disso, todo mundo se comportou como se nada tivesse acontecido. Turgut bei ligou a televisão de novo e, controle remoto na mão, começou a trocar de canais. Ka sussurrou para as jovens que Kars era uma cidade extraordinariamente silenciosa.
“É porque temos medo de nossa própria voz”, disse Hande.
“Isso”, disse Ipek, “é o silêncio da neve.”
Dando-se por vencidos, ficaram olhando a tela da televisão que mudava o tempo todo. Quando segurou a mão de Ipek por baixo da mesa, Ka pensou que se passasse os dias sem fazer nada e as noites de mãos dadas com Ipek olhando televisão, viveria feliz até o fim da vida.
No Teatro Nacional
Exatamente sete minutos depois de ter chegado à conclusão de que ele e Ipek poderiam viver felizes para sempre em Kars, Ka estava correndo na neve em direção ao Teatro Nacional, o coração aos pulos como se estivesse avançando sozinho numa zona de guerra. Tudo mudara durante aquele intervalo de sete minutos, com uma rapidez que tinha sua própria lógica.
Quando Turgut bei voltou a sintonizar a transmissão do Teatro Nacional, ficou claro para todos, pelo barulho do auditório, que alguma coisa extraordinária acabava de acontecer. Embora aquilo despertasse neles um desejo de excitação, um desejo de sair de sua rotina provinciana ainda que só por uma noite, também lhes inspirava o temor de que algo desse muito errado. Como a câmera mostrava apenas uma parte do salão, todos estavam muito curiosos em saber o que se passava. Enquanto viam os expectadores inquietos, batendo palmas e gritando, percebiam uma certa tensão entre as pessoas ilustres sentadas nas primeiras fileiras e os jovens sentados ao fundo.
No palco estava um goleiro, outrora muito conhecido nos lares de toda a Turquia, falando sobre uma trágica partida quinze anos antes, na qual os ingleses conseguiram fazer onze gols. Mal ele acabara de contar a triste história do primeiro gol, o apresentador do programa apareceu na tela; percebendo que eles estavam fazendo uma pausa para um comercial, como se faz na televisão nacional, o goleiro parou de falar. O apresentador agarrou o microfone e, depois de recitar rapidamente dois comerciais (a Mercearia Tadal, situada na avenida Fevzi Pasa, tinha orgulho de anunciar que finalmente chegara a carne temperada Kayseri, e o curso pré-vestibular Saber comunicava que abrira suas inscrições), ele lembrou ao público as maravilhas que ainda estavam por vir e, ao anunciar pela segunda vez o nome de Ka, lançou um olhar aflito à câmera.
“Perder a chance de ver nosso grande poeta, que veio de Frankfurt para visitar nossa cidade fronteiriça, é uma grande tristeza.”
“Bem, aí está”, disse Turgut bei imediatamente. “Se você não for agora, vai ser uma terrível afronta.”
“Mas eles nem ao menos me perguntaram se eu gostaria de participar”, disse Ka.
“É assim que se fazem as coisas por aqui”, disse Turgut bei. “Se eles o tivessem convidado, você teria recusado. Mas agora você irá, porque você não quer dar a impressão de que os despreza.”
“Nós vamos ver você daqui”, disse Hande, com um entusiasmo que ninguém poderia ter previsto.
Nesse instante, a porta se abriu. Era o rapaz que estava na recepção aquela noite. “O diretor do Instituto de Educação acaba de morrer no hospital.”
“Pobre idiota”, disse Turgut bei, fixando em seguida os olhos em Ka. “Os islamitas se lançaram numa operação de limpeza. Eles estão de olho em cada um de nós. Se você quer salvar sua pele, aconselho-o a aumentar sua fé em Deus o mais rápido possível. Receio que dentro em pouco uma fé moderada já não será bastante para salvar a pele de um velho ateu.”
“Acho que você tem razão”, disse Ka. “E sendo assim, já decidi responder ao chamado que tem vindo do mais fundo de mim por toda a minha longa vida e abrir meu coração a Deus.”
Todos perceberam seu tom sarcástico — sem levar muito a sério. Sabendo que ele estava muito bêbado, todos desconfiavam que aquelas tiradas podiam muito bem ter sido preparadas com antecedência.
Então Zahide entrou depressa na sala, com uma grande panela de alumínio que rebrilhava à luz da lâmpada. Sorrindo à mesa como uma mãe orgulhosa, ela disse: “Ainda sobrou uma porção de sopa, não vamos desperdiçá-la. Qual das moças vai querer?”.
Ipek estivera recomendando a Ka que não fosse ao Teatro Nacional, com medo do que pudesse acontecer lá, mas agora ela se voltara, junto com Kadife e Hande, para sorrir à criada curda.
Se Ipek disser “Eu quero”, pensou Ka, isso significa que vamos nos casar e iremos para Frankfurt. E se assim for, irei ao Teatro Nacional e lerei “Neve”.
“Eu quero!”, disse Ipek, adiantando sua tigela sem muito entusiasmo.
Enquanto se atirava por entre os flocos de neve gigantes, Ka lembrava-se de que era um forasteiro em Kars, e por um instante teve certeza de que iria esquecer aquela cidade tão logo a deixasse — mas essa sensação não durou muito. Agora, de repente, ele recebia sinais do destino. Conseguia perceber que a vida encerrava uma secreta geometria sobre a qual sua mente racional não tinha nenhum poder, mas estando dominado por um desejo de sujeitar a própria razão e encontrar a felicidade, sentia também que — pelo menos naquele momento — seu desejo de felicidade não era forte o bastante.
Ele olhou para a frente, acompanhou com o olhar a fieira ondulante de bandeirolas da campanha eleitoral que se estendia até o Teatro Nacional: não havia vivalma sob elas, na ampla avenida coberta de neve. Enquanto olhava para os velhos e imponentes edifícios de ambos os lados, admirando-lhes as belas portas, os beirais harmônicos, os bonitos frisos e as majestosas fachadas, Ka sentiu a forte presença das pessoas (armênios que negociavam em Tiflis? Paxás otomanos que cobravam impostos dos laticínios?) que tinham levado uma vida feliz, tranqüila e mesmo divertida ali. Agora que os armênios, russos, otomanos e os primeiros republicanos turcos que tinham feito da cidade um modesto centro de civilização tinham ido embora e ninguém viera substituí-los, as ruas estavam desertas. Diferentemente, porém, do que acontece com a maioria das cidades abandonadas, aquelas ruas vazias não inspiravam medo. Ka encantava-se com os galhos carregados de neve dos oleandros e dos plátanos, com os pingentes de gelo caindo dos lados dos postes de iluminação, com suas lâmpadas de um laranja-pálido, e com o brilho mortiço das lâmpadas de neon por trás das vitrines cobertas de gelo das lojas. A neve caía num silêncio mágico, quase sagrado, e afora seus passos quase silenciosos e a respiração ofegante, Ka não ouvia mais nada. Nem o latir de um cão. Ele chegara ao fim do mundo; ao que parecia, o mundo todo estava hipnotizado pela neve que caía. Enquanto olhava os flocos de neve caindo através do halo de luz, observou que alguns tombavam pesadamente em direção ao chão, enquanto outros revoluteavam e mergulhavam na escuridão.
De pé sob o beirai do Estúdio Fotográfico Palácio de Luz, ajudado pela luz vermelha do luminoso coberto de gelo, ele examinou um floco de neve que caíra na manga de seu casaco.
Houve uma rajada de vento. Alguma coisa se moveu; como a luz vermelha do luminoso do estúdio se apagasse, o oleandro do outro lado da rua pareceu também se apagar com ela. Ele olhou em direção ao Teatro Nacional e viu uma multidão ao redor da entrada; um pouco além, viu um microônibus da polícia. Havia mais gente aglomerada na porta dos cafés do outro lado da rua.
No momento em que ele entrou no teatro, a gigantesca onda de barulho e agitação vinda do auditório o subjugou. O ar estava carregado de vapores alcoólicos, de fumaça de cigarro e da respiração das pessoas. Elas permaneciam de pé, ombro a ombro, nos corredores; num canto, uma banca vendia chá, refrigerantes e pãezinhos de gergelim. Das portas dos sanitários vinha um relento que lembrava o de um cadáver; Ka avistou um grupo de jovens que cochichavam. De um lado ele viu policiais em uniforme azul, e mais adiante passou por alguns à paisana, ouvindo seus rádios de polícia. Segurando a mão do pai, totalmente abstraída do barulho atrás de si, uma criança observava os grãos-de-bico torrados que deixara cair dentro da garrafa de refrigerante.
Alguém estava acenando vigorosamente do corredor lateral, mas Ka não tinha certeza se o aceno era para ele.
“Eu o reconheci lá de longe — só por causa de seu casaco!”
Quando Ka viu o rosto de Necip emergir da multidão, seu coração pulou de alegria. Eles se abraçaram calorosamente.
“Eu sabia que você ia vir”, disse Necip. “Estou tão alegre em ver você. Você se importa se eu lhe perguntar uma coisa agora mesmo? Tenho duas coisas muito importantes na minha cabeça.”
“Então você quer me perguntar uma ou duas coisas?”
“Você é muito inteligente, tão inteligente que sabe que a inteligência não é tudo”, disse Necip. Ele levou Ka a um canto mais calmo. “Você disse a Hicran — Kadife — que eu estou apaixonado por ela e que ela é toda a minha vida?”
“Não, não disse.”
“Você saiu da casa de chá com ela. Você não tocou em meu nome?”
“Eu disse que você é um aluno da escola secundária religiosa.”
“E então? Ela disse alguma coisa?”
“Não, não disse.”
Houve uma pausa.
“Eu sei a verdadeira razão por que você não falou em mim outra vez”, disse Necip, fazendo um certo esforço. Ele engoliu em seco. “Kadife é quatro anos mais velha que eu, então provavelmente nem prestou atenção em mim. Talvez você tenha discutido assuntos particulares com ela. Talvez até assuntos políticos secretos. Não estou lhe pedindo que me conte nada, tanto num caso como no outro. Estou preocupado só com uma coisa, e essa coisa é extremamente importante para mim. Sua resposta vai influenciar o resto de minha vida. Ainda que Kadife nem ao menos tenha me notado — o que pode levar anos, e a essa altura ela poderá estar casada — sua resposta agora poderia me levar a passar o resto de minha vida amando-a ou então me fazer esquecê-la daqui para a frente. Então, por favor, me dê sua resposta agora, sem mais demora.”
“Ainda estou esperando que você faça a pergunta”, disse Ka, num tom um tanto formal.
“Vocês falaram sobre coisas superficiais? Coisas como as bobagens da televisão, fofoquinhas bobas ou sobre pequenas coisas que o dinheiro pode comprar? Entende o que quero dizer? Kadife é o tipo de pessoa séria que não tem tempo para superficialismos, ou eu me apaixonei por ela em vão?”
“Não, não falamos nada superficial”, disse Ka.
Ele pôde notar que sua resposta foi arrasadora; no rosto do adolescente ele percebeu o esforço sobre-humano para recobrar as forças.
“Mas você achou que ela é uma pessoa extraordinária.”
“Sim.”
“Você se apaixonaria por ela? Afinal de contas, ela é muito bonita. Ela é bonita e independente — mais que qualquer outra mulher turca que eu tenha visto em minha vida.”
“Se é de beleza que estamos falando”, disse Ka, “a irmã dela é mais bonita ainda.”
“Então do que estamos falando afinal?”, perguntou Necip. “O que Deus, em sua sabedoria, pretende quando me faz pensar tanto em Kadife?”
Com um ar infantil que surpreendeu Ka, ele abriu os grandes olhos verdes, um dos quais iria ser estourado dentro de cinqüenta e um minutos.
“Não sei”, disse Ka.
“Sim, você sabe, só que não quer me dizer.”
“Eu não sei.”
“Oh, um escritor devia ser capaz de falar sobre tudo o que é importante”, disse Necip teimosamente. “Se eu fosse um escritor, iria querer falar sobre todas as coisas sobre as quais as pessoas não falam. Você não pode me dizer tudo, só desta vez?”
“Então pergunte.”
“Há uma coisa que todos queremos da vida, não é?”
“É verdade.”
“Então, você pode me dizer o que é?”
Ka sorriu e não disse nada.
“Para mim, é bem simples”, disse Necip com orgulho. “Eu quero me casar com Kadife, viver em Istambul e me tornar o primeiro escritor islâmico de ficção científica. Eu sei que nenhuma dessas coisas é possível, mas mesmo assim as desejo. Se você não puder me dizer o que deseja, tudo bem, porque eu o entendo. No futuro serei como você. E meu instinto me diz o seguinte: quando você olha para mim, vê sua própria juventude, e é por isso que gosta de mim.”
Um sorriso feliz e esperto começou a aflorar em seus lábios, causando um certo desconforto em Ka. “Quer dizer que você seria como a pessoa que eu fui vinte anos atrás?”, perguntou ele.
“Sim. Vai haver uma cena exatamente igual a esta no romance de ficção científica que um dia vou escrever. Desculpe-me, posso pôr a mão em sua testa?” Ka inclinou um pouco a cabeça para a frente. Com a facilidade de um gesto costumeiro, Necip pôs a palma da mão na testa de Ka.
“Agora vou lhe dizer o que você estava pensando vinte anos atrás.”
“Era isso o que você fazia com Fazil?”
“Nós pensamos a mesma coisa ao mesmo tempo. Mas entre mim e você há uma diferença de tempo. Agora me ouça, por favor: num dia nevoento de inverno, quando você estudava no liceu, você estava imerso em seus pensamentos. Você ouvia Deus dentro de si, e estava tentando esquecê-lo. Você via que o mundo era um, mas achava que se pudesse fechar os olhos a essa visão, podia ser mais infeliz e também mais inteligente. E você tinha razão. Só as pessoas que são muito inteligentes e muito infelizes conseguem escrever bons poemas. Então, heroicamente, você se dispôs a suportar a dor da descrença, só para ser capaz de escrever bons poemas. Mas você não se deu conta de que, quando se perde aquela voz interior, termina-se totalmente só, num universo vazio.”
“Certo. Você tem razão, eu estava pensando isso”, disse Ka. “Então, diga-me, é isso que você está pensando agora?”
“Eu sabia que você ia me perguntar isso”, disse Necip um tanto incomodado. “Você não quer acreditar em Deus? Você quer, não quer?” A mão dele estava tão fria que fazia Ka tremer, mas agora Necip a afastou da testa de Ka. “Eu poderia lhe dizer muito mais sobre isso. Há uma voz dentro de mim que me diz: ‘Não acredite em Deus’. Porque quando você faz tanto esforço para acreditar que algo existe, não pode deixar de ter uma pequena desconfiança, uma vozinha que pergunta ‘E se essa coisa não existir?’. Você entende, não é? Exatamente nos momentos em que eu achava que minha fé em meu belo Deus me dava forças, às vezes eu me perguntava, da mesma forma que uma criança se pergunta o que aconteceria se seus pais morressem: ‘Se Deus não existir, o que acontece, então?’. Nessas ocasiões surgia uma visão diante dos meus olhos: uma paisagem. Como eu sabia que a paisagem fora criada pelo amor de Deus, não sentia medo e olhava para ela com toda a atenção.”
“Fale-me dessa paisagem.”
“Você vai colocá-la num poema? Se for, não precisa mencionar meu nome. Eu só quero uma coisa em troca.”
“Diga.”
‘Nos últimos seis meses, escrevi três cartas para Kadife. Não consegui pôr nenhuma delas no correio. Não porque eu tenha vergonha: eu não as enviei porque sabia que elas seriam abertas e lidas na agência do correio. Metade da população de Kars está trabalhando como agente da polícia secreta. Metade das pessoas aqui presentes também. Elas nos seguem por toda parte. Até nosso povo nos segue.”
“Quem é nosso povo?”
“Todos os jovens islamitas de Kars. Eles vieram aqui para perturbar, porque sabiam que os militares e os secularistas iam transformar esta noite numa manifestação. Vão apresentar a velha peça de que tanto ouvimos falar; chama-se Manto para a cabeça. E dizem que vão usá-la para depreciar nossas jovens que o usam. Para falar a verdade, não agüento política, mas meus amigos têm razão de estar furiosos com isso. Mas eles desconfiam de mim, porque não sou tão inflamado quanto eles. Não posso lhe dar essas cartas. Quer dizer, não agora, com todo mundo olhando. Mas quero que as entregue a Kadife.”
“Agora ninguém está olhando. Dê-me as cartas, depressa, depois me conte sobre a paisagem.”
“As cartas estão aqui, mas não as tenho comigo. Temi que eles me revistassem à entrada. Meus amigos também poderiam me revistar. Se você passar por aquela porta perto do palco, vai ver um banheiro no fim do corredor. Vá me encontrar lá dentro de exatamente vinte minutos.”
“E então você vai me falar da paisagem?”
“Um deles está vindo em nossa direção”, disse Necip desviando o olhar. “Eu o conheço. Não olhe em sua direção, aja como se estivesse tendo uma conversa normal.”
“Está bem.”
“Todos em Kars querem muito saber por que você veio para cá. Eles acham que você está numa missão secreta do governo ou então foi enviado pelas potências ocidentais. Meus amigos me mandaram lhe perguntar se isso é verdade. Essas histórias são verdadeiras?”
“Não, não são.”
“O que digo a eles, então? Por que você veio?”
“Eu não sei.”
“Sabe, sim, mas mais uma vez está com vergonha demais para admitir.” Houve um silêncio. “Você veio aqui porque estava muito infeliz”, disse Necip.
“Como você sabe?”
“Pelos seus olhos; nunca vi ninguém parecer tão infeliz... Eu também não estou feliz agora, de modo algum, mas pelo menos sou jovem. A infelicidade me dá forças. Na minha idade, é melhor ser infeliz que feliz. As únicas pessoas felizes em Kars são os idiotas e os canalhas. Mas quando eu tiver a sua idade, quero ser capaz de encher minha vida de felicidade.”
“Minha infelicidade me protege da vida”, disse Ka. “Não se preocupe comigo.”
“Ah, você não está com raiva de mim por causa do que eu disse, está? Tem uma coisa tão boa em seu rosto que sinto poder dizer qualquer coisa que me venha à cabeça, ainda que seja uma grande bobagem. Se eu dissesse coisas como essa aos meus amigos, eles iam zombar de mim sem dó.”
“Até Fazil?”
“Fazil é diferente. Se fizerem algum mal a mim, Fazil vai atrás deles, e ele sempre sabe o que estou pensando. Agora diga alguma coisa. Tem alguém nos observando.”
“Quem está nos observando?”, perguntou Ka. Ele olhou para a multidão que se acotovelava atrás das fileiras de cadeiras: um homem com a cabeça em forma de pêra, dois jovens cheios de espinhas, adolescentes carrancudos cobertos de trapos; todos eles agora olhavam para o palco, e alguns cambaleavam feito bêbados.
“Parece que não fui o único a beber demais esta noite”, murmurou Ka.
“Ele bebem porque estão infelizes”, disse Necip. “Mas você ficou bêbado para resistir à felicidade oculta que crescia dentro de você.”
Enquanto dizia isso, mergulhava de novo na multidão. Ka não sabia ao certo se o ouvira bem. Mas apesar do barulho e da agitação à sua volta, sua cabeça estava serena; ele se sentia relaxado, como se estivesse ouvindo sua música favorita. Alguém acenava para ele, o que o fez voltar o olhar para uns poucos assentos vazios reservados para os artistas que iam se apresentar; alguém do grupo de teatro — um ajudante de palco polido, mas de aspecto grosseiro — mostrou-lhe onde devia sentar.
Anos depois, numa fita de vídeo que encontrei nos arquivos da Televisão Fronteira de Kars, pude ver o que Ka viu no palco. Era uma encenação de um conhecido comercial de banco, mas como fazia anos que Ka não via a televisão turca, não saberia dizer se eles estavam fazendo graça ou simples-mente imitando. Ainda assim, dava para ver que o homem que fora ao banco fazer um depósito era um dândi extravagante, a caricatura de um ocidental. Quando aquele número era apresentado em cidades ainda menores e mais remotas que Kars, em casas de chá não freqüentadas por mulheres nem por funcionários do governo, a Companhia de Teatro Brechtiana e Bakhtiniana de Sunay Zaim apresentava-o de forma muito mais obscena, com o dândi do cartão de crédito sendo uma bicha-louca que fazia os espectadores caírem na gargalhada. No esquete seguinte, em que se via um homem de bigode vestido de mulher derramando xampu e condicionador nos próprios cabelos, Ka levou algum tempo para perceber que o ator era o próprio Sunay Zaim. Tal como fazia naquelas remotas casas de chá quando resolvia trazer algum alívio à sua platéia pobre e irada, exclusivamente masculina, com uma “catarse anticapitalista”, ele brindou a platéia daquela noite com uma série de obscenidades, enquanto fingia enfiar o comprido tubo de xampu no traseiro. Mais tarde, a mulher de Sunay, Funda Eser, fez uma paródia de um comercial de uma lingüiça muito apreciada. Segurando um rolo de lingüiças na mão de um jeito absolutamente lúbrico, ela perguntou “É um cavalo ou um jumento?”, e saiu correndo do palco antes de levar a coisa adiante.
Vural, o famoso goleiro dos anos 6o, voltou ao palco para continuar o relato da vergonhosa partida de futebol de Istambul, quando os ingleses fizeram onze gols, dando também vários pormenores da partida e dos casos de amor que tivera com famosas estrelas de cinema naquela época. O que ele ofereceu ao público foi uma coleção de prazeres masoquistas, dando-lhes uma oportunidade para sorrir da desgraça do turco.
Necip descreve sua paisagem e Ka recita seu poema
Vinte minutos depois, Ka passou pelo frio corredor e foi ao sanitário masculino, onde Necip estava entre os homens voltados para os mictórios. Eles ficaram por algum tempo no final da fila para os gabinetes fechados à sua frente, agindo como se não se conhecessem. Ka aproveitou a oportunidade para admirar os frisos do teto alto, guirlandas de rosas e folhas.
Quando chegou a vez deles, os dois entraram no mesmo gabinete. Ka notou que um velho desdentado os observava. Depois de aferrolhar a porta por dentro, Necip disse: “Eles não nos viram”. Deu um abraço rápido, mas caloroso em Ka. Apoiando o pé numa pequena saliência da parede, ele ergueu o corpo, estendeu a mão e pegou vários envelopes que estavam em cima da caixa da descarga. De volta ao chão, soprou a poeira dos envelopes.
“Quando você entregar estas cartas a Kadife, quero que lhe diga só uma coisa”, disse ele. “E pensei um bocado sobre isso. A partir do momento em que ela ler as cartas, não alimentarei a esperança de ter nada com Kadife pelo resto de minha vida. Quero que lhe diga isso. Deixe isso bem claro para ela, para que ela entenda exatamente o que quero dizer.”
“Se ela deve saber que você a ama no mesmo instante em que descobre que não há nenhuma esperança nesse amor, por que lhe contar, afinal de contas?”
“Ao contrário de você, não tenho medo da vida nem de minhas paixões”, disse Necip. Temendo ter perturbado Ka, ele acrescentou: “A única coisa que me interessa são estas cartas: não consigo viver sem estar apaixonado por alguém ou por alguma coisa bela. Agora eu tenho de buscar o amor e a felicidade em outro lugar. Mas primeiro tenho de tirar Kadife de minha cabeça”. Ele entregou as cartas a Ka. “Posso lhe dizer a quem pretendo amar de todo o coração depois de Kadife?”
“Quem?”, perguntou Ka, colocando as cartas no bolso.
“Deus.”
“Fale-me da paisagem que você vê.”
“Primeiro abra essa janela! O cheiro aqui não está nada bom.”
Ka lutou com o ferrolho enferrujado até conseguir abrir a janela. Por um instante eles ficaram ali emudecidos, como se testemunhando um milagre, olhando a interminável torrente de flocos de neve deslizando na noite silenciosamente.
“Como é belo o universo!”, sussurrou Necip.
“Em sua opinião, qual é a parte mais bela da vida?”, perguntou Ka.
Houve um silêncio. “Toda ela!”, disse Necip, como se estivesse revelando um segredo.
“Mas a vida não nos torna infelizes?”
“Nós é que fazemos isso. Não tem nada a ver com o universo nem com seu criador.”
“Fale-me sobre a paisagem.”
“Primeiro ponha a mão na minha testa e fale sobre o meu futuro”, disse Necip. Ele arregalou os olhos, um dos quais iria ser destruído vinte e seis minutos depois, junto com o cérebro. “Quero ter uma vida longa e plena, e sei que vão me acontecer muitas coisas maravilhosas. Mas não sei o que estarei pensando daqui a vinte anos, e é isso que tenho curiosidade de saber.”
Ka apertou a palma da mão direita na testa lisa de Necip. “Oh, meu Deus!” Num gracejo, ele afastou a mão, como se tivesse tocado em algo muito quente. “Tem um monte de coisas acontecendo aí dentro.”
“Conte-me.”
“Dentro de vinte anos — em outras palavras, quando você tiver trinta e sete anos — você finalmente terá entendido que o mal do mundo — isto é, a pobreza e a ignorância dos pobres e a esperteza e dissipação dos ricos — e toda a vulgaridade do mundo, toda a violência, toda a brutalidade — isto é, todas as coisas que nos enchem de culpa e nos fazem pensar em suicídio — decorrem do fato de todo mundo pensar igual”, disse Ka. “Portanto, da mesma forma que muitos neste lugar fizeram coisas idiotas e morreram a pretexto de salvar a decência, você descobrirá que na verdade se pode ser uma pessoa boa, ainda que dê a impressão de ser má e desavergonhada. Mas você saberá que isso pode ter terríveis conseqüências. Porque o que sinto sob minhas mãos trêmulas é...”
“O que?”
“Você é muito brilhante, e mesmo na sua idade sabe do que estou falando. É por isso que quero que você me conte antes.”
“Contar o quê?”
“Por que você se sente tão culpado pela miséria dos pobres. Sei que você sabe a razão, mas tem de dizer.”
“Você não está dizendo — Deus me defenda — que vou deixar de acreditar em Deus, não é?”, disse Necip. “Se é isso o que você está dizendo, eu preferiria morrer.”
“Não vai acontecer da noite para o dia, como aconteceu com o pobre homem do elevador. Vai acontecer tão lentamente que você talvez nem note. E como sua morte vai ser muito lenta, tendo estado nesse outro mundo por tanto tempo, vai ser igual ao bêbado que só se dá conta de que morreu depois de tomar raki além da conta.”
“E assim que você é?”
Ka tirou a mão da testa de Necip. “Não, sou exatamente o contrário. Devo ter começado a acreditar em Deus anos atrás. Isso foi acontecendo lentamente, e só o notei quando cheguei a Kars. É por isso que estou tão feliz aqui e conseguindo escrever poemas novamente.”
“Você parece mesmo muito feliz e muito sábio agora”, disse Necip. “Por isso me pergunto se você pode responder a esta pergunta: será que um ser humano pode realmente conhecer o futuro? E mesmo que possa, pode encontrar a paz convencendo-se de que conhece o futuro? Isso é perfeito para meu primeiro romance de ficção científica.”
“Algumas pessoas conhecem o futuro”, disse Ka. “Sedar bei, por exemplo, o dono da Gazeta da Cidade Fronteiriça — ele publicou a história desta noite com muita antecedência.” Ka tirou seu exemplar do jornal do bolso, e eles leram juntos: “O espetáculo foi pontuado de palmas e aplausos entusiásticos”.
“Deve ser isso que eles chamam de felicidade”, disse Necip. “Nós poderíamos ser os poetas de nossa própria vida se ao menos pudéssemos primeiro escrever o que haveremos de ser, depois desfrutar das maravilhas que escrevemos. O jornal diz que você vai ler seu poema mais recente. Que poema é esse?”
Alguém bateu na porta do banheiro. Ka pediu a Necip que lhe falasse rapidamente sobre “a paisagem”.
“Vou lhe dizer agora”, disse Necip, “mas você vai ter de prometer não contar a mais ninguém. Eles não gostam que eu tenha relações amistosas com você.”
“Não vou contar a ninguém”, disse Ka. “Conte-me o que você vê.”
“Eu amo um bocado a Deus”, disse Necip num tom inquieto. “Às vezes, quando me pergunto o que aconteceria se, Deus nos livre, Deus não existisse — às vezes, faço isso sem nem ao menos querer —, aparece uma terrível paisagem diante de meus olhos.”
“Sim...”
“Eu vejo essa paisagem à noite, na escuridão, pela janela. Lá fora há duas muralhas brancas sem nenhuma abertura, altas como as de um castelo. Como dois castelos, de costas um para o outro! Existe apenas uma estreitíssima passagem entre eles que se estende na distância como uma estrada, e quando eu olho essa estrada sou dominado pelo medo. A estrada onde Deus não existe é cheia de neve e de lama como as de Kars, mas é toda roxa! Há algo no meio da estrada em que se lê PARE!, mas ainda assim não consigo deixar de olhar para o fim da estrada, para o lugar onde o mundo acaba. Bem no fim desse mundo, vejo uma árvore, uma última árvore, mas é nua e sem folhas. Então, como estou olhando para ela, ela fica de um vermelho vivo e se incendeia. Ê nesse ponto que começo a me sentir muito culpado por querer tanto saber se Deus existe ou não existe. Então, com a mesma rapidez, a árvore volta a ficar preta. Digo a mim mesmo que é melhor não olhar novamente, mas não consigo me conter, olho novamente, e a árvore do fim do mundo começa a se inflamar e se torna rubra mais uma vez. Isso continua até de manhã.”
“O que é que tem essa paisagem que o assusta tanto?”
“Não posso deixar de pensar que é o diabo me fazendo acreditar que uma paisagem como essa poderia existir neste mundo. Mas se consigo fazer alguma coisa surgir diante de meus olhos, a fonte deve ser minha própria imaginação. Porque se existisse mesmo um lugar como esse na terra, isso significaria que Deus — Deus nos livre — não existe. E como isso não pode ser verdade, a única explicação possível é que eu mesmo não acredito em Deus. E isso seria pior que a morte.”
“Eu entendo”, disse Ka.
“Procurei numa enciclopédia uma vez, e lá diz que a palavra ateu vem do grego athos. Mas athos não se refere a pessoas que não acreditam em Deus; refere-se a pessoas solitárias, pessoas que os deuses abandonaram. Isso prova que as pessoas nunca podem ser de fato atéias, porque, ainda que o quisessem, Deus nunca nos abandona aqui. Para se tornar ateu, então, primeiro você tem de se tornar um ocidental.”
“Eu queria ser um ocidental e crente”, disse Ka.
“Um homem pode ficar todas as noites rindo na casa de chá e jogando cartas com os amigos, pode se divertir tanto com os colegas que não haja um só instante em que não estejam às gargalhadas, pode passar todas as horas do dia batendo papo com seus amigos íntimos — mas se esse homem abandonou Deus, ainda assim ele vai ser o homem mais solitário do mundo.”
“Deve servir de algum consolo ter um amor verdadeiro”, disse Ka.
“Mas só se ela o amasse tanto quanto você a ama.”
Bateram de novo na porta, e Necip abraçou Ka, beijou-o como uma criança em ambas as faces e saiu do banheiro. Ka deu uma olhada no homem que estava esperando, agora entrando apressado em outro banheiro, acendeu um cigarro e olhou a maravilhosa neve que continuava a cair lá fora. Ele pensou sobre a paisagem de Necip — ele se lembrava de sua descrição palavra por palavra, como se já se tratasse de um poema — e se ninguém chegasse de Porlock, ele tinha certeza de que logo estaria escrevendo esse poema em seu caderno.
O homem de Porlock! Em nossos últimos anos de escola, quando Ka e eu passávamos metade da noite conversando sobre literatura, esse era um de nossos assuntos preferidos. Qualquer pessoa que conheça um pouco de poesia inglesa haverá de se lembrar da nota no início do poema “Kubla Khan”, de Coleridge. Ele explica que a obra é um “fragmento de um poema, surgido de uma visão durante um sonho”; o poeta adormecera depois de tomar remédio para uma doença (na verdade, ele tomara ópio para se divertir) e vira, no mais profundo do sono, frases do livro que estava lendo antes de perder a consciência, só que agora cada frase e cada objeto adquirira vida própria, numa magnífica paisagem de sonho, para se tornar um poema. Já pensou? Um magnífico poema que se criou a si mesmo, sem que o poeta tenha despendido nenhuma energia mental! E o mais espantoso é que quando Coleridge acordou, conseguiu se lembrar desse esplêndido poema, palavra por palavra. Ele pegou a pena, o tinteiro e algumas folhas de papel e começou a anotar cuidadosamente, verso após verso, como se lhe ditassem. Ele acabara de escrever a última linha do poema, tal como o conhecemos hoje, quando bateram na porta. Ele se levantou para atender, e era um homem de uma cidade vizinha, Porlock, que viera cobrar uma dívida. Depois de ter acertado as coisas com o homem, ele correu de volta à mesa, mas descobriu que esquecera o resto do poema, exceto por algumas palavras soltas e sua atmosfera geral.
Como ninguém chegou de Porlok para quebrar sua concentração, Ka continuava com o poema claro em sua cabeça quando foi chamado ao palco. Ele era mais alto que todos os demais ali. E também se destacava pelo casaco cinza trazido da Alemanha.
A platéia estivera muito ruidosa, mas agora as pessoas faziam silêncio. Algumas delas — os estudantes indisciplinados, os desempregados, os islamitas rebeldes — ficaram em silêncio porque agora já não sabiam ao certo se deviam rir ou protestar. Os altos funcionários das primeiras filas, os homens que tinham seguido Ka durante todo o dia, o subprefeito, o subchefe de polícia e os professores — todos eles sabiam que Ka era um poeta. O esguio apresentador parecia enervado com o silêncio, então fez a Ka uma daquelas perguntas batidas de programas culturais na televisão. “Quer dizer então que o senhor é poeta”, disse ele. “O senhor escreve poemas. E difícil escrever poemas?” Ao final dessa entrevista inepta — e toda vez que vejo a fita, torço para conseguir esquecê-la — o público continuava sem saber se Ka achava difícil escrever poemas, mas sabia muito bem que ele acabara de chegar da Alemanha.
“O que você acha de nossa bela Kars?”
Depois de hesitar um pouco, Ka disse: “Muito bonita, muito pobre e muito triste”.
No fundo do salão, dois estudantes da escola secundária religiosa desandaram a rir. Alguém gritou: “Sua alma é que é pobre!”. Encorajados por esse insulto, seis ou sete outros se levantaram e começaram a gritar. Alguns aparteavam Ka de forma impertinente — e vá saber o que os outros estavam dizendo! Muito depois dos acontecimentos em questão, durante a visita que eu próprio fiz a Kars, Turgut bei me disse que quando Hande ouviu Ka dizer isso na televisão, começou a chorar. “Na Alemanha, você representava a literatura turca”, disse o apresentador, tentando seguir em frente.
“Por que ele não nos diz por que está aqui?”, gritou alguém.
“Eu vim para cá porque estava desesperadamente infeliz”, disse Ka. “Estou muito mais feliz aqui. Por favor, agora ouçam, vou ler meu poema.”
Por alguns instantes, reinou a confusão. Então os gritos cessaram, e Ka começou a falar. Apenas anos depois, quando tive em mãos o videoteipe daquela noite, consegui assistir à comovente performance do meu amigo; era a primeira vez que eu o via ler um poema para um grande auditório. Ele andou um pouco, com todo o cuidado, como alguém que tivesse a cabeça cheia de idéias, mas não havia a menor pretensão em sua postura. Afora uma ou duas ocasiões em que fez uma pausa como se não soubesse ao certo o que viria em seguida, ele recitou o poema até o fim, sem nenhum problema.
Quando Necip percebeu que a descrição de Ka do “lugar onde Deus não existe” coincidia palavra por palavra com sua “paisagem”, levantou-se da cadeira, mas ele não quebrou a concentração de Ka, que àquela altura descrevia o cair da neve. Houve um princípio de aplauso. Alguém do fundo levantou-se, gritou, e foi seguido por mais alguns. Era difícil saber se eles reagiam ao poema ou simplesmente estavam entediados.
A exceção de uma fugaz aparição um pouco mais tarde — sua silhueta contra um pano de fundo verde —, aquela foi a última imagem daquele que fora meu amigo por vinte e sete anos.
Uma peça sobre uma jovem que queima seu manto
Depois que Ka terminou de ler seu poema, o apresentador fez uma mesura exagerada e, destacando cada palavra do título, anunciou o principal número do programa, Minha pátria ou meu manto para cabeça.
Das fileiras do meio e do fundo onde estavam sentados os rapazes da escola secundária religiosa, vieram alguns gritos de protesto, um ou dois assobios e muitas vaias; alguns funcionários sentados nas primeiras filas bateram palmas. O resto do salão apinhado esperou para ver o que iria acontecer em seguida, com uma curiosidade mesclada de pavor. Os leves esquetes que a trupe apresentara no começo da noite — as desavergonhadas paródias de Funda Eser de comerciais conhecidos, a despropositada dança do ventre, a impressão que ela dava, ao lado de Sunay Zaim, de ser uma velha primeira-ministra acompanhada de seu marido corrupto — surpreendentemente pouco incomodaram, tendo sido bem recebidos mesmo entre os funcionários das primeiras filas.
A maioria dos espectadores também iria apreciar o número seguinte, embora já estivessem fartos dos insultos e da interminável baderna provocada pelos estudantes da escola religiosa. Às vezes não se podia ouvir o que se dizia no palco. Mas aquela peça terrivelmente ultrapassada, primitiva, de vinte minutos, tinha uma estrutura dramática tão clara que mesmo um surdo-mudo não teria a menor dificuldade em acompanhá-la.
De meados da década de 30 até os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial (quando era conhecida como Minha pátria ou meu manto), essa pequena peça era apresentada freqüentemente em liceus e no salão de prefeituras de cidadezinhas por toda a Anatólia, e era muito popular entre funcionários públicos ansiosos por libertar as mulheres do manto e de outras formas de repressão religiosa. Mas depois da década de 50, quando o ardente patriotismo do período kemalista deu lugar a algo menos intenso, a peça foi esquecida. Quando, anos mais tarde, me encontrei num estúdio de som com Funda Eser, que interpretara a mulher naquela noite em Kars, ela me falou de seu grande orgulho de encarnar a mesma personagem que sua mãe interpretara no Liceu de Kütahya em 1948, e de seu pesar pelo fato de que os acontecimentos que se seguiram à sua apresentação negaram-lhe a possibilidade de experimentar a justa exultação que sua mãe sentira. Embora arruinada pelas drogas, pelo cansaço e pelo medo, e embora seu rosto tivesse assumido aquele ar mortiço tão comum em atores, insisti para que me contasse exatamente o que se passara naquela noite. Como conversei com muitas outras testemunhas, agora sou capaz de contar o acontecido detalhadamente.
A maioria dos habitantes de Kars que estavam no Teatro Nacional ficou chocada e perplexa com a primeira cena. Quando eles ouviram falar que o título da peça era Minha pátria ou meu manto, acharam que devia ser uma referência à política atual, mas afora um ou dois octogenários que se lembravam do original dos velhos tempos, ninguém esperava ver uma mulher de verdade no palco usando um manto. Quando viram, confundiram-no com o manto que se tornara o respeitado símbolo do islã político. Enquanto olhavam aquela misteriosa mulher coberta andando para cima e para baixo no palco, não ficou imediatamente claro para eles que a intenção era passar a idéia de que ela estava triste: muitos na platéia a viram como orgulhosa, quase arrogante. Mesmo os funcionários conhecidos por suas opiniões radicais a respeito das vestes religiosas sentiram respeito por aquela mulher. E então, quando um estudante mais atento da escola secundária religiosa, adivinhando quem estava sob o manto, caiu na gargalhada e vaiou, provocou grande mal-estar nas primeiras filas.
Na segunda cena, quando a mulher fez seu grande gesto de independência, lançando-se a uma pregação iluminista enquanto tirava o manto, a platéia a princípio ficou aterrorizada. Mesmo os secularistas mais ocidentalizados do salão ficaram assustados à visão de seus próprios sonhos tornando-se realidade. O medo que eles tinham dos militantes políticos islamitas era tão grande que havia muito tinham aceitado que sua cidade continuasse como sempre foi. Eu falei sonhos, mas nem dormindo podiam conceber o Estado obrigando as mulheres a tirar os mantos como o fizera nos primeiros anos da República; eles estavam preparados para conviver com aquela prática, “desde que os islamitas não usem de intimidação ou obriguem mulheres ocidentalizadas a usar mantos, como vimos no Irã”.
“Mas a verdade sobre essa história é a seguinte: Todos aqueles kemalistas secularistas fervorosos das primeiras filas não eram kemalistas coisa nenhuma, eles eram covardes!” Foi isso que Turgut bei disse a Ka depois que tudo acabou. Não foram exatamente extremistas religiosos que se opuseram a que uma mulher descobrisse a cabeça. Todos os demais na sala temeram que aquele espetáculo enfurecesse os desempregados que assistiam à cena — para não falar da multidão de jovens que se agitava no salão. E então, quando um dos professores da primeira fila se levantou da cadeira para aplaudir Funda Eser no momento em que tirou o manto com elegância e determinação, um bando de jovens do fundo cobriu o pobre e infeliz professor de vaias. Note bem: segundo algumas testemunhas, o professor não estava tomando uma posição em favor da mulher moderna, mas antes sucumbindo a uma pasma admiração pelos braços roliços e por seu belo e legendário colo.
De sua parte, os republicanos das primeiras filas também não estavam satisfeitos com a situação. Tendo esperado que de sob o manto surgisse uma jovem aldeã de óculos, pura, zelosa, expressão radiante, ficaram muito frustrados ao notar tratar-se da lasciva praticante da dança do ventre Funda Eser. Com isso se queria dizer que só putas e imbecis descobrem a cabeça? Nesse caso, era exatamente o que os islamitas vinham dizendo havia muito tempo. Vários que estavam sentados próximo ao subprefeito lembram de tê-lo ouvido gritar: “Isso está errado, está tudo errado!”. Enquanto muitos outros juntavam-se ao coro — talvez para puxar o saco —, Funda Eser seguia em frente. Ainda assim, muitas pessoas das primeiras filas, embora inquietas, continuavam a assistir com silenciosa aprovação ao discurso iluminista daquela jovem republicana secularista em defesa das liberdades que todos desejavam desfrutar e, embora se ouvissem alguns protestos dos jovens da escola religiosa, ninguém se sentia intimidado por eles. Com certeza não o subprefeito, rodeado por outras autoridades que nada viam de atemorizante nas palhaçadas de uns poucos rapazes desmiolados da escola secundária religiosa. Na comitiva estava também Kasim bei, o corajoso subchefe de polícia, que em seu tempo tanto dificultara a vida do PKK curdo; grande número de oficiais do exército em trajes civis, acompanhados de suas mulheres; o diretor do departamento de cadastros, acompanhado da esposa, duas filhas, quatro filhos de terno e gravata e três sobrinhos; e o secretário municipal da Cultura, cuja principal tarefa era apreender fitas proibidas de música curda e enviá-las a Ancara.
Poderia ser dito que todas essas autoridades confiavam mesmo era nos policiais à paisana distribuídos por todo o salão, nos oficiais uniformizados enfileirados ao longo das paredes e nos soldados que, segundo lhes disseram, estavam de prontidão nos bastidores. A única coisa que os preocupava realmente era o fato de que o espetáculo estava sendo transmitido ao vivo pela televisão; embora a transmissão fosse apenas local, os dignitários não conseguiam livrar-se da sensação de que toda a Ancara — na verdade, toda a Turquia — os estava observando. As pessoas gradas das primeiras filas, como todos os que se encontravam atrás delas, quase não conseguiam esquecer que as cenas representadas diante de seus olhos apareciam ao mesmo tempo na televisão; só isso pode explicar por que as vulgaridades, as provocações políticas e as bobagens que eles testemunhavam pareciam à platéia mais elegantes e encantadoras do que na realidade eram. Alguns estavam tão preocupados em saber se as câmeras ainda estavam funcionando que ficavam virando a cabeça o tempo todo para se certificarem; como os do fundo que ficavam o tempo todo acenando para as câmeras, e outros que de vez em quando exclamavam “Oh, meu Deus, estão me vendo na televisão!”, as pessoas da primeira fila achavam essa possibilidade tão desalentadora que mal conseguiam se mexer, ainda que estivessem no lugar mais isolado do salão. Quanto aos cidadãos que ficaram em casa, a primeira transmissão ao vivo não inspirava na maioria um desejo de ver a peça na tela; antes lhes despertava o desejo de estar no teatro, observando o trabalho da equipe de televisão.
Aquela altura Funda Eser, que já tinha tirado o manto, jogou-o, como roupa para lavar, numa bacia de cobre. Então ela o borrifou com gasolina — cuidadosamente, como se colocando algum produto de limpeza — e mergulhou a mão na bacia como se mexendo para lavar. Por uma estranha coincidência, eles tinham posto a gasolina numa garrafa vazia do sabão líquido Akif, uma marca muito apreciada pelas donas-de-casa de Kars à época, e foi por isso que todos da platéia — aliás, todos em Kars — entenderam que a jovem libertária mudara de idéia: vendo-a mergulhar as mãos na bacia, todos se descontraíram.
“É assim que se faz!”, gritou alguém lá no fundo. “Esfregue bem para tirar toda essa sujeira!” Houve uma onda de gargalhadas, que incomodou algumas autoridades das primeiras filas; até aquela altura, todos no salão pensavam que estavam assistindo a uma mulher lavando roupas. “E onde é que está o Orno?”, gritou alguém.
Era um dos rapazes da escola secundária religiosa: embora sua algazarra estivesse começando a aborrecer algumas pessoas, ninguém estava muito furioso. A maior parte da platéia, inclusive os dignitários das primeiras filas, apenas torcia para que aquela peça datada, provocadora, do teatro jacobino terminasse sem maiores problemas. Muitos com quem conversei anos depois, do funcionário mais graduado ao mais pobre estudante curdo, disseram-me que a maioria dos habitantes de Kars presentes ao Teatro Nacional tinha ido com o objetivo único de fugir de seu cotidiano por algumas horas e talvez se divertirem um pouco.
Funda Eser estava lavando sua roupa com o mesmo entusiasmo da feliz dona-de-casa dos comerciais; como todas as donas-de-casa felizes, ela não tinha a mínima pressa. Mas quando chegou a hora de tirar o manto negro da bacia, sacudi-lo para tirar as dobras e pô-lo no varal, ela o desfraldou como uma bandeira diante da platéia. Enquanto todos ainda se entreolhavam, tentando entender o que estava acontecendo, ela tirou um isqueiro do bolso e ateou fogo num dos cantos do manto. Por um instante, fez-se silêncio. Todos ouviram o som surdo da chama, quando o manto incendiado banhava todo o salão numa luz terrível.
Muitos levantaram-se de um salto, aterrorizados.
Ninguém esperava aquilo. Mesmo os secularistas mais empedernidos ficaram abalados. Quando a mulher jogou o manto em chamas no palco, para muitos a primeira preocupação foi com as instalações do teatro, que já tinha cento e dez anos; as cortinas de veludo imundas e remendadas, da época mais próspera da cidade, pareciam correr o maior risco de se incendiarem. Mas a maior fonte de preocupação foi, sem a menor dúvida, a percepção de que o problema estava apenas começando. Agora podia acontecer qualquer coisa.
De entre os jovens religiosos do fundo ergueu-se um tremendo fragor de vaias, insultos e assobios raivosos.
“Abaixo os inimigos da religião!”, berrou um deles. “Abaixo os ateus! Abaixo os infiéis!”
As primeiras filas ainda estavam em estado de choque. Embora o professor corajoso se tivesse levantado novamente para gritar “Fiquem em silêncio e assistam ao espetáculo!”, ninguém lhe deu a mínima atenção. Quando ficou claro que os gritos e o coro das vaias não iam parar e que as coisas estavam ficando fora de controle, uma onda de pânico se espalhou no salão. O doutor Nevzat, diretor da secretaria de Saúde, foi o primeiro a se dirigir à saída; ele foi seguido por seus filhos engravatados e de terno, sua filha, com suas duas tranças impecáveis, e sua mulher, em seus melhores trajes, um vestido de crepe com todas as cores de um pavão. Sadik bei, um dos ricos industriais de couro dos bons velhos tempos, que voltara para Kars para supervisionar um certo trabalho, e sua colega da escola primária, Sabit bei, agora filiada ao Partido do Povo, também se puseram de pé. Ka viu o medo no rosto de todos das primeiras filas, mas, sem saber o que fazer, continuou em sua cadeira: seu maior temor era o de que, na confusão, esquecesse o poema, que por enquanto só tinha na memória enquanto não o anotasse no caderno verde. Ao mesmo tempo, ele queria sair do teatro e ir ao encontro de Ipek.
Naquele instante, Recai bei, gerente-geral da companhia telefônica, um gentleman respeitado em toda a Kars por sua erudição, abriu caminho para o palco cheio de fumaça. “Minha cara jovem!”, exclamou ele. “Todos nós apreciamos sua homenagem aos ideais de Atatürk. Mas agora basta. Veja, o público está perturbado; corremos o risco de provocar um motim.”
Agora o manto tinha parado de queimar e Funda Eser estava de pé, em meio à fumaça, recitando o mesmo monólogo que eu haveria de encontrar mais tarde numa publicação municipal de 1936 de Minha pátria ou meu manto, passagem da qual o autor afirmou ter muito orgulho. Quatro anos depois dos acontecimentos descritos neste livro, tive a oportunidade de conhecer o autor, àquela altura já com noventa e dois anos, mas ainda bastante vigoroso; durante nossa conversa, em que a maior parte de seu esforço concentrou-se em repreender seus netos (ou bisnetos) desobedientes que não paravam quietos, ele ainda assim encontrou forças para me dizer o quanto lamentava o fato de que, de todas as suas obras (inclusive Atatürk vem aí, Atatürk para escolas secundárias e As lembranças que temos dele), Minha pátria ou meu manto é que seria esquecida. Ignorando seu revival em Kars, ou na verdade os acontecimentos que ela deflagrou, ele contou que durante a década de 30 essa peça tivera o mesmo efeito extraordinário, tanto sobre as jovens do liceu como sobre os altos funcionários do governo — ela os comovera até as lágrimas, e era aplaudida de pé onde quer que fosse apresentada.
Mas agora ninguém conseguia ouvir nada em meio às vaias, insultos e assobios raivosos dos rapazes da escola secundária religiosa. Não obstante o silêncio carregado de culpa e de medo da frente da platéia, alguns conseguiam ouvir o que Funda Eser estava dizendo: que quando a jovem furiosa arrancou o manto da cabeça, ela não estava simplesmente marcando uma posição sobre o povo ou sobre os trajes nacionais, ela estava falando sobre nossa alma, porque o manto, o fez, o turbante e a cobertura para a cabeça eram símbolos da cegueira reacionária de nossa alma, da qual precisávamos nos libertar e correr a nos integrarmos às modernas nações do Ocidente. Isso provocou um insulto nas últimas filas, que a platéia ouviu com toda a clareza.
“Então por que não tirar toda a roupa e correr para a Europa completamente pelada?”
O comentário provocou gargalhadas mesmo nas primeiras filas e alguns aplausos de várias partes do auditório. Mas os das primeiras filas estavam realmente desconcertados e assustados. Como muitos outros, naquele instante Ka resolveu levantar-se. Aquela altura o barulho vinha de todas as bocas, e a gritaria continuava no fundo do salão; alguns que se tinham dirigido à porta agora olhavam por sobre os ombros. Funda Eser continuava a recitar o poema que quase ninguém conseguia ouvir.
Uma revolução no palco
A partir dali as coisas se precipitaram. Apareceram no palco dois “fanáticos religiosos” de barba arredondada e barrete na cabeça. Esses atores traziam cordas e facas e não deixavam dúvidas de que estavam ali para punir Funda Eser por queimar o manto e desafiar a lei de Deus.
Quando eles detiveram Funda Eser, ela se contorceu de uma forma muito provocante, enquanto lutava para se libertar. Aquela altura ela já abandonara toda a pretensão de ser uma heroína iluminista; mudara para o papel que sempre achou mais fácil de interpretar, o de uma mulher prestes a ser violentada. Mas suas súplicas ensaiadas e humilhantes não surtiram o efeito desejado sobre os homens da platéia. Um dos fanáticos barbudos (muito mal maquiado, tendo interpretado o pai na cena anterior) deu um puxão em seus cabelos, jogando-a no chão; o outro encostou uma adaga em sua garganta, de um modo que lembrava um quadro renascentista do Sacrifício de Isaac; aquilo ilustrava à perfeição os medos de uma revolta religiosa reacionária que se sentia nos círculos ocidentalizados dos primeiros anos da República. Os funcionários graduados mais velhos das primeiras filas e os conservadores do fundo foram os primeiros a se alarmarem.
Por exatamente dezoito segundos, Funda Eser e os “fundamentalistas” mantiveram sua majestosa pose, sem moverem um músculo, embora muitas das pessoas com quem conversei tenham me garantido que o trio ficou imóvel por muito mais tempo. A multidão estava fora de controle. Não era apenas o insulto às mulheres cobertas que irritava os secundaristas, e tampouco a caricatura de fanáticos como patetas feios e imundos. Eles desconfiavam que toda aquela coisa tinha sido encenada propositadamente para provocá-los. Assim, toda vez que importunavam os atores, toda vez que eles jogavam uma meia laranja ou uma almofada no palco, ficavam um passo mais perto de uma armadilha preparada justamente para eles, e era a consciência de sua impotência que os enfurecia ainda mais.
Foi por isso que o membro mais politicamente astuto do grupo, um rapaz baixinho e de ombros largos chamado Abdurrahman Öz (na verdade, seu pai, que veio de Sivas para buscar o corpo dele três dias depois, deu outro nome), fez o que pôde para controlar e acalmar seus companheiros, mas sem resultado. Instigados pelo aplauso e pela gritaria vindos de várias partes do auditório, os furiosos secundaristas deram por certo que havia outros na multidão agitada que se sentiam como eles. E o que é mais importante, os jovens islamitas, fracos e desorganizados em comparação com seus pares dos arredores de Kars, encontraram a coragem para, pela primeira vez na vida, falar a uma só voz, e estavam satisfeitos em ver o quanto podiam assustar as autoridades e os oficiais do exército das primeiras filas. E eles se sentiam ainda mais estimulados sabendo que suas manifestações estavam sendo transmitidas para toda a cidade. Eles não estavam apenas gritando e batendo o pé, eles também se divertiam muito — isso é uma coisa que mais tarde todos esqueceram.
Depois de ter visto o vídeo muitas vezes, também posso afirmar que muitos cidadãos comuns chegavam a rir de vez em quando dos slogans e das imprecações dos estudantes, e se em outras ocasiões também batiam palmas e vaiavam junto com eles, era porque estavam um pouco entediados, embora ainda resolvidos a aproveitar ao máximo uma noite de espetáculo que se revelara muito confusa e tumultuada. Uma testemunha chegou a dizer mais tarde: “Se as pessoas da frente da platéia não tivessem reagido de forma exagerada àquele pequeno tumulto, teríamos sido poupados de tudo o que aconteceu em seguida”. Outros insistiram: “Os ricos e o pessoal do primeiro escalão das primeiras filas que entraram em pânico durante aqueles dezoito segundos já sabiam o que ia acontecer; do contrário, eles não teriam reunido a família e tomado o caminho da porta”. Segundo eles, “Ancara tinha planejado tudo com antecedência”.
Temendo perder o poema que tinha na memória, Ka também saiu do auditório. No mesmo instante, um homem entrou no palco para salvar Funda Eser dos dois barbudos reacionários de barba arredondada: esse homem era Sunay Zaim. Ele estava com um uniforme do exército da década de 30 e com um chapéu de peles no estilo de Atatürk e dos heróis da Guerra da Independência. Quando avançou a passos largos pelo palco (ninguém imaginaria que ele claudicava um pouco), os dois “fundamentalistas” se assustaram e se jogaram a seus pés. O velho e bravo professor levantou-se mais uma vez e aplaudiu o heroísmo de Sunay com todas as suas forças. Outra voz isolada gritou: “Muito bem! Bravo!”. De pé no meio do foco do projetor de luz, aos olhos de toda a Kars ele parecia uma impressionante criatura de outro planeta.
Todos notaram quão bonito e culto ele aparentava ser. Os longos e difíceis anos que passou rodando por toda a Anatólia podiam tê-lo deixado manco mas não menos atraente; ele ainda mantinha o seu ar sólido, resoluto e trágico, e sua aparência um tanto feminina que causava sensação entre os estudantes de esquerda quando ele interpretava Che Guevara, Robespierre e o revolucionário Enver Paxá. Em vez de levar aos lábios o indicador de sua mão calçada numa luva branca, ele o pousou elegantemente no queixo e disse: “Silêncio”.
Não havia necessidade dessa palavra, que não estava no script: todos no auditório já estavam em silêncio. Os que se tinham levantado já estavam de volta aos seus assentos.
“Eles estão sofrendo!”
Provavelmente isso era apenas uma parte do que Sunay Zaim queria dizer, porque ninguém tinha a menor idéia de quem estaria sofrendo. Nos velhos tempos, isso seria uma referência ao povo ou à nação, mas a platéia não sabia ao certo se ele se referia a ela, a Funda Eser ou a toda a República. Não obstante, o sentimento evocado pelo comentário era palpável. Todo o auditório caiu num silêncio apreensivo.
“Ó respeitáveis e amados cidadãos da Turquia”, disse Sunay Zaim. “Os senhores tomaram o caminho do iluminismo, e ninguém pode afastá-los dessa grande e nobre jornada. Não temam. Os reacionários que querem voltar no tempo, aquelas bestas perversas, com suas mentes cheias de teia de aranha, nunca mais poderão arrastar-se para fora de suas tocas. Os que procuram interferir na República, na liberdade, no iluminismo, terão suas mãos esmagadas.”
Todos no salão ouviram o insulto do jovem que estava a duas cadeiras de Necip. Mais uma vez, um profundo silêncio desceu sobre a multidão; havia reverência misturada ao pavor. Todos quedavam quietos feito velas, como se esperando ouvir uma ou duas doces ninharias, algumas pistas que os ajudassem a entender aquela noite quando voltassem para casa, talvez, quem sabe, com uma ou duas histórias para contar.
Naquele momento, um destacamento de soldados apareceu de ambos os lados do palco. Três outros destacamentos passaram pela entrada principal, avançaram pelo corredor para se juntarem ao primeiro. O povo de Kars, que não estava acostumado ao artifício moderno de espalhar atores por entre o público, primeiro se assustou, depois achou divertido.
Servindo de mensageiro, um menino de óculos entrou correndo no palco e, quando as pessoas viram de quem se tratava, caíram na gargalhada. Era Quatro-Olhos, o doce e esperto sobrinho do distribuidor do principal jornal da cidade; todos sabiam ser ele uma presença constante na loja, que ficava bem em frente ao Teatro Nacional. Quatro-Olhos correu até Sunay Zaim, que se inclinou para que o menino cochichasse em seu ouvido.
Todos de Kars perceberam que as notícias muito entristeceram Sunay Zaim.
“Acabamos de receber a notícia de que o diretor do Instituto de Educação faleceu”, disse Sunay Zaim à platéia. “Esse gesto baixo terá sido o último ataque contra a República e ao futuro secular da Turquia!”
Antes que o público tivesse tempo de assimilar a notícia, os soldados que estavam no palco engatilharam seus rifles, apontaram diretamente para a platéia e abriram fogo imediatamente; o barulho foi ensurdecedor.
Não estava claro se aquilo era mais um artifício dramático ou uma guarda de honra solicitada pela companhia para dar maior relevo à notícia. Muitos moradores de Kars — que nada sabiam das modernas convenções teatrais pensaram tratar-se de mais um lance de teatro experimental.
Ergueu-se um troar retumbante quando uma forte vibração sacudiu o salão. Os que estavam assustados com o barulho das armas acharam que a vibração era causada pela agitação da platéia. No exato instante em que uns poucos começaram a se levantar, os “fundamentalistas” barbudos do palco abaixavam-se para se proteger.
“Ninguém se mexa!”, disse Sunay Zaim.
Mais uma vez os soldados engatilharam as armas e apontaram para a multidão. No mesmo instante, o rapaz baixinho e destemido que estava a duas cadeiras de Necip levantou-se e gritou: “Malditos sejam os secularistas ateus! Malditos sejam os infiéis fascistas!”.
Mais uma vez os soldados dispararam.
Quando os disparos ressoaram no ar, outra forte vibração fez tremer o salão.
Naquele instante, os que estavam nas últimas filas viram o rapaz que gritara o insulto cair na cadeira, tornar a levantar, agora com braços e pernas agitando-se convulsivamente. Entre os que se divertiam com as palhaçadas dos estudantes da escola secundária religiosa, tendo rido a noite inteira de tudo o que não conseguiam entender, muitos ainda viram naquilo mais uma palhaçada, e como os movimentos convulsos do estudante continuaram — violentos como os espasmos da morte —, riram um pouco mais.
Só na terceira saraivada algumas pessoas da platéia se deram conta de que os soldados estavam atirando de verdade; dava para saber, da mesma forma que se sabia nas noites em que soldados caçavam terroristas nas ruas, porque os tiros eram percebidos tanto pelos ouvidos como pelo abdômen. Ouvia-se um barulho estranho, vindo da enorme estufa boêmia, de fabricação alemã, que aquecia o salão havia quarenta e quatro anos; a chaminé tinha sido perfurada e agora estava lançando fumaça como uma chaleira borbulhante. Quando alguém das últimas filas levantou-se e dirigiu-se direto ao palco com sangue escorrendo da cabeça, sentiu-se um cheiro de pólvora. A platéia parecia prestes a entrar em pânico, mas ainda assim todos permaneciam sentados, em silêncio, imóveis como estátuas. Como num sonho ruim, todos se sentiam sozinhos. Mesmo assim, a professora de literatura Nuriye Hanim, que ia ao Teatro Nacional toda vez que visitava Ancara e tinha a maior admiração pelos efeitos teatrais, se pôs de pé pela primeira vez para aplaudir os atores. Naquele mesmo instante, Necip se levantou como um aluno agitado querendo chamar a atenção do professor.
Os soldados dispararam a quarta saraivada de tiros. Segundo o coronel inspetor enviado por Ancara para supervisionar a investigação, que passaria muitas semanas elaborando o meticuloso relatório debaixo do maior segredo, essa quarta saraivada matou duas pessoas. Ele afirmou que uma delas era Necip, acrescentando que uma bala atingira a testa e outra o olho. Tendo ouvido, porém, muitos boatos em contrário, não sei ao certo se foi então que Necip morreu. Os que estavam nas primeiras filas e nas filas do meio concordariam quanto ao seguinte: depois da terceira saraivada, Necip viu as balas voando no ar e, mesmo sabendo o que estava acontecendo, estava absolutamente enganado quanto à disposição dos soldados. Dois segundos antes de ser atingido, ele se levantara para falar as palavras que, embora ouvidas por muitos, não ficaram registradas na gravação.
“Parem! Não atirem; as armas estão carregadas!”
Suas palavras exprimiam o que todos no salão sabiam no fundo do coração, mas ainda não conseguiam fazer que a mente aceitasse. Dos cinco tiros da primeira saraivada, um atingiu as folhas de louro do estuque acima de um camarote de onde, um quarto de século antes, o último cônsul soviético de Kars assistia a filmes em companhia de seu cão. A bala se perdeu porque o soldado que atirara — um curdo de Siirt — não queria matar ninguém. Outro disparo feito com a mesma intenção, embora com menos habilidade, atingira o teto, lançando uma nuvem de cal e de pó de pintura de cento e dez anos sobre a aflita multidão lá embaixo. Outra bala passou por cima do suporte da câmera de televisão e atingiu o parapeito de madeira que separava a área dos espectadores de pé, de onde as garotas armênias pobres e românticas, que só podiam comprar os ingressos mais baratos, outrora assistiam a grupos de teatro, acrobatas e orquestras de câmara de Moscou. A quarta bala foi bem mais longe, fora do alcance da câmera; ela atravessou o encosto de uma cadeira e entrou no ombro de um negociante de peças para trator e equipamentos agrícolas chamado Muhittin bei, que estava sentado com sua mulher e sua cunhada viúva e, tendo visto a chuva de cal, levantou-se para ver se tinha caído alguma coisa do teto. A quinta bala atingiu um avô que estava sentado logo atrás dos estudantes islâmicos; ele viera de Trebizonda para visitar o neto, que estava prestando o serviço militar em Kars; depois de estilhaçar a lente esquerda de seus óculos, a bala entrou em seu cérebro; o velho, porém, que àquela altura felizmente estava dormindo, morreu em silêncio, sem saber o que lhe acontecera. Então a bala saiu pelo pescoço e, passando pelo encosto de sua cadeira, perfurou uma sacola pertencente a um vendedor de ovos e de pães curdo de doze anos de idade. O menino estava passando entre as cadeiras para dar o troco a um freguês, por isso estava sem a sacola no momento, e mais tarde a bala foi encontrada dentro de um de seus ovos cozidos.
Estou contando todos esses detalhes para explicar por que a maioria das pessoas da platéia ficou tão quieta quando os soldados abriram fogo. Quando as balas da segunda saraivada atingiram um estudante na têmpora, no pescoço e na parte mais alta do peito, logo acima do coração, muitos acharam que ele estava fazendo outra exibição, uma repetição de seu show de coragem momentos antes. Uma das duas balas restantes entrou no peito de um estudante da escola religiosa relativamente calmo que estava sentado no fundo (mais tarde se soube que sua prima fora a primeira das jovens suicidas); a última foi parar dois metros acima da cabine de projeção, atingindo o mostrador do relógio que, tendo parado sessenta anos antes, agora estava coberto de poeira e de teias de aranha. Segundo o coronel que dirigiu a investigação, o fato de uma das balas da segunda saraivada ter atingido o relógio era uma prova de que um dos atiradores escolhido na hora do poente para aquela tarefa violara o juramento que fizera com a mão sobre o Corão: sem dúvida ele errara o alvo para evitar matar alguém. Quanto ao impetuoso estudante islâmico morto na terceira saraivada, o coronel registrou, entre parênteses, a grande atenção dispensada ao processo que a família abriu contra o Estado, no qual se alegava que ele não era apenas um estudante, mas também um empregado trabalhador e dedicado da seção do MIT de Kars; mas no final o coronel achou que não havia motivos suficientes para uma indenização. Das duas últimas balas da mesma saraivada, uma atingiu Reza bei, que construíra o chafariz no distrito de Kaleiçi e era muito amado por todos os conservadores e islamitas da cidade; a outra atingiu o criado que ele usava como bengala.
Assim, não é nada fácil explicar, no final das contas, por que tanta gente da platéia pôde continuar quieta, olhando aqueles dois amigos de infância gemendo e morrendo no chão enquanto os soldados no palco engatilhavam seus rifles pela quarta vez. Anos depois, o dono de um laticínio, que não me autorizou a revelar seu nome, explicou o motivo nestes termos: “Os que estávamos sentados atrás sabíamos que tinha acontecido algo terrível. Mas temíamos que, se nos levantássemos da cadeira para ver melhor, seríamos dominados pelo terror, por isso nos deixamos ficar ali sentados sem dar um pio”.
Nem mesmo o coronel foi capaz de determinar onde todas as balas da quarta saraivada tinham ido parar. Uma feriu um jovem vendedor que viera de Ancara para vender artigos para jogos de salão e enciclopédias à prestação (ele perderia muito sangue e viria a morrer no hospital duas horas depois). Outra bala abriu um enorme buraco na face inferior da parede de um camarote particular onde, na primeira década do século XX, Kirkor Çizmeciyan, um próspero industrial de couro, se acomodara com sua família, vestido da cabeça aos pés com roupas de pele. Segundo uma dessas histórias malucas, a bala que atingiu um dos olhos verdes de Necip e a outra que atingiu sua ampla testa lisa não o mataram instantaneamente; algumas testemunhas oculares afirmaram que por um instante o adolescente olhou para o palco e exclamou “Eu estou vendo!”.
Quando os gritos e gemidos cessaram, quase todos — inclusive os que se precipitavam para a porta — tinham se jogado no chão. Até o cameraman fora obrigado a se lançar contra a parede do fundo: sua câmera, que girara em movimento panorâmico a noite inteira, agora estava parada. A única coisa que os telespectadores viam era a multidão no palco e as pessoas importantes das primeiras filas em completo silêncio. Mesmo assim, muitos cidadãos de Kars ouviram gritos, guinchos e disparos bastantes para perceber que estava acontecendo uma coisa muito estranha no Teatro Nacional. Quanto aos que já se tinham cansado da peça por volta da meia-noite e começaram a cochilar na frente da televisão, nos últimos dezoito segundos do tiroteio também estavam de olhos grudados na tela — e em Sunay Zaim. “Ó heróicos soldados, vocês cumpriram o seu dever”, disse ele. Então, com um gesto elegante, voltou-se para Funda Eser, ainda deitada no chão, e fez uma mesura exagerada. Tomando a mão de seu salvador, a mulher se levantou.
Um funcionário aposentado da primeira fila levantou-se e aplaudiu. Uns poucos sentados perto dele o acompanharam. Houve aplausos esparsos no fundo do salão, de pessoas que certamente costumavam aplaudir qualquer coisa — ou quem sabe elas estavam com medo. O resto da platéia estava num silêncio glacial. Como alguém que tivesse acordado depois de uma longa bebedeira, alguns pareciam até relaxados e se permitiam sorrisos mal esboçados. Era como se eles tivessem decidido que os cadáveres diante de seus olhos pertencessem ao mundo de sonhos do palco; muitos dos que se tinham abaixado para se proteger agora estavam de cabeça levantada, mas então abaixaram novamente ao som da voz de Sunay.
“Isto não é uma peça, é o começo de uma revolução”, disse ele em tom de censura. “Estamos dispostos a ir até a última conseqüência para proteger a nossa pátria. Tenham confiança no grande e nobre exército turco! Soldados, levem-nos.”
Dois soldados escoltaram os dois “fundamentalistas” de barba arredondada. Quando outros soldados engatilharam suas armas e desceram para o auditório, um desconhecido precipitou-se no palco. Estava claro, pela velocidade com que chegara e pela linguagem corporal desajeitada, que ele não era nem soldado nem ator. Mas mesmo assim chamou a atenção de todo mundo. Muitos tiveram a esperança de que fosse revelar que tudo aquilo tinha sido uma grande brincadeira.
“Longa vida à República!”, gritou ele. “Longa vida ao exército! Longa vida ao povo turco! Longa vida a Atatürk!” Devagar, bem devagar, as cortinas começaram a se fechar. Ele avançou dois passos, e o mesmo fez Sunay Zaim; as cortinas se fecharam atrás deles. O desconhecido levava uma arma fabricada em Kinkkale; ele estava usando trajes civis e botas militares. “Ao diabo com esses fundamentalistas!”, exclamou ele, enquanto descia as escadas em direção à platéia. Dois outros desconhecidos, também armados, surgiram para acompanhá-lo. Mas os três não se dirigiram para o fundo do salão (onde os soldados estavam prendendo os rapazes da escola secundária religiosa); sem prestar a mínima atenção à platéia aterrorizada, puseram-se a gritar slogans enquanto corriam para a saída e desapareciam na noite.
Os três homens estavam animadíssimos. Só no último minuto, depois de longas discussões e negociações, ficara acertado que eles também poderiam participar da performance que daria início à “pequena revolução de Kars”. Eles se encontraram com Sunay Zaim na noite de sua chegada, e este resistira à sua proposta o dia inteiro, temendo que o envolvimento de suspeitos aventureiros armados pudesse comprometer a integridade artística de sua peça; mas no final Sunay não pôde resistir ao argumento de que iria precisar de um homem entendido em armamentos para controlar qualquer infeliz da platéia pouco inclinado a apreciar as nuances da “arte moderna”. Mais tarde se disse que ele sentira grande remorso por essa decisão nas horas seguintes, e grandes ataques de raiva diante do derramamento de sangue causado por aquele bando em trajes de mendigo; mas, como sempre acontece, essa história toda não passa de boato.
Quando fui a Kars anos depois, fiz uma visita ao que restara do Teatro Nacional. Metade do edifício fora demolida; a outra metade fora transformada num depósito dos produtos Arçelik. O proprietário, Muhtar bei, me serviu de guia; e me parece que foi para esquivar-se de minhas perguntas sobre a noite do espetáculo e o terror que se seguiu que ele me contou que Kars testemunhara uma interminável série de massacres e assassinatos que remontavam à época dos armênios. Se eu quisesse dar alguma alegria ao povo de Kars, o melhor que tinha a fazer era, de volta a Istambul, ignorar as manchas do passado da cidade e escrever sobre o ar puro e sobre a generosidade de seus habitantes. Quando estávamos no embolorado e escuro auditório transformado em armazém, rodeado por formas fantasmagóricas de geladeiras, fogões e máquinas de lavar, ele apontou o último vestígio daquele último espetáculo: o enorme buraco aberto pela bala que atingira a parede externa do camarote particular de Kirkor Çizmeciyan.
A noite da revolução
O líder do turbulento trio que invadiu o auditório brandindo pistolas e rifles contra o público que se abaixava, para logo depois sumir na noite, era um escritor e ex-comunista cujo codinome era Z Demirkol. Durante a década de 70 ele pertencera a várias organizações comunistas pró-soviéticas e, embora trabalhasse como jornalista e poeta, era mais conhecido como guarda-costas. Ele era um homem muito corpulento. Fugira para a Alemanha depois do golpe militar de 1980; depois da queda do Muro de Berlim, ele recebeu um indulto especial e voltou para a Turquia para ajudar a defender o Estado secular e a República contra as guerrilhas separatistas curdas e os fundamentalistas islâmicos. Os dois homens que o acompanhavam tinham sido outrora militantes nacionalistas, ex-camaradas do próprio Z Demirkol nas batalhas noturnas de Istambul durante os anos de 1979 e 1980, mas agora tinham deixado tudo para trás, entusiasmados com o aventureirismo e com sua missão de proteger o Estado. Alguns cínicos afirmaram que, de qualquer modo, os membros da trinca já atuavam como agentes do Estado desde o princípio. Quando desceram precipitadamente do palco e saíram do Teatro Nacional, ninguém prestou muita atenção neles; apenas se supôs que participavam da peça.
Quando Z Demirkol viu a quantidade de neve que havia no chão, começou a pular como uma criança; disparando dois tiros no ar, ele gritou “Longa vida ao povo turco! Longa vida à República!”. A multidão aglomerada na entrada afastou-se para os lados. Uns poucos ficaram olhando para os homens e sorrindo assustados; alguns pareciam embaraçados, como se estivessem prestes a pedir desculpas por não ficar por mais tempo. Z Demirkol e seus amigos subiram correndo a avenida Atatürk, ainda gritando slogans e chamando uns aos outros feito bêbados. Alguns idosos que avançavam penosamente pela neve e alguns pais que levavam suas famílias para casa, depois de alguns instantes de indecisão, resolveram aplaudi-los.
A alegre trinca alcançou Ka na esquina da avenida Pequeno Kasim bei. Os três perceberam que ele os tinha visto; ele recuara para debaixo dos oleandros, como para deixar um carro passar.
“Senhor Poeta!”, exclamou Z Demirkol. “Temos de matá-los antes que eles nos matem, entendeu?”
Ka ainda não pudera anotar o poema a que mais tarde ele daria o título de “O lugar onde Deus não existe”, e foi naquele momento que o esqueceu.
Z Demirkol e seus amigos seguiram em frente pela avenida Atatürk. Não desejando segui-los, Ka dobrou à direita na avenida Karadag, dando-se conta de que o poema sumira sem deixar o menor vestígio.
Ele sentia o mesmo tipo de culpa e vergonha que sentia quando jovem, ao sair de reuniões políticas. Aquelas reuniões políticas o perturbavam não apenas porque ele era um rapaz de alta classe média, mas também porque as discussões eram cheias de atitudes infantis e exageros. Na esperança de encontrar uma forma de recuperar o poema, resolveu continuar andando em vez de ir direto para o hotel.
Algumas pessoas assustadas com o que tinham acabado de ver na televisão estavam nas janelas. É difícil dizer o quanto Ka estava inteirado dos horrores do teatro. As saraivadas tinham começado antes de ele sair, mas é possível que também ele achasse que faziam parte do espetáculo, assim como a súbita aparição de Z Demirkol e de seus amigos.
Sua cabeça estava concentrada no poema esquecido. Mas, sentindo que estava vindo outro poema, ele o deixou no fundo da cabeça para dar-lhe tempo de amadurecer.
Ele ouviu dois tiros ao longe, amortecidos pela neve.
Como era bela a neve que caía! E como eram grandes os flocos de neve, e tão resolutos. Era como se eles soubessem que seu silencioso cortejo iria continuar até o fim dos tempos. Na larga avenida, a neve chegava aos joelhos, parecendo subir um aclive, para desaparecer na escuridão da noite. E como era branca e misteriosa! Não havia vivalma no edifício armênio de três andares onde agora funcionava a Câmara Municipal. Os pingentes de gelo de um dos oleandros desciam até a altura do lençol de neve que cobria um carro invisível; a neve e o gelo tinham se fundido, formando uma cortina de tule. Ka passou por uma casa armênia de um andar, com janelas fechadas com tábuas. Enquanto ouvia os próprios passos e a respiração ofegante, sentia o chamado da vida e da felicidade como se fosse pela primeira vez, embora também se sentisse forte o bastante para lhe dar as costas.
No lado da rua fronteiro à residência oficial do governo, o pequeno parque com a estátua de Atatürk estava deserto. Ka não via o menor sinal de vida na própria residência, que datava do período russo e ainda era o mais alto edifício da cidade. Setenta anos antes, depois da Primeira Guerra Mundial, quando os exércitos Otomano e da Rússia Imperial se retiraram e os turcos de Kars criaram um Estado independente, aquele edifício passou a sediar o centro administrativo e a assembléia. Exatamente em frente, do outro lado da rua ficava o velho edifício armênio que fora atacado pelo exército inglês porque era o palácio da presidência desse mesmo Estado efêmero. O edifício agora sediava a prefeitura, sendo portanto bem guardado, por isso Ka evitou aproximar-se, dobrando novamente à direita e voltando para o parque. Mais adiante, na rua, em frente a outro velho edifício armênio tão silencioso e belo quanto os demais, um tanque passava por um terreno baldio contíguo, devagar e silencioso como num sonho. Um pouco mais à frente havia um caminhão do exército estacionado perto da escola secundária religiosa. Nele quase não havia neve, por isso Ka deduziu que acabara de chegar. Ouviu-se um disparo. Ka voltou sobre os próprios passos. O posto de guarda em frente à residência do governador estava cheio de policiais tentando aquecer-se, mas com as janelas lá de cima cobertas de gelo, ninguém via Ka avançando pela avenida do Exército. Agora ele sabia que, se conseguisse permanecer em silêncio até chegar ao quarto do hotel, conseguiria preservar não apenas o novo poema que tinha na cabeça, mas também a lembrança que aflorara junto com ele.
A meio caminho da rua em declive, ele ouviu um barulho vindo da calçada oposta e começou a andar mais devagar. Duas pessoas estavam tentando arrombar a porta do posto telefônico. Os faróis de um carro iluminaram a neve, e então Ka ouviu o agradável ruído de correntes antiderrapantes. Quando um carro preto da polícia, sem identificação, parou na frente do posto telefônico, Ka viu dois homens no banco da frente; lembrou-se de ter visto um deles no teatro poucos minutos antes, no exato momento em que pensou em ir embora; agora aquele homem permanecia sentado, enquanto seu companheiro, com boina de lã e armado, saía do carro.
Seguiu-se uma discussão entre o grupo que se encontrava na porta do posto telefônico. Eles estavam sob a lâmpada do poste e Ka ouvia suas vozes, por isso logo percebeu tratar-se de Z Demirkol e seus amigos.
“Que história é essa de não ter chave?”, dizia um deles. “Você não é o gerente do posto telefônico? Eles não mandaram você para cortar as linhas? Como você pode ter esquecido a chave?”
“Não podemos cortar os telefones deste posto. Temos de ir para a central nova, na avenida da Estação”, disse o gerente, Recai bei.
“Isto é uma revolução e temos de entrar neste posto”, disse Z Demirkol. “Se resolvermos ir ao outro posto mais tarde, nós o faremos, está entendendo? Agora, onde está a chave?”
“Meu filho, daqui a dois dias esta neve vai acabar, as estradas se abrirão, e quando se abrirem o Estado vai nos chamar a todos para prestar contas.”
“Quer dizer que você está com medo do Estado? Então, ouça: nós somos o Estado de que você tem medo!”, berrou Z Demirkol. “Você vai abrir a porta para nós ou não?”
“Não posso abrir essa porta para vocês sem uma ordem por escrito.”
“É o que vamos ver”, disse Z Demirkol. Ele sacou a arma e deu dois tiros no ar. “Peguem esse homem e o encostem na parede”, disse ele. “Se ele nos criar mais algum problema, vamos executá-lo.”
Ninguém levou a ameaça a sério, mas os dois auxiliares de Demirkol obedientemente pegaram Recai bei e o encostaram na parede. Como não queriam danificar nenhuma janela, empurraram-no levemente para a direita. Como a neve estava muito macia naquele canto, o gerente tropeçou e caiu. Os homens pediram desculpas e ajudaram-no a levantar, tiraram-lhe a gravata e com ela amarraram-lhe os braços atrás das costas. Enquanto o faziam, anunciavam que aquilo era uma operação de limpeza e que todos os inimigos da pátria na manhã seguinte teriam sido varridos das ruas de Kars.
Quando Z Demirkol deu a ordem, eles engatilharam os rifles e, como um pelotão de fuzilamento, enfileiraram-se diante de Recai bei. No mesmo instante ouviram-se disparos ao longe. (Estes vinham do jardim do alojamento da escola secundária religiosa, onde os soldados atiravam para cima para assustar os estudantes.) Todos ficaram em silêncio e esperaram. Pela primeira vez durante todo o dia, a neve estava diminuindo. O silêncio era extraordinariamente belo... e mesmo fascinante. Depois de alguns instantes, um dos homens disse que o velho (que nada tinha de velho) tinha direito a um último cigarro. Eles colocaram um cigarro na boca de Recai bei e o acenderam; talvez um pouco mais impacientes enquanto o gerente estava fumando, eles começaram a chutar a porta do posto telefônico, martelando-a também com a coronha dos rifles.
“Não suporto ver vocês destruindo a propriedade do Estado”, disse o gerente, ainda encostado na parede. “Desamarrem minhas mãos que eu os deixo entrar.”
Quando os homens entraram, Ka seguiu o seu caminho. Ele continuou a ouvir os estranhos disparos, mas agora não lhes dava mais atenção do que ao latido dos cães. Toda a sua mente estava concentrada na beleza da noite silenciosa. Por algum tempo, ele se demorou diante de uma velha casa armênia vazia. Então ele parou numa igreja armênia para prestar-lhe reverência; as árvores de seu jardim estavam cheias de pingentes gotejantes e tinham uma aparência fantasmagórica. As lâmpadas amarelas dos postes banhavam a cidade numa luminosidade tão malsã que ela parecia ser parte de um pesadelo. Sem saber por quê, Ka se sentiu culpado. Ainda assim, ele se sentia muitíssimo grato por estar presente naquela região silenciosa e remota que agora o cumulava de poemas.
Um pouco mais adiante, ele viu uma mulher à janela, chamando o filho para dentro de casa; o menino respondeu que só ia ver o que estava acontecendo. Ka passou entre eles. Na esquina da avenida Faikbey, ele viu dois homens mais ou menos da sua idade saindo depressa da oficina de um sapateiro; um era bastante corpulento, o outro pequeno e esguio como uma criança. Duas vezes por semana, nos últimos doze anos, aqueles dois amantes diziam às respectivas esposas que iam para a casa de chá, e então se encontravam secretamente naquela oficina que cheirava a cola; ouvindo, porém, na televisão do vizinho de cima, que tinha sido decretado um toque de recolher, a dupla entrou em pânico. Ka entrou na avenida Faikbey; duas ruas adiante, do lado fronteiro ao de uma loja pela qual passara em seu passeio matinal — Ka parara no balcão de trutas, dentro da loja, bem perto da porta —, ele viu um tanque de guerra. Da mesma forma que a rua, o tanque parecia banhado num silêncio mágico; estava tão silencioso que Ka o supôs vazio. Mas a porta se abriu, e dela surgiu uma cabeça que o mandou ir para casa imediatamente. Ka perguntou à cabeça se podia lhe ensinar o caminho do Hotel Palácio de Neve, mas antes que o soldado respondesse Ka viu, do outro lado da rua, a redação da Gazeta da Cidade Fronteiriça mergulhada em sombras, e sabia que dali podia achar o seu caminho.
As luzes do saguão do hotel tinham um brilho intenso; entrar naquele ambiente aquecido era como chegar em casa. Muitos hóspedes estavam de pijama, fumando cigarro, assistindo à televisão do saguão, e era evidente por sua expressão que acontecera algo extraordinário, mas, como uma criança ansiosa para evitar um assunto desagradável, Ka fez questão de ignorar o que ocorria. Depois de passar os olhos rapidamente pela cena, entrou lépido e fagueiro na ala de residência de Turgut bei. Todo o grupo ainda estava à mesa e assistindo à televisão. Quando Turgut bei viu Ka, levantou-se de um salto, recriminando-o por chegar tão tarde e lhe dizendo da grande preocupação que tinha causado a todos. Ele disse mais alguma coisas, mas àquela altura o olhar de Ka já encontrara o de Ipek.
“Você leu o seu poema lindamente”, disse Ipek. “Fiquei muito orgulhosa.”
Ka percebeu imediatamente que haveria de se lembrar daquele momento até a morte. Sentiu tal alegria que, mesmo importunado pelas perguntas aborrecidas das outras jovens e pelas impertinências de Turgut bei, teve de fazer um esforço para conter as lágrimas.
“Parece que o exército está tramando alguma coisa”, disse Turgut bei. A julgar pelo seu tom de voz, ele estava de péssimo humor, sem saber se aquilo era bom ou ruim.
A mesa estava na maior desordem. Alguém tinha esmagado um cigarro numa casca de laranja — provavelmente tinha sido Ipek. Ka lembrou-se de ter visto a tia Munire, uma jovem parenta distante de seu pai, fazer a mesma coisa quando ele era criança, e embora ela nunca se esquecesse de dizer madame quando se dirigia à mãe de Ka, todos a desprezavam por seus maus modos.
“Eles acabaram de anunciar o toque de recolher”, disse Turgut bei. “Conte-nos o que aconteceu no teatro.”
“Não me interesso por política”, disse Ka.
Embora todos na sala, e principalmente Ipek, tenham percebido que era outra voz que falava dentro dele, Ka sentiu ter dito aquilo.
Tudo o que queria fazer naquele momento era sentar-se calmamente e contemplar Ipek, mas ele sabia que aquilo estava fora de cogitação; a casa, tomada de agitação revolucionária, o incomodava. Não eram exatamente as lembranças ruins dos golpes militares de sua infância; era o fato de que todos falavam ao mesmo tempo. Hande tinha adormecido num canto. Kadife voltou-se novamente para a tela da televisão que Ka se recusava a olhar, e Turgut bei parecia a um só tempo satisfeito e preocupado com o fato de estar vivendo tempos interessantes.
Por um instante Ka ficou sentado ao lado de Ipek e segurou-lhe a mão; ele lhe pediu que subisse ao seu quarto, mas ela não concordou. Quando se tornou muito doloroso manter distância dela, ele subiu para o quarto sozinho e, com todo o cuidado, pendurou o casaco no gancho atrás da porta. Havia no quarto um cheiro de madeira que lhe era bastante familiar. Ao acender a pequena lâmpada à cabeceira da cama, sentiu-se dominar por uma onda de sono; mal conseguia manter os olhos abertos; sentia-se flutuar como se todo o quarto, todo o hotel, flutuassem junto com ele. É por isso que o novo poema, que ele anotou rapidamente, verso por verso, à medida que lhe chegava, descreve a cama, o hotel onde ele estava e a cidade de Kars coberta de neve como uma única e divina unidade.
O título que ele deu ao poema foi “A noite da revolução”. Ele começava com suas lembranças de infância de outros golpes, quando toda a família acordava e se sentava ao pé do rádio, ouvindo marchas militares; continuava com a descrição das refeições em família nos dias festivos. Foi isso que o fez concluir não ser aquele poema sobre um golpe militar, motivando-o a situá-lo na parte do floco de neve reservada ao tema da Memória. Uma das idéias mais importantes do poema era a capacidade do poeta de fechar uma parte de sua mente, ainda que o mundo estivesse em completo alvoroço. Se isso significava que um poeta não estava mais ligado ao presente que um fantasma, esse era o preço que ele tinha de pagar por sua arte! Depois de terminar o poema, Ka acendeu um cigarro e foi à janela.
Enquanto Ka dormia e quando acordou na manhã seguinte
Ka dormiu como uma pedra durante exatamente dez horas e vinte minutos. Em um de seus sonhos ele contemplava a neve caindo. Pouco antes, podia-se ver, pelo vão da cortina entreaberta, que a neve voltara a cair nas ruas brancas lá embaixo, parecendo excepcionalmente macia no ponto em que a lâmpada iluminava o pilar de sinalização cor-de-rosa que indicava o Hotel Palácio de Neve; foi talvez pelo fato de a neve estranha e milagrosamente macia absorver o som dos disparos em toda a Kars que naquela noite Ka conseguiu dormir tão bem.
Apenas duas ruas adiante, um tanque e dois caminhões do exército atacaram o alojamento dos estudantes da escola secundária religiosa. Houve um enfrentamento — não diante da entrada principal, fechada com uma porta de ferro em que ainda hoje se pode apreciar o fino trabalho artesanal armênio, mas próximo à porta de madeira que dá acesso aos quartos coletivos e ao alojamento dos alunos mais velhos; para assustar os rapazes, os soldados aglomerados no jardim coberto de neve atiraram contra o céu noturno. Todos os militantes islâmicos calejados do corpo discente tinham comparecido ao Teatro Nacional, e como tinham sido presos imediatamente, os únicos rapazes que estavam no alojamento eram inexperientes ou não se interessavam por política; mas as cenas da televisão os deixaram afoitos, e então — bloqueando a porta com mesas e carteiras e gritando slogans como “Deus é grande!” — eles se prepararam para resistir. Alguns dos mais loucos, tendo roubado facas e garfos da cozinha, resolveram atirá-los contra os soldados pela janela do banheiro e começaram a zanzar com a única arma de fogo de que dispunham; então a escaramuça terminou em tiroteio, e um belo menino esguio — cujo rosto era pura inocência — caiu morto, com uma bala na testa.
Quase toda a cidade ainda estava acordada, os olhos colados não nas janelas e nas ruas, mas na tela dos aparelhos de televisão. A transmissão ao vivo continuara, mesmo depois de Sunay Zaim ter anunciado que aquilo não era uma peça de teatro, mas uma “revolução”; enquanto os soldados estavam recolhendo os baderneiros e carregando os mortos e feridos, apareceu no palco um homem conhecido por toda a Kars. Era Ummam bei, o subprefeito; num tom formal e pouco à vontade que, não obstante, inspirava confiança, ele expressou, talvez pela primeira vez, uma certa impaciência com aquela transmissão ao vivo, e anunciou o toque de recolher em toda a Kars, até o meio-dia do dia seguinte. Quando ele saiu do palco, não apareceu mais ninguém, e durante os vinte minutos seguintes a única coisa que os moradores de Kars viram em suas telas foram as cortinas do Teatro Nacional; a transmissão foi interrompida, depois do que reapareceram as mesmas velhas cortinas nas telas. Algum tempo depois, o povo de Kars haveria de ver as cortinas abrindo-se novamente, bem devagar, quando todo o programa começou a ser transmitido novamente, desde o começo.
Sentada diante de seus televisores, esforçando-se para entender o que estava acontecendo, a maioria começou a temer o pior. Os que estavam muito cansados ou meio bêbados se pegaram rememorando os velhos tempos de perturbação da ordem pública; outros temiam a volta das mortes, desaparecimentos, e o império das trevas. Os que não se interessavam por política viram na reapresentação do programa uma oportunidade de tentar entender o que acontecera naquela noite — da mesma forma que eu próprio faria, muitos anos depois — e por isso voltaram a se concentrar na televisão.
Enquanto o povo de Kars assistia à imitação de Funda Eser da ex-primeira-ministra cedendo lacrimosamente a todos os desejos espúrios de sua clientela americana, e depois, enquanto ela encerrava sua paródia de um comercial famoso com uma desbragada dança do ventre, uma equipe de segurança treinada especialmente fazia uma batida na sede local do Partido da Liberdade do Povo na Galeria Halil Pasa, prendendo o zelador curdo (a única pessoa que estava lá àquela hora), vasculhando armários e gavetas de arquivos, confiscando cada folha de papel que encontrava. A mesma unidade policial foi recolhendo, um a um, os membros da executiva do partido — cujos nomes e endereços eles já conheciam de uma batida anterior — e, acusando-os de subversão e de nacionalismo curdo, levou-os para a prisão.
Aqueles não eram os únicos nacionalistas curdos de Kars. Os três cadáveres descobertos na estrada para Digor, logo ao amanhecer, num táxi Murat incendiado, ainda não coberto pela neve, eram — segundo comunicados oficiais — guerrilheiros nacionalistas curdos. A polícia afirmava que havia meses os três jovens vinham tentando entrar clandestinamente na cidade. Assustados, porém, com os acontecimentos da noite anterior, resolveram entrar num táxi e fugir para as montanhas. Quando eles viram que as estradas estavam bloqueadas, perderam a esperança; numa briga que se seguiu, um deles detonou uma bomba, matando os três. Mais tarde, a mãe de um rapaz, faxineira de um hospital, entrou com uma ação contra o Estado declarando que agentes armados não identificados tinham tocado a campainha e levado seu filho, e o irmão mais velho do taxista fez o mesmo, declarando que seu irmão não era nacionalista e nem mesmo curdo. Essas ações, porém, foram ignoradas.
A essa altura, todos em Kars já se tinham dado conta de que estava havendo um golpe — se não se tratasse de um golpe, bastava olhar os dois tanques que vagavam pela cidade como pesados fantasmas sombrios para ter certeza de que alguma coisa muito estranha estava acontecendo —, mas como também estavam assistindo ao espetáculo em suas telas de televisão e como a neve continuava a cair interminavelmente (suas janelas pareciam o cenário de um velho conto de fadas), os tanques não inspiravam nenhum medo. Os únicos que se mostravam ansiosos eram os ativistas políticos.
Considere-se, por exemplo, Sadullah bei. Jornalista muito estimado pelos curdos de Kars e folclorista respeitado, calejado que era em muitos golpes militares, quando ouviu falar do toque de recolher começou a se preparar para os dias de prisão que com certeza teria pela frente. Depois de arrumar a valise com o indispensável — o pijama azul sem o qual não conseguiria dormir, o remédio para a próstata, as pílulas para dormir, o gorro e as meias de lã, a fotografia de sua filha em Istambul (sorrindo com o filhinho no colo) e as laboriosas anotações que fizera para um livro sobre nênias curdas —, sentou-se com sua mulher diante de um copo de chá, enquanto assistiam à segunda dança do ventre de Funda Eser. Quando a campainha tocou muito depois, no meio da noite, ele se despediu da mulher, pegou a valise e dirigiu-se à porta; como não viu ninguém, saiu para a rua — onde, à luz cor de enxofre dos postes de iluminação, deixou que sua cabeça voltasse aos gloriosos invernos de sua infância, quando ele patinava no leito congelado do rio Kars, e as ruas silenciosas se cobriam com aquela mesma neve tão bonita. E enquanto se deixou ficar ali, alguém disparou duas balas, uma em sua cabeça, outra em seu peito, matando-o imediatamente.
Meses depois, quando quase toda a neve se fundira, descobriram-se os despojos de muitas outras pessoas mortas de modo semelhante naquela noite, mas — da mesma forma que a imprensa de Kars por ocasião do golpe — não quero perturbar meus leitores mais que o necessário, por isso não vou entrar em detalhes. Quanto aos boatos de que os autores foram Z Demirkol e seus companheiros, só posso dizer que — pelo menos no que diz respeito ao que aconteceu nas primeiras horas da noite — essas afirmações são falsas. Estes, embora com algum atraso, conseguiram cortar as linhas telefônicas e garantir a transmissão da Televisão de Kars em apoio à revolução; no final da noite, eles canalizaram toda a sua energia para o que àquela altura tinha se tornado uma obsessão: encontrar “um cantor de músicas folclóricas de voz potente para celebrar os heróis das terras da fronteira”. Afinal de contas, aquilo só chegaria a ser uma verdadeira revolução quando todas as emissoras de rádio e de televisão da cidade estivessem transmitindo músicas populares comemorativas.
Depois de procurar nos quartéis, nos hospitais, nas escolas técnicas de ciências e nas casas de chá, eles finalmente encontraram um cantor entre os bombeiros que estavam de plantão no quartel da corporação; o bombeiro teve certeza de que iriam prendê-lo ou crivá-lo de balas, mas eles o levaram para o estúdio de televisão.
Quando Ka acordou na manhã seguinte, o que ouviu foi a voz sonora do bombeiro que vinha da televisão, atravessava as paredes, estuques e as cortinas entreabertas. Através das mesmas cortinas vinha também um raio de luz fortíssima, maravilhosamente estranha, emitida pela neve. Ele dormira muito bem, tendo acordado relaxado, mas ainda não tinha levantado da cama quando sentiu o aguilhão da culpa, tão forte que abalou toda a sua força e segurança. Procurou se recompor fingindo ser apenas um hóspede de hotel comum, numa outra cidade e em outro banheiro; depois de lavar o rosto, barbear-se e vestir-se, pegou a chave pelo pesado chaveiro de cobre e desceu para o saguão.
Quando viu o cantor na tela e os outros hóspedes conversando aos sussurros enquanto assistiam, Ka se deu conta do silêncio que agora dominava a cidade; seus pensamentos voltaram à noite anterior, e só então ele começou a juntar todas as coisas que sua mente afastara até aquele momento. Ele deu um sorriso frio ao rapaz da recepção; como um viajante incomodado e aborrecido com as violentas disputas políticas da cidade e resolvido a ir embora tão logo pudesse, foi direto ao salão contíguo e pediu o café-da-manhã. A um canto, um enorme bule de chá fumegava em cima de um samovar; ele viu na mesa um prato de queijo de Kars cortado em fatias muito finas e uma tigela de azeitonas já um tanto murchas e sem brilho.
Ka sentou-se a uma mesa perto da janela. Pelas aberturas da cortina de tule ele lançou um olhar à cena coberta de neve, em toda a sua beleza. A placidez da rua vazia transportou Ka para os toques de recolher de sua infância e juventude. Os dias de recenseamento do eleitorado, os dias dedicados à caça aos inimigos do Estado, os dias de golpes militares, que faziam todo mundo reunir-se em volta de seus rádios e televisores — ele se lembrava de todos, um por um. Enquanto os outros hóspedes ouviam pelo rádio as marchas marciais, os novos boletins sobre a lei marcial, o ,toque de recolher e a lista de proibições, tudo o que Ka desejava era sair e flanar nas ruas vazias. Quando criança, ele desfrutava aqueles dias de lei marcial como se fossem feriados, quando suas tias, seus tios e vizinhos se mantinham unidos por uma preocupação comum. Talvez para esconder o fato de que se sentiam mais felizes e mais seguras durante os golpes militares, as famílias de classe média e alta da infância de Ka em Istambul costumavam ridicularizar discretamente as ações estúpidas que sempre acompanhavam todos esses golpes — a caiação das pedras do calçamento da cidade, para que toda ela ficasse com aspecto de quartel, ou os soldados e policiais grosseiros que detinham quem tivesse barba ou cabelos longos. Os ricos de Istambul tinham um medo terrível de soldados, mas também sabiam das privações que eles passavam — a férrea disciplina e os baixos soldos — e por isso os desprezavam.
A rua lá fora dava a impressão de ter sido abandonada havia séculos, por isso quando Ka avistou um caminhão do exército entrando nela, essa visão o levou de volta à infância; como o menino que um dia fora, ele se deixou ficar como paralisado.
Um homem que parecia ser negociante de gado entrou na sala, aproximou-se de Ka, abraçou-o e beijou-o em ambas as faces.
“Parabéns! Este é um grande dia para nossa nação!”
Ka se lembrou de como os adultos costumavam congratular-se depois de golpes militares, da mesma forma como se congratulavam por ocasião dos velhos dias santos. Ele retribuiu a saudação, murmurando umas poucas palavras.
A porta da cozinha se abriu e Ka sentiu todo o seu sangue subir à cabeça: Ipek entrava na sala. Seus olhares se cruzaram, e por um instante Ka ficou sem saber o que fazer. Resolveu ficar de pé, mas no mesmo instante Ipek sorriu para ele e voltou-se para o homem que acabara de sentar. Ela trazia uma bandeja com uma xícara e um prato.
Agora ela colocava a xícara e o prato na mesa do homem, fazendo as vezes de garçonete.
Ka ficou desalentado. Odiou a si mesmo por não ter cumprimentado Ipek como devia ter feito, mas ali se passava alguma coisa da qual, ele bem o sabia, não poderia se furtar. Tudo o que ele fizera no dia anterior fora errado. Ka se odiou por ter proposto casamento a uma mulher que ele mal conhecia; odiou-se por beijá-la (por melhor que tivesse sido), por perder o controle e por tomar sua mão à mesa do jantar; e, pior que tudo, ele se odiava por se comportar como um turco qualquer e embebedar-se e, sem a menor vergonha, deixar transparecer para todos que tinha atração sexual por ela. Ele não sabia o que dizer; sua única esperança era que Ipek continuasse bancando a garçonete.
O homem que parecia um negociante de gado gritou “Chá!”, com voz áspera. Ipek voltou-se mansamente para o samovar, levando a bandeja vazia. Depois de servir o chá ao homem, aproximou-se da mesa de Ka; ele sentiu o pulsar do próprio coração até no nariz.
“E então, o que é que há?”, disse Ipek com um sorriso. “Você dormiu bem?”
Essa referência à noite anterior, à felicidade da véspera, incomodou Ka. “Parece que essa neve não vai parar nunca”, disse ele, hesitante.
Eles se fitaram em silêncio. Ka sabia que nada tinha a dizer; o que quer que dissesse agora soaria falso. Então, fitando seus grandes olhos castanhos ligeiramente esquivos, deixou transparecer, sem uma palavra, que não podia senão ficar em silêncio. Ipek percebeu que agora o estado de espírito de Ka era bem outro, muito diferente do dia anterior; e de fato ele se tornara uma pessoa muito diferente. Ka estava certo de que Ipek pressentia nele um humor sombrio, e o aceitava. Aquilo, pensou ele, o ligaria a ela por toda a vida.
“A neve vai continuar por algum tempo”, disse ela cautelosamente.
“Não tem pão”, disse Ka.
“Oh, desculpe-me”, disse ela, e se dirigiu imediatamente à mesa junto ao samovar, largou a bandeja e começou a cortar o pão em fatias.
Ka pedira pão porque não conseguia suportar a tensão. Agora, contemplando as costas de Ipek, se pôs um tanto pensativo. “Na verdade, eu mesmo poderia ter cortado o pão.”
Ipek estava com um pulôver branco, uma saia marrom comprida e um grosso cinto que, pelo que Ka lembrava, estivera em moda na década de 70; desde então ele nunca mais vira aquele tipo de cinto. Sua cintura era fina, os quadris perfeitos. Sua altura combinava perfeitamente com a dele. Ele gostava até de seus tornozelos, e se deu conta de que, se voltasse para a Alemanha sem ela, amargaria pelo resto da vida a dolorosa lembrança de como fora feliz ali, segurando as suas mãos, trocando beijos meio sérios meio de brincadeira e dizendo gracejos.
Vendo que o braço que cortava o pão parava, Ka desviou os olhos antes que ela se voltasse. “Quer que eu ponha queijo e azeitonas em seu prato?”, perguntou ela. Seu tom era formal, como Ka percebeu, porque ela queria lembrá-lo de que estavam sendo observados.
“Sim, por favor”, respondeu Ka, ao mesmo tempo que relanceava os olhos pela sala. Quando seus olhares se cruzaram novamente, a expressão de Ipek não deixava dúvidas de que ela sabia que Ka a observara durante todo o tempo em que estivera de costas. Ka ficou assustado em perceber a familiaridade de Ipek com as sutilezas das relações homem-mulher, esse tipo de diplomacia para o qual ele sempre se sentiu meio sem tato. E ele já temia que ela pudesse ser sua única chance de felicidade.
“O pão chegou num caminhão do exército alguns minutos atrás”, disse Ipek, sorrindo para Ka de uma forma que lhe fez doer o coração. “Estou cuidando da cozinha; Zahide Hanim não pôde vir esta manhã por causa do toque de recolher... Fiquei preocupada quando vi os soldados.”
Isso porque os soldados podiam ter vindo buscar Kadife ou Hande. Ou mesmo seu pai.
“Eles mandaram faxineiros de hospital para limpar o sangue do Teatro Nacional”, sussurrou Ipek. Ela se sentou à mesa. “Fizeram batidas nos alojamentos de estudantes da universidade, da escola secundária religiosa e na sede do partido.” Durante essas batidas houve mais mortes, disse ela. Centenas tinham sido presos, embora alguns tivessem sido liberados logo de manhã. Ela lhe contou tudo isso naquele tom que as pessoas reservam para as situações de crise política. Aquilo o fez recuar vinte anos; Ka se lembrou de que ele e seus amigos ficavam na cantina da universidade trocando informações sobre tortura e espancamentos aos sussurros que traíam não apenas raiva e pesar, mas também, estranhamente, um certo orgulho. Em ocasiões como aquela ele se sentia muito culpado; tudo o que queria era esquecer a Turquia e tudo o que a ela se referisse, e ir para casa ler livros.
Agora, para ajudar Ipek a encerrar o assunto, ele se viu tentado a dizer algo do tipo: “Isso é terrível, absolutamente terrível!”, mas embora as palavras já estivessem prontas a sair, ele as reprimiu, sabendo que iria parecer pretensioso, por mais que se esforçasse para evitar; em vez disso, deixou-se ficar ali sentado, comendo, encabulado, o pão com queijo.
Enquanto ele comia, Ipek continuou a sussurrar — eles colocaram os cadáveres dos rapazes da escola secundária nos caminhões do exército e mandaram-nos para as aldeias curdas, para serem identificados por seus parentes, mas os caminhões ficaram presos na neve; as autoridades concederam uma anistia de um dia para todos os que entregassem suas armas; suspendeu-se o ensino do Corão, assim como toda e qualquer atividade política — e enquanto ela lhe contava todas essas coisas, ele lhe contemplava os braços, olhava em seus olhos, admirava a bela cor de seu pescoço longo, a forma como seus cabelos castanhos afloravam sua nuca. Amava-a? Tentou imaginar-se junto com ela em Frankfurt, andando na Kaiserstrasse, voltando para casa depois de uma noite no cinema. Mas sua alma se deixava dominar por pensamentos sombrios. A única coisa que ele conseguia ver era que aquela mulher cortara o pão em fatias grossas, tal como se fazia nas casas mais pobres, e, pior ainda, que arrumara as fatias grossas numa pirâmide, do modo como se faz em restaurantes de segunda categoria.
“Por favor, fale-me de outra coisa agora”, disse ele em tom cauteloso.
Ipek estava lhe contando sobre um homem que, tendo sido denunciado, fora preso duas casas mais adiante, quando fugia pelos quintais, mas então ela lhe lançou um olhar cheio de compreensão. Ka viu o medo em seus olhos.
“Eu estava muito feliz ontem, você sabe. Pela primeira vez em anos eu estava escrevendo poemas”, explicou ele. “Mas não suporto ouvir essas histórias agora.”
“O poema que você escreveu ontem é muito bonito”, disse Ipek.
“Posso lhe pedir que me faça um favor, antes que este desespero tome conta de mim?”
“Diga-me o que devo fazer.”
“Vou para o meu quarto agora”, disse Ka. “Daqui a pouco você sobe e toma minha cabeça entre as suas mãos? Só por um instante — só isso.”
Mesmo antes de terminar de falar, teve certeza, pela expressão de medo no olhar de Ipek, que ela não ia atender, por isso levantou-se para sair. Ela era uma provinciana, uma estranha para ele, e ele lhe pedira uma coisa que nenhum estranho poderia entender. Ele podia se poupar ao olhar de incompreensão daquela mulher; ele devia ter juízo bastante para deixar de fazer aquele pedido idiota. Enquanto corria escada acima, culpava-se duramente por ter se convencido de que a amava. Jogando-se na cama, ficou cismando sobre o quanto fora tolo primeiro em viajar de Istambul para Kars, depois, mesmo em voltar da Alemanha para a Turquia. Ele pensou em sua mãe, que tanto desejara para ele uma vida normal e tanto fizera para afastá-lo da poesia e da literatura; o que ela diria se soubesse que sua felicidade dependia de uma mulher de Kars que ajudava no trabalho da cozinha e cortava pão em fatias grossas? O que diria seu pai ao saber que Ka se ajoelhara diante de um sheik de aldeia e falara com lágrimas nos olhos sobre sua fé em Deus? Lá fora, a neve começara a cair novamente; os flocos de neve que ele via de sua janela eram grandes e melancólicos.
Ele ouviu baterem, precipitou-se para a porta, o coração subitamente cheio de esperança. Era Ipek, mas com uma expressão muito diferente: um caminhão do exército acabara de chegar com dois homens, um deles um soldado, procurando Ka. Ela lhes dissera que ele estava no hotel e que o avisaria de que eles o esperavam.
“Está bem”, disse Ka.
“Se você quiser, posso lhe dar os dois minutos de massagem que queria”, disse Ipek.
Ka puxou-a para dentro, fechou a porta, beijou-a uma vez e fê-la sentar-se à cabeceira da cama. Ele se deitou e pousou a cabeça em seu colo. Eles ficaram assim por um tempo, calados, olhando pela janela os corvos que andavam sobre a neve no telhado do edifício de cento e dez anos onde agora funcionava o quartel central da polícia.
“Está ótimo, já é o bastante, muito obrigado”, disse Ka. Depois de tirar com cuidado o casaco cinza do gancho atrás da porta, ele saiu do quarto. Enquanto descia as escadas, aspirava o cheiro do casaco para lembrar-se de Frankfurt; por alguns minutos ele conseguiu ver a cidade com toda a nitidez, e desejou estar lá. No dia em que comprara o casaco na Kaufhof, fora ajudado por um homem que ele veria novamente dois dias depois, quando veio pegar o casaco, que precisou ser encurtado. Seu nome era Hans Hansen. Deve ter sido pelo fato de o nome soar tão alemão e de ele ser tão loiro que Ka também se lembrou de ter pensado nele quando acordou no meio da noite.
Ka nas frias salas do terror
Os homens enviados para buscar Ka chegaram num daqueles velhos caminhões do exército — que raramente se vêem hoje, mesmo na Turquia. Um jovem policial à paisana, de nariz adunco e pele clara, encontrou-se com ele no saguão e o fez sentar-se no meio do banco da frente, tomando para si o espaço perto da porta, como para bloquear uma possível fuga de Ka. Mas seus modos eram bastante polidos; ele chamava Ka de senhor, e isso, pensou Ka, significava que afinal de contas ele não era um policial, mas talvez um agente do MIT, talvez com ordens para não lhe fazer mal.
Eles avançaram devagar pelas ruas brancas e vazias da cidade. O painel do caminhão do exército era cheio de mostradores com ponteiros, mas nenhum deles estava funcionando; como a cabine era muito alta, Ka conseguia ver dentro de algumas casas cujas cortinas estavam abertas. Havia televisores por toda parte, e em quase toda a Kars os moradores tinham fechado as cortinas, voltando-se para si mesmos. Era como se eles estivessem atravessando uma cidade completamente diferente; enquanto os limpadores de pára-brisa continuavam seu monótono vaivém, parecia a Ka que as ruas de sonho, as velhas casas em estilo báltico e os belos oleandros cobertos de neve tinham enfeitiçado até o motorista e seu companheiro de nariz adunco.
Eles pararam na frente do quartel central da polícia. Como tinham passado muito frio no caminhão, trataram de entrar logo. O quartel estava muito mais cheio e movimentado que no dia anterior e, ainda que já esperasse por isso, Ka se sentiu incomodado. Aquela desordem cheia de agitação era bem típica de muitas repartições turcas. Ela fazia Ka pensar em corredores de palácios de justiça, portões de estádios de futebol, estações rodoviárias. Mas havia também um cheiro de iodo e de hospital, terror e morte. Em algum lugar bem próximo de onde ele se encontrava, alguém estava sendo torturado; ele se sentia culpado só em pensar nisso. Sentiu-se dominar pelo medo.
Enquanto subia as escadas que subira com Muhtar no dia anterior, o instinto lhe recomendava que procurasse dar a impressão de manter o sangue-frio. Passando por portas abertas, ele ouvia o rápido tap-tap-tap de velhas máquinas de escrever. Por toda parte homens gritavam no walkie-talkie ou pediam chá aos berros. Em bancos, diante de portas fechadas, ele viu fileiras de jovens esperando a vez de serem interrogados; estavam algemados uns aos outros, e era evidente que tinham sido maltratados; seus rostos estavam cobertos de hematomas. Ka evitou olhá-los nos olhos.
Eles o levaram para uma sala muito parecida com aquela em que ficara com Muhtar, e lá o informaram de que apesar de ter afirmado não ter visto o rosto do homem que matara o diretor do Instituto de Educação, não podendo, portanto, identificar o agressor pelas fotografias que lhe tinham sido mostradas no dia anterior, agora esperavam que ele pudesse reconhecer o criminoso entre os estudantes da escola secundária religiosa nas celas do subsolo. Daí Ka deduziu que o MIT assumira o controle da polícia em seguida à “revolução”, e que as relações entre os dois grupos estavam tensas.
Um agente da inteligência de rosto redondo perguntou a Ka onde ele estivera por volta das quatro horas da tarde anterior.
Por um momento o rosto de Ka perdeu a cor. “Disseram-me que também seria uma boa idéia fazer uma visita a sua excelência o sheik Saadettin...”, principiou ele, mas o agente o interrompeu.
“Não, antes disso!”, disse ele.
Como Ka permaneceu em silêncio, o agente de rosto redondo lembrou-o do encontro com Azul. Ele o fez de forma a sugerir que já sabia tudo sobre o encontro e até lamentava incomodar Ka com aquela história. Ka esforçou-se para ver naquilo uma prova de boas intenções. Um oficial da polícia comum o teria acusado de tentar escamotear o encontro e se comprazeria em humilhá-lo, jactando-se de que a polícia sabe de tudo.
Num tom quase de desculpas, o agente explicou que Azul era um terrorista perigoso e um terrível conspirador; era um inimigo confesso da República, a soldo do Irã. Era certo que assassinara um apresentador de televisão, por isso havia uma ordem de prisão contra ele. Ele percorrera toda a Turquia, organizando os fundamentalistas. “Quem acertou o encontro de vocês?”
“Um rapaz da escola secundária religiosa — não sei o nome dele”, disse Ka.
“Por favor, veja se pode identificá-lo agora”, disse o agente. “Olhe bem para eles. Você vai olhar para dentro das celas, através de um visor. Não precisa ter medo. Eles não o reconhecerão.”
Eles conduziram Ka por uma larga escadaria que levava ao porão. Cerca de cem anos atrás, quando no belo edifício funcionava um hospital armênio, o porão servia como armazém para lenha e alojamento para os serventes. Muito depois, na década de 40, quando o edifício passou a funcionar como liceu do Estado, derrubaram-se as paredes internas, e o espaço foi transformado numa cantina self-service. Muitos jovens de Kars que haveriam de se tornar marxistas e inimigos do Ocidente na década de 60 engoliram ali suas primeiras cápsulas de óleo de fígado de bacalhau; eles as empurravam goela abaixo com iogurte feito de leite em pó enviado pelo UNICEF, bebida de cheiro insuportável que lhes embrulhava o estômago. Parte daquele espaçoso porão fora transformada em quatro celas que davam para um corredor.
Um policial cujos movimentos traíam uma longa prática, colocou com todo o cuidado um quepe do exército na cabeça de Ka. O agente do MIT de nariz adunco que o pegara no hotel lançou-lhe um olhar significativo e disse: “Esse pessoal tem o maior medo de quepes do exército”.
Quando eles se aproximaram das duas celas da direita, o policial abriu os dois visores e berrou: “Atenção! Comandante!”. Ka olhou pelo visor, não maior que a sua mão.
Ka viu cinco pessoas na cela, que tinha o tamanho de uma cama grande. Talvez houvesse mais; era difícil saber porque eles estavam amontoados uns sobre os outros, apoiados na parede imunda do fundo, e ainda que não tivessem feito o serviço militar, sabiam como ficar em posição de sentido, embora de forma desajeitada, de olhos fechados. (Ka teve a impressão de que alguns estavam com os olhos semicerrados, olhando para ele.) Passara-se menos de um dia desde o começo da “revolução”, mas suas cabeças já estavam raspadas, faces e olhos inchados por causa das pancadas. As celas estavam mais bem iluminadas que o corredor, mas aos olhos de Ka todos os rapazes se pareciam. Sua cabeça começou a girar quando se sentiu dominar pela dor e pela vergonha. Ficou aliviado quando não viu Necip entre eles.
Como Ka não identificou nenhum dos rapazes da segunda e da terceira celas, o agente de nariz adunco do MIT falou: “Não há nada a temer. Afinal de contas, quando as estradas estiverem livres, você vai embora”.
“Mas eu não reconheço nenhum deles”, disse Ka, em tom de leve teimosia.
Depois disso ele reconheceu alguns; lembrava-se muito bem de um rapaz que ele vira importunando Funda Eser com apartes descabidos e de outro que gritava slogans. Se agora ele denunciasse aqueles rapazes, estaria demonstrando sua disposição de colaborar com a polícia; assim, se ele visse Necip depois, seria mais fácil fingir que não o conhecia. (De resto, o delito daqueles rapazes não era muito grave.)
Mas ele não denunciou ninguém. Um jovem com as faces e os olhos ensangüentados olhou para Ka e implorou: “Comandante, por favor, não conte a nossas mães”.
Ao que parecia, aqueles rapazes tinham sido espancados no calor das primeiras horas do golpe: a polícia não usara nenhum instrumento, apenas botas e punhos. Ka olhou a quarta cela e mais uma vez não viu ninguém que se parecesse com o assassino do diretor do Instituto de Educação. Quando ele se certificou de que Necip não estava entre aqueles rapazes apavorados, começou a relaxar.
Quando eles subiram as escadas, ficou bem evidente quanto o agente de rosto redondo e seus superiores estavam ansiosos para encontrar o assassino do diretor de modo a poder apresentá-lo como o primeiro feito da “revolução”; Ka desconfiou que pretendiam enforcar o criminoso imediatamente. Agora na sala havia um major reformado. Apesar do toque de recolher, ele conseguira de alguma forma chegar ao quartel central da polícia para pedir que seu neto fosse libertado da prisão. O major pediu que não torturassem o rapaz, que não tinha nenhuma queixa contra o Estado e fora mandado para a escola secundária religiosa apenas porque sua mãe, muito pobre, acreditara na mentira de que todos os estudantes recebiam casacos de lã e ternos; na verdade, os membros da família eram ferrenhos defensores de Atatürk...
O homem de rosto redondo interrompeu o major no meio da frase. “Meu caro senhor, ninguém aqui sofre maus-tratos”, disse ele. Ele chamou Ka a um canto. Havia uma possibilidade, disse ele, de que o assassino e os homens de Azul (Ka teve a impressão de que se pensava que o criminoso fosse um deles) pudesse estar entre os que tinham sido presos na escola de veterinária.
Assim, Ka terminou voltando ao caminhão do exército com o agente de nariz adunco que o pegara no hotel. A caminho, enquanto admirava a beleza das ruas desertas e fumava um cigarro, sentiu-se satisfeito por ter saído do quartel central da polícia. Secretamente, sentia-se aliviado com o golpe militar e com o fato de o país não estar à mercê dos islamitas. Mas de todo coração jurava a si mesmo recusar-se a cooperar tanto com a polícia como com o exército. Naquele mesmo instante, sentiu um novo poema surgindo em sua mente; o poema era tão poderoso, tão estranhamente estimulante que Ka se pegou voltando-se para o agente de nariz adunco e perguntando: “Podemos parar numa casa de chá no caminho?”.
Era impossível dar alguns passos naquela cidade sem passar por uma casa de chá cheia de desempregados; embora a maioria dos estabelecimentos estivesse fechada naquela manhã, uma casa de chá da rua do Canal estava conseguindo funcionar sem chamar a atenção do jipe do exército estacionado ali perto. Lá dentro, um jovem aprendiz esperava o fim do toque de recolher, e três outros estavam sentados em outra mesa. Todos se agitaram quando viram um homem com quepe do exército e um oficial à paisana entrarem pela porta.
Ato contínuo, o homem de nariz adunco sacou uma arma do casaco e, com um profissionalismo que Ka não pôde deixar de admirar, enfileirou os jovens de cara para a enorme paisagem suíça fixada à parede; com a mesma eficiência, revistou-os e examinou suas carteiras de identidade. Ka não tinha dúvidas de que tudo ia dar certo, então sentou-se a uma mesa próxima à estufa apagada e, sem nenhuma dificuldade, escreveu o poema que tinha em mente.
Mais tarde iria intitular o poema “Ruas de sonho”. Embora se inicie nas ruas nevadas de Kars, o poema de trinta e seis versos também contém inúmeras referências às ruas da velha Istambul, à cidade-fantasma armênia de Ani e às terríveis cidades desertas que Ka vira em seus sonhos.
Quando Ka terminou de escrever o poema, olhou para a televisão em preto-e-branco e constatou que o cantor de músicas folclóricas se fora; em lugar dele, agora se viam as primeiras cenas do drama do Teatro Nacional. O goleiro Vural começara a recontar os amores passados e os gols que sofrera; pelas contas de Ka, só vinte minutos depois ele poderia se ver lendo seu poema. Tratava-se do poema que se apagara de sua mente antes que tivesse a oportunidade de escrevê-lo: ele estava resolvido a passá-lo para o papel.
Mais quatro pessoas entraram na casa de chá, pela porta dos fundos; o agente do MIT de nariz adunco sacou a arma e colocou-os contra a parede. O dono da casa de chá, que era curdo, tentou explicar ao agente, a quem ele chamava de “meu comandante”, que na verdade aqueles homens não violaram o toque de recolher, pois tinham vindo do pátio interno, passando pelo jardim, mas o agente resolveu verificar a veracidade daquelas alegações. Afinal de contas, um deles estava sem carteira de identidade e tremia de medo. O agente anunciou que iria acompanhar o homem a sua casa, tomando o mesmo caminho por onde ele viera, e chamou o motorista para vigiar os jovens ainda alinhados contra a parede.
Enfiando o caderno de poesia no bolso, Ka seguiu os dois homens pela porta dos fundos, chegando ao pátio coberto de neve; passaram por um muro baixo, por três degraus cobertos de gelo e, ao som dos latidos de um cão acorrentado, desceram ao porão de um edifício de concreto em petição de miséria, semelhante à maioria dos edifícios de Kars. O porão exalava um forte cheiro de lama e de lençóis sujos. O homem que ia na frente passou por uma caldeira fumegante, chegando a uma área cheia de caixas e engradados de legumes; ali, numa cama surrada, dormia uma mulher de pele clara, extraordinariamente bela; Ka não conseguiu deixar de voltar-se para olhar. Então o homem sem carteira de identidade mostrou o passaporte ao agente do MIT; a caldeira fazia tal barulho que Ka não conseguia ouvir o que eles diziam; forçando a vista na penumbra, porém, viu que o homem agora apresentava um segundo passaporte.
O casal era georgiano e tinha vindo para a Turquia para conseguir trabalho e ganhar um pouco de dinheiro. Os jovens desempregados cujas carteiras de identidade tinham sido checadas pelo agente do MIT na casa de chá haviam se queixado muito daqueles georgianos. A mulher estava tuberculosa, mas ainda trabalhava como prostituta; seus clientes eram os donos de laticínios e comerciantes de couro que vinham negociar na cidade. Seu marido, como tantos outros georgianos, estava disposto a trabalhar por meio salário, tirando o pão da boca dos cidadãos turcos, cuja oportunidade de emprego já era muito reduzida. O casal era tão miserável que não podia nem pagar uma pensão; em vez disso, pagava cinco dólares por mês ao servente do departamento de água para deixá-los morar na sala da caldeira. Dizia-se que eles estavam economizando para comprar uma casa quando voltassem ao seu país, depois do que nunca mais voltariam a trabalhar. As caixas estavam cheias de produtos de couro que eles tinham comprado a baixo preço, pensando em vendê-los quando voltassem a Tiflis. Eles já tinham sido deportados duas vezes mas tinham conseguido voltar para a sala da caldeira. Tendo sido pegos, agora cabia ao exército fazer o que a corrupta polícia municipal não fizera: livrar a cidade daqueles parasitas.
Voltaram à casa de chá, onde o dono estava todo contente servindo os fregueses e ouvindo a conversa dos jovens e fracos desempregados que, respondendo a um pequeno estímulo do agente do MIT, se puseram a falar, embora um tanto hesitantes, sobre o que esperavam do golpe militar. Misturadas às suas queixas contra políticos corruptos havia um bocado de boatos que bem podiam funcionar como denúncias: o abate ilegal de animais, as negociatas que se faziam nos depósitos de mercadorias pertencentes ao Estado, os empreiteiros desonestos que traziam armênios clandestinos em caminhões de carne, alojavam-nos em barracões, faziam-nos trabalhar o dia inteiro sem lhes pagar nada. Os jovens desempregados pareciam não entender que os militares intervieram contra o nacionalismo curdo e para impedir que os “fanáticos religiosos” ganhassem as eleições municipais. Em vez disso, pareciam pensar que os acontecimentos da noite anterior marcavam o começo de uma nova era na qual a imoralidade e o desemprego já não seriam tolerados; era como se o exército tivesse dado o golpe expressamente para lhes arranjar empregos.
De volta ao caminhão do exército, Ka observou o agente do MIT de nariz adunco sacar do bolso o passaporte da georgiana; ao perceber que a intenção do agente era olhar a fotografia da mulher, Ka se sentiu estranhamente embaraçado.
No momento em que entraram na escola de veterinária, Ka se deu conta de como as coisas tinham sido relativamente brandas no quartel central da polícia. Enquanto avançava pelos corredores do edifício gélido, ele percebia que naquele lugar ninguém se preocupava nem um pouco com o sofrimento dos outros. Para lá tinham sido levados os nacionalistas curdos que eles tinham arrebanhado, além dos terroristas de esquerda que assumiam com orgulho a responsabilidade pela detonação de bombas, para não falar em todos os que estavam fichados no MIT como simpatizantes e colaboradores dessa gente. A polícia, os soldados e os promotores públicos viam com maus olhos quaisquer participantes de eventos organizados por esses grupos; o mesmo acontecia com quem quer que colaborasse com os guerrilheiros curdos que desciam das montanhas para se infiltrarem na cidade. Para gente desse tipo o tratamento era implacável, e os métodos de interrogatório eram muito mais duros que os usados contra os suspeitos de ligação com o islã político.
Um policial alto e forte tomou-o pelo braço e o conduziu afetuosamente pelo corredor, como se Ka fosse um senhor de idade com dificuldade para andar; juntos eles visitaram três salas de aula onde aconteciam coisas terríveis. Neste ponto vou seguir o exemplo de Ka: assim como ele decidiu não registrá-las em seu caderno de anotações, também não vou me demorar nesse tópico.
Depois de olhar por três ou quatro segundos os suspeitos da primeira sala, o primeiro pensamento de Ka foi sobre a brevidade da jornada do homem do nascimento à morte. Bastava um olhar sobre os suspeitos que acabavam de ser interrogados para evocar os caros sonhos com distantes civilizações e terras que ele nunca visitara. Assim Ka ficou convencido, sem sombra de dúvida, de que ele e todos os que se encontravam na sala aproximavam-se rapidamente do fim do tempo que lhes cabia; logo suas velas iriam se consumir. Em seu caderno de anotações, Ka chamaria aquele lugar de sala amarela.
Na segunda sala de aula, ele teve uma percepção de menor alcance. Lembrou-se de ter visto aqueles homens numa casa de chá pela qual passara no dia anterior em suas andanças pela cidade; os olhares vazios traíam o sentimento de culpa. Eles estavam à deriva em algum longínquo mundo de sonho, ou assim parecia a Ka.
Passaram então à terceira sala, onde, na sombria tristeza que dominava sua alma, Ka sentiu a presença de um poder onisciente cuja recusa a revelar tudo o que sabia fazia da vida na terra um tormento. Os olhos de Ka estavam abertos, mas ele não conseguia ver o que tinha à sua frente; a única coisa que conseguia enxergar era a cor dentro de sua cabeça. Como a cor era próxima do vermelho, ele chamou o lugar de sala vermelha. Ali os pensamentos que tivera nas duas primeiras salas — que a vida era breve, que a humanidade era presa de sentimentos de culpa — voltaram a persegui-lo, mas apesar do terrível cenário à sua frente, conseguiu manter a calma.
Quando eles saíram da faculdade de veterinária, Ka estava ciente de que os agentes acreditavam cada vez menos nele e começavam a se perguntar que motivos teria para, mais uma vez, não reconhecer ninguém. Mas ele estava tão aliviado por não ter visto Necip que quando o agente do MIT sugeriu que examinassem os cadáveres, Ka concordou imediatamente.
No necrotério, situado no subsolo do hospital público, mostraram-lhe primeiro os cadáveres mais suspeitos. Lá estava o militante islamita que cantava slogans, crivado pelas três balas da segunda saraivada dos soldados, mas Ka não o tinha visto antes. Ele se aproximou do cadáver cautelosamente, e lhe pareceu que o jovem morto lhe fazia um cumprimento triste e respeitoso. O corpo que jazia numa segunda placa de mármore parecia tremer de frio: era o cadáver do avozinho. Eles o mostraram a Ka porque ainda não sabiam que aquele homem viera de Trebizonda para ver o neto que fazia o serviço militar em Kars, e porque sua pequena estatura indicava que podia ser o assassino do diretor do Instituto. Ao se aproximar do terceiro cadáver, Ka já se alegrava com a idéia de rever Ipek. O cadáver tinha um olho destroçado. Por um instante pareceu que todos os cadáveres da sala seguiam esse padrão. Então, quando ele ficou mais próximo do rosto branco do jovem morto, alguma coisa se destroçou dentro dele também.
Era Necip, os lábios ainda projetados para a frente como se fosse fazer mais uma pergunta. Ka sentiu o frio e o silêncio do hospital. O mesmo rosto infantil, as mesmas espinhas que ele vira antes, o mesmo nariz aquilino, o mesmo casaco encardido do uniforme escolar. Por um instante Ka pensou que ia chorar, e isso o encheu de medo. O medo o distraiu por tempo bastante para conter as lágrimas. Ali, no meio da testa em que ele pusera a palma da mão ainda ontem, havia o buraco de bala. Mas o que mais assustava em Necip não era o buraco da bala, nem a tez pálida e levemente arroxeada, mas a gélida rigidez com que jazia na placa de mármore. Ka se sentiu profundamente grato; sentiu-se muito feliz por estar vivo. Isso o distanciou de Necip. Inclinou-se para a frente, separou as mãos que mantinha cruzadas às costas, colocou-as nos ombros de Necip e beijou-o em ambas as faces. As faces estavam frias mas ainda não tinham enrijecido. O olho verde remanescente estava ainda entreaberta, olhando diretamente para Ka. Ka endireitou o corpo e disse ao agente que se tratava de um amigo que o parara na rua no dia anterior para lhe falar de seu trabalho de escritor de ficção científica e mais tarde o levara até Azul. Ele o beijou, explicou Ka, porque aquele adolescente tinha um coração puro.
As carreiras militar e teatral de Sunay Zaim
Depois que Ka identificou o cadáver de Necip no necrotério do hospital público, um oficial elaborou um relatório às pressas, assinou-o e o encaminhou às instâncias superiores. Então Ka e o agente do MIT voltaram para o caminhão do exército e partiram. Um bando de cachorros medrosos os acompanhava; além destes, os únicos sinais de vida eram as bandeirolas de propaganda eleitoral e os cartazes contra o suicídio. Enquanto seguiam caminho, a mente de Ka registrava crianças inquietas e pais ansiosos puxando as cortinas fechadas para dar uma olhada no caminhão que passava, mas ele olhava através deles. Ele só pensava em Necip, só via o rosto e o corpo enrijecido de Necip. Imaginava Ipek consolando-o quando voltasse ao hotel, mas, depois que o caminhão passou pelo centro da cidade deserto, continuou avançando pela avenida Atatürk e parou pouco depois de um edifício russo de noventa anos, a duas ruas de distância do Teatro Nacional.
Era uma das belas mansões térreas, em estado precário, que Ka ficara tão feliz em ver em sua primeira noite em Kars. Depois que a cidade passara ao domínio dos turcos, integrando-se à República, a mansão caíra nas mãos de um certo Maruf bei, conhecido negociante que vendia madeira e couro para a União Soviética. Durante quarenta e três anos ele e sua família viveram magnificamente ali, deslocando-se em carruagens e trenós puxados a cavalos, tendo todas as suas necessidades atendidas por cozinheiros e criados. Depois da Segunda Guerra Mundial, no início da Guerra Fria, o governo deteve os comerciantes que sabidamente negociavam com a União Soviética, acusou-os de espionagem e jogou-os na prisão, da qual certamente nunca mais iriam sair.
E assim, durante os vinte anos seguintes, a mansão de Maruf bei ficou vazia, primeiro por falta de dono, depois por causa de uma disputa sobre quem detinha os direitos de propriedade. Em meados da década de 70, um grupo marxista dissidente, armado de cacetes, tomou o edifício, transformando-o em seu QG. Lá eles planejaram muitos assassinatos políticos (inclusive o de Muzaffer bei, o juiz e ex-prefeito, que sobreviveu ao atentado mas ficou ferido); depois do golpe militar de 1980, o edifício ficou vazio por algum tempo, após o que o imaginoso negociante de eletrodomésticos que tinha uma loja ao lado transformou metade da mansão num depósito; por sua vez, um alfaiate empreendedor e visionário — que voltara para sua cidade natal três anos antes com um sonho impossível, tendo ganhado dinheiro em Istambul e na Arábia — transformou a outra metade numa oficina de confecções que pagava aos empregados um salário de fome.
Quando Ka entrou na antiga oficina de confecções, viu máquinas de pregar botões, máquinas de costura grandes e obsoletas e enormes tesouras ainda pendentes de ganchos fixados à parede; vistos contra o fundo alaranjado do velho papel de parede com motivos florais, eles pareciam estranhos instrumentos de tortura.
Sunay Zaim ainda estava com o casaco rasgado, o pulôver e as botas militares que usava dois dias antes, quando Ka o viu pela primeira vez; ele andava de um lado para outro no salão, com um cigarro sem filtro entre os dedos. Quando viu Ka, seu rosto se iluminou como se tivesse visto um velho e querido amigo, e apressou-se em cruzar a sala para abraçá-lo e beijá-lo em ambas as faces. Ka não se surpreenderia se ele dissesse: “Parabéns pelo golpe militar!”, tal como o fizera o negociante de gado no hotel; alguma coisa naquela efusão excessiva deixou Ka com um pé atrás. Ele via suas relações com Sunay de uma forma positiva: eles eram apenas dois homens de Istambul que, tendo sido jogados numa cidade remota e empobrecida, encontraram uma forma de trabalhar juntos sob condições adversas. Mas estava mais do que ciente da responsabilidade de Sunay na criação daquelas condições adversas.
“Não se passa um dia sem que a águia da negra depressão sobrevoe a minha alma”, disse Sunay, insulando nas próprias palavras um misterioso orgulho. “Mas preciso me recompor. Portanto, trate de se controlar você também. Tudo está bem quando termina bem.”
A luz branca que entrava pelas grandes janelas, Ka examinou a sala espaçosa. A grande estufa e os frisos nos cantos do teto alto rendiam testemunho do passado glorioso; agora o lugar estava cheio de homens com walkie-talkies, e havia dois guardas corpulentos acompanhando cada movimento de Ka. Na mesa junto à porta que dava para o corredor havia um mapa, um revólver, uma máquina de escrever e uma pilha de dossiês; Ka deduziu que ali era o centro de operações da revolução e que, entre os presentes, Sunay era o homem mais poderoso.
“Houve certos períodos na década de 8o que foram os piores”, disse Sunay enquanto andava de um lado para outro. “Chegávamos a alguma aldeia infeliz, abandonada, no fim do mundo — ainda sem saber se iríamos achar um lugar para encenar as nossas peças ou mesmo um quarto de hotel para descansar nossas cabeças fatigadas — e eu ia procurar um velho amigo e descobria que ele se fora da aldeia havia muito tempo, e era nessas ocasiões que a depressão — a aflição — tomava conta de mim. Para mantê-la sob controle, eu saía pelas ruas da cidade, batendo nas portas dos médicos, advogados e professores à procura de alguém, em algum lugar, que tivesse interesse em ouvir as notícias que tínhamos trazido da arte moderna e da cultura contemporânea. Quando eu não encontrava ninguém no único endereço que tinha anotado, quando a polícia nos informava que afinal de contas não nos permitiriam apresentar o espetáculo, ou quando — e isso era sempre minha última esperança — levava minha humilde solicitação ao prefeito e descobria que também ele não queria nos acolher, eu começava a temer ser tragado pelas trevas. Em momentos como aqueles, a águia em meu peito ganhava vida; ela estendia as asas e, expondo-me ao risco de me sufocar, levantava vôo.
“Não importava o lugar onde nos apresentávamos — podíamos estar na mais ordinária casa de chá existente no mundo; podíamos estar numa estação de trem, graças a um chefe de estação que ficara de olho numa de nossas atrizes; podíamos estar num quartel de bombeiros ou numa sala de aula vazia da escola primária local ou numa humilde choça ou restaurante; podíamos estar nos apresentando à janela de uma barbearia, nas escadas de uma galeria comercial, num celeiro ou na calçada — mas fosse lá onde estivéssemos, eu me recusava a me deixar vencer pela depressão.”
A porta que dava para o corredor se abriu e Funda Eser veio juntar-se a eles; Sunay mudou de eu para nós. Ka não viu nenhum artificialismo naquela mudança para o plural, uma vez que o casal era muito unido. Atravessando a sala, Funda Eser deslocava sua grande massa corporal com muita graça; depois de trocar um rápido aperto de mão com Ka, ela sussurrou alguma coisa no ouvido do marido e, parecendo muito preocupada, saiu da sala.
“Sim, aqueles foram os piores anos”, disse Sunay. “A agitação social e a combinação das imbecilidades de Istambul e Ancara tiveram pesadas conseqüências, e nossa ruína está bem documentada na imprensa. Aproveitei a grande oportunidade que só se oferece aos que são bafejados pelo gênio — sim, eu aproveitei — e no dia exato em que eu ia usar minha arte para interferir no curso da história, de repente me puxaram o tapete e me vi arrastado na mais suja lama. Embora isso não tenha sido bastante para me destruir, a minha velha amiga depressão voltou a atormentar minha alma. Mas por mais que eu me enterrasse na lama, por mais que eu visse sujeira, desgraça, pobreza e ignorância à minha volta, nunca perdi a fé nos princípios que me norteavam, nunca duvidei que tinha alcançado o topo... Por que você está tão assustado?”
Apareceu na porta um médico de jaleco branco e mochila na mão. Com ar apressado que parecia um tanto fingido, tirou da mochila um medidor de pressão arterial, pô-lo no braço de Sunay e, enquanto o fazia, Sunay fitava a luz branca que entrava pelas janelas com uma expressão tão trágica que Ka imaginou estar ele ainda rememorando a época em que tinha caído em desgraça no começo da década de 8o. De sua parte, Ka se lembrava de Sunay mais pelos papéis que este desempenhara na década de 70; foram aqueles papéis que o tornaram famoso.
A década de 70 foi a idade de ouro do teatro de esquerda, e se Sunay conseguiu se distinguir nesse restrito meio teatral, não foi apenas por seus méritos de ator consumado e batalhador capaz de desempenhar os papéis mais difíceis. Não, o que o público mais admirava era sua capacidade de liderança. O jovem público turco entusiasmava-se com suas interpretações de líderes poderosos como Napoleão, Lênin, Robespierre, de revolucionários jacobinos como Enver Paxá, assim como de heróis populares locais com os quais podia se identificar. Quando ele erguia sua voz imperiosa para falar contra a opressão; quando, depois de uma cena em que sofria nas mãos de um tirano, ele levantava a cabeça orgulhosamente e gritava “Chegará o dia em que vamos ajustar as contas!”; quando, no pior dia de todos (o dia em que ele sabia, todos sabiam, que sua prisão era iminente), ele rangeu os dentes e, desejando sorte aos amigos, disse-lhes que, independentemente do sofrimento que o esperava, ele mantinha a convicção de que eles queriam e iriam trazer felicidade para o povo pelo exercício da violência implacável — era em momentos como esses que os estudantes do liceu e os estudantes universitários progressistas que se encontravam na platéia costumavam responder, com lágrimas nos olhos, com um estrondoso aplauso. Causava especial comoção sua determinação, rios últimos atos dessas peças, quando o poder passava às suas mãos e chegava a hora de punir os perversos opressores — e aqui muitos críticos viam a influência da educação militar. Sunay estudara na Academia Militar de Kuleli. Ele fora expulso no último ano por ter fugido para Istambul num barco a remo para apresentar-se em vários teatros de Beyoglu e também por organizar uma apresentação clandestina de uma peça chamada Antes do degelo.
Quando os militares tomaram o poder em 1980, todas as peças de esquerda foram proibidas; não muito depois se decidiu encomendar um grande filme para a televisão sobre Atatürk, para comemorar o centésimo aniversário de seu nascimento. No passado, ninguém acreditava que um turco teria condições de representar aquele herói nacional loiro, de olhos azuis, de aspecto ocidental; a opinião geral era que grandes filmes internacionais exigiam grandes astros internacionais como Laurence Olivier, Curt Jurgens ou Charlton Heston. Mas naquela ocasião o Hürriyet, o maior jornal da Turquia, saiu em campo para defender a tese de que desta vez o papel devia ser interpretado por um turco. Ele chegou a imprimir cédulas em suas páginas para que os leitores as recortassem e as enviassem com suas sugestões. Sunay estava entre os apontados por esse júri popular. Na verdade, sendo ainda bem reconhecido por seu excelente trabalho no período democrático, ele era o franco favorito desde o primeiro dia. Afinal de contas, fazia anos que ele interpretava jacobinos. As platéias turcas não tinham dúvida de que Sunay, com toda a sua elegância, nobreza de porte e capacidade de inspirar confiança, daria um excelente Atatürk.
O primeiro erro de Sunay foi levar a sério o voto do público. Ele foi direto aos jornais e redes de televisão, fazendo grandes pronunciamentos para quem quisesse ouvir. Fez-se fotografar à vontade em casa, ao lado de Funda Eser. Pôs-se a falar abertamente sobre sua vida pessoal, sobre o seu dia-a-dia, seus pontos de vista políticos, reconstruindo a si mesmo à imagem de Atatürk: ele se esforçava para mostrar que, como Atatürk, ele era secularista. Ressaltava também o fato de que gostavam dos mesmos passatempos e prazeres (o raki, a dança, o trajar bem e as boas maneiras). Ele se pôs a posar com volumes da obra clássica de Atatürk, Discursos, afirmando estar relendo sua obra de cabo a rabo. (Quando um colunista desmancha-prazeres, que entrou na briga logo no início, ridicularizou-o por ler não a versão original dos Discursos, mas uma versão resumida em turco simplificado, Sunay pegou a versão original da biblioteca e se fez fotografar com ela também, mas de nada adiantou o seu empenho em publicar a foto no jornal do tal colunista.) Sem se deixar intimidar, Sunay continuou a comparecer aos grandes vernissages, concertos e importantes partidas de futebol, e aonde quer que fosse respondia às perguntas de todo e qualquer repórter de terceira categoria sobre Atatürk e a arte, Atatürk e a música, Atatürk e o esporte turco. Com uma ânsia de agradar pouco adequada a um jacobino, ele chegou a dar entrevistas a jornais religiosos hostis ao Ocidente. Foi numa dessas entrevistas que ele disse, em resposta a uma pergunta (não sem razão) provocativa, “Talvez um dia, quando o público julgar conveniente, eu possa representar o profeta Maomé”.
Foi com esse comentário infeliz que os problemas começaram. Os pequenos periódicos islamitas ficaram em polvorosa. Que Deus nos livre, escreveram eles, nenhum mortal comum podia pretender interpretar o Grande Profeta. O enxame de jornalistas furiosos que começou com acusações de “ele faltou com o respeito para com o Profeta”, logo passou a acusá-lo de “agir com a intenção de desacreditar o Profeta”. Quando até mesmo o exército se mostrou relutante em fazer calar os militantes islamitas, coube ao próprio Sunay debelar o incêndio. Na esperança de aplacar o medo deles, passou a levar consigo um exemplar do Corão e a declarar aos islamitas conservadores o quanto amava aquele livro que era, em muitos aspectos, muito moderno. Mas a única coisa que conseguiu com isso foi criar uma oportunidade para os jornalistas kemalistas que abominavam o seu orgulho por ter sido “o escolhido pelo povo” para o papel de Atatürk: nunca, escreveram eles, Atatürk tentou agradar aos fanáticos religiosos. Os jornais que apoiavam o golpe militar publicavam e tornavam a publicar a foto de Sunay numa pose espiritual com um exemplar do Corão, com a legenda “O homem certo para o papel de Atatürk”.
A imprensa islâmica dava o troco, divulgando fotografias de Sunay bebendo raki, com legendas do tipo “Ele bebe raki, como Atatürk!” e “O homem certo para fazer o papel do Grande Profeta?”. Esse tipo de guerra entre a imprensa islâmica e a imprensa secular se repetia aproximadamente a cada dois meses, mas agora o objeto da disputa era Sunay.
Durante uma semana, não se podia abrir o jornal sem ver Sunay. Uma foto o mostrava tomando cerveja sofregamente num comercial que ele fizera alguns anos antes, outras, ele levando uma surra num filme que fizera na juventude, levantando o punho desafiadoramente diante de uma bandeira com uma foice e um martelo ou vendo sua esposa beijar galãs em várias peças.
Havia páginas e páginas de insinuações: de que sua mulher era lésbica, de que ele continuava o mesmo comunista de sempre e de que ele e Funda Eser tinham feito dublagens para filmes pornográficos ilegais. E, dependendo do cachê, Atatürk não era o único papel que ele se dispunha a interpretar. Afinal de contas, fora o financiamento da Alemanha Oriental que lhe permitira encenar Brecht e, depois do golpe, Sunay insultara o Estado “dizendo a mulheres de uma associação suíça que a tortura era prática comum na Turquia”.
Finalmente, um oficial de alta patente convocou Sunay ao quartel-general para informá-lo, em termos sumários, de que todo o exército achava que ele devia desistir de sua candidatura. Aquele não era o mesmo oficial benévolo que convocara a Ancara vários jornalistas arrogantes de Istambul para recriminá-los por criticar a ingerência do exército na política, e logo depois ofereceu-lhes chocolate, mas um oficial menos jovial do mesmo departamento de relações públicas. Ele não amoleceu nem um pouco ao ver Sunay trêmulo de medo e arrependimento; em vez disso, ridicularizou-o por apresentar seus próprios pontos de vista políticos na qualidade de “homem escolhido para ser Atatürk” e mencionou a breve visita feita por Sunay alguns dias antes à cidade natal do herói, no curso da qual ele desempenhou o papel do “estadista do povo”. (Aclamado por multidões em carreata e por uma massa de trabalhadores da indústria do fumo e de desempregados, Sunay subiu na estátua de Atatürk na praça principal da cidade, fazendo os aplausos redobrarem ao apertar a mão de Atatürk; quando um repórter de uma revista popular lhe perguntou se pensava em deixar o palco para entrar na política, Sunay respondeu: “Se o povo o desejar”.) O gabinete do primeiro-ministro anunciou que o filme sobre Atatürk fora adiado indefinidamente.
Sunay era experiente o bastante para engolir essa derrota; sua perdição se deu com o que se seguiu. Durante sua campanha pelo papel de Atatürk, que durou um mês, ele aparecera tanto na televisão que as pessoas terminaram por associar sua voz à de Atatürk, e por isso ninguém mais lhe oferecia trabalhos de dublagem. Os anunciantes da televisão, outrora tão satisfeitos em tê-lo no papel de um pai sensato com um jeito especial para comprar apenas os produtos melhores c mais saudáveis, passaram a ignorá-lo; eles achavam que os espectadores achariam estranho ver um Atatürk fracassado empunhando uma brocha e segurando uma lata de tinta ou explicando por que estava tão satisfeito com seu banco. Mas pior mesmo era a gente que acredita em tudo o que lê nos jornais, porque agora acreditava piamente que Sunay era inimigo tanto de Atatürk como da religião: alguns acreditavam até que ele não se importava que sua mulher beijasse outros homens. Ou, quando não acreditavam, comentavam muito que não há fumaça sem fogo.
A principal conseqüência desses reveses foi a redução do número de pessoas que iam assistir aos espetáculos da dupla. Muita gente parava Sunay na rua para dizer: “Não esperava isso de você!”. Um jovem estudante secundarista da escola religiosa, convencido de que Sunay blasfemara contra o Profeta (e ansioso por aparecer nos jornais), invadiu o teatro de faca na mão e cuspiu no rosto de várias pessoas. Tudo isso aconteceu no espaço de cinco dias; então, Sunay e Funda desapareceram.
Os boatos se tornaram ainda mais extravagantes. Segundo uns, eles se tinham integrado ao Berliner Ensemble, fundado por Bertolt Brecht, a pretexto de ensinar teatro, embora na verdade estivessem aprendendo a atuar como terroristas. Segundo outros, o Ministério da Cultura da França lhes dera uma subvenção e refúgio no Hospital Psiquiátrico francês de Sisli. Na verdade, eles tinham fugido para a casa da mãe de Funda Eser, também artista, no litoral do Mar Negro.
Um ano depois, eles finalmente arrumaram emprego como diretores de eventos num hotel barato de Antália. Eles passavam as manhãs jogando voleibol na areia com merceeiros alemães e empregados de escritório holandeses; à tarde eles se caracterizavam como os personagens de teatro de sombras Karagöz e Hacivat e divertiam as crianças num alemão estropiado; à noite eles subiam ao palco travestidos de sultão e de odalisca que dançava a dança do ventre. Assim teve início a carreira de Funda Eser como dançarina da dança do ventre, que ela continuaria a desenvolver em suas temporadas pelas províncias nos dez anos seguintes. Durante três meses Sunay conseguiu atuar como palhaço, até que um barbeiro suíço se intrometeu, interrompendo o número com piadas sobre turcos com seus haréns e barretes, intromissão que continuou na manhã seguinte, na praia, onde ele começou a flertar com Funda. Sunay o espancou diante de uma multidão de turistas chocados e aterrorizados.
Ao que parece, depois disso os dois trabalharam como apresentadores, dançarinos e “atores” em casamentos e salões de baile em toda a região de Antália. Mesmo quando interpretava cantores baratos, ilusionistas comedores de fogo e comediantes de terceira classe, Sunay fazia breves discursos sobre Atatürk, sobre a República e a instituição do casamento. Funda Eser dançava a dança do ventre, e então o casal, agora assumindo um ar austero e disciplinado, encenava algo como o assassinato de Banquo, interrompendo o espetáculo ao cabo de oito ou dez minutos para receber a ovação da platéia. Naquelas noites é que se plantaram as sementes do que mais tarde seria o grupo de teatro itinerante que percorreria toda a Anatólia.
Enquanto mediam sua pressão, um dos guarda-costas de Sunay lhe trouxe um walkie-talkie; depois de dar algumas ordens usando o aparelho e de ler uma mensagem trazida por um ajudante, seu rosto se crispou de revolta. “Estão todos delatando uns aos outros”, disse ele. Ele acrescentou que à época em que fazia turnês pela Anatólia, chegara à conclusão de que todos os homens do país estavam paralisados pela depressão.
“Eles ficam dias inteiros nessas casas de chá; dia após dia eles vão para lá e ficam sem fazer nada”, disse ele. “Você vê centenas dessas criaturas sem emprego, infelizes, inertes em todas as cidades; no país como um todo deve haver centenas de milhares deles, se não milhões. Eles já não sabem como se manter limpos, já não têm vontade de abotoar seus casacos manchados, têm tão pouca energia que mal conseguem mover os braços e as pernas, sua capacidade de concentração anda tão baixa que não conseguem acompanhar uma história até o fim e chegaram até a esquecer como se ri de uma piada, esses meus pobres irmãos.” A grande maioria era infeliz demais para conseguir dormir; eles ficavam felizes em saber que os cigarros que fumavam os matavam aos poucos; eles começavam uma frase e deixavam-na morrer quando se lembravam da inutilidade de continuar; eles viam televisão, não porque gostassem dos programas, mas porque não suportavam ouvir as conversas depressivas dos companheiros, e a televisão ajudava a silenciá-las; o que queriam mesmo era morrer, mas não se julgavam dignos do suicídio. Por ocasião das eleições, votavam nos partidos mais ordinários e nos piores candidatos, os mais repugnantes, por um desejo de autopunição; pelo mesmo motivo, insistia Sunay, eles preferiam os generais golpistas que propunham francamente a necessidade de punição aos políticos que viviam falando em esperança.
Funda Eser, que voltara ao salão, acrescentou existirem também muitas mulheres infelizes que se desgastavam tendo um monte de filhos, tecendo tapetes, trabalhando como operárias nas fábricas de tabaco ou cuidando de doentes por salários de fome, enquanto seus maridos estavam sabe Deus onde. Eram essas mulheres que gritavam e reclamavam com os filhos o dia todo que tocavam a vida para diante; se elas desaparecessem, seria o fim da linha para os milhões de homens sem alegria, sem emprego nem objetivo que agora se vêem em toda a Anatólia. Eles parecem todos iguais, com suas camisas sujas e barbas por fazer; sem as mulheres para cuidar deles, terminariam como os mendigos que morrem de frio nas esquinas durante as ondas de frio, como os bêbados que saem trôpegos dos bares e caem em bueiros destampados, ou como o vovô gagá a quem se pede que vá comprar pão, e que vai, de pijama e sandálias, e se perde no caminho. Esses homens são legião, “como a gente viu nesta desgraçada cidade de Kars”; embora devessem a vida a suas mulheres, o amor que sentiam por elas lhes dava tanta vergonha que eles as torturavam.
“Dei dez anos à Anatólia porque eu queria ajudar meus infelizes amigos a sair do sofrimento e do desespero”, disse Sunay. Não havia autocomiseração em seu tom de voz. “Eles nos acusaram de comunistas, pervertidos, espiões a soldo do Ocidente e testemunhas-de-jeová; disseram que eu era cafetão e que minha mulher era prostituta; vezes sem conta nos jogaram na cadeia, nos espancaram e torturaram. Eles tentaram nos violentar, nos apedrejaram. Mas aprenderam a gostar de minhas peças e da alegria que minha companhia de teatro lhes proporcionava. Sendo assim, agora que tenho em mãos a maior oportunidade de minha vida, não posso fraquejar.”
Dois homens entraram no salão; como da outra vez, um deles passou um walkie-talkie a Sunay. O aparelho estava no viva-voz e Ka ouvia gente falando; cercaram um barraco do bairro da represa, alguém que estava dentro abriu fogo contra eles, então entraram e encontraram um dos guerrilheiros curdos e uma família. Na mesma freqüência, um soldado dava ordens; os subordinados dirigiam-se a ele como “meu comandante”. Pouco depois, o mesmo soldado dirigiu-se a Sunay, primeiro para lhe contar seus planos, depois para pedir sua opinião, agora parecendo mais um velho colega de escola que o líder de uma revolução.
“Aqui em Kars tem um sujeito baixinho que é oficial de brigada”, disse Sunay ao notar o interesse de Ka. “A época da Guerra Fria, o comando militar tinha suas melhores forças concentradas no interior, em Sankamis, em antecipação a uma incursão soviética. Quando muito, o pessoal daqui serviria para executar manobras diversionistas durante o primeiro ataque. Naquela época, eles estavam aqui principalmente para guardar a fronteira com a Armênia.”
Então Sunay lhe contou que na primeira noite, depois que ele e Ka chegaram no mesmo ônibus procedente de Erzurum, ele foi ao Café Campos Verdejantes e topou com o coronel Osman Nuri Çolak, que era seu amigo havia uns trinta anos. O homem era um velho colega da Academia Militar de Kuleli. Naquela época, ele era a única pessoa em Kuleli que sabia quem era Pirandello e era capaz de desfiar a lista das peças de Sartre.
“Ao contrário de mim, ele não podia se fazer expulsar por indisciplina nem podia abraçar a carreira militar de todo o coração. Foi por isso que nunca se tornou um general do estado-maior. (Havia quem dissesse à boca pequena que, de qualquer modo, ele era baixinho demais para ser general.) Ele é um homem raivoso, perturbado, mas acho que não por causa de problemas profissionais — é porque sua mulher o deixou e levou seus filhos embora. Está cansado de viver sozinho, entediado por não ter o que fazer aqui, cansado dos mexericos da província, embora, naturalmente, seja ele o responsável pela maioria dos mexericos. Os açougueiros sem alvará de funcionamento que autuamos depois de declarar a revolução, as histórias infames sobre os empréstimos do Banco Rural e os cursos sobre o Corão — ele foi o primeiro a me dar notícia dessas irregularidades; ele andava bebendo um pouco além da conta. Ficou radiante em me ver, mas queixou-se muito de solidão. E então, à guisa de desculpas mas também com uma ponta de vaidade, disse-me ser ele, naquela noite, o oficial de mais alta patente em Kars, por isso teria de acordar cedo na manhã seguinte. O comandante de sua brigada, cuja mulher sofria de reumatismo, fora com ela para Ancara em busca de tratamento médico, o subcomandante fora convocado para uma importante reunião em Sankamis, e o governador estava em Erzurum. Então era ele quem estava no comando! E como a neve ainda não parara, era claro pela experiência dos últimos anos que as estradas ficariam fechadas durante dias. Logo vi que aquela era a oportunidade pela qual eu esperara durante toda a minha vida, por isso pedi mais um raki duplo para o meu amigo.”
De acordo com o relatório apresentado pelo major-inspetor enviado de Ancara, o homem que Ka ouvira momentos antes no walkie-talkie era na verdade o coronel Osman Nuri Çolak (ou Braço Torto, como Sunay, seu velho amigo da escola militar, preferia chamá-lo); o major relatou também que a princípio o coronel entendeu aquela proposta de golpe militar como mera brincadeira, uma fantasia inspirada pelo álcool só para fazer graça, mas assim mesmo ele levou adiante o gracejo, acrescentando que a coisa podia ser feita com dois tanques. O fato de ter realmente executado o plano deveu-se mais ao seu desejo de não parecer falto de coragem diante da insistência de Sunay — e sua convicção de que, quando tudo terminasse, Ancara ficaria satisfeita com o resultado — que a qualquer rancor, ressentimento ou desejo de glória pessoal. (De acordo com o relatório do major, porém, ele infelizmente comprometera seus princípios ao entrar no bairro República e invadir a casa de um dentista partidário de Atatürk para resolver uma briga por causa de uma mulher.)
O coronel usara metade de um esquadrão para vasculhar casas e escolas, e quatro caminhões e dois tanques T-1 — estes tiveram de ser usados com muito cuidado por falta de peças sobressalentes —, mas foram os únicos equipamentos militares de que ele lançou mão. Se não levarmos em conta as “mortes inexplicadas” atribuídas a “equipes especiais” como Z Demirkol e seus amigos, a maior parte das ocorrências foi coisa típica de circunstâncias extraordinárias como aquelas. Em outras palavras, o grosso das ações foi executado por vários oficiais diligentes do MIT e da polícia — afinal de contas, eles tinham as fichas de toda a cidade e empregavam um décimo da população como informantes. Na verdade, esses mesmos oficiais ficaram tão entusiasmados com o boato sobre a manifestação que os secularistas estavam planejando fazer no Teatro Nacional que enviaram telegramas oficiais aos amigos que se encontravam fora da cidade, pedindo-lhes que voltassem para não perder a oportunidade de se divertirem.
Pelo que conseguia ouvir pelo walkie-talkie, Ka deduziu que a escaramuça no bairro da represa chegara a uma nova fase. Ao ouvir os três disparos, primeiro pela freqüência do rádio, depois vindos pelo ar, abafados pela planície coberta de neve, Ka chegou à conclusão de que o som dos disparos se propagava melhor quando amplificado por um walkie-talkie.
“Não seja cruel”, disse Sunay no walkie-talkie, “mas faça-os sentir a força da revolução e do Estado, e mostre-lhes quanto estamos decididos.” Ele ergueu a mão esquerda e, apoiando o queixo entre o polegar e o indicador, assumiu uma pose de meditação profunda, um gesto tão inconfundível que lembrou a Ka uma cena de meados da década de 70 em que Sunay fizera a mesma pose ao pronunciar aquelas mesmas palavras num drama histórico. Mas ele não estava tão elegante como àquela época — estava pálido, parecendo cansado e extenuado.
Sunay pegou um binóculo militar de 1940 que estava sobre sua mesa, o casaco de feltro grosso mas esfarrapado que ele usara durante os dez anos de andanças pela Anatólia e, depois de colocar o chapéu de pele, tomou Ka pela mão e o levou para fora. O frio pegou Ka de surpresa; ele o fez pensar em como eram frágeis e insignificantes os sonhos e desejos dos homens, como eram inconsistentes as intrigas e políticas do dia-a-dia comparadas aos ventos frios de Kars. Notou que a perna esquerda de Sunay estava muito mais comprometida do que ele imaginava. Ao chegarem à calçada coberta de neve, ficou admirado com o vazio das ruas brancas e brilhantes, e quando lhe ocorreu que, em toda a cidade, eles deviam ser os únicos a andar pelas ruas, sentiu um vivo contentamento. Embora a bela cidade coberta de neve com suas velhas mansões vazias só pudesse fazer um homem apaixonar-se pela vida e sentir o desejo de amar, Ka estava sentindo muito mais que isso: ele também se comprazia naquela proximidade com o verdadeiro poder.
“Esta é a parte mais bonita de Kars”, disse Sunay. “Esta é a terceira visita de minha companhia de teatro a Kars em dez anos, e é para cá que sempre venho quando anoitece, para sentar-me sob os choupos e os oleandros, ouvir o melancólico crocitar dos corvos e das pegas, contemplando o castelo, a ponte e o hamam de quatrocentos anos,”
Agora os dois estavam na ponte sobre o rio Kars congelado. Sunay lançou um olhar aos barracos espalhados na colina que se erguia à margem esquerda e apontou um deles. Imediatamente abaixo dessa casa, logo acima da estrada, Ka viu um tanque e, um pouco mais adiante, um caminhão do exército.
“Nós estamos vendo vocês”, disse Sunay no walkie-talkie, olhando pelo binóculo. Pouco tempo depois, eles ouviram dois disparos — primeiro pelo walkie-talkie, depois ressoando no vale pelo qual o rio corria. Seria aquilo uma espécie de saudação? Logo adiante, na entrada da ponte, dois guarda-costas os esperavam. Eles lançaram um olhar à favela miserável — uns cem anos depois que um canhão russo destruíra as casas de campo dos paxás otomanos, os pobres vieram para ali reclamar os seus direitos — e contemplaram o parque na margem oposta, que outrora fora o coração da burguesia de Kars, e a cidade que se erguia para além dele.
“Foi Hegel quem primeiro observou que a história e o teatro são feitos do mesmo material”, disse Sunay. “Lembre-se: assim como no teatro, a história escolhe aqueles que vão desempenhar os papéis principais. E assim como os atores testam sua coragem no palco, os poucos que a história escolhe fazem o mesmo no palco da história.”
Todo o vale ressoava com explosões. Disso Ka deduziu que a metralhadora no alto do tanque estava sendo usada. O canhão do tanque também fizera alguns disparos, mas errara o alvo. As últimas explosões foram causadas por granadas de mão. Um cachorro preto latia. A porta do barraco se abriu e saíram duas pessoas com as mãos erguidas. Ka avistava línguas de fogo lambendo as vidraças quebradas. Durante todo esse tempo, o cachorro latia alegremente, correndo de um lado para outro, a cauda abanando quando se aproximava das pessoas que se arrastavam no chão. Ka viu uma pessoa correndo ao longe e ouviu os soldados abrirem fogo. O homem que corria caiu no chão, e tudo ficou em silêncio. Muito depois alguém gritou, mas àquela altura a atenção de Sunay já estava em outra coisa.
Seguidos pelos guarda-costas, eles ignoraram a cena que se desenrolava lá fora e entraram novamente na oficina de confecções. No momento em que Ka olhou mais uma vez o delicado e antigo papel de parede da velha mansão, sentiu que não podia deter o novo poema que agora esperava por ele e por isso refugiou-se num canto.
O poema, ao qual ele daria o título de “Suicídio e Poder”, contém ousadas referências a esse passeio com Sunay — descreve a excitação do poder, o sabor da amizade que ele travara com aquele homem e seu sentimento de culpa em relação às jovens suicidas. Mais tarde chegaria à conclusão de que naquele poema “vibrante e refletido”, os acontecimentos que ele testemunhara em Kars tinham encontrado a sua mais poderosa e autêntica expressão.
No QG, em companhia de Sunay
Quando Sunay viu que Ka concluíra seu poema, levantou-se de sua mesa de trabalho atravancada e cruzou a sala manquejando para cumprimentá-lo. “O poema que você leu no teatro ontem era muito moderno também”, disse ele. “Pena que o público de nosso país não seja refinado o bastante para entender a arte moderna. É por isso que meus espetáculos sempre incluem dança do ventre e as confissões do goleiro Vural. Eu dou ao povo o que ele quer, em seguida lhe dou uma dose pura de drama da vida real. Prefiro misturar a arte de alto e de baixo nível para o povo a ficar em Istambul fazendo comédias de bulevar patrocinadas por bancos. Agora, cá entre nós, me diga por que você não identificou nenhum dos islamitas suspeitos que lhe mostraram no quartel central da polícia e na escola de veterinária?”
“Porque eu não reconheci nenhum deles.”
“Quando os soldados viram quanto você gostava do jovem que o levou até Azul, quiseram prendê-lo também. Eles já estavam desconfiados — você veio lá da Alemanha, a esta altura da revolução, e testemunhou o assassinato do diretor da escola. Queriam submetê-lo a um interrogatório — torturá-lo um pouco — só para ver no que ia dar. Eu é que os impedi. Respondo por você.”
“Muito obrigado.”
“Uma coisa que ninguém consegue entender é por que você beijou o rapaz que o levou até Azul.”
“Eu não sei por quê”, disse Ka. “Ele era muito honesto e sincero. Eu achava que ele ia viver cem anos.”
“Você quer saber que tipo de jovem era esse Necip cuja morte você lamenta tanto? Deixe-me ler uma coisa para você.”
Ele pegou um papel em que se lia o seguinte:
certo dia de março passado, o rapaz fugiu da escola e se juntou a um grupo que quebrou as vidraças da Cervejaria da Alegria para vender álcool durante o Ramadã. Por algum tempo, andou fazendo trabalhos avulsos na sede do Partido da Prosperidade, mas parou, fosse porque suas opiniões radicais causavam medo, fosse porque teve um colapso nervoso que assustou todo mundo (havia mais de um informante na sede do partido). Ele admirava Azul e andou lhe fazendo propostas durante os dezoito meses de permanência deste na cidade. Escreveu uma história que a equipe do MIT considerou incompreensível e fê-la publicar num jornal religioso com tiragem de setenta e cinco exemplares. Em algumas ocasiões, um farmacêutico aposentado que escrevia artigos para o mesmo jornal beijou-o de forma muito estranha, por isso Necip e seu amigo Fazil planejaram matar o homem (isso segundo a ficha deles — o original da carta justificando seu ato, que eles planejavam deixar na cena do crime, fora roubado dos arquivos). Por várias vezes o referido Necip foi visto andando na avenida Atatürk, rindo com seus amigos, e numa dessas ocasiões, no mês de outubro, ele fez um gesto grosseiro para um carro da polícia não identificado que acabara de passar por eles.
“O MIT está fazendo um trabalho sério aqui”, disse Ka.
“A casa de sua excelência o sheik Saadettin está sob escuta, por isso eles sabem que a primeira coisa que você fez ao encontrá-lo foi beijar-lhe a mão. Eles sabem que você confessou a ele, em lágrimas, que acredita em Deus — e eles não conseguem entender por quê. Há muitos poetas de esquerda que entraram em pânico e mudaram de lado, julgando ser melhor encontrar a religião antes que essa gente tome o poder.”
Ka sentiu-se corar. Quando ele viu que Sunay entendeu aquilo como um sinal de fraqueza, a vergonha aumentou ainda mais.
“Eu sei que as coisas que você viu esta manhã o perturbaram profundamente. A polícia trata nossos jovens de forma brutal; temos em nosso meio muitos animais que espancam rapazes só para se divertir. Mas por enquanto vamos deixar isso de lado.”
Ele ofereceu um cigarro a Ka.
“Como você, passei anos de minha juventude vagando pelas ruas de Nisantas e de Beyoglu. Eu era louco por filmes ocidentais, via tantos quantos podia, lia tudo o que Sartre e Zola escreveram e acreditava que nosso futuro estava na Europa. Ver todo esse mundo desmoronar, ver nossas irmãs obrigadas a cobrir a cabeça, ver poemas proibidos por serem anti-religiosos, como já aconteceu no Irã — não acho que você está preparado para assistir a esse espetáculo de braços cruzados. Porque você pertence ao mesmo mundo que eu. Não há mais ninguém em Kars que tenha lido a poesia de T. S. Eliot.”
“Muhtar, o candidato do Partido da Prosperidade, leu Eliot”, disse Ka. “Ele se interessa muito por poesia.”
“Nós nem precisamos mais mantê-lo na prisão”, disse Sunay com um sorriso. “Ele assinou um documento desistindo de sua candidatura. Ele o entregou ao primeiro soldado que bateu à sua porta.”
Eles ouviram uma explosão. As vidraças vibraram nos caixilhos. Voltando-se em direção ao barulho, os dois olharam pelas janelas que davam para o rio Kars, mas só conseguiram ver choupos cobertos de neve e os beirais congelados do edifício fronteiro, indistinto e abandonado. Afora o guarda postado à porta, a rua estava deserta. Mesmo no meio da manhã, Kars estava mergulhada em tristeza.
“Um bom ator”, disse Sunay num tom ligeiramente teatral, “é um homem que representa o substrato, as forças inexploradas e inexplicadas que ficaram à deriva ao longo dos séculos; toma as lições que recolhe aqui e ali e as esconde bem fundo, dentro de si; seu autocontrole é impressionante; nunca desnuda o próprio coração; ninguém sabe quão poderoso ele é até subir ao palco. Ao longo de toda a sua vida, percorre estradas desconhecidas para representar nos teatros mais remotos, nas cidades mais esquecidas, e aonde quer que vá, procura uma voz que irá lhe conceder a verdadeira liberdade. Se ele tiver sorte e encontrar essa voz, deve abraçá-la sem temor e seguir o seu caminho até o fim.”
“Dentro de um ou dois dias, quando a neve se fundir e as estradas reabrirem, Ancara vai jogar duro com os responsáveis por essa carnificina”, disse Ka. “Não porque abominem o derramamento de sangue; eles vão se enfurecer porque desta vez os responsáveis não foram eles. O povo de Kars vai odiar você e essa estranha encenação que você armou. O que fará, então?”
“Você viu o médico. Meu coração está fraco e doente, e cheguei ao fim de meus dias. Eles podem fazer o que quiserem comigo. Eu não me importo”, disse Sunay. “Escute uma coisa: andam dizendo que se pegarmos um peixe graúdo — digamos, o homem que atirou no diretor do Instituto de Educação —, se o enforcarmos imediatamente e transmitirmos o enforcamento ao vivo pela televisão, todos na cidade ficarão quietos feito velas.”
“Eles já estão quietos feito velas”, disse Ka.
“Ouvimos dizer que eles vão usar homens-bomba.”
“Se vocês enforcarem alguém, a única coisa que conseguirão é aumentar o terror.”
“Você está com medo da vergonha que vai sentir quando os europeus virem o que fizemos aqui? Você sabe quantos homens eles enforcaram para fundar esse Estado moderno que você tanto admira? Atatürk não tinha tempo para fantasistas estúpidos; desde o primeiro dia, ele pendurou gente como você em cordas.”
“E ponha mais isso em sua cabeça”, continuou Sunay. “Esses meninos da escola secundária religiosa que você viu hoje nas celas gravaram seu rosto na memória para sempre. Eles vão jogar bombas em qualquer pessoa e em qualquer coisa; pouco lhes importa, contanto que se façam ouvir. E além do mais, como você leu um poema durante o espetáculo, eles vão achar que você participou da conspiração. Ninguém que seja minimamente ocidentalizado pode respirar livremente neste país a menos que tenha um exército secular para o proteger, e ninguém necessita mais de proteção que intelectuais que se julgam melhores que os outros e desprezam o povo. Se não fosse o exército, os fanáticos estariam voltando suas facas enferrujadas contra todos eles, contra suas mulheres maquiadas, e fazendo picadinho deles. Mas o que fazem esses arrogantes em troca? Eles se apegam aos seus modos ocidentais e torcem o narizinho pretensioso aos soldados que lhes garantem a liberdade. Quando a gente seguir o mesmo caminho que o Irã, você acha mesmo que alguém vai se lembrar que um liberal de coração de mingau como você derramou algumas lágrimas pelos meninos da escola secundária religiosa? Quando esse dia chegar, eles matarão você só por ser um pouco ocidentalizado, por estar assustado e ter se esquecido das palavras árabes de uma simples oração, e até por usar uma gravata ou casaco como os seus. A propósito, onde você comprou esse belo casaco? Posso usá-lo na peça?”
“Claro.”
“Só para evitar que esse belo casaco fique todo esburacado, vou lhe dar um guarda-costas. Daqui a pouco vou fazer um pronunciamento na televisão. O toque de recolher acaba ao meio-dia, portanto, não saia para as ruas.”
“Não acredito que aqui em Kars haja um islamita tão perigoso que eu não possa sair às ruas.”
“O que está feito, está feito”, disse Sunay. “E, principalmente, eles sabem que a única maneira que têm de governar este país é nos aterrorizando. O tempo demonstra que nossos temores não eram infundados. Se não deixarmos o exército e o Estado lidar com esses fanáticos perigosos, terminaremos por voltar à Idade Média, caindo na anarquia, trilhando o malfadado caminho já trilhado por tantas nações tribais da Ásia e do Oriente Médio.”
A postura perfeita, a voz imperiosa, os freqüentes e demorados olhares dirigidos a um ponto imaginário bem acima da cabeça de seus ouvintes... Ka lembrava-se de ter visto Sunay fazendo as mesmas poses em cena vinte anos antes. Mas aquilo não o fazia rir. Ele sentia como se fosse também um ator na mesma peça antiga e ultrapassada.
“O que você quer de mim?”, perguntou Ka. “Abra logo o jogo.”
“Não fosse por mim, você ia passar maus bocados nesta cidade. Mesmo bajulando os islamitas, seu casaco se encheria de buracos. Sou o único amigo que você tem aqui; sou o único em Kars que pode proteger você. Sem minha amizade, você logo estaria tremendo numa das celas no porão do quartel, esperando a hora de ser torturado. Quanto aos seus amigos do Republicano, eles contam mesmo é com o exército, não com você. Veja a posição em que você se encontra.”
“Eu vejo.”
“Então diga para mim o que escondeu da polícia hoje de manhã. Conte-me a culpa que você guarda no fundo do coração.”
“Eu acho que devo estar começando a acreditar em Deus aqui”, disse Ka com um sorriso. “E algo que devo estar escondendo até de mim mesmo.”
“Você está enganando a si mesmo! Mesmo que você acreditasse em Deus, não haveria o menor sentido nessa fé solitária. Você teria de acreditar nele da mesma forma que os pobres acreditam; você teria de se tornar um deles. E só comendo o que eles comem, vivendo onde eles vivem, rindo das mesmas piadas e enfurecendo-se quando eles se enfurecem você pode acreditar no Deus em que eles acreditam. Se você leva uma vida completamente diferente, não pode adorar o mesmo Deus que eles adoram. Deus é justo o bastante para saber que não é uma questão de razão ou de lógica, mas de como você vive sua vida. Mas não é isso que eu estava lhe perguntando. Daqui a meia hora vou à televisão fazer um pronunciamento ao povo de Kars. Quero dar a eles notícias boas. Vou dizer que pegamos o criminoso que atirou no diretor do Instituto de Educação. É muito provável que o mesmo homem tenha atirado no prefeito. Posso dizer que você identificou essa pessoa para nós hoje de manhã? Então você poderá ir à televisão e contar toda a história.”
“Mas eu não identifiquei ninguém.”
Com uma raiva que nada devia à teatralidade, Sunay pegou Ka pelo braço, tirou-o da sala e levou-o para um amplo corredor; introduziu-o, então, numa sala branca iluminada que dava para o pátio interno do edifício. Bastou-lhe um simples olhar para sentir repulsa pela sala: não pela sujeira, mas pela atmosfera sórdida. Havia meias penduradas numa corda estendida entre o ferrolho da janela e um prego na parede. Ka viu a um canto uma valise aberta contendo um secador de cabelo, um par de luvas, camisas e um sutiã enorme que devia servir para Funda Eser. A própria Funda Eser estava sentada numa cadeira ao lado da valise; a mesa à sua frente estava atulhada de papéis e cosméticos que ela afastara para poder colocar uma tigela. Ka se perguntou se aquilo era compota de fruta ou sopa. Ela lia e comia ao mesmo tempo.
“Nós estamos aqui em nome da arte moderna... Nós somos carne e unha”, disse Sunay, apertando o braço de Ka ainda com mais força. Ka parecia não saber ao certo o que ele estava tentando dizer, e Sunay parecia não saber ao certo se aquilo era vida ou uma peça de teatro.
“O goleiro Vural desapareceu”, disse Funda Eser. “Ele saiu esta manhã e não voltou.”
“Ele desmaiou em algum lugar”, disse Sunay.
“Mas onde?”, tornou Funda. “Está tudo fechado. Ninguém pode sair à rua. Os soldados começaram uma busca. Temo que tenha sido seqüestrado.”
“Espero em Deus que ele tenha sido seqüestrado”, disse Sunay. “Se eles o esfolassem vivo e cortassem sua língua, seria melhor para nós todos.”
Apesar de todos aqueles modos e linguagem rudes, havia algo tão divertido naqueles gracejos joviais, na profundidade de seu entendimento mútuo, que Ka não pôde deixar de sentir um certo respeito e mesmo uma ponta de inveja. Quando seu olhar cruzou com o de Funda Eser, instintivamente ele fez uma mesura tão exagerada que quase tocou no chão.
“A senhora foi uma verdadeira sensação na noite passada”, disse ele, num tom afetado que não obstante tinha laivos de sincera admiração.
“Você não sabe o que está dizendo”, disse ela com fingido embaraço. “Em nossa companhia, o que faz a obra-prima não são os atores, mas o público.”
Ela se voltou para o marido. Os dois começaram a conversar, pulando de um assunto a outro como um rei e uma rainha fariam, acossados por muitas questões de Estado importantes. Ka ouviu com uma mistura de simpatia e admiração marido e mulher se impacientando com a discussão de qual seria o traje adequado para sua iminente aparição na televisão (Trajes civis? Uniforme militar? Smoking?); discutiram em seguida o script do pronunciamento (escrito em parte por Funda Eser) e a declaração do dono do hotel onde eles se hospedaram por ocasião de suas visitas anteriores (preocupado com as constantes batidas que os soldados davam no hotel e ansioso por conquistar sua simpatia, ele denunciou formalmente dois jovens hóspedes que pareciam suspeitos); finalmente, eles sacaram um maço de cigarros em que alguém rabiscara a programação da tarde para a televisão local (quatro ou cinco reprises do evento no Teatro Nacional, três do pronunciamento de Sunay, canções folclóricas sobre feitos heróicos na região fronteiriça, um especial sobre as belezas de Kars e um filme turco chamado Gulizar). Eles a leram e aprovaram.
“E agora”, disse Sunay, “o que vamos fazer com esse nosso poeta cujo intelecto pertence à Europa, cujo coração pertence aos militantes da escola secundária religiosa e cuja cabeça está na maior confusão?”
“Dá para perceber por sua fisionomia”, disse Funda Eser com um sorriso manso, “que ele é um bom menino. Ele vai nos ajudar.”
“Mas ele andou derramando lágrimas pelos islamitas.”
“É porque ele está apaixonado”, disse Funda Eser. “Nosso poeta se deixou levar pelas emoções nos dois últimos dias.”
“Ah, nosso poeta está apaixonado?”, disse Sunay Zaim, exagerando no gestual. “Só os poetas mais puros permitem que o amor tome conta de seus corações em tempos de revolução.”
“Ele não é um poeta puro, mas um amante puro”, disse Funda Eser.
Enquanto marido e mulher continuavam a encenação com sua técnica impecável, Ka se sentia ao mesmo tempo furioso e estupefato. Depois disso, eles voltaram para a oficina e tomaram chá juntos na grande mesa.
“Estou lhe dizendo isso para que você veja que nos ajudar é a coisa mais sensata a fazer”, disse Sunay. “Kadife é amante de Azul. Não é a política que traz Azul a Kars, mas o amor. Eles não o prenderam porque queriam saber quais jovens islamitas colaboravam com ele. Agora estão arrependidos, porque na noite passada, pouco antes da batida no alojamento da escola secundária religiosa, ele desapareceu feito fumaça. Todos os jovens islamitas de Kars estão sob sua influência. Ele está em alguma parte da cidade, e com certeza vai querer se encontrar com você novamente. Você poderia ter dificuldade em nos alertar: minha sugestão é colocar um ou dois microfones em você e talvez um transmissor em seu casaco. Você teria a mesma proteção que o diretor do Instituto de Educação, e não teria que se preocupar com sua segurança. Quando terminar o encontro e você for embora, poderemos ir prendê-lo.” Pela expressão do rosto de Ka, Sunay teve certeza de que o outro não se entusiasmara com a proposta. “Não vou insistir”, disse ele. “Você não parece, mas seu comportamento hoje mostra que é uma pessoa prudente. Naturalmente, você é um homem que sabe cuidar de si mesmo, mas estou lhe dizendo que precisa ter muito cuidado com Kadife. Desconfiamos que ela conta a Azul tudo o que ouve, inclusive as conversas entre o pai e os convidados à mesa do jantar. Ela o faz em parte pela emoção de trair o pai, mas também pelos laços de amor que a prendem a Azul. Como você explica a força dessa paixão?”
“Você quer dizer por Kadife?”, perguntou Ka.
“Não”, disse Sunay, impaciente. “Quero dizer essa paixão por Azul. Por que todo mundo morre de amores por ele? Por que seu nome se tornou um mito em toda a Anatólia? Você conversou com ele. Pode me explicar esse mistério?”
Funda Eser pegou um pente de plástico e estava passando nos cabelos descorados do marido com tanto cuidado que Ka, distraído, ficou em silêncio.
“Gostaria que você ouvisse o pronunciamento que vou fazer na televisão”, disse Sunay. “Venha comigo no caminhão do exército, que no caminho eu deixo você no hotel.”
O toque de recolher devia terminar dentro de quarenta e cinco minutos. Ka recusou a oferta delicadamente e pediu permissão para voltar para o hotel a pé. A permissão lhe foi dada.
Foi um alívio andar pelas calçadas amplas e vazias da avenida Atatürk — sentir o silêncio das ruas transversais cheias de neve, contemplar mais uma vez as belas casas russas e oleandros cobertos de neve —, mas ele logo percebeu que estava sendo seguido. Passou para o outro lado e pegou a avenida HalitPasa, em seguida dobrou à esquerda na avenida Pequeno Kâzimbey. O detetive que o seguia soprava e bufava avançando na neve, procurando alcançá-lo. Atrás dele vinha correndo o mesmo cachorro preto amistoso com a mancha branca na testa que Ka vira na estação na noite anterior. Ka se escondeu no vão da porta de uma das oficinas do bairro YusufPasa, contando poder despistá-lo, mas encontrou-se imediatamente cara a cara com seu perseguidor.
“Você está me seguindo para me espionar ou para me proteger?”
“Só Deus sabe, senhor. Escolha a alternativa que lhe parecer melhor, que por mim está tudo bem.”
Mas o homem parecia tão cansado e abatido que Ka duvidou que pudesse proteger até a si próprio. Parecia ter no mínimo sessenta e cinco anos, tinha o rosto vincado e cheio de rugas, voz fina e olhos baços — fitava Ka timidamente, com o olhar medroso da maioria das pessoas diante da polícia. Como todos os agentes à paisana da Turquia, usava sapatos da fábrica estatal Sümerbank, e quando Ka notou que as solas estavam começando a descolar, teve pena dele.
“Você é policial, não é? Se estiver com a carteira de identidade, vamos usá-la para abrir o Café Campos Verdejantes e ficar lá por um tempinho.”
Eles não precisaram insistir nas batidas para que a porta se abrisse. Ka e o detetive, cujo nome era Saffet, ficaram tomando raki e dividindo tortas de queijo com o cachorro preto enquanto ouviam o pronunciamento de Sunay. Em nada se diferenciava dos pronunciamentos dos líderes dos golpes militares de quando Ka era criança. Na verdade, quando Sunay explicava que os militantes curdos e islamitas, “a soldo dos inimigos externos”, e políticos degenerados dispostos a tudo para ganhar votos levaram Kars à beira da destruição, Ka já estava um pouco entediado.
Quando Ka estava bebendo seu segundo raki, o detetive, apontando respeitosamente para Sunay, fê-lo concentrar-se novamente na televisão. A fisionomia do detetive mudara de alguma maneira. Já não era a de um detetive de terceira categoria: tinha a aparência de um cidadão resignado, cansado de esperar que seu pedido fosse atendido. “Você conhece esse homem. E o que é melhor: ele o respeita”, disse o detetive em tom de queixa. “Espero que você consiga me ajudar em meu humilde pedido. Se você o apresentasse a ele, poderia me livrar desta minha vida insuportável. Por favor, peça-lhe que me tire da investigação do veneno e me transfira para outra área.”
Ante o olhar interrogativo de Ka, ele se levantou, passou o ferrolho na porta do café, sentou-se novamente para contar a história da “investigação do veneno”. O infeliz detetive tinha dificuldade em se expressar, o raki subira à cabeça já perturbada de Ka, por isso lhe foi difícil acompanhar aquela história confusa.
A coisa começou no Bufê Moderno, um snack-bar no centro da cidade, não muito longe do centro de operações do exército e do serviço de inteligência. Muitos soldados iam lá comprar sanduíches e cigarros. A certa altura, porém, começou-se a desconfiar de que o sharbat de cravo-da-índia de lá continha veneno. A primeira vítima foi um oficial da infantaria de Istambul. Dois anos antes, na manhã de uma manobra muito temida e excepcionalmente penosa, esse oficial teve uma febre que fazia seu corpo tremer tanto que ele não conseguia nem ficar de pé. Levado à enfermaria, logo se constatou que fora envenenado; então, o oficial, achando que ia morrer, atribuiu o envenenamento ao sharbat picante que tomara no snack-bar na esquina da avenida Pequeno Kâzimbey com Kâzim Karabekir. Ele só tomara o sharbat, acrescentou furioso, para experimentar uma coisa nova.
A princípio pareceu tratar-se de um simples caso de envenenamento acidental por alimento, e o caso logo foi esquecido, mas a história voltou à baila novamente quando, não muito depois, dois outros oficiais com os mesmos sintomas foram levados à mesma enfermaria. Como o primeiro, eles tremiam tanto que mal conseguiam falar e não conseguiam ficar de pé por muito tempo. Ambos puseram a culpa no sharbat de cravo-da-índia servido quente que tinham tomado por mera curiosidade. Descobriu-se então que uma velha senhora curda estava preparando essa bebida em sua casa no bairro de Atatürk: todos gostavam muito, por isso seus netos resolveram vendê-lo em seu snack-bar. Essa informação foi dada num interrogatório feito no centro de operações do exército logo depois das denúncias. Mas quando amostras do sharbat da velha senhora, colhidas secretamente, foram submetidas a exame na escola de veterinária, não se encontrou nenhum vestígio de veneno.
A investigação foi encerrada quando o general comentou o caso com a esposa. Então ele descobriu, sobressaltado e consternado, que ela vinha bebendo várias xícaras de sharbat todos os dias, achando que seria bom para o reumatismo. Aliás, muitas esposas de oficiais e muitos oficiais andaram tomando grande quantidade da bebida — todos alegando motivos de saúde, quando na verdade o faziam por mero tédio. Investigações posteriores revelaram que a moda não se limitava aos oficiais e suas esposas — soldados de folga também freqüentavam o bar, assim como as famílias que vinham visitá-los, em parte porque ele ficava numa área bem central, mas principalmente porque o sharbat era a única novidade em Kars.
Quando o general acrescentou esses novos dados à investigação, estava tão preocupado com os possíveis desdobramentos do caso que delegou o caso ao MIT e à inspetoria do exército. Quanto mais o exército ganhava terreno em seu selvagem conflito com os guerrilheiros curdos do PKK, mais baixo ficava o moral dos jovens curdos fracos, desesperados e desempregados que se tinham alinhado com estes; essa situação levara alguns jovens a alimentar estranhos e terríveis sonhos de vingança, como foi relatado por muitos detetives que passavam os dias cochilando nas casas de chá da cidade. Eles escutaram jovens tramando a explosão de bombas e seqüestros, possíveis ataques contra a estátua de Atatürk, um plano para envenenar o reservatório de água da cidade e outro para explodir pontes. Foi por isso que os oficiais levaram tão a sério o medo provocado pelo sharbat de cravo-da-índia. Mas como o assunto era extremamente delicado, eles não conseguiram interrogar ou torturar os proprietários do snack-bar. Em vez disso, destacaram um detetive ligado ao gabinete do prefeito para atuar no Bufê Moderno, outro para a cozinha da velha senhora, que àquela altura estava felicíssima com o sucesso de seu negócio.
O detetive destacado para atuar no snack-bar submeteu a bebida da velha senhora a mais um exame, mas inspecionou também os copos, o tecido usado como isolante nos cabos tortos das conchas de estanho, a caixinha de moedas, os buracos abertos pela ferrugem e as mãos dos empregados, procurando vestígios de algum pó estranho. Uma semana depois, ele também apresentava todos os sintomas de envenenamento; tremia e tossia tanto que teve de largar o trabalho.
O detetive destacado para a cozinha da velha senhora, porém, foi muito mais sagaz. Toda noite ele se sentava e escrevia um relatório completo, listando não apenas as pessoas que tinham estado na cozinha naquele dia, mas também cada ingrediente comprado pela velha senhora (cenouras, maçãs, ameixas, amoras secas, flores de romãzeira, silvão e marshmallows). Seus relatórios logo revelaram a receita dessa bebida tão deliciosa e tão apreciada. O detetive, que andava bebendo cinco ou seis garrafas por dia, não sentia nenhum efeito negativo: na verdade, segundo ele a bebida era um verdadeiro tônico, um genuíno sharbat montanhês como o que é mencionado no famoso épico curdo Mem u Zin. Os peritos enviados de Ancara perderam a confiança nesse detetive, porque ele era curdo. Eles puderam deduzir de seus relatórios que o sharbat era venenoso para os turcos mas não para os curdos; não obstante, considerando que a posição oficial do Estado de que curdos e turcos se confundem, eles guardaram suas conclusões para si mesmos.
Àquela altura, um grupo de médicos enviado de Istambul criou uma clínica especial no Hospital de Previdência Social. Logo, porém, esta ficou superlotada de cidadãos de Kars perfeitamente saudáveis que buscavam apenas tratamento gratuito, para não falar dos chamados inválidos que se queixavam de males comuns como queda de cabelos, psoríase, hérnia e gagueira. Essa avalanche de gente comprometeu em muito a seriedade da investigação.
Assim, coube mais uma vez ao serviço de inteligência de Kars desvendar o mistério do sharbat, que minava aos poucos a força da cidade e já pusera em risco a vida de centenas de soldados; cabia ao MIT capturar os responsáveis, antes que ele abatesse o ânimo da cidade. Saffet era apenas um dos muitos zelosos agentes que trabalhavam no caso. Muitos receberam ordens de simplesmente seguir as pessoas que bebiam o sharbat preparado pela velha senhora com tanta alegria. Já não se tratava mais de investigar o caminho que o veneno fizera para espalhar-se pela cidade, mas de uma vã tentativa de distinguir as pessoas envenenadas com sharbat das não envenenadas. Para cumprir essa tarefa, os detetives estavam seguindo todos os soldados e policiais à paisana consumidores da bebida da velha senhora — às vezes até às suas casas.
Quando Ka ouviu dizer que essa missão árdua e cansativa tinha arruinado não apenas os sapatos do detetive mas também o seu estado de ânimo, ele prometeu tocar no assunto com Sunay, que ainda não chegara ao fim de seu pronunciamento na televisão.
O detetive ficou tão animado com a promessa que abraçou Ka, beijou-o em ambas as faces e abriu ele próprio a porta da casa de chá.
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