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NICHOLAS NICKLEBY / Charles Dickens
NICHOLAS NICKLEBY / Charles Dickens

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NICHOLAS NICKLEBY

Parte I

 

Num sítio retirado do condado de Devonshire, viveu em tempos um respeitável cavalheiro chamado Mr. Godfrey Nickleby, a quem ‑ já um pouco tarde ‑ se meteu na cabeça a idéia do casamento e não sendo muito novo, nem rico bastante para aspirar à mão duma senhora com fortuna, teve de se contentar com uma dama que se encontrava nas mesmas condições. Assim, não podendo jogar às cartas a dinheiro, não tinham outro recurso se não uma partidinha para distracção. Terminada a lua de mel, Mr. Goúfrey Nickleby e a sua parceira olharam pensativamente para o mundo, esperando a melhoria dos seus meios com uma certa expectativa. Nessa época, o rendimento de Mr. Nickleby flutuava entre sessenta e oitenta libras por ano.

Há muita gente no mundo e mesmo em Londres ‑ onde vivia Mr. Nickleby nesses tempos ‑ mas é extraordinário como é difícil descobrir‑se a cara dum amigo entre essa multidão. Foi o que aconteceu a Mr. Nickleby: olhava, olhava até lhe doerem tanto os olhos como o coração, sem aparecer um amigo e, quando cansado de procurar, voltou os olhos para casa, pouco viu que o confortasse da fugitiva visão:

Por fim, após cinco anos, quando Mrs. Nickleby presenteou o marido com um par de filhos e o embaraçado consorte se via na necessidade de tentar uma pequena especulação comercial para prover as necessidades dos seus, caiu‑lhe em casa uma carta tarjada de luto, informando‑o que o tio, Mr. Ralph Nickleby morrera, deixando‑lhe os seus bens no valor de cinco mil libras esterlinas. Este tio fizera primeiro testamento a favor da Royal Humane Society, mas exasperado por esta instituição ter tido a infelicidade de salvar a vida dum parente pobre, por quem pagava três xelins e seis dinheiros de internamento semanal, revogou as suas disposições num codicílio, deixando tudo a Mr. Godfrey Nickleby com uma menção especial da sua indignação, não só contra a sociedade por ter salvo a vida do parente pobre, mas também contra o parente pobre, por ter consentido que lhe salvassem a vida.

Com uma parte destes bens, Mr. Godfrey Nickleby comprou uma pequena herdade perto de Dawlish, no Devonshíre, para onde se retirou com a mulher e os filhos, vivendo do melhor juro que o restante dinheiro lhe proporcionava e da pequena produção da terra. E tão bem os dois prosperaram que, pela sua morte, ocorrida uns quinze anos após este período e cinco depois do falecimento da mulher deixou ao filho mais velho, Ralph, três mil libras em dinheiro, e ao mais novo, Nicholas, mil libras e a herdade, se realmente herdade se podia chamar a um terreno com o tamanho de Russell Square, medido desde as portas das casas.

Estes dois irmãos cresceram juntos numa escola em Exeter e acostumados a ir a casa uma vez por semana, ouviam muita vez dos lábios da mãe, longos relatos dos sofrimentos do pai nos dias de pobreza, e a importância do falecido tio para a contribuição da época de bem‑estar, relatos que produziam uma impressão muito diferente nos dois irmãos: o mais novo, que era tímido e tinha disposição para o isolamento, tirava daí conclusões para evitar o grande mundo e consagrar‑se à calma rotina da vida campestre; Ralph, o mais velho, deduziu da repetida história estas duas grandes moralidades: que a riqueza é a única fonte verdadeira da felicidade e do poder e, portanto, era justo e legal adquiri‑la por toda a forma e feitio, excepto por meios criminosos. E ‑ pensava para consigo que se nada viera de bom do dinheiro do tio, durante a sua vida‑ o caso agora era diferente e chegara à conclusão de que nada havia como o dinheiro.

Não se limitando à teoria, nem permitindo que as suas faculdades criassem ferrugem, ainda bastante jovem, este prometedor rapaz começou a especular na escola, numa escala limitada obtendo um bom juro com um pequeno capital de penas de pedra e berlindes, estendendo gradualmente as suas operações até conseguir emprestar moedas de cobre aos seus companheiros, em que especulou com considerável sucesso. Nem sequer perturbava os clientes com números abstractos ou referências a cálculos rápidos; a sua simples regra de juro encontrava‑se compreendida numa frase dourada: dois dinheiros por cada meio dinheiro, o que simplificava imensamente as contas e que, como preceito familiar, era mais facilmente retido na memória do que qualquer conhecida regra de aritmética, embora não seja muito de recomendar aos capitalistas, quer grandes quer pequenos, que a estão a adoptar, hoje em dia, com grande sucesso.

Desta maneira o jovem Ralph Nickleby não tinha o trabalho de calcular os dias de empréstimo do dinheiro, pois para ele só havia um dia de reembolso, o sábado, quer o empréstimo tivesse sido feito à sexta‑ feira, ou à segunda, pois, dizia ele, quanto ao primeiro caso, a pessoa devia estar bastante necessitada, porque de outro modo não teria pedido emprestado, sabendo que teria de pagar capital e juros no dia seguinte. Por quanto acabamos de dizer já se pode fazer uma ideia do carácter de Master Ralph Nickleby.

Por morte do pai, Ralph Niekleby, que estava empregado numa casa comercial em Londres, lançou‑se apaixonadamente à velha ambição de arranjar dinheiro e de tal maneira se absorveu nela que, por muitos anos, se esqueceu do irmão, e se às vezes se lembrava dele como um antigo companheiro de brincadeira, por outro lado pensava que, se as suas relações fossem mais estreitas talvez tivesse de lhe emprestar dinheiro e então, encolhia os ombros. Era melhor deixar estar as coisas como estavam.

Quanto a Nicholas Nickleby, depois de viver solteiro durante algum tempo, sentiu‑se aborrecido da sua solidão e casou com a filha dum vizinho que lhe trouxe um dote de mil libras: Esta senhora deu‑lhe dois filhos, um rapaz e uma rapariga, obrigando Mr. Nickleby a procurar os meios de reparar as reduções do capital, provenientes do aumento da familia e as despesas da sua educação.

‑Especula como ele ‑ aconselhou Mrs. Nickleby.

‑ Especular, minha querida? ‑ estranhou Mr. Nickleby.

‑ Sim ‑ insistiu ela.

‑ Porque, minha querida, se perdêssemos ‑ respondeu Mr. Nickleby, que era ao mesmo tempo vagaroso e tardo nas respostas ‑ se perdêssemos não teríamos com que viver, minha querida.

‑Tolice! ‑ sentenciou Mrs. Nickleby.

‑ Não me parece, minha querida ‑ retorquiu Mrs. Nickleby.

‑Temos o Nicholas que está quase um homem e é tempo de começar a fazer alguma coisa por si próprio e a Kate, pobre rapariga, sem um péni! Pensa no teu irmão! Seria o que é hoje se não tivesse especulado?

‑ verdade ‑ replicou Mr. Nickleby ‑ Muito bem, querida. Sim, especularei!

A especulação é um jogo como a roleta; os ganhos e as perdas podem ser grandes. A roda da fortuna foi desfavorável a Mr. Nickleby. Prevaleceu a mania, rebentou a bomba, quatro corretores de fundos arranjaram vilas em Florença e quatrocentos anónimos ficaram arruinados, entre os quais Mr. Nickleby.

‑Até a casa em que vivo ‑ suspirou o pobre homem ‑ me pode ser retirada amanhã. Nem uma peça dos meus móveis antigos deixará de ser vendida a estranhos!

Esta última reflexão feriu‑o tanto que teve de se meter na cama, aparentemente resolvido, em todo o caso, a conservar a casa.

‑ Coisas destas acontecem todos os dias ‑ observou o advogado.

‑ ânino, sir! ‑ aconselhou o boticário.

‑ Não se deve deixar abater! ‑ sentenciou a ama.

‑Além disso é pecado rebelarmo‑nos contra o destino ‑ murmurou o pároco.

‑E nenhum homem com família deve fazê‑lo! ‑ acrescentaram os vizinhos.

Mr. Nickleby abanou a cabeça e, convidando‑os a sair do quarto, caíu exausto, depois de abraçar a mulher e os filhos. Pareceu‑lhes que a razão dele variava, evocando e comentando a generosidade e a bondade do irmão, e os alegres tempos em que, juntos, iam para a escola. Esta lembrança dum passado longínquo, levou‑o a recomendar‑se solenemente Àquele que nunca desampara as viúvas e os órfãos. Sorriu amoravelmente, voltou a cara e resolveu dormir.

 

Mr. Ralph Nickleby: o seu princípio, os seus empreendimentos e uma companhia por acções de grande importância nacional.

            Mr. Ralph Nickleby não era o que,estritamente,se podia chamar um negociante, um banqueiro, um procurador, um comissionista, nem um bancário. Não era, certamente, um comerciante e tornava‑se impossível atribuir‑lhe qualquer profissão conhecida. No entanto,como vivia numa casa espaçosa de Golden Square, tendo, além da chapa de bronze na porta da rua uma outra mais pequena sobre a entrada de serviço da esquerda, dizendo, Escritório, era evidente que Mr. Ralph Nickleby fazia,ou pretendia fazer negócios de qualquer gênero e, de facto, durante o dia,entre as nove e meia e as cinco,            um homem pálido, estava sentado num banco tosco numa espécie de despensa ao fim do corredor,sempre com uma pena atrás da orelha quando atendia a campaínha.

Muitos dos primeiros e segundos andares das casas de Golden Square eram alugados com mobília a cavalheiros solteiros,que tomavam as refeiçções fora. Viviam ali muitos estrangeiros e músicos e, nas noites de verão,quando as janelas estavam abertas, ouvia‑se o som de vozes,música e aspirava‑se o aroma de bom tabaco,embalsamando o ar. Cigarros,charutos e cachimbos alemães, flautas,violinos e violoncelos, dividiam entre si a supremacia. Era a região do canto e do fumo.

Este lugar não parecia ser muito bem adaptado para transacções comerciais,mas Mr. Ralph Nickleby vivia ali há muitos anos e não se queixava. Não conhecia ninguém,nem ninguém o conhecia; no entanto,gozava a reputação de ser imensamente rico. Os negociantes tinham‑no por uma espécie de homem de leis e os vizinhos julgavam‑no um agente comercial,porémnem uns,nem outros sabiam ao certo.

Uma manhã Mr. Ralph Nickleby estava sentado no escritório,pronto para sair. Vestia um sobretudo curto verde‑garrafa por cima dum casaco azul, colete branco e calças cinzentascalçando botas de militar. Ostentava uma grande corrente de ouro formada por grossas argolas,que prendia um relógio também de ouro,com duas chaves,uma pertencendo ao relógio e outra a algum cadeado de segredo. Mr. Nickleby fechou um livro de contabilidade que estava em cima da secretária e recostou‑se na cadeira com um ar abstracto,contemplando,pela empoeirada janela,algumas casas de Londres e melancólicos terrenos por detrás delas. Fixou os olhos num torcido abeto plantado por algum inquilino anterior num balde que fora verde. Não havia nada de muito convidativo no objecto,mas Mr. Nickleby contemplava‑o com uma atenção maior do que conscientemente,se dignaria prestar ao mais raro e exótico vaso.

Por fim, com um gesto, chamou o empregado que estava no aposento contíguo.

Em obediência ao seu chamamento o homem deixou o banco e apresentou‑ se a Mr. Nickleby. Era um homem alto, de meia idade, de olhos esbugalhados, um deles fixo, nariz rubicundo rosto cadavérico, vestindo um fato muito coçado, muito curto e com uns botões tão pequenos que era uma maravilha as casas não os rejeitarem.

‑Já é meio dia e meia hora, Noggs? ‑ perguntou Mr. Nickleby, numa voz incisiva e áspera.

‑ Não é mais do que meio dia e vinte e cinco pelo relógio da taberna ia acrescentar Noggs, mas arrependendo‑se, substituiu ‑ pelo sol.

‑O meu relógio parou ‑ lamentou‑se Mr. Nickleby ‑ e não sei o motivo.

‑Não lhe deu corda ‑ lembrou Noggs.

‑Dei, sim ‑ replicou Mr. Nickleby.

‑Então é a corda partida ‑ tornou a sugerir Noggs.

‑ Não pode ser. ‑ observou Mr. Nickleby.

‑Deve ser ‑ teimou Noggs.

‑Bem, talvez seja ‑ concordou Mr. Nickleby, metendo o relógio na algibeira.

Noggs soltou uma espécie de grunhido, como era costume no fim de todas as discussões com o patrão, para demonstrar que ele, Noggs, triunfara. E como raramente falava a alguém, a não ser que alguém lhe falasse, caíu num silêncio carrancudo, esfregando as mãos e fazendo estalar os nós dos dedos.

‑Vou esta manhã à London Tavern, ‑ anunciou Mr. Nickleby.

‑Reunião pública? ‑ inquiriu Noggs.

Mr. Nickleby assentiu.

‑Espero uma carta do procurador, referente à hipoteca do Ruddle. Se vier, deve chegar pela distribuição das duas. Deixarei a cidade, mais ou menos nessa altura e vou a pé para Charing Cross, pelo passeio da esquerda. Se houver cartas vá ter comigo e leve‑mas.

Noggs disse que sim com a cabeça e, nessa ocasião, tocou a campainha do escritório. O patrão levantou a vista dos papeis e o empregado continuou calmamente na sua posição de estátua.

‑ A campainha ‑ observou Noggs, como se fosse uma explicação ‑ Está em casa?

‑ Estou!

‑ Para alguém em especial?

‑ Sim.

‑Para o cobrador de impostos?

‑ Não! Deixe tocar outra vez!

Noggs emitiu o seu costumado grunhido, como se quisesse dizer. Já calculava! e, repetindo‑se o toque, foi abrir e introduziu um homem pálido, chamado Mr. Bonney, extraordinariamente apressado que, com o cabelo em desalinho e umagravata branca muito estreita, mal atada em volta do pescoço, parecia ter‑se levantado em sobressalto durante a noite e não se ter vestido.

‑Meu querido Nickleby ‑ disse o homem, tirando um chapéu branco tão cheio de papeis que mal lhe podia entrar na cabeça ‑ Não há um momento a perder. Tenho um cab à porta. Sir Matthew Pupker vai presidir e estão a chegar três membros do Parlamento. Vi dois fora de casa e o terceiro, que esteve no Crockford toda a noite, foi a casa vestir uma camisa lavada e beber uma ou duas garrafas de soda, e estará connosco a tempo de dirigir a reunião. Está um pouco excitado por causa da noite passada, mas não importa, fala sempre melhor depois dessas reuniões.

‑ Isso parece muito prometedor ‑ retorquiu Mr. Nickleby, cujas maneiras calculadas estavam em forte oposição com a vivacidade do outro homem.

‑Muito prometedor! ‑ ecoou Mr. Bonrsey ‑ É a melhor ideia que jamais se ouviu. ccUnited Metropolitan Improved Hot Muffin and Crumpet Baking and Punctual Delivery Companyii. lCompanhias Reunidas Metropolitanas de Pastelaria e Entrega Rápida). Capital, cinco milhões em quinhentas mil acções de dez libras cada. Só o nome da sociedade basta para as acções subirem dentro de dez dias.

‑ E quando estiverem acima do valor nominal. ‑ comentou Mr. Ràlph Nickleby, sorrindo.

‑Quando estiverem, sabe tão bem o que fazer com elas como qualquer ser vivente e como recuar, calmamente, na ocasião oportuna ‑ disse Mr. Bonney, dando uma palmada familiar no ombro do capitalista ‑ E a propósito, que homem tão singular é o seu empregado!

‑Sim, um pobre diabo! ‑ replicou Ralph, calçando as luvas ‑ Embora Newman Noggs já tivesse tido cavalos e cães de caça.

‑ Ah! Sim?! ‑ comentou o outro, negligentemente.

‑Sim ‑ prosseguiu Ralph ‑ e não foi há muitos anos. Porém, gastou o dinheiro prodigamente, investiu‑o de qualquer maneira, emprestou‑o a juros e, em resumo deu‑se primeiro ao ridículo e depois começou a pedir. Principiou a beber, teve um ataque de paralisia e então, veio aqui pedir uma libra emprestada, por que nos outros tempos eu tinha.

‑ Tido negócios com ele ‑ concluiu Mr. Bonney com um olhar significativo.

‑Justamente ‑ replicou Ralph ‑ Não lhe emprestei, como deve calcular.

‑ Oh, decerto não.

‑ Mas como precisava dum empregado para abrir a porta e outros trabalhos, tomei‑o por caridade e, desde então, tem permanecido ao meu serviço. Creio que é um pouco desequibrado, ‑ continuou Mr. Nickleby, solicitando um olhar caritativo ‑ mas é bastante útil, pobre criatura... bastante útil.

O homem de bom coração esqueceu‑se de acrescentar que Newman Noggs, estando completamente desamparado, servia por bastante menos do que o salário vulgar dum rapaz de treze anos e, igualmente omitiu mencionar que, a sua excêntrica taciturnidade o tornava uma pessoa especialmente valiosa num lugar onde se faziam muitos negócios, que era bom não serem conhecidos fora dali. O visitante estava ansioso por se ir embora, e talvez por entrarem apressadamente no cabriolé, Mr. Nickleby se esquecesse de mencionar circunstâncias tão insignificantes.

Em Bishopsgate Street havia uma grande algazarra quando desceram do carro, por meia dúzia de homens estarem a colocar através da rua um anúncio gigantesco, indicando que, à uma hora precisa, se efectuaria uma reunião pública para pedir ao parlamento o patrocínio para a United Metropolitan Improved Hot Muffin and Crumpet Baking and Punctual Delivery Company, capital cinco milhões, em quinhentas mil acções de dez libras cada, importâncias estas devidamente impressas em gordos algarismos de considerável tamanho. Mr. Bonney abriu caminho com os cotovelos, subiu a escada, recebendo no trajecto muitas inclinações de espinha dos criados divididos pelos patamares para indicarem o caminho. Seguido por Mr. Nickleby entrou num conjunto de aposentos, por detrás da grande sala do público, no segundo dos quais estava uma mesa e à sua volta, vários cavalheiros com aspecto de homens de negócios.

‑ Ouçam! ‑ gritou um deles com duplo queixo quando Mr. Bonney se apresentou. ‑ Sentem‑se, meus senhores, sentem‑se!

Os recémchegados foram recebidos com aplausos e Mr. Bonney deu‑se pressa em alcançar o topo da mesa, tirar o chapéu, passar os dedos pelo cabelo e dar uma pancada na mesa com um pequeno martelo; pelo que vários cavalheiros exclamaram Escutem!, inclinando‑se uns para os outros como a dizerem que a conduta era animosa.

Justamente neste momento um criado, numa agitação febril, entrou no salão como um vendaval, abrindo a porta com violência e gritou:

‑Sár Matthew Pupker!

A comissão levantou‑se e bateu palmas de alegria e enquanto as palmas ressoavam, entrou Sir Matthew Pupker, ladeado por dois membros do Parlamento, um irlandês e o outro escocês, muito sorridentes e cumprimentadores, e de aparência tão agradável que parecia impossível alguém ter coragem de votar contra eles. Sir Matthew, especialmente, que tinha uma pequena cabeça redonda com uma cabeleira cor de linho, fez tantos cumprimentos que a cabeleira ameaçava saltar a todo o instante. Os cavalheiros rodearam‑no e começaram a falar sobre as perspectivas do governo a respeito da oportunidade e das vantagens da United Metropolitan Improved Hot Muffin and Crumpet Baking and Punctual Delivery Company.

Entretanto, o público, na grande sala olhava para o estrado vazio e para as senhoras, na galeria de música, começando, ao mesmo tempo, a bater com os pés no chão e a gritar, para exprimir o seu desagrado. Estas exortações vocais procediam dos que se encontravam mais perto do estrado e mais longe da pulícia. Por fim, apareceu Sir Matthew e dois dos outros autênticos membros do Parlamento entre gritos ensurdecedores, à vista do que concordaram, silenciosamente entre si nunca ter presenciado uma tão boa perspectiva durante toda a sua carreira.

Depois da assembleia ter deixado de gritar, Sir Matthew Pupker falou do valor, da importância e da vantagem duma instituição tal como a United Metropolitan Improved Hot Muffin and Crumpet Baking and Punctual Delivery Company.

Mr. Bonney apresentou‑se a influenciar o público e, tendo passado a mão direita pelo cabelo, disse que iria explicar as razões da decisão tomada: Esta reunião via com alarme e apreensão o estado actual do comércio de Confeitaria na metrópole e seus arredores; os distribuidores dos bolos não mereciam a confiança do público; e todo o sistema era prejudicial para a saúde e para a moral do povo e destruidor dos interesses duma grande comunidade mercantil e comercial.

O honrado cidadão fez um discurso que arrancou lágrimas às senhoras e despertou vivas emoções em todos os presentes. Visitara casas de pobres, em vários distritos de Londres, onde não encontrara vestígios de bolos; encontrara, sim, entre os vendedores de bolos, bêbados e debochados; vira os mesmos vícios entre as classes mais pobres, que deviam ser os consumidores de bolos, atribuindo este facto ao desconhecimento do valor nutritivo dum produto que os levava a ingerir licores intoxicantes. Comprometia‑se a provar perante uma comissão da Câmara dos Comuns, existir uma combinação para conservar caros, os preços dos bolos e dar um monopólio aos vendilhões; e provaria também que estes homens se correspondiam entre si por palavras secretas e sinais, como Snooks, Walker, Ferguson, Murphy, tem razão e muitos outros. Era este triste estado de coisas que a companhia se propunha corrigir: primeiro, proibindo com pesadas multas todo o comércio privado de bolos de qualquer espécie; segundo, fornecendo ao público em geral e aos pobres, nas suas próprias casas, bolos de primeira qualidade a preços reduzidos. Foi com este objectivo que o patriótico presidente da administração, Sir Matthew Pupker, apresentara um projecto no Parlamento; era este projecto que eles deviam apoiar e os seus defensores prestariam um grande serviço e dariam brilho e esplendor à Inglaterra, sob o nome de United Metropolitan Improved Hot Muffin and Crumpet Baking and Punctual Delivery Company, cujo capital seria de cinco milhões, dividido em quinhentas mil acções, de dez libras cada.

Mr. Ralph Nickleby apoiou a resolução e um outro cavalheiro foi levado em triunfo por ter proposto uma emenda no título da sociedade. Apenas um homem na multidão gritou Não, mas foi expulso da sala.

A segunda proposta era abolir todos os vendedores de bolos (ou sonhos), todos os comerciantes de bolos de qualquer género, de ambos os sexos, rapazes ou homens, tocando ou não campainhas, e foi apresentada por um cavalheiro de aspecto semi‑clerical. Podia ouvir‑se cair no chão um alfinete, uma pena, enquanto ele descrevia as crueldades infligidas pelos patrões aos rapazes vendedores dos bolos, os quais, entregando os bolos nos seus envoltórios quentes e tapados com toalhas brancas, não tinham nada disto, andando à chuva, ao frio, à neve; ao sol, horas e horas, sem comer e sem aquecimento.

O efeito deste discurso foi levar os homens a berrar e as senhoras a servirem‑se dos lenços para secar os olhos. A excitação era tremenda e Mr. Nickleby sussurrou ao amigo que as acções subiriam dali em diante vinte e cinco por cento.

A proposta foi aprovada por entre estrondosas aclamações, levantando todos os homens ambas as mãos, no seu entusiasmo, não tendo levantado ambos os pés por não poderem. Feito isto, foi lida, por fim, a minuta da petição, sugerindo que o projecto fosse transformado em lei para honra e glória dos mais honrados e gloriosos deputados da Inglaterra, reunidos no Parlamento.

Depois, o cavalheiro que falou toda a noite no Crokford, veio dizer o que pensava fazer da petição quando fosse apresentada e como exprobaria o Parlamento se o projecto fosse rejeitado e informar também que sentia que os seus honrados amigos não tivessem incluído uma cláusula tornando obrigatória a compra dos bolos a toda a classe da comunidade.

E quando a petição foi lida e estava a ser discutida, adiantou‑se o deputado irlandês, para reclamar que a lei sobre os bolos fosse extensiva ao seu pais natal e esperava ver o dia em que os bolos fossem acolhidos nas suas humildes choupanas e as campainhas a anunciá‑los, ressoassem nos seus ricos vales verdes. A seguir, veio o deputado escocês com várias alusões aos lucros prováveis, aumentando o bom humor despertado pela poesia do orador antecedente. Tendo todos estes discursos metido nas cabeças dos ouvintes, não existir investimento tão prometedor e ao mesmo tempo tão valioso como o da United Metropolitan Improved Hot Muffin and Crumpet Baking and Punctual Ilelivery Companyii, a petição a favor do projecto foi aprovada e a assembleia encerrada com aclamações. Mr. Nickleby e os outros directores foram almoçar para o escritório, como faziam todos os dias à uma e meia, e para se remunerarem da maçada que tinham tido (visto a companhia estar ainda na infância) apenas receberam três guinéus cada um.

 

Mr. Ralph Nickleby recebe tristes notícias do irmão, mas suporta nobremente e ficamos informados do seu amor por Nicholas, agora aqui apresentado e como amavelmente, se propôs fazer imediatamente a sua fortuna

Tendo prestado zelosa cooperação em despachar o almoço com a prontidão e energia, importantes qualidades que os homens de negócios supõem possuir, Mr Ralph Nickleby despediu‑se cordialmente dos seus companheiros na especulação e desceu as escadas. Quando passou pela catedral de S. Paul meteu‑se no vão duma escada para acertar o relógio e, com a chave na mão e os olhos no mos trador, estava a ponto de satisfazer o seu intento qúando um homem parou em frente dele. Era Newman Noggs.

‑ Nr! ‑ exclamou Mr. Nickleby, olhando para ele enquanto continuava o seu trabalho. ‑ Veio a carta a respeito da fábrica? Deve ter vindo.

‑ Engano ‑ respondeu Newman.

‑O quê! E ninguém veio para tratar desse assunto? ‑ inquiriu Mr. Nickleby, parando. Noggs abanou a cabeça.

‑ Então, que chegou? ‑ perguntou Mr. Niekleby.

‑ O que eu trago ‑ disse Newman.

‑ Mas o quê? ‑ quis saber o patrão, mostrando um ar severo.

‑ Isto ‑ informou Newman tirando vagarosamente da algibeira uma carta lacrada. ‑ Carimbo do correio, Strand, lacre preto, tarja de luto, caligrafia de mulher, C. N. no canto.

‑ Lacre preto? ‑ estranhou Mr Nickleby, olhando para a carta. ‑ Também conheço esta caligrafia. Newman, não me surpreenderia se o meu irmão tivesse morrido.

‑ Acredito ‑ respondeu Newman sossegadamente.

‑ E por quê, Sir? ‑ perguntou Mr. Nickleby.

‑ Porque o senhor nunca se surpreende, eis tudo ‑ redarguiu Newman.

Mr. Nickleby tirou a carta ao ajudante a quem deitou um olhar frio. Abriu‑a, leu‑a, pô‑la na algibeira e tendo acertado o relógio até aos segundos, começou a dar‑lhe corda.

‑ É a que esperava, Newman ‑ disse Mr. Nickleby ainda ocupado com o relógio. ‑ Ele morreu. Meu Deus! Bem, foi uma coisa repentina. Não me tinha passado pela cabeça, realmente.

Com estas tocantes expressões de pesar, Mr. Nickleby tornou a meter o relógio na algibeira e, ajustando muito bem as luvas, voltou‑se para o caminho que desejava seguir e encaminhou‑se vagarosamente para oeste com as mãos atrás das costas.

‑ Há filhos vivos? ‑ perguntou Newman.

‑ Aí é que está o mal ‑ replicou Mr. Nickleby, como se estivesse a pensar neles, naquele momento. ‑ Estão ambos vivos!

‑ Ambos? ‑ repetiu Newman Noggs em voz alta.

‑ E a viúva também ‑ acrescentou Mr. Nickleby. ‑ E os três estão em Londres. Todos os três aqui, Newman!

Newman ia um pouco atrás do patrão, com a cara curiosamente contorcida por um espasmo; mas ninguém poderia dizer se era da paralisia, de pesar, ou um riso interior. A expressão do rosto dum homem é, em geral, uma forma de conhecer os seus pensamentos, mas com Noggs, era um pro blema que não se podia resolver pela crença na ingenuidade.

‑ Vá para casa! ‑ ordenou Mr. Nickleby, depois dele ter dado uns poucos de passos, olhando‑o como se fosse um cão.

Mal as palavras foram proferidas, Newman atravessou a rua, confundiu‑ se com a multidão e desapareceu num instante.

‑ Razoável, certamente! ‑ murmurou Mr. Nickleby para consigo, enquanto ia andando. ‑ Muito razoável! O meu irmão nunca fez nada por mim e também nunca o esperei, porém, mal fechou os olhos fiquei imediatamente a ser o amparo duma mulher ainda de meia idade e dum rapaz e duma rapariga na idade de crescerem. O que são eles para mim? Eu nunca os vi!.

Com estas e muitas outras reflexões do mesmo género, Mr. Nickleby dirigiu‑se para o Strand a fim de procurar o número da casa indicada na carta, dando com a porta duma casa particular, a meio caminho descendente daquela populosa rua. Vivia ali um pintor miniaturista que tinha expostos por cima da porta da rua alguns exemplares dos seus trabalhos. Mr. Nickleby deu uma vista de olhos por estas frivolidades e bateu uma pancada repemicada que teve de repetir três vezes antes de lhe responder uma criadita com a cara incrivelmente suja.

‑ Mrs. Nickleby está em casa, menina? ‑ perguntou Ralph em tom severo.

‑ O seu nome não é Nickleby ‑ respondeu a rapariga. O senhor quer dizer La Creevy.

Mr: Nickleby olhou muito indignado para a criada por ser corrigido desta maneira e inquiriu com mais aspereza o que queria ela dizer; a rapariga ia explicar‑se quando uma voz de mulher, vinda duma escada de caracol no fim do corredor, indagou por quem perguntavam.

‑ Por Mrs. Nickleby ‑ informou Ràlph.

‑ no segundo andar, Hannah ‑ explicou a mesma voz. Que estúpida rapariga!

‑Os do segundo andar estão em casa?

‑ Saiu alguém mesmo agora, mas creio que foi das águas‑furtadas ‑ respondeu a rapariga.

‑ Era melhor que tivesses visto ‑ aconselhou a mulher invisível. ‑ Mostra ao senhor onde está a campáinha e diz‑lhe que não deve bater duas repenicadas para o segundo andar.

Só permito uma pancada quando a campainha não funciona e, nesse caso, devem ser umas pancadas simples!

Com licença ‑ disse Ralph, entrando sem mais conversa.

‑ qual é o nome?

‑ Creevy. la Creevy ‑ informou a voz enquanto uma cabeleira anarela dançava por cima do corrimão.

‑Quero falar‑lhe por um momento ma am, com sua licença ‑ disse Ralph.

A voz replicou que o cavalheiro podia subir, mas ele já subira antes dela falar e, entretanto no primeiro andar foi recebido pela dona da cabeça amarela, que tinha um roupão a condizer com a cor da cabeça. Miss la Creevy era uma afectada jovem de cinquenta anos; o apartamento de Miss la Creevy tinha uma cercadura dourada a toda à volta e estava bastante sujo.

‑ Hum! ‑ exclamou miss La Creevy, tossindo delicadamente por trás dos mitenes de seda preta. Presumo que deseje uma miniatura. Para isso é preciso uma expressão fortemente marcada, sir. Já teve alguma antes?

‑ Vejo que se engana quanto às minhas intenções, maam ‑ replicou Mr. Nicleby, com a sua habitual grosseria. ‑ Não tenho dinheiro para desperdiçar em miniaturas, maam, e não tenho ninguém, graças a Deus, a quem as dar. Como a vi na escada, queria fazer‑lhe uma pergunta sobre alguns moradores daqui.

Miss La Creevy tossiu mais uma vez, tosse destinada a ocultar o seu desapontamento, e exclamou:

‑ Ah! Com franqueza!

‑ Pelo que disse à sua criada, creio que o andar de cima lhe pertence, maam ‑ disse Mr. Nickleby.

‑ Sim, pertencia ‑ respondeu miss La Creevy.

‑ A parte de cima da casa pertencia‑lhe, e como até agora não tinha necessidade dos aposentos do segundo andar, resolveu alugá‑los.

‑ Na verdade, estavam agora alugados por uma senhora da província com os seus dois filhos.

‑ Uma viúva, ma'am? ‑ Perguntou Rálph.

‑ Sim, ela é viúva ‑ respondeu a senhora.

‑ Uma viúva pobre ma'am ‑ informou Ralph assentuando muito a palavra para lhe dar maior ênfase.

‑ Receio, realmente, que seja pobre ‑ replicou Miss Lacreevy.

‑ Sei com certeza que o é ‑ retorquiu Ralph. ‑ O que faz uma viúva pobre numa casa como esta, ma'am?

‑ Tem muita razão ‑ concordou miss Lacreevy, bastante lisonjeada com o cumprimento feito ao seu apartamento.

‑Conheço intimamente as possibilidades dela ‑ continuou Ralph. ‑ De facto, sou um parente, ma'am, e devo recomendar‑lhe que não a conserve aqui.

‑Calculava que se houvesse alguma dificuldade nas obrigações pecuniárias ‑ interpôs Miss La Creevy com outra tossezinha ‑ que a família da senhora poderia.

‑ Não, não poderá, ma'am ‑ interrompeu Ralph apressadamente. ‑ Não pense nisso.

‑Se bem compreendo o caso tem uma aparência diferente ‑ disse Miss La Creevy.

‑ Exactamente, ma'am ‑ respondeu Ralph ‑ e tome as suas disposições nesse sentido. Sou da família, ma'am. pelo menos creio que sou o único parente que eles têm e julgo‑me na obrigação de lhe dizer que não posso sustentálos nas suas extravagâncias. Por quanto tempo alugaram o apartamento?

‑ Apenas de semana a semana ‑ informou Miss La Creevy.

‑ Mrs. Nickleby pagou adiantadamente a primeira semana.

‑Então o melhor que tem a fazer é pôlos na rua no fim do prazo ‑ avisou Ralph. ‑ Não têm outro remédio senão voltar para a província, ma'am: aqui, são um obstáculo para todos.

‑ Certamente, se Mrs. Nickleby ficasse com o apartamento sem meios para o pagar procedia muito mal ‑ criticou Miss La Creevy, esfregando as mãos.

‑ Decerto, ma'am ‑ aprovou Ralph.

‑ E, naturalmente ‑ continuou Miss La Creevy ‑ eu, que sou presentemente. hum!. uma mulher desprotegida, não posso dar‑me ao luxo de perder o dinheiro dos apartamentos.

‑ Evidentemente que não, ma'am ‑ replicou Ralph.

‑ Mas, ao mesmo tempo ‑ acrescentou Miss La Creevy que hesitava entre a bondade e o seu interesse ‑ nada tenho a dizer contra a senhora, que é extremamente delicada e afável, embora, pobrezinha. Parece muito deprimida, os jo vens, também não podem ser mais simpáticos e bem comportados.

‑ Muito bem, ma'am ‑ disse Ralp, voltando‑se para a porta, pois estes elogios sobre gente pobre, irritavam‑no. Cumpri o meu dever e talvez mais do que devia; com certeza ninguém me agradece por ter dito o que disse.

‑ Oh! Estou‑lhe muito grata, sir ‑ agradeceu Miss La Creevy com umas maneiras graciosas. ‑ Quer fazer‑me o favor de ver alguns exemplares dos meus retratos?

‑ A senhora é muito amável, ma'am ‑ replicou Mr. Nickleby, saindo apressadamente ‑ mas tenho uma visita a fazer lá acima e o meu tempo é precioso. Realmente não posso!

‑ Quando passar por aqui em qualquer outra ocasião, terei muito prazer ‑ disse Miss La Creevy. ‑ Talvez queira ter a gentileza de levar um cartão com as condições? Obrigado e bom dia!

‑ Bom dia ma'am ‑ despediu‑se Ralph, fechando a porta atrás de si para evitar mais conversas. ‑ Agora vamos à minha cunhada!

Trepando um outro lanço perpendicular, composto com grande ingenuidade mecânica só de voltas, Mr. Ralph Nickleby parou no patamar para tomar fôlego, quando foi ultrapassado pela criadita, que a polidez de Miss La Creevy despachara para o anunciar e que, aparentemente, estivera a fazer variadas tentativas para limpar a cara a um avental muito mais sujo.

‑ Qual é o seu nome? ‑ Perguntou a rapariga.

‑ Nickleby ‑ respondeu Ralph.

‑ Mrs. Nickleby ‑ chamou ela, abrindo a porta com vio lência. ‑ Est é Mr. Nickleby!

Quando Mr. Ralph Nickleby entrou, levantou‑se uma senhora de luto pesado, parecendo incapaz de avançar ao seu encontro, pelo que se encostou ao braço duma rapariga de cerca de dezassete anos franzina, mas muito bonita, que se encontrava a seu lado. Um jovem, com a aparência de mais um ou dois anos, deu uns passos em frente e cumprimentou Ralph, seu tio.

‑ Oh! ‑ resmungou Ralph com um franzir de testa. Suponho que és o Nicholas.

‑ É esse o meu nome! ‑ respondeu o jovem.

‑ Encarregue‑se do meu chapéu ‑ ordenou Ralph, inperiosamente. ‑ Bem, ma'am, como está? A senhora deve vencer a tristeza, ma'am. Eu faço sempre isso.

‑ A minha perda não foi vulgar! ‑ lamentou‑se Mrs. Nickleby, levando o lenço aos olhos.

ma'am ‑ retorquiu Ralph friamente, desapertando o sobretudo ‑Não foi uma perda desastrosa. Todos os dias morrem maridos e mulheres!

‑ E os irmãos, os filhos e as filhas também, sir! ‑ disse Nicholas.

‑Sim, sir, retorquiu o tio, sentando‑se numa cadeira. ‑ Na sua carta não mencionou de que se queixava o meu irmão ma'am.

‑Os médicos não puderam atribuir a morte a uma determinada doença ‑ informou Mrs. Nickleby, derramando lágrimas. ‑ Temos muitas razões para temer que ele tivesse sucumbido de mágoa.

‑ Ora! ‑ exclamou Ralph. ‑ Não há tal coisa! Compreendo que um homem morra com um braço quebrado, mas com mágoa!. idiotice! Isso é o estribilho de hoje. Se um homem não pode pagar os seus débitos, morre de mágoa e a viúva é uma mártir.

‑Julgo haver pessoas que não têm coração para sentir mágoa! ‑observou Nicholas pausadamente.

‑ Por amor de Deus, que idade tem este rapaz ‑ inquiriu Ralph, rodando a cadeira e observando desdenhosamente o sobrinho, da cabeça aos pés.

‑ Nicholas está quase a fazer dezanove ‑ respondeu a viúva. ‑ Dezanove, hem! ‑ exclamou Ralph. ‑ E o que pensa fazer para ganhar o pão nosso de cada dia?

‑Não viver à custa da minha mãe! ‑ replicou Nicholas, com o coração aos saltos, enquanto falava.

‑Teria pouco com que viver à custa dela, se quisesse retorquiu o tio, olhando‑o com desprezo.

‑ De qualquer maneira não recorrerei a si ‑ informou Nicholas, rubro de raiva.

‑Nicholas, meu querido, tem cuidado com a língua!admoestou Mrs. Nickleby.

‑ Querido Nicholas, por favor! ‑ pediu a irmã.

‑ Cale a boca, sir ‑ exclamou Ralph. ‑ Palavra, que lindos princípios, Mrs. Nickleby!. Lindos princípios!

Mrs. Nickleby não deu outra resposta senão fazer um gesto a Nicholas para se calar. Tio e sobrinho olharam um para o outro durante alguns segundos sem falar. A cara do homem estava carrancuda, dura de feições e odienta; a do jovem era franca, formosa e ingénua. Os olhos do homem eram agudos, com fulgores de avareza e de velhacaria; os do jovem eram transparentes, iluminados pela inteligência e pelo espírito, sua figura era um tanto débil, mas varonil e bem formada, e além de toda a graça da juventude e da beleza, emanava do seu olhar a ternura da seu jovem coração, fazendo com que o homem se sentisse inferior. Isto vexou Ralph até ao fundo da alma e fez com que odiasse Nicholas desde aquele momento.

A mútua inspecção acabou por Ralph retirar os olhos com mostra de grande desdém, chamando garoto a Nicholas.

‑ Bem, ma'am ‑ disse ele, impaciente. ‑ Os credores têm administrado, disse‑me a senhora, mas não lhe deixaram nada?

‑ Nada ‑ respondeu Mrs. Nickleby.

‑E a senhora gastou o pouco dinheiro que tinha em vir para Londres ver o que eu podia fazer por si? ‑ continuou Ralph.

‑ Esperava ‑ gaguejou Mrs. Nickleby ‑ que o senhor tivesse oportunidade de fazer alguma coisa pelos filhos do seu irmão. Foi o seu último desejo eu apelar para si, a favor deles.

‑ Não sei como isso é ‑ murmurou Ralph, passeando dum lado para o outro no aposento ‑ mas sempre que um homem morre sem deixar bens, parece pensar que tem o direito de dispor dos bens dos outros. Para que está preparada a sua filha, ma'am?

‑ Kate recebeu uma educação esmerada ‑ murmurou Mrs. Nickleby. ‑ Dize au teu tio, minha querida, como estás adiantada em francés e nas outras disciplinas.

A pobre rapariga ia a dizer qualquer coisa quando o tio lhe cortou a palavra sem nenhuma cerimónia.

‑Devemos tentar arranjar‑lhe uma aprendizagem prática em qualquer colégio interno ‑ disse Ralph. ‑ Não foi educada com demasiada delicadeza para isso, pois não?

‑ Na verdade não, tio ‑ respondeu a rapariga lacrimosa

‑ Tentarei fazer qualquer coisa que me dê o sustento e um tecto.

‑Bem, bem ‑ replicou Ralph, um pouco abrandado quer pela beleza da sobrinha, quer pela sua mágoa ‑ Deve tentálo e se a vida for dura demais, talvez a costura ou o bordado sejam mais leves. Já alguma vez fez alguma coisa, sir?

‑ acrescentou, voltando‑se para o sobrinho.

‑Não ‑ respondeu Nicholas, grosseiramente.

‑Não, já esperava que não! ‑ observou Ralph. ‑ Eis a maneira como o meu irmão educava os filhos, ma'am!

‑Nicholas ainda não tinha completado a educação que o pobre pai lhe podia dar ‑ retorquiu Mrs. Nickleby ‑ e estava a pensar em.

‑Em fazér alguma coisa dele um dia ‑ disse Ralph. A velha história; pensando sempre e nada fazendo. Se o meu irmão fosse um homem de actividade e prudência, tê‑la‑ia deixado rica, ma'am; e se tivesse atirado com o filho para a vida, como o meu pai me atirou quando era mais novo do que esse rapaz, há ano e meio, ele estaria agora em situação de a ajudar, em vez de ser um fardo para si, aumentando a sua mágoa. O meu irmão foi um homem inconsiderado e sem pensar, Mrs. Nickleby, e ninguém ‑ posso assegurar ‑ tem melhores razões para o sentir do que a senhora!

Este apelo fez a viúva chorar, pensando que teria sido mais venturosa com as suas mil libras, e reflectir como seria então uma importância reconfortante. Com muitos suspiros lamentou ter sido uma escrava do pobre Nicholas, quando tivera muitas ocasiões de fazer um cassamento melhor, e concluiu lastimando que o amado morto nunca tivesse querido seguir o seu conselho, excepto numa ocasião, que foi precisamente aquela em que se arruinara.

Mr. Ralph Nickleby ouviu tudo com um meio sorriso e quando a viúva acabou, retomou sossegadamente o assunto onde o deixara.

‑Está disposto a trabalhar, sir? ‑ perguntou ele, franzindo as sobrancelhas para o sobrinho.

‑Decerto! ‑ respondeu Nicholas, altivamente.

‑Então veja isto aqui, sir ‑ disse o tio ‑ Isto despertou‑me a atenção esta manhã e pode agradecer ao céu essa sorte.

Com este exórdio Mr. Ralph Nicklebby tirou um jornal da algibeira e depois de o desdobrar e de olhar um pouco para os anúncios, leu o seguinte:

EDUCAÇÃO ‑ Na Academia de Mr. WacWord Squeers Dotheboys Hall, na deliciosa vila de Dotheboys, perto de Greta Bridge, no Yorkshire. A juventude tem pensão completa, fato, livros, dinheiro para pequenas despesas e tudo que é necessário, instrução em todas as línguas vivas e mortas, em matemática, ortografia, geometria, astronomia, trignometria, uso dos globos, álgebra, jogo do pau, redacção, aritmética, todos os outros ramos da literatura clássica. Preço, vinte guinéus por ano. Não há extraordinários, nam há férias, é um regime incomparável. Mr. Squcers está na cidade e atende todos os dias desde a uma hora até às quatro, em Saraceen's Head, Snow Hill.

  1. B. ‑ Precisa‑se dum assistente competente. Salário anual, £5. Terá preferência um Licenciado em Letras.

‑Pronto! ‑disse Ralph, voltando a dobrar o jornal, ‑ Se ele conseguir este lugar tem a fortuna assegurada.

‑Mas ele não é Licenciado em Letras ‑ observou Mrs. Nickleby.

‑ Isso, creio que se pode vencer.

‑Mas o ordenado é tão pequeno e o sítio tão longe, tio!balbuciou Kate.

‑Silêncio, silêncio, minha querida! ‑ interpôs Mrs. Nickleby ‑ O teu tio deve saber melhor do que tu.

‑Já disse ‑ repetiu Ralph asperamente ‑ se ele apanhar este lugar, a sua fortuna está feita. Se não gosta disto, deixêmo‑lo arranjar lugar por suas mãos. Sem amigos, recomendação ou conhecimentos de qualquer espécie de negócio, deixêmo‑lo encontrar um emprego decente em Londres, que o calce e lhe dê mil libras. Se fosse comigo, pelo menos aceitava‑o ‑ disse Ralph, detendo‑se.

‑Pobre rapaz ‑ lamentou a irmã. ‑ Oh, tio, temos que nos separar tão depressa?

‑ Não enfades o teu tio com perguntas quando ele só pensa no nosso bem, meu amor! ‑ advertiu Mrs. Nickleby. ‑ Nicholas, meu querido, desejava que dissesses alguma coisa.

‑sim! ‑ concordou Nicholas, que estivera até aqui calado e absorvido nos seus pensamentos. ‑ Se for suficientemente feliz em ser nomeado para esse lugar, o que vai suceder áquelas que deixo?

‑ A sua mãe e a sua irmã, sir ‑ replicou Ralph ‑ serão mantidas nesse caso ‑ e não em qualquer outro ‑ por mim e colocadas numa esfera de vida na qual possam ser independentes. Esse será o meu cuidado imediato: comprometo‑me a que uma semana depois da sua partida não continuarão como estão.

‑ Então ‑ disse Nicholas, levantando‑se alegremente e apertando com força as mãos do tio ‑ estou pronto a fazer o que quiser. Vamos já tentar a nossa boa sorte com Mr. Squeers; ele não pode fazer mais do que recusar‑me!

‑ Não fará isso ‑ avisou Ralph. ‑ Ficará contente em aceitálo com a minha recomendação. Torne‑se útil e ele o fará sócio da instituição sem demora. Deus me perdoe só de pensar. mas se ele morresse, a sua fortuna estava feita imediatamente.

‑ Com certeza! Vejo tudo isso! ‑ replicou o pobre Nicholas deleitado com um milhar de ideias visionárias que o seu bom humor e inexperiência se conjugavam para lhe apresentar. ‑ Ou supunhamos que algum jovem fidalgo, que estivesse a ser educado no Hall, simpatizava comigo e convencia o pai a nomear‑me seu perceptor e viajar com ele, quando saisse delá, e quando regressássemos do Continente me arranjava

‑ Ah! Com certeza! ‑ chasqueou Ralph.

‑ E, quem sabe, se quando ele viesse ver‑me, depois de eu estar arrumado como devia, decerto se enamorava de Kate que estaria a tomar conta da minha casa, e. e. casava com ela? Hein tio? Quem sabe?

‑ Quem sabe, na verdade! ‑ tornou Ralph.

‑ Como seríamos felizes! ‑ exclamou Nicholas, com entu siasmo. ‑ A dor da partida não é nada ao pé da alegria de nos encontrarmos outra vez. Kate será uma linda mulher e terei muito orgulho em lhes ouvir dizer essa verdade; e a mãe tão feliz por estar mais uma vez comigo, longe de todos estes tristes tempos e. ‑ O quadro era lindo demais para uma pessoa o contemplar impassivel e Nicholas, inteiramente absor vido por ele, sorriu francamente e desatou a chorar.

Esta família simples, nascida e criada fora do que se chama o mundo, juntou as lágrimas com a ideia da primeira separação, o que fez dizer a Mr Ralph Nickleby que se eles perdiam tempo, algum candidato mais afortunado poderia ocupar o lugar e desfazer‑lhes os castelos no ar. Isto teve o efeito de parar as manifestações de tristeza, levando Nicholas a copiar com cuidado a morada de Mr. Squeers. O rapaz convenceu‑ se de ter feito uma grande injustiça ao seu parente, antipatizando com ele à primeira vista e Mrs. Nickleby teve dificuldade em informar a filha de que o tio era uma pessoa mais amável do que parecia, notando Miss Nickleby, obedientemente, que bem podia ser assim.

Para dizer a verdade, a opinião da boa senhora não fora influenciada pelo apelo do cunhado à sua boa compreensão e o cumprimento aos seus elevados méritos e, embora tivesse amado ternamente o marido e fosse louca pelos filhos, ele dedilhara com muita felicidade uma daquelas cordas sensíveis do coração humano. Ralph estava ao par das piores fraquezas do coração, embora soubesse das suas superiores quali dades e que ela começava já a considerar‑se a vítima e sofredora da imprudência do seu defunto marido.

 

Nicholas e o tio para agarrarem a fortuna sem perda de tempoprocuraram Mr. Wackjord Squeers, o mestre‑escola de Yorksháre

Snow Hill é uma desolada região, exposta ao vento, aberta a todos os temporais e ferozes invernias, um lugar frio, triste, solitário de dia e em que as pessoas honestas mal pensam à noite. um lugar ermo a que os viajantes dão animação e onde se reunem os ladrões da mais baixa escala. Era de Snow Hill que partiam as diligências para oeste e leste do país e perto do local da sua paragem encontrava‑se a estalagem conhecida por Sarseen's Head Inn. Junto do pátio desta estalagem, à esquerda, havia o escritório das diligências, à direita a igreja de St. Sepulchre, e em frente uma grande porta envidraçada, encimada por uma tabuleta dizendo, café. Olhando para o exterior dessa porta envidraçada estava Mr. Squeers, com as mãos nas algibeiras.

A aparência de Mr. Squeers não era a dum homem preocupado. TInha só um olho, cinzento esverdeado, que no feitio, lembrava a bandeira duma porta de rua. A parte da cara sem barba era triste e estava arremedando‑lhe uma expressão sinistra, especialmente quando se sorria, em cujas ocasiões essa expressão chegava a ser quase asquerosa. O cabelo era liso e lustroso, excepto nas extremidades, onde arrebitava sobre uma testa baixa e protuberante, condizendo bem com a voz áspera e os modos grosseiros. Tinha cerca de cinquenta e dois, ou cinquenta e três anos e era um pouco mais baixo do que a altura média. Usava um lenço de pescoço, branco, de compridas pontas e um fato preto completo, com as mangas compridas demais e as calças muito curtas. Parecia embaraçado dentro dele, como se estivesse num perpétuo estado de espanto por se encontrar tão respeitável.

Mr. Squeers encontrava‑se num compartimento junto dum dos fogões de sala do café, guarnecido com uma daquelas mesas que geralmente se vêem nos cafés, e duas outras de formas e dimensões extraordinárias, feitas de propósito para encaixar nos ângulos do compartimento. Num canto do banco estava uma mala de pinho muito pequena, atada com um bocado de corda, e em cima da mala empoleirava‑se uma miniatura de rapaz ‑ dando relevo às pernes vestidas com calças de algodão, terminadas por umas botas ‑ com os ombros erguidos até às orelhas e as mãos plantadas nos joelhos, relanceando, timidamente, de vez em quando, para o mestre‑escola, com evidente medo e apreensão.

‑ Três e meia ‑ resmungou Mr. Squeers, voltando as costas à porta e olhando, enfadado, para o relógio do café. ‑ Hoje nã,o vem cá ninguém!

Muito vexado com esta reflexão, Mr. Squeers olhou para o rapaz a ver se ele estava a fazer algu ma coisa que servisse de pretexto para lhe bater. Como parecia que não, contentou‑se em lhe dar um puxão de orelhas, recomendando‑lhe que não tornasse a repetir aquilo.

‑ Na época estival ‑ tornou a resmungar Mr. Squeers, recomeçando os seus lamentos‑trouxe dez rapazes: dez vezes vinte são duzentas libras. Regresso às oito da manhã de amanhã e tenho apenas três ‑ três vezes nada é nada ‑ três vezes dois seis, sessenta libras. O que é feito dos rapazes? O que é que os pais têm na ideia? O que significa isto tudo?

Aqui, o rapazinho que estava em cima da mala, deu um violento espirro.

‑ Olá, sir! ‑ grunhiu o mestre‑escola, voltando‑se. ‑ O que é isso sir?

‑ Nada, sir ‑ respondeu o rapazinho.

‑ Nada, sir: ‑ exclamou Mr. Squeers.

‑ Desculpe‑me, sir, espirrei ‑ replicou o rapaz, tremendo tanto que a mala estremecia debaixo dele.

‑ Oh!, espirrou? ‑ retorquiu Mr. Squeers. ‑ Então porque é que disse nada, sir?

A falta de melhor resposta para a pergunta, o rapazinho escarafunchou os olhos com os nós dos dedos e começou a chorar. Então, Mr. Squeers atirou‑o da mala abaixo com uma bofetada e fê‑lo cair no chão com outra bofetada do outro lado.

‑Espera até eu te levar para o Yorkshire, meu fidalguinho ‑ disse Mr. Squeers ‑ e então dar‑te‑ei o resto. Não pára com esse barulho, sir?

‑ Si. si. sim ‑ suspirou o rapazinho, esfregando fortemente a cara com o lenço de algodão estampado.

‑ Então, cale‑se imediatamente, sir ‑ ordenou Mr. Squeers.

‑ Ouviu?

A este aviso, acompanhado dum gesto ameaçador e proferido com um aspecto selvagem, o rapazinho esfregou a cara com mais força para conter as lágrimas e, alternadamente fungando e sustendo a respiração, não desabafou mais as suas emoções.

‑ Mr. Squeers ‑ chamou o criado, aparecendo nesta ocasião ‑ está um cavalheiro a perguntar por si no bar.

‑ Mande entrar o cavalheiro, Richard ‑ respondeu Mr. Squeers numa voz maviosa. ‑ Meta o lenço na algibeira, seu patife ou mato‑o quando o cavalheiro se for embora.

Mál o mestre‑escola acabara de proferir estas palavras num feroz murmúrio quando o estranho entrou. Simulando não o ver, Mr. Squeers fingiu estar a consertar uma pena, dando um conselho benevolente ao seu jovem pupilo.

‑ Meu querido filho ‑ disse Mr. Squeers ‑ toda a gente tem as suas provas. Esta tua prova precoce faz com que o teu coraçãozinho estale e os teus olhos inchem de choro. Mas o que é isso? Nada; menos do que nada. Deixas os teus amigos, mas encontras em mim um pai e uma mãe em Mrs. Squeers. Na deliciosa vila de Dotheboys, perto de Greta Bridge, no Yorkshire, a ttia mocidade é alimentada, vestida, instruída, lavada, fornecida de dinheiro para pequenas despesas, provida de tudo quanto é necessário.

‑ O cavalheiro é Mr. Squeers, creio eu ‑ disse o estranho, calando o mestre‑escola na repetição do anúncio.

‑ O mesmo, sir ‑ respondeu Mr. Squeers, fingindo uma extrema surpresa.

‑ Foi o cavalheiro quem anunciou no Times?

‑No Morning Post, Chronicle, Herald e no Advertiser, referente à Academia chamada Dotheboys fiall, na deliciosa vila de Dotheboys, perto de Greta Bridge, no Yorkshire ‑ acrescentou Mr. Squeers. ‑ Vem para negócios, sir? Vejo pelos meus jovens amigos. Como vão, meus meninos? E como passa, sir? ‑ Com esta saudação Mr. Squeers deu umas palmadinhas na cabeça dos dois rapazinhos, fraquitos e de olhos encovados, que a visita trouxera consigo e estava à espera de mais comunicações.

‑Trabalho em óleos e tintas. O meu nome é Snawley, sir ‑ informou o estranho.

Squeers inclinou a cabeça como quem diz, é um nome notavelnente bonito também. O estranho continuou:

‑Tenho estado a pensar, Mr. Squeers, em colocar os meus dois rapazes na sua escola.

‑ Não podia fazer melhor, sir ‑ replicou Mr. Squeersmas não creio que o devesse dizer.

‑ Bem! ‑ disse o outro. ‑ Vinte libras por ano, creio que é, Mr. Squeers?

‑ Guinéus ‑ retorquiu o mestre‑escola com um sorriso persuasivo.

‑ Libras pelos dois, penso eu, Mr. Squeers ‑ disse Mr. Snawley solenemente.

‑ Não me parece que isso se possa fazer, sir ‑ respondeu Squeers, como se nunca tivesse considerado antes a proposta.

‑Deixa‑me ver! Quatro vezes cinco são vinte, dobre isso e deduza a. bem, uma libra a mais ou a menos não faz diferença entre nós. Deve recomendar‑me aos seus conhecimentos, sir, e compense‑me dessa forma.

‑ Não são grandes comedores ‑ informou Mr. Snawley.

‑ Oh, isso não tem importância nenhuma ‑ replicou Squeers. ‑ No meu estabelecimento não tomamos em consideração o apetite dos rapazes.

Isto era estritamente verdade; não tinham consideração nenhuma.

‑Toda a saudável sumptuosidade, sir, que o Yorkshire pode oferecer ‑ continuou Squeers ‑ toda a beleza moral que Mrs. Squeers possa instilar; toda. em resumo, todo o conforto dum lar que um rapaz possa desejar, terão eles, Mr. Snawley.

‑Desejava que se atendesse particularmente à moral deles ‑ opinou Mr. Snawley.

‑ Estou satisfeito com o que me diz, sir ‑ retorquiu o mestre ‑ escola, levantando‑se. ‑ Para moral vieram para o preciso estabelecimento de ensino, sir.

‑ O senhor próprio é um homem de moral ‑ disse Mr. Snawley.

‑ Creio bem que sou, sir ‑ replicou Squeers.

‑ Tenho a satisfação de saber que é, sir ‑ afirmou Mr. Snawley. ‑ Perguntei a uma das suas referências e ele disse‑ me que o senhor é piedoso.

‑ Bem sir, julgo‑me um pouco assim ‑ respondeu Squeers.

‑ Também creio que o sou ‑ retorquiu o outro. ‑ Posso dizer‑lhe umas palavras em particular?

‑ Com todo o prazer! ‑ retorquiu Squeers, com um sorriso. ‑ Meus queridos, ficam a falar com o vosso novo companheiro de brinquedos por um minuto ou dois! Aquele é um dos meus rapazes, sir. O seu nome é Belling. um rapaz terrível, sir.

‑ De verdade? ‑ perguntou Mr. Snawley, olhando para o pobre garotito como se fosse um objecto de extraordinária curiosidade.

‑Vai amanhã comigo para baixo, sir‑informou Squeers. Onde ele está sentado é a sua bagagem. Ca rapaz é obrigado a levar dois fatos completos, seis pares de peúgas, dois barretes de dormir, dois lenços, dois pares de sapatos, dois chapéus e uma navalha de barba.

‑ Uma navalha de barba! ‑ exclamou Mr. Snawley quando iam para o compartimento vizinho. ‑ Para quê?

‑ Para se barbearem ‑ respondeu Squeers, num tom baixo e comedido.

Estas três palavras não diziam muito, mas houve qualquer coisa na maneira em como foram ditas que atraiu a atenção porque o mestreescola e o seu companheiro olharam fixamente um para o outro durante uns segundos e depois trocaram um sorriso compreensivo. Snawley era um homem nédio, de nariz chato vestido de cores sombrias de polainas pretas e nos seus modos, uma expressão de muita mortificação e santidade, por isso o seu sorriso, sem qualquer razão clara, era muito de notar.

‑Então até que idade conserva os rapazes na escola ‑ perguntou por fim.

‑Até que os seus amigos deixem de fazer os pagamentos trimestrais ao meu agente na Escola, ou até à altura de fugirem ‑ respondeu Squeers. ‑ Entendâmo‑nos mutuamente; vejo que o podemos fazer sem perigo. Quem são estes rapazes. filhos naturais?

‑ Não ‑ retorquiu Snawley, encontrando a vista perscrutadora do único olho do mestre‑escola. ‑ Não são.

‑ Pensei que fossem ‑ disse Squeers friamente. ‑ Temos uma grande quantidade deles; aquele rapaz é um.

‑ O do compartimento ao lado? ‑ inquiriu Snawley. Squeers baixou a cabeça afirmativamente e o seu compa nheiro deitou outra vista de olhos para o rapazinho sentado na mala e, voltando‑se novamente, parecia desapontado por lhe parecer igual aos outros; afirmou que, dificilmente, o teria acreditado.

‑ Mas é! ‑ exclamou Squeers. ‑ E acerca dos seus rapazes; queria falar comigo?

‑ Queria ‑ replicou Snawley. ‑ O facto é que eu não sou pai deles, Mr. Squeers. Sou apenas padrasto.

‑ Oh! Ah! Sim? ‑ perguntou o mestre‑escola. ‑ Isso explica o caso imediatamente. Estava a achar extraordinário para que diabo os ia mandar para o Yorkshire. Ah! Agora compreendo.

‑ Bem vê, casei com a mãe ‑ continuou Snawley ‑ e é muito dispendioso ter rapazes em casa, e como ela tem alguma coisa de seu receio. as mulheres são tão loucas, Mr. Squeers. Creio que seja levada a gastar muito dinheiro com eles, o que seria uma ruína.

‑ Estou a ver ‑ replicou Squeers, atirando‑se para trás na cadeira e gesticulando.

‑ Por isso ‑ continuou Snawley ‑ resolvi metê‑los numa escola bastante distante, onde não haja férias, nem aquelas idas a casa duas vezes por ano, que tanto transtornam as cabeças das crianças, podendo até fazê‑las perder um pouco da disciplina compreende?

‑Que os pagamentos sejam regulares e não se pergunta mais nada! ‑ disse Squeers, com um gesto de cabeça.

‑ isso, exactamente! ‑ replicou o outro. ‑ Que a moral seja estritamente atendida.

‑ Estritamente ‑ garantiu Squeers.

‑Suponho que não é permitida muita correspondência com a família. ‑ disse o padrasto, hesitante.

‑ Nenhuma, excepto uma circular pelo Natal, a dizer que nunca se sentiram tão felizes e terem esperança de não ser mandados embora ‑ declarou Squeers.

‑ É uma ideia admirável ‑ afirmou o padrasto, esfregando as mãos.

‑ Então, como nos compreendemos um ao outro ‑ disse Squeers ‑ há‑de permitir‑me que lhe pergunte se me considera um exemplo de alta virtude e um homem de boa conduta na vida particular; e se, como uma pessoa cujo negócio consiste em tomar conta da juventude, coloca a maior confiança na minha impecável integridade, liberdade, princípios religiosos e capacidade.

‑ Certamente que sim ‑ respondeu o padrasto, com um sorriso.

‑ Tem alguma objecção a fazer se eu der o seu nome como referência?

‑ Absolutamente nenhuma!

‑ É gentileza sua ‑ afirmou Squeers, agarrando numa pena. ‑ Isto é fazer negócio e é do que eu gosto.

Tendo anotado a morada de Mr. Snawley, o mestre escola teve a seguir a missão mais agradável de passar o recibo do pagamento adiantado, referente ao primeiro trimestre. Mal o completara, quando outra vez se fez ouvir uma pessoa a perguntar por Mr. Squeers.

‑ Estoù aqui! ‑ respondeu o mestre‑escola. ‑ De que se trata?

‑ Apenas uma questão de negócios, sir ‑ informou Ralph Nickleby apresentando‑se, seguido de perto por Nícholas. Veio um anúncio seu nos jornais desta manhã?

‑ Exactamente, sir. Por aqui, se faz favor! ‑ convidou Squeers, que entrando, voltara ao compartimento ao pé do fogão. ‑ Não se quer sentar?

‑ Parece‑me que aceito ‑ respondeu Ralph, juntando o gesto à palavra e colocando o chapéu na mesa defronte de si Este é o meu sobrinho, Mr. Nicholas Nickleby.

‑ Como passa, sir? ‑ cumprimentou Squeers.

Nicholas inclinou‑se, disse que passava muito bem e pareceu muitíssimo admirado com a aparência exterior do proprietário de Dotheboys Hall.

‑ Já não se lembra de mim? ‑ inquiriu Ralph,olhando fixamente para o mestreescola.

‑ O senhor pagou‑me uma pequena quantia em cada uma das minhas visitas semanais à cidade,há alguns anos atrás creio eu,sir ‑ respondeu Squeers.

‑ Paguei ‑ confirmou Ralph ‑ Pelos pais dum rapaz chamado Dorker, que infelizmente...

‑ Infelizmente morreu em Dotheboys Hall ‑ disse Ralphconcluindo a frase.

‑ Lembro‑me muito bem, sir ‑ retorquiu Squeers. ‑ Ah!

Mrs. Squeers tinha um fraco por esse rapaz como se fosse seu!

A atenção,sir,que ela dedicou ao garoto na sua doença! Todas as noites e todas as manhãs lhe oferecia torradas e chá quente quando ele não podia engolir ‑ uma vela no seu quarto na noite em que morreu ‑ um prazer rememorar o dever que alguém cumpriu para com ele.

Ralph sorriu como se não tivesse outra intenção senão sorrir e olhou em volta para os estranhos presentes.

‑ São apenas alguns dos meus pupilos ‑ informou Wackford Squeers,apontando para o rapazinho em cima da mala e para os outros dois que tinham estado a olhar um para o

outro,sem proferir palavra e movendo se nas mais extraordinárias contorsões, como é costume dos rapazitos quando querem dizer alguma coisa.

‑Este cavalheiro,sir,é um pai que teve a gentileza de me cumprimentar pela educação administrada em Dotheboys

Hall, que está situado, sir, na deliciosa vila de Dotheboysperto de Greta Bridge,no Yorkshire,onde a mocidade é alimentada,vestida,leccionada,provida de dinheiro para pequenas despesas...

            ‑ Sim, sabemos tudo acerca disso, sir – interrompeu Ralph,um pouco aborrecido. ‑ Vem no anúncio...

‑ Tem razão,sir; vem no anúncio ‑ replicou Squeers.

‑ E além disso é um facto sabido ‑ acrescentou Mr. Snawley. ‑ Sinto‑me obrigado a assegurar‑lhe,sir,e tenho orgulho em ter esta oportunidade para lhe assegurar,sir,que considero Mr. Squeers um cavalheiro altamente virtuoso,exemplar, de boa conduta e...

‑Não tenho dúvida disso ‑ disse Ralph,interrompendo a torrente de informações. ‑ Não tenho dúvidas a tal respeito.

E se tratássemos do nosso negócio?

‑ Com todo o prazer, sir ‑ afirmou Squeers. – Nunca adiar os negócios é precisamente a primeira lição que insuflamos aos alunos do curso comercial. Mister Belling,meu querido,lembre‑se sempre disso,ouviu?

‑ Sim,sir ‑ afirmou Mister Belling.

‑ Lembre‑se disso? ‑ perguntou Ralph.

‑ Diga a estes senhores ‑ convidou Squeers.

‑ Nunca ‑ repetiu Mister Belling.

‑ Muito bem ‑ aprovou Squeers. ‑ Continue.

‑ Nunca... ‑ repetiu de novo Mister Belling.

‑ Está muito bem, decerto ‑ disse Squeers. ‑ Sim.

‑ Adi. ‑ soprou Nicholas, bem intencionado.

‑Adiar... um negócio! ‑ gaguejou Master Belling. ‑ Executar. um negócio!

‑ Muito bem, sir! ‑ retorquiu Squeers, dardejando um olhar de estarrecer ao delinquente. ‑ Os dois faremos um negociozinho na nossa conta particular.

‑ E agora ‑ interpôs Ralph ‑ talvez sej a melhor transaccionarmos o nosso.

‑ Se quiser. ‑ aquiesceu Squeers.

‑ Bem ‑ continuou Ralph ‑ é bastante breve: o que depressa se enceta, facilmente se acaba. Anunciou que precisava dum assistente competente, sir?

‑ Precisamente ‑ confirmou Squeers.

‑ E, realmente, precisa.

‑ Com toda a certeza ‑ respondeu Squeers.

‑ Aqui o tem! ‑ declarou Ralph. ‑ O meu sobrinho Nicholas recém‑saído da escola, com a cabeça a fermentar de tudo quanto aprendeu e sem nada a fermentar‑lhe nas algibeiras, é jùstamente o homem que precisa.

‑ Receio. ‑ disse Squeers, perplexo com tal oferta de serviços por parte dum jovem, com a figura de Nicholas tenho medo que não me convenha.

‑ Sim, há‑de convir‑lhe ‑ afirmou Ralph. ‑ Sei isso perfeitamente! Não desanúne, sir em menos duma semana estará a leccionar todos os jovens fidalgos em Dotheboys Hall, a não ser que este cavalheiro seja mais teimoso do que julgo.

Receio, sir ‑ avançou Nicholas, dirigindo‑se a Mr. Squeers‑ que ponha objecção à minha juventude e por não ser licenciado em Letres.

‑ A falta dum diploma é um obstáculo ‑ replicou Squeers, olhando com a gravidade que lhe foi possível e consideravelmente intrigado não só pelo contraste entre a simplicidade do sobrinho e as maneiras mundanas do tio, mas também pela incompreensível alusão aos jovens fidalgos sob a sua tutela.

‑ Ouça, sir ‑ retorquiu Ralph. ‑ Vou pôr este assunto a claro em dois segundos.

‑ Se quiser ter a bondade ‑ respondeu Squeers.

‑Este é um rapaz, um jovem, um moço, um homem novo, um adolescente, ou o que lhe queira chamar; tem dezoito anos, dezanove, ou por aí perto ‑ disse Ralph.

‑ Isso vejo eu! ‑ observou o mestre escola.

‑ Também eu ‑ secundou Mr. Snawley, pensando ser bom apoiar o seu amigo de ocasião.

‑O pai morreu, ele ignora completamente o mundo, não tem recursos nenhuns e quer fazer alguma coisa ‑ informou Ralph. ‑ Recomendo‑o a este seu esplêndido estabelecimento como uma oportunidade para fazer fortuna. Compreende?

‑ Toda a gente compreende ‑ replicou Squeers, imitando o olhar irónico com que o outro fitava o seu ingénuo parente.

‑ Decerto. compreendo ‑ informou Nicholas, entusias mado.

‑ O senhor observa como ele compreende facilmente ‑ disse Ràlph, no mesmo tom seco e brusco ‑ Se qualquer ca pricho o levar a abandonar esta extraordinária oportunidade antes de adquirir a perfeição, considero‑me absolvido de continuar a auxiliar a mãe e a irmã. Olhe para ele e pense na utilidade que pode ter para si em meia dúzia de formas! Agora a questão é se, em todo o caso, num futuro próximo não servir para os seus fins, melhor do que vinte deste género o senhor terá nas circunstâncias ordinárias. Não é uma questão a con siderar?

‑ Sim, é ‑ respondeu Squeers replicando com uma incli nação de cabeça a idêntico sinal de Ralph.

‑ Bem ‑ retorquiu este. ‑ E agora desejo dizer‑lhe duas palavras em particular.

As duas palavras foram ditas à parte e uns minutos de pois, Mr. Wackford Squeers anunciava que Mr. Nicholas Nickleby estava desde aquele momento, nomeado na categoria de primeiro assistente de Dotheboys Hall.

‑ Isto dev‑se à recomendação do seu tio Mr. Nickleby ‑anunçiou Wackford Squeers.

Nicholas, radiante com o seu êxito, apertou cordialmente a mão do tio e quase adorou Squeers desde aquela ocasião.

‑ É um homem singular ‑ pensou Nicholas. ‑ O que tem isso? Porson também era um homem singular, assim como o Doutor Johnson! Todos estes coca bichinhos o são.

‑A diligência parte amanhã às oito horas da manhã Mr. Nickleby ‑ avisou Squeers. ‑ O senhor deve estar aqui um quarto de hora antes, porque levamos estes rapazes connosco.

‑ Certamente sir ‑ respondeu Nicholas.

‑ E já paguei o seu bilhete ‑ grunhiu Ralph. ‑ Por isso não tem mais do que instalar‑se confortavelmente.

Outro exemplo da generosidade do tio! Nicholas sentiu uma ternura tão grande, que não encontrava palavras para lhe agradecer. Na verdade, ainda não encontrara as suficientes quando se despediram do mestre‑escola e sairam pelo portão de Saraceen's Head.

‑ Estarei aqui de manhã para assistir à sua partida ‑ disse Ralph. ‑ Não me esquivo!

‑ Obrigado, sir ‑ agradeceu Nicholas. ‑ Nunca esquecerei a sua amabilidade.

‑ Oxàlá que não esqueça respondeu o tio. ‑ Agora é melhor ir para casa fazer a mala. Parece‑lhe saber o caminho para Golden Square?

‑ Certamente ‑ afirmou Nicholas. ‑ Posso perguntar.

‑ Então, leve estes papéis ao meu empregado ‑ recomen dou Ralph, entregandolhe um pequeno pacote ‑ e diga‑lhe para esperar até eu chegar a casa.

Nicholas encarregou‑se alegremente da comissão e, despedindo‑se afectuosamente do seu generoso tio ‑ ao que ele correspondeu com um grunhido ‑ afastou‑se apressadamente para executar o recado.

Encontrou Golden Square sem dificuldade. Mr. Noggs, que tinha ido a um encontro, por um ou dois minutos, estava a abrir a porta quando ele chegou à escada.

‑ O que é isso? ‑ perguntou Noggs, apontando para o embrulho.

‑ Papéis do meu tio ‑ respondeu Nicholas ‑ e o senhor terá a bondade de esperar até ele chegar, se faz favor.

‑ Tio? ‑ exclamou Noggs.

‑ Mr. Nickleby ‑ explicou Nicholas.

‑ Entre ‑ convidou Newman.

Sem dizer mais nada, encaminhou Nicholas para o corredor e dali para a despensa transformada em escritório, onde lhe imdicou uma cadeira e, depois, subindo para o seu banco, como se fosse uma torre de observação, sentou‑se com os braços pendentes e fitou o rapaz, com estranheza.

‑ Não tem resposta ‑ observou Nicholas, pondo o pacote em cima da mesa, a seu lado.

Newman não disse nada mas, cruzando os braços e atirando a cabeça para a frente, a fim de ver melhor a cara de Nicholas, perscrutou‑lhe as feições.

‑ Não tem resposta ‑ repetiu Nicholas, falando mais alto, com a impressão de que Noggs fosse surdo.

Newman pôs as mãos nos joelhos e, sem proferir uma sílaba, continuou a observar a cara do companheiro.

Isto era um procedimento singular da parte duma pessoa completamente estranha, cuja cara era tão peculiar, que Nicholas, que tinha um vivo sentido do ridículo, não pôde deixar de sorrir quando perguntou se ele tinha algumas ordens para lhe dár.

Noggs abanou a cabeça e suspirou. Então, Nicholas levantou‑se, notando não precisar de descansar e desejou‑lhe bom dia.

Foi um grande esforço para Newman Noggs, e ninguém soube até esse dia como ele foi capaz de o fazer ‑ visto Nicholas o desconhecer inteiramente ‑ porém, soltou um suspiro e perguntou em voz alta e sem parar uma só vez, se não se importava de lhe dizer o que o tio ia fazer por ele.

Nicholas não se importava de maneira alguma; antes pelo contrário. Tinha muito prazer em encontrar ocasião para conversar sobre o assunto que lhe ocupava o pensamento. Assim, sentou‑se novamente e com a imaginação ardente a aquecer enquanto falava, entrou numa descrição calorosa e veemente de todas as honras e vantagens que haviam de advir da sua nomeação para o lugar de professor em Dotheboys Hall.

‑ Mas o que se passa?. Está doente?. ‑ perguntou Nicholas de repente, interrompendo‑se, porque o companheiro, depois de tomar as mais variadas e extravagantes atitudes, metera as mãos debaixo do braço e fazia estalar os nós dos dedos como se estivesse a quebrar todos os ossos das mãos.

Newman Noggs não respondeu, continuou a encolher os ombros e a estalar os nós dos dedos, sorrindo horrivelmente durante todo o tempo e olhando com firmeza para o vácuo, com uma expressão horrorosa.

Primeiro, Nicholas pensou que o homem estava com uma convulsão mas depois de pensar melhor, calculou que devia ser efeito do álcool e por isso achou melhor retirar‑se imediatamente. Quando abriu a porta da rua olhou para trás. Newman Noggs continuava a fazer os mesmos gestos estranhos, soando mais alto do que nunca, o estalar dos seus dedos.

 

NICHOLAS PARTE PARA YORKSHIRE

Trata‑se da sua despedida, dos seus companheiros de viagem e do que lhes aconteceu no caminho

Se as lágrimas fossem tratamentos para preservar o seu dono da tristeza e do infortúnio, Nicholas Nickleby teria começado a sua situação sob os mais felizes auspícios. Havia muito que fazer e pouco tempo disponível; muitas palavras para dizer, mas a dor do coração impedia que fossem proferidas. As mil e uma coisas que os cuidados da mãe e da irmã achavam indispensáveis para o seu conforto, insistia Nicholas em deixá‑las para serem convertidas em dinheiro, se fosse preciso. Mil e uma afectuosas discussões a este respeito se travaram na triste noite que precedeu a sua partida.

A mala, por fim, foi dada por pronta e depois veio a ceia, tão delicadamente preparada para o momento, à custa da abstinência do jantar da mãe e de Kate que fingiram comê‑lo enquanto Nicholas estivera ausente. O pobre rapaz não se sentia com nenhuma vontade de compartilhar e forçou uma gargalhada melancólica. E assim estiveram até à hora da separação; a noite ia custar‑lhe a passar.

Nicholas dormiu até às seis horas da manhã e levantou‑se vivo e alegre. Escreveu umas linhas a lápis a despedir‑se, pois receava fazê‑lo de viva voz e deixando‑as com metade do seu parco dinheiro ‑ à porta da irmã ‑ pôs a mala ao ombro e desceu as escadas.

‑ És tu, Hannah? ‑ perguntou uma voz vinda de sala de Miss La Creevy, onde brilhava a luz duma vela.

‑ Sou eu, Miss La Creevy ‑ respondeu Nicholas, pondo a mala no chão e olhando para dentro.

‑Deus nos ajude! ‑ exclamou Miss La Creevy, erguendo‑se e levando a mão aos papelotes. ‑ Levantou‑se muito cedo, Mr. Nickleby.

‑ E a senhora também! ‑ ripostou Nicholas.

‑É a arte que me atira para fora da cama, Mr Nickleby!

‑ retorquiu a senhora. ‑ Estou à espera da claridade para pôr uma ideia em execução.

            Miss La Creevy levantara‑se cedo para pôr um nariz de fantasia na miniatura dum rapazinho feio, destinada à avó, que estava na provímcia, por esperarem que ela lhe legasse a fortuna se fosse parecido com a família.

            ‑ Para pôr uma ideia em execução! ‑ repetiu Miss La Creevy. ‑ E é essa a grande conveniência de se viver num grande centro como o Strand. Quando preciso dum nariz ou dum olho para qualquer trabalho especial, basta‑me olhar para fora da janela e esperar até aparecer o que quero.

            ‑ Leva agora muito tempo a arranjar um nariz? ‑ inquiriu Nicholas a sorrir.

            ‑ Isso depende em grande parte do modelo ‑ replicou Miss La Creevy. ‑ Arrebitados e romanos há bastantes; háos chatos de todos os feitios e tamanhos nas reuniões em Exeter HAll; mas, perfeitamente aquilinos, sinto dizê‑lo, são raros e, geralmente, usâmo‑los para os militares e para os políticos.

            ‑Pois se encontrar algum na minha viagem, farei o possível para o esboçar para si ‑ disse Nicholas.

            ‑Quer dizer que vai realmente para Yorkshire com este tempo invernoso, Mr. Nickleby? ‑ perguntou Míss La Creevy.A noite passada ouvi falar a esse respeito.

            ‑ Vou, de facto ‑ respondeu Nicholas. ‑ A necessidade obriga, como sabe, quando somos dirigidos por alguém. A necessidade é o meu condutor e somente outro nome do mesmo cavalheiro.

            ‑ Sinto muito; é tudo quanto posso dizer ‑ replicou Miss La Creevy. ‑ E muito mais por causa da sua mãe e da sua irmã do que por si. A sua irmã é uma menina muito bonita, Mr. Nickleby, não demais para haver alguém para a proteger. Persuadi‑a a conceder‑me uma ou duas sessões para a miniatura dela servir de reclame na montra da rua. Ah!, há‑de dar uma linda miniatura!

            Enquanto falava, a cara de miss La Creevy parecia de marfim, sulcada de veias azuis muito pronunciadas e tinha uma atitude de complacência, que Nicholas invejou.

            ‑Se tiver ocasião de ser amável para com Kate, creio que o será ‑ disse Nicholas, estendendo‑lhe a mão.

            ‑ Conte comigo ‑ afirmou a pintora ‑ e Deus o groteja, Mr. Nickleby! Desejo‑lhe muitas felicidades!

            Nicholas conhecia muito pouco do mundo, mas pareceu‑lhe que se desse um beijo a Miss La Creevy, talvez a dispusesse melhor a favor dos seus. Assim, deu‑lhe três ou quatro, com uma espécie de delicada galantaria que pareceu não desagradar a Miss La Creevy.

            Tendo terminado desta maneira a inesperada entrevista, Nicholas Nickleby afastou‑se rapidamente de caSa e encontrou um carregador para lhe levar a mala. Depressa chegou a Snow Hill. Tendo despedido o moço e vendo a mala no escritório da agência, olhou para dentro do café, à procura de Mr. Squeers.

            Encontrou o letrado cavalheiro sentado, a tomar o pequeno almoço, com os três rapazinhos de que já falámos e mais 33 outros dois arranjados no dia anterior por uma viragem da sorte. Mr Squeers tinha defronte de si uma pequena quantidade de café,um prato com torradas quentes e um bocado de bife frio; mas naquele instante,intentava preparar o pequeno almoço para os rapazinhos.

‑ Isto são dois pence de leite,rapaz? ‑ perguntou Mr. Squeers,olhando para uma grande tijela azul e inclinando‑a para ver exactamente o líquido contido.

‑ São dois pence,sir ‑ confirmou o criado.

‑ Que artigo tão raro é o leite em Londres! – observou Mr. Squeers com um suspiro. ‑ Encha esta tijela com água morna,William!

‑ Até mesmo acima, sir? ‑ inquiriu o criado. ‑ Então o leite ficará aguado.

‑ Não se importe com isso! ‑ replicou Mr Squeers: Sirva‑o assim por ser tão caro. Já encomendou as fatias grossas de pão com manteiga,para três?

‑Vêm já aí,sir.

‑ Não precisava de se apressar ‑ observou Squeers. – Há muito tempo. Dominem as vossas paixões,rapazes,e não estejam ansiosos pela comida!                   

Ao mesmo tempo que proferia estas palavras,Mr. Squeers servia‑se duma grande fatia de carne fria e reconheceu Nicholas.                  

‑ Sente‑se, Mr. Nickleby ‑ convidou ele. ‑ Como vê,estamos a tomar o pequeno almoço!

Nicholas não viu pessoa alguma a comer excepto Mr. Squeers,mas curvou‑se numa reverência e mostrou‑se o mais alegre possível.

‑ Isto é o leite e água, não é, William? – perguntou Squeers. ‑ Muito bem; não se esqueça agora do pão com manteiga.

A esta nova menção do pão com manteiga,os cinco rapazinhos mostraram‑se ansiosos e seguiram o criado com os olhos; entretanto Mr. Squeers provava o leite com água.

‑ Ah! ‑ exclamou ele,lambendo os beiços. ‑ Isto é uma beleza! Pensem nos muitos pedintes e órfãos que vegetam por essas ruas, como seriam felizes com isto,meus rapazes. Um esfomeado é uma coisa chocante,não é,Mr. Nickleby?

‑ Muito chocante,sir ‑ concordou Nicholas.

‑ Quando eu disser número um ‑ continuou Squeers,pondo a tijela em frente das crianças‑o rapaz da esquerda próximo da janela, pode tomar um golo; quando eu disser número dois o rapaz a seguir segue‑lhe o exemplo e assim por diante até ao número cinco, que é o último. Estão prontos?

‑ Sim,sir! ‑ gritaram todos com grande avidez.

‑ Muito bem ‑ disse Squeers,continuando calmamente a comer. ‑ Estejam preparados até eu dizer para começarem.

Subjuguem os vossos apetites,meus queridos,e terão dominado a natureza humana. Esta é a forma de adquirir força de vontade,Mr. Nickleby ‑ acrescentou o mestre‑escola,voltando‑se para Nicholas e falando com a boca cheia de carne e torrada.

Nicholas, em resposta, murmurou qualquer coisa ‑ nem ele soube o quê ‑ e os rapazinhos dividindo o olhar entre a tijela, o pão com manteiga que por esta altura já tinha chegado e por cada garfada que Mr. Squeers metia na boca, ficaram com os olhos doridos pelos tormentos da expectativa.

‑ Agradeçamos a Deus o bom pequeno almoço! ‑ exclamou Squeers, quando acabou. ‑ Número um, beba um golo.

O número um agarrou na tijela vorazmente e bebeu o suficiente para desejar mais, quando Mr. Squeers deu o sinal para o número dois, o qual a passou para o número trés também no mesmo momento cruciante e o processo repetiu‑se até o leite com água ter terminado no número cinco.

‑ E agora ‑ avisou o mestre‑escola, dividindo o pão com manteiga para trés, em tantas porções quantas eram as crianças ‑ aviem‑se com o vosso pequeno almoço, pois a buzina toca daqui a um minuto ou dois e nesse momento todos seguem para a diligência.

Sendo dada assim a permissão para cair sobre a presa, os rapazes começaram a comer vorazmente e com uma pressa desesperada, enquanto o mestre‑escola, que estava de muito bom humor depois da refeição, palitava os dentes com o garfo e olhava sorridente. Dali a pouco, ouviu‑se a buzina.

‑ Pensava que não levaria tanto tempo ‑ disse Squeers, levantando‑se e tirando um pequeno cesto debaixo do banco. Ponham aqui o que não tiveram tempo para comer, rapazes! No caminho hão‑ de precisar dele.

Nicholas estava surpreendido com estas disposições económicas, mas não teve tempo para reflectir nelas, porque os rapazinhos tinham de subir para a diligência, com as suas malas. A bagagem de Mr. Squeers tinha de ser cuidadosamente colocada debaixo da almofada do cocheiro, e todas estas coisas eram da sua competência. Nicholas estava muito ocupado em concluir estas operações quando o tio, Mr. Ralph Nickleby, o abordou.

‑ Oh! Aqui está, sir! ‑ disse Ralph. ‑ Aqui tem a sua mãe e a sua irmã, sir.

‑ Onde? ‑ perguntou Nicholas, olhando vivamente em redor.

‑ Aqui! ‑ respondeu o tio. ‑ Tendo muito dinheiro e não sabendo que aplicação lhe dar, estavam a pagar cabriolé, sir!

‑ Receávamos chegar atrasadas antes de o vermos separar‑se de nós ‑ explicou Mrs. Nickleby, abraçando o filho, indiferente às espreitadelas que deitavam do pátio.

‑ Muito bem, ma'am ‑ retorquiu Ralph. ‑ A senhora é o melhor juiz da causa. Eu limitei‑me a dizer que a senhora alugara um cabriolé. Eu nunca paguei um cabriolé, ma'am; nunca aluguei nenhum! Há trinta anos que não me meto num cabriolé alugado por mim e espero que o mesmo suceda nos outros trinta, se viver tanto tempo.

‑ Nunca me perdoaria se não viesse despedir‑me! ‑ desculpou‑se

Mrs. Nickleby. ‑ Pobre querido rapaz. ir‑se embora, sem o pequeno almoço com receio de nos importunar!

‑ Isso é muitíssimo enternecedor! ‑ disse Ralph com ironia. ‑ Quando fui pela primeira vez para o trabalho, ma'am, comia um péni de pão e bebia uma medida de leite ao meu pequeno almoço, vindo a pé todas as manhãs para a cidade. O que diz a isto, ma'am? Pequeno almoço!

‑ Agora, Nickleby ‑ disse Squeers, chegando neste mo mento a abotoar o sobretudo. ‑ Creio que era melhor ir lá em cima, atrás. Tenho medo que algum rapaz caia e então lá se iam vinte libras por ano.

‑ Querido Nicholas ‑ sussurrou Kate tocando no braço do irmão. ‑ Quem é este homem ordinário?

‑ Então! ‑ rosnou Ralph, cujos ouvidos sensíveis apanharam a pergunta. ‑ Deseja que lhe apresente Mr. Squeers, minha querida?

‑ O mestre‑escola! Não, tio! Oh, não! ‑ respondeu Kate, recuando.

‑Estou certo de que já lhe ouvi o suficiente, minha querida ‑ retorquiu Ralph no seu modo sarcástico e frio. ‑ Mr. Squeers, esta é a minha sobrinha. . a irmã de Nicholas.

‑ Muito prazer em conhecê‑la, miss ‑ disse Mr. Squeers, erguendo o chapéu uma ou duas polegadas. ‑ Era uma festa para Mrs. Squeers se tivéssemos a senhora como professora. No entanto, não sei se ela não se tornaria ciumenta.

Se o proprietário de Dotheboys Hall pudesse saber o que se passava no peito do seu assistente nesse momento descobriria com certa surpresa que ele nunca sentira tanto desejo na sua vida, de dar uma boa sova, como naquele momento. Kate Nickleby, tendo uma rápida percepção das emoções do irmão, afastou‑se suavemente, evitando assim que Mr. Squeers notasse o facto.

‑ Meu querido Nicholas ‑ disse a irmã. ‑ Quem é este homem? Que género de lugar é esse para onde vais?

‑ Não sei, Kate ‑ respondeu Nicholas, apertando-lhe a mão. ‑ Suponho que a gente de Yorkshire é rústica e descortês.

‑ Mas. este homem? ‑ insistiu Kate.

‑É o meu patrão, director, ou qualquer coisa do género ‑ respondeu Nicholas rapidamente ‑ e sou um burro em levar a mal a sua grosseria. Mostram‑se todos assim e é tempo de ir para o meu lugar. Deus te proteja, meu amor e adeus! Mãe, espero que nos reunamos outra vez, qualquer dia! Adeus, tio! Agradeço imenso tudo quanto fez e tudo quanto possa fazer! Estou pronto, sir!

Com estas despedidas apressadas, Nicholas subiu com ligeireza para o seu lugar e acenou com a mão com tanto entusiasmo, como se nesse gesto lhes enviasse também o coração.

Neste momento, quando o cocheiro e o condutor estavam a comparar as notas pela última vez, antes da partida, a respeito das guias de bagagens; quando os carregadores extorquiam os últimos relutantes seis pence, os rapazes dos jornais faziam a última oferta dos jornais da manhã e os cavalos sacudiam os arreios com impaciência, Nicholas sentiu alguém a puxar‑lhe suavemente a perna. Olhou para baixo e viu Newman Noggs, que lhe meteu na mão, uma carta suja.

‑ O que é isto? ‑ perguntou Nicholas.

‑ Cale‑se! ‑ pediu Noggs, apontando para Mr. Ralph Nickleby que, a certa distância, conversava animadamente com Squeers. ‑ Tome‑a! Leia‑a! Ninguém sabe! Mais nada!.

‑ Pare! ‑ gritou Nicholas.

‑ Não! ‑ respondeu Noggs.

Nicholas gritou de novo para ele parar, mas Newman Noggs foi‑se embora.

Um minuto de desordem, o bater das portas da diligência, a inclinação do veículo para um lado quando o pesado cocheiro e o ainda mais pesado condutor treparam para os seus lugares, um grito de tudo pronto, uns poucos de toques de buzina, um rápido relancear por duas ou trés caras tristes que ficavam, as feições duras de Mr. Ralph Nickleby. e a diligência partiu, fazendo um grande ruído nas pedras de Smithfield.

As pernas dos rapazinhos eram curtas demais para os pés descansarem em cima de qualquer coisa, quando estavam sentados, tendo os seus corpitos, por consequência, em risco eminente de serem projectados para fora do carro, e por isso Nicholas teve bastante que fazer, para os segurar. Entre o trabalho corporal e a ansiedade mental a desenvolver no seu mister, sentiu‑se bastante aliviado quando a diligência parou em Peacock, na Irlington. Mais aliviado ainda quando um cavalheiro bem parecido, com uma cara muito bem humorada e de cor sadia, se empoleirou atrás e propõs sentar‑se no outro canto do assento.

‑ Se puséssemos alguns destes jovens no meio ‑ alvitrou o recém‑chegado ‑ iam melhor guardados no caso de adormecerem, não acha?

‑ Se quiser ter essa bondade, sir ‑ respondeu Squeer ‑ sserá muito bom.

‑Mr. Nickleby, ponha três dos rapazes entre si e este cavalheiro. O Belling e o mais novo dos Snawley podem sentár‑se entre mim e o condutor! Três crianças ‑ acrescentou Squeers, explicando ao estranho ‑ ocupam o espaço de duas.

‑ Não me admira nada ‑ objectou o outro. ‑ Tenho um irmão que não poria obstáculo em fazer passar por duas pessoas os seus seis filhos, em qualquer talho ou padaria do reino:

‑ Seis filhos, sir? ‑ exclamou Squeers.

‑ Sim, e todos rapazes! ‑ explicou o estranho.

‑ Mr. Nickleby ‑ disse Squeers apressadamente. ‑ Agarre nesse cesto. Deixe‑me dar‑lhe um cartão, sir, dum estabelecimento onde esses seis rapazes podem ser criados duma ma neira ilustrada, liberal e moral, sem nenhum engano a este respeito, por vinte guinéus por ano ‑ vinte guinéus, sir! Ou então, tomava conta de todos os rapazes por uma média razoável, digamos, cem libras por ano para seis.

‑Oh! o senhor é Mr. Squeers aqui mencionado, presumo eu? ‑ perguntou o cavalheiro, dando uma vista de olhos pelo cartão.

‑ Sin, sou eu, sir ‑ respondeu o digno pedagogo. ‑ O meu nome é Mr. Wackeford Squeers e estou muito longe de me sentir envergonhado dele. Estes são alguns dos meus rapazes, sir! Aquele é um dos meus ajudantes, sir. Mr. Nickleby, filho dum cavalheiro e muito douto em matemática, clássicos e comércio. Na nossa casa não fazemos as coisas por metades. Todas as maneiras de instruir os meus rapazes estão em primeiro lugar, sir; nunca se pensa na despesa, recebem um tratamento paternal e têm roupa lavada.

‑ Palavra! ‑ exclamou o cavalheiro, deitando os olhos para Nicholas, com um meio sorriso e uma certa expressão de surpresa. ‑ Na verdade tudo isto são vantagens!

‑ Pode dizê‑lo, sir ‑ retorquiu Squeers, afundando as mãos nas algibeiras do sobretudo. ‑ Dão‑se e pedem‑se as mais rigorosas referências. Não tomaria referência de qualquer ra paz que não fosse respeitável, pelo pagamento de cinco libras e cinco xelins por um trimestre, nem que se ajoelhasse a meus pés e mo pedisse com as lágrimas nos olhos.

‑ Muito digno de consideração ‑ observou o passageiro.

‑ O meu grande objectivo e fim é o de considerar, sir ‑ replicou Squeers ‑ Snawley Júnior, se não deixas de bater os dentes e de tremer com frio, aqueço‑te com uma sova daqui a meio minuto.

‑ Agora firmes, cavalheiros! ‑ recomendou o condutor ao trepar

‑ Está tudo bem lá atrás, Dick? ‑ perguntou o cocheiro.

‑ Tudo bem! Pode andar! ‑ foi a resposta.

O tempo estava intensamente frio; de vez em quando nevava e o vento era intoleravelmente cortante. Em quase todas as paragens Mr. Squeers descia do carro para desentorpecer as pernas, dizia ele, mas quando voltava de cada excursão trazia um nariz muito encarnado e preparava‑se para dormir. Os seus pequenos pupilos, estimulados com os restos do pequeno almoço e depois fortalecidos por vários pequenos sorvos dum curioso cordial trazido por Mr. Squeers, que sabia muito a torradas e água, posto numa garrafa de brande por engano, adormeciam, acordavam, tremiam e choravam, conforme os sentimentos se manifestavam. Nicholas e o seu bem humorado companheiro, encontraram tantos assuntos em que falar, que o tempo para eles, passou rapidamente.

Assim foi decorrendo o dia. Em Eton Slocomb houve um bom jantar, do qual partilharam os do assento do cocheiro, os quatro dos lugares exteriores da frente, o do lugar de dentro, Nicholas, o cavalheiro bem humorado e Mr. Squeers, enquanto os cinco rapazinhos eram postos a desentorpecer do frio ao pé do lume e se regalavam com sanduiches. Numa paragem ou duas a seguir, asenderam‑se as lanternas e entrou uma senhora muito maçadora, com uma infinidade de capas e embrulhinhos.

A noite e a neve vieram juntas. Não se ouvia senão o uivar do vento, pois o barulho das rodas e das patas dos ca valos era abafado pela neve, que cobria o chão e aumentava a cada momento. Quando passaram por Stamford, as ruas estavam desertas. Vinte minutos depois, dois dos passageiros dos lugares exteriores da frente aproveitaram para passar a noite numa das melhores estalagens da Inglaterra. Os restantes envolveram‑se mais nos casacos e capas e empilharam‑se contra a bagagem para afrontarem o vento penetrante que soprava através do descampado.

Tinham acabado há pouco de passar a muda de Grantham, ou estavam pouco mais ou menos a meio caminho entre Gran tham e Newark, quando Nicholas ‑ que há pouco tempo vinha a dormir ‑ foi subitamente despertado por uma violenta sacudidela, que esteve quase a atirá‑lo para fora do lugar. Agarrando‑se ao varão, viu que a diligência descaira grandemente para um lado, embora continuasse a ser arrastada para a frente pelos cavalos e, enquanto ele hesitou, a pensar, se devia descer ou não, o veículo voltou=se repentinamente, tirandolhe todas as incertezas e arremessando‑o para o meio da estrada.

A ocorrência do acidente dá oportunidade a dois cavalheiros para contarem histórias um ao outro

‑ Que desgraça! ‑ exclamou o condutor, que se pôs em pé num instante e correu para a parelha da frente. ‑ Há aí algum cavalheiro que queira dar uma ajuda, aqui? Quiietos, seus lazeirentos! Que desgraça!

‑ O que se passa? ‑ perguntou,Nicholas, olhando, ensonado.

‑O que se passa, homem? Passa‑se o bastante para uma noite ‑ respondeu o condutor. ‑ O maldito cavalo baio endoi deceu, creio eu, porque o carro se voltou. Dê‑me aqui uma ajuda! Baio do diabo! Parece que todos os meus ossos se partiram!

‑ Presente ‑ exclamou Nicholas, vacilando. ‑ Estou pronto! Apenas um pouco fora de mim.

‑ Conserve‑os firmes ‑ gritou o condutor ‑ enquanto estão meios tontos. Aguente‑os de qualquer maneira! Bravo, meu lorde! isso mesmo! Agora, largue‑os. Chegue‑lhes, para eles irem depressa para casa.

Na verdade os animais tão depressa se sentiram livres, trotaram de livre vontade para a cocheira, que tinham acabado de deixar e não se distanciava uma milha.

‑ Pode tocar a buzina? ‑ perguntou o condutor, tirando uma das lanternas da diligência.

‑ Creio que sim! ‑ respondeu Nicholas.

‑ Então toque até acordar os mortos! ‑ disse o homem.

Vou ver se faço calar a gritaria que vai lá dentro. Saiam! Não faça tanto barulho, mulher!

Ao dizer isto, o homem tratava de abrir a porta superior do carro ao mesmo tempo que Nicholas, agarrando‑se à buzina, acordava os ecos distantes com uma das mais extraordinárias execuções daquele instrumento, como nunca as tinham ouvido qualquer mortal. O seu efeito foi os passageiros recobrarem‑se da queda e pedir socorro, pois as luzes brilhavam à distância e pessoas acorriam.

De facto, galopava um homem a cavalo, antes dos passageiros se terem reunido. Uma cuidadosa investigação mostrou que a senhora quebrara a lanterna e um cavalheiro, a cabeça. Os dois passageiros dos lugares exteriores da frente escaparam com os olhos pisados; o da almofada, com o nariz a sangrar; o cocheiro com uma contusão na testa; Mr. Squeers com uma maleta amolgada nas costas e os restantes passageiros sem qualquer ferimento, graças à suavidade da neve onde tinham sido despejados. A senhora deu sinais de desmaio e tendo‑se alvitrado ser levada às costas dum cavalheiro, ela achou mais prudente regressar a pé, com os outros.

Ao chegarem, encontraram uma casa apenas com um aposento e duas ou três cadeiras. Mas como o lume brilhava e havia bastante carvão para o alimentar, sentiram‑se muitíssimo satisfeitos pela mudança do frio e da escuridão lá de fora, para a iluminação e aquecimento, dentro de casa.

‑ Mr. Nickleby! ‑ disse Squeers, metendo‑se no canto mais quente. ‑ Procedeu muito bem em manter os cavalos firmes. Eu tê‑lo‑ia feito se tivesse chegado a tempo mas estou contente por ter sido o senhor. Procedeu muito bem, muito bem!

‑ Tão bem ‑ afirmou o cavalheiro de cara bem humorada, que parecia não aprovar muito o tom proteetor adoptado por Squeers ‑ tão bem. que se não estivessem tão bem seguros o senhor, provavelmente, ficava sem miolos para poder ensinar.

Esta observação levou a uma prática sobre a prontidão desenvolvida por Nicholas, que foi cumulado de cumprimentos e elogios.

‑ Decerto estou contente por ter escapado ‑ observou Squeers ‑ toda a gente se compraz em escapar dum perigo, mas se qualquer das pessoas a meu cargo tivesse sido ferida se não pudesse entregar qualquer destes rapazinhos aos seus pais, inteiro e são, como deles o tinha recebido quais seriam os meus sentimentos? Seria preferível que uma roda me caisse em cima da cabeça!

‑ Todos irmãos, sir? ‑ perguntou a senhora, que trouxera a lanterna de segurança.

‑ Num sentido são, ma'am ‑ respondeu Squeers, mergulhando as mãos nas algibeiras do sobretudo, à procura dos cartões. ‑ Estão todos sob o mesmo tratamento paternal e afectuoso. Mrs. Squeers e eu somos mãe e pai para cada um deles. Mr. Nickleby, entregue estes cartões à senhora e ofereça estes aos cavalheiros. Talvez eles conheçam alguns pais que se sintam satisfeitos em aproveitar o estabelecimento!

Expressando‑se desta maneira, Mr. Squeers ‑ que não perdia a ocasião de fazer reclamo gratuito ‑ pôs as mãos nos joelhos e olhou para os pupilos com tanta benevolência quanta pôde afectar, enquanto Nicholas, corado de vergonha, entre gava os cartões, como lhe fora ordenado.

‑ Espero que nada tivesse sofrido com o acidente ma'am

‑ disse o cavalheiro de cara prazenteira, dirigindo‑se à enfastiada senhora, desejoso de, caritativamente, mudar de assunto.

‑ Não sofri nenhum incómodo físico ‑ respondeu a senhora.

‑Nem mental, espero!

‑O assunto é muito doloroso para os meus sentimentos, sir! ‑ redarguiu a senhora com forte emoção ‑ e peço‑lhe, como a um cavalheiro, para se não referir a ele.

‑ Meu Deus ‑ disse o senhor de cara prazenteira, parecendo ainda mais prazenteiro ‑ simplesmente pretendi perguntar.

‑ Espero que não se façam perguntas ‑ replicou a senhora ‑ ou serei obrigada a pôr‑me sob a protecção dum outro cavalheiro. Estalajadeira, peço‑lhe para mandar pôr um rapaz de sentinela lá fora, a ver se passa um carro verde, em direcção a Grantham, para o mandar parar imediatamente.

A gente da casa ficou, evidentemente, conquistada pelo pedido e quando a senhora disse ao rapaz para se lembrar, como meio de identificação, que o esperado carro verde, teria um cocheiro com um laço dourado no chapéu e um trintanário ‑ muito provavelmente, de meias de seda ‑ as atenções da boa mulher da estalagem, redobraram. Mesmo os passageiros da almofada foram influenciados e, tornando‑se maravilhosamente deferentes, perguntaram logo se todos eles não faziam uma boa sociedade, ao que a senhora respondeu, sim.

‑ Como o condutor foi a Grantham a cavalo, para arranjar uma outra diligência ‑ informou o cavalheiro da cara prazenteira, quando todos se sentaram em volta do lume, conservando‑se em silêncio por algum tempo ‑ e se deve demorar, pelo menos, um bom par de horas, proponho uma tijela de ponche quente. O que diz, sár?

A pergunta foi feita ao passageiro da cabeça partida, que vinha no interior do carro, estava de luto e era um homem de boa aparência. Não passava de meia idade, mas tinha já algum cabelo branco; parecia ter envelhecido prematuramente por cuidados ou tristezas. Acedeu prontamente à proposta, levando a crer ter sido contaminado pela natureza franca do indivíduo donde ela emanava. Este tomou sobre si o encargo de distribuir o ponche e depois de ter cumprido a sua missão, dirigiu a conversa para as antiguidades de York, que tanto ele como o cavalheiro de cabelos grisalhos, pareciam conhecer bem. Quando este assunto se esgotou, voltou‑se com um sorriso para o cavalheiro de cabelos grisalhos e perguntou‑lhe se sabia cantar.

‑ Não! ‑ respondeu o interrogado, sorrindo por sua vez.

‑ É pena ‑ observou o da expressão de bom humor. – Há aqui alguém que saiba cantar uma canção para passar o tempo mais depressa?!

Todos os passageiros protestaram que não sabiam cantar; cantariam, se pudessem; mas não se lembravam da letra de qualquer canção sem a música e assim por diante.

‑ Talvez a senhora se não oponha ‑ disse o que presidia, com grande respeito e um pestanejar brejeiro. ‑ Estou certo de que seria muitíssimo aceitável qualquer canção italiana que a última ópera trouxe até à cidade.

Como a senhora condescendeu em não dar resposta ‑ antes levantou repentinamente a cabeça com desprezo e murmurou uma expressão de surpreza quanto à ausência do carro verde ‑ uma ou duas vozes requereram que o próprio presidente fizesse uma tentativa em benefício de todos.

‑ Se pudesse fazia ‑ declarou o cavalheiro bem humorado ‑ pois defendo este ponto de vista, como em todos os outros casos em que as pessoas não eram conhecidas umas das outras e, inesperadamente, se encontravam reunidas. Devemos fazer o possível para nos tornar agradáveis o mais que pudèrmos, por amor da união da pequena comunidade.

‑ Gostava que a música fosse mais geralmente executada em todos os casos ‑ opinou o cavalheiro de cabelos grisalhos.

‑ Alegra‑me ouvir isso ‑ replicou o outro. ‑ Talvez, como não sabe cantar, nos possa contar uma história!

‑ Sim, mas então, peço‑lhe também uma.

‑ Depois do senhor, contarei com prazer.

‑ Na verdade? ‑ perguntou, sorrindo, o cavalheiro de cabelos grisàlhos. ‑ Bem, seja assim! Receio que a ordem dos meus pensamentos não esteja calculada para aligeirar o tempo que devemos passar aqui, mas como querem que a conte julgarão por si. Estivemos há pouco falando do Prelado de York. A história referir‑se‑á um pouco a isso. Chamemos‑lhe:

AS CINCO IRMÃS DE YORK

Depois dum murmúrio de aprovação dos outros passageiros, durante o qual a enfastiada senhora bebeu às escondidas um copo de ponche, o cavalheiro de cabelos grisalhos, começou assim:

Há muitos anos atrás ‑ pois o século quinze teria uns escassos dois anos nesse tempo e o rei Henrique IV sentava‑se no trono de Inglaterra ‑ moravam na antiga cidade de York cinco irmãs solteiras, objecto do meu conto.

Éstas cinco irmãs eram todas de uma beleza incomparável. A mais velha tinha vinte e trés anos, a segunda era un ano mais nova, a terceira um ano mais nova do que a segunda, e a quarta um ano mais nova do que a terceira. Eram altas, figuras soberbas, com cintilantes olhos escuros e cabelos de azeviche; todos os seus movimentos revelavam graça e dignidade, e a fama da sua grande beleza espalhara‑se por toda a província.

Mas, se as quatro irmãs mais velhas eram encantadoras,

‑ que deliciosa não era a mais nova ‑ uma delicada criatura de dezasseis anos! As cores suaves dos frutos e as tintas delicadas das flores, eram tão perfeitas como o rosado e o lírio da sua cara gentil, ou o azul profundo dos seus olhos. A cara, em toda a sua elegante luxúria, não era tão graciosa como os cachos do rico cabelo castanho que lhe ornava a fronte. O coração desta linda rapariga batia de alegria e satisfação. A sua afeição era o amor consagrado às irmãs e o seu riso, a música dulcíssima da sua casa.

Alice se chamava a rapariga; vivia com as irmãs numa velha casa de madeira no meio dum jardim rodeado por um muro de pedra, pertencente à Abadia de St. Mary, dos monges de St. Benedict, a quem pagavam a renda.

Numa manhã soalheira e clara de Verão, um dos monges saiu do portal da abadia, dirigindo‑se para casa das cinco irmãs. Quando chegou ao jardim da casa, ouviu vozes suaves e um riso alegre; levantou a vista e viu as cinco irmãs sen tadas na relva, entretidas a bordar.

‑ Salve‑as Deus, minhas lindas filhas! ‑ cumprimentou o monge.

As irmãs saudaram o santo homem com uma grande reverência e a mais velha convidou‑o a sentar‑se ao lado delas, mas o bom monge sacudiu a cabeça e escolheu uma pedra dura para descansar.

‑ Estais alegres, minhas filhas ‑ comentou o monge.

‑Bem sabeis como é ardente o coração da nossa querida Alice ‑ respondeu a mais velha, passando os dedos pelas madeixas da sorridente rapariga.

‑ E que alegria e contentamento desperta em nós vermos a natureza cintilando de luz aos raios do sol, meu pai! ‑ acrescentou Alice, corando sob o olhar severo do frade.

O monge não respondeu: inclinou apenas a cabeça com gravidade e as irmãs prosseguiram o trabalho em silêncio.

‑ Continuam desperdiçando horas preciosas ‑ disse ele, por fim, voltando‑se para a mais velha. ‑ Continuam desperdiçando horas preciosas em ninharias vãs. Ai! Ai!, por que se teria espalhado tão facilmente‑tudo o que o Céu ordena devemos ver nessa corrente profunda e escura‑ e não nessas poucas frivolidades à superficie da eternidade!

‑ Meu pai ‑ irritou‑se a donzela, parando o seu trabalho imitada pelas outras ‑ temos orado às matinas, as nossas esmolas diárias têm sido distribuídas, os aldeões doentes têm sido assistidos ‑ todos os nossos deveres matinais têm sido executados. A nossa ocupação não merece repreensão... acho eu.

‑ Veja isto ‑ disse o frade, tirando‑lhe o bastidor da mão ‑ um emaranhado intrincado de cores garridas, sem fim ou objectivo, apenas para ser um dia destinado a ornamento vão para realçar o orgulho do vosso frágil e inconstante sexo. Dias após dias, têm sido empregados neste trabalho, sem sentido e que ainda não está meio feito. A sombra de cada dia que passa, cai sobre as nossas campas, e o verme exulta e observa para saber se nos apressamos para a moradia finàl. Minhas filhas, não haverá melhor forma de passar as horas fugitivas?

As quatro irmãs mais velhas baixaram os olhos como se se sentissem envergonhadas pela exprobação do santo homem, mas Alice ergueu os seus e baixou‑os suavemente sobre o frade.

‑ A nossa querida mãe ‑ disse a donzela ‑ que o Céu tenha a sua alma em descanso!.

‑ Amen! ‑ exclamou o monge em voz profunda.

‑ A nossa querida mãe ‑ prosseguiu a linda Alice ‑ vivia quando começaram estas longas tarefas e convidava‑nos a aplicarmos nelas as nossas horas de ócio e dizia que se passássemos juntas em inocente alegria e modestos esforços essas horas, elas demonstrariam a imensa felicidade e paz das nossas vidas e que, mais tarde, nas tentações do mundo, deslumbradas pelo seu clarão, se nos esquecêssemos do amor e do dever que nos atavam com sagrados laços a um parent. e querido, um relance para o velho trabalho da nossa infância despertaria em nós os bons sentimentos dos dias passados e suavizaria os nossos corações para a afeição e para o amor.

‑ Alice diz a verdade, meu pai! ‑ exclamou a irmã mais velha com orgulho.

E, dizendo isto, retomou o trabalho, fazendo as outras, o mesmo.

As cinco irmãs executavam idêntico trabalho curvando‑se graciosamente sobre ele. O monge, apoiando o queixo nas mãos, olhava, em silêncio, duma para a outra.

‑ Quanto melhor não era ‑ disse por fim ‑ evitar todos esses pensamentos e esperanças e devotar as vossas vidas a Deus, no abrigo pacífico da Igreja. Infância, juventude, idade madura e velhice, tudo se consome rapidamente. Pensem como o pó da humanidade rola sobre a tumba; evitem a núvem que se levanta entre os prazeres do mundo e engana os sentidos dos seus devotos. O véu, minhas filhas, o véu!

‑ Nunca, irmãs! ‑ gritou Alice. ‑ Não troquem a luz e o ar do céu, a frescura da terra e todas as belas coisas que palpitam sobre ela, pelo frio claustro e pela cela. Morrer é o nosso destino, mas morramos com vida à nossa volta; quando os nossos corações frios deixarem de bater que venham corações quentes bater junto deles; que os nossos últimos olhare sejam para aqueles limites que Deus pôs nos sSeus ilhanos réus e não para uma parede de pedra com barras. Queridas irmãs vivamos e morramos se estão de acordo no limite deste verde jardim; fujamos, simplesmente, das trévas e da tristeza do claustro, e seremos felizes.

As lágrimas corriam dos olhos da donzela quando terminou o seu apaixonado apelo e escondeu a face no peito da irmã.

‑ Anima‑te, Alice! ‑ murmurou a mais velha, beijando‑ lhe a testa pura. ‑ o véu nunca baixará a sua sombra sobre o teu jovem semblante. O que dizem irmãs? Falai por vós e não por Alice ou por mim.

As irmãs, de pleno acordo, exclamaram que a sua sorte era comum e que havia moradias de paz e de virtudes fora das paredes do convento.

‑ Meu pai! ‑ disse a mais velha, levantando‑se com dignidade ‑ ouviu a nossa resolução final. O mesmo piedoso cuidado que adornou a Abadia de St Mary e nos deixou, órfãs, à sua guarda sagrada, não nos obriga a constranger as nossas inclinações; somos livres para viver de acordo com a nossa escolha. Peço‑vos para não se falar mais nisto. Irmãs, é quase meio‑dia. Abriguêmo‑ nos até à tarde! ‑ Com uma reverência ao frade, encaminhou‑se para casa, de mão dada com Alice, seguida pelas outras irmãs.

O santo homem, que já insistira várias vezes no mesmo ponto e nunca encontrara uma repulsa tão directa, deu alguns passos atrás, inclinou o olhar para o chão movendo os lábios como se orasse. Quando as irmãs atingiram o pórtico, ele apressou o passo e disse‑lhes para pararem.

‑ Fiquem ‑ pediu o monge, erguendo a mão direita e dirigindo um olhar severo para Alice e para a irmã mais velha. ‑ Fiquem e ouçam o que são essas lembranças. A memória das coisas terrenas é recordada depois da vida, com amargo desapontamento, aflição e morte. Um dia virá em que um relance para essas bagatelas, abrirá profundas feridas nos corações de algumas de entre vós e abale o íntimo das suas almas. Quando chegar essa hora, voltem costas ao mundo a que estão abraçadas e procurem o refúgio que desprezam. Acharão que a cela é mais fria do que o fogo dos mortais e que o seu frio aumenta quando turbado pela calamidade e pela experiência, e será o açoite dos sonhos da juventude. Estas coisas são a vontade do Céu e não a minha. A Virgem vos abençoe, minhas filhas!

Com estas palavras o monge desapareceu pela porta traseira e, as irmãs, apressando‑se a entrar em casa, não tornaram a ser vistas nesse dia. Mas a natureza continuava a sorrir embora os prelados enrugassem a testa e, no dia seguinte e nos que vieram depois, o sol brilhasse alegremente e as irmãs retomassem os seus passeios, o seu trabalho e as suas alegres conversas no jardim.

O tempo passou, a casa das cinco irmãs continuava no mesmo sítio, estas eram ainda encantadoras, mas operara‑se uma mudança no seu viver. Algumas vezes ouvia‑se o chocar duma armadura e viam‑se brzlhar à luz da lua os capaçetes de ferro; noutras, uma forma feminina deslizava precipitadamente, como se estivesse ávida de saber notícias dum mensageiro fatigado. Um alegre rancho de cavaleiros e damas, alojaram‑se uma noite dentro dos muros da Abadia e, no dia seguinte, foram‑se embora, levando consigo duas das lindas irmãs. Depois os cavaleiros começaram a vir com menos frequência e pareciam trazer más notícias quando apareciam. Por fim, nunca mais voltaram. Uma vez, foi despachado à pressa um vassalo para a Abadia ao cair da noite, e quando chegou a manhã, ouviram‑se, na cása das irmãs, sons de mágoa e tristeza, após o que se fez um silêncio de morte, não sendo mais vistos cavaleiros ou dama, cavalo ou armadura.

Os olhos do frade já se não dirigiam para a terra; deixava‑os errar dum lado para o outro, como se a melancolia e a desolação da cena, achasse uma rápida resposta no seu próprio peito. Continuava a parar junto da casa das irmãs e a entrar pela porta traseira, mas já não ouvia o som das gargalhadas, nem os seus olhos pousavam nas lindas figuras das irmãs. Estava tudo silencioso e deserto.

Com a indiferença ou abstracção duma pessoa muito acostumada às mudanças da vida, o monge introduziu‑se na casa e entrou num quarto escuro e desprezível. Estavam lá sentadas quatro irmãs. Os seus vestidos pretos tornavam pálidas as suas faces e, o tempo e a tristeza, cavara‑lhes pro fundas rugas. Eram ainda majestosas, mas o viço e o esplendor da beleza, tinham desaparecido. E Alice? Onde estava ela? No Céu!

O próprio monge sentia mágoa. Sentou‑se em silêncio e pediu‑lhes para falar.

Estão aqui as minhas irmãs ‑ disse a mais velha em voz trémula. ‑ Não nasci para tomar conta delas e agora censuro‑me pela minha fraqueza. O que há na lembrança dela que devamos temer? Recordar os dias passados, será ainda um grande prazer.

Olhou para o monge enquanto falava e, abrindo um contador, tirou para fora os cinco bastidores com os trabalhos completados há muito. O passo era firme, mas a mão tremia‑lhe quando mostrou o último; e quando os sentimentos das irmãs se manifestaram à vista dele, as lágrimas correram‑lhe dos olhos e soluçou: Deus a abençoe!

O frade levantou‑se e avançou para elas.

‑Foi quase a última coisa em que ela tocou, com saúde ‑ declarou ele em voz baixa.

‑ E foi ‑ confirmou a irmã mais velha, chorando amargamente.

O monge voltou‑se para a segunda irmã.

‑O jovem enamorado que se te espelhou nos olhos e te cortou a respiração quando a primeira vez viu o teu ardor neste passatempo, jaz amortalhado num chão em que a erva está tinta de sangue. Fragmentos enferrujados de armadura, outrora brilhantemente brunida, estão dispersos pela terra e são pouco perceptíveis como sendo seus, tal como são os seus ossos, que se desfazem em pó.

            Ela gemeu e torceu as mãos.

‑ A política das cortes ‑ continuou o monge, voltando‑se para as outras duas irmãs ‑ arrancou‑vos da casa pacifica para casas de bulício e esplendor. A mesma política e a ambição de homens turbulentos e orgulhosos fizeram‑vos regressar como donzelas enlutadas e cheias de humilhação. Falo verdade?

A única resposta foram os soluços das duas irmãs.

‑ Há pouca necessidade ‑ prosseguiu o monge com um olhar significativo ‑ em desperdiçar o tempo com ninharias que farão levantar os pálidos fantasmas de esperanças dos anos da juventude. Enterrai‑vos, fazei penitência e mortificai ‑ vos, curvai a cabeça e seja o convento o seu túmulo.

As irmãs pediram três dias para deliberar e, nessa noite, sentiram que o véu era a única coisa apropriada para cobrir as suas alegrias desfeitas. Mas veio a manhã, mostrando o jardim, que era ainda o mesmo, apesar de todas as tristezas, e não puderam pensar na reclusão dum convento, cujas paredes tão odiadas tinham sido por Alice.

Mandaram para o estrangeiro, para artistas de grande celebridade, as suas obres obtendo a aprovação da Igreja na execução dos seus trabalhos de piedade, que executavam em cinco grandes aposentos providos de belos espelhos, cópias fiéis dos seus velhos trabalhos de bordado, adaptados a uma grande janela. E quando o sol brilhava alegremente, reflectia sobre o pavimento, através dos modelos familiares, o nome querido de ALICE, gravado numa pedra.

As irmãs costumavam ajoelhar‑se diariamente dìante desta pedra, mas elas próprias foram, a pouco e pouco, rareando até os nomes das outras quatro serem sucessivamente gravados nela. Esta pedra gastou‑se e foi substituída por outras. O tempo suavizou as cores, mas o mesmo raio de luz ainda cai sobre o túmulo esquecido e ainda hoje se mostra ao forasteiro, na Catedral de York, uma velha janela chamada das Cinco Irmãs.

‑ um conto melancólico ‑ observou o cavalheiro de rosto bem humorado, esvaziando o copo.

‑ um conto da vida e a vida é feita destas tristezas ‑ respondeu o outro delicadamente, mas num tom de voz grave e triste.

‑ Em todas as boas pinturas há sombras, mas há também brilho, se nos dispusermos a contemplálas ‑ observou o ca valheiro de cara prazenteira. ‑ A irmã mais nova, no seu conto, é sempre um coração alegre!

‑ E morreu cedo ‑ notou o outro suavemente.

‑Se ela tivesse morrido mais cedo talvez tivesse sido menos feliz ‑ replicou o primeiro, com muito sentimento. Acredita que as irmãs, que a amavam tanto, teriam chorado menos se a vida dela fosse escura e triste? O sol não brilha sobre esta bela terra para iluminar os olhos sombrios, fixos nele.

‑ Creio que tem razão ‑ respondeu o cavalheiro que contara a história.

‑ Crê? ‑ retorquiu o outro. ‑ Pode alguém duvidar? Tome um assunto de profunda tristeza e veja como anda ligado a muito prazer. A lembrança das alegrias passadas pode converter‑se em dor.

‑ Converter‑se ‑ afirmou o outro.

‑ Bem. converte‑se. Recordar uma felicidade que não nos pode ser restituída é dor, mas dum género suave. As nossas lembranças estão, infelizmente, misturadas com muito daquilo que deploramos e muitas acções de que nos arrependemos amargamente. contudo, acredito firmemente que nas vidas de mais alternativas há tantos raios de sol para contemplar que não creio que qualquer mortal ‑ a não ser que não lhe reste a mínima esperança ‑ encha deliberadamente a taça com as águas do Lete, se isso estiver em seu poder ‑ observou.

‑Possivelmente tem razão no seu pensamento ‑ observou o cavalheiro de cabelos grisalhos depois de curta reflexão. ‑Sinto‑ me inclinado a crer que tem.

‑ Então ‑ replicou o outro ‑ o bem neste estado de existência, tem preponderância sobre o mal. Se experimentarmos as nossas afeições, vemos que elas são consolação e conforto e a recordação, embora triste, é o elo melhor e mais puro entre este mundo e o outro. Porém, vou contar uma história de outro género.

Após um breve silêncio, o cavalheiro de cara prazenteira distribuiu o ponche em redor e, olhando sorrateiramente para a senhora susceptível, que parecia imensamente apreensiva receando que ele pudesse contar alguma coisa imprópria, começou:

O BARÃO DE GROGZWIG

O barão von Koldwethout, de Grogzwig, na Alemanha, era um jovem fidalgo, agradável como se desejaria que fosse. É escusado dizer que vivia num velho castelo, ao qual estavam ligadas estranhas circunstâncias, sendo uma delas, quando o vento soprava e a lua brilhava, infiltrar‑se na aparição através de buracos nas paredes, iluminando uns

aposentos e deixando outros em completa escuridão. Creio que um dos antepassados do barão, estando necessitado de dinheiro, certa noite matara um cavalheiro que pedira para lhe ensinar o caminho. Desde então, este antepassado do barão, sendo uma criatura alegre, começou a entristecer e apoderando‑se violentamente de pedra e madeira pertencentes a outro barão, mandara construir uma capela, pagando assim ao Céu todos os seus pecados.

Mas o barão von Koldwethout de Grogzwig, era um belo rapaz trigueiro de cabelo preto e grandes bigodes que ia para a caça vestido de verde lincoln, botas rústicas e uma trompa pendente do ombro. Quando soprava na trompa, acudiam vinte e quatro outros cavaleiros, indo todos para a caça do javali, ou do urso, se o encontrávam, em cujo caso o barão era o primeiro a matá‑lo.

O barão de Grogzwig levava uma vida alegre, e com ele a sua comitiva, que bebia vinho do Reno até cair para baixo da mesa. Mas os prazeres da mesa ‑ ou de baixo da mesa ‑ precisam dum pouco de variedade, principal nente quando as mesmas vinte e cinco pessoas se sentam diariamente à mesma mesa para falarem dos mesmos assuntos e contarem as mesmas histórias. O barão tornou‑se aborrecido e queria excitação.

Começou por discutir com os seus hóspedes e dar pontapés em dois ou três, todos os dias, depois do jantar. Ao princípio esta mudança foi divertida, mes depois tornou‑se monótona e o barão desesperou‑se, procurando novo divertimento.

Uma noite depois dum dia de caça em que apanhou um belo urso, trazido para casa em triunfo, o barão von Koldwe thout sentou‑se de mau humor à cabeceira da mesa, olhando o tecto, com uma espécie de descontentamento. Ingeriu enormes copos de vinho, mas quanto mais bebia mais o semblante se lhe carregava. Os cavalheiros que tinham sido honrados com a perigosa distinção de se sentarem à sua esquerda e à sua direita, imitavam‑no no beber e franziam o sobrolho uns para os outros.

‑ Quero ‑ gritou o barão de repente, batendo na mesa com a mão direita e retorcendo os bigodes com a esquerda. Quero que encham os copos e bebam à saúde de Lady de Grogzwig.

Os vinte e quatro convivas empalideceram, excepto os vinte e quatro narizes, que eram imutáveis.

‑ Já disse, à saúde de Lady de Grogzwig! ‑ repetiu o barão, olhando em volta da mesa.

A saúde de Lady de Grogzwig ‑ berraram os vinte e quatro homens e vinte e quatro goelas engoliram quarenta e oito copos imperiais daquele raro e velho vinho, ficando a lamber‑se quarenta e oito beiços.

‑ a linda filha do barão von Swillenhausen ‑ disse Koldwethout, condescendendo em explicar‑se. ‑ Vamos pedi‑la em casamento a seu pai, antes que o sol se esconda amanhã. Se ele a negar, cortamos‑ lhe o nariz.

Um murmúrio rouco levantou‑se da assistência e todos os homens tocaram, primeiro nos copos da espada e depois na ponta do nariz, com medonha significação.

A donzela estava em paz com a sua consciência, quando um madrugador mensageiro trouxe o pedido de von Koldwe thout na manhã seguinte e, modestamente, retirou‑se para a sua câmara, de cuja janela observou a vinda da comitiva e o acompanhamento do suplicante. Ilepress teve a certeza de que o cavaleiro de grandes bigodes era o seu proposto marido e apressou‑se a ir à presença do pai para lhe exprimir a sua resolução em sacrificar‑se para assegurar a paz. O venerável barão abraçou a filha e os olhos brilharam‑lhe de alegria.

Nesse dia houve uma grande festa no castelo. Os vinte e quatro convivas de von Koldwethout trocaram votos de eterna amizade com os doze convivas de von Swillenhausen e prometeram ao velho barão que se embebedariam até ver tudo azul, significando, provavelmente, até as suas figuras adquirirem a mesma cor dos seus narizes. Toda a gente dava palmadas nas costas uns dos outros quando chegou a ocasião da partida e o barão von Koldwethout, e a sua comitiva, cavalgaram jovialmente para casa.

Por seis semanas, os ursos e os javalis tiveram feriado. As casas de Koldwethout e de Swillenhausen estavam em paz;

as lanças enferrujaram e a trompa enrouqueceu por falta de sopro. Foram grandes dias para os vinte e quatro, mas os seus grandes e prósperos dias tinham‑se posto a andàr.

‑ Meu querido! ‑ disse a baroneza.

Meu amor! ‑ respondeu o barão.

‑ Esses homens barulhentos e grosseiros.

‑ Quais, ma'am? ‑ perguntou o barão suspirando em voz baixa. A baronesa, da janela, apontou para onde estavam os inconscientes convivas, entregando‑se a copiosos tragos de despedida, preparatórios para perseguir um ou dois javalis.

‑ a minha comitiva de caça ma'am ‑ disse o barão.

Mande‑os embora, meu amor! ‑ pediu a baronesa.

Mandá‑los embora? ‑ exclamou o barão com assombro.

Para me agradar, meu amor! ‑ replicou a baronesa.

Para agradar ao diabo, ma'am ‑ respondeu o barão.

A baronesa soltou um grande grito e caiu redondamente aos pés do marido. O que podia fazer o barão? Chamou a aia da senhora e berrou pelo médico e depois, entrando no pátio como uma tromba deu dois pontapés nos dois convivas mais acostumados e e, amàldiçoando‑os a todos, mandou‑os para... Não sei a palavra em alemão, e se soubesse, delicadamente, deixaria a frase assim.

Entretanto, a baronesa von Koldwthout, pouco a pouco, dia a dia, ano a ano, tomou um ascendente sobre o marido a ponto dele ‑ que era nessa ocasião um homem de quarenta e oito anos‑ gordo e jovem, ter perdido as suas festas, as paródias, a comitiva de caça e a própria caça em suma de que ele gostava ‑ ou costumava gostar. ‑ E embora fosse feroz como um leão e rijo como o bronze, estava decididamente cerceado no seu poder e destituído pela própria mulher no seu próprio castelo de Grogzwig. Não ficaram por aqui os infortúnios do barão. Um ano depois das suas núpcias veio ao mundo um robusto barãozinho, em cuja honra se queimou muito fogo de vista e se beberam muitas dúzias de garrafas de vinho; mas no ano seguinte, apareceu uma baronesazinha e no ano a seguir outro barãozinho e assim por diante, todos os anos, quer um barão, quer uma baronesa ‑ até o barão se encontrar chefe de uma família de doze membros. Após cada um destes aniversários, a venerável baronesa von Swillenhausen ficava nervosamente sensível pelo bem‑estar da sua filha, a baronesa von Koldwethout. Resultou disto contenderem os génios daquela senhora e do genro, a quem ela acusava de bruto e de coração duro.

O pobre barão suportou isto até poder e quando já não podia mais perdeu o apetite e o espirito. Vivia triste e abatido. Mas o pior não tinha ainda acontecido.

Os tempos mudaram. Começou a dever. Os cofres dos Grogzwigs estavam em baixo, embora a família de Swillenhausen os tivesse como inesgotáveis; e isto quando a baronesa estava a ponto de fazer uma décima terceira adição à árvore genealógica da família von Koldwethout descobriu que não tinha meios para os alimentar.

‑ Não sei o que se há‑de fazer ‑ disse o barão. ‑ Penso em matar‑me.

Era uma bela ideia. O barão agarrou numa velha faca e, tendo‑a afiado nas botas, preparou‑se para cortar as goelas.

Talvez não esteja suficientemente afiada ‑ observou o barão, parando de repente.

Afiou‑a outra vez e fez nova tentativa, quando a mão foi suspensa por um grande alarido dos jovens barões e baronesas, que tinham o seu aposento próprio numa elevada torre com barras de ferro por fora das janelas, para evitar que caíssem dentro do fosso.

‑ Se fosse solteiro ‑ comentou o barão, suspirando ‑ já tinha feito isto cinquenta vezes sem ser interrompido! Ouve lá! Põe um cangirão de vinho e o maior cachimbo no pequeno quarto abobadado por detrás do átrio!

Um dos criados executou, duma maneira gentil, as ordens do barão no decurso duma meia hora e, von Koldwethout, dirigiu‑se depois para o quarto abobadado, cujas paredes, sendo de madeira escura e brilhante, cintilavam com a luz das achas incandescentes, empilhadas dentro do fogão. O cangirão e o cachimbo estavam prontos e o lugar parecia, sobretudo, muito confortável.

‑ Deixa a lâmina ‑ ordenou o barão.

‑Quer mais alguma coisa, meu senhor? ‑ perguntou o criado.

‑ Quero que me deixes! ‑ respondeu o barão.

O criado obedeceu e o barão fechou a porta à chave.

‑ Vou fumar uma última cachimbada e depois acabo com a vida.

Pôs a faca em cima da mesa e, deitando uma boa porção de vinho, o senhor de Grogzwig recostou‑se na cadeira, esticou as pernas em frente do lume e começou a tirar fumaças.

Pensou em muitas coisas, nas suas presentes inquietações e nos passados dias de celibáto, nos convivas há muito dispersos pelo país, com excepção de dois que tinham sido, infelizmente, decapitados e de quatro que tinham morrido a beber. O pensamento discorria sobre os ursos e javalis quando, ao despejar o copo até à última gota, levantou os olhos e viu, pela primeira vez e com infinita surpresa, que não estava só.

‑ Olá! ‑ exclamou o barão, batendo com o pé para atrair a atenção.

‑ Olá! ‑ replicou o estranho, deitando os olhos para o barão sem, contudo, voltar a cara ou o corpo. ‑ O que temos?

‑ O que temos?! ‑ retorquiu o barão, nada amedrontado pela sua voz cavernosa e o olhar sem brilho. ‑ Eu é que devia fazer essa pergunta. Como entrou aqui?

‑ Através da porta ‑ respondeu a figura.

‑ Quem é? ‑ inquiriu o barão.       

‑ Um homem ‑ disse a figura.

‑ Não creio ‑ respondeu o barão.

‑ Então, não creia! ‑ replicou a figura.

‑ É o que faço ‑ respondeu o barão.

A figura olhou para o destemido barão de Grogzwig durante algum tempo e depois disse familiarmente:

‑ Vejo que não se dá por vencido! Não sou um homem!. Então que é? ‑ perguntou o barão.

‑ Um génio.

‑ Não se parece muito com eles ‑ retorquiu o barão ironicamente.

‑ Sou o Génio do Desespero e do Suicídio ‑ confessou a aparição. ‑ Agora já me conhece.

Ao dizer estas palavras a aparição voltou‑se para o barão como se estivesse a acomodar‑se para uma conversa e, o que pareceu notável foi, depois de pôr a capa de lado, tirar uma estaca com um puxão, do meio do corpo e pô‑la sobre a mesa, com tanto jeito como se fosse a bengala.

‑ Agora ‑ perguntou a figura, olhando para a faca ‑ está pronto para mim?

‑ Não completamente ‑ informou o barão. ‑ Tenho de acabar primeiro esta cachimbada.

‑ Então, avie‑se ‑ recomendou a figura.

‑ Parece ter pressa ‑ estranhou o barão.

‑ Sim, tenho ‑ respondeu a aparição. ‑ Estão agora a fazer um lindo trabalhinho no meu trajecto para Inglaterra e França e o meu tempo está muito ocupado.

‑ Bebe? ‑ inquiriu o barão, tocando no cangirão com o cachimbo.

‑ Nove em cada dez vezes e, então, muito ‑ replicou a figura secamente.

‑Nunca com moderação?

‑ Nunca ‑ retorquiu a figura com horror. ‑ Isso produz alegria!

O barão deitou um outro olhar ao novo amigo, tipo estravagante e invulgar e, por fim, pergunton‑lhe se tinha tomado parte activa naqueles pequenos processos como o que tinha agora em mente.

‑ Não ‑ respondeu a figura, evasivamente ‑ mas estou sempre presente.

‑ Apenas para tirar a limpo, suponho eu ‑ disse o barão.

‑ Justamente ‑ aquiesceu a figura, brincando com a vara e examinando o cabo. ‑ Apresse‑se o mais que puder, pois há um cavalheiro novo que está aflito com demasiado dinheiro e as muitas horas vagas que tem e, precisa de mim!

‑ Ir‑se matar por ter dinheiro demais? ‑ exclamou o barão muito divertido. ‑ Ah! ah!, essa é boa. ‑ Era a primeira vez que o barão ria havia muito tempo.

‑ Previno‑o ‑ repreendeu a figura, zangada ‑ para não tornar a fazer isso!

‑ Por que não? ‑ quis saber o barão.

‑ Porque isso me magoa ‑ explicou a figura. ‑ Suspire à vontade,isso faz‑me bem.

O barão suspirou involuntariamente ao ouvir a palavra e a figura resplandeceu outra vez, entregando‑lhe a faca de caça com enorme galantaria.

‑ Não é contudo,uma má ideia ‑ disse o barão,sentindo o gume da faca ‑ um homem matar‑se por ter dinheiro a mais.

‑ Ora adeus! ‑ exclamou a aparição com petulância não é melhor do que um homem matar‑se por não ter nenhumou pouco?

Não tenho modo de saber se o génio disse isto sem intenção, ou por estar convencido de que não tinha importância para o barão,por estar resolvido a matar‑se. Sei apenas que este estendeu a mão de repente,abríu muito os olhos e pareceu pela primeira vez ter recebido uma inspiração.

‑ Certamente ‑ considerou von Koldwethout ‑ nada é demasiado para que se não possa recuperar.

‑ Excepto cofres vazios! ‑ exclamou o génio.

‑Bem,mas esses podem, um dia,ser novamente cheios ‑ alvitrou o barão.

‑ Esposas a ralhar... ‑ escarneceu a aparição.

‑ Oh! Essas podem ser dominadas! ‑ afiançou o barão.

‑ Treze filhos... ‑ disse o génio.

‑Seguramente que não podem ir todos por mau caminho ‑ comentou o barão.

O génio tinha‑se tornado, evidentemente, muito severo para com o barão, por est apresentar todas estas opiniões duma vez mas tentou rir e disse ficar‑lhe muito agradecido, prevenindo‑o quando acabasse de brincar.

‑Mas eu não estu a brincar! Nunca estive mais longe disso! ‑advertiu o barão.

‑ Bem,sinto‑me satisfeito por saber! ‑ disse o génio,parecendo irritado ‑ porque uma brincadeira sem qualquer figura discursiva é a minha mórte. Vamos! Deixe imediatamente este mundo de tristeza!

‑ Não sei ‑ confessou o barão,brincando com a faca. decerto um mundo triste,mas não creio que o seu seja muito melhor, pois a sua aparência não é muito agradável.

Isso obriga‑me a pensar no que ganho,no fim de contas,se sair deste mundo! ‑ exclamou,levantando‑se vivamente. ‑ Nunca pensei nisso...

‑ Despache‑se! ‑ gritou a figura,rangendo os dentes.

‑ Acomode‑se ‑ aconselhou o barão. ‑ Não falarei mais em desgraças,mas farei boa cara ao assunto e voltarei para o ar livre e para os ursos; e se não fizer isso,conversarei com a baronesa muito a sério e corto com o peso morto dos von Swillenhausens.

Dizendo isto,o barão caiu na cadeira a rir tanto e com tanta força,que o quarto estremeceu.

A figura recuou um ou dois passos,olhando para o barão com intenso horror e, quando ele acabou, agarrou na vara, mergulhou‑a violentamente no corpo, soltou um berro medonho e desapareceu.

Von Koldwethout nunca mais o viu. Chamou à razão a baronesa e os von Swillenhausens e morreu muitos anos depois, não um homem rico, mas certamente um homem feliz, deixando após si uma numerosa família cuidadosamente educada, pessoalmente por ele, na caça ao javali e ao urso. O meu conselho a todos os homens quando se sentirem desnorteados e melancólicos por causas semelhantes ‑ como fazem os verdadeiros homens ‑ é de olhar para ambos os lados da questão, aplicando uma lente ao lado melhor, e se se sentirem tentados ao suicidio, fumem primeiro uma grande cachimbada e bebám uma garrafa inteira, aproveitando o louvável exemplo do barão de Grogzwig!

‑A nova diligência está pronta, minhas senhoras e meus senhores! ‑anunciou um novo cocheiro, olhando para dentro de casa.

Este aviso fez com que o ponche fosse terminado à pressa e evitou discussões sobre a última história. Observou‑se Mr. Squeers a afastar para o lado o cavalheiro de cabelo grisàlho e a perguntar‑lhe com grande interesse aparente se podia informar quanto levavam por um ano aos seus internos, os conventos de Yorkshire.

Continuou‑se depois a jornada. Nicholas adormeceu até de manhã e quando acordou viu com muito pesar, que durante o seu sono tinham descido e ido embora o barão de Grogzwig e o cavalheiro de cabelo grisalho. O dia arrastou‑se bastante desagradavelmente. Cerca das seis horas ele e Mr. Squeers, com os rapazinhos e as bagagens, desceram na George ancl New Inn, em Greta Bridge.

 

  1. E MRS. SQUEERS DE PORTAS ADENTRO

Mr. Squeers, saltando em terra são e salvo, deixou Nicholas é os rapazes na estrada com as bagagens, a olharem para a diligência a mudar de cavalos, enquanto ele entrava na hospedaria para o costumado processo de desentorpecer as pernas no bar. Depois de alguns minutos regressou com as pernas perfeitamente desentorpecidas, em que o aspecto do nariz e uns curtos soluços queriam dizer alguma coisa. Ao mesmo tempo saiu do pátio uma ferrugenta carruagem dum cavalo e uma carroça, guiado por dois homens de lavoura.

‑ Ponha os rapazes e as caixas dentro da carroça ‑ ordenou Squeers, esfregando as mãos. ‑ Este e eu, vamos na carruagem. Entre, Nickleby.

Nicholas obedeceu. Mr Squeers obrigou o cavalo também a obedecer, com alguma dificuldade, deixando a carroça, carregada com as desgraçadas crianças, segui‑los a todo o vapor.

‑ Tem frio, Nickleby? ‑ perguntou Squeers depois de terem andado um bocado em silêncio.

‑Devo dizer que tenho bastante, sir.

‑ Não vejo nisso qualquer falta! ‑ disse Squeers. ‑ É uma grande jornada para um tempo destes!

‑ Dotheboys Hall, ainda fica longe, sir? ‑ inquiriu Nicholas.

‑ Cerca de três milhas daqui ‑ informou Squeers. ‑ Mas não precisa de chamar Hall àquilo.

Nicholas tossiu como se quisesse saber a razão.

‑ O facto é que não é um Hall ‑ explicou Squeers secamente.

‑ Não? ‑ disse Nicholas, a quem esta informação muito admirou.

‑ Não ‑ replicou Squeers. ‑ Chamamos‑lhe Hall, em Londres, por soar melhor, mas nestes sítios não é assim conhecido. Um homem pode chamar à sua casa uma ilha, se lhe apraz; não há lei alguma contra isso, creio eu.

‑ Creio que não, sir ‑ respondeu Nicholas.

Squeers deitou dissimuladamente os olhos para o seu companheiro quando acabou o diálogo e, vendo que ele se tinha tornado pensativo e não parecia disposto a qualquer observação, contentou‑se em fustigar o cavalo até chegarem ao fim da viagem.

‑ Desça ‑ convidou Squeers. ‑ Venham desengatar este ca valo! Depressa! ‑ gritou.

Enquanto o mestrescola dava estas e outras ordens impacientes, Nicholas teve tempo de observar que a escola era uma casa comprida, de aparência fria, com um andar e uns anexos muito afastados nas traseiras, um celeiro e uma cocheira adjacentes. Depois de um ou dois minutos ouviu‑se alguém a abrir o portão do pátio e a seguir encaminhou‑se para eles um rapaz alto e magro, com uma lanterna na mão.

‑ És tu, Smike? ‑ perguntou Squeers.

‑ Sim, sir! ‑ respondeu o rapaz.

‑Então por que diabo não vieste mais depressa?

‑ Desculpe‑me, sir, adormeci ao pé do lume ‑ explicou Smike, humildemente.

‑ Lume? Qual lume? Onde está o lume? ‑ perguntou o mestre‑escola severamente.

‑ Apenas na cozinha, sir ‑ respondeu o rapaz. ‑ A senhora disse‑me para me sentar e aquecer‑me um pouco.

‑ A tua senhora é doida! ‑ exclamou Squeers. ‑ Estarias mais acordado se estivesses ao frio!

Nesta altura Mr. Squeers já tinha descido da carruagem e depois de ter dito ao rapaz para olhar pelo cavalo e de não lhe deitar mais comida nessa noite, disse a Nicholas para esperar um minuto à porta da frente, enquanto ele ia de roda para lha abrir.

Um cortejo de desagradáveis suspeitas, que Nicholas tinha vindo a acumular durante toda a viagem, acudiram‑lhe em tropel à mente com redobrada força, quando ficou só. A grande distância a que estava de casa e a impossibilidade de lá chegar, a não ser a pé, no caso de desejar ir embora, apresentou‑se‑lhe com as mais alarmantes cores. E quando olhou para a horrível casa, para as janelas escuras e para o campo bravio em volta, coberto de neve, sentiu o espírito e o coração oprimidos, como antes nunca experimentara.

‑ Vamos, então! ‑ gritou Squeers, pondo a cabeça fora da porta da frente. ‑ Onde está você, Nickleby?

‑ Aqui, sir ‑ respondeu Nicholas.

‑ Então entre‑convidou Squeers. ‑ O vento sopra nesta porta com tanta força que é capaz de derrubar um homem.

Nicholas suspirou e apressou‑se a entrar. Mr. Squeers, tendo aferrolhado a porta para a conservar fechada, introduziu‑o numa pequena saleta mal mobilada com algumas cadeiras, um mapa amarelo pendente da parede e duas mesas, uma das quais apresentava alguns preparativos para a ceia, enquanto a outra para um auxiliar do preceptor, tinha uma gramática de Murray, meia dúzia de cartões com as condições e uma carta enxovalhada, dirigida a Wackford Squeers, Esquire, colocados em pitoresca confusão.

Não estavam havia dois minutos no aposento quando úma mulher entrou de repelão e, agarrando Mr. Squeers pelo pescoço, deu‑lhe dois sonoros beijos, um a seguir ao outro, como o bater do carteiro. A senhora, que tinha uma figura ossuda, era cerca de meia cabeça mais alta do que Mr. Squeers e estava vestida com uma camisa de noite em festão às riscas, e o cabelo metido em papelotes; tinha também uma coifa de dormir, suja, realçada por um lenço amarelo de algodão, atado sob o queixo.

‑ Como está o meu Squeery? ‑ perguntou com umas ma neiras brincalhonas e voz muito rouca.

‑ Muito bem, meu amor! ‑ respondeu Squeers. ‑ Como estão as vacas?

‑ Todas perfeitamente ‑ informou a mulher.

‑ E os porcos? ‑ inquiriu Squeers.

‑ Tão bem como quando te foste embora.

‑ Vamos, é uma vantagem ‑ retorquiu Squeers, tirando o sobretudo. ‑ Suponho que os rapazes também estão na mesma!

‑ Oh, sim! Bastante bem ‑ afirmou Mrs. Squeers, furiosa.

‑Esse jovem Pitcher teve febre.

‑ Não me digas ‑ exclamou Squeers. ‑ Esse maldito rapaz está sempre doente!

‑ Nunca houve um rapaz assim, creio eu ‑ disse Mrs. Squeers. ‑ Apanha também tudo o que aparece. Digo que é a sua teimosia e nada me convence do contrário. Eu já o tinha posto com dono; disse‑to há seis meses atrás.

‑ Pois disseste, meu amor! ‑ confirmou Squeers. ‑ Veremos o que se pode fazer.

Enquanto duraram estas pequenas meiguices, Nicholas sentia‑se bastante desajeitado no meio do aposento, não sabendo muito bem se se devia retirar para o corredor, ou ficar onde estava. Foi tirado da sua perplexidade por Mr. Squeers.

‑ Este é o novo ajudante, minha querida! ‑ anunciou.

‑ Oh! ‑ exclamou Mrs. Squeers, baixando a cabeça para Nicholas e olhando‑o friamente da cabeça aos pés.

‑ Hoje toma uma refeição connosco ‑ advertiu Squeers ‑ e amanhã de manhã fica com os rapazes. Podes arranjar‑lhe uma cama improvisada, esta noite, aqui, não é verdade?

‑ Temos de arranjar isso de qualquer maneira ‑ respondeu ela. ‑ Importa‑se muito onde dormir, sir?

‑ Na verdade, não ‑ retorquiu Nicholas. ‑ Não sou esquisito.

‑ É uma felicidade ‑ comentou Mrs. Sueers. E como o humor da senhora foi considerado principalmente, como uma réplica mordaz, Mr. Squeers riu de vontade e esperou que Nicholas fizesse o mesmo.

Depois duma sucessiva conversa entre o dono e a dona da casa, relativa ao sucesso da viagem de Mr. Squeers, das pessoas que tinham pago e daquelas que não tinham pago, uma criadita trouxe um pastelão de Yorkshire e alguma carne fria postos em cima da mesa, aparecendo depois o rapaz chamado Smike com um cangirão de cerveja.

Mr. Squeers estava esvaziando as algibeiras do sobretudo, de cartas para diferentes rapazes e outros pequenos documentos que lá metera. O rapaz relanceou os olhos para os papéis com uma expressão tímida e ansiosa, como se tivesse uma ténue esperança de que algum deles se relacionasse consigo. O olhar era de causar dó e imediatamente entrou no coração de Nicholas por lhe deixar entrever uma longa e triste história.

Induziu‑o a observar o rapaz com mais atenção; a extraordinária mistura de peças que formavam o seu vestuário, com o que ficou surpreendido. Embora não pudesse ter menos de dezoito ou dezanove anos e fosse alto para essa idade, usava um fato usado por rapazes muito pequenos o qual, embora muito curto nos braços e nas pernas, era bastante lárgo para a sua figura adelgaçada. Para a parte inferior das pernas poderem estar em concordância com este trajo singular, calçava um grande par de botas originalmente feitas para pessoas altas, que podiam já ter sido usadas por algum campónio forte, mas remendadas e esfarrapadas como estavam agora, eram boas para um pedinte. Deus sabia há quanto tempo estava ali usando ainda a mesma roupa interior com que para lá tinha ido. Em volta do pescoço tinha uns esfarrapados bofes de camisa de criança meio escondidos por um grosseiro lenço de homem. Era coxo e, fingindo‑se atarefado em arranjar a mesa, olhava as cartas com um olhar tão penetrante e, contudo tão desesperançado e desanimado, que Nicholas mal podia aguentar‑se a observá‑lo.

‑ O que tens tu a ver com isto, Smike? ‑ gritou Mrs. Squeers. ‑ Deixa as coisas quietas, ou não podes?

‑ Ah! ‑ exclamou Squeers, levantando a vista. ‑ És tu?

‑ Sim, sir ‑ respondeu o jovem, apertando as mãos, como a reprimir, pela força, o nervoso que lhe estava nos dedos. ‑ Há?.

‑ O quê? ‑ exclamou Squeers.

‑ Tem?. Alguém?. Não se sabe nada. a meu respeito?

‑ Sabe o diabo! ‑ respondeu Squeers de mau modo.

O rapaz afastou os olhos e, levando a mão à cara, encaminhou‑se para a porta.

‑ Nem uma palavra ‑ acrescentou Squeers ‑ e nem ha verá! É lindo, não é? Deixarem‑te aqui todos estes anos sem dinheiro pago, depois do primeiro semestre. sem avisarem, nem qualquer indicação a quem pertences? Não é uma linda coisa ter de sustentar um tipo como tu, sem ter a esperança de receber um péni por isso?

O rapaz levou a mão à cabeça como se estivesse a fazer um esforço para se lembrar de qualquer coisa e depois, olhando vagamente para o seu interlocutor, abriu pouco a pouco um sorriso e desapareceu.

‑ Digo‑te, Squeers ‑ observou a mulher quando a porta se fechou. ‑ Estou convencida que este rapaz começa a estar parvo!

‑ Espero que não ‑ disse o mestre‑escola ‑ porque é um tipo hábil lá fora e vale o que come e bebe. Prefiro pensar que tem entendimento suficiente para nós. Mas vamos; comecemos a comer, pois estou com fome e cansado, e preciso de ir para a cama.

Esta lembrança valeu uma exclusiva posta de carne a Mr. Squeers, que não tardou em dar‑lhe amplo descaminho. Nicholas puxou a cadeira, mas o apetite tinha‑se ido embora.

‑ Como está a carne, Squeers? ‑ perguntou a mulher.

‑ Tenra como cordeiro ‑ respondeu Squeers. ‑ Queres um pedaço?

‑ Não poderia tragar nada! ‑ retorquiu a mulher. ‑ Que come este jovem, meu querido?

‑ O que ele quiser do que está presente ‑ replicou Squeers numa explosão de generosidade muito pouco usual.

‑ O que diz, Mr. Nickleby? ‑ inquiriu Mrs. Squeers.

‑ Como um pouco de pastelão, se faz favor ‑ respondeu Nicholas. ‑ Muito pouco, pois não tenho fome.

‑ É uma pena cortar o pastelão se não tem fome, não é?

‑ observou Mrs. Squeers. ‑ Não prefere um bocado de carne?

‑ O que quiser ‑ replicou Nicholas, abstraído ‑ para mim é tudo o mesmo.

Mrs. Squeers tornou‑se extremamente graciosa ao ouvir esta resposta e, acenando para Squeers como para lhe manifestar a sua satisfação em encontrar um rapaz conhecendo o seu lugar, ajudou Nicholas a partir uma fatia de carne com as suas próprias lindas mãos.

‑ Cerveja, Squeery? ‑ perguntou a senhora, pestanejando e franzindo as sobrancelhas para lhe dar a entender que a pergunta era, se dava alguma a Nicholas, no caso de Squeers beber.

‑ Certamente! ‑ respondeu Squeers pelo mesmo código telegráfico. ‑ Um copo cheio.

Por isso Nicholas teve o seu copo cheio e estando ocupado com as reflexões íntimas, bebeu‑o na feliz inconsciência de todos os processos precedentes.

‑ Esta fatia é invulgarmente suculenta ‑ comentou Squeers, pondo de lado o garfo e a faca, depois de ter brincado algum tempo com eles, em silêncio.

‑ É uma carne excelente ‑ replicou a senhora. ‑ Eu própria comprei um grande pedaço com o propósito de.

‑ De quê? ‑ perguntou Squeers apressadamente. ‑ Não para.

‑ Não, nã. o! Não para lhes dar ‑ retorquiu Mrs. Squeerscom o propósito de te dar quando viesses para casa. Meu Deus! não pensas que eu pudesse fazer uma asneira dessas!

‑ Palavra, querida, não sabia o que ias dizer! ‑ desculpou‑se Squeers, que se tornara pálido.

‑ Não precisas de ficar triste ‑ observou‑lhe a esposa, rindo com vontade. ‑ Pensar que eu pudesse ser assim tão parva! Ora, já viram?!

Esta parte da conversa era bastante ininteligível, mas entre a vizinhança corria que, enquanto Mr. Squeers se opunha às crueldades para com os animais, dava para alimento dos rapazes, carne de galo morto, de morte natural.

Acabada a ceia e levantada a mesa por uma criadita com olhos de fome, Mr. Squeers retirou‑se para fechar tudo e pôr em ordem as roupas dos cinco rapazes acabados de chegar, que estavam a meio caminho da porta da morte, assim chamada pela exposição ao frio. Os pupilos foram depois regalados com uma ligeira ceia de papes de aveia e acamados, dois a dois, em cada cama, para se aquecerem mutuamente.

Mr. Squeers serviu‑se dum bom copo de brande e soda com um pouco de açúcar, cuja composição foi servida a Nicholas pela sua amável hospedeira, na sombra dum copinho. Mr. e Mrs. Squeers chegaram‑se depois para o lume, falando confidencialmente por murmúrios, enquanto Nicholas se entregava à leitura do Manual do Preceptor.

Por fim Mr. Squeers abriu uma grande boca a bocejar e observou serem horas de ir para a cama. A este sinal Mrs. Squeers e a criadita, arrastaram para o aposento um pequeno colchão de palha e um par de cobertores, arranjando entre elas uma cama para Nicholas.

‑Amanhã pô‑lo‑emos no quarto que lhe está destinado, Nickleby ‑ avisou Squeers. ‑ Deixe‑me ver! Quem dorme na cama de Brooks, minha querida?

‑ Na cama de Brooks? ‑ disse Mrs. Squeers, a pensar. Estão o Jennings, o pequeno Bolder, Graymarsh e outro de quem não sei o nome.

‑ isso ‑ observou Squeers. ‑ Portanto, a de Brooks está cheia.

‑ Cheia! ‑ pensou Nicholas. ‑ Creio que até está demais!

‑ Sei que há um lugar em qualquer parte – afirmou Squeers ‑ mas neste momento não me posso lembrar onde. Contudo, amanhã ficará tudo arrumado. Boa noite, Nickleby. Recorde‑se, às sete horas da manhã!

‑ Estarei pronto, sir ‑ prometeu Nicholas. ‑ Boa noite!

‑ Eu próprio irei mostrar onde é o poço ‑ disse Squeers.

‑Na janela da cozinha encontrará um grande pedaço de sabão, que lhe pertence.

Nicholas abriu os olhos, mas não a boca, e Squeers foi‑se embora, mas voltou novamente atrás.

‑ Não sei ‑ observou ‑ que toalha lhe hei‑de pôr, mas se se contentar com qualquer coisa amanhã de manhã, durante o dia, Mrs. Squeers trata disso. Não te esqueças, minha querida!

‑ Terei o cuidado ‑ respondeu Mrs. Squeers ‑ e lembre‑se, jovem, que deve ter cautela em ser o primeiro a lavar‑se. Deve ser sempre, mas eles iludem‑no, se puderem.

Mr. Squeers tocou com o cotovelo na rapariga para levar a garrafa de brande, não fosse Nicholas bebê‑lo de noite; e a senhora, tendo‑a agarrado com grande precipitação, retirou‑se com o marido.

Nicholas sozinho, pôsse a passear no quarto, preso de grande excitação, mas, acalmando‑se, sentou‑se numa cadeira, resolvendo aguentar‑se ali por algum tempo, acontecesse o que acontecesse, não querendo dar ao tio um motivo para abandonar a mãe e a irmã. Esperava mesmo que as coisas em Dotheboys Hall fossem melhores do que prometiam.

Preparou‑se para se meter na cama quando lhe caiu uma carta da algibeira do casaco. Na pressa de deixar Londres, nunca mais se lembrara dela, mas agora recordava‑se do misterioso procedimento de Newman Noggs.

‑ Meu Deus! ‑ comentou. ‑ Que extraordinária caligrafia!

A carta era‑lhe dirigida e escrita num papel muito sujo e com uma caligrafia quase ininteligível. Depois de muita dificuldade conseguiu ler o seguinte:

Meu caro jovem

Eu conheço o mundo. O seu pai não o conhecia, ou não me teria prestado um favor que não tinha esperança de ver retribuído. Você não o conhece também, senão não iria fazer essa viagem.

Se alguma vez precisar dum abrigo em Londres, não se zangue com isto, eu pensei uma vez que nunca necessitaria, sabe‑se que vivo na porta com a tabuleta da Coroa, em Silver Street, Golden Square. 7 à esquina de Silver Street e James Street, com uma porta de taberna de ambos os lados. Pode vir à noite. Por uma vez, ninguém se sente escandalizado. Não se importe com isso! É tudo.

Desculpe os erros. Já não sei como se usa um fato completo. Esqueci todos os meus velhos tempos. A minha redacção desapareceu com eles.

Newman Noggs.

  1. S. ‑ Se for perto de Bernard Castle, há uma boa cerveja em King's Heaçl. Diga que me conhece e tenho a certeza de que não lhe levam nada. Pode tratar‑me por Mr. Noggs, porque então eu era um cavalheiro. Era na verdade.

Podia ser uma circunstância pouco digna para registar, mas depois de ter dobrado a carta e de a ter colocado ne agenda, os olhos de Nicholas encheram‑se com uma humidade que bem podería ser tomada por lágrimas.

 

A ECONOMIA INTERNA DE DOTHEBOYS HALL

Uma caminhada de carro de duzentas e tantas milhas com mau tempo é um dos melhores lenitivos para uma cama dura que a ingenuidade pode inventar. Nicholas estava no melhor do seu sono, pensando que a sua fortuna se fazia rapidamente quando o pálido cintilar duma vela, quase a apagar‑se, lhe bateu nos olhos e uma voz, que sem dificuldade reconheceu pertencer a Mr. Squeers, o admoestou serem horas de se levantar.

‑ Já passa das sete Nickleby ‑ avisou Mr. Squeers.

‑ Já chegou a manhã? ‑ perguntou Nicholas, sentando‑se na cama.

‑ Ela está aí e também gelada! ‑, replicou Squeers. Agora vamos, Nickleby, levante‑se!

Nicholas não carecia de mais avisos. Levantou‑se imediatamente e começou a vestir‑se à luz da palmatória que Mr. Squeers trazia na mão.

É um lindo começo ‑ observou o cavalheiro. ‑ A água da bomba está gelada.

‑ Sim?! ‑ respondeu Nicholas, não muito interessado na notícia.

‑ Está ‑ continuou Squeers. ‑ Esta manhã você não se pode lavar.

‑ Não me posso lavar?! ‑ exclamou Nicholas.

‑ Não, nem a ponta do nariz ‑ replicou Squeers. ‑ Deve‑se contentar em fazer uma limpeza a seco até eu quebrar o gelo no poço e poder tirar um balde para os rapazes. Não fique a olhar pasmado, para mim; desperte, homem!

Sem fazer mais observações, Nicholas vestiu‑se. Entretanto, Squeers abriu a porta interior da janela e soprou a vela, ouvindo‑se a voz da sua amável consorte no corredor, perguntando se podia entrar.

‑ Entra, meu amor! ‑ respondeu Squeers.

Mrs. Squeers entrou, ainda envolvida na camisa de noite, que lhe desenhava a simetria do corpo na noite anterior, ornamentada além disso, com um chapéu de castor duma certa antiguidade, que ela usava com muito à vontade, sobre a coifa de dormir, já mencionada.

‑ Irra para tudo isto! ‑ vociferou abrindo o aparador. Não encontro a colher da escola em parte nenhuma!

‑ Não te incomodes com isso, querida ‑ observou Squeers duma maneira calma ‑ não tem importãcia.

‑ Não tem importância! Que bem que falas! ‑ retorquiu Mrs. Squeers vivamente ‑ Não é a manhã do sangue, Squeers?

‑ É sim, querida! Esqueci‑me! De vez em quando purificamos o sangue dos rapazes, Nickleby.

‑ Purificar uma fava ‑ explodiu ela. ‑ Não julgue que vamos gastar dinheiro em flor de enxofre e em melaço, apenas para os purificar, e se pensa que tratamos os negócios dessa

maneira está muito enganado, digo‑lhe francamente!

‑ Minha querida ‑ admoestou Squeers, franzindo as sobrancelhas. ‑ Então?

‑ Disparate ‑ replicou Mrs. Squeers ‑ Se ele vai ser professor, tem de saber quanto antes que não se pode cair em exageros com os rapazes. Apanham o enxofre e o melaço em parte para evitar de estarem doentes, o que nos dá uma cárga de trabalho, e em parte porque lhes tira o apetite e se tornam mais baratos ao pequeno almoço e ao jantar. Isto faz‑lhes bem a els e a nós, ao mesmo tempo.

Tendo dado esta explicação, Mrs. Squeers meteu a cabeça dentro do gabinete e fez uma busca severa à procura da colher, ajudada por Mr Squeers. Poucas palavras trocaram enquanto andaram empenhados nisto, mas Nicholas pôde distinguir que Mr. Squeers censurava a mulher, considerando imprudente tudo quanto dissera e Mrs. Squeers retorquindo que tudo quanto ele dizia eram palermices. Como resultoù infrutífera a grande batida à colher, foi chamado o Smike que, empurrado por Mrs. Squeers e socado pelo marido, teve um lampejo de inteligência, sugerindo que talvez Mrs. Squeers a tivesse na algibeira, como se verificou ter. Mas como Mrs Squeers tinha antes protestado que não a tinha, Smike recebeu um outro soco na orelha pela ousadia de contradizer a patroa, com a promessa duma tremenda sova se não fosse mais respeitador para o futuro. Por aqui se vê que o rapaz não tirou vantagem alguma da sua sugestão.

‑Uma mulher muitíssimo extraordinária. ‑ confessou Squeers, quando a sua consorte saiu à pressa, empurrando o desgraçado diante de si.

‑ Na verdade, sir ‑ observou Nicholas.

‑ Esta mulher, Nickleby, é sempre a mesma. sempre a mesma criatura apressada, viva, activa e poupada que acaba de ver. Nicholas suspirou involuntariamente Pela agradável perspectiva doméstica que se abriu perante si, mas Squeers estava, felizmente, demasiado ocupado com as suas reflexões para perceber isso.

‑ É a minha vez de repetir o que disse em Londres ‑ continuou Squeers ‑ para os rapazes, é uma mãe. Mas é mais do que uma mãe para eles; dez vezes mais. Faz coisas pelos rapazes, Nickleby, que não acredito haja metade das mães a fazê‑lo pelos próprios filhos!

‑ Acredito que não haja, sir! ‑ respondeu Nicholas. O facto era que, tanto Mr. como Mrs. Squeers, viam os rapazes como seus verdadeiros inimigos. Por outras palavras, arrancavam aos rapazes o mais que podiam e neste ponto estavam de acordo e procediam de conformidade. A diferença entre eles é que Mrs. Squeers professava a luta em campo aberto contra o inimigo, ao passo que Mr. Squeers a praticava velhacamente, mesmo em casa.

‑ Mas, vamos ‑ disse Mr. Squeers, interrompendo o progresso de alguns pensamentos a este respeito na cabeça do seu ajudante. ‑ Vamos para a aula e ajude‑me a vestir o casaco da escola, sim?

Nicholas ajudou o patrão a envergar um velho guardapó de fustão, que tirou duma escápula no corredor, e Squeers, armando‑se com a bengala, atravessou o pátio para uma porta nas traseiras.

‑ Ali ‑ informou o mestre‑escola, ao entrarem juntos ‑ é a nossa loja, Nickleby.

Havia tantos objectos para atrair a atenção e tantas criaturas que ao princípio, Nicholas não os viu. A pouco e pouco percebeu um aposento nu e sujo, com duas janelas, um décimo das quais tinha vidro e o resto cadernos velhos e papel a substituí‑lo. Havia duas compridas carteiras, cheias de tinta, uma secretária para Squeers e outra para o seu ajudante. O tecto era suportado, como o dum celeiro, por escoras e vigas cruzadas, e as paredes estavam tão manchadas, que era impossivel dizer se tinham sido alguma vez pintadas ou caiadas.

Mas os alunos! Os jovens fidalgos! Como os últimos pálidos raios de esperança, a mais remota ténue luz de algum bem derivado dos seus esforços nesta caverna, se extinguiu no coração de Nicholas quando olhou em volta! Caras pálidas e disformes, figuras fracas e esqueléticas, crianças com a aparência de velhos, deformidades feitas com ferros nos membros, rapazes de acanhado crescimento, e outros cujas compridas pernas magras mal podiam suster os corpos curvados. Havia olhos remelosos, lábios rachados, pés tortos e toda a fealdade mostrando a invulgar aversão concebida por pais, pelos seus descendentes, ou de jovens vidas que, desde os primeiros dias da infância, tinham suportado a crueldade e a negligência.

Contudo esta cena, triste como era, tinha o seu lado grotesco, que num observador menos interessado que Nicholas, teria provocado um sorriso. Mrs. Squeers estava numa das carteiras, administrando, dum imenso alguidar, enxofre e melaço a cada um dos rapazes, com uma enorme colher de pau.

Num outro canto, chegados uns aos outros por camaradagem, estavam os rapazitos vindos na noite anterior, três dos quais com calções de coiro muito compridos e dois com calças velhas. A pouca distância destes, estavam sentados o filho juvenil de Mr. Squeers e seu herdeiro ‑ uma semelhança flagrante do pai ‑ dando pontapés com muita força nas mãos de Smike, que lhe calçava umas botas novas, suspeitosamente parecidas com as trazidas pelo mais pequeno dos dois rapazes, na sua viagem para o colégio.

Além destes, havia longa fila de rapazes à espera, com o aspecto de quem lhes não agradava serem medicados; e uma outra fila que tinha escapado à pena, cuja satisfação se traduzia por uma variedade de bocas contorcidas. O conjunto estava vestido com os fatos mais extraordinários, das cores mais variadas e tão mal conjugadas, que eram dum ridículo irresistível.

‑ Então! ‑ exclamou Mr. Squeers, dando uma grande pancada com a bengala na carteira, o que fez metade dos rapazitos dar um pulo. ‑ Essa medicação não acaba?

‑ Acabou agora ‑ respondeu Mrs. Squeers, chocando, com a pressa, no último rapaz e batendo‑lhe com a colher de pau para o restabelecer. ‑ Vem cá, Smike; leva isto daqui para fora! Olho vivo!

Smike desapareceu com o alguidar e Mrs. Squeers, tendo chamado um rapazinho de cabelos encaracolados, limpou as mãos a ele e correu para o lavadouro, onde havia un grande caldeirão em cima dum pequeno lume.

Numas pequenas escudelas, alinhadas em cima duma mesa, Mrs. Squeers, ajudada pela esfaimada criada, deitou uma composição castanha que parecia o interior de almofadas para alfinetes e se chamava sopa. Em cada escudela estava uma minúscula fatia de pão escuro, por meio da qual chupavam a sopa é, quando esta acabou os rapazes comeram o pão. Terminado o pequeno almoço,Mr. Squeers disse em voz solene:

‑Possa o Senhor tornar‑vos verdadeiramente agradecidos pelo que recebeis!

Nicholas engoliu uma escudela de sopa pela mesma razão que alguns selvagens tragam terra. Dispôs também duma fatia de pão com manteiga, concedida em virtude do seu cargo, depois do que se sentou aguardando a hora da aula.

Não pôde deixar de observar como todos os rapazes pareciam tristes e silenciosos. Não havia aquele barulho próprio duma escola, nem as ruidosas brincadeiras, ou uma jovialidade cordial. As crianças sentavam‑se humilhadas e a tremer parecendo faltar‑lhes o ânimo para se moverem. O único aluno que evidenciou sinais de desinquietação ou brincadeira foi Mister Squeers, consistindo o seu principal divertimento em pisar os dedos dos pés dos outros rapazes com as suas botas novas.

Depois duma espera de meia hora, apareceu Mr. Squeers. Os rapazes tomaram os seus lugares e agarraram nos livros, sendo a média destes últimos um livro por cada oito leitores. Depois de alguns minutos, durante os quais Mr. Squeers esteve profundamente absorvido, chamou a primeira classe.

Obedientes a esta ordem, alinharam‑se em frente da secretária do mestre‑escola meia dúzia de espantalhos, com os joelhos e os cotovelos à mostra, um dos quais colocou um livro imundo e rasgado, debaixo do seu sapiente olhar.

‑Esta é a primeira classe da cartilha inglesa e de filosofia, Nickleby ‑ informou Squeers, fazendo um sinal a Ni cholas para se pôr em pé a seu lado. ‑ Vamos arranjar uma de latim para lhe ser entregue. Então, onde está o primeiro rapaz?

‑Desculpe, sir, está limpando a janela da sala da rectaguarda ‑ disse o chefe interino da classe de filosofia.

‑ Se está lá, está bem! ‑ replicou Squeers. ‑ Vamos tratar do modo prático de ensinar, Nickleby; o sistema regular da educação. L‑i‑m‑p‑a‑r, verbo transitivo, tornar limpo, tirar sujidade, tirar nódoas. J‑a‑n‑e‑L‑a, abertura numa parede para a entrada do ar e do sol. Quando os rapazes conhecem isto fora do livro, vão e fazem‑no justamente o mesmo princípio do uso dos globos. Onde está o segundo rapaz?

‑ Desculpe, sir, está a mondar o jardim ‑ respondeu uma voz fraca.

‑ Com certeza! ‑ disse Squeers, sem se desconcertar. Então está lá. botânica, substantivo, designando o estudo das plantas. Quando eles aprenderem que botânica quer dizer o estudo das plantas, vão tratá‑las e conhecem‑nas. Tal é o meu sistema, Nickleby; o que pensa sobre ele?

‑ É muito útil, de qualquer modo ‑ respondeu Nicholas significativamente.

‑ Acredito ‑ replicou Squeers, não notando a ênfase do seu assistente. ‑ Terceiro rapaz, o que é um cavalo?

‑ Um animal, sir ‑ respondeu o rapaz.

‑ Assim é ‑ confirmou Squeers. ‑ Não é, Nickleby?

‑ Creio não haver dúvida disso, sir ‑ retorquiu Nicholas.

‑ Decerto não há ‑ concordou Squeers. ‑ Um cavalo é um quadrúpede e, em latim, quadrúpede significa animal, como toda a gente que for à gramática, sabe. De contrário, para que servem as gramáticas?

‑ Para quê, na verdade? ‑ disse Nicholas, distraído.

‑ Como tu és perfeito nisso ‑ continuou Squeers, voltando‑se para o rapaz ‑ vai tomar conta do meu cavalo e esfrega‑o bem, senão, esfrego‑te eu. O resto da classe pode‑se ir embora e vai tirar água até alguém dizer para parar.

Dizendo isto despediu a primeira classe para ir experimentar a filosofia prática e mirou Nicholas com um olhar meio astuto, meio duvidoso, como se já não estivesse certo nesta altura, do que podia pensar ele.

‑ Esta é a maneira como ensinamos, Nickleby ‑ declarou depois duma pausa.

Nicholas encolheu os ombros de forma pouco perceptível e respondeu que vira como era.

‑ É também uma boa maneira ‑ afirmou Squeers. ‑ Agora agarre em catorze rapazes e ouça‑os ler alguma coisa, porque como sabe, precisa começar a ser útil e aqui não se alimenta a preguiça.

Mr. Squeers proferiu isto como se lhe tivesse subitamente ocorrido que, ou não devia dizer demais ao seu ajudante, ou o seu ajudante não lhe dizia o suficiente em louvor do seu estabelecimento. As crianças colocaram‑se em semi‑círculo em volta do novo professor, que as ouviu recitar as histórias contidas nas mais antiquadas cartilhas.

Com esta ocupação excitante, a manhã arrastou‑se pesadamente. A uma hora os rapazes tiveram papas de aveia e batatas com carne dura e salgada, de que Nicholas partilhou, graciosamente na sua solitária secretária. Depois disto houve outra hora para passar pelo sono na aula e tremer com frio, começando depois a escola, de novo.

Era costume de Mr. Squeers chamar todos os rapazes e fazer‑lhes uma espécie de relatório depois de cada visita semestral à cidade, referente aos parentes e amigos que vira, as notícias que ouvira, as cartas que trouxera, os recibos que tinham sido pagos, as contas que tinham ficado por pagar e assim por diante. Este solene acontecimento realizava‑se sempre na tarde do dia seguinte ao seu regresso.

Os rapazes foram chamados da casa da janela do jardim da cocheira ou do estábulo e, na escola, juntou‑se úm completo conclave quando Mr. Squeers, com um maço de papéis na mão, seguido de Mrs. Squeers com um par de bengalas, entrou no aposento e ordenou silêncio.

‑Se qualquer rapaz se permite dizer uma palavra sem licença ‑ avisou Mr. Squeers suavemente ‑ arranco‑lhe a pele das costas!

Esta proclamação especial teve o efeito desejado e, um silêncio mortal, caiu imediatamente, no meio do qual Mr. Squeers continuou:

‑Rapazes, estive em Londres e voltei para a minha fa mília e para vocês, tão forte e tão bem, como sempre.

De acordo com o costume semestral, os rapazes deram três fracos vivas, ao ouvir esta aliciante notícia.

‑ Vi os pais de alguns ‑ continuou Squeers remexendo nos papéis‑ e tão satisfeitos estão em saberem como vão os seus filhos, que não há ideia alguma deles saírem de cá, o que decerto é uma coisa muito agradável para todas as partes interessadas.

Quando Squeers disse isto duas ou três mãos ergueram‑ se para dois ou três pares de olhos, mas a maior parte dos jovens fidalgos, não tendo pais de quem falar em especial, ficaram totalmente desinteressados do assunto.

‑ Tive contrariedades que me desapontaram ‑ anunciou Squeers olhando muito zangado. ‑ O pai de Balder está em atraso um ano. São vinte libras. Onde está Bolder?

‑ Está aqui, sir ‑ responderam vinte vozes oficiosas; os rapazes são naturalmente como homens.

‑ Vem cá, Bolder ‑ convidou Squeers.

Um rapaz de aparência doentia, com as mãos cobertas de verrugas, levantou‑se do lugar e encaminhou‑se para a secretária do mestre, implorando Squeers com o olhar. A sua cara estava completamente branca devido ao rápido pulsar do coração.

‑ Bolder ‑ disse Squeers, falando muito vagarosamente por estar a considerar onde o devia apanhar. ‑ Bolder, se o teu pai pensa que por causa. O que é isto, sir?

Ao falar assim, Squeers apanhou o rapaz pelo punho do casaco, observando este com um edificante aspecto de horror e desgosto.

‑ Como se chama isto, sir? ‑ perguntou o mestre escola administrando uma pancada com a bengala para apressar á resposta.

‑ Não pude impedi‑lo, sir, de verdade! ‑ replicou o rapaz a chorar. ‑ Apareceram. Julgo que será do trabalho porco, sir... pelo menos não sei o que é, sir, mas não foi culpa minha!.

‑ Bolder ‑ disse Squeers, apanhando‑lhe o punho da camisa e cuspindo na palma da mão direita para agarrar bem a bengala. ‑ Tu és um jovem patife incorrigivel e como a última sova não deu resultado, temos de ver o que fará a próxima!

Com isto e sem fazer caso dum grito implorando piedade, Mr. Squeers cáiu sobre o rapaz e deu‑lhe uma tareia mestra, só o deixando quando o braço ficou cansado.

‑ Agora‑ prosseguiu Squeers, depois de ter parado ‑ esfrega o mais que quiseres! Cala-te com esse berreiro! Põe‑no lá fora, Smike!

O pobre rapaz sabia muito bem, de longa experiência, o que custava uma hesitação em obedecer, por isso levou a vítima por uma porta lateral e Mr. Squeers empoleirou‑se na sua secretária, ajudado por Mrs. Squeers, que ocupava uma outra ao lado.

‑ Agora vamos ler ‑ anunciou Squeers ‑ uma carta para o Cobbey! Levanta-te, Cobbey.

Um outro rapaz levantou‑se e olhou com firmeza para a carta, enquanto Squeers fazia um extracto mental da mesma.

‑ Bem! ‑ disse Squeers. ‑ A avó de Cobbey morreu e o seu tio John começou a beber. São todas as notícias que manda a irmã, excepto dezoito pence, o que paga à justa aquele vidro partido. Mrs. Squeers, minha querida, queres tomar conta deste dinheiro?

A respeitável senhora embolsou os dezoito pence com um ar muito comercial e Squeers passou para o rapaz a seguir, tão friamente quanto possível.

‑ Graymarsh é quem se segue ‑ avisou. ‑ Levanta‑te, Graymarsh!

Levantou‑se um outro rapaz e o mestre‑escola olhou para a carta, como fizera antes.

‑ A tia materna de Graymarsh ‑ informou, quando tomou conhecimento do conteúdo ‑ está muito satisfeita por saber que ele se sente feliz, e manda respeitosos cumprimentos para Mrs. Squeers, a quem considera um anjo. Pensa igualmente que Mrs Squeers é boa demais para este mundo, mas espera que ele só daqui saia daqui a muito tempo, para encontrar um negócio. Mandaria os dois pares de peúgas desejados, se não tivesse falta de dinheiro, mas em vez disso envia um discurso e espera que Gray Marsh ponha a sua confiança na Providência. Acima de tudo esperança e que ele estude, para agradar a Mr. e Mrs. Squeers, a quem este deve ter na conta dos seus únicos amigos. Diz para gostar de Mr. Squeers, e para não criar dificuldades por dormirem cinco numa cama, o que nenhum cristão deve fazer.

‑ Ah! ‑ comentou Squeers, dobrando a carta.

‑ Uma mensagem deliciosa. Muito afectuosa!

Era afectuosa num sentido, pois a tia materna de Graymarsh, conforme supunham muito positivamente os seus íntimos amigos, mão passava de sua própria mãe. Contudo Squeers, sem aludir a esta parte da história, que teria sido imoral para os rapazes, continuou com a sua missão, chamando Mobbs; levantou‑se outro rapaz e sentou‑se Graymarsh.

‑ A madrasta de Mobbs ‑ informou Squeers ‑ caíu à cama por saber que ele não comia bem e desde então está muito doente. A senhora deseja saber, o mais depressa possível, onde ele deseja chegar se continuar a rejeitar a comida, e como pode torcer o nariz ao caldo de fígado de vaca, depois de o seu bom mestre o ter abençoado. Isto foi‑lhe dito pelos jornais de Londres, não por Mr. Squeers, por ser muito bom e muito puro para fazer intrigas, deixando‑a tão apoquentada que Mobbs não pode calcular. Está muito triste por o ver descontente, o que é pecado e um horror, e pede a Mr. Squeers para o castigar até ele adquirir um estado de espírito mais feliz. Em vista disto, deixa de lhe mandar o meio penny semanal para as suas despesas, e deu aos missionários uma navalha com duas lâminas e um saca‑rolhas, que comprara de propósito para ele.

‑ Um estado de sentimentos de mau cará cter ‑ comentou Squeeers, depois duma terrível pausa, durante a qual molhara outra vez a palma da mão direita. ‑ Não se pode tolerar! Deve‑se manter a alegria e o contentamento. Mobbs! Vem cá!

Mobbs encaminhou‑se vagarosamente para a secretária, esfregando as mãos, na expectativa de ter um bom motivo para isso, e depressa se retirou depois pela porta lateral, com o tal bom motivo que um rapaz precisa de ter.

A seguir Mr. Squeers continuou a abrir a miscelânea das cartas, algumas com dinheiro, do qual Mrs. Squeers tomava conta, e outras referentes a pequenos artigos de vestuário, como bonés, etc, dizendo de todos eles a mesma senhora que eram, ou compridos de mais, ou curtos de mais, por lhes deitar os cálculos de forma a servir para o jovem Squeers. Despachado este assunto, foram dadas umas poucas de lições insignificantes e Squeers retirou‑se para a sua lareira, deixando Nicholas a tomar conta dos rapazes na aula, onde fazia muito frio e onde foi servida uma refeição de pão com queijo, pouco depois de escurecer.

Nicholas sentou‑se a um canto, junto dum fogareiro, tão deprimido e desgostoso pelo que presenciara ‑ e não pudera impedir! ‑ que lhe apetecia que a morte viesse. Escrevera à mãe e à irmã, relatandlhes a viagem, mas pouco falando de Dotheboys Hall. Esperava fazer algum bem ficando e, além disso, não queria chamar a cólera do tio para os seus, se abandonasse o posto. Havia, contudo, uma reflexão que o perturbava; era o destino da sua irmã Kate. Tudo de mau havia a esperar do tio, a quem novamente odiava, compreendendo perfeitamente que este sentimento era recíproco.

Quando estava absorvido nestas meditações, viu subitamente a cara de Smike erguida para ele, ajoelhado em frente do fogão, a tirar umas poucas de brasas da lareira e pô‑las no lume. Parava para deitar um olhar para Nicholas e quando viu que estava a ser observado, atirou‑se para trás como se esperasse uma bofetada.

‑ Não precisas de ter medo de mim! ‑ disse Nicholas, gentilmente. ‑ Tens frio?

‑N... n... ão.

‑Mas estás a tremer.

‑ Não tenho frio ‑ respondeu depressa Smike. ‑ Estou acostumado.

Nos seus modos havia um receio tão nítido de não ofender e era uma criatura tão tímida, de espírito acanhado, que Nicholas não pôde deixar de comentar Pobre rapaz.

Se tivesse batido no desgraçado, este fugiria sem uma palavra; assim, desatou a chorar.

‑ Oh, meu Deus, meu Deus! ‑ exclamou, cobrindo a cara com as mãos gretadas e calosas. ‑ Parte‑se‑me o coração! Parte‑se, sim!

‑ Silêncio! ‑ preveniu Nicholas, pondo‑lhe a mão no ombro. ‑ Sê um homem; és quase um pelos anos, Deus te ajude!

‑ Pelos anos! ‑ repetiu Smike a chorar. ‑ Oh! Meu Deus! Há quantos anos! Há quantos eu era uma criancinha, mais nova do que qualquer dos que aqui estão agora! E onde estão eles hoje?

‑ De quem falas? ‑ perguntou Nicholas, desejando incutir ânimo na pobre criatura. ‑ Conta‑me.

‑ Dos meus amigos ‑ respondeu ele ‑ de mim. dos meus. Oh Como tenho sofrido!

‑ Há sempre esperança ‑ animou Nicholas, sem saber o que dizer.

‑ Não ‑ retorquiu o outro. ‑ Não, para mim não há nenhuma! Lembra‑se do rapaz que morreu aqui?

‑ Como sabes eu não estava cá ‑ informou Nicholas suavemente. ‑ Mas o que se passou?

‑ Eu estava com ele à noite ‑ informou o jovem, chegando-se mais para o seu interlocutor ‑ e quando estava silencioso já não gritava pelos amigos, quis vir sentar‑se junto de mim mas começou a ver caras em volta da cama, que vinham de súa casa, dizendo que lhe sorriam e conversavam com ele! Por fim morreu, levantando a cabeça para as beijar. Está a ouvir‑me?

‑ Sim, sim ‑ afirmou Nicholas.

‑ Que caras me sorrirão quando eu morrer? ‑ perguntou o seu companheiro, estremecendo. ‑ Quem falará comigo nestas compridas noites? Não podem vir de casa; amedrontar‑me‑iam se viessem, visto não as conhecer. Dor e medo, dor e medo para mim. vivo ou morto! Não há esperança, não há esperança!.

A campainha tocou para irem para a cama, e o rapaz, obedecendo ao som, no seu habitual estado de indiferença, fugiu, ansioso por não ser notado. Foi com o coração a sangrar que Nicholas pouco depois ‑ não, não se retirou; ali não havia retirada ‑ seguiu para o dormitório completamente cheio e sujo.

 

MISS SqUEERS, MRS. SQUEERS, Mister SQUEERS; VárIos assuntos e pesos, tanto com os Squeers coMo com NIcholas Nnckleby

Quando Mr. Squeers deixou a aula à noite, foi para a sua lareira, que estava situada num pequeno aposento nas traseiras do prédio, onde a esposa, o amável filho e a prometedora filha se encontravam em alegre convívio. Mrs. Squeers ocupava-se em coser meias e a jovem e o moço cavalheiro entretinham‑se a socar‑se para regularem juvenis diferendos por meio duma contenda pugilística através da mesa, a qual à aproximação do digno pai, foi substituída por uma troca de pontapés por baixo da dita.

Miss Fanny Squeers estava nos seus vinte e trés anos e se há graça ou formosura inseparável neste período da vida não há razão para supor ser ela uma solitária excepção à regra. Não era alta como a mãe, mas antes baixa como o pai de quem herdara a voz áspera e uma notável expressão do olho direito.

Miss Squeers passara alguns dias com uma amiga da vi zinhança e acabava justamente de regressar ao tecto paterno. Devido a esta circunstância, nada sabia da existência de Nicholas até Mr. Squeers o fazer objecto da sua conversa.

‑ Bem, minha querida, o que pensa agora dele? ‑ perguntou Squeeres puxando uma cadeira.

‑ Pensar de quê? ‑ inquiriu a esposa que, como se verá muitas vezes, não era versada em gramática, graças a Deus.

‑ Do jovem. do novo professor. de quem havia de ser?

‑ Oh! Esse nickleby ‑ exclamou com impaciência. Odeio-o!

‑ Porque o odeias, minha querida? ‑ estranhou Squeers.

‑ O que te importa? ‑ retorquiu ela. ‑ Se o odeio, é suficiente!

‑Muito suficiente para ele, e mais do que suficiente, devo dizê‑lo, se ele soubesse!‑respondeu Squeers num tom pacífico. ‑ Apenas perguntei por curiosidade, minha querida.

‑ Então, bem, se queres saber ‑ replicou Mrs. Squeers - vou‑te dizer. Porque é orgulhoso, altivo, presumido, um pavão de proa levantada.

Mrs. Squeers, quando excitada, costumava empregar uma linguagem expressiva e fazer uso, além disso, duma pluralidade de epítetos, alguns dos quais eram figurados, como a palavra pavão e a alusão à proa de Nicholas, que não podem ser tomados no sentido literal, mas antes produzir uma latitude de construção, de acordo com a fantasia dos ouvintes.

‑ O quê? ‑ disse Squeers, deitando óleo neste mar revolto. ‑ Ele está barato, minha querida; o jovem está muito barato!

‑ Não tanto como isso! ‑ replicou Mrs. Squeers.

‑ Cinco libras por ano. ‑ informou Squeers.

‑ O que se segue daí? Se não precisas dele, é claro, não é?

‑ Mas é que nós precisamos dele ‑ insistiu Squeers.

‑ Não vejo que precises mais dele do que da morte ‑ retorquiu a mulher. ‑ Não me digas!. Podes pôr nos cartões e nos anúncios, Educação por Mr. Wackford Squeers e ajudantes competentesv, sem teres qualquer ajudante, não podes? Não é isso que sempre têm feito todos os directores das escolas? Não te perdoo!

‑ Pois não ‑ observou Squeers com um ar severo. ‑ Mas agora Mrs. Squeers, vou dizer‑te o que tenho a participar. Neste assunto de ter um professor, seguirei a minha vontade, se me dás licença. A um condutor de escravos nas Índias Ocidentais é permitido ter um homem abaixo dele para que os pretos não fujam, ou armem uma rebelião; e eu terei um homem abaixo de mim para fazer o mesmo com os nossos pretos, até à ocasião em que o pequeno Wackford seja capaz de tomar conta da escola.

‑ Vou tomar conta da escola quando for um homem, pai?

‑perguntou Wackford Júnior, suspendendo, no excesso do seu deleite, um maldoso pontapé que ia administrar na irmã.

‑ Sim, meu filho ‑ afirmou Mr. Squeers em tom sentimental.

‑ Oh! Não darei os rapazes por nada nesta vida! ‑ exclamou o simpática criança, agarrando na bengala do pai. ‑ Ó pai, posso fazê‑los guinchar outra vez?

Foi um momento de orgulho na vida de Mr. Squeers quando se apercebeu da explosão de entusiasmo do seu jovem filho e viu nele a prefiguração da sua futura eminência. Meteu‑lhe um péni na mão e expandiu os seus sentimentos como a exemplar esposa também fez com uma gargalhada aprovadora.

‑ Sórdido macaco emproado, é como eu o considero - declarou Mrs. Squeers, voltando a Nicholas.

‑ Suponho que é ‑ replicou Squeers. ‑ tão emproado na nossa aula como em qualquer parte, não é? Especialmente se não gostar.

‑ Bem ‑ observou Mrs. Squeers ‑ há qualquer coisa nisso. Espera que ele abata o orgulho e não será por culpa minha se o não fizer.

Um professor‑ajudante orgulhoso, numa escola de Yorks hire, era uma coisa tão extraordinária e inconcebível ‑ já o professor‑ajudante era uma novidade, mas orgulhoso, um ser de cuja existência a imaginação mais fantasiosa não sonhara! ‑ que Miss Squeers, raras vezes preocupada com os assuntos escolares, perguntou com muita curiosidade quem era esse nickleby, que se dava tais ares.

‑ Nickleby ‑ corrigiu Squeers, soletrando o nome de acordo com o excêntrico sistema que lhe borbulhava no cérebro. A tua mãe dá sempre nomes errados às coisas e às pessoas.

‑ Isso não importa ‑ retorquiu Mrs. Squeers. ‑ Vejo-as como devem ser, é quanto basta para mim. Observei-o esta tarde quando estiveste a soar o pequeno Bolder. Durante todo o tempo teve o olhar carregado como núvens de trovoada e, duma vez levantou‑se, como se pensasse ir contra ti. Vi‑o, embora ele não percebesse!

‑ Não faça caso, pai ‑ aconselhou Miss Squeers, quando o chefe da família estava quase a responder. ‑ Quem é o homem?

‑ Meteu‑se na cabeça do teu pai a tolice de que ele é filho dum fidalgo pobre, que morreu no outro dia ‑ informou Mrs. Squeers.

‑O filho dum fidalgo!

‑Sim, mas eu não creio uma palavra disso. Se ele é, de facto, filho dum fidalgo, é um impostor, essa é a minha opinião.

Mrs. Squeers queria dizer enjeitado, mas tais enganos eram muito frequentes nela, valendolhe como consolo o axioma filosófico que dali a cem anos, ninguém se lembraria deles.

‑ Não é nada disso! ‑ disse Squeers em resposta à observação acima. ‑ O pai dele estava casado com a mãe muito antes dele nascer e ela ainda está viva. Se fosse ‑ e não era negócio da minha conta! ‑ ganhávamos como compensação um bom amigo por o termos aqui. E se gosta de ensinar aos rapazes qualquer coisa, além de tomar conta deles, não tenho objecções a fazer.

‑ Digo outra vez que o odeio mais que ao veneno ‑ afirmou Mrs. Squeers com veemência.

‑ Se não gostas dele, minha querida ‑ respondeu Squeers ‑ não conheço ninguém capaz de mostrar melhor o seu desprazer do que tu e, com ele, não há motivo para teres o trabalho de o encobrir.

‑ Nem o pretendo, posso-te assegurar! ‑ confirmou ela.

‑ Perfeitamente ‑ disse Squeers ‑ e se ele tem algum orgulho, como creio que tem, não julgo haver mulher alguma em Inglaterra para abater o espirito de qualquer pessoa tão depressa como tu, minha querida!

Mrs. Squeers riu imenso ao receber estes aduladores cumprimentos e confessou ter abatido, nos seus tempos, um ou dois altos espíritos.

Miss Squeers seguiu cuidadosamente esta e outras conversas sobre o assunto até se retirar para dormir, altura em que interrogou a famélica criada minuciosamente com respeito à aparência exterior e procedimento de Nicholas. A es tas perguntas a rapariga deu respostas tão entusiásticas, respostas coroadas por uma observação tão laudatória sobre os seus lindos olhos escuros, o seu meigo sorriso, as suas pernas direitas ‑ deu uma importância particular às pernas, por elas serem, geralmente, tortas em Dotheboys Hall ‑ que, em breve, Miss Squeers chegou à conclusão do novo assistente ser uma pessoa notável, ou como ela fraseou significativamente para si alguma coisa completamente fora do vulgar. E por isso, Miss Squeers resolveu fazer uma observação pessoal de Nicholas, precisamente no dia seguinte.

Na execução do seu desígnio, a rapariga aguardou a oportunidade da mãe estar ocupada e o pai ausente, para entrar na aula, como se se tratasse dum acto meramente acidental, a fim de ir buscar uma pena afiada, onde vendo apenas Nicholas a reger os rapazes, corou intensamente, aparentando grande confusão.

‑ Peço desculpa ‑ balbuciou Miss Squeers. ‑ Pensei que o meu pai estivesse aqui. ou podia ser. Meu Deus, que desastrada sou!

‑ Mr. Squeers está ausente ‑ informou Nicholas, de forma alguma rendido pela aparição, embora fosse inesperada.

‑Sabe se demora muito, sir? ‑ perguntou Miss Squeers com tímida hesitação.

‑ Ele disse cerca de uma hora ‑ respondeu Nicholas. delicadamente, decerto, mas sem qualquer indicação dos encantos de Miss Squeers lhe fazerem bater o coração mais apressadamente.

‑ Nunca aconteceu uma coisa tão aborrecida! ‑ exclamou a rapariga. ‑ Obrigada! Lamento ter sido intrusa. Se soubesse que o meu pai não estava, não teria de maneira alguma. é muito irritante. deve parecer estranho ‑ murmurou Miss Squeers, corando mais uma vez e relanceando o olhar da pena que tinha na mão para Nicholas, para a secretária, e desta para a pena.

‑ Se é tudo quanto quer ‑ disse Nicholas, apontando para a pena e sorrindo pelo embaraço da filha do mestre‑escola - talvez possa substituí‑lo.

Miss Squeers deu uma vista de olhos para a porta, como perguntando se devia avançar um pouco mais na intimidade com um estranho; depois, a presença dos quarenta rapazes na aula, pareceu dar‑lhe forças, acabando, finalmente por se chegar para junto de Nicholas e entregar‑lhe a pena na mão, com uma mistura de reserva e condescendência muito avassaladora.

‑ Quer a ponta macia ou dura? ‑ inquiriu Nicholas, sorrindo para não desatar às gargalhadas.

‑ Ele tem um lindo sorriso! ‑ pensou Miss Squeers.

‑ O que diz? ‑ perguntou Nicholas.

‑ Meu Deus, estava agora a pensar noutra coisa ‑ desculpou‑se Miss Squeers. ‑ O mais macio possível, se faz favor.

Com estas palavras Miss Squeers suspirou; podia ter dado a entender a Nicholas que o seu coração era macio e que a pena devia condizer.

Conforme estas instruções, Nicholas aparou a pena e quando a deu a Miss Squeers, esta deixou‑a cair; pretendendo apanhá‑la, Miss Squeers fez o mesmo movimento , resultando que as mãos se embrulharam, levando vinte e cinco rapazinhos a rir com gosto, o que acontecia pela primeira vez, nesse semestre.

‑ Sou muito desastrado ‑ confessou Nicholas, abrindo a porta para a rapariga sair.

‑ Absolutamente nada, sir ‑ replicou Miss Squeers. ‑ A culpa foi minha. Foi tudo uma patetice. bom‑dia!

‑Bom‑dia! ‑ respondeu Nicholas. ‑ Na próxima vez espero aparar‑lhe uma pena menos grosseiramente. Cuidado! Está a morder a ponta e estraga‑a.

‑ Realmente ‑ disse Miss Squeers ‑ estou tão confúsa que mal sei o que. Desculpe a maçada que lhe dei.

‑ Maçada nenhuma ‑ respondeu Nicholas, fechando a porta da aula.

‑Nunca vi em toda a minha vida umas pernas assim! murmurou Miss Squeers, afastando‑se.

De facto Miss Squeers estava apaixonada por Nicholas Nickleby. Mas para contar a súbita paixão da rapariga é preciso dizer que entre ela e a amiga, em cuja casa tinha es tado, pactuara‑se solenemente comunicarem aquela que primeiro fosse pedida em casamento, sendo a outra convidada para dama de honor. Ora esta amiga com dezoito anos era filha dum moleiro e acabava de ser pedida por um pequeno comerciante de cereais. Miss Squeers, já com vinte e cinco ficou ansiosa por poder retribuir a participação, o que lhe foi facultado pela pequena entrevista tida com Nicholas. Daí a pôr o chapéu e correr a casa da amiga para lhe dar a novidade de, não estar positivamente pedida, mas para lá caminhar, foi obra dum instante. E o pretendente era filho dum fidalgo ‑ não dum simples comerciante de cereais ‑ que viera como professor para Dotheboys Hall em circunstâncias notáveis e misteriosas, tendo ela boa razão para crer que os seus muito afamados encantos, o tivessem impressionado.

‑ Não é uma coisa extraordinária? ‑ perguntou Miss Squeers, carregando fortemente o adjectivo.

‑ Muitíssimo extraordinária ‑ confirmou a outra. ‑ Mas o que te disse ele?

‑Não me perguntes o que ele me disse, minha querida! Nunca fui tão domada em toda a minha vida.

‑ Parece-se com este? ‑ inquiriu a filha do moleiro, mostrando um retrato do noivo.

‑ Muito parecido. . apenas mais gentil ‑ respondeu Miss Squeers.

‑ Ah! ‑ exclamou a rapariga. ‑ Então ele tem qualquer ideia, acredita.

Miss Squeers, tendo algumas dúvidas sobre o assunto, não se importou nada em ter a confirmação por autoridade competente e, tendo chegado à conclusão de que muitos pontos condiziam entre o comportamento do comerciante de cereais e Nicholas, confidenciou à amiga coisas que este não dissera.

‑ Como gostaria de o ver! ‑ exclamou a amiga.

‑ Vê‑lo‑ás, Tilda ‑ respondeu Miss Squeers. ‑ Considerar‑me‑ia a mais ingrata das criaturas do mundo se te negasse isso. Creio que a minha mãe sai durante dois dias para ir buscar rapazes, e quando ela for, peço‑te a ti e ao John, para irem tomar chá e conhecerem‑no.

Era uma ideia encantadora e, tendo‑a discutído em pormenor, as amigas separaram‑se.

A viagem de Mrs. Squeers para ir buscar três novos rapazes e avistar‑se com os pais de dois antigos alunos para receber um pequeno saldo, foi fixada para essa tarde e não durava mais do que um dia. Quando se apresentavam estas oportunidades, Squeers costumava ir à cidade, a pretexto de negócios urgentes, e ia para a taberna até às dez ou onze horas. Como não costumava tomar parte em chás, concedeu a Miss Squeers autorização para efectuar a combinada reunião, comunicando de boa vontade a Nicholas que era esperado às cinco horas para tomar chá na saleta.

Miss Squeers andava numa roda viva à medida que o tempo se aproximava, ora arranjando o cabelo, ora vestindo‑se o mais esmeradamente possível, para que tudo isto fossem setas dirigidas ao coração de Nicholas. Mal acabara de se arranjar de modo a sentir‑se completamente satisfeita, chegou a amiga com um embrulho contendo vários pequenos adornos, que colocou sem deixar de falar. Quando se consideraram perfeitamente contentes consigo próprias, desceram as escadas, com as luvas compridas calçadas, prontas para a reunião.

‑ Onde está o John, Tilda? ‑ perguntou Miss Squeers.

‑ Foi apenas a casa arranjar‑se‑respondeu a amiga. Estará aqui a tempo do chá ser servido.

‑Estou a palpitar!‑confessou Miss Squeers.

‑ Ah! Sei o que isso é! ‑ observou a amiga.

‑ Como sabes, Tilda, não estou acostumada! ‑ informou Miss Squeers, levando a mão ao lado esquerdo.

‑ Depressa te habituarás, querida ‑ replicou a amiga.

Enquanto conversavam, a famélica criada trouxe o necessário para o chá e pouco depois alguém bateu à porta.

‑ É ele! ‑ exclamou Miss Squeers. ‑ Oh, Tilda!

‑ Cala‑te! ‑ ordenou a amiga. ‑ Dize: entre

‑ Entre ‑ repetiu Miss Squeers em voz fraca.

Nicholas entrou.

‑Boa noite ‑ cumprimentou o jovem, perfeitamente in consciente da sua conquista. ‑ Mr. Squeers disse-me que.

‑ Oh, sim, é exactamente isso ‑ interrompeu Miss Squeers. ‑ O meu pai não toma chá connosco, mas calculo que o senhor se não importa. ‑ disse ela subtilmente.

A isto Nicholas abriu muito os olhos, mas pôs o assunto de parte, friamente ‑ não se importando em particular, com qualquer coisa até ali ‑ e prestou‑se, com muita graça, a ser apresentado à filha do moleiro, ficando a rapariga encantada.

‑ Estamos à espera, apenas, dum cavalheiro ‑ informou Miss Squeers, tirando a tampa do bule e olhando para dentro, a ver como estava o chá.

Como para Nicholas era indiferente que estivesse à espera dum cavalheiro ou de vinte, não vendo razão especial para se tornar agradável, olhou para a janela e suspirou involuntariamente.

Ouvindo Nicholas suspirar, à amiga de Miss Squeers meteu‑ se‑lhe na cabeça gracejar com os espíritos abatidos dos namorados.

‑ Mas se é por eu estar aqui‑ declarou a jovem ‑ não se importem comigo. Podem conversar como se estivessem sós.

‑ Tilda ‑ repreendeu Miss Squeers, corando até à ponta dos cabelos. ‑ Fazes‑me envergonhar.

E aqui, as duas amigas desataram numa variedade de risadas, olhando furtivamente por cima dos lenços, de vez em quando, para Nicholas, que, dum estado de puro assombro, gradualmente caíu numa irreprimível gargalhada, ocasionada em parte pela clara noção de ser amado por Miss Squeers e pela absurda aparência e conduta das duas raparigas. As duas causas, tomadas em conjunto, fizeram‑no ver‑se tão sumamente ridículo que, apesar da sua triste condição, riu até ficar exausto.

‑ Bem ‑ pensou Nicholas ‑ como estou aqui e parecem esperar, por qualquer razão, que eu seja amável, não é bom fazer figura de urso. Posso bem acomodar‑me à situação.

Coramos ao dizê‑lo mas, o seu espírito juvenil e a sua vivacidade, recalcando os pensamentos tristes depressa se evidenciaram para cumprimentar Miss Squeers e a amiga com grande galantaria e, puxando uma cadeira para a mesa do chá, começou a sentir‑se mais à vontade do que um professor assistente jamais se sentiu em casa do patrão, desde que foram inventados os professores‑assistentes.

As senhoras estavam completamente deliciadas com esta nova conduta de Mr. Nicholas, quando chegou o esperado mancebo, com o cabelo muito húmido por o ter molhado recentemente, uma camisa lavada, embora o colarinho devesse ter pertencido a um antepassado gigante, formando juntamente com o colete branco de idênticas dimensões, o principal ornamento da sua pessoa.

‑ Então, John? ‑ disse Miss Matilda Price que, era o nome da filha do moleiro.

‑ Então? ‑ repetiu John, com a boca tão aberta, que o próprio colarinho não conseguia esconder.

‑ Desculpe‑me ‑ interrompeu Miss Squeers, apressando‑se a fazer as honres da casa ‑ Mr. Nickleby. Mr. John Browdie.

‑ Um seu criado, sir ‑ cumprimentou John, que tinha pouco mais de 1,82m de altura, com uma cara e um corpo bastante acima da devida proporção.

‑ Às suas ordens, sir ‑ replicou Nicholas, fazendo enormes estragos no pão com manteiga.

Mr. Browdie não era um cavalheiro de grandes poderes de conversação, por isso sorria vezes de mais e, tendo dispensado a sua marca de reconhecimento a todos os presentes, sorriu a coisa alguma em especial e serviu‑se.

‑ A velhota está ausente, não está? ‑ perguntou Mr. Browdie com a boca cheia.

Miss Squeers disse que sim com a cabeça. Mr. Browdie abriu a boca num riso duma largura especial, como se pen sasse haver alguma coisa realmente para rir, e continuou a ingerir pão com manteiga com redobrado vigor. Foi um instante, enquanto ele e Nicholas linparam o prato.

‑Não vai ficar a comer pão com manteiga toda a noite, homem, espero! ‑disse Mr. Browdie depois de olhar, pasmado, para Nicholas, durante um bocado, por cima do prato vazio.

Nicholas mordeu o lábio e corou, mas fingiu não ouvir a observação.

‑ Aos rapazes ‑ declarou Mr. Browdie, rindo ruidosamente ‑ não metem comida lá dentro. Se vai ficar aqui muito tempo, dentro em breve não será mais do que pele e a osso!

‑ O senhor é brincalhão ‑ comentou Nicholas aborrecido.

‑ Não. Não conheci senão o outro professor ‑ replicou Mr. Browdie ‑ que era magro como um bacalhau.

A lembrança da magreza do último professor pareceu dar a Mr. Browdie o maior prazer, pois riu até ter de levar os punhos do casaco aos olhos.

‑ Não sei se a sua compreensão é suficiente, Mr. Browdie, para lhe permitir perceber que as suas observações são ofensivas ‑ disse Nicholas altivamente ‑ mas se é, tenha a bondade.

‑ Se dizes mais alguma palavra, John ‑ esganiçou‑se Miss Price, fechando a boca do seu admirador quando ele ia quase a interromper ‑ ou meia palavra, nunca te perdoarei, nem te tornarei a falar.

‑ Bem, meu amor, não me importo com o homem! ‑ replicou o noivo, aplicando um cardeal beijo em Miss Price. O homem que continui. pode continuar.

Foi então a vez de Miss Squeers interceder junto de Nicholas, com muitos sinais de inquietação. O efeito desta dupla intercessão foi ele e John Browdie apertarem as mãos, com muita gravidade, por cima da mesa, e tal foi a solenidade da cerimónia, que Miss Squeers se desfez em lágrimas.

‑ O que é isso, Fanny? ‑ perguntou Miss Price.

‑ Nada, Tilda ‑ respondeu Miss Squeers, soluçando.

‑ Não há qualquer perigo, pois não, Mr. Nickleby? ‑ inquiriu Miss Price.

‑ Absolutamente nenhum ‑ retorquiu Nicholas. ‑ É Absurdo!

‑ Muito bem ‑ sussurrou Miss Price ‑ diga- lhe qualquer coisa amável e ela depressa se recompõe. Quer que o John e eu vamos para a cozinha e voltemos depois?

‑ De forma nenhuma! ‑ replicou Nicholas, verdadeiramente alarmado com a proposta. ‑ Por que haviam de fazer isso?

‑ Bem ‑ disse Miss Price, apartando‑se com ele para o lado e falando com certo desprezo. ‑ Você é a pessoa indicada para lhe fazer companhia.

‑ O que quer dizer? ‑ perguntou Nicholas. ‑ Não sou nada a pessoa para fazer companhia. aqui, em qualquer caso. Não sei explicar isto!

‑ Não, nem eu. ‑ replicou Miss Price ‑ mas os homens são sempre inconscientes, foram e serão; é o que posso explicar muito facilmente.

‑ Inconsciente?! ‑ exclamou Nicholas. ‑ O que supõe? Não quer dizer que pensa.

‑ Oh! não, não penso nada! ‑ retorquiu Máss Price com impertinência. ‑ Olhe para ela, tão lindamente vestida e com tão bonita aparência. na verdade quase está bela. Sinto vergonha de si!

‑ Minha querida menina, o que tenho eu com o seu lindo vestido e a sua bonita aparência? ‑ inquiriu Nicholas.

‑ Não me chame querida menina ‑ admoestou Miss Price sorrindo, pois era bonita, leviana e Nicholas era um rapaz de bela aparência‑ senão Fanny dirá que a culpa é minha. Vamos jogar às cartas!

Pronunciou estas últimas palavras em voz alta, voltou a juntar‑se ao corpulento homem de Yorkshire.

Tudo isto era ininteligível para Nicholas, que de momento, tinha apenas a impressão de Miss Squeers ser uma rapariga vulgar e a sua amiga Miss Price uma rapariga bonita; porém, não teve tempo para reflectir mais no caso por a lareira ter sido carregada e a vela espevitada e se terem sentado para jogar.

‑ Somos apenas quatro, Tilda ‑ informou Miss Squeers, olhando sorrateiramente para Nicholas ‑ por isso é melhor jogar a parceiros, dois contra dois.

‑ O que diz, Mr. Nickleby? ‑ inquiriu Miss Price.

‑ Com todo o prazer ‑ respondeu Nicholas, completamente inconsciente da atroz ofensa que estava a fazer, juntando num monte os bocados de cartões de condições da escola, representando as fichas e as destinadas a Miss Price.

‑ Mr. Browdie ‑ convidou Miss Squeers histericamente - vamos fazer uma banca contra eles?

O homem de Yorkshire concordou, aparentemente irritado com a imprudência do novo professor, enquanto Miss Squeers dardejava um olhar mortífero à amiga, dando gargalhadas convulsivas.

Foi Nicholas a dar cartas e o jogo começou.

‑ Tencionamos ganhar tudo ‑ declarou ele.

‑Creio que Tilda ganhou o que não esperava, não é verdade, querida? ‑ perguntou Miss Squeers maliciosamente.

‑ Apenas vinte, querida! ‑ respondeu Miss Price, afectando tomar a pergunta no sentido literal.

‑ Como estás sensaborona esta noite! ‑ escarneceu Miss Squeers.

‑ Não. ‑ retorquiu Miss Price. ‑ Estou até com um es pírito excelente! Estou a pensar que tu pareces estar com pouca sorte.

‑ Eu? ‑ exclamou Miss Squeers, mordendo os lábios e tremendo de ciúme. ‑ Não!

‑ Tanto melhor ‑ comentou Miss Price. ‑ O teu penteado está a desmanchar‑se, querida!

‑ Não te importes comigo! ‑ riu‑se Miss Squeers para si.

‑ É melhor atenderes o teu parceiro.

‑ Obrigado por lho lembrar ‑ agradeceu Nicholas. ‑ Assim ela o fizesse!

O homem de Yorkshire achatou o nariz uma ou duas vezes com a mão fechada, como para a conservar assim até ter uma oportunidade de a exercitar na cara doutro cavalheiro. Miss Squeers abanou a cabeça com tal indignação que o vento levantado pelos caracóis em movimento, quase apagou a vela.

‑ Realmente nunca tive tanta sorte! ‑ exclamou Miss Price com garridice, depois dum outro jogo ou dois. ‑ Creio que é por sua causa, Mr. Nickleby. Gostava de o ter sempre por parceiro.

‑ Também eu!

‑Teria uma má esposa, embora o senhor ganhasse sempre às cartas ‑ avisou Miss Price.

‑ Não se o seu desej o for recompensado ‑ respondeu Nicholas. ‑ Nesse caso estou certo de que terei uma boa esposa.

Valia a pena ver como Miss Squeers abanava a cabeça e Browdie achatava o nariz, enquanto prosseguia esta conversa. Também merecia a pena pagar para se observar isto. Deixemos em paz a evidente alegria de Miss Price em os tornar ciumentos, e a feliz inconsciência de Nicholas Nickleby em tornar todos desagradáveis.

‑ Parece que temos de conversar só connosco ‑ disse Nicholas, olhando em volta da mesa e agarrando nas cartas para uma nova partida.

‑ O senhor faz isso tão bem ‑ riu de mansinho Miss Squeers ‑ que seria uma pena interrompê‑lo. Não é assim, Mr. Browdie? Ah! Ah! Ah!

‑ Não! ‑ contestou Nicholas ‑ fazemos isto por não haver alguém para conversar.

‑ Conversaremos consigo se disser alguma coisa ‑ retorquiu Miss Price.

‑ Obrigada, querida Tilda! ‑ agradeceu Miss Squeers majestosamente.

‑Ou podemos conversar uns com os outros, se não tivermos quem converse connosco ‑ disse Miss Price, motejando a querida amiga. ‑ John, não diz qualquer coisa?

‑ Dizer qualquer coisa? ‑ repetiu o homem de Yorkshire.

‑Sim, e não esteja aí sentado tão calado e carrancudo.

‑ Então bem! ‑ respondeu ele, dando um grande soco na mesa ‑ o que tenho a dizer é isto: rebento se aguento isto por mais tempo. Tu vais para casa comigo e avisa esse jovem brejeiro para ter cautela e eu não lhe partir a cabeça na primeira vez que o encontre a jeito!

‑ Deus nos acuda, para que é tudo isto? ‑ exclamou Miss Price, afectando surpresa.

‑ Vamos para casa, digo‑te eu, vamos para casa! ‑ res pondeu o homem de Yorkshire duramente.

Quando ele deu esta resposta, Miss Squeers teve uma explosão de lágrimas pelo seu estado desesperadamente vexatório e pelo impotente desejo de lacerar a cara de alguém com as suas lindas unhas.

Este estado de coisas nasceu de diversas interpretações e procedimentos. Miss Squeers contribuiu para ele pela aspiração de se ver matrimonialmente pedida sem haver razão para tal; Miss Price em punir a amiga por querer rivalisar com ela, pela sua vaidade em querer receber os cumprimentos dum jovem e o desejo de convencer o noivo dum grande perigo, para ele adiar o casamento. Quanto a Nicholas, a sua contribuição, consistiu numa meia hora de alegria e de descontracção e num desejo muito sincero de evitar que lhe atribuissem uma inclinação por Miss Squeers.

‑ Aqui está, outra vez, a Fanny lavada em lágrimas - exclamou Miss Price, como se se espantasse de novo. ‑ Que motivos pode haver?

‑Oh, não sabe, miss, decerto não sabe! Suplico‑lhe que se não canse a inquirir ‑ declarou Miss Squeers, mostrando aquela mudança de expressão a que as crianças chamam fazer caretas.

‑ Oh! Tenho a certeza! ‑ exclamou Miss Price.

‑ E quem se importa que tenha a certeza, ou não, ma'am?

‑ replicou Miss Squeers, fazendo outra careta.

‑ As vezes a senhora é educada, ma'am ‑ considerou Miss Price.

‑ Não preciso de receber lições suas, ma'am ‑ retorquiu Miss Squeers.

‑Não precisa de se incomodar para se tornar mais vulgar do que é, ma'am ‑ respondeu Miss Price ‑ porque é absolutamente desnecessário.

Em resposta, Miss Squeers tornou‑se muito vermelha e agradeceu a Deus não ter o descaramento de certas pessoas, ao que Miss Price replicou, congratulando‑se por não possuir os sentimentos invejosos dos outros; posto o que Miss Squeers fez uma observação geral no tocante ao perigo de acompanhar pessoas de baixa condição, com o que Miss Price concordou inteiramente, observando ser uma grande verdade e na qual já pensava há muito tempo.

‑ Tilda ‑ declarou Miss Squeers com dignidade ‑ odeio-te!

‑Ah! Asseguro lhe que entre nós não há amizade perdida ‑ disse Miss Price, atando as fitas do chapéu com um arremesso. ‑ Quando me for embora há‑de chorar a valer! Bem sabe que sim!

‑ Desprezo as suas palavras, sua descarada ‑ replicou Miss Squeers.

‑ Fez-me um grande cumprimento ao dizer isso ‑ respondeu a filha do moleiro, com uma grande mesura. ‑ Desejo‑lhe uma boa noite, maam, e sonhos agradáveis!

Com esta despedida graciosa Miss Price saiu do aposento, seguida pelo enorme homem de Yorkshire, que trocou com Nicholas a peculiar careta expressiva que se vê nos melodramas, prometendo, mutuamente, futuro encontro.

Mal tinham acabado de sair já Miss Squeers realizava as predições da sua antiga amiga, desfazendo‑se em lágrimas, observada por Nicholas, que não sabia que atitude tomar e acabando, também, por sair.

‑ Isto é uma consequência ‑ pensou Nicholas, quando ia a caminho do seu escuro quarto de cama ‑ da minha execrável facilidade em me adaptar a qualquer companhia onde o acaso me leve. Se tivesse ficado mudo e quedo, isto não teria acontecido.

Escutou por uns momentos; sossego absoluto.

‑ Ficava satisfeito ‑ murmurou ‑ se tivesse qualquer oportunidade para me livrar da vista deste medonho lugar, ou da presença do seu vil dono. Irritei esta gente até aos cabelos e criei mais dois inimigos quando ‑ Deus o sabe! ‑ não precisava de nenhum. Bem, é a justa punição por ter esquecido, embora por uma hora, aquilo de que estou rodeado!

Dizendo isto foi às apalpadelas por entre a multidão dos ensonados rapazes de corações fatigados, e deitou‑se na sua cama miserável.

 

Como Mr. Ralph Nickleby cuidou da sobrinha e da cunhada.

Na segunda manhã a seguir à partida de Nicholas para Yorkshire, Kate Nickleby sentou‑se numa cadeira já muito estafada, sobre um estrado poeirento, no aposento de Miss La Creevy, tentando esta dar à núniatura a maior perfeição, pintando‑a com uma tinta de salmão esmaecida, já experimentada na miniatura dum jovem oficial.

‑ Creio tê‑la apanhado agora! ‑ disse Miss La Creevy. A verdadeira cor! Será certamente o retrato mais bonito que ainda pintei.

‑Então será o seu génio que o fará assim, estou con vencida ‑ replicou Kate, sorrindo.

‑Não, não, não estou de acordo com isso, minha querida ‑ retorquiu Miss La Creevy. ‑ O modelo é muito lindo. um modelo muito lindo, na verdade, embora, decerto, alguma coisa dependa do modo como é tratado.

‑ E não pouco! ‑ observou Kate.

‑ Nisso ten razão, minha querida ‑ disse Miss La Creevy.

‑No fundo tem razão, embora eu não considere duma importância muito grande no presente caso. Ah! as dificuldades da arte são grandes, minha querida.

‑ Devem ser, não tenho dúvidas ‑ concordou Kate, predispondo bem a sua bem humorada amiguinha.

‑Ultrapassam a mais leve concepção que possa formar ‑ replicou Miss La Creevy. ‑ Pôr olhos e narizes em cabeças que lhes não pertencem, tirar dentes. não faz ideia da maçada que dá uma pequena miniatura.

‑ A remuneração mal paga tudo isso. ‑ comentou Kate.

‑ Não paga, é a verdade ‑ confirmou Miss La Creevy - e depois as pessoas são tão exigentes e dizer que, nove em cada dez, não dão prazer em serem pintadas. Algumas vezes; Oh, como me fez parecer tão séria, Miss La Creevy!, e outras, Miss La Creevy, que riso tão afectado!, quando a verdadeira essência dum bom retrato deve ser sério ou sorridente, ou então não é um retrato.

‑ Na verdade! ‑ disse Kate, rindo.

‑ Certamente, minha querida, porque os modelos são sempre quer um, quer outro. Olhe para a Royal Academy! Todos aqueles brilhantes retratos de fidalgos com gibões de veludo preto, as mãos dobradas em cima de mesas redondas, ou de mesas com tampos de mármore, estão sérios, como sabe; e todas aquelas senhoras, que a brincar com as pequenas sombrinhas, ou com os cãezinhos, ou com as criancinhas ‑ e a regra na arte é a mesma, apenas variando os assuntos ‑ estão sorridentes. De facto ‑ continuou Miss La Creevy, baixando a voz até um murmúrio confidencial ‑ há unicamente dois estilos para pintar retratos: o sério e o sorridente; e nós usamos sempre o sério para as pessoas de profissão ‑ excepto os actores, algumas vezes ‑ e o soridente para as senhoras e cavalheiros particulares, que se não importam muito de ficar snobes.

Kate parecia altamente divertida com a informação e Miss La Creevy continuava a pintar e a conversar com inalterável complacência.

‑ Que quantidade de oficiais tem pintado ‑ comentou Kate, aproveitando uma pausa no discurso e dando uma vista de olhos pelo aposento.

‑ Quantidade de quê, criança? ‑ perguntou Miss La Creevy, levantando a vista do trabalho. ‑ Retratos de fantasia, sim, mas não verdadeiros militares.

‑ Não?

‑Meu Deus, decerto que não! São apenas empregados que alugam um dólman de uniforme para serem pintados com ele e o mandam para aqui num saco. Alguns artistas, têm um dólman e levam sete xelins e seis pence pelo aluguer e pelo camarim mas eu não faço isso por o não considerar legítimo.

Levantando-se, Miss La Creevy aplicou‑se mais intensamente ao trabalho, informando Miss Nickleby qual a feição que estava a tratar para introduzir alguma expressão particular se quisesse.

‑ E quando ‑ perguntou Miss La Creevy depois dum longo silêncio, ‑ espera ver outra vez o seu tio?

‑ Não sei. Esperava vê‑lo em breve ‑ respondeu Kate. Calculo que seja depressa, pois este estado de incerteza é pior do que tudo.

‑ Suponho que ele tem dinheiro, não tem? ‑ inquiriu Miss La Creevy.

‑ Tenho ouvido dizer que é muito rico ‑ replicou Kate. Não sei se é, mas creio que sim.

‑Ah! Pode acreditar que é, ou ele não fosse tão descortês ‑ notou Miss La Creevy, que era um misto singular de astúcia e de simplicidade. ‑ Quando um homem é um urso, é geralmente muito independente.

‑ As suas maneiras são bruscas ‑ disse Kate.

‑ Bruscas! ‑ exclamou Miss La Creevy. ‑ Um porco‑espinho ê uma cama de penas ao pé dele! Nunca encontrei um selvagem maior!

‑ apenas a sua maneira de ser ‑ observou timidamente Kate. ‑ Creio ter ouvido dizer que na sua mocidade foi desiludido ou o carácter azedou‑se‑lhe por alguma calamidade. Lamentaria pensar mal dele até saber que o merece.

‑ Isso é muito digno e bonito ‑ comentou a miniaturista

‑ e Deus me defenda de ser eu a causa disso! Mas ele podia, sem fazer falta, dar‑lhe a si e à sua mamã uma pensão com que vivessem confortavelmente até a menina se casar bem e que fosse uma pequena fortuna para ela. O que podem ser para ele, por exemplo, cem libras por ano?

‑ Não sei o que isso representaría para ele ‑ confessou Kate com energia ‑ mas para mim, seria preferível morrer, do que aceitá-las.

‑ O quê?! ‑ exclamou Miss La Creevy.

‑ Uma dependência vinda dele ‑ disse Kate ‑ amargaria toda a minha vida. Antes estender a mão à caridade!

‑Isso dum parente de quem não ouvi dizer mal, confesso, minha querida, parece‑me bastante singular.

‑ Concordo ‑ respondeu Kate, falando mais amavelmente ‑ na verdade tenho a certeza de que deve parecer. Eu. eu. apenas quero dizer que com os meus sentimentos e as lembranças de tempos melhores, não me era possível viver a expensas dos outros. não dele, particularmente, mas de qualquer um.

Miss La Creevy olhou sorrateiramente para a sua companheira, como se duvidasse não ser o próprio Ralph o objecto da repugnância, mas vendo que a sua jovem amiga estava magoada, não fez comentários.

‑ Apenas lhe peço ‑ continuou Kate, cujas lágrimas caiam enquanto falava ‑ que se empenhe um poucochinho a meú favor, permitindo‑me pela sua recomendação, apenas pela sua recomendação, ganhar, literalmente, o meu pão e ficar com a minha mãe. Se alguma vez tornarmos a sentir felicidade, será apenas devido ao meu querido irmão; mas se ele fizer isso, e Nicholas nos disser que está bem e contente, ficarei satisfeita.

Quando acabou de falar ouviu‑se um ruído por detrás do biombo, que estava entré ela e a porta, e alguém bateu no forro.

‑ Entre, quem é! ‑ gritou Miss La Creevy.

A pessoa obedeceu e, avançando imediatamente, mostrou a forma e as feições pertencentes, nem mais nem menos, do que ao próprio Mr. Ralph Nickleby.

‑ Um vosso criado, minhas senhoras ‑ Disse Ralph, olhando com aspereza para cada uma delas, por sua vez. ‑ Conversavam tão alto que era impossível fazer‑me ouvir.

Quando o homem de negócios se preparava para dar o salto com os dentes arreganhados, tinha o jeito de esconder quase os olhos sob as sobrancelhas espessas e protuberantes durante um instante e depois mostrava-os com todo o seu fulgor. Assim fez então e tentou esconder o sorriso que dividia os lábios delgados e compridos, e lhe enrugava os cantos duros da boca, dando a perceber a ambas que ouvira parte da conversa, senão toda.

‑Bati aqui no meu caminho lá para cima, quase com a certeza de a encontrar ‑ disse Ralph dirigindo-se à sobrinha e olhando desdenhosamente para o retrato. ‑ Esse é o retrato daminha sobrinha, ma'am?

‑ É sim, Mr. Níckleby ‑ respondeu Miss La Creevy com um ar muito prestimoso ‑ e, aqui entre nós, será um lindo retrato, embora não devesse dizê‑lo por ser autora do mesmo.

‑ Não se incomode a mostrar‑mo, ma am ‑ avisou Ralph, afastando‑se. ‑ Não tenho olhos para coisas dessas. Está quase acabado?

‑ Está ‑ respondeu Miss La Creevy, meditando, com o cabo do pincel na boca. ‑ Mais duas sessões.

- imediatamente, ma'am disse Ralph. ‑ Depois de amanhã já não haverá tempo a perder com bagatelas. Trabalho, maam, trabalho; todos devemos trabalhar. Alugou o seu apartamento?

‑Ainda não pus escritos, sir.

‑Ponha‑os já, ma'am; depois desta semana já não precisam dos quartos, ou se precisarem não podem pagá‑los. Minha querida, se está pronta não percamos tempo!

Presumindo amabilidade, o que lhe ficava pior do que os seus modos habituais, Mr. Ralph Nickleby deixou a rapariga passar‑lhe à frente e, curvando-se gravemente perante Miss La Creevy, fechou a porta e seguiu para o andar superior, onde Mrs. Nickleby o recebeu com muitas manifestações de consideração. Fazendo-as parar um tanto abruptamente, Ralph fez um gesto de impaciência com a mão e focou o assunto da sua visita.

‑Encontrei um lugar para a sua filha, ma'am.

‑Dir‑lhe-ei que era justamente isso o que esperava de si

‑ declarou Mrs. Nickleby. ‑ Ainda ontem de manhã, ao pequeno almoço, disse a Kate, uma vez que o teu tio arranjou daquela maneira tão rápida um lugar para Nicholes, não nos deixará, enquanto não fizer o mesmo por ti. Foram estas precisamente as minhas palavras, tanto quanto me recordo. Kate, minha querida, porque não agradeces ao teu tio?

‑ Peço‑lhe que me deixe continuar, ma'am ‑ disse Ralph, interrompendo a torrente discursiva da cunhada.

‑ Kate, meu amor, deixa o teu tio continuar ‑ avisou Mrs. Nickleby.

‑ Estou ansiosa por isso, mamã ‑ replicou Kate.

‑Então se estás ansiosa, minha querida, farias melhor deixando o teu tio dizer o que tem para dizer sem o interromperes ‑ observou Mrs. Nickleby, com muitos pequenos gestos de cabeça e franzimento de sobrolho. ‑ O tempo do teu tio é precioso, minha querida, e por muito desejosa que possas estar ‑ como tenho a certeza devem estar quaisquer parentes afeiçoados como nós, que tão pouco conheceram teu tio ‑ de sentir o prazer de o termos entre nós, não podemos, contudo, ser egoístas, mas antes ter em consideração a importante na tureza das suas ocupações na cidade.

‑ Estou‑lhe muito agradecido, ma'am ‑ disse Ralph, com subtil ironia. ‑ Na ausência de negócios, os hábitos desta família levam, aparentemente, a gastar muitas palavras antes dos negócios chegarem, quando ainda estão apenas pendentes.

‑ Receio que assim seja ‑ replicou Mrs. Nickleby com um suspiro. ‑ O seu pobre irmão.

‑ O meu pobre irmão, ma'am ‑ interrompeu Ralph asperamente ‑ não fazia ideia alguma do que fossem negócios, creio sinceramente! ‑nem sequer da significação da palavra.

‑ Receio que não ‑ confirmou Mrs. Nickleby, levando o lenço aos olhos. ‑ Se não tivesse sido eu, não sei o que teria sido dele.

Mrs. Nickleby mordera de tal forma a isca deitada por Ralph na sua primeira entrevista, que se convencera ser ela o credor do marido mais digno de dó, por causa das suas mil libras. E, contudo, amara-o ternamente e por muitos anos, sem sombra de egoismo. Tal é a irritabilidade duma súbita pobreza. Um modesto rendimento, ter‑lhe‑ia feito recuperar os seus sentimentos.

‑ Não merece a pena incomodar‑se, ma'am ‑ aconselhou Ralph. ‑ Não há nada mais inútil do que prantear o tempo passado.

‑ Assim é ‑ soluçou Mrs. Nickleby. ‑ Assim é!

‑Como sente tão ao vivo, na bolsa e pessoa, as consequências da negligência nos negócios, ma'am ‑ disse Ralphestou certo de que gravará nos seus filhos a necessidade de se dedicarem a eles desde o início da vida.

‑ Decerto que vejo isso ‑ replicou Mrs. Nickleby. ‑ Triste experiência, como sabe, meu cunhado. Kate, minha querida, põe isso na próxima carta para Nicholas, ou lembra‑me para eu pôr se escrever.

Ralph parou por uns momentos e vendo que estava absolutamente seguro da mãe, no caso da filha pôr obstáculos à sua proposta, continuou:

‑O lugar que me empenhei a procurar, ma'am, é, em resumo, para uma modista e alfaiate de senhoras.

‑ Uma modista! ‑ exclamou Mrs. Nickleby.

‑ Uma modista e alfaiate de senhoras, ma'am ‑ respondeu Ralph. ‑ As modistas em Londres, como não preciso de lhe lembrar, estão em muito boas relações com todos os assuntos da rotina normal da vida, fazendo grandes fortunas, com as suas equipagens, e são pessoas de grandes haveres e sorte.

As primeiras ideias que vieram à cabeça de Mrs. Nickleby às palavras de modista e alfaiate, foram uns cestos de verga forrados de encerados pretos, que se lembrava de ter visto andar dum lado para o outro nas ruas; mas estas ideias desapareceram com a continuação da conversa de Ralph e foram substituídas por visões de grandes casas do West End, boas carruagens particulares e conta no Banco. E, tão rapidamente se sucederam estas imagens, que mal ele acabou de falar, já ela acenava com a cabeça, dizendo: Muito certo, com aparência de grande satisfação.

‑ O que o teu tio diz é muito verdade, Kate, minha querida ‑ disse Mrs. Nickleby. ‑ Lembro-me, quando o teu pobre papá e eu viemos à cidade, depois de termos casado, duma jovem senhora me ter trazido a casa um chapéu com uma guarnição verde e branca, forrado de verde, na sua própria carruagem, que chegou à porta a todo o galope. Não estou absolutamente certa se a carruagem era dela, ou de aluguer, mas pelo menos lembro-me muito bem de que o cavalo caiu morto quando ia a dar a volta e o teu pobre pai afirmou que ele já há uma quinzena não comia.

Esta história, tão admiravelmente ilustrada, da opulência das modistas, não foi recebida com qualquer grande demonstração de prazer, visto Kate baixar a cabeça enquanto decorria o seu relato, e Ralph manifestar inteligíveis sintomas de extrema impaciência.

‑ O nome da senhora ‑ informou ele, rapidamente ‑ é Mantalini. Madame Mantalini. Conheço‑a. Vive perto de Cavendish Square. Se sua filha está disposta a experimentar este lugar, levo-a lá imediatamente.

‑ Não tens nada para dizer ao teu tio, meu amor? ‑ perguntou Mrs. Nickleby.

‑ Uma porção de coisas ‑ respondeu Kate ‑ mas agora não. Prefiro falar com ele quando estivermos sós. Ele não perde tempo por lhe agradecer e lhe dizer que conversarei durante o caminho.

Com estas palavras, Kate, fugiu para esconder os traços de emoção e para se preparar para sair, enquanto Mrs. Nickleby divertia o cunhado, contando-lhe coisas da sua passada grandeza. Estas reminiscências foram cortadas pela entrada de Kate em trajo de passeio, e Ralph, que estivera irritado e furioso durante a sua ausência, sem perder tempo e com muito pouca cerimónia, desceu para a rua.

‑ Agora ‑ disse‑lhe, agarrandolhe no braço ‑ ande o mais depressa que puder e marque o passo com que há‑de caminhar todas as manhãs para o emprego.

Dizendo isto conduziu Kate num andamento bastante rápido para Cavendish Square.

‑ Estou‑lhe muito obrigada, tio ‑ agradeceu a rapariga depois de terem andado um bocado em silêncio ‑ muito!.

‑ Estou satisfeito em ouvir isso ‑ confessou Ralph. ‑ Espero que cumprirá o seu dever.

‑ Tentarei agradar, tio ‑ replicou Kate. ‑ Na verdade, eu...

‑ Não comece a chorar ‑ rosnou Ralph. ‑ odeio o choro.

‑ Sei que é uma grande tolice, tio ‑ começou a pobre Kate:

‑ É ‑ retorquiu Ralph, cortando‑lhe a palavra ‑ e além disso muito afectado. Não torne a fazer isso.

Talvez não fosse a melhor forma de secar as lágrimas duma rapariga sensível, mas a verdade é que fez efeito. Kate corou profundamente, respirou fundo durante uns momentos e depois andou com um passo mais firme e determinado. Era um curioso contraste ver a tímida rapariga criada na província a encolher-se entre a multidão que se agitava nas ruas, com o homem de negócios de feições duras, acotovelando os transeuntes e trocando de vez em quando um cumprimento com algum conhecido, que se voltava, surpreendido com a linda companheira. Mas notaria um contraste mais estranho se se pudesse ler nos corações que batiam lado a lado; ver a simples inocência dum e a brutal vilania do outro.

‑ o ‑ disse Kate quando julgou estarem perto do destino ‑ tenho uma pergunta a fazer‑lhe. Vou ficar a casa?

‑ Casa? ‑ inquiriu Ralph. ‑ Onde é isso?

‑ Quer dizer, com a minha mãe. a viúva ‑ respondeu Kate enfaticamente.

‑ Viverá aqui em todo o sentido ‑ replicou Ralph ‑ pois é aqui que terá as suas refeições e aqui estará de manhã até à noite. ocasionalmente, talvez, até de manhã.

‑ Mas eu quero dizer de noite ‑ explicou Kate. ‑ Não posso deixá-la, tio. Preciso de ter um sítio a que possa chamar casa: seja onde for e por humilde que seja.

‑ Pode ser! ‑ disse Ralph, andando mais depressa com a impaciência provocada pela observação. ‑ Deve ser, quer dizer. Talvez seja uma casa humilde! A rapariga é maluca.

‑ A palavra saiu‑me da boca. Na verdade não queria dizer isso ‑ apressou‑se a corrigir Kate.

‑ Espero que não. ‑ respondeu Ralph.

‑Mas a minha pergunta, tio; não lhe deu resposta.

‑ Previ alguma coisa desse género ‑ informou Ralph ‑ e embora me oponha muito fortemente, preveni‑a. Falei de si como duma empregada externa; assim, irá para esta casa, que pode ser humilde, todas as noites.

Havia certo conforto nisto. Kate proferiu muitos agradecimentos pela consideração do seu tio, que Ralph recebeu como se os merecesse e, sem mais conversa, chegaram à porta da modista, que ostentava uma grande chapa com o nome e a ocupação de Madame Mantalini e abria para uma bonita escada. Havia uma loja na casa, ocupada por um importador de óleo essencial de rosas. As salas de exposição de Madame Mantalini eram no primeiro andar.

Um lacaio de libré abriu a porta e, em resposta à pergunta de Ralph, se Madame Mantalini estava em casa, levou‑os através duma formosa ante‑sala para um salão de exposições que compreendia duas espaçosas saletas e exibia uma imensa variedade de soberbos vestidos e respectivos materiais.

Esperaram muito mais tempo do que era do agrado de Mr. Ralph Nickleby, que olhava com muito pouca consideração para as vistosas farrapagens em volta dele e que por fim, se preparava para tocar a campainha quando um cavalheiro meteu de repente a cabeça dentro do aposento, retirando‑a outra vez por ver lá gente.

‑ Olá! ‑ exclamou Ralph. ‑ Quem é?

Ao som da voz de Ralph a cabeça reapareceu e a boca, mostrando uma comprida fila de dentes muito brancos, pro feriu num tom afectado as palavras: Diabo! O quê, Nickleby! Oh, diabo! .

Tendo dito isto, o cavalheiro avançou e apertou a mão a Ralph com grande calor. Usava suiças e bigode, ambos tingidos de preto e graciosamente encaracolados.

‑Diabo! Não me diga que precisa de mim, pois não?perguntou o cavalheiro dando grandes palmadas no ombro de Ralph.

‑ Ainda não! ‑ respondeu Ralph sarcasticamente.

‑ Ah! ah! diabo! ‑ exclamou o cavalheiro quando, rodando sobre si para rir com mais elegância, encontrou Kate Nickleby, que se encontrava perto.

‑ A minha sobrinha ‑ apresentou Ralph.

‑ Lembro‑me ‑ respondeu o cavalheiro, batendo no nariz com o nó do dedo polegar, como se estivesse a punir‑se pelo seu esquecimento. ‑ Diabo! Lembro-me agora por que vem cá! Venha por aqui, Nickleby. Minha querida, quer seguir‑me? Ah! ah! todas me seguem, Nickleby; seguem‑se sempre, diabo, sempre!

Dando largas desta maneira à sua graciosa imaginação, o cavalheiro levou‑os para uma saleta particular no segundo andar, pouco menos elegantemente mobilada do que o aposento de baixo, onde uma cafeteira de prata, uma casca de ovo e um serviço de porcelana para uma pessoa, parecia indicar que ele tinha acabado o seu pequeno almoço.

‑ Sente-se, minha querida ‑ convidou o cavalheiro, primeiro pasmado, sem expressão, para Miss Nickleby e depois mostrando os dentes, deleitado com o negócio. ‑ Este maldito aposento cá em cima tira-nos a respiração. Estas infernais salas no céu... Receio ter de me mudar, Nickleby!

‑ Eu mudava‑me, sem dúvida ‑ replicou Ralph, olhando em volta, com irritação.

‑ Que tipo tão divertido você me saiu, Nickleby ‑ disse o cavalheiro. ‑ A jóia meis fina e mais astuta de todos os tempos. diabo.

Tendo feito este cumprimento a Ralph, o cavalheiro tocou a campainha e ficou pasmado, olhando para Miss Nickleby até aparecer um criado a quem pediu para dizer à senhora que viesse imediatamente; depois do que continuou pasmado, só caindo em si com o aparecimento de Madame Mantalini.

A modista era uma pessoa dócil, muito bem vestida, com uma aparência bastante boa, mas muito mais velha do que o cavalheiro, com quem casara seis meses antes. O seu nome original era Muntle, mas convertera‑se, por uma fácil transição, em Mantalini. A participação dele nos negócios limitava‑se, presentemente, a gastar dinheiro e, ocasionalmente, quando ele faltava, a correr para casa de Mr. Ralph Nickleby a procurar descontar, com uma percentagem, as contas dos clientes.

‑ Que diabo de tempo te demoraste, minha vida! ‑ censurou Mr. Mantalini.

‑Eu nem sequer sabia que Mr. Nickleby estava cá, meu amor! ‑desculpou‑se Madame Mantalini.

‑ Então que duplamente velhaco deve ser esse infernal lacaio, minha alma! ‑ queixou‑se Mr. Mantalini.

‑ Meu querido ‑ disse Madame. ‑ A culpa é inteiramente tua.

‑ Culpa minha, alegria do meu coração?

‑ Certamente ‑ retorquiu a senhora. ‑ O que podes es perar, queridíssimo, se não corriges o homem?

‑ Corrigir o homem, delícia da minha alma?

‑Sim, tenho a certeza de que precisa de quem lhe fale com bastante aspereza ‑ declarou madame, fazendo beicinho.

‑ Então não te apoquentes ‑ pediu Mr. Mantalini ‑ porque ele será chicoteado até gritar como um danado.

Com esta promessa Mr. Mantalini beijou Madame Mantalini; em retribuição Madame Mantalini puxou‑lhe a orelha por brincadeira e depois desceram para tratar de negócios.

‑ Agora, ma'am ‑ disse Ralph, que olhava para tudo isto com o desprezo que poucos homens podem exprimir num olhar ‑ apresento-lhe a minha sobrinha.

‑ Muito bem, Mr. Nickleby ‑ respondeu Madame Mantalini, inspeccionando Kate da cabeça aos pés e voltando ao ponto de partida. ‑ Sabe falar francês, minha filha?

‑ Sim, ma'am ‑ replicou Kate, não se atrevendo a levantar a vista, pois sentia os olhos daquele homem odioso pregados nela.

‑ Como um natural? ‑ perguntou o marido.

Miss Nickleby não deu resposta à pergunta e voltou as costas ao homem, como se preparasse para responder ao que a mulher lhe pudesse perguntar.

‑Temos vinte jovens constantemente empregadas no estabelecimento ‑ informou madame.

‑ Na verdade, ma'am? ‑ admirou‑se Kate, timidamente.

‑Sim, e algumas delas também bonitas.

‑ Mantalini! ‑ exclamou a esposa numa voz respeitável.

‑ Ídolo dos meus sentidos! ‑ respondeu Mantalini.

‑ Queres partir‑me o coração?

‑ Nem por vinte mil hemisférios povoados por. por. por lindas bailarinas de café‑concerto ‑ replicou Mantalini num arroubo poético.

‑ Darás, se continuas com esse modo de falar ‑ afirmou a mulher. ‑ O que pode pensar Mr. Nickleby quando te ouve?

‑ Oh! Nada, ma'am, nada! ‑ retorquiu Ralph. ‑ Conheço a sua natureza amável e as vossas questiúnculas de namorados, notas que dão um sabor à vossa vida diária, que adoçam mais essas alegrias domésticas, que prometem perdurar muito. e é tudo, é tudo!

Se uma porta de feno chiasse nos gonzos ao abrir‑se lentamente, teria um som mais agradável do que a voz de Ralph ao pronunciar estas palavras. Mesmo Mr. Mantalini sentiu a sua influência e, voltando‑se amedrontado, exclamou:

‑Que demónio de grasnar tão terrível!

‑ Faça favor de não prestar atenção ao que diz Mr. Mantalini ‑ observou a mulher, dirigindo‑se a miss Nickleby.

‑ Não, ma'am ‑ respondeu Kate com calmo desdém.

‑Mr. Mantalimi não sabe seja o que for acerca de qualquer das jovens ‑ continuou madame, olhando para o marido e falando para Kate. ‑ Se viu alguma delas, deve tê‑la visto na rua, indo ou vindo do trabalho, e não aqui. A quantas horas de trabalho está acostumada?

‑ Eu nunca fui habituada a trabalhar ‑ replicou Kate em voz baixa.

‑ Por cuja razão trabalhará melhor agora todas as horas

‑disse Ralph, metendo a colherada, embora esta confissão pudesse estragar as negociações.

‑ Assim o espero ‑ retorquiu Madame Mantalini. ‑ As nossas horas são das nove às nove, mas quando estamos cheias de serviço, há horas extraordinárias que são pagas à parte.

Kate inclinou a cabeça para indicar que ouvira e estava satisfeita.

‑ As suas refeições ‑ continuou Madame Mantalini ‑ isto é, jantar e chá, são tomadas aqui. O seu ordenado será uma média de cinco a sete xelins por semana, mas não lhe posso dar uma certeza enquanto não vir o seu trabalho.

Kate tornou a inclinar a cabeça.

‑ Se está pronta para vir ‑ disse Madame Mantalini ‑ é melhor começar na segunda‑feira de manhã, às nove horas exactas, e Miss Knag, a contramestra, terá, então, instruções para a experimentar, em qualquer trabalho fácil. Há mais alguma coisa, Mr. Nickleby?

‑ Nada mais,ma'am ‑ respondeu Ralph, levantando‑se.

‑ Creio, então, que é tudo ‑ terminou a senhora. Tendo chegado a esta natural conclusão, Madame Mantalini não sabia se devia acompanhá‑los, mas Ralph tirou‑a desse embaraço, saindo sem demora, embora Mr. Mantalini quisesse fazer as honras da casa, na esperança de Kate o olhar, esperança que não foi satisfeita.

‑ Agora já está arrumada ‑ declarou Ralph quando chegaram à rua.

Kate ia agradecer‑-Lhe novamente, mas ele deteve-a.

‑ Tinha pensado em colocar a sua mãe ‑ continuou el. - enum canto agradável da província. Tinha uma apresentação para algumas casas de caridade nos limites de Cornwall, o que lhe tinha ocorrido mais duma vez) mas como querem estar juntas, tenho de fazer alguma coisa em seu favor. Ela tem algum dinheiro?

‑ Muito pouco ‑ informou Kate.

‑Pouco, durará muito, se for usado com parcimónia

‑ sentenciou Ralph. ‑ Ela deve ver para quanto tempo lhe dura não pagando renda. Deixam os vossos aposentos no sábado?

‑ O senhor disse para os deixarmos, tio.

‑ Sim. Há uma casa vaga que me pertence, a qual posso ceder‑lhes enquanto está para alugar e depois, se isto não melhorar, talvez tenha outra. Têm que ir para lá.

‑ muito longe daqui, sir? ‑ perguntou Kate.

‑ Bastante longe ‑ informou Ralph ‑ num outro bairro da cidade. no East End. Mas no sábado vou mandar o meu empregado às cinco horas para as levar. Sabe o caminho? Sempre a direito.

Apertando friamente a mão da sobrinha, Ralph deixou‑a ao cimo de Regent Street e voltou a uma travessa, aferrado a um projecto de apanhar dinheiro. Kate voltou tristemente para os seus aposentos no Strand.

 

Mr. Newman Noggs investe Mrs. e Miss Niekleby na posse da sua nova morada na Citty

As reflexões de Miss Nickleby levaram‑na a encarar o futuro com uma certa apreensão, quer pelas maneiras dúbias do tio, quer pelo que tinha visto em casa de Madame Mantalini. As consolações da mãe poderiam levantar‑lhe o moral, mas quando chegou a casa, a boa senhora lembrou‑se de vários casos de modistas terem feito fortuna, quer por terem capital com que principiar e terem tido sorte, quer por terem casado com um homem de dinheiro. Miss La Creevy, que fazia parte do pequeno conselho, emitiu as suas dúvidas sobre a probabilidade de Miss Nickleby ter essa felicidade.

‑ Receio que seja ocupação pouco saudável ‑ disse Miss La Creevy. ‑ Lembro‑me de três jovens modistas que me deram umas sessões quando comecei a pintar e recordo-me de serem todas pálidas e adoentadas.

‑Bem, isso não é, de forma alguna, uma regra geral

‑ observou Mrs. Nickleby ‑ pois lembro-me, tão bem como se fosse ontem, duma a quem mandei fazer uma capa escarlate, no tempo em que era moda as capas escarlates, cuja cara era muito vermelha na verdade!

‑ Talvez bebesse ‑ sugeriu Miss La Creevy.

‑ Não sei a razão ‑ confessou Mrs. Nickleby. ‑ Só sei que tinha e por isso o seu argumento cai pela base.

Acabada esta questão, Kate comunicou o desejo do tio sobre a casa vaga, ao que Mrs. Nickleby aquiesceu prontamente, mostrando ser um agradável passatempo, nas noites boas, ir buscar a filha a West End, esquecendo‑se das noites húmidas e do mau tempo que fazia em quase todas as semanas do ano.

‑ Terei muita pena. verdadeira pena em deixá‑la, minha boa amiga ‑ disse Kate, a quem os bons sentimentos da pobre miniaturista tinham causado uma profunda impressão.

‑ Tudo isso não me afastará ‑ afirmou Miss La Creevy, com tanto ãnimo quanto lhe foi possível. Irei visitá las muitas vezes para ver como vão; e se em toda a Londres e no vasto mundo não houver outro coração que se interesse pelo vosso bem‑estar, esta mulher solitária orará por vós dia e noite.

Com isto, a pobre criatura que tinha um grande coração, sentou‑se a um canto e teve o que ela chamava uma verdadeira crise de choro.

Mas nem o choro, nem a conversa, a esperança ou o receio, puderam evitar que chegasse a temida tarde de sábado, nem também Newman Noggs, o qual foi tão pontual que aguardou a última pancada do relógio para bater à porta.

‑ Da parte de Mr. Ralph Nickleby ‑ informou Newman, dando conta da sua missão, quando subiu a escada com toda a pressa possível.

‑ Já estamos prontas ‑ disse Kate. ‑ Não temos muito que levar, mas receio que seja preciso alugar um carro.

‑ Arranjarei um ‑ replicou Noggs.

‑ Na verdade não quero que se mace ‑ preveniu Mrs. Nickleby.

‑ Quero eu ‑ obstinou‑se Noggs.

‑ Não consinto que pense numa coisa dessas ‑ replicou Mrs. Nickleby.

‑ Não pode evitar ‑ retorquiu Newman.

‑ Não posso evitar?!

‑Não. Pensei nisso quando vim, mes não contratei logo um julgando que ainda não estariam prontas. Penso em muitas coisas. Ninguém pode evitar isso.

‑ Sim, compreendo-o, Mr. Noggs ‑ disse Mrs. Nickleby. Os nossos pensamentos são livres, evidentemente!

‑Não seriam se algumas pessoas levassem a sua avante ‑ murmurou Newman.

‑ Sim, não seriam, lá isso é verdade, Mr. Noggs ‑ replicou Mrs. Nickleby. ‑ Algumas tenho a certeza, são. Como vai o seu patrão?

Newman dardejou um significativo olhar para Kate e respondeu com uma grande ênfase sobre a última palavra da sua resposta, que Mr. Ralph Nickleby estava bem e enviava os seus cumprimentos de amizade.

‑ Estou certa de que lhe devemos muito ‑ observou Mrs. Nickleby.

‑ Muito ‑ repetiu Newman. ‑ Dir‑lhe‑ei isso mesmo. Não era fácil fazer confusão com Newman Noggs depois de o ter visto uma vez e, como Kate, atraída pela singularidade das suas maneiras, olhou para ele mais de perto, lembrou‑se de ter entrevisto esta figura estranha.

‑ Desculpe a minha curiosidade ‑ pediu ela ‑ mas não o vi na estação da diligência na manhã da partida do meu irmão para Yorkshire?

Newman deitou um olhar atento para Mrs. Nickleby e respondeu muito descaradamente:

‑ Não!

‑ Não! ‑ exclamou Kate. ‑ Teria afirmado isso em qual quer parte.

Então teria afirmado mal ‑ retorquiu Newman. ‑ É a primeira vez que saio ém três semanas. Estive com gota!

Newman estava muito longe de ter a aparência duma pessoa gotosa e foi isso o que pensou Kate, mas a conferência foi em breve interrompida por Mrs. Nickleby, insistindo para se mandar buscar uma carruagem, que Newman foi alugar. E depois de muitos adeuses a Miss La Creevy e de se ter carregado a carruagem com a bagagem, partiram, finalmente, indo Newman na almofada, ao lado do cocheiro.

Entraram no coração da cidade e voltaram para o lado do rio, chegando a uma grande casa suja, em Thames Street, depois duma morosa viagem pelas ruas coalhadas de gente.

A porta desta casa deserta e que parecia desabitada há anos, foi aberta por Newman com uma chave tirada do cha péu, onde estava tudo, inclusivamente o dinheiro, quando o tinha, por causa do estado miserável das suas algibeiras. Depois da carruagem descarregada, encaminharam‑se para dentro de casa.

Na verdade era velha, triste e feia, tétricos e escuros os aposentos, outrora tão animados pela vida e empreendimentos. Jaziam, dispersos pelo chão, um canil vazio, alguns ossos de animais, fragmentos de arcos de ferro e aduelas de velhos cascos, mas não havia vida. Era um quadro de decrepitude fria e silenciosa.

‑ Esta casa deprime e faz tremer ‑ observou Kate. ‑ Parece ter‑lhe caido em cima alguma praga. Se fosse supersticiosa inclinava‑me a acreditar que algum terrivel crime ti vesse sido cometido dentro destas paredes e por isso o lugar nunca mais prosperou. Como a sua aparência é terrível e escura!

‑ Meu Deus, minha querida! ‑ replicou Mrs. Nickleby. Não fales dessa maneira, se não morro de susto.

‑ É apenas a minha fantasia, mamã ‑ disse Kate, forçando um sorriso.

‑Bem, então, meu amor, desejo que guardes toda a fantasia para ti e não despertes toda a minha fantasia para lhe fazer companhia ‑ retorquiu Mrs. Nickleby. ‑ Por que não pensaste antes em tudo isto ‑ és tão descuidada ‑ pois podíamos ter pedido a Miss La Creevy para ficar algum tempo connosco, emprestar‑nos um cão, ou milhares de coisas. Mas foi sempre assim e passava‑se justamente a mesma coisa com o teu pobre pai. Só eu pensava em tudo.

Este era o começo usual das lamentações de Mrs. Nickleby, dirigidas a ninguém em especial e terminadas apenas quando lhe faltava o fôlego.

Newman parecia não ter ouvido estas observações, e levou‑as a dois aposentos no primeiro andar, onde parecia ter sido feita uma tentativa para os tornar habitávéis. Num havia algumas cadeiras, uma mesa, uma velha cobertura de chiné, algumas baetas desbotadas; na lareira ardia um lume. No outro estava uma velha cama de campanha e alguns pobres artigos de mobília de quarto.

‑ Bem, querida ‑ disse Mrs. Nickleby, tentando parecer satisfeita ‑ isto não é atenção e consideração do teu tio? Se não fosse isso só tlnhamos a cama que comprámos ontem para nos deitar.

‑ Muito amável, na verdade ‑ respondeu Kate, olhando em redor.

Newman Noggs não disse que tudo aquilo era obra sua, mas ouvindo os elogios dirigidos a Ralph Nickleby, não pôde deixar de fazer estalar os nós dos dedos, com o que Mrs. Nickleby se admirou a princípio; supondo, porém, tratar‑se de alguma manifestação de gota, não fez observação alguma.

‑ Creio que não precisamos de o deter mais tempo ‑ disse Kate.

‑ Não há nada que eu possa fazer? ‑ perguntou Newman.

‑ Nada, obrigada! ‑ respondeu Miss Nickleby.

‑Minha querida, talvez Mr. Noggs queira beber à nossa saúde ‑ lembrou Mrs. Nickleby, procurando na bolsa uma moeda pequena.

‑ Parece-me, mamã ‑ replicou Kate, hesitando e notando a expressão de Newman ‑ que magoaria os seus sentimentos se lhe oferecesse dinheiro.

Newman Noggs, inclinando‑se perante a jovem, mais semelhante a um fidalgo do que ao miserável que parecia ser, colocou a mão sobre o coração e, parando por um momento, com ar de um homem que se esforça por falar, mas incerto no que tem a dizer, deixou o aposento.

Quando os ecos dissonantes da pesada porta ao fechar‑se no trinco repercutiram pelo edifício, Kate sentiu‑se meio tentada a chamá‑lo e a pedir‑lhe para ficar um bocado, porém, envergonhou‑se do seu medo e Newman Noggs seguiu para casa.

 

Onde se acompanha o amor de Miss Fann Squeer e se verifica se decorre, ou não, suavemente.

Foi uma felicidad para Miss Fanny Squeers, quando o pai voltou para casa na noite do chá, estar ausente de mais para notar o seu estado de espírito. No entanto, vinha bastante irritável e quando apanhou o primeiro rapaz a jeito descarregou‑lhe uma série de pontapés e socos, com o que ficou satisfeito para se meter na cama, de botas e com o guarda‑chuva debaixo do braço.

A famélica crisia, como o costume, ajudou Miss Squeers a pentear o cabelo e a executar outros pequenos serviços de toucador no seu próprio quarto, lisonjeando-a o mais possível. Miss Squeers era mandriona e suficientemente vã e frívola para ser honesta.

‑ Como esta noite o seu cabelo fica tão bem encaracolado, miss ‑ disse a criada. ‑ Pergunto se não é uma pena penteá-lo.

‑ Cala‑te! ‑ ordenou Miss Squeers asperamente. Uma boa dose de experiência evitou a surpresa da rapariga perante esta explosão do génio de Miss Squeers. Tendo uma me noção do acontecido nessa tarde, mudou a maneira de se tornar amável, desviando o rumo.

‑ Queria dizer, miss, ainda que me ralhe ‑ declarou a rapariga ‑ que nunca vi ninguém mais ordinária de que Miss Price, esta noite.

Miss Squeers suspirou e preparou‑se para escutar.

‑ Ainda que me fique mal dizê-lo, ela veste-se duma maneira para ser notada, que...

‑ O que queres dizer Phib? ‑ perguntou Miss Squeers, olhando para o seu espelhinho, onde, como a maioria de nós, viu, não a sua figura, mas o reflexo duma imagem agradável, concebida no seu cérebro. ‑ Como tu falas!

‑Falo, miss! Basta ouvir um gato a falar francês para ver como levanta a cabeça! ‑ redarguiu a criada.

‑ Ela levanta, na verdade, a cabeça ‑ observou Miss Squeers com um ar distraído.

‑ Tão orgulhosa e tão ordinária ‑ continuou a rapariga.

‑ Pobre Tilda! ‑ suspirou Miss Squeers, compassivamente.

‑E sempre a exibir‑se tanto, com o fim de ser admirada ‑ prosseguiu a rapariga. ‑ Meu Deus! mesmo indelicada.

‑ Não permito que fales dessa maneira, Phib! ‑ advertiu Miss Squers. ‑ Os amigos de Tilda são gente baixa e se ela não conhece melhores, é culpa deles e não nossa.

‑ Bem, mas a miss sabe ‑ disse Phoebe, cujo nome Phib era usado como uma abreviatura patronímica ‑ que se ela ao menos copiasse uma amiga... se ao menos soubesse como procedeu mal e que só se corrigiria consigo, que bela rapariga ainda podia vir a ser!

‑ Phib ‑ replicou Miss Squeers com um ar majestoso - não é próprio eu estar a ouvir essas comparações; fazem parecer Tilda uma grosseira, de maneiras impróprias, e parece-me desumano escutá-las. Preferia que abandonasses o assunto, Phib. Ao mesmo tempo devo dizer que, se Tilda Price tivesse tirado o modelo de alguém ‑ não de mim, particularmente.

‑ Oh! sim, de si, miss ‑ interrompeu Phib.

‑ Bem, então de mim, Phib, se o tivesse feito ‑ disse Miss Squeers ‑ devo dizer‑te que se o tivesse feito, teria o bem do seu lado.

‑ Assim o crê alguém, ou muito me engano. ‑ confidenciou a criada misteriosamente.

‑ O que queres dizer? ‑ perguntou Miss Squeers.

‑ Não lhe dê cuidado, miss ‑ respondeu a rapariga. ‑ Sei o que sei e basta.

‑ Phib ‑ disse Miss Squeers, dramaticamente. ‑ Insisto para que te expliques. Que escuro mistério é esse? Fala!

‑ Já que quer, miss, é isto ‑ respondeu a criadita. ‑ Mr. John Browdie pensa como a menina e se não fosse tarde demais para lhe dar crédito, ficava muito contente em pôr Miss Price com dono e voltar‑se para Miss Squeers.

‑ Deus do céu! ‑ exclamou Miss Squeers, batendo as palmas com dignidade. ‑ O que é isso?

‑ A verdade, ma'am, e nada mais do que a verdade ‑ replicou a matreira Phib.

‑ Mas que situação ‑ exclamou Miss Squeers. ‑ Estar a dois passos de destruir, inconscientemente, a paz e a felicidade da minha querida Tilda! Qual é a razão por que os homens se enamoram de mim, quer eu queira, quer não, e deixam as que escolheram por minha causa?

‑ Porque não podem deixar de o fazer, miss ‑ replicou a rapariga ‑ a razão é simples.

‑ Não me tornes a falar nisso ‑ preveniu Miss Squeers. Nunca! Ouviste? Tilda Price tem as suas faltas ‑ muitas fal tas ‑ mas desejo-lhe bem, acima de tudo. Desejo‑a casada, pois creio ser altamente aconselhável ‑ muitíssimo aconselhável pela verdadeira natureza dos seus defeitos ‑ o casar‑se o mais depressa possível. Não, Phib! Deixa‑a ir com Mr. Browdie. Posso apiedar‑me dele, pobre rapaz, mas tenho uma grande estima por Tilda e só peço que se faça uma esposa, melhor do que creio há-de ser!.

Com esta afirmação de sentimentos, Miss Squeers foi para a cama.

Despeito é uma pequena palavra, mas representa uma confusão de sentimentos. Miss Squeers sabia muito bem que o que a criada dissera era vil, grosseiro, cheirando a lisonja. Contudo serviu‑lhe para expandir um pouco a sua ruim natureza contra Miss Price, fingindo compadecer‑se das suas fraquezas e manias. Miss Squeers sentiu‑se dum espírito completamente elevado e muito superior depois da sua nobre renúncia à mão de John Browdie e viu a rival com uma espécie de santa calma e tranquilidade, que teve um alto efeito para suavizar os seus alvorotados sentimentos.

Este feliz estado de espírito teve alguma influência em pôr em execução uma reconciliação, pois quando se ouviu uma pancada na porta da frente, no dia seguinte, e foi anunciada a filha do moleiro, Mis Squeers acorreu à saleta numa disposição perfeitamente cristã, muito digna de ser observada.

‑ Bem, Fanny ‑ disse a filha do moleiro ‑ vês que venho visitar‑te, embora tivéssemos dito algumas palavras ásperas a noite.

‑ Tenho pena das tuas más paixões, Tilda ‑ respondeu Miss Squeers ‑ mas eu não sou de reservas. Sou muito superior a isso.

‑ Não te zangues, Fanny ‑ pediu Máss Price. ‑ Vim dizer‑te uma coisa que sei que te agràda.

‑ O que é, Tilda? ‑ perguntou Miss Squeers, fazendo boquinha e olhando, como se nada na terra, ar, fogo e água, pudesse dar-lhe o mais ligeiro vislumbre da satisfação.

‑ isto ‑ replicou Miss Prlce. ‑ Depois de sairmos daqui ontem à noite, eu e o John tivemos uma terrível questão.

‑ Isso não me agrade! ‑ declarou Miss Squeers, abrandando as palavras com um sorriso.

‑Meu Deus! Não te julgava tão má para supor que te agradasse! ‑ retorquiu‑lhe a companheira. ‑ Não é isso.

‑ Oh! ‑ exclamou Miss Squeers, recaindo na melancolia. Continua.

‑Depois duma discussão e de dizermos um ao outro que nunca mais nos veríamos ‑ continuou Miss Price ‑ ficamos por ali, mas esta manhã o John foi escrever os nossos nomes para os banhos serem lidos, pela primeira vez, no próximo domingo. Por isso, caso‑me daqui a três semanas e dou‑te a notícia para teres pronto o teu vestido!

Esta novidade continha fel e mel. O projecto da sua amiga se casar tão depressa era o fel, e a certeza de não conceber sérios planos para com Nicholas era o mel. Prevalecendo o doce sobre o amargo, Miss Squeers disse que o fato estaria pronto, esperando que Tilda fosse feliz, embora, ao mesmo tempo, não soubesse se isso seria possível por os homens serem criaturas estranhas e tanto assim que muitas mulheres casadas eram infelizes e desejavam voltar a ser solteiras de todo o coração. A estas condolências Miss Squeers juntou outras igualmente calculadas para levantar o espírito da amiga e excitar‑lhe a alegria.

‑ Mas vem cá, Fanny ‑ disse Miss Price. ‑ Quero dar‑te uma palavra ou duas acerca do jovem Mr. Nickleby.

‑ Ele não é nada para mim ‑ interrompeu Miss Squeers com sintomas de histerismo. ‑ Desprezo‑o completamente!

‑ Tenho a certeza de que não pensas assim ‑ replicou a amiga. ‑ Confessa, Fanny, não gostas dele?

Sem dar uma resposta directa Miss Squeers caiu num paroxismo de lágrimas amargas, exclamando que era uma criatura infeliz, miserável e desamparada, posta à margem.

‑ Querida! Querida! ‑ exclamou Miss Price,absolutamente comovida com esta confissão de sentimentos misantrópicos. Tenho a certeza de que não falas a sério!

‑ Sim, falo ‑ assegurou Miss Squeers, fazendo nós cegos no lenço e apertando‑os com os dentes. ‑ E desejava morrer também!...

‑Dentro de cinco minutos pensarás de maneira diferente ‑ disse Matilda. ‑ Quanto não é melhor estimá‑lo de novo do que te afligires dessa maneira. Não seria muito mais bonito que os dois estivessem em boas relações,fazendo companhia um ao outro,amando‑se num ambiente agradável?

‑ Sósei dizer que seria ‑ soluçou Miss Squeers. ‑ Oh!

Tilda,como pudeste proceder tão ruim e deslealmente! Não acreditaria isso de ti,se alguém me viesse dizer! 

- Ah! ‑ exclamou Miss Price,rindo loucamente. – Alguém havia de supor que eu tinha cometido,pelo menos,um assassínio.

‑ Foi uma noite muito má ‑ afirmou Miss Squeers com paixão.

            ‑E tudo porque eu pareço ter modos suficientemente             bons para os outros serem educados para mim ‑ replicou Miss Price. ‑ Não somos nós que fazemos as nossas caras e é tão culpa minhe ter uma boa,como os outros terem‑na má.

‑ Cala‑te! ‑ guinchou Miss Squeers no seu tom mais agudo. ‑ Se não,fazes‑me dar‑te uma bofetada, Tilda,e depois arrependo-me!

A questão,que primeiro era sem importância, começou a azedar-se até se tornar numa viva altercação, acabando por ambas terem um violento ataque de choro,exclamando simultaneamente, não terem intenção de falar daquela maneira.

Cairam depois nos braços uma da outra,jurando eterna amizade,sendo com esta a quinquagésima vez que repetiam o mesmo,no espaço de doze meses.

Perfeitamente restaurada a amizade entre as duas amigas, principiaram ambas a falar do enxoval de Miss Price e do indispensável para ela entrar no sagrado estado matrimonialmostrando Miss Squeers faltar‑lhe muita coisa,que a filha do moleiro não podia adquirir. Daqui facilmente passou aos tesouros do seu guarda-roupa, seguindo-se uma exibição das suas gavetas e armário,com o que se passou o tempo até Miss Price ir regressar a casa,acompanhada da amiga para exibir um lenço roxo,de pescoço.

Durante este intervalo dava Nicholas o seu habitual passeio entre o jantar dos pupilos de Mr. Squeers e o prosseguimento dos seus trabalhos. Miss Squeers sabia isto perfeitamente,mas talvez se tivesse esquecido,pois quando viu o rapaz a avançar para elas,evidenciou sintomas de surpresa e consternação, assegurando à amiga o seu desejo de se meter pelo chão abaixo.

‑Queres voltar para trás, ou corrermos para uma ca bana? ‑ perguntou Price. ‑ Ele ainda não nos viu!

‑ Não, Tilda ‑ respondeu Miss Squeers. ‑ É meu dever levar isto a cabo e levarei.

Como Miss Squeers disse isto num tom duma resolução tomada, a amiga não fez observações e continuaram caminhando direitas a Nicholas, que ainda as não tinha notado, pois de contrário ele próprio teria procurado meio de as evitar. Assim, ao ver‑se diante delas, curvou‑se, deu‑lhes os bons‑ dias e continuou o caminho.

‑ Ele vai-se embora! ‑ murmurou Miss Squeers. ‑ Vou sufocar, Tilda!

‑ Venha cá, Mr. Niekleby, se faz favor! ‑ pediu Miss Price fingindo‑se assustada pelo aviso da amiga, mas na realidade agindo maliciosamente para ver o que diria Nicholas. ‑ Venha cá, Mr. Nickleby!

Mr. Nickleby voltou atrás, aparentando uma justificável confusão e perguntando se as senhoras tinham algumas ordens a dar‑lhe.

‑ Não pare de andar ‑ disse Miss Price rapidamente - mas ajude-a desse lado.

‑ Como te sentes agora, querida?

‑ Melhor ‑ suspirou Miss Squeers, descansando o chapéu de castor dum castanho avermelhado com um véu verde sobre o ombro de Mr. Nickleby. ‑ Este tolo desmaio!

‑ Não lhe chames tolo, querida ‑ disse Miss Price com os olhos a dançarem de divertidos, vendo a perplexidade de Nicholas ‑ pois não tens razão para estar envergonhada. En vergonhados devem sentir‑se aqueles que são orgulhosos demais para voltarem atrás.

‑ Vejo que está, resolvida a imputar‑me isso ‑ observou Nicholas a sorrir ‑ embora lhe dissesse a noite passada que a culpa não era minha.

‑Ouve, ele diz que a culpa não é sua, minha querida!

‑ observou a velhaca Miss Price. ‑ Talvez tu fosses ciumenta demais para ele! Ele diz que a culpa não é sua, ouviste? Creio que a desculpa basta.

‑ A senhora não me compreende ‑ esclareceu Nicholas. Suplico‑lhe que me dispense do ridículo, pois não tenho tempo, nem inclinação, realmente, para ser objecto ou promotor das suas graças.

‑ O que quer dizer? ‑ perguntou Miss Price, afectando espanto.

‑ Não lhe perguntes, Tilda ‑ pediu Miss Squeers. ‑ Eu perdoo‑lhe!

‑ Meu Deus! ‑ exclamou Nicholas, enquanto o chapéu cas tanho lhe descansava de novo no ombro. ‑ Isto é mais sério do que supunha. Com licença! Quer ter a bondade de me ouvir?

Aqui, levantou o chapéu castanho e, vendo com a mais inocente das surpresas um olhar de terna reprovação de Miss Squeers, deu uns passos atrás para fugir ao belo fardo e continuou a falar:

‑Lamento muito, verdadeira e sinceramente, ter sido a causa de qualquer desavença entre as duas, a noite passada. Repreendo-me muito amargamente por ter sido infeliz ao ponto de causar uma dissenção, embora procedesse assim, afirmo‑lhes, inconscientemente.

‑Bem, isso não é, por certo, tudo quanto tem a dizer ‑ observou Miss Price quando Nicholas parou.

‑ Receio não haver mais nada ‑ tartamudeou Nicholas, sorrindo e olhando para Miss Squeers ‑ é a coisa menos de licada que se pode dizer. mas. a verdadeira menção duma tal suposição faz a pessoa parecer um fedelho. contudo. posso perguntar se a senhora supõe que eu alimento qualquer. em resumo. pensa que estou apaixonado por ela?

‑ Delicioso embaraço ‑ pensou Miss Squeers. ‑ Pelo menos levei‑o a isso. Responde por mim, querida ‑ segredou ela à amiga.

‑ Se ela pensa isso? ‑ replicou Miss Price. ‑ Decerto que pensa.

‑ Pensa? ‑ exclamou Nicholas com tal energia que podia passar por arrebatamento.

‑ Certamente ‑ afirmou Miss Price.

‑ Se Mr. Nickleby duvidou disso, Tilda ‑ disse a ruborizada Miss Squeers com acento suave ‑ pode ter o seu espírito descansado. O seu sentimento é correspondido.

‑ Cale‑se! ‑ gritou Nicholas rapidamente ‑ e peço‑lhe para me ouvir. Esta é a ilusão maior e mais fantástica, assim como o mais completo e preclaro engano que um ser humano alguma vez cometeu! Mal tenho visto esta senhora meia dúzia de vezes, mas se a visse sessenta, ou se estivesse destinado a vê‑la sessenta mil seria, e será, precisamente o mesmo. Nem uma só vez pensei, desejei ou esperei ligar‑me a ela, a não ser ‑ e digo isto não para ferir os seus sentimentos, mas imprimir nela o verdadeiro estado dos meus ‑ com um único objectivo tão querido ao meu coração como a própria vida, de poder um dia voltar as costas a este amaldiçoado lugar, nunca mais cá pôr os pés, ou pensar nele, se não com repugnância e desgosto.

Com esta declaração particularmente simples e franca, feita com toda a veemência que os seus sentimentos indignados e excitados lhe emprestaram, Nicholas curvou‑se ligeiramente e retirou‑se, sem esperar ouvir mais.

Não se podem descrever a raiva e o vexame da pobre Miss Squeers ao ver‑se recusada por um pobre professor com um salário de cinco libras por ano e em frente da filha dum moleiro, com dezoito anos, que ia casar daí a três semanas.

Mas restava um conforto a esta valorosa descendente da casa dos Squeers: era poder infligir ao pobre Nicholas os insultos e privações mais sensíveis. E com esta reflexão, Miss Squeers ainda achou coragem para observar à amiga que Mr. Nickleby era uma pessoa tão singular e dum temperamento tão violento, que tinha de o pôr à margem.

‑ Deixa estar! ‑ disse a irritada jovem quando voltou para o seu quarto e tranquilizou o espírito depois de ter injuriado Phib ‑ que eu atiçarei um pouco mais a mãe contra ele, logo que ela volte.

Era quase desnecessário fazer isso, pois o pobre Nicholas, além de ser mal alimentado, porcamente alojado e obrigado a testemunhar uma miséria esquálida e sórdida, era tratado com toda a indignidade que a maldade pode sugerir.

Mas não era tudo. Havia um outro sistema de aborreci mento mais profundo que lhe fazia revoltar o coração e quase o levou a tornar‑se agressivo, pela sua injustiça e crueldade.

Desde a noite em que Nicholas lhe falou amavelmente, o desgraçado Smike seguia‑o para toda a parte, com o desejo de o servir, ou de ajudar, antecipando‑lhe os pequenos desejos que a sua humildade podia prover, contente, apenas, por estar próximo dele. Era um ser diferente por ter sido tratado como uma criatura humana e o seu objectivo agora era mostrar a sua dedicação a essa pessoa.

Mas Squeers depressa notou isto e ficou ciumento pela influência exercida pelo jovem sobre o desgraçado, que pagou pelos dois, não lhe faltando de manhã, à tarde e à noite, bofetadas e vergastadas. Nicholas via isto e rangia os dentes a cada repetição do selvagem e cobarde ataque.

Arranjara umas poucas de lições regulares para os rapazes e, uma noite, passeando de trás para diante na aula sombria, pensando que a sua protecção havia aumentado a desgraça do pobre ser cujo desamparo despertava a sua piedade, parou automaticamente num canto escuro, onde estava sentado o objecto dos seus pensamentos.

A pobre criatura tinha os olhos pregados num livro esfarrapado, com traços recentes de lágrimas na cara, esforçando‑se, em vão, por cumprir uma obrigação que uma criança de nove anos, com todas as suas faculdades, com facilidade executaria, mas que para o intelecto vazio do rapaz de dezanove anos era um impenetrável mistério. Contudo estava sentado, decorando pacientemente a página, sem ser estimulado por uma ambição pueril, mas inspirado apenas pelo vivo desejo de agradar ao seu solitário amigo.

Nicholas pôs‑lhe a mão no ombro.

‑ Não consigo ‑ confessou a desalentada criatura, olhando para cima com amargo desapontamento nas feições. ‑ Não! Não!...

‑ Não tentes ‑ avisou Nicholas.

O rapaz abanou a cabeça, fechou o livro com um suspiro, olhou vagamente em torno de si e, pondo a cabeça no braço, começou a chorar.

‑ Não chores, por amor de Deus ‑ pediu Nicholas com voz trémula. ‑ Não posso ver‑te assim!

‑ Eles são cada vez mais duros para mim ‑ soluçou o rapaz.

‑ Eu sei ‑ respondeu Nicholas. ‑ São!

‑ Mas por si ‑ confessou o enjeitado ‑ sou capaz de morrer. Eles matam‑me; matam‑me; sei que sim!

‑ Terás melhor vida, pobre rapaz, quando me for embora ‑ replicou Nicholas, abanando a cabeça melancolicamente.

‑ Embora! ‑ exclamou o outro, observando‑lhe a cara com intensidade.

‑ Fàa baixo ‑ recomendou Nicholas. ‑ Sim.

‑ Vai‑se embora? ‑ perguntou o rapaz num murmúrio.

‑ Não posso dizê‑lo ‑ replicou Nicholas. ‑ Falava mais aos meus pensamentos do que para ti.

‑ Diga‑me ‑ implorou o rapaz. ‑ Oh, diga‑me, vai. vai. mesmo?

‑ Sou levado a isso ‑ retorquiu Nicholas. ‑ O mundo, no fim de contas, está à minha frente.

‑ Diga‑me ‑ pediu Smike ‑ o mundo é tão mau e tão sombrio como este sítio?

‑ Deus nos defenda ‑ respondeu Nicholas, seguindo o curso dos seus próprios pensamentos. ‑ A sua labuta mais dura e mais grosseira é uma felicidade ao lado disto.

‑ Posso alguma vez encontrálo fora daqui? ‑ inquiriu o rapaz, com desacostumada volubilidade e anseio.

‑ Podes ‑ replicou Nicholas, desejando sossegá‑lo.

‑ Não, não ‑ disse o outro, agarrandolhe na mão. Posso. posso. diga‑me outra vez. Diga-me se posso ter a certeza de o encontrar.

‑ Podes ‑ repetiu Nicholas com a mesma intenção humana ‑ e ajudarei a socorrer‑te, sem te acarretar mais tristezas como aconteceu aqui.

O rapaz comovido agarrou nas mãos do jovem e, apertando‑as de encontro ao peito; proferiu uns sons entrecortados, perfeitamente ininteligíveis. Squeers entrou neste momento e ele recuou para o seu velho canto.

Nicholas varia a monotonia de Dotheboys Hall com um procedmento mais vigoroso e notável de Importantes consequências.

Despontava uma manhã desmaiada e fria de Janeiro através das janelas do dormitório comum, quando Nicholas se levantou num braço e olhou para as formas deitadas, que o circundavam. Entre a massa dos rapazes que dormiam não havia distinção alguma, contudo uns poucos com caras pálidas voltadas para cima, davam a impressão de cadáveres. No entanto, os rapazitos mais novos tinham um sorriso nos lábios, dormindo pacificamente nas suas camas.

Nicholas olhou para os rapazes, primeiro com o olhar duma pessoa a quem a cena era familiar e depois com mais intensidade, como procurando alguma coisa, que costumava ver e faltava naquela ocasião. Estava ainda ocupado na sua busca e meio erguido na cama, quando se ouviu a voz de Squeers, a chamar do fundo da escada.

‑Então essa gente vai ficar todo o dia na cama?!

‑ Seus preguiçosos sabujos! ‑ acrescentou Mrs. Squeers, terminando a oração e produzindo, ao mesmo tempo, um sonì agudo como faz o vento do pelo cordame dum navio.

‑ Vamos já para baixo, sir ‑ respondeu Nicholas.

‑ Já para baixo! ‑ ordenou Squeers. ‑ Ah! Ou vêm já para baixo ou aplico uma sova a algum! Onde está esse Smike?

Nicholas olhou rapidamente em volta, mas não respondeu.

‑ Smike! ‑ berrou Squeers.

‑ Queres a cabeça partida num sítio fraco, Smike? ‑ perguntou a sua admirável consorte na mesma clave.

Apesar disso não houve resposta e, contudo, Nicholas olhava espantado em volta de si, como a maior parte dos rapazes que, por esta altura, já estavam levantados.

‑ Confundida seja a sua impudência! ‑ resmungou Squeers, batendo impacientemente no corrimão da escada com a bengala. ‑ Nickleby!

‑O que há, sir?

‑Mande para baixo esse patife teimoso; não me ouve chamá‑lo?

‑ Ele não está aqui, sir ‑ respondeu Nicholas.

‑ Não me diga mentiras! ‑ retorquiu o mestre‑escola. Ele está lá!

‑ Não está ‑ teimou Nicholas, zangado. ‑ Não me diga mentiras!

‑ Depressa, vamos ver isso! ‑ disse Mr. Squeers subindo apressadamente a escada. ‑ Garanto-lhe que o encontro!

Com esta certeza Mr. Squeers entrou como um furacão no dormitório e, brandindo a bengala no ar, pronta para o castigo, foi como uma seta direito ao canto onde o esquálido rapaz costumava deitar‑se à noite. A bengala caiu no chão. Não estava lá ninguém!

‑ O que significa isto? ‑ perguntou Squeers, voltando‑ se com a cara pálida. ‑ Onde se escondeu?

‑ Desde a noite passada que o não vejo! ‑ replicou Nicholas.

‑ Vamos ‑ disse Squeers, evidentemente assustado, embora procurando mostrar‑se valente ‑ dessa maneira não o salva. Onde está ele?

‑ No fundo da mais próxima lagoa, calculo eu! ‑ informou Nicholas em voz baixa e fixando os olhos na cara do patrão.

‑ O. o. que. que quer dizer com isso? ‑ retorquiu Squeers com grande perturbação.

E sem esperar resposta perguntou aos rapazes se sabiam alguma coisa do seu desaparecido colega.

Houve um zumbido geral de ansiosa negativa, no meio do qual uma voz chilreante se fez ouvir, dizendo, o que na verdade todos pensavam:

‑Desculpe-me, sir, creio que o Smike fugiu, sir.

‑ Ah! ‑ exclamou Squeers, voltando-se vivamente. ‑ Quem disse isso?

‑ Desculpe, sir, foi o Tompkins! ‑ respondeu um coro de vozes.

Mr. Squeers fez um mergulho na multidão de rapazes e apanhou um rapazinho, ainda metido na roupa de dormir, cuja expressão perplexa parecia indicar a incerteza de ser punido, ou de ser recompensado pela informação. A dúvida não lhe durou muito.

Pensa que ele fugiu, não é assim, sir? ‑ perguntou Squeers.

‑ Sim, sir, se me dá licença ‑ respondeu o rapazinho.

‑E que razão tem, sir, para supor que qualquer rapaz quer fugir deste estabelecimento? Diga, sir! ‑ exclamou Squeers, agarrando subitamente o rapazinho.

Em resposta a criança soltou um fraco grito e Mr. Squeers achando‑se numa atitude mais favorável para exercitar as forças, bateu‑lhe até a peste do rapazinho, nas suas contorsões, lhe fugir das mãos, quando ele misericordiosamente lhe permitiu safar-se o melhor que pudesse.

‑ Agora, se qualquer outro rapaz pensa que o Smike fugiu, terei muito prazer em conversar com ele ‑ preveniu Squeers.

Houve, naturalmente, um profundo silêncio, durante o qual Nicholas evidenciou o seu desgosto, tão claramente como a sua atitude, podia mostrar.

‑ Bem, Nickleby ‑ disse Squeers, olhando‑o maliciosamente. ‑ Pensa que ele fugiu, suponho eu?

‑ Creio numa coisa extremamente semelhante ‑ respondeu Nicholas muito sossegado.

‑ Pensa assim, não pensa? ‑ escarneceu Squeers. ‑ Talvez soubesse que ele ia fugir!.

‑ Não sabia.

‑ Ele não lhe disse que ia fugir?! ‑ chacoteou Squeers.

‑ Não ‑ replicou Nicholas. ‑ Estou contente por não mo ter dito, pois teria sido meu dever avisá‑lo, a si, a tempo.

‑ O que, sem dúvida, teria feito com muita pena ‑ disse Squeers duma forma insultuosa.

‑ Lá isso é verdade ‑ retorquiu Nicholas. ‑ O senhor interpreta os meus sentimentos com notável perspicácia.

Mrs. Squeers tinha ouvido esta conversa desde o fundo da escada, mas perdendo a paciência, segurou a fralda da camisa de noite e dirigiu‑se para o local da acção.

‑ O que é isto?‑ perguntou, enquanto os rapazes se separavam para a direita e para a esquerda, evitando‑lhe a maçada de abrir passagem com os braços musculosos. ‑ Para que diabo estás tu a conversar, Squeery?

‑Minha querida, o facto é que não se encontra o Smike ‑ esclareceu Squeers.

‑ Bem sei, e onde está a maravilha? ‑ perguntou ela. ‑ Se trazes estes professores de estômago delicado que levam esses cães a rebelarem‑se, por que esperas? Agora, jovem, vai ter a bondade de marchar para a aula e de levar os rapazes consigo, e não se mexa de lá enquanto não o deixarem sair se não arranjamos os dois um sarilho do qual a sua beleza sairá estragada, sou eu que lhe digo, ouviu?!

‑ Ah! Sim?! ‑ comentou Nicholas.

‑ Sim, na verdade e, outra vez na verdade, seu bonifrates não o teria nem mais uma hora aqui em casa, se fosse assunto meu.

‑ Nem eu a si, se pudesse! ‑ respondeu Nicholas. ‑ Vamos lá, ra!

‑ Ah! Vamos lá, rapazes! ‑ repetiu Mrs. Squeers, macaqueando o melhor possível a voz e as naneiras do assistente. ‑ Sigam o vosso chefe, e tomem o Smike como exemplo, se se atreverem! Vão ver o que lhe acontece quando for apanhado e, lembrem-se, digo-lhes também que se verão em assados, se abrem as bocas a respeito dele!

‑ Se o apanho ‑ prometeu Squeers ‑ só paro depois de o ter esfolado vivo. Já ficam avisados!

‑ Se o apanhas ‑ replicou Mrs. Squeers com desprezo - podes ter a certeza que vais direito ao trabalhinho, não tens outro remédio. Vamos! Ponham‑se lá fora.

Com estas palavras Mrs. Squeers despediu os rapazes, os quais, depois duma ligeira escaramuçazinha com os da rectaguarda por empurrarem os da frente, a fim de sairem, deixaram o aposento onde ficou o casal sozinho.

‑ Ele fugiu ‑ declarou Mrs. Squeers. ‑ O estábulo e a cocheira estão fechados à chave, por isso não pode estar lá, e não está em nenhum sítio lá de baixo, porque a rapariga já foi ver. Deve ter ido a caminho de York e tomou pela estrada.

‑ Porque havia ele de ter ido? ‑ perguntou Squeers.

‑ Estúpido ‑ chamou‑lhe Mrs. Squeers, zangada. ‑ Tinha algum dinheiro?

‑Em toda a sua vida nunca teve um péni, que eu soubesse ‑ respondeu Squeers.

‑ Com certeza ‑ replicou Mrs. Squeers ‑ e não levou consigo coisa alguma para comer. Aí tens a resposta.

‑ ah! ah! ‑ riu‑se Squeers.

‑Então, com certeza, deve pedir para lhe indicarem o caminho e isso só se pode fazer na estrada ‑ discorreu ela.

‑ É verdade! ‑ exclamou Squeers, batendo as palmas.

‑ É verdade, sim, mas tu nunca terias pensado nisso se eu não dissesse ‑ retorquiu a esposa. ‑ Agora se fores no carro e eu pedir emprestado o carro do Swallow e me meter nele conservando os olhos bem abertos e fazendo perguntas, qualquer de nós pode ter a certeza absoluta de o apanhar.

O plano da simpática dama foi adoptado e posto em execução sem demora. Depois dum pequeno almoço rápido e de algumas perguntas feitas na vila, Squeers partiu na carruagem e Mrs. Squeers seguiu pouco dpois numa outra, com vários bocados de corda forte e um alentado homem de lavoura, tudo para ajudar a captura do infeliz Smike.

Nicholas ficou, sentindo as mais desencontradas sensações. O rapaz com a pouca roupa que vestia e ignorando totalmente a região, estava condenado a morrer sob a acção do tempo. Apanhado e, voltando para a escola, pouca probabilidade tinha de melhor sorte. A sua ansiedade era enorme, fantasiando mil possibilidades até à noite do dia seguinte, quando Squeers regressou só e sem resultado.

‑ Nenhumas novas do fugitivo! ‑ informou o mestre‑escola que tinha, evidentemente, desentorpecido as pernas, segundo o velho princípio, e não poucas vezes durante a viagem. ‑ Tenho a consolação de que alguém há-de pagar isto, Nickleby, se Mrs. Squeers o não caçou. Por isso o aviso!

‑ Não está no meu poder consolá‑lo, sir ‑ disse Nicholas. ‑ Não é nada que me diga respeito.

‑ Não é? ‑ perguntou Squeers duma maneira ameaçadora.

‑ Veremos!

‑ Veremos!. ‑ repetiu Nicholas.

‑O cavalo a certa altura fugiu e, para vir para casa, obrigou‑me a alugar um carro, que me custou quinze xelins além de outras despesas ‑ informou Squeers. ‑ E quem paga isso? Está a ouvir?

Nicholas encolheu os ombros e ficou calado.

‑ Digo‑lhe que alguém o há‑de pagar! ‑ repetiu Squeers com a sua habitual maneira impertinente e velhaca, mudada abertamente para fanfarronice. ‑ Não quero aqui o hábito dos seus ganidos, Mr. Puppy l, mas vá para o seu canil, por já ter passado o tempo de descanso! Vamos! Toca a andar!

Nicholas mordeu os lábios e apertou voluntariamente as mãos por sentir uns formigueiros nas pontas dos dedos, para vingar o insulto; mas lembrando-se de que o homem estava bébado, contentou‑se em deitar‑lhe um olhar de desprezo e seguiu pela escada acima, não sem ver primeiro Miss Squeers, Mister Squeers e a criadita, a observarem a cena. Nicholas deitou‑se, cobrindo a cabeça com toda a roupa da cama que tinha, resolvido a ajustar as contas com Mr. Squeers mais depressa do que ele podia prever.

No dia seguinte, mal Nicholas tinha acordado, ouviu o rodar dum carro que parou, e a voz radiante de Mrs. Squeers, mandando dar um copo de aguardente a alguém. Isto era sinal de ter acontecido alguma coisa de extraordinário e Nicholas, mal se atrevendo a espreitar pela janela, viu o pobre Smike encharcado e cheio de lama, espantado, parecendo um

animal selvagem, quase irreconhecível.

            ‑ Manda‑o subir! ‑ disse Squeers,depois de ter,literalmente, regalado os olhos em silêncio, sobre o réu. ‑ Trá‑lo para dentro, trá-lo para dentro!

‑ Toma cuidado ‑ preveniu Mrs. Squeers,quando o marido se aprestava para ajudá-la. ‑ Ligámos‑lhe as pernas por baixo da capota e apertámo‑las ao carro para evitar que ele deslizasse outra vez.

Com as mãos a tremerem de prazer,Squeers desatou a corda e Smike,com a aparência mais de morto do que de vivo,foi trazido para casa e fechado à chave num subterrâneo, para dar tempo a Mr. Squeers de reunir os alunos para lhe infligir o correctivo em frente deles.

Parece estranho que Mr. e Mrs. Squeers se dessem ao trabalho de procurar um ser tão desgraçado,mas essa estranheza desaparece se dissermos que ele fazia o trabalho duma pessoa que custaria dez ou doze xelins por semana. Além disso,era um exemplo para os outros alunos que se dessem à fantasia de querer fugir.

A notícia da captura de Smike espalhou‑se rapidamente pela famélica comunidade,ficando toda a manhã em plena expectativa,a qual estava, contudo, destinada a continuar até à tarde,depois do jantar de Squeers e dele se ter fortalecido com uma libação adicional. Acompanhado da amável esposa fez a sua aparição com o terrível instrumento de flagelação formidável, encerado na ponta e novo em resumo, comprado essa manhã expressamente para a ocasião.

‑ Estão todos os rapazes aqui? ‑ perguntou Squeers em voz horrível.

Estavam ali todos os rapazes,mas todos eles tinham medo de falar,por isso Squeers teve de olhar para as filas a fim de se assegurar,fazendo baixar todos os olhos e curvar todas as cabeças nesse momento.

‑ Que cada um tome o seu lugar ‑ ordenou Squeers,administrando a sua pancada favorita na secretária e contemplando com sombria satisfação a expectativa geral que nunca falhava em ocasiões como esta. ‑ Nickleby! para a sua secretária,sir!

Mais dum pequeno observador notou uma expressão curiosa e desacostumada do assistente; contudo,Nicholas não abriu a boca. Squeers,olhando triunfantemente para o ajudante e com um compreensivo despotismo para os rapazes,deixou a aula, onde regressou pouco depois, arrastando Smike pela gola do casaco,ou antes,pelo fragmento dessa gola.

Mesmo ali,os rapazes moveram-se pouco à vontade nos lugares e alguns mais ousados aventuraram‑se a olhar uns para os outros com indignação e piedade.

De acordo com o costume nestes casos,foi perguntando ao Smike se tinha a dizer alguma coisa em sua defesa.

‑ Nada,suponho ‑ respondeu Squeers com um riso diabólico.

Smike olhou em torno e os seus olhos demoraram‑se, por um instante, em Nicholas, como se esperasse a sua intercessão; mas o olhar dele estava pregado na secretária.

‑ Tens alguma coisa a dizer? ‑ perguntou Squeers de novo, floreendo o braço direito duas ou três vezes, para lhe experimentar a força e a flexibilidade. ‑ Põe‑te um pouco fora do caminho, Mrs. Squeers, minha querida; mal tenho espaço suficiente.

‑ Poupe‑me, sir ‑ gritou Smike.

‑ Oh, é tudo, não é? ‑ inquiriu Squeers. ‑ Sim, açoito‑te polegada a polegada o corpo e paupo‑te o resto.

‑ Ah! ah! ah! ‑ riu‑se Mrs. Squeers. ‑ Isso é uma boa piada.

‑ Fui levado a fazê‑lo ‑ confessou Smike debilmente, deitandolhe um outro olhar implorativo.

‑ Foste então levado a fazê‑lo? ‑ perguntou Squeers. Oh, suponha que a culpa não foi tua, mas sim minha. hein?

‑ Cão miserável, sórdido, ingrato, focinho de porco, bruto, cabeçudo! ‑exclamou Mrs. Squeers, agarrando na cabeça de Smike por baixo do braço e administrand-lhe um soco a cada epíteto. ‑ O que quer ele dizer com isso?

‑ Põe‑te de parte, minha querida ‑ respondeu Squeers. Vamos tentar saber!

Mrs. Squeers, tendo perdido o fôlego com os seus esforços, acomodou‑se. Squeers segurou o rapaz com firmeza; uma forte pancada caiu‑lhe no corpo, fazendo-o soltar guinchos de dor. Depois ergueu‑se até tornar a cair. De súbito Nicholas Nickleby, levantou-se e gritou:

‑ Pare! ‑ com uma voz que fez estremecer os barrotes.

‑ Quem gritou para parar? ‑ perguntou Squeers, voltando‑se raivosamente.

‑ Eu! ‑ respondeu Nicholas, avançando. ‑ Isto não pode continuar!

‑ Não pode continuar? ‑ exclamou Squeers, quase num guincho.

‑ Não! ‑ trovejou Nicholas.

Atemorizado e estupefacto pela ousadia da interferência, Squeers largou a presa e, dando um ou dois passos para trás, encarou Nicholas com uns olhos positivamente terríveis.

‑ Eu disse que não podia continuar! ‑ repetiu Nicholas, nada amedrontado. ‑ E não continuará! Não deixo!

Squeers continuou a fixá-lo com os olhos a sairem‑lhe das órbitas e o assombro a paralizar‑lhe a língua.

‑ O senhor tem desatendido a minha pacífica interferência em prol deste desgraçado rapaz ‑ declarou Nicholas ‑ e não deu resposta à carta em que lhe pedia perdão para ele e me tornara responsável pela continuação da sua estadia aqui. Não me culpe por esta pública interferência. Foi o senhor que a provocou, não eu!

‑ Sente‑se, seu miserável! ‑ uivou Squeers, quase fora de si, de raiva, e agarrando Smike.

‑ Miserável! ‑ replicou Nicholas ferozmente. ‑ Se lhe tocas é à tua responsabilidade! Não serei testemunha impassível. O meu sangue ferve e sinto a força de dez homens como tu! Toma, pois, cautela, ou pelo Céu não te pouparei se me forças a isso!

‑ Para trás! ‑ bramiu Squeers, brandindo o látego.

‑ Tenho uma comprida lista de insultos a vingar ‑ con tinuou Nicholas, rubro de excitação ‑ e a minha indignação está aumentada pelas cobardes crueldades exercidas sobre crianças indefesas nesta caverna hedionda. Tem cuidado, pois se desencadeias a fera que há em mim! As consequências cairão sobre a tua cabeça!

Mal acabara de falar quando Squeers, numa violenta ex plosão de raiva e com um grito igual ao rugido duma fera, lhe cuspiu e lhe vibrou uma pancada na cara com o instrumento de tortura, fazendo‑lhe um vergão. Gritando com a vioiência da pancada e concentrando todos os sentimentos de fúria, desprezo e indignação, Nicholas deu um salto para ele, arrancou‑lhe a arma da mão e, agarrando‑o pela garganta, bateu no celerado até ele suplicar clemência.

Os rapazes, com excepção de Mister Squeers, não se mo veram, e Mrs. Squeers, com muitos guinchos, agarrando‑se às abas do casaco do consorte, salvou-o das mãos do furioso inimigo, enquanto Miss Squeers atirava à cabeça de Nicholas todos os tinteiros que encontrou, satisfazendo, assim, o seu amor insultado.

Nicholas, sentindo‑se cansado com o barulho e o tumulto e, vendo além disso, que o braço começava a estar fatigado, reuniu as forças que possuia para aplicar uma dúzia de golpes finais e atirar com Squeers para trás. A violência do empurrão fez Mrs. Squeers precipitar‑se sobre um banco, sem costas, e Squeers, batendo com a cabeça contra ele, ficou estendido no chão atordoado e sem movimento.

Terminando os seus negócios com esta felicidade e verificando que Squeers estava apenas atordoado, Nicholas deixou‑o ao cuidado da familia e retirou‑se para considerar que caminho era melhor adoptar. Olhou em volta, ansiosamente à procura de Smike, quando deixou o aposento, mas não o viu em parte alguma.

Depois duma breve reflexão, meteu as suas poucas roupas numa mala de coiro e, vendo que ninguém se opunha à sua saída, marchou sossegado para a porta da frente, achando‑se pouco depois na estrada a caminho de Greta Bridge.

Embora só tivesse na algibeira quatro xelins e poucos pence, e estivesse a mais de duzentas e cinquenta milhas de Londres, resolveu dirigir‑se para ali a fim de verificar, entre outras coisas, o que Mr. Squeers transmitiria ao seu queridíssimo tio, sobre os acontecimentos da manhã.

Levantando os olhos, quando chegou à conclusão de não haver remédio para o seu infeliz estado de coisas, avistou um cavaleiro que se aproximava, descobrindo ser Mr. John Browdie.

‑Não estou disposto para mais barulhos nem rixas!pensou Nicholas. ‑ No entanto, faça o que fizer, vou ter uma altercação com este honesto cabeça de queijo e talvez apanhe uma ou duas pauladas com o cajado.

Na verdade parecia ser esse o esperado resultado do encontro com John Browdie, pois logo que este viu Nicholas, avançou pelo passeio e esperou por ele, que se aproximava com todo o sossego.

‑ Um seu criado, cavalheiro ‑ cumprimentou John.

‑ Igualmente ‑ respondeu Nicholas.

‑ Encontrámo‑nos, por fim ‑ observou John, fazendo soar o estribo com um airoso toque do cajado de freixo.

‑ verdade ‑ replicou Nicholas, hesitando. ‑ Vamos - disse ele francamente, depois dum momento de silêncio. ‑ A última vez que nos vimos, apartámo‑nos em termos não muito bons. A culpa foi minha, creio, mas não tive intenção de o ofender, nem ideia de que o estivesse a fazer. Depois fiquei bastante arrependido. Quer apertar‑me a mão?

‑ Apertar a mão ‑ exclamou o bem humorado homem de Yorkshire. ‑ Decerto que o farei! ‑ Ao mesmo tempo inclinou‑se no selim e deu a Nicholas um vigoroso aperto de mão. Mas o que aconteceu à sua cara, homem? Parece toda cortada.

‑ É um golpe! ‑ confessou Nicholas, tornando‑se escarlate enquanto falava. ‑ Uma paneada, mas eu devolvi‑a, a quem ma deu e com bons juros!

‑ Devolveu? ‑ perguntou John Browdie. ‑ Bem feito! Gosto de si por isso.

‑ O facto é que ‑ disse Nicholas, não sabendo bem como confessar ‑ o facto é que tenho sido mal tratado.

‑ Não ‑ interpós John Browdie num tom de compaixão, pois era um gigante de força e estatura, e Nicholas, aos seus olhos, parecia um simples anão. ‑ Não me diga!

‑ Sim, fui ‑ retorquiu Nicholas ‑ mas esse homem, o Squeers, foi bem tosado por mim e, como consequência, tive de deixar o lugar.

‑ O quê! ‑ exclamou John Browdie com um berro tão entusiástico que o cavalo se assustou. ‑ Bateu no mestre‑es cola? Oh! oh! oh! Bateu no mestreescola! Quem já ouviu uma coisa parecida com isso até agora? Dê‑me outra vez a mão, jovem! Bateu no mestre‑escola! Gosto de si por causa disso!

Com estas expressões de deleite, John Browdie não se cansou de rir e de apertar a mão de Nicholas. Quando parou a jovialidade, perguntou a Nicholas o que pensava fazer, e ao responder‑lhe este tencionar ir direito a Londres, abanou a cabeça, duvidoso, e inquiriu‑lhe se sabia quanto levava a diligência para transportar os passageiros tão longe.

‑ Não, não sei! ‑ confessou Nicholas ‑ mas isso não tem grande importância para mim, pois tenciono ir a pé.

‑ Ir a pé para Londres! ‑ exclamou John, espantado.

‑ Todas as passadas do caminho ‑ replicou Nicholas. Nesta ocasião já podia ter dado muitas, por isso, adeus!

‑ Nada, nada ‑ retorquiu o honesto provinciano, puxando as rédeas ao seu impaciente cavalo. ‑ Pára aí. Quanto dinheiro tens?

‑ Não tenho muito ‑ confessou Nicholas, corando ‑ mas posso torná‑lo suficiente. Faz mais quem quer do que quem pode.

John Browdie não deu resposta verbal a este ditado, mas, metendo a mão na algibeira, tirou uma velha carteira de coiro, emporcalhada, e insistiu em emprestar a Nícholas o que quisesse para as suas actuais necessidades.

‑ Não tenhas medo, homem! ‑ disse ele. ‑ Leva o preciso para chegares a casa. Pagas‑me um dia, tenho a certeza.

Nicholas não pode aceitar mais do que um soberano, embora Mr. Browdie fizesse a diligência para ele ficar com mais, observando, no entanto, que se não gastasse tudo, podia devolver o restante com porte pago.

‑Toma este bocado de pau para te ajudar, homem! acrescentou ele, entregando o cajado a Nicholas e dandolhe outro aperto de mão. ‑ Corações aa alto e Deus te ajude! Bateu no mestre‑escola! Esta é a coisa melhor que tenho ouvido nos últimos vinte anos!

Dizendo isto e dando uma série de gargàlhadas para evitar os agradecimentos de Nicholas, John Browdie deu de esporas ao cavalo e em breve desapareceu numa curva distante, não sem ter primeiro olhado para trás de vez em quando, acenando alegremente com a mão.

Nicholas nessa tarde não andou muito por estar próximo do escurecer e cair neve. Ficou de noite numa pousada, onde as camas eram baratas para as classes humildes dos viajantes. De manhã levantou‑se e chegou antes da noite a Boroughbridge. Atravessando esta cidade à procura duma estalagem modesta, deu de cara com um celeiro vazio a umas duzentas jardas da estrada, num canto quente no qual estendeu as fatigadas pernas, adormecendo dentro de pouco tempo.

Quando acordou na manhã seguinte, tentou lembrar‑se dos sonhos, que diziam todos respeito à sua presente estadia em Dotheboys Hall, levantou‑se, esfregou os olhos e ficou pasmado a olhar ‑ não com o semblante muito sereno ‑ para um objecto imóvel, que parecia estar parado a umas poucas de jardas à sua frente.

‑ estranho ‑ exclamou Nicholas. ‑ Isto pode ser ainda um resto de sonho que me não tenha deixado! Não pode ser verdadeiro. e, contudo. estou acordado. Smike!

O vulto moveu‑se, levantou‑se e caiu de joelhos a seus pés. Era na verdade Smike.

‑ Porque te ajoelhas aos meus pés? ‑ perguntou Nicholas, apressando-se a levantá‑lo.

‑ Para ir consigo. para qualquer parte. para toda a parte. para o fim do mundo. para a cova no adro da igreja!

‑ respondeu Smike, agarrando-lhe na mão. ‑ Consinta! Oh, consinta! O senhor é o meu lar. o meu verdadeiro amigo. suplico-lhe que me leve consigo.

‑ Sou um amigo que pouco pode fazer por ti ‑ disse Nicholas gentilmente. ‑ Como vieste cá parar?

Tinha‑o seguido, sem o perder de vista, durante todo o trajecto; ficara de vigia enquanto ele dormia e quando parou para se dessedentar, receando aparecer antes, deixou‑se ficar para trás. Não tencionava aparecer agora, mas Nicholas acordara mais depressa do que ele esperava, sem lhe dar tempo a esconder‑se.

‑ Pobre rapaz ‑ comentou Nicholas. ‑ O teu negro fado só te concede um amigo e, mesmo esse, quase tão pobre e tão desamparado como tu.

‑ Posso. posso ir consigo? ‑ perguntou Smike timidamente. ‑ Serei o seu criado fiel para todos os trabalhos pesados. Não preciso de roupas‑ acrescentou a pobre criatura, unindo os trapos. ‑ Estas servem muito bem. O que quero apenas é estar junto de si.

‑ E estarás ‑ afirmou Nicholas. ‑ E o mundo há‑de proceder para contigo como tem procedido para comigo, até um de nós, ou ambos, o abandonarmos por um outro melhor. Vamos!

Com estas palavras pôs a mala ao ombro e, agarrando no cajado com uma das mãos, estendeu a outra ao seu protegido, e assim sairam juntos do velho celeiro.

 

Tendo a desgraça de tratar só com gente ordinária é‑se necessariamente dum carácter vil e mau.

No bairro de Londres onde está situado Golden Square, há uma travessa cujos prédios parecem olhar uns para os outros, admirados da respectiva velhice. A criação anda livremente pela rua, misturando-se com as crianças, que saltitam de pedra em pedra, procurando qualquer coisa comestível no meio da porcaria.

As casas eram ocupadas por inúmeras pessoas, havendo nas portas tantos puxadores de campainhas quanto os apartamentos, e as janelas eram orientadas com a maior diversidade de cortinas e estores que se pode imaginar.

Numa destas casas, talvez a mais suja, com maior número de campainhas e de crianças, a abastança dos moradores estava na ordem inversa da altura: quanto mais baixo, melhor era a mobília que ostentava. Nas águas‑furtadas parou, para abrir uma porta do quarto da frente, um homem de feições duras e cara quadrada, roto e já de idade. Usava uma cabeleira de cabelo curto e ruivo, que atirou com o chapéu, pendurando-o na parede. Tendo substituído isto por um barrete de dormir, em algodão, andou às apalpadelas na escuridão até encontrar o coto duma vela; bateu depois no tabique que dividia os dois quartos e perguntou em voz alta se Mr. Noggs tinha luz.

O som da resposta afirmativa de Newman, filtrado através do gesso e das ripas, parecia sair duma caneca ou de outro vaso de beber.

‑ Uma sórdida noite, Mr. Noggs ‑ disse o homem do barrete de dormir, entrando para acender a vela.

‑ Chove? ‑ perguntou Newman.

‑ Se chove? ‑ respondeu o outro, de mau humor. ‑ Estou encharcado até aos ossos.

‑Não é preciso muito para o encharcar completamente, e a mim também, Mr. Crowl ‑ afirmou Newman, pondo a mão na lapela do casaca, já no fio.

‑ Isso torna o caso mais triste ‑ observou Mr. Crowl no mesmo tom rabugento.

Proferindo um grunhido, baixo e lamentoso, o homem, cuja expressão impertinente era o verdadeiro epítome do egoísmo, despertou o lume fora da grelha do fogão e encheu o copo que Noggs lhe empurrara, perguntando onde guardava o carvão.

Newman Nuggs apontou para o fundo do aparador e Mr. Crowl, agarrando na pá, encheu‑a com metade da provisão, que Naggs deliberadamente atirou outra vez para dentro, sem dizer uma palavra.

‑ Esperava que se não tornasse poupado a esta hora do dia! ‑ disse Crowl.

Newman apontou para o copo vazio, como se fosse uma refutação suficiente da acusação e, resumidamente, declarou ter de ir lá abaixo cear.

‑ Aos Kenwigses? ‑ perguntou Crowl.

Newman fez que sim com a cabeça.

‑ Se eu não pensasse que não ia ‑ replicou Crowl ‑ não teria vindo, pondo na ideia passar a noite consigo.

‑ Sou obrigado a ir ‑ afirmou Newman ‑ eles querem‑ me lá.

‑ E o que vai ser de mim? ‑ inquiriu o egoísta, que só pensava nele. ‑ Toda a culpa é sua. Digo‑lhe que me sento ao pé do lume até que você regresse.

Newman deitou um desesperado olhar ao seu reduzido depósito de combustível, mas não tendo a coragem de dizer não ‑ palavra nunca proferida durante toda a sua vida ‑ acedeu à proposta, instalando-se Mr. Crowl o mais confortavelmente possível com os meios de que Newman Noggs dispunha.

Os locatários a que Crowl aludira com o nome de Ken wigses eram, um Mr. Kenwigs, torneiro de marfim e a esposa, tidos no prédio como pessoas de consideração. Mrs. Kenwigs era quase uma senhora nas suas maneiras, assunto de conversa de todas as comadres da rua.

Era o oitavo aniversário em que, pela Igreja Inglesa, se tinham unido em feliz matrimónio, coroado por cinco crianças que pareciam um sonho, e Mrs. Kenwigs convidara alguns amigos escolhidos para cear.

A reunião era admiravelmente selecta. Além de Mr. e Mrs. Kenwigs e das quatro azeitonadas Kenwigses, havia uma rapariga que fizera o vestido da dona da casa, um jovem conhecido de Mr. Kenwigs do tempo de solteiro, um par recém ‑ casado, uma irmã de Mrs. Kenwigs, que era uma beldade, um jovem que nutria boas intenções a seu respeito, Mr. Noggs, uma senhora de idade, e mais uma jovem que cantava e recitava.

‑ Minha querida ‑ sugeriu Mr. Kenwigs ‑ não seria melhor começar?

‑ Kenwigs, meu querido ‑ respondeu‑lhe a esposa ‑ surpreendes‑me. Querias começar sem o meu tio?

‑ Esqueci‑me do cobrador ‑ desculpou‑se Mr. Kenwigs. Oh, isso nunca na vida!

‑ É tão esquisito ‑ informou Mrs. Kenwigs, voltando‑se para a outra senhora casada ‑ que se principiássemos sem ele, ficávamos para sempre fora do seu testamento.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou a senhora casada.

‑ Não faz ideia do que ele é! ‑ continuou Mrs. Kenwigs. E, no entanto, é a melhor criatura do mundo.

‑Um homem de coração tão sensível como nunca houve ‑ reforçou Mr. Kenwigs.

‑ Creio que lhe toca o coração quando é forçado a cortar alguma coisa quando as pessoas não pagam ‑ observou o amigo celiba tário, pretendendo gracejar.

‑ George ‑ advertiu Mrs. Kenwigs solenemente ‑ nada dessas coisas,faz favor.

‑ Era apenas um gracejo ‑ disse o amigo, envergonhado.

‑ George ‑ replicou Mr. Kenwigs ‑ um gracejo é uma coisa muito boa. uma coisa muito boa, mas quando o gracejo é feito à custa dos sentimentos de Mrs. Kenwigs, oponho-me. Um homem na vida pública expõe‑se a ser escarnecido. é a culpa da sua elevada situação e não dele. O parente de Mrs. Kenwigs é um funcionário público e ele sabe isso, George, e que tem de aguentar. Mas pondo Mrs. Kenwigs fora da ques tão. como se eu pudesse pôr Mrs. Kenwigs fora da questão numa ocasião destas! Tenho a honra de estar ligado pelo casamento ao cobrador e não posso consentir estas observações na minha. ‑ Mr. Kenwigs ia a dizer casa, mas terminou a frase ‑ nos meus apartamentos.

Ao concluirem‑se estas palavras, que punham em evidência o vivo sentimento de Mrs. Kenwigs e tinha o efeito de impressionar os presentes com o fundo senso da dignidade do cobrador, ouviu‑se um toque de campainha.

‑ É ele ‑ sussurrou Mrs. Kenwigs muito excitada. ‑ Morleena, minha querida corre lá abaixo e abre a porta ao teu tio, e beija‑o imediatamente logo que abras a porta. Vamos conversar, sim?

Adoptando a ideia de Mrs. Kenwigs, os convidados puseram‑se á falar em voz alta, para parecerem estar à vontade, e quase a seguir um homenzinho de idade, de fato castanho e polainas, com uma cara que podia ter sido trabalhada em pau santo, foi alegrenente introduzido por miss Morleena Kenwigs, nome inventado e composto por Mrs. Kenwigs antes do seu primeiro parto, no caso de se tratar de uma rapariga.

‑ Oh! tio! Estou tão contente em o ver ‑ disse Mrs. Kenwigs, beijando afectuosamente o cobrador em ambas as faces, ‑ Tão contente!

‑ Muitas felicidades pelo dia de hoje, minha querida ‑ replicou o cobrador, devolvendo o cumprimento.

‑ Onde se quer sentar, tio ‑ perguntou Mrs. Kenwigs, toda orgulhosa da família, orgulho provocado pela aparição do seu distinto parente.

‑ Em qualquer parte, minha querida ‑ respondeu o cobrador. ‑ Não sou esquisito.

Não era esquisito! Mas que meigo cobrador! Se fosse um escritor, conhecendo o seu lugar, não poderia ser mais humilde.

‑ Mr. Lillyvick ‑ disse Kenwigs, dirigindo‑se ao cobrador ‑ alguns destes amigos estão muito ansiosos pela honra de... Obrigado... Mr. e Mrs. Cutler, Mr. Lillyvick.

‑Muita honra em conhecê‑lo, sir ‑ cumprimentou Mr Cutler. ‑ Tenho ouvido falar de si muitas vezes. ‑ Estas não eram simples palavras de cerimónia, pois Mr. Cutler, na verdade, tinha ouvido falar muito dele, em virtude de ter vivido na mesma freguesia de Mr. Lillyvick.

‑ George, julgo que conheces Mr. Lillyvick ‑ disse Kenwigs. ‑ A senhora cá de baixo. Mr. Lillyvick, Mr. Snewks.

Mr. Lillyvick. Miss Green. Mr. Lillyvick. Mr. Lillyvick. Miss Tetowker, do Theather Royal Drury Lame. Muito contente por apresentar uma à outra duas figuras públicas. Mrs. Kenwigs, minha querida, escolhes os lugares?

Mrs. Kenwigs, com a ajuda de Newman Noggs, procedeu à sua vontade, e a maior parte dos convidados sentaram‑se para comer, enquanto o próprio Newman e Mrs. Kenwigs atendiam à mesa da ceia.

Enquanto as senhoras se linitavam a conversar, Mr. Lillyvick fazia honra à comida, aproximando‑se, sem escrúpulo algum da propriedade dos vizinhos, mas sorria tão bem humorado e conversava tão agradavelmente, que as pessoas sentiam nos seus corações que ele devia ser o ministro das finanças, pelo menos!

A ceia decorreu depressa e muito bem, apenas com o senão de reclamarem, de vez em quando, à pobre Mrs. Kenwigs, garfos e facas lavados, fazendo desejar a boa senhora que fosse adoptado o regime das escolas: cada um trazia o seu talher.

Depois de toda a gente comer levantaram a mesa num instante, com um grande barulho; Mr. Lillyvick foi instalado numa cadeira de braços ao pé do lume e as quatro pequenas Kenwigses num banco em frente da assistência, com as caras para o fogão. Logo que acabaram estas disposições, Mrs. Kenwigs, sem poder reter os seus sentimentos de mãe, encostou‑se ao ombro do marido, desfeita em lágrimas.

‑ São tão belas! ‑ explodiu Mrs. Kenwigs, soluçando.

‑ Meu Deus, são mesmo! ‑ exclamaram todas as senhoras.

‑É muita natural que se sinta orgulhosa deles, mas não se entregue a isso.

‑ Não posso ter mão em mim e isto nada significa ‑ continuou a soluçar Mrs. Kenwigs. ‑ Oh! são lindas demais para este mundo, lindas demais!

Ouvindo este alarmante pressentimento as quatro crianças ergueram um berreiro medonho e vieram meter as cabeças no colo da mãe; Mrs. Kenwigs apertou‑as alternadamente ao peito, com atitudes que Miss Petowker bem podia copiar. Por fim a ansiosa mãe acalmou‑se e as quatro pequenas Kenwigses foram distribuídas pelos convivas, que lhes profetizaram muitos anos de vida.

‑ Faz hoje oito anos ‑ relembrou Mrs. Kenwigs depois duma pausa. ‑ Meu Deus. ah!

Esta reflexão ecoou pelos presentes que a repetiram, primeiro o Ah! e Meu Deus! depois.

‑ Eu era então mais nova. ‑ continuou Mrs. Kenwigs.

‑ Não ‑ disse o cobrador.

‑ Certamente que não! ‑ acrescentaram todos.

‑ Lembro-me da minha sobrinha ‑ recordou Mr. Lillyvick, inspeccionando a assistência com um ar grave. ‑ Lembro‑ me dela naquela precisa tarde em que deu a conhecer à mãe a sua inclinação pelo Kenwigs. Mãe, disse ela, amo-o.

‑ Adoro‑o, disse eu, tio ‑ corrigiu Mrs. Kenwigs.

‑ Amoo, foi o que disseste, minha querida ‑ repetiu Mr. Lillyvick com firmeza.

‑ Talvez tenha razão, tio ‑ replicou Mrs. Kenwigs submissamente. ‑ Pensava que tivesse sido adoro-o.

‑ Amo, minha querida ‑ teimou Mr. Lillyvick. ‑ Mãe, disse ela, Amo‑o. O que ouço? - gritou a mãe e, imediata mente, caiu em grandes convulsões.

Dos presentes partiu uma exclamação geral de assombro.

‑ Em grandes convulsões ‑ repetiu Mr. Lillyvick, contemplando‑os com um olhar severo. ‑ O Kenwigs desculpa a minha recordação na presença de amigos, mas houve uma grande objecção contra ele por ser duma família inferior e ir desgraçar a nossa. Lembra‑se, Kenwigs?

‑ Certamente ‑ respondeu o interpelado, de forma alguma melindrado com a reminiscência, por vir provar sem qualquer dúvida, a alta descendência de Mrs. Kenwigs.

‑ Eu compartilhava esses sentimentos ‑ confessou Mr. Lillyvick. ‑ Talvez fosse natural, talvez não.

Um murmúrio cortês parecia dizer que na situação de Mr. Lillyvick a objecção era, não só natural, mas altamente louvável.

‑ Como o tempo, mudei ‑ continuou Mr. Lillyvick. ‑ Depois de estarem casados já não havia nada a fazer e eu fui um dos primeiros a dizer que se devia ter consideração por Kenwigs. Por consequência, a família começou a fazer caso dele a exortação minha e devo dizer ‑ e orgulho‑me de dizerque o encontrei um homem muito honesto, bem educado, recto e respeitável. Kenwigs aperte esta mão!

‑ Sinto‑me orgulhóso em fazê‑lo, sir! ‑ disse Mr. Kenwigs.

‑ Também eu Kenwigs ‑ replicou Mr. Lillyvick.

‑Tenho levado uma vida muito feliz com a sua sobrinha, sir ‑ informou Kenwigs.

‑ Teria sido apenas culpa sua se a não levasse, sir ‑ observou Mr. Lillyvick.

‑ Morleena Kenwigs ‑ chamou a mãe, muito impressionada ao chegar a este climax ‑ beija o teu querido tio.

A rapariga fez o que lhe foi ordenado e as outras três foram içadas até à cara do cobrador e sujeitas ao mesmo procedimento, o que depois foi repetido pela maioria dos presentes.

‑ Querida Mrs. Kenwigs ‑ sugeriu Miss Petowker ‑ enquanto Mr. Noggs está fazendo o ponche para se beber à vossa saúde, permita que Morleena execute aquela figura de dança perante Mr. Lillyvick.

‑ Não, não, minha querida! ‑ respondeu Mrs. Kenwigs. Isso apenas aborrecia o meu tio.

‑ Tenho a certeza que não ‑ assegurou Miss Petowker. Teria muito prazer, não teria, sir?

‑ Estou certo que sim ‑ replicou o cobrador, relanceando para o fabricante do ponche.

‑Então, bem! Digo‑lhe que Morleena dançará se o tio persuadir Máss Petowker a recitar‑nos o Blood‑drinker's Buriahi depois.

A esta proposta os presentes deram palmas e bateram com os pés no chão; a recitadora inclinou amavelmente a cabeça, várias vezes, agradecendo a recepção.

‑ A senhora sabe ‑ declarou Máss Petowker repreensiva mente‑ que não gosto de fazer nada da minha profissão em reuniões particulares.

‑ Oh, mas não aqui! ‑ disse Mrs. Kenwigs. ‑ Somos tão amigos e estamos tão alegres, que é como se estivéssemos em famflia. Além disso a ocasião.

‑ Não posso resistir ‑ interrompeu Miss Petowker. ‑ Tudo o que esteja no meu fraco poder terei muito prazer em fazer.

Mrs. Kenwigs e Miss Petowker arranjaram entre si um programa de diversões e quando os assistentes abriram um semi‑círculo, Miss Petowker deu o tom e Morleena começou a dançar. Fez uma linda figura compreendendo o muito trabalho dos braços e foi premiada com infinitos aplausos.

‑ Se fosse favorecida com uma. uma filha ‑ protestou Miss Petowker corando ‑ possuindo um génio como esta, pu nha‑a na ópera im tamentz.

Mrs. Kenwigs suspirou e olhou para Mr. Kenwigs, que abanou a cabeça e observou ter receio disso.

‑ Kenwigs tem medo ‑ notou Mrs. Kenwigs.

‑ De quê? ‑ perguntou Miss Petowker. ‑ Não dela falhar!

‑ Oh, não ‑ replicou Mrs Kenwigs ‑ mas se ela foi educada como está agóra... pense nos jovens duques e marqueses.

‑ Tem muita razão ‑ apoiou o cobrador.

‑ No entanto ‑ condescendeu Miss Petowker ‑ se ela tiver um verdadeiro orgulho sabe.

‑ Isso é muito verdade ‑ respondeu Mrs. Kenwigs, olhando para o marido.

‑ Sei apenas ‑ gracejou Miss Petowker ‑ que pode não ser uma regra, decerto. mas eu nunca encontrei qualquer inconveniência nem desagrado, desse género.

Mr. Kenwigs, com muita galantaria, disse para se pôr a questão de parte e nela se pensar seriamente mais tarde. Resolvido isto, Miss Petowker começou a recitar o Blood‑drinker's Burial com tão extraordinária naturalidade que até as quatro Kenwigses tiveram medo.

Ainda não tinha acabado o êxtase desta execução e Newman ainda não terminara o ponche, quando se ouviu uma forte pancada à porta, fazendo dar um grito a Mrs. Kenwigs, crente de que o filho lhe caira da cama.

‑ Quem está aí? ‑ perguntou Mr. Kenwigs vivamente.

‑ Não se assustem, sou apenas eu ‑ respondeu Crowl, de barrete de dormir, olliando para dentro de casa. ‑ O bébé está muito bem e ferrado no sono, assim como a rapariga, pois entrei lá no quarto quando vim para baixo; e não me parece que a vela pegue fogo ao cortinado da cama, a não ser que entre no quarto qualquer aragem. É Mr. Noggs quem procuro.

‑ A mim? ‑ exclamou Newman, muito admirado.

‑ Porquê? É uma hora esquisita, não é? ‑ replicou Crowl, a quem não agradara muito o facto de ter deixado o seu lume ‑ e é também uma gente de aspecto muito extraordinário, todos molhados e cobertos de lama. Digo-lhes para se irem embora?

‑ Não ‑ replicou Newman, levantando‑se. ‑ Gente. Quantos são?

‑ Dois ‑ informou Crowl.

‑ Perguntaram por mim? Pelo nome? ‑ inquiriu Newman.

‑ Pelo nome ‑ confirmou Crowl. ‑ Mr. Newman Noggs, com todas as letras.

Newman reflectiu uns segundos e depois apressou‑se a sair, murmurando que voltaria imediatamente. Foi fiel à sua promessa, pois dentro dum tempo excessivamente curto rompeu pelo aposento e, sem uma palavra de desculpa ou de explicação, agarrou numa vela acesa e numa caneca de ponche quente, e disparou pela porta fora como um doido.

‑ Que diabo tem ele? ‑ exclamou Crowl, abrindo a porta.

‑ Escutem! Não há barulho lá em cima?

Os convidados levantaram‑se em grande confusão e, olhando uns para os outros com muita perplexidade e algum medo, estenderam os pescoços para escutarem com atenção.

 

Conhece‑se a cousa e a origem da interrupção do último capitulo e de outros assuntos Newman Noggs subiu a escada a correr com a fumegante bebida que, sem cerimónia, tirara da mesa, de Mr. Kenwigs e, principalmente, da garra do cobrador. Entrou com a presa nas águas‑furtadas, onde encontrou, com os pés encharcados e quase descalços, molhados, sujos, cansados e desfigurados pelas marcas duma fatigante viagem, Nicholas e Smike, sentados.

O primeiro acto de Newman foi obrigar Nicholas com suave força, a engolir metade do ponche duma vez, quase a ferver como estava, e o seguinte deitar o resto pelas goelas de Smike, que nunca na vida provara uma coisa tão forte.

‑ O senhor está completamente encharcado ‑ disse Newman, passando a mão rapidamente pelo casaco que Nicholas tirara ‑ e eu. eu nem sequer tenho outro para lhe dar - acrescentou, deitando um pensativo olhar, ao miserável fato que vestia.

‑ Eu tenho roupa seca na minha mala e que pelo menos serve muito bem para mudar ‑ replicou Nicholas. ‑ Se o senhor ficou tão aflito por me ver, acrescenta isso ao desgosto que já tenho por ser forçado, por uma noite em ter de recorrer aos seus fracos meios de ajuda e abrigo.

Newman não se mostrou menos aflito ao ouvir falar Ni cholas deste modo, mas depois de apertar cordialmente a mão do seu jovem amigo, começou os preparativos que estavam nos seus meios, para instalar confortavelmente os visitantes.

Estes foram bastante simples, por os haveres do pobre Newman estarem muito longe da sua boa vontade. Como Nicholas tinha economizado o seu fraco pecúlio que lhe chegara para arranjar uma ceia de pão com queijo, carne fria, uma garrafa de aguardente e um cangirão de cerveja que foi posta na mesa, não havia apreensões quanto à fome e à sede. Não demorando muito os preparativos de Newman para acomodar os seus hóspedes, estes em breve estavam a partilhar da sua frugal refeição.

Em seguida chegaram‑se para o lume que Newman Noggs avivou o mais possivel depois das excúrsões de Crowl ao combustível, apertando‑o Nicholas com perguntas ansiosas sobre a mãe e a irmã.

‑ Bem ‑ respondeu Newman com a sua costumada taciturnidade ‑ estão ambas bem!

‑ Estão ainda a viver na City? ‑ inquiriu Nicholas.

‑ Estão. ‑ replicou Newman.

‑ E a minha irmã ‑ acrescentou Nicholas ‑ continua ainda no emprego, sobre o qual me escreveu, dizendo que gostava muito?

Newman abriu os olhos bastante mais do que o costume, mas limitou‑se a responder com um suspiro acompanhado por um movimento de cabeça, cuja interpretação tanto podia ser sim, como não. No exemplo presente a pantomina consistie num aceno para baixo e não numa abanadela; portanto, Nicholas tomou a resposta como afirmativa.

‑ Agora escute‑me ‑ pediu Nicholas, pondo a mão no ombro de Newman. ‑ Antes de fazer qualquer tentativa para as ver, julguei preferível vê‑lo a si primeiro para poder satisfazer o meu desejo egoísta e evitar uma injúria a respeito delas, que nunca poderia reparar. O meu tio recebeu notícias de Yorkshire?

Newman abriu e fechou a boca várias vezes, dando a ideia de tentar o impossível para falar, mas não podendo fazer nada disso, fixou, finalmente; os olhos em Nicholas com um sorriso e um olhar de horror.

‑ O que soube ele? ‑ perguntou Nicholas, corando. ‑ É que eu estou preparado para ouvir o pior que a maldade possa ter inventado. Por que me esconde isso? Tenho que saber mais cedo ou mais tarde; e o que se ganha em perder tempo com brincadeiras durante alguns minutos, quando,metade desse tempo me poria ao corrente do sucedido? Diga já, suplico-lhe.

‑ Amanhã de manhã ‑ respondeu Newman. ‑ Amanhã lhe conto.

‑ Qual o fim do adiamento? ‑ inquiriu Nicholas.

‑ Dormirá melhor ‑ replicou Newman.

‑ Dormirei pior ‑ retorquiu Nicholas com impaciência. Dormir! Exausto como estou e não podendo resistir à ne cessidade vulgar de descanso, não conseguirei pregar olho em toda a noite se não me disser tudo.

‑ E se eu lhe dissesse tudo? ‑ perguntou Newman, hesitante.

‑Então podia despertar a minha indignação, ou ferir o meu orgulho, mas nunca perturbar o meu descanso ‑ respondeu Nicholas ‑ pois se a cena tivesse de se repetir, não podia tomar partido diferente daquele que tomei; e quaisquer que sejam as consequências, nunca me arrependerei de ter feito o que fiz. nunca, mesmo se tiver de morrer de fome, ou estender a mão à caridade, como consequência do meu acto. O que é um pouco de pobreza, ou de sofrimento, para a desgraça da mais desprezível e da mais desumana cobardia?

Digo-lhe, se me tivesse conservado passivo e me tivesse submetido, ter‑me‑ia odiado e merecia o desprezo de todos os seres humanos. O vilão de coração negro!

Com esta amável alusão ao ausente Mr. Squeers, Nicholas sufocou a sua raiva nascente e, relatando exactamente a Newman o que se passara em Dotheboys Hall, suplicou‑lhe para falar sem mais pressões. Assim rogado, Mr. Noggs tirou duma velha carteira uma folha de papel, que parecia ter sido ra biscada muito à pressa, e depois de várias demonstrações de relutância, rendeu‑se nas seguintes condições:

‑ Meu caro jovem, não devia dar ocasião a. . Como sabe, esta espécie de coisas nunca se faz. A continuar no mundo se vai defender a gente que é mal tratada... Raios de diabo! Estou orgulhoso por ouvir isso, e eu próprio teria feito o mesmo.

Newman acompanhou esta explosão, muito pouco normal, com um violento soco na mesa, como se no entusiasmo de momento a tomasse pelas costelas de Mr. Wackford Squeers. Tendo com esta franca declaração dos seus sentimentos, precavido de dar a Nicholas qualquer conselho sensato como tinha sido a sua primeira intenção, Mr. Noggs foi direito ao assunto.

‑Antes de ontem o seu tio recebeu esta carta. Tirei rapidamente uma cópia dela, enquanto ele estava ausente. Quer que eu leia?

‑ Se faz favor ‑ respondeu Nicholas. Newman Noggs começou, portanto, a ler o seguinte:

Dotheboys Hall

Quarta‑Feira de manhã

            Sir

O meu pai pede para eu lhe escrever, os médicos con sideram duvidoso se ele algum dia recuperará o uso das pernas, o que o obriga a não poder pegar na pena.

Estamos num estado de espírito impossível de imaginar e o meu pai tem umas marcas de amolgadelas azuis e verdes semelhantes a duas gravas com pontinhos de sangue coalhado. Fomos obrigados a carregá‑lo para a cozinha, onde está agora. Julgará por isto como ele ficou deitado muito abaixo.

Quando o seu subrinho, que o sinhor recomendou para professor, fez isto ao meu pai e lhe saltou para cima com os pés e também o arrastou, com o que não desonrarei a minha pena a escrever, ele assaltou a minha mãe com terrível violência, arremessando-a ao chão e enterrou‑lhe a travessa do cabelo vários centímetros dentro da cabeça. Um poucochinho mais e teria entrado no crânio. Temos uma certidão médica dizendo que se tivesse acontecido isso, a tartaruga teria infectado os miolos.

Eu e o meu irmão fomos também vítimas da sua fúria, e temos sufrido muntíssimo, o que nos leva a crer que teremos males interiores, especialmente porque nenhuma marca e violência se vê da parte de fora. Estou a gritar enquanto escrevo, assim como o meu irmão, o que não me deixa dar atenção e espero que me disculpará os erros.

O monstro, depois de satisfazer a sede de sangue, fugiu, levando consigo um rapaz de mau carácter que ele levou a revoltar-se, e um anel de granate pertencente a minha mãe, e não tendo sido prendido pelos pulicias, supõe‑se que tenha embarcado nalguma mala‑posta. O meu pai pede que se ele for ter consigo o anel deve ser devolvido, mas deixe o ladrão e assassinu ir‑se embora, porque se nós o perseguissemos seria apenas desterrado e se o deixarmos ir, tem a certeza de que será enforcado antes de pouco tempo, o que nos evitará a massada e será muito mais satisfatório. Esperando receber as suas nuticias quando achar conveniente, sou sua edecetra

Fanny Squeers

  1. S. ‑ Tenho piedade da sua ignorância e desprezo‑o.

Seguiu‑se um profundo silêncio à leitura desta esmerada epístola, durante o qual Newman Noggs a dobrou, olhou com uma espécie de grotesca piedade para o rapaz de mau carácter nela referido, que só percebera do assunto, ter sido a causa infeliz da acumulação de atribulações e da falsidade atribuída a Nicholas e que se conservou calado e desanimado, com um olhar abatido e de alma oprimida.

‑ Sir. Noggs ‑ disse Nicholas depois duns momentos de reflexão ‑ tenho de sair imediatamente.

‑ Sair! ‑ exclamou ONde?

‑ Sim ‑ respondeu Nicholas ‑ ir a Golden Square. Ninguém que me conheça acredita na história do anel, mas pode convir ao fim, ou satisfazer a aversão de Mr. Ralph Nickleby, fingir que dá crédito a isso. O esclarecer a verdade é devido, não a ele, mas a mim; além disso tenho uma ou duas palavras a trocar com ele, que não podem arrefecer.

‑ Mas devem! ‑ retorquiu Newman.

‑ Mas não devem ‑ replicou Nicholas com firmeza, preparandw-se para sair.

‑ Deixe‑me falar ‑ pediu Newman, colocando‑se em frente do seu jovem amigo. ‑ Ele não está lá. Saiu da cidade. Não estará de regresso antes de três dias e sei que não será dada resposta a esta carta antes dele voltar.

‑ Tem a certeza? ‑ perguntou Nicholas, imensamente arreliado e percorrendo o estreito quarto com passos rápidos.

‑Absoluta! ‑ assegurou Newman. ‑ Mal a tinha lido quando foi chamado. O seu conteúdo é só conhecido dele e de nós.

‑ Está convencido? ‑ inquiriu de novo Nicholas, precipitadamente. ‑ Nem mesmo de minha mãe, ou de minha irmã?

Se pensasse que elas. Vou ter com elas. Preciso de as ver. Qual é o caminho? Onde estão?

‑ Agora deixe‑me aconselhá‑lo ‑ disse Newman, falando neste momento com vivacidade, como qualquer outro homem.

‑ Não faça esforços para a ver antes dele voltar. Eu conheço o homem. Não se parece com qualquer outra pessoa. Quando ele regressar vá ter com ele e fale‑lhe tão ousadamente como quiser. Ele sabe tão bem o verdadeiro móbil, como o senhor, ou eu. Confie nele!

‑Apresenta‑me bem a questão e deve conhecê‑lo melhor do que eu ‑ replicou Nicholas depois de considerar. ‑ Bem, seja assim!

Newman, que até então estivera encostado à porta para impedir qualquer saída pela força, se fosse necessário, voltou a sentar‑se muito satisfeito; e como a água fervia na chaleira arranjou um copo de água e aguardente para Nicholas e uma caneca para ele e para Smike, que ambos partilharam com grande harmonia, enquanto Nicholas, apoiando a cabeça na mão se afundava em melancólica meditação.

Entretanto, os vizinhos de baixo depois de terem escutado e não ouvirem barulho que justificasse a sua interferência, ou a sua curiosidade, voltaram para os aposentos dos Kenwigses e deitaram‑se a adivinhar a súbita desaparição de Mr. Noggs e da sua demora.

‑ Vou dizer‑lhes ‑ aventou Mrs. Kenwigs. ‑ Suponho que recebeu um portador para lhe comunicar que todos os seus bens lhe foram restituídos.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou Mr. Kenwigs. ‑ Não é impossível! Nesse caso talvez fosse melhor ir lá acima e perguntar‑lhe se quer um pouco mais de ponche.

‑ Kenwigs! ‑ admoestou Mr. Lillyvick em voz alta. ‑ O senhor surpreende‑me.

‑O que se passa, sir? Mr. Kenwigs, tornando‑se submisso para com o cobrador dos recibos da água.

‑ Por fazer essa observação, sir ‑ respondeu Mr Lillyvick azedamente. ‑ Ele já levou ponche, não levou, sir? Considero a forma como esse ponche foi arrebatado, altamente desrespeitosa para esta sociedade se me permitem o termo, escandalosa, perfeitamente escandalosa. Pode ser uso permitir‑ se tais coisas nesta casa, mas não é o género de procedimento a que estou acostumado e não faço cerimónia em dizê‑lo, Kenwigs. Um cavalheiro tem um copo de ponche na sua frente, que vai levar à boca, e vem um outro cavalheiro e agarra no copo, sem ao menos dizer com licença, ou dá‑me licença, e vai‑se embora com o copo de ponche. Podem ser boas ma neiras ‑ atrevo‑me a dizer que são ‑ mas não as compreendo e é o suficiente; e o que é mais, não me importo de nunca as compreender. Esta é a minha forma de falar, de acordo com o que penso, Kenwigs, e isto é o que penso; e se não gosta, como já passou o meu tempo normal de ir para a cama, posso ir para casa sem mais tardança.

Aqui estava um acontecimento extraordinário! O cobrador estivera ruminando a sua dignidade ofendida durante alguns minutos e agora fazia‑a explodir. O grande homem, o parente rico, o tio solteiro, que podia fazer de Morleena uma herdeira e deixar uns legados aos bébés... fora ofendido! Deus do Céu! Onde isto iria acabar?!

‑ Sinto muito, sir ‑ disse Mr. Kenwigs humildemente.

‑ Não me diga que sente muito ‑ retorquiu Mr. Lillyvick em voz cortante. ‑ Então devia tê‑lo evitado!

A ilustre sociedade estava completamente paralisada por esta discussão doméstica, mais ou menos oprimida pela irri tação do grande homem. Mr Kenwigs, não sendo destro nestes assuntos, apenas ateou a chama, tentando apagá‑la.

‑ Lamento não ter pensado nisso, sir ‑ obtemperou. Não supunha que uma coisa tão simples, como um copo de ponche o fizesse perder as estribeiras.

‑Perder as estribeiras! O que diabo quer o senhor dizer com essa impertinência, Mr. Kenwigs? ‑ inquiriu o cobrador. Morleena, minha filha, dá cá o meu chapéu.

‑ Oh! O senhor não se vai embora, Mr. Lillyvick ‑ interpôs‑se Miss Petowker com o seu sorriso mais sedutor.

No entanto Mr. Lillyvick, sem fazer caso da sereia, gritou obstinadamente, Morleena, o meu chapéu, após a quarta repetição do qual, Mrs. Kenwigs caiu para trás na cadeira, com um grito que teria comovido uma represa quanto mais um cobrador de águas, ao mesmo tempo que as quatro rapariguinhas, particularmente instruídas para o efeito, se agarravam ao tio pedindo‑lhe em imperfeito inglês para ficar.

Para que devo eu ficar aqui, minhas queridas? ‑ perguntou Mr. Lillyvick. ‑ Eu não sou desejado.

‑ Oh! Não fale tão cruelmente, tio ‑ soluçou Mrs. Kenwigs ‑ a não ser que queira matar‑me.

‑ Não me espanta se alguém dissesse que o fazia ‑ replicou Mr. Lillyvick, relanceando, zangado, para Kenwigs. Perder as estribeiras!

‑Oh, não posso vê‑lo olhar assim para o meu marido ‑ exclamou Mrs. Kenwigs. ‑ É terrível entre família. Oh!

‑ Mr. Lillyvick ‑ disse Kenwigs ‑ espero, por amor da sua sobrinha, que não se oponha a uma reconciliação.

As feições do cobrador suavizaram e os convivas juntaram os seus esforços aos do sobrinho por afinidade. Tornou a dar o chapéu e levantou a mão.

‑ Kenwigs ‑ expôs Mr. Lillyvick ‑ deixe‑me dizer‑lhe e, ao mesmo tempo mostrar‑lhe como perdi as estribeiras, pois se me tivesse ido embora sem mais palavras, isso não faria diferença com respeito a uma ou duas libras que possa deixar às suas filhas quando morrer.

‑ Morleena Kenwigs ‑ gritou a mãe, num caudal de afeição ‑ ajoelha te aos pés do teu querido tio e pede‑lhe para te amar durante toda a sua vida, pois é mais um anjo do que um homem, e sempre tenho dito o mesmo.

Miss Morleena aproximou‑se para prestar a homenagem que lhe fora indicada, mas foi recebida a meio do seu intento e beijada por Mr. Lillyvick após o que Mrs. Kenwigs se atirou para beijar o cobrador, partindo da assistência um irreprimível murmúrio de aplauso por ter testemunhado a sua magnanimidade.

O digno cavalheiro tornou‑se mais uma vez a vida e a alma da sociedade, sendo reintegrado no seu posto de leão, donde um momento se sentira desapossado. Diz‑se que os leões quadrúpedes só são selvagens quando têm fome; os leões bípedes raro estendem o seu mau humor depois de satisfeitos os seus apetites de distinção. Mr. Lillyvick elevou‑se mais do que nunca, por ter mostrado a sua força e aludido aos seus bens e às suas intenções testamentárias, sendo finalmente galardoado com um copo de ponche maior do que o Newman Noggs tão criminosamente levara.

‑ Peço desculpa a todos por me intrometer de novo - disse Crowl, olhando para esta feliz união ‑ mas que negócio tão esquisito, não é? Noggs tem vivido nesta casa vai para cinco anos sem ninguém o visitar, segundo recordação do mais antigo dos inquilinos.

‑Foi uma hora estranha da noite para ser chamado, certamente, sir ‑ opinou o cobrador ‑ e o comportamento do próprio Mr. Noggs é, pelo menos, misterioso.

‑ Assim é ‑ assentiu Crowl ‑ e vou dizer mais. Creio que esses dois génios, ou o que são, fugiram de qualquer parte.

‑ O que o leva a pensar assim, sir? ‑ perguntou o cobrador, que parecia, por um tácito acordo, ter sido escolhido e eleito o porta‑voz da sociedade. ‑ Espero que não tenha razão para supor que fugiram de qualquer parte sem pagarem os impostos e as contribuições em dívida.

Mr. Crowl, com um olhar de desprezo, estava a ponto de fazer um protesto geral contra o pagamento de impostos e contribuições, quando foi detido a tempo por um segredo de Kenwigs e vários franzimentos de sobrolho e de testa da senhora que, providencialmente, o detiveram.

‑ O facto é que ‑ continuou Crowl, que escutara à porta de Newman com toda a atenção ‑ Que têm falado tão alto, que me têm incomodado no meu quarto, não podendo deixar de apanhar uma palavra aqui, outra acolá, e tudo o que ouvi parece referir‑se a terem‑se safado de qualquer parte. Não desejo alarmar Mr. Kenwigs, mas espero que não tenham vindo de alguma prisão, ou hospital e tragam febre, ou qualquer doença desagradável.

Mrs. Kenwigs ficou tão impressionada com esta suposição, que foram precisas todas as atenções de Miss Petowker, do Theatre Royal, Drury Lane, e um frasco de sais que Mr. Kenwigs lhe chegou ao nariz, para se acalmar.

As senhoras, tendo expresso as suas simpatias, simples e separadamente, com as várias expressões costumadas e a opinião dos presentes estava tão claramente manifestada, que Mr. Kenwigs iria lá acima pedir uma explicação a Mr. Noggs, se a atenção de todos os convivas não fosse desviada por uma surpresa nova e terrível.

Era nada menos do que uma rápida sucessão de gritos agudos, partindo do último andar, provavelmente do quarto onde estava o bébé dos Kenwigses. Logo que os sons se ouviram, Mrs. Kenwigs conjecturou que algum gato estranho tivesse entrado enquanto a rapariga dormia, abafando a criança. Assim, correu para a porta, torcendo as mãos e guinchando horrivelmente, com grande consternação e confusão de todos.

‑ Mr. Kenwigs, vá ver o que é. Depressa! ‑ incitou a irmã, pondo as mãos com violência em Mrs. Kenwigs e retendo‑a à força. ‑ Não te torças tanto, querida, ou nunca mais te seguro!

‑O meu bébé, o meu querido, querido, querido, querido bébé!‑berrava Mrs. Kenwigs, pronunciando cada querido mais alto do que o último. ‑ O meu adorado, meigo, inocente Lillyvick... Oh! Deixem‑me ir ter com ele. Deixem‑me i... i... ir!

Em virtude destes gritos frenéticos, das lamentações e do pranto das quatro raparigas, Mr. Kenwigs correu pela escada acima, para o quarto donde vinham os sons, a cuja porta encontrou Nicholas com a criança nos braços, mas o qual saía com tal violência que o pai ansioso, foi compelido a descer seis degraus para só parar no primeiro patamar, antes de ter tempo de inquirir do que se tratava.

‑ Não esteja alarmado! ‑ exclamou Nicholas, descendo. Aqui está ele; não há nada; está tudo acabado; sossegue, peço‑ lhe; não há mal nenhum! ‑Com estas e outras palavras de conforto entregou a criança a Mrs. Kenwigs e voltou atrás a socorrer Mr. Kenwigs, que estava a esfregar fortemente a cabeça, parecendo muito desconcertado pelo trambolhão.

Tranquilizados com estas alegres notícias, os presentes recobraram‑se do susto, que tinha ocasionado alguns exemplos frisantes da falta de presença de espírito. Assim, o amigo celibatário suportara nos braços, durante muito tempo, a irmã de Mrs Kenwigs, em vez desta, e o digno Mr. Lillyvick foi visto, na sua perturbação, a beijar várias vezes Miss Petowker atrás da porta, tão calmamente como se nada de medonho se estivesse a passar.

‑ Não foi nadà! ‑ declarou Nicholas, voltando-se para Mrs. Kenwigs. ‑ A rapariguinha, que estava a tomar conta da criança, sentindo-se cansada, suponho eu, adormeceu e pegou fogo ao cabelo.

‑ Oh, desgraçada pequena! ‑ exclamou Mrs. Kenwigs, agitando o indicador ameaçadoramente perante a infeliz pequena, que podia ter treze anos e apresentava a cabeça chamuscada e uma cara aterrada.

‑ Ouvi os gritos dela ‑ continuou Nicholas ‑ e corri a tempo de evitar que ela pegasse fogo a alguma coisa. Pode crer que a criança não sofreu nada e para a convencer tirei‑a da cama e trouxe‑a comigo.

Acabada esta breve explicação a criança ia sendo sufocada pelos convivas. A atenção destes foi depressa dirigida, por uma natural transição, para a rapariga que

tivera a audácia de queimar o cabelo e foi misericordiosamente mandada para casa, depois de receber alguns sopapos e empurrões das senhoras mais enérgicas, sem lhe terem pago os nove pence por que fora contratada.       

- Sir, - disse Mr. Kenwig. - Que podemos nós dizer-lhe?

‑ Não tem nada que dizer ‑ replicou Nicholas. ‑ Não fiz coisa alguma que reclame a sua eloquência, tenha a certeza.

‑ A criança podia ser mortalmente queimada se não fosse o senhor! ‑sorriu afectuosamente Miss Petowker.

‑ Creio que não ‑ retorquiu Nicholas ‑ pois havia abundância de gente aqui para chegar lá acima antes de qualquer perigo.

‑De qualquer forma permite que bebamos à sua saúde, sir? ‑ perguntou Mr. Kenwigs,dirigindo‑se para a mesa.

‑ Na minha ausência,à vontade ‑ disse Nicholas com um sorriso. ‑ Tive uma viagem muito fatigante e devo ser uma companhia muito medíocre... um grande freio à alegria em vez de a promover,mesmo no caso de me conservar acordado, o que penso ser muito duvidoso. Se me permitem, volto para o meu amigo,Mr. Noggs, que regressou ao quarto,quando viu que nada de sério se passava.

Desculpando‑se nestes termos por não tomar parte na festa, Nicholas recebeu cativantes despedidas de Mrs Kenwigs e das outras senhoras,retirando‑se depois de ter deixado uma impressão extraordinária em todos.            

‑ Que jovem tão simpático! ‑ comentou Mrs. Kenvigs

‑ Realmente,um cavalheirismo invulgar ‑ disse Mr. Kenwigs. ‑ Não pensa assim,Mr. Lillyvick?

‑ Sim, ‑ respondeu o cobrador      com um dúbio encolhimento de ombros ‑ é cavalheiresco,muito cavalheiresco... na aparência.

‑ Espero que não tenha nada contra ele,tio – objectou Mrs. Kenwigs.

‑ Não, minha querida ‑ replicou o cobrador ‑ não. Espero que ele seja bem sucedido... não importa... bebo à minha amizade por ti, minha querida, e à longa vida do bébé.

‑ O seu homónimo ‑ disse Mrs. Kenwigs com um sorriso.

‑ Espero que seja um digno representante do seu padrinho - disse Mr. Kenwigs. E devo dizer ‑ e Mrs. Kenwigs é do mesmo parecer e tem os sentimentos tão vivos como os

meus!‑que considero o seu nome de Lillivick como uma das maiores bençãos e honras da minha esposa.

‑ A maior benção,Kenwigs! ‑ murmurou ela.

‑ A maior benção! ‑ corrigiu‑se Mr. Kenwigs. ‑ Uma benção que espero poder merecer num destes dias.

Este, era o golpe político dos Kenwigses, porque fazia de Mr. Lillyvick o grande cume, e a fonte da importância do bébé. Os bons cavalheiros sentiram a delicadeza e a destreza do tacto e, imediatamente, propuseram brindar à saúde do cavalheiro, de nome desconhecido, que se assinalara nessa noite pelo seu sangue‑frio e boa disposição.

‑ Não me importo de declarar ‑ observou Mr. Lillyvick, como se fosse uma grande concessão‑ que é um jovem bastante bem parecido, cujo carácter espero seja igual às suas maneiras.

‑ Tem, realmente, uma bela cara e modos ‑ comentou Mrs. Kenwigs.

‑ Tem, na verdade ‑ secundou Miss Petowker. ‑ Há qualquer coisa na sua aparência de verdadeiro. querida, querida, como se diz essa palavra?

‑ Que palavra? ‑ perguntouMr. Lillyvick.

‑ Oh, meu Deus, como sou estúpida! ‑ replicou Miss Petowker, hesitando. ‑ Como se diz quando os lordes quebram as aldrabas das portas, batem nos polícias, brincam às carruagens com o dinheiro dos outros e toda essa espécie de coisas?

‑ Aristocracia? ‑ sugeriu o cobrador.

‑ Ah! aristocrata ‑ replicou Miss Petowker ‑ alguma coisa de aristocrático nele, não tem?

Os cavalheiros calaram‑se, mas sorriram uns para os outros, como se dissessem: Cada qual tem o seu gosto. No entanto, as senhoras resolveram unanimemente que Nicholas tinha um ar aristocrático, e como ninguém se deu ao trabalho de contestar, ficou assim triunfantemente estabelecido.

Tendo sido bebido o ponche e reclamando as pequenas Kenwigses urgentemente a cama, o cobrador tirou o relógio e avisou os presentes serem perto das duas horas. Alguns dos convivas ficaram surpreendidos e outros chocados, mas todos eles se apossaram dos chapéus e partiram com muitas felicitações pela festa e pelo aniversário, sentindo que todas as semanas se não festejasse ali uma data matrimonial. A esta expressão lisonjeira os esposos Kenwigses retribuiram com agradecimentos e apertos de mão, desejando que se tivessem divertido metade do que diziam.

Quanto a Nicholas, completamente inconsciente da impressão produzida, dormia há muito tempo, deixando Mr. Newman Noggs e Smike a esvaziarem a garrafa entre si. E esta ocupação foi desempenhada com tão boa vontade que Newman tinha dificuldade em determinar se era ele que estava completamente sóbrio, ou se nunca vira cavalheiros tão completa e fortemente intoxicados, como os seus novos conhecimentos.

 

Nicholas procura empregar‑se noutra modalidade e não sendo bãem sucedido, aceita o lugar de preceptor numa casá particular

O primeiro cuidado de Nicholas na manhã seguinte foi procurar um quarto onde pudesse viver até virem melhores dias, para não abusar da hospitalidade de Newman Noggs, que dormia em cima de cadeiras, com prazer, para o seu jovem amigo ficar bem acomodado.

O quarto vago a que fazia referência o escrito posto na janela, era um aposento nas traseiras dum segundo andar com uma linda perspectiva de telhas e chaminés. Depois de tratado o aluguer do quarto, semana a semana, em condições razoáveis, Nicholas apossou‑se dele e, tendo alugado na vizinhança umas poucas peças de mobília, sentou‑se a ruminar nos seus projectos. Como só podia contar consigo, resolveu agarrar no chapéu e sair para a rua, deixando o pobre Smike a arranjar e a tornar a arranjar o quarto, com tal prazer como se fosse o mais luxuoso palácio.

Ocupado nas suas reflexões e caminhando por entre a grande quantidade de gente das ruas de Londres, ocasionalmente levantou os olhos para uma tabuleta azul, onde estavam escritas as palavras, Grai Agency Ofice colocações para todos os lugares e situações de qualquer género. Lá dentro havia anúncios de lugares vagos, desde secretário até a rapaz de recados.

Nicholas parou instintivamente em frente do templo das promessas e depois de andar de cá para lá e de lá para cá irresolutamente, resolveu entrar. Encontrou‑se num aposento alcatifado, com uma alta secretária arrumada a um canto, por detrás da qual se encontrava um jovem, magro, de olhos velhacos e queixo saliente, com os dedos da mão direita entre as folhas dum livro, olhando para uma senhora de idade e gorda, evidentemente a directora, sentada junto da lareira, de quem parecia esperar indicações.

Cá fora estavam sentadas meia dúzia de fortes mulheres novas, aguardando a vez de ser contratadas, parecendo ansiosas e fatigadas. Duas raparigas bem vestidas, que estavam a conversar com a senhora gorda ao pé do lume, não pareciam pertencer a esta qualidade, e como Nicholas percebeu ter de esperar até os outros clientes serem servidos, sentou‑se a um canto, enquanto a senhora retomava o diálogo que a sua entrada interrompera.

‑ Cozinheira, Tom ‑ disse a senhora gorda.

‑ Cozinheira ‑ repetiu Tom, voltando algumas folhas do livro. ‑ Bem!

‑ Leia um ou dois lugares acessíveis ‑ pediu a senhora gorda.

‑ Escolha aqueles muito leves, se faz favor – recomendou a rapariga gentil com botinas de guardador de gado, que parecia ser a cliente.

‑Mrs. Marker ‑ anunciou Tom ‑ residente em Russell Place, Russell Square oferece dezoito guinéus, chá e açúcar. Duas pessoas de familia e recebe pouca gente. Cinco criadas. Não há homens. Não há criados.

‑ Oh Senhor! ‑ riu devagarinho a cliente. ‑ Essa não convém. Leia outra, sim?

‑Mrs. Wrymug ‑ declarou Tom. ‑ Pleasant Place, Finsbury. Ordenado, doze guinéus. Sem chá, nem açúcar. Família séria.

‑ Ah! não se incomode a ler isso! ‑ interrompeu a cliente.

‑ Três lacaios ‑ continuou Tom, impassivelmente.

‑ Disse três? ‑ perguntou a cliente com voz alterada.

‑ Três lacaios sérios ‑ repetiu Tom. ‑ Cozinheiro, criada de fora e criada das crianças; as criadas têm de ir à Little Betrel Congregation aos domingos três vezes cada domingo. com um lacaio sério. Se o cozinheiro for mais sério do que o lacaio, ela aperfeiçoará o lacaio, se o lacaio for mais sério do que o cozinheiro, espera‑se que ele aperfeiçoará o cozinheiro.

‑ Tomo nota da morada desse lugar ‑ disse a cliente. Não sei mas talvez esse lugar me convenha!

‑ Há um outro ‑ observou Tom voltando as folhas. ‑ Família de Mr Gallambile, M P. ( 1 ), Quinze guinéus, chá, açúcar e às criadas é‑lhes cancedido verem os primos, se forem devotas. Nota: No Sabath, jantar frio na cozinha por Mr. Gallan bile ser devotada à questão da Observância. No domingo, com excepção do jantar para Mr e Mrs. Gallanbile, que estão isentos por ser uma obra de piedade, não há comida feita ao lume seja onde for. Mr. Gallanbile janta tarde nos dias de descanso, a fim de evitar o incómodo do cozinheiro se vestir.

‑Não me parece que esta corresponda tão bem como a outra ‑ declarou a cliente depois de ter segredado um pouco com a amiga. ‑ Fico com a outra direcção, se faz favor. Não posso senão voltar ao mesmo, no caso de não servir.

Tom tirou a morada como foi pedido, e a gentil cliente, tendo pago, entretanto à senhora gorda, uma pequena quantia, foi‑se embora acompanhada pela amiga.

Quando Nicholas ia abrir a boca para pedir ao jovem que visse na letra S e dizer‑lhe se havia alguns lugares vagos de secretário, entrou no escritório uma solicitante a favor de quem imediatamente se retirou, e cuja aparência o surpreendeu e interessou.

Era uma jovem que mal podia ter dezoito anos, de figura fraca e delicada e modos muito finos; encaminhando‑se timi damente para a secretária, perguntou em voz baixa se havia lugar de governanta ou dama de companhia. Levantou o véu por um instante, enquanto fazia a pergunta, descobrindo uma

1 ‑ Membro do Parlamento. Deputado

beleza muito pouco vulgar, embora marcada por uma núvem de tristeza, que numa jovem era duplamente notável. Tendo recebido um cartão de referência para alguém que estava nos livros, fez o usual pagamento e desapareceu. Estava vestida com extremo asseio, embora pobremente. A sua companheira era uma rapariga de faces vermelhas, olhos redondos e desalinhada, de modos rudes, parenta, evidentemente, das criadas para todo o serviço, que estava no banco, com quem trocou sorrisos e olhares indicativos da maçonaria da profissão. A rapariga seguiu a patroa e, antes de Nicholas se poder refazer da sua surpresa e admiração, a jovem fora‑se embora. Provavelmente tê‑la‑ia seguido se não fosse retido pelo que se passou entre a senhora gorda e o guarda‑livros.

‑ Quando volta ela, Tom? ‑ perguntou a senhora gorda.

‑ Amanhã de manhã ‑ respondeu Tom, afiando a pena.

Para onde a mandou? ‑ inquiriu a senhora gorda.

‑ para casa de Mrs. Clark ‑ replicou Tom.

‑ Se ela for para lá terá uma bela vida ‑ observou a senhora gorda, tirando uma pitada de rapé de uma caixa de folha.

Tom não deu outra resposta, a não ser empurrar a bochecha com a língua e, apontando o rabo da pena para Nicholas, fez a senhora gorda perguntar:

‑ Em que lhe podemos ser úteis, sir?

Nicholas explicou em resumo que queria saber se havia algum lugar de secretário ou de escriturário de um cavalheiro.

‑ Qualquer deles ‑ replicou a patroa. ‑ Dúzias deles. Não há, Tom?

‑ Assim o julgo ‑ respondeu este jovem cavalheiro, piscando os olhos para Nicholas com um grau de familiaridade que se entendia ser dum cumprimento lisonjeiro, mas que se sentiu ingratamente desgostado.

Consultando o livro parece que a dúzia de lugares de secretário se reduzia a um só. Mr. Gregsbury, o grande membro do Parlamento, de Manchester Buildings, Westminster, precisava dum homem novo para pôr em ordem os seus papéis e correspondência, e Nicholas era exactamente o género de pessoa que Mr. Gregsbury necessitava.

‑ Não conheço quais são as condições, pois ele resolve‑as com o interessado ‑ observou a senhora gorda. ‑ Mas devem ser muito boas, visto ser um membro do Parlamento.

Inexperiente como era, Nicholas não se sentiu completamente seguro da força deste raciocínio, ou da justiça desta conclusão, mas sem se cansar a questioná‑la, tomou nota da morada e resolveu ir ter com Mr. Gregsbury sem demora.

‑ Não sei o número ‑ avisou Tom ‑ mas Manchester Buildings não é um grande lugar e o pior que lhe pode acontecer é bater a todas as portas, de ambos os lados, até o encontrar. Que bela rapariga era aquela, não era?

‑ Que rapariga, sir? ‑ perguntou Nicholas, com um ar severo.

‑ Ah, sim! Eu sei. que rapariga? ‑ sussurrou Tom, fechando um olho e atirando o queixo para o ar. ‑ Não a viu, não? Diga-me, não desejava estar no meu lugar quando ela vier amanhã de manhã?

Nicholas olhou para o antipático empregado e saiu do escritório, sentindo não estarem em uso as velhas leis de cavalaria para poder guiar as donzelas pelo mundo e dar uma lição aos tipos ordinários que não deviam ter a felicidade de olhar para elas, ou delas ouvir falar.

Não pensando já nas suas infelicidades, mas cuidando quais poderiam ser as da linda jovem, Nicholas dirigiu os passos para o sítio que lhe fora indicado, depois de muitos enganos e indicações erradas.

Manchester Buildings é um lugar cujas casas estão cheias de escritos, desaparecendo estes só com a abertura do Parlamento. Então há legisladores desde o rés‑do‑chão até às águas‑furtadas. Dentro de Manchester Buildings, Nicholas voltou‑ se com a morada, na mão, do grande Mr. Gregsbury. Como havia uma imensidade de gente entrando para uma casa acanhada, perto da entrada, parou até chegar a sua vez, perguntando depois ao criado se sabia onde morava Mr. Gregsbury.

O criado era um rapaz pálido, miserável, parecendo ter dormido debaixo da terra desde a infância.

‑ Mr. Gregsbury? ‑ perguntou ele. ‑ Mr. Gregsbury mora aqui. Muito bem! Entre!

Nicholas entrou e viu por toda a parte uma multidão parecendo aguardar qualquer acontecimento. Como se passassem alguns minutos sem que o fenómeno se explicasse, Nicholas ia pedir uma informação ao homem mais próximo, quando uma voz gritou:

‑ Cavalheiros, tenham a bondade de entrar!

Com muitas cortesias entre si, os cavalheiros, com Nicholas no meio deles, entraram para a sala de estar de Mr. Gregsbury, enchendo-a por completo.

‑ Cavalheiros ‑ disse Mr. Gregsbury ‑ sejam bem‑vindos! Regosijo‑me em vê‑los.

Para uma pessoa que se regosijava por ver tanta gente, Mr. Gregsbury parecia incomodado, mas talvez isso fosse ocasionado por uma senatorial gravidade. Era dono duma enorme cabeça, com uma voz grossa, maneiras pomposas, proferindo toleravelmente frases sem significado e, em resumo, com todas as condições para ser um bom deputado.

‑ Agora, meus senhores ‑ disse Mr. Gregsbury, lançando um grande maço de papéis para dentro dum cesto de verga a seus pés e atirando‑se para a cadeira, com os cotovelos encostados aos braços da mesma ‑ vejo pelos jornais que não estão satisfeitos com a minha conduta.

‑ Sim, Mr. Gregsbury, não estamos ‑ respondeu um cavalheiro gordo, de idade, com muito calor, saindo com violência do meio da multidão e plantando‑se na frente.

‑ Traiem‑me os meus olhos ‑ exclamou Mr. Gregsbury olhando para o homem que falara ‑ ou é o meu velho amigo Pugstyles!

‑ Sou eu mesmo, sir ‑ respondeu o nédio cavalheiro.

‑ Dê‑me a sua mão, meu digno amigo ‑ convidou Mr. Gregsbury. ‑ Pugstyles, meu caro amigo, lamento muito vê‑lo aqui.

‑ E eu lamento muito estar aqui, sir ‑ retorquiu Mr. Pugstyles ‑ mas a sua conduta, Mr. Gregsbury, tornou imperiosamente necessária esta deputação dos seus eleitores.

‑ A minha conduta, Pugstyles ‑ afirmou Mr. Grgsbury, contemplando a deputação com graciosa magnanimidade - tem sido e será sempre regulada pela verdade e por um verdadeiro interesse por este grande e feliz país. Quem olhe para a pátria ou para o estrangeiro, quer observe as industriosas comunidades pacíficas da nossa ilha, os seus rios soberbos de barcos a vapor, as suas estradas com locomotivas, as suas ruas com carros, os seus céus com balões dum poder e magnitude até aqui desconhecidas na história da aeronáutica, desta ou de qualquer outra nação. digo, quer olhe simplesmente para a pátria, ou estendendo os olhos para mais longe, con templo os planos ilimitados da conquista e da posse ‑ conseguidos pela perseverança e valor britânicos! ‑que se desen rolam diante de mim, não posso deixar de bater as palmas e, voltando os olhos para a abóbada infinita, exclamar: Graças ao Céu, sou inglês!

Houve tempo em que esta explosão entusiástica seria acolhida com alegria até fazer eco, mas agora a deputação recebeu‑a com enregelada frieza. A impressão geral era que a explicação de Mr. Gregsbury não entrara em pormenores sobre a sua conduta política, e um cavalheiro da rectaguarda não teve escrúpulo em afirmar em voz alta que cheirava muito a tendência para o gamão.

‑ O significado desse termo gamão é‑me desconhecido ‑ afirmou Mr. Gregsbury. ‑ Se quer dizer que me torno um pouco ardente demais, ou talvez mesmo hiperbólico, exaltando a minha terra, adnúto a inteira justiça da observação. Sou orgulhoso deste país livre e feliz. A minha figura dilata‑se, os meus olhos brilham, o meu peito incha, o meu coração pulsa e o meu seio arde quando me lembro da sua grandeza e da sua glória!

‑ Nós desejamos, sir ‑ notou Mr. Pugstyles calmamente - fazer‑lhe algumas perguntas.

‑ Façam favor, cavalheiros; o meu tempo é vosso. e do meu país ‑ respondeu Mr. Gregsbury.

Concedida esta permissão, Mr. Pugstyles pôs os óculos e tirou um papel da algibeira enquanto todos os outros tiravam também papéis para verificar a exactidão das perguntas.

Feito isto, Mr. Pugstyles começou a leitura.

‑ Pergunta número um: Se não tomou o compromisso voluntário, antes da eleição, de abolir imediatamente a prática de tossir e de roncar na Câmara. E se não submeteu a abolição de tossir e roncar no primeiro debate da sessão, fez algum esforço para efectuar uma reforma a este respeito? Se também não se comprometeu a irritar o Governo e fazer‑lhe tremer as pernas de medo? E o senhor espantou‑o e fez‑lhe tremer as pernas, ou não?

‑ Vamos à seguinte, meu caro Pugstyles ‑ pediu Mr. Gregsbury.

‑Tem alguma explicação a dar com referência a esta pergunta, sir? ‑ inquiriu Mr. Pugstyles.

‑ Certamente que não ‑ respondeu Mr. Gregsbury. Os membros da deputação olharam furiosos uns para os outros e depois para o deputado, e o querido Pugstyles, tendo contemplado longa e fixamente Mr. Gregsbury por cima dos óculos, continuou as perguntas.

‑Pergunta número dois: Se também não se comprometeu voluntariamente a apoiar o colega em todas as ocasiões e se, na noite antes da última, não desertou dele, votando no outro partido por a esposa do chefe do outro partido ter convidado Mr. Gregsbury para uma reunião nocturna?

‑ Continue ‑ disse Mr. Gregsbury.

‑ Também não há nada a dizer a este respeito, sir? ‑ perguntou o relator.

‑ Absolutamente nada ‑ replicou Mr. Gregsbury. A deputação, que o vira apenas no tempo de grangear votos, ou da eleição, escutava, muda de espanto pela sua frieza. Não parecia ser o mesmo homem; então, todo ele era leite e mel, agora era fel e vinagre. Mas os homens são tão diferentes em ocasiões diferentes!

‑ Pergunta número três. e última ‑ anunciou Mr. Pugstyles enfaticamente. ‑ Se não declarou durante as eleições ser sua intenção firme e determinada opor‑se a tudo o que fosse proposto; dividir a Câmara sobre todas as perguntas, fazer objecções a todos os assuntos, apresentar moções todos os dias e, em resumo, nas suas próprias palavras memoráveis, fazer o diabo com tudo e com todos?

Com esta compreensiva pergunta Mr. Pugstyles dobrou a lista do seu interrogatório, como o fizeram todos os outros.

Mr. Gregsbury reflectiu, coçou o nariz, recostou‑se mais na cadeira, voltou-se para a frente, pôs os cotovelos na mesa, fez um triângulo com os polegares e os indicadores, e respondeu a sorrir:

‑ Nego tudo.

A esta inesperada resposta levantou‑se um murmúrio rouco da deputação e o mesmo cavalheiro que exprimira uma opinião relativa à natureza do discurso de íntrodução, voltou a ter uma monossilábica demonstração, rosnando, rosnadela esta que foi secundada pelos seus companheiros, degenerando numa reprovação geral.

‑ Peço‑lhe, sir, para exprimir uma esperança ‑ disse Mr. Pugstyles com uma ligeira vénia ‑ que ao receber um requerimento para esse efeito duma grande maioria dos seus eleitores, não se oponha a resignar imediatamente o seu lugar a favor de algum candidato em quem eles pensem poder confiar mais.

A isto Mr. Gregsbury deu a seguinte resposta, a qual, antecipando-se ao requerimento, fora composta em forma de carta, tendo sido mandadas cópias dela para os jornais.

Meu caro Pugstyles

A seguir ao bem‑estar da minha amada ilha ‑ este grande, livre e feliz país, cujos poderes e recursos, sinceramente creio, são ilimitados ‑ considero que uma nobre independência é o maior orgulho de que um inglês se pode vangloriar e que intimamente espero transmitir aos meus filhos sem mancha e com luzimento. Agindo, não por motivos pessoais, mas movido apenas por elevadas e grandes considerações constitucionais, as quais não me atrevo a explicar, por estarem realmente abaixo da compreensão daqueles que não foram feitos como eu, para o estudo intricado e árduo da política, prefiro conservar o meu lugar e tenciono conservá-lo.

Quer fazer‑me o favor de apresentar os meus cumprimentos ao corpo de eleitores e pô=lo ao facto desta circunstância?

Com grande estima, meu caro Pugstyles, etc... etc..

‑ Então não resignará em qualquer circunstância? ‑ perguntou o orador.

Mr. Gregsbury sorriu e abanou a cabeça.

‑ Então bom dia, sir ‑ disse Pugstyles zangado.

‑ Deus o abençoe ‑ respondeu Mr. Gregsbury. E a deputação, com muitas resmungadelas e carrancas de enfado, desfilou tão depresssa quanto a estreiteza da escada permitia o seu escoamento.

Quando o último homem saiu, Mr Gregsbury esfregou as mãos de satisfeito, sem observar que Nicholas ficara na sombra dos cortinados da janela, onde, receoso de escutar algum solilóquio não dito para ouvidos estranhos tossiu duas ou três vezes para atrair a atenção do deputado.

‑ O que é isso? ‑ perguntou Mr. Gregsbury com um acento cortante.

Nicholas deu um passo em frente e curvou‑se.

‑ O que faz aqui, sir? ‑ inquiriu Mr. Gregsbury. ‑ Um es pião na minha intimidade! Um votante escondido! Ouviu a minha resposta, sir. Peço‑lhe que siga a deputação.

‑Tê‑lo‑ia feito se pertencesse a ela, mas não pertenço ‑ informou Nicholas.

‑ Então para que veio cá? ‑ foi a pergunta natural de Mr. Gregsbury. ‑ E donde diabo veio, sir? ‑ foi a pergunta que se seguiu.

‑ Trouxe este cartão do uGeneral Agency Office, sir ‑ respondeu Nicholas ‑ por desejar oferecer‑me para seu secretário e sabendo que estava precisando de um.

‑ Foi tudo para que veio? ‑ tornou a inquirir Mr. Gregs bury, olhando-o com uma certa desconfiança.

Nicholas respondeu afirmativamente.

‑Não tem ligação com qualquer desses malditos jornais? Não se meteu aqui para ouvir o que se passava e pô‑lo em letra de forma?

‑Sinto dizer que, presentemente, não tenho ligação alguma ‑ confessou Nicholas, bastante delicado, mas completa mente à vontade.

‑ Bem! ‑ exclamou Mr. Gregsbury. ‑ Então como veio cá ter?

Nicholas relatou ter sido forçado a subir com a deputação.

‑ Foi essa a maneira, não foi? Sente‑se ‑ convidou Mr. Gregsbury.

Nicholas sentou‑se e Mr. Gregsbury fixou-o muito tempo, como para ter a certeza, antes de fazer mais perguntas, de não objecção quanto à sua aparência exterior.

‑ Quer, então, ser meu secretário? ‑ perguntou por fim.

‑ Desejo ser empregado nesse lugar, sir ‑ respondeu Nicholas.

‑ Bem. E o que sabe fazer?

‑ Suponho ‑ replicou Nicholas, sorrindo ‑ que posso fazer o que usualmente fazem os outros secretários.

‑ O que é isso? ‑ quis saber Mr. Gregsbury.

‑ O que é isso? ‑ repetiu Nicholas.

‑ Sim, o que é isso? ‑ tornou a perguntar o deputado, olhandao astutamente, com a cabeça posta de lado.

‑Talvez os deveres de secretário sejam bastante difíceis de definir ‑ respondeu Nicholas, considerando. ‑ Incluem, presumo, correspondência?

‑ Bem ‑ aprovou Mr. Gregsbury.

‑O arquivo dos papéis e documentos?

‑ Muito bem.

‑Talvez, ocasionalmente; escrever o que me ditar e, possivelmente ‑ continuou Nicholas com um meio sorriso ‑ copiar o seu discurso de algum jornal público, quando tiver feito um mais importante do que o usual.

‑ Certamente ‑ replicou Mr. Gregsbury. ‑ E o que mais?

‑ Realmente ‑ respondeu Nicholas depois dum momento de reflexão ‑ não estou apto, neste instante, a recapitular qualquer outra obrigação dum secretário, além daquela de se tornar agradável e útil ao seu patrão na medida do possível, compatível com o seu próprio respeito e sem ultrapassar a linha dos deveres a que ele se obriga executar e que a designação do seu cargo entende vulgarmente envolver.

Mr. Gregsbury olhou fixamente para Nicholas durante um certo tempo e depois, olhando em volta do aposento, disse em voz abafada:

‑Isso está tudo muito bem, Mr... . Qual é o seu nome?

‑ Nickleby.

‑Isso está tudo muito bem, Mr. Nickleby, e muito certo pelo seu alcance, mas não vai muito longe. Há outras obrigaçôes, Mr. Nickleby, que o secretário dum cavalheiro parla mentar nunca deve perder de vista. Eu preciso de engordar, sir.

‑ Desculpe-me ‑ disse Nicholas, duvidando se ouvira bem.

‑ Engordar, sir ‑ repetiu Mr. Gregsbury.

‑ Posso de novo pedir desculpa para lhe perguntar o que quer dizer, sir? ‑ inquiriu Nicholas.

‑ O meu sentido é perfeitamente claro, sir ‑ respondeu Mr. Gregsbury com um aspecto solene. ‑ O meu secretário deverá dominar a política estrangeira do mundo, como vem indicada nos jornais; não deixar escapar as reuniões públicas, artigos de fundo e assuntos relacionados com entidades oficiais, e tomar notas de tudo que lhe pareça dar sinal dum pequeno discurso sobre a questão de algum pedido posto na mesa, ou de qualquer coisa do género. Compreende?

‑ Creio que sim, sir ‑ replicou Nicholas.

‑ Então ‑ disse Mr. Gregsbury ‑ seria necessário para ele estar relacionado dia a dia com os titulos dos jornais sobre acontecimentos que se estão passando, como: Desaparecimento misterioso e suposto suicídio dum empregado de taberna, ou qualquer coissa assim, no qual eu possa formular uma pergunta à Secretaria do Estado para os Negócios Internos. Daqui terá que copiar a pergunta, tanto quanto eu me lembrar da resposta ‑ incluindo um pequeno cumprimento acerca da independência e do bom senso ‑ e mandar o manuscrito franqueado para o jornal local, com uma meia dúzia de linhas explicativas de que posso ser sempre procurado na minha cadeira do Parlamento e nunca me nego a deveres árduos e de responsabilidade, e por aí fora, Está a ver?

Nicholas inclinou‑se.

‑ Além disso ‑ continuou Mr. Gregsbury ‑ espero que ele, de vez em quando, examine com atenção alguns números das tabelas impressas e tire alguns resultados para eu poder fazer figura nas questões das madeiras e das finanças, e outras coisas; e quero que ele redija uns pequenos argumentos sobre o desastroso efeito duma réplica dos pagamentos à vista e da moeda metálica, com uma alusão, aqui e ali, a respeito da exportação do ouro, do Imperador da Rússia, das notas do Banco e de toda a espécie de coisas, das quais é apenas necessário conversar com fluência, por ninguém as compreender. Está a perceber‑me?

‑ Julgo que sim ‑ respondeu Nicholas.

‑ Com respeito aos assuntos não políticos ‑ prosseguiu Mr. Gregsbury, entusiasmando‑se‑desejo que o meu secretário faça uns pequenos discursos floreados, do género patriótico. Por exemplo, se for publicado um decreto tolo dando aos pobres diabos dos autores o direito sobre as suas obras, gostaria de dizer que se não deveria consentir em se opor uma barreira intransponível à difusão da literatura entre o povo... compreende? Que as criações materiais sejam dum homem ou duma família, estamos de acordo, mas as criações do cérebro, sendo de Deus, devem naturalmente pertencer ao povo. e se eu estivesse bem disposto gostaria de dar umas piadas sobre a posteridade e dizer que aqueles que escrevem para a posteridade devem contentar‑se em ser premiados com a aprovação da posteridade. Isto podia fazer bom efeito na Câmara e não me trazia qualquer desgosto por não se esperar que a posteridade conheça alguma coisa a meu respeito, ou das minhas graças. Está a ver?

‑ Vejo, sir ‑ retorquiu Nicholas.

‑Tem de ter sempre na mente, em casos como este, que os meus interesses não sejam afectados ‑ observou Mr. Gregsbury ‑ devendo dar‑se muita força ao povo, pois isso é muito bom para o tempo das eleições, e pode‑se fazer ironia com os autores, tanto quanto se quiser, pois creio que a maior parte deles vive em pensões e não são votantes. Isto é um breve esquema das principais coisas que tem que fazer, excepto esperar todas as noites na antecâmera para o caso de me esquecer de alguma coisa e precisar de ser soprada de fresco; e, de vez em quando durante os grandes debates, sentar‑ se na fila da frente da galeria e dizer para as pessoas à volta: Vêem aquele cavalheiro com a mão na cara e o braço em volta da coluna. é Mr. Gregsbury. o célebre Mr. Gregsbury, com qualquer pequeno elogio de que se possa lembrar na ocasião. E quanto a ordenado ‑ disse Mr. Gregsbury, respirando com grande rapidez por ter perdido o fôlego ‑ não me importo de dizer imediatamente, em núneros redondos, para evitar qualquer dissabor, embora seja mais do que aquilo que estou acostumado a dar que são quinze xelins por semana, sem mantimentos. Pronto!

Com esta bela oferta Mr. Gregsbury recostou‑se mais uma vez na cadeira, com a aparência dum homem que foi prodigamente liberal, mas que, no entanto, não está disposto a arrepender‑se.

‑ Quinze xelins por semana não é muito. ‑ comentou Nicholas suavemente.

‑Não é muito! Quinze xelins por semana não é muito, meu caro jovem! ‑ exclamou Mr. Gregsbury. ‑ Quinze xelins por.

‑Peço‑lhe para não supôr que questiono a importância, sir ‑ replicou Nicholas ‑ pois não me envergonho de confessar que para mim é uma boa quantia. Mas as obrigações e responsabilidades tornam a recompensa pequena, e há algumas tão pesadas que receio executá‑las.

‑ Recusa‑se a executá‑las, sir? ‑ perguntou Mr. Gregsbury com a mão no cordão da campainha.

‑ Receio que sejam grandes demais para as minhas forças, apesar de toda a boa vontade, sir ‑ respondeu Nicholas.

‑ É bastante dizer que não aceita o lugar e que considera os quinze xelins por semana muito pouco ‑ disse Mr. Gregsbury. ‑ Recusa‑se?

‑ Não tenho outra alternativa ‑ replicou Nicholas.

‑ Abra a porta, Matthews! ‑ ordenou Mr. Gregsbury quando apareceu o rapaz.

‑ Lamento tê‑lo maçado sem necessidade, sir ‑ disse Nicholas.

‑ Lamento que tenha maçado ‑ replicou Mr. Gregsbury, voltando-lhe as costas. ‑ Abra a porta, Matthews.

‑ Bom dia, sir ‑ despediu‑se Nicholas.

‑ Abra a porta, Matthews! ‑ gritou Mr. Gregsbury. O rapaz precedeu Nicholas, descendo vagarosamente a escada à sua frnte, abriu‑lhe a porta e deu‑lhe saída. Com um ar triste e pensativo, Nicholas fez o caminho de regresso para casa. As ocorrências da manhã não despertaram o apetite de Nicholas e para ele o jantar não teve paladar. Estava ele pondo de lado o prato, contendo o jantar que o pobre rapaz escolhera, quando Newman Noggs apareceu no quarto.

‑ Já voltou? ‑ perguntou Newman.

‑ Já ‑ respomdeu Nicholas ‑ fatigado de todo e, o que é pior, podia ter feito o mesmo lá fora.

‑ Não podia esperar fazer muito – consolou Newnnan.

‑Talvez, mas eu sou de temperamento sanguíneo e esperava alguma coisa, por isso estou proporcionalmente desapontado ‑ confessou Nicholas, contando a seguir a Newman os passos que dera.

‑ Se pudesse fazer qualquer coisa ‑ lembrou Nicholas - qualquer coisa embora ligeira, até ao regresso de Ralph Nickleby e tivesse tranquilizado a minha consciência para o enfrentar, seria mais feliz. Deus sabe que me não furto ao trabalho. Ficar indolentemente aqui como um animal melancólico meio domesticado, deprime‑me.

‑ Não conheço ofertas de pequenos trabalhos ‑ disse Newman. ‑Eles têm que pagar a renda e mais... mas o senhor não havia de gostar deles; não, mal podia esperar suportá‑los. não, não!

‑ O que mal pod esperar suportar? ‑ inquiriu Nicholas, levantando os olhos. ‑ Mostre-me na vastidão de Londres, qualquer meio honesto em que possa ao menos, tirar o aluguer semanal deste pobre quarto e veja se eu fujo a ele. Suportar! Tenho suportado muitíssimo, meu amigo, para sentir agora orgulho, ou melindre. Excepto esse melindre da vulgar honestidade, assim como o orgulho que constitui o respeito pró‑ prio ‑ acrescentou rapidamente Nicholas depois dum curto silêncio. ‑ Vejo pouca diferença entre ser ajudante dum pedagogo brutal e adulador dum desprezível e ignorante novo rico, seja deputado ou não.

‑ Não sei bem se lhe deva contar, ou não, o que ouvi esta manhã ‑ hesitou Newman.

‑ Tem referência com o que disse há pouco? ‑ perguntou Nicholas.

‑ Tem.

‑ Então, em nome do Céu, meu bom amigo, diga‑me ‑ pediu Nicholas. ‑ Por amor de Deus, considere a minha deplorável condição, e conquanto prometa não dar um passo sem me aconselhar consigo, dê‑me, pelo menos, um voto a meu favor.

Comovido por este pedido, Newman contou que Mrs. Kenwigs tinha nessa manhã inquirido muito sobre a origem do seu conhecimento com Nicholas e toda a vida deste, as suas aventuras e parentesco; que Newman iludira estas perguntas tanto quanto pudera, mas vendo‑se, por fim, entre a espada e a parede, teve de admitir que Nicholas era um professor de grandes créditos, envolvido nalgumas desventuras, que ele não tinha a liberdade de explicar, e usando o nome de Johnson. Que Mrs. Kenwigs, impelida por gratidão ou ambição, ou orgulho ou amor maternal, ou pelos quatro motivos conjunta mente, teve uma conferência secreta com Mr. Kenwigs e, finalmente, voltou para propor que Mr. Johnson instruísse as quatro Misses Kenwigses na lingua francesa como os naturais falam, com o estipéndio semanal de cinco xelins, em moeda corrente do reino, sendo à taxa de um xelim por semana por cada Miss Kenwigses e um xelim a mais até à ocasião em que o bébé pudesse estar apto a aprender gramática.

‑ O que, a não ser que esteja enganada ‑ observou Mrs. Kenwigs ao fazer a proposta ‑ não tardará muito, pois acredite, Mr. Noggs, que crianças mais espertas nunca vieram a este mundo.

‑ Pronto ‑ concluiu Newman ‑ foi tudo. Isto é consigo, eu sei, mas pensava que, talvez, o senhor pudesse.

‑ Pudesse! ‑ exclamou Nicholas com grande alegria. ‑ Decerto poderei. Aceito imediatamente a oferta. Diga isto à estimável mãe, sem demora, meu querido companheiro, e estou pronto a começar quando ela quiser.

Newman apressou‑se a informar Mrs. Kenwigs da aquiescência do seu amigo e voltou logo a seguir com a notícia de terem sido mandados comprar, no mesmo instante, uma gramática francesa em segunda mão e exercícios e que a família, altamente excitada pelo projecto, desejava que a lição inicial se realizasse imediatamente.

Nicholas, não sendo um jovem de espírito de acordo com a vulgar interpretação, e julgando ser maior degradação pedir emprestado a Newman Noggs, para suprir às suas necessidades, do que ensinar francês às pequenas Kenwigses por cinco xelins por semana, aceitou a oferta com a alegria já descrita e desceu ao primeiro andar com toda a velocidade.

Aqui, foi recebido por Mrs. Kenwigs com um ar gentil, dando a entender, amavelmente, poder contar com a sua pro tecção e ajuda; e aqui, também, encontrou Mr Lillyvick e Miss Petowker, as quatro Misses Kenwigses no seu banco de audiência e o bébé no berço, com um tabuleiro de abeto defronte de si, divertindo‑se com um cavalo sem cabeça, sendo o dito cavalo composto por um pequeno cilindro de madeira suportado por quatro cavilhas encurvadas e pintado numa engenhosa semelhança.

‑ Como está, Mr. Johnson? ‑ cumprimentou Mrs. Kenwigs.

‑ O meu tio. Mr. Johnson.

‑ Como vai, sir? ‑ perguntou Mr. Lillyvick, bastante asperamente porque na noite anterior não sabia quem era Nicholas e era uma circunstância grave um cobrador ser delicado demais para um professor.

‑Mr. Johnson está contratado como professor particular para as crianças, tio ‑ anunciou Mrs. Kenwigs.

‑ Assim o disseste agora mesmo, minha querida ‑ replicou Mr. Lillyvick.

‑ Mas espero ‑ acrescentou Mrs. Kenwigs, levantando‑se que as não faça orgulhosas e que elas bendigam a sua boa sorte em ter nascido superiores aos filhos da gente vulgar. Está a ouvir, Morleena?

‑ Sim mamã ‑ respondeu Miss Kenwigs.

‑E qúando forem para a rua, ou para qualquer parte, desejo que não se vangloriem disso junto das outras crianças ‑ prosseguiu Mrs. Kenwigs ‑ e se tiverem de dizer alguma coisa a esse respeito, não passem de, Temos um professor que nos vem ensinar a casa, mas não somos orgulhosas, por que a mamã diz ser pecado. Ouviste Morleena?

‑ Sim, mamã ‑ respondeu novamente Miss Kenwigs.

‑ Então toma atenção para te lembrares e procederes como te digo ‑ avisou Mrs. Kenwigs. ‑ Mr. Johnson pode começar, tio?

‑ Estou pronto para ouvir, se Mr. Johnson está preparado para começar, minha querida ‑ retorquiu Mr. Lillyvick, assu mindo o ar dum profundo critico. ‑ Que espécie de língua considera o francês, sir?

‑ O que quer dizer? ‑ perguntou Nicholas.

‑ Considera o francês uma boa língua, sir? ‑ inquiriu o cobrador. ‑ Uma linda língua?. Uma língua sensível?

‑ Uma língua bonita, certamente ‑ respondeu Nicholas - e como tem um nome para tudo e admite uma conversa elegante acerca de tudo presumo que seja uma língua sensível.

‑ Não sei ‑ opinou Mr. Lillyvick, com dúvida. ‑ Chama‑ lhe também uma língua alegre?

‑ Sim ‑ replicou Nicholas. ‑ Devo dizer que o é certa mente.

‑ Então mudou muito desde o meu tempo ‑ comentou o cobrador. ‑ Muitíssimo.

‑ Então era triste no seu tempo ‑ quis saber Nicholas, mal podendo conter um sorriso.

‑ Muito ‑ retorquiu Mr. Lillyvick com certa veemência. Eu falo do tempo da guerra; da última guerra. Pode ser uma língua alegre. Lamento muito contradizer alguém, mas apenas posso dizer que ouvi os prisioneiros franceses, que eram naturais e deviam saber como se falava, conversarem duma maneira tão triste que uma pessoa sentia‑se infeliz em ouvi‑los. Sim, isso tenho eu, cinquenta vezes, sir. cinquenta vezes.

Mr Lillyvick começava a estar zangado e Mrs. Kenwigs teve o expediente de fazer sinal a Nicholas para não dizer mais nada; entretanto Miss Petowker exerceu várias blandícias para sossegar o excelente velhote, que se dignou quebrar o silêncio, perguntando:

‑ Como se diz a água em francés, sir?

‑ L'eau ‑ respondeu Nicholas.

‑ Ah! ‑ exclamou Mr. Lillyvick, abanando a cabeça melancolicamente. ‑ Pensava assim. Só, hein? Não creio nada em tal língua. absolutamente nada.

‑ Acha que as crianças podem começar, tio? ‑ inquiriu Mrs. Kenwigs.

‑ Oh, sim; podem começar, minha querida ‑ respondeu o cobrador descontente. ‑ Não desejo evitar isso.

Tendo sido concedida esta permissão, as quatro Misses Kenwigses sentaram‑se em fila, com Morleena no topo, En quanto Nicholas, agarrando no livro, começou as suas explicações preliminares. Miss Petowker e Mrs. Kenwigs olhavam com silenciosa admiração, quebrada apenas pelos murmúrios da última assegurando que Morleena saberia tudo de cor num instante. Mr. Lillyvick contemplava o grupo com olhos atentos e franzidos, morto por poder abrir uma nova discussão sobre a língua.

 

ACOMPANHA O DESTINO DE MISS NICKLEBY

Foi com o coração angustiado e muitos pressentimentos tristes que Kate Nickleby, na manhã do começo do seu trabalho em casa de Madame Mantalini, saiu quando faltava um quarto para as oito, em direcção ao West End de Londres.

A esta hora matinal muitas raparigas franzinas atravessavam as ruas da cidade a caminho dos seus empregos. Quando Kate chegou próximo do bairro mais distante da cidade, notou muitas desta classe, apressando-se, como ela, para as suas ocupações e viu, nos seus aspectos doentios e ar abatido, que as suas suspeitas não eram inteiramente infundadas. Chegou a casa de Madame Mantalini alguns minutos antes da hora marcada e depois de andar umas poucas de vezes dum lado para o outro, na esperança de ver entrar alguma outra pessóa do seu sexo, pôs de parte o embaraço de declarar ao criado o seu caso e bateu timidamente. Depois duma certa demora a porta foi aberta pelo lacaio, que ie a vestir a libré pela escada acima e estava agora a atar o avental.

‑ Madame Mantalini está? ‑ gaguejou Kate.

‑ Não muitas vezes cá fora a esta hora, miss ‑ respondeu o homem num tom que tornava a resposta um tanto mais ofensiva do que tinha querido.

‑ Posso falar com ela? ‑ perguntou Kate.

‑ O quê? ‑ exclamou o homem, agarrando a porta com a mão e honrando a rapariga com um olhar espantado e bocarra aberta num sorriso. ‑ Meu Deus, não!

‑ Eu venho por sua própria indicação ‑ exclamou Kate. Venho. venho. para me empregar aqui.

‑ Ah! Devia ter tocado a campainha das operárias ‑ disse o lacaio. ‑ Deixe‑me ver, contudo. esqueci‑me. Miss Nickleby, não é?

‑ Sou ‑ respondeu Kate.

‑ Então faça o favor de subir a escada ‑ convidou o homem. ‑ Madame Mantalini quer vê‑la. Por aqui. tome cuidado com s coiss que sobe no chão.

Avisando-a para tomar conta nos objectos heterogéneos que juncavam o sobrado, demonstrando uma tardia reunião na noite anterior, o homem encaminhou‑se para o segundo andar e meteu Kate num aposento traseiro, comunicando por uma porta com aquele em que vira pela primeira vez a dona do estabelecimento.

‑ Se quer esperar aqui um minuto ‑ disse o homem - vou‑lhe dizer imediatament.

Tendo feito esta promessa com muita afabilidade, retirou‑se, deixando Kate só.

No aposento havia muito por onde se distrair, sobressaindo um retrato a óleo de Mr Mantalini e um anel de diamantes, presente de Madame Mantalini antes do casamento. Ouviam‑se, contudo, conversas no aposento a seguir, por a conversa ser em voz alta e o tabique delgado. Kate não pôde deixar de descobrir que pertenciam a Mr. e Mrs. Mantalini.

‑Se fores odiosamente diabólica, ultrajosamente ciumenta minha querida ‑ dizia Mr Mantalimi ‑ serás muito infeliz. horrivelmente infeliz. diabolicamente infeliz.

‑ Sou infeliz ‑ confessou Madame Mantalini, evidentemen te a fazer beicinho.

‑ Então és uma ingrata, indigna, desgraçadinhe, a rai nha! ‑ continuava Mr. Mantalini.

‑ Não sou ‑ protestava madame com um soluço.

‑ Não te ponhas de mau humor ‑ recomendava Mr. Mantalini, partindo um ovo. ‑ Tens uma expressão linda e feiticeira que não se deve mostrar zangada pois isso estraga a sua amabilidade e torna‑a atormentada e carregada como um fantasma medonho e mau.

‑ Não estou para ser pintada sempre dessa maneira ‑ replicava madame amuada.

‑Serás pintada de qualquer maneira que parecer melhor e não completamente pintada se isso não ficar tão bem ‑ respondia Mr. Mantalini com a colher do ovo na boca.

‑ Isso é fácil de dizer. ‑ retorquiu Mrs. Mantalini.

‑ Não é tão fácil quando se está a comer um ovo maroto!

‑ replicou Mr. Mantalini ‑ pois a gema escorre para o colete e a gema não condiz com nenhum colete, a não ser que seja amarelo.

‑ Estiveste a namoriscar durante toda a noite ‑ afirmava Madame Mantalini, aparentemente desejosa de levar a conversa para o ponto de partida.

‑Não, não, minha vida!

‑ Estiveste ‑ teimava madame. ‑ Tive os meus olhos em cima de ti todo o tempo.

‑Bendito seja o pequenino olho brejeiro! Esteve, então, em cima de mim todo o tempo! ‑exclamava Mantalini, numa espécie de preguiçoso bom humor. ‑ Oh! diabo!

‑ E digo uma vez mais ‑ acrescentava madame ‑ que não deves valsar com outra pessoa, mas só com a tua própria mulher. Não aturo isto, Mantalini, ou enveneno‑me primeiro.

‑ Ela não se envenenará para ter dores horríveis, pois não? ‑ perguntava Mantalini que, pelo som alteroso da voz, parecia ter chegado a cadeira para mais perto da mulher. Ela não se envenenará porque tem o diabo dum belo marido, que podia ter casado com duas condessas e a viúva dum fidalgo.

‑ Duas condessas ‑ estranhava madame. ‑ Antes disseste‑me uma.

‑Duas! ‑ exclamava Mantalini. ‑ Duas belas mulheres verdadeiras condessas e esplêndidas fortunas.

‑ E por que não casaste? ‑ perguntava madame, divertida.

‑ Porque não casei! ‑ respondia o marido. ‑ Por ter visto num concerto de manhã a maior fascinadora de todo o mundo e, enquanto essa fascinadorazinha for minha mulher, não podem todas as condessas e viúvas ilustres da Inglaterra.

Mr. Mantalini não acabou a frase, mas deu a Madame Mantalini um beijo muito rechonchudo, que Madame Mantalíni devolveu; depois disso pareceu entremearem os beijos com o pequeno almoço.

‑ E a respeito de dinheiro, jóia da minha vida? ‑ perguntava Mantalini quando acabaram as meiguices. ‑ Quanto temos em cofre?

‑ Muito pouco! ‑ respondeu madame.

‑ Precisamos de ter mais ‑ replicava Mantalini. ‑ Precisamos de arranjar algum desconto com o diabo do Nickleby para continuarmos a luta, diabo!

‑ Não precisas agora de mais dinheiro ‑ retorquiu madane, adulando.

‑ Minha vida e alma ‑ insistia o marido ‑ o Scrubb tem um cavalo para vender, que seria um pecado e um crime perder. por nada, alegria dos meus sentidos!

‑Por nada! ‑ exclamava madame. ‑ Sinto‑me contente com isso.

‑ Actualmente por nada ‑ replicava Mantalini. ‑ Uma centena de guinéus compra‑o; crina, pelagem, pernas e cauda, todo ele é uma beleza. Montei‑o no parque em frente das carrua gens das rejeitadas condessas. A viúva desmaiaria de pena e raiva; as outras duas diriam, Está casado; fez fortuna; está tudo acabado! Odeiam‑se mutuamente e desejam que tu morras e sejas enterrada. Ah! ah! ah!

A prudência de Madame Mantalini ‑ se tinha alguma! ‑ não estava à prova destes quadros triunfantes; depois de fazer soar um pouco as chaves, observou que iria ver o que continha a gaveta e, levantando-se com este propósito, abriu a porta e entrou no aposento onde Kate estava sentada.

‑ Meu Deus, criança! ‑ exclamou Madame Mantalini ‑ fazendo pé atrás de surpresa. ‑ Como veio parar aqui?

‑Criança! ‑ gritou Mantalini, apressando‑se. ‑ Como veio. Eh!. Oh!. diabo!

‑ Estou aqui à espera há algum tempo, ma'am ‑ confessou Kate, dirigindo‑se a Madame Mantalini. ‑ O criado deve ter‑se esquecido de a informar.

‑ Tu precisas, realmente, de falar com esse homem! ‑ disse madame para o marido. ‑ Esquece‑se de tudo.

‑Torço‑lhe o maldito nariz por deixar uma tão linda criatura só! ‑ respondeu o marido.

‑ Mantalini, esqueces‑te de ti próprio! ‑ advertiu Madame.

‑Mas não te esqueço, múzha, e nunca esquecerei e nunca poderei ‑ afirmou Mantalini, beij ando a mão da mulher e fazendo uma careta à parte para Miss Nickleby, que lhe voltou as costas.

Apaziguada com este cumprimento, a dona da casa tirou alguns papéis da gaveta, entregando‑os a Mr. Mantalini, que os recebeu com muito prazer. Depois pediu a Kate para a seguir, deixando o cavalheiro estendido no sofá, com os calca nhares no ar e um jornal na mão.

Madame Mantalini desceu umas escadas e, por um corredor, entrou numa casa das traseiras do prédio onde muitas raparigas cosiam, cortavam, adaptavam, alteravam e trabalhavam noutros processos da arte de modista. Quando Madame Mantalini chamou em voz alta Miss Knag, apresentou‑se uma mulher baixa activa e demasiado enfeitada cheia de importância, e todas as raparigas suspenderam os seus trabalhos de momento, para segredarem umas às outras várias criticas sobre a confecção e a qualidade do vestido de Miss Nickleby: a sua tez, forma de feições e aparência pessoal, com boa educação que podia ser exibida pela melhor sociedade numa apinhada sala de baile.

‑ Miss Knag ‑ disse Madame Mantalini ‑ esta é a jovem de quem falei.

Miss Knag dispensou um sorriso reverente a Madame Mantalini, que destramente o transformou em gracioso para Kate e disse que, embora constituísse um grande embaraço ter gente nova que não estava acostumada ao trabalho, estava convencida de que a jovem tentaria fazer o melhor possível... convencida disto, ela (Miss Knag), sentia já um interesse pela nova empregada.

‑ Creio que em todo o caso seria melhor, agora, Miss Nickleby ir consigo à sala de exposição e provar as coisas para as pessoas ‑ sugeriu Madame Mantalini. ‑ Neste momento ainda não está apta para ser útil em qualquer outro trabalho, e a sua aparência.

‑ Vai muito bem como a provadora, Madame Mantalini ‑ interrompeu Miss Knag. ‑ Muitas vezes digo para as empregadas que não sei como, quando e onde a madame tem possibilidade de arranjar tudo o que se vê. Eu e Miss Nickleby condizemos muito bem, Madame Mantalini, apenas eu sou um pouco mais morena e creio que o meu pé é um pouco mais pequeno do que o dela. Estou convencida de que Miss Nickleby se não ofende com isto, sobretudo pela nossa família ser célebre pelos pés pequenos. Tive um tio que vivia em Cheltenham com uns pés tão pequenos, que não eram maiores do que os das pernas de madeira, das cadeiras.

‑ Deviam ter certa aparência de pés tortos, Miss Knag - comentou madane.

‑ Pés tortos! Ah! ah! ah! Mas que graça! ‑ replicou Miss Knag. ‑ Estou farta de dizer às empregadas, que, de todas as graças que tenho ouvido, as de Madame Mantalini são as mais notáveis. É tão agradável, tão sarcástica e tão bem humorada

‑ como observava a Miss Simmonds esta manhã ‑ que não sei como, quando ou por que meio as arranja!

Aqui, Miss Knag calou‑se para tomar fôlego e, entretanto, como tinha a mania de grandes discursos, intercalava‑os com uns heins despropositados, ou ligar das frases, ou meditar sobre o que devia dizer a seguir. Além disso aspirava a jovem, embora já tivesse perdido há muito o vigor da juventude.

‑Faça com que Miss Nickleby compreenda as suas horas e mais coisas ‑ recomendou Madame Mantalini ‑ e com isto, deixo-a consigo. Não se esquece das minhas recomendações, Miss Knag?

Miss Knag respondeu que, esquecer qualquer coisa recomendada por Madame Mantalini, era uma impossibilidade moral, e a senhora, dando uns bons dias a todos, saiu.

‑ Uma criatura encantadora, não é Miss Nickleby? ‑ perguntou Miss Knag, esfregando as mãos.

‑ Pouco a tenho visto ‑ respondeu Kate. ‑ Mal a conheço ainda!

‑ Viu Mr. Mantalini? ‑ inquiriu Miss Knag.

‑ Sim, já o vi duas vezes.

‑ Não é uma pessoa encantadora?

‑ Na verdade não me pareceu ‑ retorquiu Kate.

‑ Oh, minha querida! ‑ exclamou Miss Knag, elevando as mãos. ‑ Bondade divina, onde está o seu gosto? Um cavalheiro tão fino, alto, barbado, bem parecido, com aqueles dentes e aquele cabelo. surpreende‑me!

‑ É possível que eu sej a muito pateta ‑ replicou Kate

pondo o chapéu de lado ‑ mas como a minha opinião tem pouca importância para ele, ou para qualquer outra pessoa não tenho pena de a ter formado e julgo que levarei tempo a mudá‑la.    

‑ É um homem muito fino,não lhe parece – perguntou uma das empregadas.

‑Na verdade pode ser,pois nada posso dizer em contrário ‑ respondeu Kate.

‑ E guia cavalos muito bonitos,não é verdade? – inquiriu uma outra.

‑ Talvez sim, mas nunca os vi ‑ respondeu Kate.

‑ Nunca osviu! ‑ espantou‑se Miss Knag. ‑ Como é possível dar uma boa opinião acerca dum cavalheiro... se não viu como ele anda a cavalo?

Havia tanto de mundana ‑ mesmo do pequeno mundo de rapariga da província ‑ nesta ideia da velha modista que Kate,ansiosa por todas as razões, de mudar de assunto, não fez mais observações e deixou Miss Knag de posse do campo.

Depois dum curto silêncio,durante o qual as raparigas fizeram uma menção minuciosa da aparência de Kate e compararam os seus dons, uma delas ofereceu‑se para a ajudar a tirar o chaile e,sendo a oferta aceite, perguntou‑lhe se não açhava o preto muito desconfortável.

‑ Na verdade acho ‑ respondeu Kate com um amargo suspiro.

‑ Tão quente e a que se agarra tanto o pó!‑ observou a rapariga,ajustando‑lhe o vestido.

Kate podia ter dito que o luto é algumas vezes o vestido mais frio que um mortal pode usar. Há poucas pessoas quetendo perdido um amigo,ou um parente, constituindo na vida a sua única dependência,não sintam dum modo agudo esta gelada influência na sua negra aparência. Ela tinha-a sentido tão vivamente e sentia‑a tanto neste momento,que não pôde reter as lágrimas.

‑ Sinto muito tê‑la magoado com a minha impensada referência ‑ disse‑lhe a companheira. ‑ Não pensei nisso! Está de luto por algum parente próximo?

‑ Por meu pai! ‑ respondeu Kate.

‑ Por que parente,Miss Simmonds? ‑ inquiriu Miss Knag numa voz audível.

‑ Pelo pai ‑ informou a outra,baixo.

‑ Pelo pai? ‑ repetiu Miss Knag sem a mais ligeira depressão na voz. ‑ Ah! Uma longa doença, Miss Simmonds?

‑Cale-se, peço‑lhe! ‑ repreendeu a rapariga ‑ Não sei!

‑ A minha desgraça foi muito súbita ‑ esclareceu Kate voltando‑se ‑ para eu poder, numa ocasião como esta,ter á coragem de suportar isto melhor.

Não havia no aposento ninguém que não desejasse saber tudo acerca de Kate,mas sendo informadas da sua dor,renunciaram à curiosidade,até mesmo Miss Knag que com relutância,ordenou silêncio.

Em silêncio continuaram a trabalhar até à uma e meia, quando foi servida na cozinha uma refeição constituída por uma perna de carneiro com batatas. Uma vez terminada e tendo as raparigas gozado um descanso adicional enquanto lavavam as mãos, o trabalho recomeçou até se ouvir na rua o barulho das carruagens e o bater de duas fortes pancadas na porta.

Uma destas duplas pancadas à porta de Madame Mantalini anunciava a equipagem de alguma grande dama ‑ ou antes, duma dama rica, pois ia uma grande distância entre a riqueza e a grandeza ‑ que vinha com a filha para provar alguns vestidos, a quem Kate foi designada para atender, juntamente com Miss Knag, comandadas, naturalmente, por Madame Mantalini.

O papel de Kate nesta ostentação era bastante humilde, limitando‑se a segurar os artigos de vestuário até Miss Knag estar pronta para os provar. Não podia, razoavelmente, ter‑se suposto livre de qualquer arrogância ou mau humor, mas aconteceu que, nesse dia, a senhora e a filha, estavam ambas de temperamento azedo, tendo, por isso, a pobre rapariga compartilhado das suas injúrias.

Esta arrogância era tão comum que não merecia a pena mencioná‑la se não fosse pelo seu efeito. Kate deu curso a amargas lágrimas quando esta gente saiu e sentiu, pela primeira vez, a humildade da sua ocupação. Tinha‑se afeito, na verdade, à perspectiva dum serviço duro e árduo, mas não previra degradação no trabalho pelo pão de cada dia, até se sentir exposta à insolência e arrogância.

Em cenas e ocupações idênticas se passou o tempo até às nove hores, quando Kate se apressou a ir ter com a mãe à esquina da rua, escondendolhe os seus sentimentos, para fingir participar nas ardentes visões dela.

‑ Jesus, Kate! ‑ disse Mrs. Nickleby ‑ tenho estado a pensar todo o dia que coisa delicada seria para Madame Mantalini fazer‑te entrar na sociedade, ou coisa parecida. A prima do teu pobre e querido papá ‑ uma Miss Browndock ‑ associou‑se a uma senhora que tinha uma escola em Hammersmith e fez fortuna em pouco tempo. Já me esqueceu se foi esta Miss Browndock que teve um prémio de dez libras na lotaria, mas parece-me que foi; na verdade, agora que penso nisto, tenho a certeza que foi. Mantalini e Nickleby! Como seria bom! E se Nicholas tivesse alguma boa sorte, podia ser o Doutor Nickleby, director da Westminster School, vivendo na mesma rua!

‑ Querido Nicholas! ‑ exclamou Kate, tirando da sua bolsa a carta do irmão, vinda de Dotheboys Hall. ‑ Em todas as nossas desgraças quanto feliz me sinto, mamã, saber que ele se vai dando bem e vê‑lo escrever com tão bom espirito! Consola‑me, por tudo quanto possamos padecer, pensar que ele está bem acomodado e feliz.

Pobre Kate! Mal pensava quão fraca era a sua consolação e como depressa seria desiludida.

 

Como Miss Knag, depois de ter adorado Kate Nickleby durante três dias, resolveu odiá‑la e as causas que a levaram a tomar esta resolução

A vida a que a pobre Kate Nickleby se dedicara, em consequência da cadeia imprevista das circunstâncias já conhecidas, era árdua, mas temos de pô‑la agora mais em evidência e pormenorizar a descrição do estabelecimento de Madame Mantalini.

‑Na verdade, Madame Mantalini, Miss Nickleby é uma jovem muito respeitável ‑ declarou Miss Knag enquanto Kate percorria o seu triste caminho para casa na primeira noite do noviciado. ‑ Uma jovem muito respeitável, na verdade. palavra, Madame Mantalini, dá uma grande confiança do seu discernimento em ter encontrado esta jovem, comportando‑se tão bem e tão modesta, para ajudar às provas. Tenho visto algumas mulheres novas que quando têm ocasião de se exibir em frente dos seus superiores conduzem‑se duma tal. oh, meu Deus!. bem. Mas a senhora tem sempre razão, Madame Mantalini, sempre; e muitas vezes digo às raparigas, que admiro como consegue ter sempre razão, quando tanta gente, frequentemente a não tem! Para mim, na verdade, é um milagre!

‑Além de pôr fora de si uma excelente cliente, Miss Nickleby não fez hoje qualquer coisa de notável... que eu saiba, pelo menos ‑ replicou Madame Mantalini.

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou Miss Knag. ‑ Mas a senhora deve atender à inexperiência, bem sabe!

‑ E à juventude? ‑ inquiriu madame.

‑Oh, não digo nada a esse respeito, Madame Mantalini ‑ respondeu ela - porque se a juventude tivesse qualquer desculpa, a senhora não teria.

‑Com Uma contramestra tão boa como tenho, suponho eu! ‑ sugeriu madame.

‑ Nunca vi ninguém como a senhora ‑ retorquiu Miss Knag com muitíssima afabilidade ‑ pois adivinha o que se vai dizer antes de se abrir a boca!

‑ Por mim ‑ observou Madame Mantalini, relanceando a sua ajudante com afectada carícia e rindo‑se para dentro - considero Miss Nickleby a rapariga mais sem graça que tenho visto na vida.

‑ Pobrezinha! ‑ lamentou Miss Knag. ‑ Não é culpa sua! Se fosse eu, podia esperar curá-la; mas como é a sua desventura, Madame Mantalini, temos de respeitá‑la, bem sabe, como o homem disse a respeito do cavalo cego!

‑O tio disse‑me que ela tinha sido considerada linda! ‑ observou Madame Mantalini. ‑ Creio que é uma das raparigas mais ordinárias que tenho encontrado.

‑ Ordinária ‑ exclamou Miss Knag com uma expressão de deleite ‑ e sem graça! No entanto, gosto imenso da pobre rapariga, Madame Mantalini, e se ela fosse duas vezes de aspecto apagado e duas vezes tão sem graça como é, mais razão tinha para ser sua amiga.

De facto Miss Knag concebera uma incipiente afeição por Kate Nickleby depois de ter testemunhado o seu fracasso naquela manhã, e esta curta conversa com a sua superiora aumentou a favorável predisposição a um tamanho muitíssimo surpreendente; o que era mais notável é que quando primeiro esquadrinhara a sua cara e a figura da rapariga, concebera certas suspeitas internas que nunca se reconciliaram.

‑ Mas agora ‑ declarou Miss Knag, olhando para a sua imagem reflectida no espelho a pouca distância ‑ gosto dela. gosto dela em absoluto... afirmo que gosto!

Esta dedicada amizade era tão altamente desinteressada que a bondosa Miss Knag informou Kate Nickleby no dia seguinte que não devia ter preocupações para o futuro, pois ela conservá-la-ia o mais possível em último plano e tudo quanto tinha a fazer era continuar sossegada perante a assistência e procurar não atrair a atenção. Esta última sugestão estava tanto de acordo com os sentimentos e desejos da tímida rapariga, que prometeu logo implícito cumprimento ao con selho da solteirona, sem fazer perguntas ou reflectir nos motivos que o ditavam.

‑Palavra, tenho um interesse muito especial por si, minha querida ‑ confidenciou Miss Knag. ‑ Um interesse de irmã. a circunstância mais singular que tenho conhecido!

Era sem dúvida singular que se Miss Knag sentia um verdadeiro interesse por Kate Nickleby, ele não fosse como o duma tia, ou duma avó, de acordo com as diferenças das respectivas idades. Mas Miss Knag usava vestidos para modelos de gente jovem e talvez os seus sentimentos, fossem moldados pelo mesmo calibre.

‑ Meu Deus! ‑ comentou Miss Knag, beijando-a, ao terminar o segundo dia de trabalho. ‑ Que desajeitada esteve todo o dia!

‑ Receio que a sua amável e franca notícia, que me tornou mais dolorosamente consciente dos meus defeitos, não me tenha melhorado ‑ suspirou Kate.

‑ Não, não, atrevo‑me a dizer que não ‑ protestou Miss Knag numa torrente desacostumada de bom humor. ‑Mas quanto melhor não é sabê‑lo antecipadamente para poder seguir a direito e confortada! Qual é o caminho que toma, minha querida?

‑ A City ‑ respondeu Kate.

‑ A Cály! ‑ exclamou Miss Knag, mirando‑se com grande prazer ao espelho enquanto atava o chapéu. ‑ Bondade divina vive realmente na Citty?

‑ É assim tão pouco usual viver‑se na City? ‑ inquiriu Kate com um meio sorriso.

‑Não podia acreditar que qualquer jovem pudesse viver lá em quaisquer circunstâncias e por mais de três dias ‑ retorquiu Miss Knag.

‑Em minha opinião, devo dizer que a gente pobre tem de viver onde pode ‑ respondeu Kate, corrigindo‑se rapidamente com medo de parecer orgulhosa.

‑Áh! Muito verdadeiro! Deve ser assim; muito exacto, na verdade! ‑comentou Miss Knag com uma espécie de suspiro. ‑ É o que muitas vezes digo ao meu irmão quando as nossas criadas se vão embora, doentes, uma após outra, por ele julgar que a parte detrás da cozinha é demasiado húmida para elas dormirem. Gente desta qualidade, digo‑lhe eu, contenta‑se em dormir em qualquer parte! Deus dá o frio conforme a roupa. Que belo é pensar que isto deve ser assim, não é?

‑ Muito ‑ respondeu Kate.

‑ Vou consigo parte do caminho, minha querida ‑ anunciou Miss Knag ‑ Pois deve passar múito perto da nossa casa. Está completamente escuro e como a minha última criada foi para o hospital há uma semana, com erisipela na cara, fico muito satisfeita com a sua companhia.

Kate de boa vontade se dispensaria desta lisonjeira companhia, mas a Miss, tendo posto o chapéu de modo a contentá‑la, agarrou‑lhe no braço com um ar que dava plenamente a entender a honra que lhe estava a conferir e encontravam‑se na rua antes de poder dizer alguma coisa.

‑ Calculo ‑ disse Kate, hesitante ‑ que a mamã. a minha mãe, quero dizer... esteja à minha espera.

‑Não precisa de dar a mais insignificante desculpa, minha querida ‑ replicou Miss Knag com um doce sorriso. Desconfio que é uma senhora de idade, muito respeitável, e eu terei. hein. muito prazer em conhecê‑la.

Como a pobre Mrs. Nickleby estava a gelar ‑ não só os pés, mas todos os membros ‑ ao canto da rua, Kate não teve outro remédio senão apresentar Miss Knag, que acolheu a apresentação com condescendente polidez. As três começaram a andar, de braço dado com Miss knag no meio, mum estado especial de amabilidade.

‑ Tomei um tal afecto a sua filha, Mrs. Nickleby, que não pode imaginar ‑ disse Miss Knag depois de ter andado uma pequena distância em silêncio.

‑ Delicia‑me ouvir isso ‑ afirmou Mrs. Nickleby ‑ embora não seja novo para mim ouvir os estranhos dizerem que gostam de Kate.

‑ Ah! ‑ exclamou Miss Knag.

‑ E gostará mais quando souber como ela é boa ‑ continuou Mrs. Nickleby. ‑ É uma grande benção para mim na minha desgraça, ter uma filha que não sabe ser orgulhosa, nem vaidosa, e cuja educação podia muito bem desculpá‑la, ao princípio, de ambos os defeitos. Não sabe o que é perder um marido, Miss Knag.

Como Miss Knag nunca soubera o que era ganhá‑lo, segue-se, naturalmente, que desconhecia o que era perdê‑lo; por isso respondeu com alguma pressa:

‑Não, na verdade, não sei ‑ e disse-o com um ar como dando a entender que teria o cuidado de não casar, pois conhecia melhor do que isso.

‑Não duvido que Kate se tenha desenvolvido mesmo neste curto tempo ‑ disse Mrs. Nickleby, olhando com orgulho para a filha.

‑ Oh, decerto! ‑ afirmou Miss Knag.

‑ E ainda mais se desenvolverá ‑ acrescentou Mrs. Nickleby.

‑ Isso fará ela, estou segura ‑ replicou Miss Knag, apertando o braço de Kate para lhe indicar o gracejo.

‑ Foi sempre bastante esperta ‑ continuou a pobre Mrs. Nickleby, entusiasmando-se ‑ sempre, desde criança. Lembro‑me, quando ela tinha apenas dois anos, dum cavalheiro que costumava visitar a nossa casa ‑ Mr. Watkins, tu sabes, Kate, minha querida, por quem o teu pobre pai ficou por fiador e que depois foi para os Estados Unidos e nos mandou um par de sapatos para o gelo com uma carta tão afectuosa que fez o teu pobre pai chorar durante uma semana?! ‑ Lembras‑te dessa carta, em que ele dizia ter muita pena em não poder pagar naquela altura as cinquenta libras por o seu capital estar todo investido em empréstimos a juros, e que andava muito atarefado a fazer fortuna, mas que não se esquecia que tu eras a sua afilhada, tomando como muita descortesia se não comprasses um fio de coral e prata para acrescentar à sua velha conta?! Meu Deus! sim, minha querida! E falava tão saudosanente do velho vinho do Porto de que costumava beber garrafa e meia todas as vezes que ia lá. Deves lembrar‑te, Kate.

‑Sim, sim, mamã! Mas o que há com ele?

‑ Esse Mr. Watkins, minha querida ‑ continuou Mrs. Nickleby muito devagar, como se estivesse a fazer um tremendo esforço para se recordar de alguma coisa de grande importância ‑ esse Mr. Watkins não tinha qualquer parentesco, Miss Knag compreende, os Watkins eram donos do Old Bear na vila; a propósito, não me lembro se era o Old Bear, ou o George VII, mas era um dos dois, eu sei, é quase o mesmo!

‑esse Mr. Watkins disse, quando tu tinhas apenas dois anos e meio, que eras uma das crianças mais surpreendentes que ele vira! Disse, na verdade, Miss Knag, e não era muito doido por crianças, nem tinha o mais ligeiro motivo para o dizer. Sei que foi ele quem o disse, porque me recordo tão bem como se fosse ontem, de pedir emprestadas vinte libras ao teu pobre pai, logo no momento a seguir.

Tendo citado este extraordinário e muitíssimo desinteressado testemunho da excelência da filha, Mrs. Nickleby parou para respirar e Miss Knag, achando que o discurso estava a pender para a grandeza da família, não perdeu tempo em atirar com uma pequena reminiscência de sua conta.

‑ Não me fale em empréstimos de dinheiro, Mrs. Nickleby, ou dá comigo em doida... perfeitamente em doida. A minha mamã. era a criatura mais bela e adorável, com um nariz mais maravilhoso e delicado... mais delicado que jamais foi posto numa cara humana, estou convencida, Mrs. Nickleby, a mulher mais deliciosa e perfeita que eu talvez tenha visto; mas tinha uma mania: a de emprestar dinheiro e levou‑a a um tal extremo. hein. Oh!, milhares de libras. toda a sua fortuna; e o que é mais, Mrs. Nickleby, não creio, se tivermos de viver até. até. hein. até ao fim dos meus dias se alguma vez as conseguiremos reaver. Na verdade, não creio!

Depois de concluir este esforço de invenção sem ser interrompida, Miss Knag começou a contar muitas outras recordações, não menos interessantes que verdadeiras, cuja torrente Mrs. Nickleby em vão tentou parar com uma contra‑corrente das suas lembranças e, assim, ambas continuaram a conversar com perfeito contentamento. A única diferença entre elas era, enquanto Miss Knag se dirigia a Kate e falava muito alto, Mrs. Nickleby conversava num tom monótono, perfeitamente satisfeita por conversar, não se importando se era escutada ou não.

Caminharam desta maneira muito amigável até chegarem à loja do irmão de Miss Knag, que era uma papelaria e uma pequena livraria de propaganda, numa travessa de Tattenham Court Rod, onde alugava ao dia, à semana, ao mês e ao ano as mais novas e antigas novelas, cujos títulos se exibiam em caracteres feitos à pena numa folha de cartão que balouçava por cima da ombreira da porta. Como sucedeu ir Miss Knag no meio do conto do vigésimo segundo pedido da sua mão por um cavalheiro de grande fortuna, insistiu para irem cear todos; e foram.

‑ Não te vás embora, Mortimer ‑ disse Miss Knag quando entraram na loja. ‑ apenas uma das nossas jovens e a mãe, Mrs. e Miss Nickleby.

‑ Oh, certamente! ‑ respondeu Mr. Mortimer Knag. ‑ Ah! Tendo proferido estas palavras com um ar profundo e pensativo, Mr. Knag soprou duas velas da cozinha, que estavam no balcão, e duas outras que estavam na montra, e depois tomou uma pitada duma caixa da algibeira do colete.

Havia alguma coisa de muito impressionante na aparência espectral com que tudo isto foi feito; e como Mr. Knag era um cavalheiro alto, magro, de traços solenes, de óculos e privado de muito mais cabelo do que um cavalheiro à roda dos quarenta, possui em geral, Mrs. Nickleby segredou à filha a sua ideia de que ele devia ser literato.

‑ Passa das dez ‑ informou Mr. Knag, consultando o relógio. ‑ Thomas, fecha o armazém.

Thomas era um rapaz com metade da altura duma porta de janela e o armazém era uma loja cerca do tamanho de três coches de aluguer.

‑ Ah! ‑ exclamou Mr. Knag mais uma vez, soltando um fundo suspiro quando restituiu à prateleira original o livro que estivera lendo. ‑ Bem. sim. creio que a ceia está pronta, minha irmã.

Com outro suspiro Mr. Knag tirou do balcão as velas da cozinha e precedeu as senhoras com passos melancólicos até uma saleta das traseiras, onde uma mulher a dias, empregada na ausência da criada doente e remunerada com dezoito pence a serem deduzidos no ordenado da dita criada, estava a tirar a ceia.

‑ Mrs. Blockson ‑ disse Miss Knag repreensivamente - quantas vezes lhe tenho pedido para não entrar na casa com o chapéu posto?

‑ Não posso remediá‑lo, Miss Knag ‑ declarou a mulher a dias, empertigando‑se com esta resumidísslma observação. Tem havido na casa muito que limpar e se não gosta disto, é tratar de procurar outra pessoa, pois isso pouco me incomoda, e se não for verdade, que eu morra neste instante!

‑ Não quero observações, se faz favor ‑ replicou Miss Knag com uma grande ênfase no verbo. ‑ Há lá em baixo agora algum lume para aquecer a água?

‑ Não, não há, Miss Knag ‑ respondeu a mulher ‑ e não lhe vou contar histórias acerca do assunto.

‑ Então porque não há? ‑ perguntou Miss Knag.

‑Porque não deixaram carvão. Se eu pudesse fazer carvão, acendia o lume, mas como não posso, não acendo, e é isto o que tenho para dizer ‑ declarou Mrs. Blockson.

‑ Oh, mulher! Quer calar a boca? ‑ exclamou Mr. Mortimer Knag, entrando violentamente no diálogo.

‑ Com sua licença, Mr. Knag ‑ replicou ela, voltando‑se repentinamente. ‑ Não tenho prazer nenhum em falar nesta casa, excepto quando falo consigo, sir; e com respeito a ser mulher, sir, desejava saber o que é que o senhor se considera?

‑ Um miserável infeliz! ‑ exclamou Mr. Knag, batendo na testa. ‑ Um miserável infeliz!

‑Estou muitíssimo satisfeita por achar que não exagera, sir ‑ declarou Mrs. Blockson ‑ e como tive dois gémeos fez apenas sete semanas antes de ontem, e o meu pequeno Charlie caiu sobre uma ninhada e partiu o cotovelo no domingo passado, era um grande favor se mandasse, amanhã, para minha casa nove xelins por semana de trabalho, antes das dez.

Com estas palavras de despedida a mulher saiu do aposento com grande à vontade de maneiras, deixando a porta escancarada, enquanto Mr. Knag, no mesmo instante, enfiou para o uarmazém e começou a gemer em voz alta.

‑ O que tem este cavalheiro? ‑ perguntou Mrs. Nickleby, muito perturbada pelos gemidos.

‑ Ele está doente? ‑ inquiriu Kate, realmente inquieta.

‑ Silêncio ‑ recomendou Miss Knag. ‑ uma história muitissimo triste. Esteve uma vez muito dedicadamente ligado a. hein. Madame Mantalini.

‑ Valha‑me Deus! ‑ exclamou Mrs. Nickleby.

‑ Sim ‑ continuou Miss Knag ‑ e foi também muito encorajado, esperando confiadamente, casar com ela. Ele tem um coração muitíssimo romântico, Mrs. Nickleby como na verdade. hein. toda a nossa família, e o desapontamento foi um choque terrível. É um homem maravilhosamente bem educado. extraordinariamente bem educado. lê. hein. lê todas as novelas que saem; quero dizer, todas as novelas que têm qualquer interesse. O facto é que encontra nos livros que lê, matéria aplicável às suas desventuras e vê‑se o herói delas... porque, certamente, está consciente da sua própria superioridade, como estamos todos, e muito naturalmente. escarnece de tudo e torna-se um génio. Estou absolutamente certa de que está neste próprio momento a escrever um outro livro.

‑ Um outro livro! ‑ exclamou Kate, achando que uma pausa éra feita para alguém dizer alguma coisa.

‑ Sim ‑ confirmou Miss Knag, acenando com grande triunfo ‑ um outro livro em três volumes. decerto uma grande vantagem para ele, ter em todas as suas pequenas descrições i elegantes o benefício da minha. hein. experiência pois certamente poucos autores que escrevem acerca de certas coisas

têm a oportunidade de as conhecer como eu. Ele está tão metido na alta roda que a mais pequena alusão a negócios, ou a assuntos materiais ‑ como o daquela mulher há bocado, por exemplo ‑ fá‑lo sair completamente de si. Mas como digo, com frequência creio que o seu desapontamento foi uma grande coisa, porque se ele não tivesse ficado desapontado não podia escrever sobre esperanças perdidas e tudo o mais e o facto, é que se isso não tivesse sucedido, como sucedeu, não creio que o seu génio se tivesse revelado.

É difícil adivinhar quanto mais comunicativa não seria Miss Knag em circunstâncias mais favoráveis, mas a necessidade de avivar o lume fê‑la parar. Por fim, conseguiu‑se obter água quente para jantar e um pouco de brande e as convivas, tendo‑se regalado previamente com uma perna fria de carneiro e pão com queijo, depressa se despediram. Kate divertiu‑se em todo o caminho para casa com a lembrança da última visão de Mr. Mortimer Knag profundamente abstracto na loja, e Mrs. Nickleby a pensar para consigo se a firma de modista se tornaria agora Mantalini, Knag e Nickleby, ou Mantalini Nickleby e Knag.

A amizade de Miss Knag durou três dias, com grande espanto das outras raparigas, que nunca tinham visto uma círcunstância igual mas ao quarto recebeu um golpe tão violento como súbito.

Aconteceu que um velho lorde, duma grande família ia casar‑se com uma rapariga sem família especial, e foi com a noiva e a irmã da noiva assistir à prova de dois chapéus nupciais, os quais foram trazidos por Miss Knag para a sala de exposição.

‑ Uma aparência muitíssimo elegante ‑ comentou Madame Mantalini.

‑Nunca vi na minha vida qualquer coisa tão delicada ‑ secundou Miss Knag.

O velho lorde, que era mesmo um velho lorde, estava altamente deleitado com os chapéus e com as pessoas a quem eles se destinavam; e a noiva, que era uma rapariga muito sabida, aproveitou a ocasião para levar o lorde para trás dum espelho alto e beijá‑lo, sem a cumplicidade de Madame Mantalini e da outra rapariga que, discretamente, olharam para o outro lado.

Miss Knag, que estava cheia de curiosidade, foi acidentalmente atrás do espelho a tempo de ver a rapariga a beijar o lorde, o que a fez murmurar uma coisa como um farrapo velho e grande impertinência, acabando por deitar um olhar de causar arrepios a Miss Knag e mimoseá‑la com um sorriso de desprezo.

‑ Madame Mantalini! ‑ chamou a rapariga.

‑ Ma'am ‑ respondeu Madame Mantalini.

‑Peço‑lhe para mandar vir aquela jovem bonita que vimos ontem.

‑ Oh, sim! Por favor! ‑ apoiou a irmã.

‑ De todas as coisas no mundo, Madame Mantalini ‑ declarou a noiva do lorde, atirando‑se languidamente para cima do sofá ‑ o que odeio, é ser atendida por espantalhos e pessoas de idade. Sempre que venha, peço‑lhe para mandar vir essa jovem!

‑ Absolutamente ‑ disse o velho lorde ‑ a encantadora jovem, absolutamente!

‑ Toda a gente fala dela ‑ continuou a rapariga, na mesma maneira descuidada ‑ e o meu lorde, sendo um grande admirador da beleza, deve querer vê‑la.

‑ Ela é universalmente admirada ‑ informou Madame Mantalini. ‑ Miss Knag, mande vir Miss Nickleby e a senhora não precisa de voltar.

‑ Desculpe‑me, Madame Mantalini, o que disse por último? perguntou Miss Knag, a tremer.

‑ A senhora não precisa de voltar ‑ repetiu a superiora com aspereza.

Miss Knag desapareceu sem mais palavra, sendo substituída por Kate, que corou muito por achar que o velho lorde e as duas jovens tinham os olhos pregados nela durante todo o tempo.

‑ Como cora, criança! ‑ comentou a noiva do lorde.

‑Não está completamente acostumada ao serviço, como estará daqui a uma semana ou duas ‑ explicou Madame Mantalini com um sorriso gracioso.

‑Estou com medo que lhe tivesse deitado um dos seus olhares brejeiros, meu lorde! ‑ disse a noiva.

‑Não, não! ‑ negou o velho lorde. ‑ Não, não! Estou para casar e levar uma vida nova. Ah! ah! ah!

Era uma novidade ouvir que o velho fidalgo ia levar uma vida nova, pois era bem evidente que a velha não o levaria muito longe. O riso fê‑lo tossir e cortou‑lhe a respiração, sendo precisos alguns minutos para se recompor e observar que a rapariga era bonita demais para modista.

‑Espero que não queira dizer que as boas aparências ficam desqualificadas pelo negócio, meu lorde ‑ disse Madame Mantalini, sorrindo com afectação.

‑ Não, de maneira alguma! ‑ protestou o fidalgo ‑ senão a senhora já o teria deixado há muito tempo!

‑ Seu descarado! ‑ exclamou a sabida rapariga, batendo no lorde com a sombrinha. ‑ Não quero que fale assim. Como se atreve?

Esta pergunta divertida foi acompanhada duma outra pancada e mais outra até o velho lorde apanhar a sombrinha, não a restituindo depois e fazendo com que a outra rapariga entrasse na contenda, seguindo-se uma brincadeira muito divertida.

‑Não se esqueça das pequenas alterações a fazer, Madame Mantalini ‑ lembrou a senhora. ‑ Não, o senhor, vai à frente! Não o quero deixar para trás com esta linda rapariga, nem por um meio segundo. Conheço‑o bem demais. Jane, minha querida, deixa‑o ir primeiro e ficaremos descansadas a seu respeito.

O velho lorde, evidentemente, muito lisonjeado por esta suspeita, deitou uns grotescos olhos marotos a Kate quando passou por ela e, recebendo uma outra pancada com a sombrinha, foi a vacilar pela escada abaixo até à porta, onde o seu vigoroso corpo foi içado para a carruagem por dois ro bustos lacaios.

‑ Apre! ‑ disse Madame Mantalini. ‑ Não sei como ele não pensa no túmulo sempre que o metem na carruagem. Leve as coisas daqui, minha querida, leve‑as daqui!

Kate, que estava desejosa de se retirar, deu‑se pressa em descer para os dominios de Miss Knag, cuja atmosfera mudara muito desde a sua ausência. Miss Knag estava sentada num grande caixote, banhada em lágrimas e rodeada por três ou quatro empregadas.

‑ Deus me acuda! ‑ exclamou Kate, apressando‑se a en trar. ‑ O que aconteceu?

A pergunta produziu em Miss Knag violentos sintomas de recaída e várias empregadas dardejaram a Kate olhares zangados, aplicaram mais vinagre e sais amoniacais e declararam que era uma vergonha.

‑ O que é uma vergonha? ‑ perguntou Kate. ‑ De que se trata? O que aconteceu? Digam‑me.

‑ Trata‑se! ‑ exclamou Miss Knag, levantandw-se imediatamente, com grande consternação das donzelas reunidas. ‑ Trata‑se! Fora consigo, sórdida criatura!

‑ Por favor! ‑ disse Kate, quase paralisada pela violência com que o adjectivo fora lançado dos lábios cerrados de Miss Knag. ‑ Eu ofendi‑a?

‑ Ofender‑me! ‑ replicou Miss Knag. ‑ Uma garota, uma criança, um verbo de encher! Oh, na verdade! Ah! ah! ah!

Como Miss Knag ria, era evidente haver alguma coisa engraçada, por isso as outras apressaram‑se a imitá‑la, trocando sorrisos sarcásticos entre si.

‑ Aqui está ela ‑ continuou Miss Knag, deixando o caixote e apresentando Kate com muita cerimónia e muitas cortesias para delícia da sembleia. ‑ Aqui está ela, toda a gente fala dela. da sua formosura, as senhoras. da beleza. Sua grande descarada!

Nesta crise a Miss foi incapaz de reprimir o horror, que imediatamente se comumicou a todas as empregadas, posto o que Miss Knag riu e depois chorou.

‑ Durante quinze anos ‑ declarou Miss Knag soluçando afectadamente ‑ fui o crédito e o ornamento deste aposento e do lá de cima. Graças a Deus ‑ acrescentou, batendo com o pé direito e depois com o esquerdo, com notável energia - em todo esse tempo nunca estive exposta, às artimanhas, às vis artimanhas duma criatura que nos desgraça a todas com os seus procedimentos e faz corar a gente decente. Mas eu sinto‑o, eu sinto‑o, embora esteja desgostosa!

Miss Krag recaiu em apatia e as empregadas, renovando as suas atenções, murmuraram que ela devia ser superior a tais coisas, pois elas, da sua parte, desprezavam‑nas, considerando tudo isso uma vergonha.

‑ Viver até hoje para me chamarem um espantalho! ‑ exclamou Miss Knag, tornando-se repentinamente trémula e fazendo um esforço para levantar violentamente a cabeça.

‑ Oh, não, não! ‑ protestou o coro. ‑ Pedimos-lhe para não dizer isso!

‑Mão mereço que me chamem velha! ‑ guinchou Miss Knag, lutando com as suas supranumerárias.

‑ Não pense nessas coisas, querida! ‑ respondeu o coro.

‑ Odeio‑a! ‑ gritou Miss Knag. ‑ Detesto‑a e odeio‑a! Que ela nunca mais me fale; que aquelas que são minhas amigas nunca mais lhe falem. Uma porcalhona, uma impertinente, uma desavergonhada, uma vil astuciosa!

Tendo denunciado nestes termos o objecto da sua raiva, Miss Knag guinchou mais uma vez, soluçou três vezes, limpou a garganta várias vezes, dormitou, tremeu de frio, acordou, levantou‑se, compôs o penteado e declarou‑se de novo perfeitamente bem.

A pobre Kate, a princípio, contemplou tudo isto com perfeito assombro. Depois, tornou‑se vermelha, em seguida pálida, tentando falar uma ou duas vezes, mas resolveu retirar‑se para o seu lugar, onde, em segredo, verteu lágrimas amargas, que teriam alegrado Miss Knag se as tivesse visto cair.

 

Descrição dum jantar em casa de Mr. Ralph Nickleby e da maneira como os convivas se entretiveram antes, durante e depois do jantar

A bilis e o rancor da digna Miss Knag não díminuiram durante o resto da semana, antes aumentaram em cada hora que passava, e a ira das empregadas subia, ou parecia subir, na proporção exacta da indignação da boa abelha‑mestra e aqueciam ao rubro todas as vezes que Miss Nickleby era chamada ao andar de cima. Por aqui pode‑se facilmente imaginar que era a vida da rapariga: nem muito alegre nem muito invejável. Desejou a chegada da noite de sábado como um preso aspiraria ao repouso duma tortura horrível e lenta, sentindo que o magro ordenado pelo trabalho da sua primeira semana fora ganho com muito esforço e dificuldade.

Quando se juntou à mãe, à esquina da rua comu de costume, ficou surpreendida em encontrá‑la a conversar com Mr. Ralph Nickleby, mas a sua surpresa redobrou não tanto pelo assunto da conversa, como pela maneira suave de Mr. Nickleby.

‑ Ah, minha querida! ‑ exclamou Ralph. ‑ Estávamos neste mumento falando a seu respeito!

‑ Sim?! ‑ replicou Kate, encolhendo‑se embora não sa bendo se seria pelo olhar frio e fuzilante do tio.

‑ Vim neste instante esperá‑la ‑ informou Ralph ‑ tendo a certeza de a apanhar antes da saída: mas a sua mãe e eu estivemos a conversar sobre negócios de família e o tempo passou tão rapidamente.

‑ Não é verdade que passou? ‑ interrompeu Mrs. Nickleby, completamente insensível ao tom sarcástico de Ralph, na observação final. ‑ Palavra, não podia pensar que fosse possível um tal... Kate, minha querida, vais jantar com o tio amanhã às seis horas e meia.

Triunfante por ter sido a primeira a comunicar esta extraordinária notícia, Mrs. Nickleby acenou e sorriu muitas vezes, para imprimir, no espírito espantado de Kate, toda a sua magnificência.

‑ Deixa‑me ver ‑ considerou a boa senhora ‑ o teu vestido de seda preta faz um bom trajo com aquele teu lindo lenço do pescoço, a faixa no cabelo e um par de meias de seda preta. Querida, querida ‑ exclamou Mrs. Nickleby já a pensar noutra coisa ‑ se tivesse ao menos aquelas ametistas ‑ lembras‑te delas, Kate, meu amor? ‑ como elas brilhavam!mas o teu papá, o teu pabre querido papá. nunca uma coisa foi tão cruelmente sacrificada como aquelas jóias! Nunca!

Oprimida por estes dolorosos pensamentos, Mrs. Nickleby abanou a cabeça com melancolia e levou o lenço aos olhos.

‑ Eu não os queria, mamã ‑ disse Kate. ‑ Faça de conta que nunca os tive.

‑ Jesus, Kate, querida! ‑ exclamou Mrs. Nickleby, enfadada ‑ falas como uma criança! Vinte e quatro colheres de chá em prata, repare, cunhado, duas molheiras, quatro saleiros, todos os ametistas: colar, broche e brincos. tudo desapareceu ao mesmo tempo, tendo eu dito, quase de joelhos, aquela pobre e boa alma, Porque não fazes alguma coisa, Nicholas? Tenho a certeza que alguém que estivesse connosco nessa ocasião far‑me‑ia a justiça de confessar que se eu disse uma vez, disse‑o cinquenta vezes por dia. Não disse, Kate, minha querida?. Perdi alguma oportunidade de meter isto na cabeça do teu pobre pai?

‑ Não, não, mamã, nunca! ‑ respondeu Kate. E em abono de Mrs. Nickleby deve dizer‑se que nunca perdeu qualquer ocasião de inculcar semelhantes magníficos preceitos cujo defeito era o ligeiro grau de vacuidade e de incerteza de que estavam geralmente envolvidos.

‑ Ah ‑ continuou Mrs. Nickleby com grande fervor ‑ se o conselho fosse seguido ao princípio. Fiz sempre o meu dever e isso consola‑me.

Quando chegou a esta conclusão Mrs. Nickleby suspirou esfregou as mãos, ergueu os olhos e, finalmente, assumiu um ar de modesta compostura, dando a entender ser uma santa perseguida, mas que não devia maçar os seus ouvintes, men cionando uma circunstância tão clara para toda a gente.

‑ Agora ‑ disse Ralph com um sorriso, que, em vez de aparecer francamente como os outros sinais de emoção, pa recia esconder‑se ‑ voltamos ao ponto donde nos desviámos. Tenho uma pequena reumião na minha casa amanhã, com. com. cavalheiros a quem estou ligado por negócios, e a sua mãe prometeu‑me que a senhora faria as honras da casa. Não costumo ter muitas reuniões, mas esta é de negócios e tais atenções, para eles dizem muito. Não se importa de me fazer esse favor?

‑Cuidado! ‑ exclamou Mrs. Nickleby. ‑ Minha querida Kate, porque.

‑ Perdão ‑ interrompeu Ralph fazendo‑lhe sinal para se calar ‑ falava com a minha sobrinha!.

‑ Decerto terei muito prazer, tio ‑ respondeu Kate ‑ mas receio ver‑me enbaraçada e ser desastrada.

‑ Oh, não ‑ protestou Ralph. ‑ Venha quando quiser, de carro, que eu pagarei. Boa-noite. e. e. Deus a ajude!

A benção pareceu arranhar na garganta de Mr. Ralph Nickleby, como se não estivesse acostumado àquele carinho e desconhecesse a saída. Em todo o caso saiu, embora bastante desastradamente; e, tendo‑a proferido, apertou as mãos às duas parentas e deixou‑as.

‑ Que expressão tão grave tem o teu tio ‑ observou Mrs. Nickleby, completamente chocada pelo modo dele à partida. Não vejo a mais ligeira semelhança com o seu pobre irmão!

‑ Mamã! ‑ repreendeu Kate. ‑ Pensar numa coisa dessas!

‑ Não ‑ replicou Mrs. Nickleby, meditando. ‑ Não há certamente nenhuma. Mas tem uma cara muito franca.

A digna matrona fez esta observação com grande ênfase e eloquência, como se ela compreendesse certa ingenuidade e poder de investigação; e, na verdade era digna de ser classificada entre as extraordinárias descobertas da época. Kate levantou os olhos de repente e, de repente, baixou-os.

‑ O que aconteceu, minha querida? ‑ perguntou Mrs. Nickleby depois de andarem um bocado em silêncio.

‑ Estava, apenas, a pensar, mamã! ‑ informou Kate.

‑ A pensar! ‑ repetiu Mrs. Nickleby. ‑ Sim, na verdade há muito em que pensar. O teu tio tem uma grande inclinação por ti, isso é perfeitamente claro, e se depois disto não te vier alguma extraordinária boa sorte, ficarei bastante surpreendida.

Com isto pôs‑se a contar várias histórias de raparigas a quem os tios deram milhares de libras, ou que encontraram em casa dos tios cavalheiros muito ricos, com quem casaram. Kate, a principio, ouviu isto sem ligar importância, mas depois acabou por desejar do fundo do coração que estes projectos fossem possíveis e melhores dias alvorocessem para eles.

Um fraco sol de inverno iluminou toda a velha casa meio mobilada, a um sombrio canto da qual estava o vestido para o dia, arranjado com escrupuloso cuidado por Kate. Hora e meia antes, Kate já estava arranjada e quando chegou a ocasião de partir, o leiteiro foi chamar um carro onde ela se sentou depois de muitos ademanes à mãe e a Miss La Creevy, que tinha vindo tomar chá. E o carro, o cocheiro e os cavalos, gemendo, praguejando, chicoteando, chegaram a Golden Square.

O cocheiro deu duas tremendes campainhadas à porta, que foi instantaneamente aberta por um lacaio de libré, havendo mais dois ou três outros no átrio. Se ficou surpreendida pela aparição do lacaio, ainda mais se admirou com a riqueza e o esplendor da mobilia na saleta das traseires, para onde foi conduzida, e do resto da casa que lhe foi dado ver.

Ouviu vários toques de campainha, cada um dos quais era acompanhado por uma nova voz que entrava no aposento anexo, onde o tom de Mr‑ Ralph Nickleby só se distinguia a principio, mas que gradualmente se elevou, entrando na conversa geral, sustentada por vários homens que falavam alto e riam francamente.

Por fim, a porta abriu‑se e Ralph desapossado das botas e cerimoniosamente metido numa casáca e com sapatos, apresentou a sua cara velhaca.

‑ Não pude vir antes, minha querida ‑ declarou em voz baixa e apontando para o aposento ao lado ‑ por estar ocupado a recebê‑los. Agora, posso levá‑la lá para dentro?

‑ Diga-me, tio ‑ pediu Kate, um pouco inquieta, como se encontram muitas vezes as pessoas mais acostumadas à sociedade, quando estão para entrar num aposento cheio de estranhos e tiveram tempo de pensar nisso previamente ‑ há senhoras aqui?

‑ Não ‑ respondeu Ralph, concisamente. ‑ Nenhuma!

‑ Tenho de entrar já? ‑ perguntou Kate, recuando um pouco.

‑ Como lhe disse ‑ replicou Ralph, encolhendo os ombros. ‑ Já estão todos e o jantar será anunciado imediata mente.

Kate preferiu adiar alguns minutos, mas considerando que o pagamento do carro pelo tio era uma espécie de contrato, deu‑ lhe o braço para a conduzir.

Quando chegou à sala estavam em volta do lume sete ou oito cavalheiros a conversarem em voz muito alta, não dando pela entrada deles até Mr Ralph Nickleby, tocando no braço dum, dizer numa voz enfática, como para atrair a atenção geral:

‑ Lorde Frederick Verisopht, a minha sobrinha Miss Nickleby.

O grupo dispersou‑se com grande surpresa e o cavalheiro interpelado voltou-se, exibindo um fato dum corte impecável, um par de suíças de qualidade semelhante, um bigode, bom cabelo e uma cara jovem.

‑ O quê?! ‑ exclamou o cavalheiro. ‑ Que diabo! Com estas frases truncadas fixou o monóculo no olho e contemplou Miss Nickleby com grande surpresa.

‑ A minha sobrinha, meu lorde! ‑ repetiu Ralph.

‑ Então os ouvidos não me enganaram e não é uma fi. fi. gura de cera? ‑ disse Sua Excelência. ‑ Como está? Sinto‑me muito feliz.

E depois Sua Excelência voltou‑se para outro superlativo cavalheiro, um pouco mais velho, um pouco mais forte, de cara um pouco mais ruborizada, com um pouco mais de permanência na cidade, e disse‑lhe num murmúrio audível que a rapariga era diabolicamente de apetite.

‑ Apresente‑ma, Nickleby! ‑ pediu o segundo cavalheiro que estava de costas para o lume, com os cotovelos assentes na pedra da chaminé.

‑ Sir Mulbeny Hawk ‑ apresentou Ralph.

‑ Isto é, a carta mais conhecida do ba. ba. ralho, Miss Nickleby ‑ declarou Lorde Frederick Verisopht.

‑ Não me deixe de fora, Nickleby ‑ gritou um cavalheiro de rosto severo, sentado numa cadeira baixa, de costas altas, a ler um jornal.

‑ Mr. Pyke ‑ disse Ralph.

‑ Nem a mim, Nickleby! ‑ clamou um cavalheiro junto ao cotovelo de Sir Mulberry Hawk, de cara rubicunda e um ar flamejante.

‑ Mr Pluck ‑ apresentou Ralph.

Depois, dando outra volta, dirigiu‑se para um cavalheiro de mãos de cegonha e pernas de qualquer animal, a quem Ralph apresentou como o Honorávele Mr. Snobb, e uma pessoa sentada à mesa, de cabelos brancos como o coronel Chowser. O coronel estava a conversar com alguém que parecia um contrapeso e não foi apresentado.

Houve duas ocasiões em que Kate sentiu o sangue subir‑lhe às faces nesta primeira parte da reunião. Uma foi o claro desprezo com que os convidados olhavam o tio, e a outra a insolência das suas maneiras para com ela.

Quando Ralph completou o cerimonial das apresentações conduziu a ruborizada jovem ao lugar. Ao fazer isto deu uma vista de olhos, cautelosa, em redor, para se assegurar da impressão que produzira.

‑ Um inesperado prazer, Niekleby ‑ declarou lorde Fre derick Verisopht, tirando o monóculo do olho direito onde estava, em honra de Kate, e fixando‑o no esquerdo para o assestar em Ralph.

‑ Propôs-se surpreendé‑lo, lorde Frederick ‑ declarou Mr. Pluck.

‑ Não foi uma má ideia ‑ afirmou Sua Excelência ‑ e devia quase garantir a adição dum juro extra de dois e meio por cento.

‑ Nickleby ‑ disse Sir Mulberry Hawk, em voz grossa e áspera ‑ aproveite a sugestão, junte-os aos outros vinte e cinco, ou lá o que é e dê‑me metade pelo conselho.

Sir Mulbeny guarneceu o discurso com uma gargalhada rouca e terminou‑o com um divertido comentário acerca das pernas de Mr. Nickleby, enquanto misters. Pyke e Pluck riam a bandeiras despregadas.

Estes cavalheiros ainda se não tinham recobrado quando foi anunciado o jantar. Sir Mulberry, num excesso de bom humor, passou à frente de lorde Frederick Verisopht, que se preparava para conduzir Kate, e tocou‑lhe no braço.

‑ Não! Irra Verisopht! ‑ disse Sir Mulberry ‑ jogo limpo é uma preciosidáde; Miss Nickleby e eu combinámos isto com os olhos há dez minutos.

‑ q! ah! ah! ‑ riu o Honourable Mr. Snobb. ‑ Muito bem, muito bem!

Animado por este aplauso Sir Mulberry Hawk conduziu Kate com um ar de familiaridade que a indignou. Estes sen timentos não tinham ainda diminuido quando se encontrou sentada à cabeceira da mesa, tendo de um lado Sir Mulberry Hawk e do outro Frederick Verisopht.

‑ Conseguiu lugar na nossa vizinhança? ‑ perguntou Sir Mulberry quando o lorde se sentou.

‑ Decerto ‑ respondeu o interpelado, fixando os olhos en Miss Nickleby ‑ por que pergunta?

‑ Bem, preste atenção ao jantar ‑ replicou Sir Mulberrye - não se importe com Miss Nickleby, nem comigo. formamos um grupo à parte.

‑ Nickleby, desejo que interfira aqui ‑ pediu lorde Frederick.

‑ O que se passa, meu lorde? ‑ inquiriu Ralph, do fundo da mesa, onde estava rodeado por Pyke e Pluck.

‑ Hawk, está a monopolizar a sua sobrinha ‑ queixou‑se lorde Frederick.

‑Ele tem uma boa parte em tudo quanto o meu lorde reivindica ‑ respondeu Ralph com um sorriso irónico.

‑Se assim é, diabos me levem se sei quem é o dono da minha casa!

‑ Eu sei ‑ murmurou Ralph.

‑ Julgo que vou cortar os xelins ‑ disse o jovem fidalgo.

‑ Não, não, maldito seja! ‑ respondeu Sir Mulberry. Quando chegar aos últimos xelins, já eu tenho cortado bas tante. Até lá não o deixo, pode ter a certeza disso.

Esta saída foi recebida com uma gargalhada geral, acima da qual se distinguiam as de Mr. Pyke e de Mr. Pluck, aduladores oficiosos. O infeliz lorde era fraco e pateta e Sir Mulberry Hawk célebre pelo seu tacto para arruinar os jovens fidalgos com fortuna.

O jantar era notável pelo seu esplendor e os convivas por lhe fazerem amplas honras, especialmente Pyke e Pluck, que comeram e beberam de tudo.

‑ Bem ‑ disse lorde Frederick, sorvendo o seu primeiro copo de vinho do Porto ‑ se isto é jantar para descontar, diabos me levem se não seria bom ter um desconto todos os dias.

‑ A seu tempo terá muitos ‑ replicou Sir Mulberry Hawk.

‑ Nickleby dir‑lhe‑á.

‑ O que diz, Nickleby? ‑ perguntou o jovem. ‑ Deve ser um bom cliente?

‑ Isso depende das circunstâncias, meu lorde ‑ respondeu Ralph.

‑Das circunstâncias de Sua Excelência ‑ acrescentou o coronel Chowser, da Milícia ‑ e das corridas de cavalo!

O valente coronel olhou para Pyke e Pluck para ver se eles se riam da graça, mas os cavalheiros, estando apenas comprometidos a rir por conta de Sir Mulberry Hawk, a um sinal deste ficaram mudos como um túmulo.

Entretanto, Kate calada, mal se atrevia a erguer os olhos para evitar encontrar a expressão admirativa de lorde Frederick Verisopht, nem o olhar atrevido de Sir Mulberry. Este último sentia-se obrigado a dirigir a atenção geral para ela.

‑Miss Nickleby ‑ observou Sir Mulberry ‑ deve estar admirada por ninguém lhe ter feito a corte!

‑ De forma alguma! ‑ retorquiu Kate ‑ eu. ‑ depois calou‑se e achou melhor não dizer mais nada.

‑ Aposto cinquenta libras ‑ disse Sir Mulberry ‑ em como Miss Nickleby não é capaz de me olhar cara a cara e dizer que não penso assim!

‑ Apostado ‑ exclamou o jovem pateta. ‑ Dentro de dez minutos.

‑ Apostado ‑ respondeu Sir Mulberry.

O dinheiro apareceu dos dois lados e o Snabb foi eleito para o duplo ofício de tesoureiro e de cronometrista.

‑ Peço‑lhes ‑ disse Kate, confusa, para não me fazerem objecto de qualquer aposta. Tio, realmente não posso!.

‑ Por que não, minha querida? ‑ perguntou Ralph, em cuja voz se notava invulgar rouquidão, como se falasse contra vontade e preferisse que a aposta não se tivesse feito. ‑ Não tem importância. Se os cavalheiros insistem.

‑ Eu não insisto ‑ declarou Sir Mulberry com uma gargalhada. ‑ Isto é, não insisto em que Miss Nickleby negue, pois se nega. perco, porém, ficarei contente em ver os seus olhos brilharem, especialmente se se parecerem muito com o mogno.

‑ Assim parece e isso é muito mau da sua parte, Miss Nickleby ‑ declarou o jovem fidalgo.

‑ Cruel ‑ disse Mr. Pyke.

‑ Horrivelmente cruel ‑ secundou Mr. Pluck.

‑ Não me importo de perder ‑ confessou Sir Mulberry - pois uma contemplação dos olhos de Miss Nickleby vale o dobro!

‑ Mais ‑ replicou Pyke.

‑ Muito mais ‑ retorquiu Pluck.

‑ Que horas são, Snobb? ‑ perguntou Sir Mulberry Iiaw.

‑Passam quatro minutos.

‑ Bravo!

‑ Não quer fazer um esforço a meu favor, Miss Nickleby? ‑ pediu lorde Frederick, depois dum curto intervalo.

‑ Não necessita fazer perguntas ‑ disse Sir Mulberry. Miss Nickleby e eu entendémonos mutuamente; ela declara-se pelo meu lado e mostra o seu gosto. Você não tem sorte, meu rapaz. Está na hora, Snobb?

‑ Passaram oito minutos.

‑ Ponha o dinheiro em ordem ‑ convidou Sir Mulberrypara mo entregar dentro em pouco.

‑ Ah! ah! ah! ‑ riu‑se Mr. Pyke.

A pobre rapariga tão confusa estava que não sabia o que fazia, mas temendo parecer estar do lado de Sir Mulbery, levantou os olhos e olhou‑o de frente. O olhar dele, no en tanto, era tão odioso, tão insolente e repulsivo que ela, sem forças para proferir palavra, levantou‑se e fugiu da sala, retendo as lágrimas até se encontrar no andar de cima.

‑ Excelente ‑ declarou Sir Mulberry Hawk, metendo o dinheiro na algibeira. ‑ É uma rapariga de espírito e vamos beber à sua saúde!

escusado dizer que Pyke e companhia responderam com grande entusiasmo a esta proposta. Ralph, que olhava os convidados como um lobo e parecia respirar mais à vontade desde que a sobrinha abandonara o aposento, recostou‑se na cadeira e olhou os visitantes cada um de sua vez, dando a impressão de lhes ler nos corações.

Entretanto Kate, inteiramente entregue a si própria, soube por uma criada que o tio a queria ver antes de sair e que os convidados tomavam café à mesa. Isto acalmou‑a, visto não ter de os encontrar novamente. Agarrando num livro, preparou‑se para ler.

A súbita abertura da porta da sala de jantar fez‑lhe ouvir uma grande algazarra, enchendo‑a de medo, receando que algum fosse lá acima. No entanto, nada se passou que justificasse a sua apreensão. Voltou os olhos para o livro, embebendo-se na leitura até ouvir o seu nome pronunciado ao uvido, por uma voz de homem.

O livro caiu‑lhe da mão. Estendido na otomana, a seu lado, estava Sir Mulberry Hawk, evidentemente em péssimo estado, pois se o homem é um patife de condição, muito mais o é com o vinho.

‑ Que deliciosa estudante! ‑ exclamou o perfeito fidalgo. Isso é verdade, ou é somente para entreter as pálpebras?

Kate mordeu os lábios, olhou ansiosamente para a porta, mas não respondeu.

‑ Olhei‑as durante cinco minutos ‑ confessou Sir Mulberry. ‑ São perfeitas! Porque falo e destruo um tão lindo quadro?.

‑ Faça o favor de se calar, sir! ‑ advertiu Kate.

‑ Não me calo! ‑ replicou Sir Mulberry, chegando‑se para mais perto de Kate. ‑ Pela minha vida, não devia dizer isso a um seu escravo tão dedicado, Miss Nickleby! Não tem o direito de o tratar tão asperamente.

‑ Desejo que compreenda, sir ‑ disse Kate, tremendo contra vontade, mas muito indignada ‑ que o seu procedimento me ofende e desgosta. Se tivesse uma centelha de cavalheirismo, ia-se embora!

‑Porque toma esse ar de excessiva energia, minha querida menina? ‑ perguntou Sir Mulberry. ‑ Seja mais natural. minha querida Miss Nickleby, peço-lhe.

Kate levantou‑se rapidamente, mas Sir Mulberry agarrou‑lhe o vestido e forçou‑a a deter‑se.

‑ Deixe‑me, sir ‑ gritou ela, com o coração a bater de raiva. ‑ Ouviu? Imediatamente. neste momento!

‑ Sente‑se, sente-se ‑ aconselhou Sir Mulberry. ‑ Quero falar consigo.

‑ Largue-me, sir, já! ‑ ordenou Kate.

‑ Por nada no mundo ‑ respondeu Sir Mulberry. E dizendo isto, inclinou‑se para a obrigar a sentar‑se outra vez, mas a rapariga fez um esforço violento para se soltar, ele perdeu o equilíbrio e estatelou‑se no chão. Quando Kate se apressava para deixar a saleta, apareceu entre portas Mr. Ralph Nickleby, que a encarou.

‑ O que é isto? ‑ indagou ele.

‑ Isto, sir ‑ replicou Kate, violentamente agitada ‑ é que debaixo do tecto onde me encontro, eu, uma rapariga indefesa, a filha do seu falecido irmão, devia encontrar amparo, mas tenho estado exposta aos insultos, e o senhor devia envergonhar-se pela pouca atenção que me tem dado. Deixe-me passar!

Ralph encolheu‑se, de facto, por a indignada rapariga ter fixado nele os olhos chamejantes, no entanto, não lhe satisfez a vontade; levou‑a para um sítio distante e, voltando aproximou‑se de Sir Mulberry Hawk, que já se havia levantádo e se dirigia para a porta.

‑ O seu caminho é por ali, sir ‑ advertiu Ralph numa voz rude, com orgulho soprado por algum diabo.

‑ O que quer dizer com isso? ‑ perguntou‑lhe o amigo, furioso.

As veias da testa enrugada de Ralph incharam e os mús culos da boca apertaram‑se com força, mas sorriu desdenhosamente e apontou de novo para a porta.

‑ Conhece‑me, seu velho louco? ‑ interrogou Sir Mulberry.

‑ Muito bem ‑ respondeu Ralph.

O elegante vagabundo ficou por um momento domado pelo olhar firme do patife mais velho, mas encaminhou‑se para a porta a murmurar.

‑ Queria o lorde, não queria? ‑ inquiriu ele parando de súbito quando chegou à porta, como se uma luz o tivesse iluminado e enfrentou outra vez Ralph. ‑ Eu estava no seu caminho, não estava?

Ralph sorriu novamente, mas não respondeu.

‑ Quem lho trouxe primeiro? ‑ prosseguiu Sir Mulberry,E como sem mim o poderia envolver na sua rede, como o envolveu?

‑ A rede é larga e está bastante cheia‑ respondeu Ralph.

‑ Cautela que as malhas não choquem com ninguém.

‑ Era capaz de vender a carne e o sangue por dinheiro e a si próprio, se não tivesse já feito um pacto com o diabo!

‑ retorquiu o outro. ‑ Quer fazer crer que a sua linda sobrinha não foi trazida aqui como um chamariz para o bêbado que está lá em baixo?

Embora este rápido diálogo fosse conduzido em tom baixo por ambos, Ralph olhou involuntariamente para Kate a fim de se certificar se ela estava ao alcance da voz. O adversário viu a vantagem que tinha e continuou:

‑ Quer fazer‑me crer que não é assim? ‑ perguntou de novo. ‑ Não quer dizer que se fosse ele que estivesse aqui no meu lugar, seria um pouco mais cego, um pouco mais surdo e um pouco menos moralista do que foi? Vamos, Nickleby, responda a isto.

‑ Trouxe‑a aqui por uma questão de negócio. ‑ repli cou Ralph.

‑ Sim, é essa a palavra ‑ interrompeu Sir Mulberry com uma gargalhada. ‑ Você volta agora a ser o que é!

‑Por uma questão de negócios ‑ continuou Ralph, falando devagar e com firmeza, como um homem determinado a não dizer mais ‑ porque pensei dar‑lhe um quadro da tola mocidade que o senhor tomou nas mãos e a quem dá uma boa ajuda para se arruinar; sabia, porque o conheço, que ele levaria muito tempo para ofender os sentimentos de rapariga séria e quando o fizesse seria meramente por afectação e parvoice e que, respeitaria a sobrinha do seu usurário. Mas se pensei em atraí‑lo mais suavemente com este estratagema, não pus na ideia sujeitar a rapariga às suas licenciosidades e brutalidades de velho. E agora compreendêmo‑nos mutuamente?

‑ Especialmente por não se conseguir nada com isso. sorriu desdenhosamente Sir Mulberry.

‑ Exactamente ‑ confirmou Ralph.

Voltou‑se e deu a última resposta por cima do ombro. Os olhos dos dois dignos sócios encontraram‑se com uma expressão em que, cada um deles, sentiu que o conhecimento era mútuo. Sir Mulberry com um encolher de ombros foi‑se embora vagarosamente.

O amigo fechou a porta e olhou com inquietação para o sítio onde a sobrinha ainda se encontrava, na atitude em que ele a deixara. Ralph sentou‑se a uma certa distância; depois aproximou-se, e, finalmente, sentou‑se no sofá e põs a mão no braço de Kate.

‑ Caluda, minha querida ‑ recomendou quando ela se atirou para trás e os soluços explodiram de novo. ‑ Caluda, caluda! Não se importe agora com isso; não pense nisso!

‑ Por piedade, deixe‑me ir para casa! ‑ pediu Kate. Deixe -me sair desta casa e ir para a minha.

‑ Sim, sim ‑ aquiesceu Ralph. ‑ Irá. Mas primeiro precisa de secar os olhos e recompor‑se. Deixe‑me levantar‑lhe a cabeça. Assim. assim.

‑ Oh, tio! ‑ exclamou Kate, torcendo as mãos. ‑ Que mal fiz eu para me sujeitar a isto? Se o tivesse injuriado por pensamento ou palavras teria sido muitíssimo cruel para mim e para a memória daquele a quem o senhor deve ter amado alguma vez, mas.

‑ Ouça‑me apenas por um momento ‑ interrompeu Ralph, muito preocupado pela violência das emoções dela. ‑ Não sa bia que se dava isto; era‑me impossível prevê‑lo. Fiz tudo o que pude. Vamos dar um passeio. Está nervosa devido ao quarto estar abafado e ao calor das velas. Ficará melhor se fizer um mínimo esforço.

‑ Farei tudo se me mandar para casa ‑ prometeu Kate.

‑ Bem, bem, mando‑a! ‑ assegurou Ralph ‑ mas precisa de compor a aparência, porque aquela que tem irá assustá‑los e ninguém precisa saber isto senão nós dois. Vamos, agora por aqui. O seu aspecto já é melhor.

Com estes encorajamentos, Ralph Nickleby andou para trás e para diante com a sobrinha pelo braço. Quando achou prudente, conduziu‑a através da casa, desceu as escadas, entrando ambos numa carruagem. Como a porta do veículo se fechou com violência, caiu uma travessa de Kate aos pés do tio, e este, quando a levantou e se voltou para lha entregar, viu‑lhe a cara. Veio‑lhe então à memória a cara do irmão morto, nalgumas cenas de dor infantil, tão nitidamente como se fosse ontem. Ralph Nickleby estava à prova da voz do sangue e do parentesco. No entanto, ficou abalado pelo que viu e regressou a casa como um homem que encontrasse um espectro vindo de além da campa.

 

Nicholas reencontra o tio, a quem exprine os seus sentinentos muito singelamente.

A pequena Miss La Creevy trotava apressadamente através de diversas ruas a oeste da cidade, de manhã cedo de segunda‑feira, encarregada duma importante comissão para Madame Mantalini da parte de Miss Nickleby, dizendo que não podia ir lá nesse dia, mas esperava ir no dia seguinte. Enquanto caminhava, Miss La Creevy ia cogitando nas conversas prováveis da indisposição da sua jovem amiga.

‑ Não sei o que lhe fez isto ‑ dizia Miss La Creevy. A noite passada declarou que estava com dor de cabeça, mas as dores de cabeça não fazem os olhos vermelhos. Deve ter chorado.

Chegando a esta conclusão, vinda já da noite anterior com completa satisfação, Miss La Creevy continuou a pensar qual seria a nova causa da infelicidade da jovem amiga.

‑ Não posso pensar em nenhuma ‑ dizia a pequena pintora de retratos. ‑ Absolutamente nenhuma, a não ser o procedimento daquele velho urso. Zangado com ela, supnho eu!

Horrível bruto!

Reconfortada por esta expressão de opinião, Miss La Creevy apressou‑se a chegar a casa de Madame Mantalini, onde foi informada que o poder governativo ainda não saira da cama! Pediu uma entrevista com a sub‑comandante, tendo aparecido Miss Knag.

‑ Pelo que me diz respeito ‑ informou Miss Knag depois de lhe ter sido transmitido o recado com muitos floreados - podia‑se dispensar Miss Nickleby para sempre.

‑ Sim? ‑ replicou Miss La Creevy, altamente ofendida. Mas, veja, a senhora não é a dona da casa e por isso o que diz não tem grande importância.

‑ Muito bem, ma'am ‑ retorquiu Miss Knag. ‑ Tem mais ordens a dar‑me?

‑ Não, não tenho, ma'am ‑ respondeu Miss La Creevy.

‑ Então bom dia, ma'am ‑ despediu‑se Miss Knag.

‑Bom dia, ma'am, e muitos agradecimentos pela sua extrema delicadeza e boa educação! ‑retorquiu Miss La Creevy.

Terminando esta entrevista em que ambas tremiam mui tíssimo e foram maravilhosamente delicadas, havendo indícios de terem estado a uma polegada duma medonha discussão, Miss La Creevy saiu do aposento e foi para a rua.

‑ Gostava de saber quem é esta ‑ disse para consigo. Uma bela pessoa para nos relacionarmos. Sentia prazer em pintá‑la. Havia de Lhe fazer justiça!

Sentindo-se perfeitamente satisfeita por ter sido cortante para Miss Knag, Miss La Creevy soltou uma gargalhada e foi para casa.

Aqui estava uma das vantagens em viver só: a de conversar consigo e fazer confidências a si própria. Foi para casa a fim de tomar o pequeno almoço e, mal tinha levado a chá vena à boca, quando a criada lhe veio anunciar que um cavalheiro a procurava. Ficou consternada a olhar para o serviço de chá.

‑Leva isto daqui; corre! Põe‑no no quarto de cama, ou em qualquer parte ‑ disse Miss La Creevy. ‑ Meu Deus, pensar que estou atrasada esta manhã, quando todas as outras tenho estado pronta às oito e meia sem ninguém aparecer.

‑ Não quero vir causar‑lhe qualquer transtorno ‑ declarou uma voz que Miss La Creevy conheceu. ‑ Disse à criada para não mencionar o meu nome por querer fazer‑lhe uma surpresa.

‑ Mr. Nicholas! ‑ exclamou Miss La Creevy com grande assombro.

‑ Vejo que não se esqueceu de mim ‑ replicou Nicholas, estendendo‑lhe a mão.

‑Penso que o conhecia mesmo que o tivesse encontrado na rua ‑ afirmou Miss La Creevy com um sorriso. ‑ Hannah! Outra chávena! Não o maço para repetir a impertinência de que foi culpado na manhã da sua partida.

‑ Não se zangou muito, pois não? ‑ perguntou Nicholas.

‑ Não deveria zangar‑me? ‑ retorquiu Miss La Creevy. O melhor é experimentar.

Nicholas, com imensa galanteria, pegou na palavra de Miss La Creevy, que soltou um pequeno grito e lhe bateu na cara; mas a verdade é que não foi uma pancada muito grande.

‑ Nunca vi uma criatura assim! ‑ exclamou Miss La Crevy.

‑ A senhora disse‑me para experimentar. ‑ desculpou‑se Nicholas.

‑ Bem, mas eu estava a brincar ‑ explicou Miss La Creevy.

‑ Oh! isso é outra coisa! ‑ replicou Nicholas ‑ mas devia‑me ter dito.

‑ Na verdade, o pobrezinho não percebeu! ‑ ironizou Miss La Creevy. ‑ Mas agora que o olho de novo, parece-me mais magro do que quando o vi pela última vez, e tem a cara encovada e pálida. Por que deixou Yorkshire?

Ela parou aqui; no seu tom alterado e nas suas maneiras havia tanta afeição, que Nicholas ficou muito comovido.

‑ Devo estar um tanto mudado ‑ declarou ele depois dum curto silêncio ‑ porque tenho suportado alguns sofrimentos desde que deixei Londres, quer de espírito quer de corpo. Tenho estado sem dinheiro e tenho sofrido amarguras.

‑ Bom Deus, Mr. Nicholas! ‑ exclamou Miss La Creevy. O que me conta?

‑ Nada que a deva afligir tanto ‑ respondeu Nicholas com um ar mais amuado ‑ nem eu vim cá para me carpir, mas para um assunto inteiramente diferente. Desejo encontrar o meu tio cara a cara. Devo dizer‑lhe isto em primeiro lugar.

‑ Então tudo quanto tenho a dizer a esse respeito é que lhe não gabo o gosto ‑ comentou Miss La Creevy ‑ e que o sentar‑me com ele à mesma casa, tendo ele aquelas suas botas, é o suficiente para me irritar durante quinze dias.

‑No principal deve haver grande diferença de opinião entre a senhora e eu, mas há‑de compreender que desejo encará‑lo para me justificar e para o fazer engolir a sua maldade e duplicidade.

‑ Isso é um caso diferente ‑ concordou Miss La Creevy. Deus me perdoe, mas se os meus olhos chocassem com ele, parece que me saltariam das órbitas.

‑ Com esse fim fui procurá‑lo esta manhã ‑ continuou Nicholas. ‑ Ele só regressou no sábado e eu não soube da sua chegada senão ontem à noite.

‑ E viu‑o? ‑ interrogou Miss La Creevy.

‑ Não ‑ respondeu Nicholas. ‑ Tinha saído.

‑ Ah! ‑ comentou Miss La Creevy. ‑ Para algum negócio humano e caritativo.

‑ Tenho razões para acreditar‑ prosseguiu Nicholas‑ no que me disse um amigo que está ao par dos seus movimentos: ele pretende ver hoje a minha mãe e a minha irmã e dar‑lhes a versão das ocorrências passadas comigo. É ali que o vou encontrar.

‑ Muito bem ‑ declarou Miss La Creevy, esfregando as mãos. ‑ E contudo, não sei se não deva pensar muito noutros casos a considerar.

‑ Tenho considerado os outros casos ‑ retorquiu Nicholas ‑ mas como a honestidade e a honra estão ambas em causa, nada me deterá.

‑E o senhor deve saber isso melhor.

‑ Neste caso espero que sim ‑ respondeu Nicholas. ‑ E tudo o que desejo que faça por mim é prepará‑las da minha chegada. Julgam‑me muito longe e se lhes aparecer inesperadamente podem assustar‑se. Se puder perder tempo para lhes dizer que me viu e que estarei com elas um quarto de hora depois prestar‑me‑á um grande serviço.

‑Desejava poder fazer‑lhe a si, ou a qualquer dos seus, um favor maior ‑ declarou Miss La Creevy ‑ mas o poder de servir está raras vezes ligado à vontade, como a vontade ao poder.

Conversando muito e depressa, Miss La Creevy acabou o pequeno almoço rapidamente, pôs de novo o chapéu, tomou o braço de Nicholas, saiu imediatamente para a rua. Nicholas deixou‑a perto da porta da casa da mãe e prometeu voltar dentro dum quarto de hora, o mais tardar.

Aconteceu, porém, que Ralph Nickleby, achando melhor para os seus fins comunicar as atrocidades de que Nicholas era culpado, tinha ido direito a casa da cunhada, em vez de ter ido a negócios, como Newman Noggs supusera. Quando Miss La Creevy chegou, foi introduzida por uma rapariga que fazia a limpeza da casa, encontrando na saleta Mrs. Nickleby e Kate lavadas em lágrimas, e Ralph acabando o relato dos delitos do sobrinho. Kate não lhe disse para se retirar e Miss La Creevy sentou‑se em silêncio.

‑ Já aqui estás, não é verdade, meu menino? ‑ pensou esta. ‑ Então ele vai anunciar‑se e vamos a ver o efeito que faz em ti.

‑ Isto é lindo! ‑ disse Ralph, dobrando a carta de Miss Squeers. ‑ Recomendei‑o embora convencido de que ele nunca faria nada de bom, a um homem com quem podia estar por muitos anos, confortavelmente, se se comportasse decentemente e qual foi o resultado? Uma conduta que o pode levar ao Old Bailey ( 1 ).

‑ Não acredito ‑ protestou Kate, indignada. ‑ alguma indigna conspiração!

‑ Minha querida ‑ censurou Ralph ‑ injuria o digno homem. Isto não são invenções. O homem foi assaltado e o seu irmão não foi encontrado. Este rapaz, de quem eles falam, foi com ele. lembrem‑se. lembrem‑se.

‑ impossível! ‑ contrapôs Kate. ‑ Nicholas!. E também ladrão? Mamã, como pode estar aí sentada a ouvir estas acusações?

A pobre Mrs. Nickleby, que nunca fora notável por uma clara compreensão, deu por resposta exclamar, por detrás dum lenço, que não acreditava, mas duma maneira tão ingénua que deixava aos outros a suposição do contrário.

‑Se ele me aparecer no caminho é meu dever entregá‑lo à justiça ‑ advertiu Ralph. ‑ Não tenho outro recurso, como um homem de sociedade e homem de negócios, se não persegui‑lo. E, no entanto ‑ acrescentou, falando e olhando furtiva, mas fixamente, para Kate ‑ não o devo fazer. Tenho de atender aos sentimentos de sua. irmã e de sua mãe, evi dentemente ‑ juntou Ralph fora de tempo e com muito menos ênfase.

Kate compreendeu muito bem que ele procurava induzi‑la a guardar o mais estrito silêncio sobre o acontecimento da noite anterior. Olhou involuntariamente para Ralph, quando este acabou de falar, mas ele voltara os olhos para outro lado e parecia inconsciente da presença dela.

‑ Tudo se combina para provar a verdade desta carta ‑ continuou Ralph depois de longo silêncio ‑ se na verdade

(1) Tribunal Criminal de Londres

há alguma possibilidade de a contestar. Os inocentes fogem da vista das pessoas honestas e escondem‑se como criminosos? Os inocentes instigam os vagabundos sem nome e andam à pilhagem pelo país fora, como os gatunos? Assalto, motim, roubo. como chamam isto?

‑ Uma mentira! ‑ gritou uma voz quando a porta se abriu e Nicholas entrou no aposento.

No primeiro momento de surpresa, Ralph levantou‑se do lugar e recuou uns passos, completamente desorientado por esta inesperada aparição. A seguir ficou imóvel, de braços cruzados, contemplando o sobrinho com uma carranca de terrível aversão, enquanto Kate e Miss La Creevy se metiam entre os dois para evitar a violência pessoal de Nicholas, que a sua feroz excitação parecia ameaçar.

‑ Querido Nicholas ‑ gritou a irmã, segurando‑se a ele. Sê calmo, considera.

‑ Considerar, Kate! ‑ exclamou Nicholas, agarrand-lhe a mão com tal força, no meio da sua raiva, que ela mal pôde suportar a dor. ‑ Considerando tudo o que passei era preciso ser feito de ferro para estar em frente dele.

‑ Ou de bronze ‑ redarguiu Ralph, sossegadamente. ‑ Não há força bastante na carne e no sangue para encarar isso.

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou Mrs. Nickleby. ‑ Como se chegou a uma situação destas!

‑Quem fala duma maneira como se eu tivesse procedido mal e lhes trouxesse desgraça? ‑ perguntou Nicholas, olhando em redor.

‑ A sua mãe, sir ‑ respondeu Ralph, indicando‑a.

‑ Cujos ouvidos foram envenenados por si! ‑ replicou Nicholas ‑ por si. com a pretensão de merecer os agradecimentos que ela lhe tributava e acumulava sobre a minha ca beça todos os insultos, todos os males e todas as indignidades. O senhor, que me enviou para uma caverna, onde a sórdida crueldade, digna de si, corre à solta e a desgraça se apodera da mocidade; onde a inconsciência da criancice se encolhe dentro da opressão da idade e cada fruto prometdor seca à medida que cresce. Tomo o Céu como testemunha ‑ declarou Nicholas, olhando ardentemente em torno ‑ de que vi tudo isto e de que ele o sabe!

‑ Refuta essas calúnias e sê mais paciente ‑ pediu Kate para não lhe dares vantagens. Diz‑nos o que realmente fizeste e prova que eles são falsos.

‑ De que é que eles. ou do que é que ele. me acusa? ‑ inquiriu Nicholas.

‑Primeiro, de ataque ao teu patrão e de estares quase a ser acusado de tentativa de homicídio ‑ respondeu o tio.

‑ Interferi ‑ explicou Nicholas ‑ para salvar uma criatura miserável e desgraçada, da mais vil e degradante crueldade. Ao fazer isto infligi uma tal punição sobre um patife, que ele não esquecerá facilmente, embora fosse muito menos do que merecia. Se a mesma cena se renovasse agora tomaria a mesma atitude; mas chegar‑lhe‑ia tão forte e feio e marcá‑lo‑ia de forma que ele levaria as manchas para a cova.

‑ Ouve? ‑ perguntou Ràlph, voltando‑se para Mrs. Nickleby. ‑ Arrependimento, isto!

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou Mrs. Nickleby. ‑ Não sei o que pensar, realmente não sei!

‑ Não fale, mamã, suplico‑lhe ‑ disse Kate. ‑ Querido Nicholas, apenes te digo que deves saber como a perversidade anda depressa. Acusam‑te de. Desapareceu um anel e atrevem‑se a dizer que.

‑ A mulher do tipo donde vêm essas acusações ‑ informou Nicholas altivamente ‑ meteu, como suponho, um anel sem valor entre a minha roupa, na manhã em que deixei a casa. Pelo menos eu sei que ela estava no quarto onde se preparavam para lutar com uma infeliz criança, e que o encontrei quando abri a mala no caminho. Devolvi-o imediatamente pela diligência e já lá o têm.

‑ Eu bem sabia! ‑ retorquiu Kate, olhando para o tio. E sobre esse rapaz, em cuja companhia eles dizem que tu saiste?

‑O rapaz, uma criatura pateta e infeliz por causa das brutalidades que sofreu, está agora comigo.

‑ Ouve? ‑ inquiriu Ralph, dirigindo‑se de novo à mãe. Tudo provado, mesmo pela sua própria confissão. Tenciona restituir esse rapaz, sir?

‑ Não, não tenciono! ‑ respondeu Nicholas.

‑ Não? ‑ escarneceu Ralph.

‑ Não ‑ repetiu Nicholas ‑ não ao homem com quem se encontrava. Faria dano a quem soubesse que o devia fazer.

‑Com franqueza! ‑ comentou Ralph. ‑ Agora, sir, quer ouvir uma ou duas palavras minhas?

‑ Pode falar quando quiser ‑ declarou Nicholas, abraçando a irmã. ‑ Pouca importância dou ao que possa dizer, ou ameaçar.

‑ Muitíssimo bem, sir ‑ replicou Ralph ‑ mas talvez interesse às outras pessoas. Dirijo-me à sua mãe, sir, que conhece o mundo!

‑ Ah! Desejava do coração não o conhecer! ‑ soluçou Mrs. Nickleby.

Isto fez sorrir Ralph por saber que os conhecimentos da boa senhora eram insignificantes. Depois olhou firmemente para ela e para Nicholas, enquanto dizia:

‑Do que fiz, ou do que tenciono fazer, por si, ma'am, e pela minha sobrinha, não digo uma palavra. Não faço pro messa alguma e deixo ao vosso julgamento. Não ameaço, mas declaro a este rapaz, cabeçudo, obstinado e desordeiro, que não terá um péni do meu dinheiro, uma migalha do meu pão, ou uma ajuda da minha mão para o salvar de apuros! Não o conheço, venha donde vier, ou ouça o seu nome. Não o socorrerei, nem aqueles que o socorrerem. Sabendo perfeitamente o que lhes sucedia ao proceder assim, ele voltou impelido pela preguiça, para ser um encargo e um peso sobre o reduzido ordenado da irmã. Sinto deixar‑vos, mas não quero encorajar este misto de baixeza e crueldade, e como não lhes quero pedir para renunciarem a ele, não as tornarei a ver.

Se Ralph não conhecesse e sentisse o seu poder para ferir aqueles que odiava, bastava olhar para Nicholas, que empalidecera e cujos lábios tremiam, para ver como calculava bem as palavras que feriam profundamente um espírito ardente e jovem.

‑ Não posso remediar isto ‑ declarou Mrs. Nickleby. ‑ Sei que tem sido bom para nós e tencionava fazer muito pela minha querida filha. Tenho a certeza disso; sei qual foi a sua amabilidade em tê‑la em sua casa e tudo o mais. e decerto teria sido uma grande coisa para ela e para mim, mas não posso, bem vê, cunhado, renunciar ao meu único filho, mesmo que ele tenha feito tudo quanto disse. Por isso vamos para a pobreza, Kate, minha querida. Sei que não a aguento. ‑ Depois de exprimir estas palavras de pesar, Mrs. Nickleby torceu as mãos e deixou as lágrimas cairem pela cara abaixo.

‑ Porque disse, mamã, se Nicholas tivesse feito tudo quanto dizem que ele fez? ‑ prguntou Kate com raiva mal contida. ‑ Bem sabe que ele não fez!

‑ Não sei o que pensar, minha querida ‑ respondeu Mrs. Nickleby. ‑ Nicholas é tão violento e o teu tio tem uma compostura tão honesta, que eu tenho apenas de ouvir o que ele diz e não o que Nicholas afirma. Não importa, não se torna a falar nisso. Iremos para uma casa de trabalho, para o Re fúgio das Desprotegidas, ou para o Magdalen Hospital. E quanto mais depressa, melhor! ‑e depois desta mistura de insti tuições de caridade, Mrs. Nickleby deu outra vez curso às suas lágrimas.

‑ Fique ‑ ordenou Nicholas, quando Ralph se voltou para sair. ‑ Não precisa de deixar esta casa, sir, visto ir ficar livre da minha presença dentro dum minuto, e só tarde, muito mais tarde, cruzarei de novo estas portas.

‑ Nicholas ‑ gritou Kate, atirando‑se para o ombro do irmão ‑ não digas isso! Meu querido irmão, fazes‑me estalar o coração. Mamã, fale‑lhe. Não te rales, Nicholas; ela não queria dizer aquilo! Tio, em nome do Céu, digam qualquer coisa!

‑ Nunca pus na ideia, Kate ‑ replicou Nicholas ternamente ‑ ficar convosco. Posso voltar as costas a esta cidade mais depressa do que tenciono, mas o que tem isso? Não nos esqueceremos um do outro e melhores dias hão‑de vir quando não for preciso separarmo‑nos. Sê mulher, Kate ‑ segredou com dignidade ‑ e não me faças representar o papel dum medroso, enquanto ele está a olhar.

‑ Não, não! Não farei ‑ prometeu Kate ‑ mas não nos deixes! Pensa nos dias felizes que passámos juntos, antes destes infortúnios cairem sobre nós e sem termos um protector para todas as franquezas e erros que a pobreza tanto estimula! Tu não podes deixar‑nos suportá‑los sozinhas!

‑ Serão ajudadas quando eu estiver ausente ‑ retorquiu Nicholas apressadamente. ‑ Eu não sou a vossa ajuda, nem o vosso protector; eu só vos podia trazer tristeza e sofrimento. A minha própria mãe vê isso e a sua ternura e receios por ti indicam‑me o caminho a seguir. Que todos os anjos te abençoem, Kate, até eu te poder levar para a minha casa, onde possamos reviver a felicidade que nos é agora negada, e conversar destas experiências como de coisas passadas. Não me retenhas; deixa‑me ir imediatamente. Querida irmã!...

A pressão que o tinha retido, afrouxou, e Kate desmaiou‑lhe nos braços. Nicholas inclinou‑se sobre ela durante uns segundos e, colocando-a docemente na cadeira, confiou‑a à sua boa amiga.

‑ Não preciso de invocar a sua simpatia ‑ declarou ele, apertando-lhe a mão ‑ pois conheço os seus sentimentos. A senhora nunca as esquecerá!

Encaminhou‑se para Ralph, que continuava na mesma atitude.

‑ Sejam quais forem os passos que der, sir ‑ preveniu ele, numa voz inaudível para os outros ‑ pedir‑lhe‑ei contas estritas. Abandono-as a si, conforme o seu desejo. Tarde ou cedo, há‑de haver um dia de ajuste de contas e ele será duro para si, se tiver procedido mal.

Ralph não moveu um músculo da cara, indicando que tivesse ouvido uma só palavra da despedida, mas viu que Mrs. Nickleby fazia poucos esforços para reter o filho.

Nicholas ao atravessar rapidamente as ruas para o seu obscuro alojamento, muitas dúvidas e hesitações se lhe levantaram no espírito, tentando‑o a voltar para trás. Porém, que ganhavam elas com isso? Mesmo que ele conseguisse obter um pequeno emprego, não era o suficiente e a mãe falara de novas amabilidades para com Kate, que as não negara. Não, pensou Nicholas, agi pelo melhor.

Mas antes de andar quinhentos metros, já outros pensamentos o abalavam. Não cometera falta alguma e encontrava‑se só no mundo, separado daquelas a quem amava e por quem era considerado, seis meses antes, o chefe da família, rodeado por todo o conforto.

Chegando ao seu pobre quarto, atirou‑se para cima da cama, de cara voltada para a parede, dando expansão aos seus sentimentos. Não ouviu ninguém entrar, não dando, pois, pela presença de Smike senão quando levantou a cabeça e o viu na extremidade do quarto, fingindo preparar o jantar, quando se sentiu observado.

‑ Então, Smike ‑ disse Nicholas tão alegremente quanto pôde ‑ informa‑me dos novos conhecimentos que fizeste esta manhã, ou que nova maravilha encontraste no circuito desta rua e da seguinte.

‑ Não ‑ respondeu Smike, abanando melancolicamente a cabeça ‑ hoje preciso de lhe falar duma coisa.

‑ Do que quiseres ‑ retorquiu Nicholas com bom humor.

‑ Disto ‑ declarou Smike. ‑ Sei que o senhor é infeliz e que se meteu numa grande embrulhada por me ter trazido. Devia ter sabido isso e ter parado a tempo. devia, na verdade, se então me lembrasse. O senhor. o senhor. não é rico; não tem o bastante para si e eu não devia estar aqui. O senhor está a emagrecer dia a dia ‑ continuou o rapaz, pondo timidamente a mão na de Nicholas ‑ as suas faces estão mais pálidas e os seus olhos mais encovados. Não posso continuar a vê‑lo assim, e penso em como lhe tenho sido pesado. Tentei hoje ir‑me embora, mas a sua cara bondosa fez‑me voltar atrás. Não o podia deixar sem uma palavra.

O pobre rapaz não pôde continuar por lhe faltar a voz e os olhos se encherem de lágrimas.

‑ A palavra que nos deve separar ‑ retorquiu Nicholas, carinhosamente ‑ nunca a direi, pois tu és o meu único conforto e esteio. Não te deixarei agora, Smike, por coisa alguma deste mundo. Com o pensamento em ti, mantive‑me através de tudo o que hoje passei e passaria cinquenta vezes mais. Dá-me a tua mão! O meu coração está unido ao teu. Antes da semana acabar sairemos daqui. O que tem se eu me despenhei na pobreza? Pobres, sim, mas juntos!

 

Madame Mantalini encontra‑se numa situação difícil e Miss Nickleby sem situação alguma.

A agitação suportada por Kate tornou‑a incapaz de reassumir, durante três dias, os seus deveres no templo da elegância, onde Madame Mantalini pontificava. Neste intervalo a má vontade de Miss Knag não perdera a sua virulência e as empregadas não lhe encobriam o desgosto que lhes causava o regresso de Kate.

‑ Palavra ‑ declarou Miss Knag, quando as satélites a rodeavam para lhe tirar o chapéu e o chaile ‑ pensava que algumas pessoas deviam compreender que a sua presença é um estorvo! Porém, o mundo é horrível!

O eco das ajudantes não se fez esperar e Miss Knag preparava‑se para continuar a conversa quando se ouviu a voz de Madame Mantalini através do tubo de comunicação interna, dizendo para Miss Nickleby ir lá acima, à sala de exposições, distinção que fez Miss Knag levantar a cabeça e morder os lábios com tanta força, que perdeu as suas faculdades de eloquência.

‑ Está outra vez completamente boa, minha filha? ‑ perguntou Madame Mantalini quando Kate se apresentou.

‑ Bastante melhor, obrigada ‑ respondeu Kate.

‑ Desejava poder dizer o mesmo ‑ declarou Madame Mantalini, sentando‑se com ar fatigado.

‑ Está doente? ‑ inquiriu Kate. ‑ Isso penaliza‑me muito.

‑ Não estou exactamente doente, mas atormentada, minha filha. atormentada ‑ replicou madame.

‑ Isso ainda mais me penaliza ‑ disse Kate amavelmente.

‑As doenças do corpo são mais fáceis de suportar do que as do espirito.

‑Ah! e muito mais fácil de dizer do que de suportar ‑ replicou madame esfregando o nariz com irritação. ‑ Vá ao seu trabalho minha filha, e ponha as coisas em ordem, vá!

Enquanto Kate perguntava a si o que prognosticavam estes sintomas de invulgar aflição, Mr. Mantalini meteu a cabeça, pela porta meio aberta, perguntando numa voz doce:

‑ Está aqui a minha vida e a minha alma?

‑ Não ‑ respondeu a esposa.

‑Como se pode dizer isso, quando ela está a desabrochar na sala com uma pequena rosa num lindo vaso? ‑ inquiriu Mantalini. ‑ O seu cachorrinho pode entrar e conversar?

‑ Não ‑ replicou madame. ‑ Sabes que não te permito a entrada aqui. Vai‑te embora!

O cachorrinho, no entanto, talvez animado pelo tom da resposta, entrou na sala, e dirigindo-se a Madame Mantalini nas pontas dos pés, beijou‑a.

‑Porque se aflige ela e arrepanha a carinha de modo a parecer um quebranozes? ‑ imterrogou Mantalimi, pondo o braço esquerdo em volta da cintura da sua vida e alma, e puxando‑a para si com o direito.

‑ Não te suporto! ‑ declarou‑lhe a esposa.

‑ Não. ah, não me suportas! ‑ esclamou Mantalini. Mentiras, mentiras! Não podes! Não há nenhuma mulher que me possa dizer isso cara a cara ‑ e Mr. Mantalini acariciou o queixo e olhou com complacência para o espelho em frente.

‑ Uma extravagância que é uma ruína! ‑ meditou a esposa em voz baixa.

‑ Tudo pela alegria de ter ganho uma criatura tão amável, uma Vénus em miniatura, uma feiticeira, atraente, cativanté pequena Vénus! ‑ disse Mantalini.

‑ Vê a situação em que me colocaste ‑ insistiu madame.

‑ Não virá mal, não deve vir mal para a minha querida ‑ ponderou Mr. Mantalini. ‑ Acabou tudo; o assunto já não existe. O dinheiro entrará e se não entrar bastante depressa, o querido Nickleby vomitá‑lo‑á outra vez, ou separo‑lhe a jugular se se atrever a afligir ou a magoar a pequena.

‑ Cala‑te ‑ interrompeu madame. ‑ Não vês?

Mr. Mantalini, no seu ardor de tratar dos assuntos com a esposa, não vira, ou fingira não ver, Miss Nickleby. Quando se apercebeu dela, continuou em voz baixa a acusá‑lo pelas dívidas, fruto das suas fraquezas, como o jogo, a ociosidade, a prodigalidade e uma tendência para o dorso dos cavalos. Para cada um dos articulados da acusação Mr. Mantalini respondia com um beijo, dando como resultado que daí a pouco Madame

Mantalini estava encantada com ele e foram para cimatomar o pequeno almoço.

Kate estava ocupada a fazer o seu serviço quando ouviu no aposento uma voz de homem desconhecida e, olhando em volta descobriu um chapéu branco,um lenço de pescoço,encarnádo,um carão redondo,uma grande cabeça e parte dum casaco verde.

‑ Não se assuste, miss ‑ disse o proprietário destes objectos. ‑ Aqui é uma modista,não é?

‑ É ‑ respondeu Kat, imensamente admirada. ‑ O que deseja?

O estranho não respondeu,mas olhou para trás,entrando deliberadamente na sala, seguido de perto por um homenzinho de fato castanho com muito uso e cheio de nódoas de lama de há muitos dias.

A impressão de Kate foi de se tratar de dois indivíduos que se quisessem apossar,ilegalmente de artigos que lhes despertassem a fantasia e por isso fez úm movimento em direcção à porta.

‑ Espere um minuto ‑ advertiu o homem de casaco verde fechando a porta suavement e encostando‑se a ela. ‑ Isto é um desagradável acontecimento. Onde está o seu governador?

‑ O meu quê?... O que diz? ‑ perguntou Kate a tremer pensando que governador era o calão de relógio ou dinheiro.

‑ Mister Mantaliniy ‑ esclareceu o homem. ‑ Onde está ele? Está em casa?

‑ Creio que está lá em cima ‑ respondeu Kate, um pouco sossegada por esta pergunta. ‑ Precisa dele?

‑ Não ‑ respondeu a visita. ‑ Não preciso exactamente dele se me fizer um favor. Pode entregar‑lhe este cartão e dizer‑lhe que se ele quiser falar conigo e evitar maçadas,eu

estou aqui; nada mais.

Com estas palavras o estranho meteu na mão de Kate um cartão delgado e quadrado e,voltando‑se para o amigo,começou a fazer observações sobre o aposento.

Depois de tocar à campainha para chamar Madame Mantalini,Kate olhou para o cartão,onde estava escrito o nome de Scaley com outras informações que não teve tempo de decifrar por a sua atenção ser desviada para o próprio Mr. Scaley, o qual, encaminhando‑se para um dos espelhos de corpo inteiro,lhe deu uma pancada com uma bengala,como se fosse feito de ferro forjado.

‑ Boa chapa, Tix! ‑ apreciou Mr. Scaley para o amigo.

‑ Ah! ‑ replicou Mr. Tix,colocando as marcas dos seus quatro dedos e uma impressão dupla do polegar numa peça de seda azul celeste ‑ e este artigo aqui,foi feito para alguma coisa, lembra‑te!

Da téla,Mr. Tix transferiu a sua admiração para outros artigos,enquanto Mr. Scaley se extasiava em frente do espelho em cujas ocupações veio encontrá‑los Madame Mantalini, que soltou uma exclamação de surpresa.      

‑ A patroa? ‑ inquiriu Scaley.

‑ Esta é Madame Mantalini ‑ informou Kate.

‑ Então ‑ disse Mr. Scaley, tirando um pequeno documento da algibeira e desdobrando-o devagar ‑ isto é um mandato de execução de penhora e se não houver inconveniente, vamos fazer o inventário da casa.

A pobre Madame Mantalini torceu as mãos de dor e tocou a campainha a chamar pelo marido; depois, deixou‑se cair numa cadeira e desmaiou. Os homens, no entanto, não se interromperam e ambos, de chapéu na cabeça, começaram a fazer o inventário.

Tal era a situação quando Mr. Mantalini entrou apressadamente, e como este digno espécime estivera ligado a Mr. Scaley, nos seus tempos de solteiro, e estava longe de ter surpresas com o caso, limitou‑se a encolher os ombros e a sentar‑se com grande compostura.

‑ Qual é o diabo do total? ‑ foi a sua primeira pergunta.

‑Mil e quinhentas e vinte e sete libras, quatro xelins e nove pence e meio ‑ respondeu Mr. Scaley sem hesitar:

‑ O meio pence que vá para o diabo! ‑ disse Mr. Mantalini, impaciente.

‑ Com certeza, se o deseja ‑ replicou Mr. Scaley ‑ e os nove pence, também!

‑ Isso não tem importância para nós se as mil e quinhentas e vinte e sete libras forem connosco ‑ observou Mr. Tix.

‑ Nem um xelim ‑ objeetou Mr. Scaley.

‑ Hem ‑ disse o mesmo cavalheiro depois duma pausa - o que se deve fazer. Isto é apenas uma pequena quebra, ou uma quebra a valer? Uma quebra da constituição é muito boa. Então, Mr. Tix, Esquire, tens de avisar o anjo da tua mulher e a tua encantadora família de que não dormes em casa por estes três dias mais chegados, enquanto estiveres de serviço aqui. De que serve a senhora estar‑se a ralar?

‑ continuou Mr. Scaley por ouvir Madame Mantalini soluçar. Uma boa metade do que se encontra aqui não está paga, estou convencido e isso deve ser uma consolação para os seus sentimentos.

Com estas observações misturadas com conselhos de moral para as dificuldades, Mr. Scaley continuou a fazer o inventário, em cujo delicado trabalho era ajudado materialmente pelo tacto invulgar e pela experiência de Mr. Tix, o corrector.

‑ Minha doce taça de felicidade! ‑ aventurou Mantalini, aproximando‑se da mulher com um ar de penitente. ‑ Queres escutar‑me por dois minutos?

‑ Oh! Não me fales! ‑ respondeu ela, soluçando. ‑ Arruinaste-me, é quanto basta!

Mr. Mantalini que, sem dúvida, tinha considerado bem o seu papel, mal ouviu estas palavras, pronunciadas num tom de dor e de severidade, assumiu uma terrível expressão de agonia moral, fugiu arrebatadamente do aposento, ouvindo‑se depois atirar com grande violência a porta do quarto de vestir, no andar de cima.

‑ Miss Nickleby ‑ gritou Madame Mantalini quando este som lhe chegou aos ouvidos ‑ apresse‑se, em nome do Céu; ele vai dar cabo de si! Falei‑lhe desabridamente e não poderá suportar as minhas palavras! Alfred, meu adorado Alfred!

Com estas exclamações precipitou‑se pela escada acima, seguida de Kate, a qual, embora não participasse inteiramente das apreensões da esposa, estava, no entanto, um pouco alvoroçada. Tendo aberta a porta da quarto de vestir, Mr. Mantalini começou a representar, atirando, simetricamente, com o colarinho da camisa para trás e afiando no assentador da navalha de barba uma faca do pequeno almoço.

‑ Ah! ‑ exclamou Mr. Mantalini. ‑ Interrompido! ‑ e uma porção de cabelos de barba foram com a faca para dentro da algibeira do roupão, enquanto os seus olhos rolavam, bravios, e o cabelo flutuava em selvática desordem, misturados com a barba.

‑ Alfred ‑ gritou a esposa, cingindo‑lhe o corpo com os braços. ‑ Não queria dizer aquilo!

‑ Arruinada! ‑ exclamou Mr. Mantalini. ‑ Trouxe a ruína à mais pura das criaturas! Inferno! Deixem‑me ir!

Nesta crise do delírio, Mr. Mantalini fez um gesto com a faca, mas sendo retido pela esposa, tentou esmagar a cabeça contra a parede, tendo, porém, o cuidado de estar, pelo menos, a boa distância.

‑ Acalma‑te, meu querido anjo! ‑ aconselhou madame. Não foi culpa de ninguém! Foi até mais minha do que tua. Vamos, Alfred, esquece tudo!

Mr. Mantalini não achava próprio ir de seguida, mas depois de pedir várias vezes veneno e requerer que alguém lhe fizesse saltar os miolos, chorou pateticamente. Tendo tranqui lizado o espírito, não se opôs à captura da faca, com que valha a verdade, ficou bastante contente por ser um artigo perigoso para andar numa algibeira, e, finalmente, deixou-se conduzir.

Ao fim de duas ou três horas, as empregadas foram informadas que os seus serviços estavam dispensados até ulteriores notícias e, ao cabo de dois dias, o nome de Mantalini aparecia na lista dos falidos. Miss Nickleby recebeu na mesma manhã informação, pelo correio, de que o negócio continuaria sob o nome de Miss Knag, não sendo mais necessária a sua cooperação, com o que Mrs. Nickleby não se mostrou surpreendida, citando, até, vários exemplos a este respeito para testemunhar a sua previsão.

‑ E digo outra vez ‑ observou Mrs. Nickleby, a qual, é desnecessário notar, nunca dissera nada!‑que modista de chapéus e modista de vestidos são as últimas profissões que devias ter escolhido. Não estou a repreender‑te, meu amor, mas direi ainda que se tivesses consultado a tua mãe.

‑ Bem, bem, mamã ‑ interrompeu Kate suavemente ‑ o que me recomenda agora?

‑ Recomendar! ‑ exclamou Mrs. Nickleby. ‑ Não é claro, minha querida, que de todas as ocupações neste mundo para uma senhora nova, na tua situação, a de dama de companhia é o melhor que se coaduna com a tua educação, maneiras e aparência pessoal? Nunca ouviste falar o teu pobre papá num a jovem senhora, filha duma senhora de idade que estava na mesma pensão dele, quando era solteiro. qual era o seu nome? Sei que começava por um B e acabava num g, mas se era Waters ou... Não! Não podia ser isso. Mas fosse o nome que fosse, não sabes que essa jovem foi dama de companhia duma senhora casada, que morreu pouco tempo depois, casando ela com o viúvo e teve um ou dois lindos rapazinhos e tudo no espaço de dezoito meses?

Kàte sabia perfeitamente bem que estas lembranças favoráveis eram ocasionadas por quaisquer longínquas, reais ou imaginárias, descobertas no seu passeio pela vida. Esperou, por isso, pacientemente, o esgotamento das histórias, perguntando‑ lhe, por fim, o que descobrira. Mrs. Nickleby declarou ter visto no jornal da véspera que uma senhora casada precisava duma dama de companhia de gentil aparência, e o nome e morada da senhora eram dados numa livraria na parte ocidental da cidade.

‑ E digo ‑ continuou Mrs. Nickleby, pondo, triunfantemente, o jornal de parte ‑ que se o teu tio se não opuser, vale bem experimentar!

Kate estava sofrendo bastante do coração para fazer objecções e Mr. Ralph Nickleby não opós nenhuma, pelo contrário, aprovou a ideia. Também não mostrou grande surpresa pela falência de Madame Mantalini. Obtidos o nome e a morada sem perda de tempo, Miss Nicleby e a mamã foram à procura de Mrs. Wititterly, de Cadogan Place, Sloane Street, nessa mesma manhã.

Cadogan Place é o traço de união entre o bairro aristocrático de Belgrave Square e o barbarismo de Chelsea. Está em Sloane Street, mas não lhe pertence. A gente de Cadogan Place olha com sobranceria Sloane Street e considera baixo Brompton. Não se quer igualar às pessoas nobilíssimas de Belgrave Square e Grosvenor Place, mas, com referência a elas, são como os filhos ilegítimos das casas nobres.

Neste duvidoso território vivia Mrs. Wititterly, a cuja porta Kate Nickleby bateu, com a mão a tremer. A porta foi aberta por um lacaio, que recebeu o cartão de apresentação, passando‑o a um pequeno pajem. Este jovem cavalheiro pôs o cartão numa salva e, aguardando o seu regresso, Kate e a mãe, entraram numa sala de jantar de aspecto bastante sujo e mesquinho arranjada de tal maneira que se adaptava a qualquer fim, menos a comer e a beber.

Conforme as descrições autênticas da alta roda, Mrs. Wititterly devia estar no boudoir, e Mr. Wititterly a barbear‑ se também no boudoir, mas fosse como fosse Mrs Wititterly deu audiência na sala onde havia tudo que era necessário, incluindo um cãozinho que mordeu as canelas das visitas, com grande gáudio de Mrs. Wititterly, e do mencionado pajem que trouxe chocolate para Mrs. Wititterly se reconfortar.

A senhora tinha um ar de doce insipidez e uma palidez atraente. Ela, a mobília e a casa, tinham um aspecto deslavado. Estava reclinada num sofá, numa atitude tão livre que podia ser tomada por uma actriz pronta para a primeira cena dum bailado e, aguardando, apenas, que o pano, corresse para se levantar.

‑Chega as cadeiras! O pajem chegou‑as.

‑Deixa o aposento, Alphonse!

O pajem saiu, mas se alguma vez um Alphonse tivesse na cara e na figura tão claramente a aparência dum Bill, este pajem era o rapaz.

‑ Tomei a liberdade de vir, ma am ‑ declarou Kate depois duns segundos dum silêncio embaraçoso ‑ por ter visto o seu anúncio.

‑ Sim - respondeu Mrs. Wititterly ‑ mandei‑o publicar.

‑Pensava que se ainda não fez uma escolha definitiva ‑ disse Kate modestamente ‑ talvez me perdoasse maçá‑la com a minha pretensão.

‑ Sim ‑ repetiu Mrs. Wititterly, pachorrentamente.

‑Se já fez alguma selecção...

‑ Oh, meu Deus não! ‑ interrompeu a senhora. ‑ Não me contento assim tão facilmente. Não sei o que dizer. Nunca foi dama de companhia?

Mrs. Nickleby, que espiava avidamente uma oportunidade, entrou destramente na conversa antes de Kate poder responder.

‑ Não para qualquer estranho ma'am ‑ declarou ‑ mas tem sido a minha companhia durante anos. Sou a sua mãe, ma'am. ‑ replicou.

‑Garanto‑lhe ma'am nunca ter pensado que fosse necessário a minha filha entrar na vida trabalhando, pois o papá que era um cavalheiro independente e ainda estaria vivo se escutasse os meus constantes conselhos.

‑ Querida mamã ‑ advertiu Kate em voz baixa.

‑ Minha querida Kate, se me permites que fale ‑ disse Mrs. Nickleby ‑ terei a liberdade de explicar a esta senhora.

‑ Creio que é quase desnecessário mamã!

Apesar de todos os franzimentos de testa e gestos de Mrs. Nickleby, indicando que a continuação do discurso se relacionava com o assunto da colocação, Kate manteve‑se firme e, pela primeira vez a mãe cedeu.

‑ Quais são os seus dotes? ‑ inquiriu Mrs. Wititterly, com os olhos fechados.

Kate corou quando mencionou as suas principais prendas e Mrs. Niekleby contou‑as, uma a uma, pelos dedos, tendo calculado o número antes delas serem ditas. Felizmente os dois cálculos condisseram, não tendo havido, por isso, necessidade de Mrs. Nickleby abrir a boca.

‑ Tem bom carácter? ‑ perguntou de novo Mrs. Wititterly, abrindo os olhos por um instante e fechandu-os outra vez.

‑ Espero que sim ‑ respondeu Kate.

‑E tem uma referência de confiança a respeito de tudo? Kate replicou que tinha e pôs o bilhete do tio sobre a mesa.

‑Tenha a bondade de chegar a cadeira um pouco mais perto e deixar‑me observá‑la ‑ pediu Mrs. Wititterly. ‑ Sou muito miope e não posso distinguir bem as suas feições.

Kate satisfê‑la não sem certo embaraço, e Mrs. Wititterly observou‑lhe, languidamente, a expressão durante uns dois ou três minutos.

‑ Gosto da sua aparência ‑ comentou a senhora, tocando uma pequena campainha. ‑ Alphonse, pede ao senhor para vir cá!

O pajem desapareceu e depois dum curto intervalo, durante o qual não se trocou uma palavra, abriu‑se a porta para dar entrada a um cavalheiro importante, com cerca de trinta e oito anos, expressão plebeia e meio calvo, que se inclinou sobre Mrs. Wititterly durante pouco tempo, a conversar com ela em segredo.

‑ Oh! ‑ disse ele, voltando-se. ‑ Sim! Este assunto é muitíssimo importante. Mrs. Wititterly é duma natureza muito excitável, muito delicada, muito frágil, uma planta de estufa. uma planta ecótica.

‑ Oh, flenry, meu querido! ‑ obtemperou Mrs. Wititterly.

‑ És sim, meu amor, tu sabes que és. um sopro ‑ disse Mr. Wititterly soprando uma pena imaginária ‑ puf! e pronto! Desapareces!

A senhora suspirou.

‑ A tua alma é grande demais para o teu corpo ‑ continuou ele. ‑ O teu intelecto dá cabo de ti; todos os médicos o dizem. Sabes que não há médico que se não orgulhe de ter sido chamado para te ver. E qual foi a declaração unânime? Meu caro doutor, disse eu para Sir Turmley Snuffi, neste mesmo aposento, a última vez que ele veio, meu caro doutor, de que se queixa a minha mulher? Meu caro amigo, respondeu ele, tenha orgulho nesta mulher; considere‑a muito, é um ornamento do mundo elegante e seu. A sua doença é a alma. Incha, expande‑se, dilata; o sangue aquece‑se, o pulso acelera, a excitação aumenta. ‑Aqui Mr. Wititterly, cuja mão direita, no ardor da sua descrição, floreou a poucos centímetros do chapéu de Mrs. Nickleby, retirou‑se rapidamente e bateu no nariz com tal violência como se tivesse sido uma pancada dada por uma máquina.

‑ Fazes‑me mais doente do que sou, Henry ‑ disse Mrs. Wititterly com um desmaiado sorriso.

‑ Não faço, Júlia, não faço. A sociedade em que andas.

Necessariamente andas de acordo com a tua posição, tuas ligações e teus dons, é um redomoinho e um sorvedouro de horrível excitação. Pede ao meu coração e ao meu corpo para que eu possa esquecer o baile da eleição em Exeter, onde tu dançaste com o sobrinho do baronete! Foi tremendo!

‑ Eu sofro sempre depois desses triunfos ‑ comentou Mrs. Wititterly.

‑ E por essa mesma razão ‑ replicou o marido ‑ deves ter uma dama de companhia, na qual haja grande amabilidade, grande delicadeza, excessiva simpatia e perfeito descanso!

Aqui Mr. e Mrs. Wititterly, que tinham falado mais para as Nicklebys do que um para o outro, perderam a fala e olharam para as suas ouvintes com uma expressão que parecia dizer O que pensam disto tudo?

‑ Mrs. Wititterly ‑ disse o marido, dirigindo‑se a Mrs. Nickleby - é desejada e cortejada pela gente mais ilustre e nos círculos mais brilhantes. Excita‑se pela ópera, pelo drama, pelas belas artes, pela. pela. pela.

‑ Nobreza, meu amor! ‑ completou Mrs. Wititterly.

‑ Pela nobreza, decerto ‑ afirmou Mr. Wititterly. ‑ E pelo exército. Forma e exprime uma imensa variedade de opiniões e uma variedade de asssuntos.

‑ Cala‑te, Henry! ‑ pediu a senhora. ‑ Isso não é bonito.

‑ Eu não menciono nomes, Júlia ‑ desculpou‑se Mr. Wi titterly ‑ e ninguém foi atingido. Apenas indiquei as circunstâncias para mostrar que tu não és uma pessoa vulgar e precisas duma perpétua ligação entre o teu corpo e o teu espírito e que deves ser sempre acariciada e acompanhada. E agora, digam‑me desapaixonada e calmamente, quais são as habilitações para o emprego!

Satisfazendo este pedido, as habilitações voltaram a ser mencionadas com mais interrupções e interrogatórios por parte de Mr. Wititterly. Por fim ficaram de tirar informações e de mandar uma resposta decisiva para Miss Niekleby, por intermédio do tio, dentro de dois dias. Tendo‑se assente nestas condições, o pajem guiou‑as na escada e, à porta, o lacaio deu‑lhes a saída.

‑ São, evidentemente, pessoas de distínção ‑ comentou Mrs. Nickleby, logo que agarrou no braço da filha. ‑ Que senhora, Mrs. Wititterly!

‑ Julga isso, mamã? ‑ foi a pergunta de Kate.

‑ Quem pode pensar o contrário, meu amor? ‑ replicou a mãe. ‑ muito pálida e parece exausta. tenho muito receio. Estas considerações levaram a arguta senhora a entrar no problema da duração da vida de Mrs. Wititterly e nas probabilidades do desconsolado viúvo oferecer a mão a sua filha. Antes de chegarem a casa já ela tinha libertado a alma de Mrs. Wititterly do seu invólucro material, casado Kate com

grande esplendor na igreja de St. George, em Hanover Square, deixando apenas, por decidir uma questão de menor importância: se um esplêndido leito de mogno envernizado devia ser armado para ela no quarto das traseiras, ou no quarto da frente.

As informações foram tiradas. A resposta ‑ sem grande alegria por parte de Kate ‑ foi favorável e, ao terminar a semana, mudou‑se com todos os seus valores, para a mansão de Mrs. Wititterly.

 

Nicholas e Smike, vão à procura de fortuna e encontram Mr. Vincent Crummles

Todo o capital com que Nicholas ficou depois de pagar as dívidas, não ia além de vinte xelins, não contando com uns poucos de meios pence. Contudo, na manhã em que decidiu deixar Londres, levantou‑se com o coração leve e bem disposto. Era uma manhã fria, seca, nevoenta, do princípio da Primavera. Nas ruas, passavam sombras vagas e ouviam‑se passos e o fragor das rodas dos carros.

Antes das indicações da aproximação da manhã na barulhenta Londres, Nicholas encaminhou‑se, só, para casa da mãe, colocando‑se sob as janelas. Atravessou a rua e levantou os olhos para a janela do quarto onde dormia a irmã. Estava fechada e era tudo escuro lá dentro. Pobre rapariga, pensou Nicholas, mal sabe ela quem está aqui.

Olhou outra vez e sentiu‑se quase magoado por Kate não estar ali para trocar uma palavra de despedida. Bom Deus!v, pensou de novo, arrependendo‑se subitamente, Como sou criança! É melhor assim! Quando antes as deixei, e podia dizer‑lhe mil vezes adeus, poupei‑lhes a dor da despedida, e por que não a poupar agora? Entretanto a cortina moveu‑se na janela de Kate e persuadindo‑se que a irmã estava à janela, escondeu‑se no portal, para ela não o ver. Deus as abençoe!, disse ele e afastou‑se com passo leve.

Smike esperava‑o ansiosamente, assim como Newman, que gastara um dia do seu salário numa lata de rum e leite para os preparar para a viagem. Ataram a bagagem, que Smike carregou ao ombro, e sairam na companhia de Newman Noggs, que insistiu em ir com eles até onde pudesse.

‑ Para onde vão? ‑ perguntou Newman, pensativo.

‑ Primeiro para Kingston ‑ respondeu Nicholas.

‑ E depois para onde? ‑ inquiriu Newman. ‑ Porque não me quer dizer?

‑ Porque eu não sei, meu bom amigo ‑ replicou Nicholas, pondo‑lhe a mão no ombro ‑ e se dissesse, como não tenho ainda planos, nem projectos, podia mudar os meus aposentos um cento de vezes antes de ter a possibilidade de comunicar consigo.

‑Receio que tenha na cabeça algum intento secreto - observou Newman, duvidoso.

‑ Tão secreto ‑ retorquiu o seu jovem amigo ‑ que nem mesmo sei. Do que resolver a esse respeito, escreverei.

‑ E não se esquece? ‑ inquiriu Newman.

‑ Não sou muito dado a isso ‑ respondeu Nicholas. – Não tenho tantos amigos, cujo número seja tão grande que vá justamente esquecer o melhor deles.

            Entretidos a conversar andaram um bom par de horas e teriam andado um par de dias se Nicholas não se sentasse numa pedra,declarando não arredar dali,enquanto Newman não se fosse embora. Este ainda insistiu para os acompanhar mais um bocado,mas dada a obstinação de Nicholas não teve outro remédio se não voltar para Golden Square. Depois da troca de cordiais e afectuosos adeuses e dele se voltar muitas vezes para agitar o chapéu, os dois viajantes foram‑se perdendo,pouco a pouco, na distância.

‑ Agora escuta‑me,Smike ‑ disse Nicholas, quando eles avançaram de corações firmes,para a frente. ‑ Vamos para Portsmauth.

Smike acenou com a cabeça e sorriu,sem exprimir outra emoção,pois irem para Portsmouth ou para Port Royal era o mesmo para ele, desde que fossem juntos.

‑ Não conheço muito destes assuntos ‑ confessou Nicholas ‑ mas Portsmouth é um porto de mar e se se não obtiver outro emprego, creio, que pelo menos, poderemos arranjar trabalho nalgum barco. Sou novo e activo e posso ser útil em muitos misteres, tal como tu.

‑ Assim o espero ‑ respondeu Smike. ‑ Quando eu estava naquele... Sabe o que quero dizer?

‑ Sim,sei ‑ retorquiu Nicholas ‑ não precisas nomear o lugar.

‑ Bem,quando estava lá ‑ continuou Smike com os olhos a brilharem pela perspectiva de mostrar as súas aptidões - eu ordenhava uma vaca e tratava dum cavalo como qualquer outra pessoa.

‑Ah! receio que a bordo dos navios não tenham muitos animais dessa espécie,e mesmo quando tenham cavalos não devem estar interessadas em almofadá‑los ‑ observou Nicholas gravemente. ‑ No entanto podes aprender outra coisa qualquer. Onde há vontade há sempre uma porta aberta.

‑ E eu tenho muita vontade ‑ declarou Smike,alegrando‑se de novo.

‑ Deus sabe que sim ‑ replicou Nicholas ‑ mas se falhares será duro; no entanto,farei o bastante para ambos.

‑ Fazemos todo o caminho hoje? ‑ inquiriu Smike depois dum curto silêncio.

‑Isso seria uma prova demasiado dura,mesmo para as tuas corajosas pernas ‑ respondeu Nicholas,com um sorriso de bom humor. ‑ Não. Godalming está a umas trinta e tantas milhas de Londres,segundo um mapa que me emprestaram e proponho que descansemos ali. Amanhã temos outra vez que puxar por nós, visto não sermos ricos bastante para vadiar. Deixa‑me livrar‑te desse peso!. Vamos!

‑ Não, não! ‑ protestou Smike, recuando uns passos. Não me peça para lhe dar isto.

‑ Porque não? ‑ quis saber Nicholas.

‑Pelo menos deixe‑me fazer alguma coisa por si! O senhor nunca me deixou servi‑lo, como devo. Nunca soube como eu penso, dia e noite, em lhe agradar sempre.

‑És pateta em estar a dizer uma coisa que sei e vejo bem, pois de outro modo seria um animal cego e insensível ‑ replicou Nicholas. ‑ Deixa‑me fazer‑te uma pergunta, enquanto penso nela e não há por aqui ninguém ‑ acrescentou, olhando‑o fixamente na cara. ‑ Tens boa memória?

‑ Não sei ‑ respondeu Smike, abanando a cabeça com tristeza. ‑ Julgo tê‑la tido, mas foi-se toda embora.

‑ Por que pensas assim? ‑ perguntou Nicholas, voltando‑se repentinamente para ele, embora a resposta ajudasse de alguma maneira o seu intento.

‑Por que me lembrava quando era criança ‑ replicou Smike ‑ mas isso foi há muito, muito tempo, ou pelo menos parece‑me. Naquele lugar donde o senhor me trouxe andava sempre desvairado; de nada me lembrava e, às vezes, nem mesmo compreendia o que me diziam. Eu... Deixe‑me ver... deixe‑me ver!.

‑ Estás agora a divagar? ‑ advertiu Nicholas, tocando‑lhe no braço.

‑ Não ‑ retorquiu o companheiro, com um olhar vago. Estou apenas a pensar como. ‑ e estremeceu involuntaria mente, enquanto falava.

‑Não penses mais nesse sítio, visto estar tudo acabado ‑ aconselhou Nicholas, fixando os olhos no companheiro, que ia caindo num pasmo outrora habitual nele e vulgar desde então. ‑ Qual foi o primeiro dia em que foste para Yohkshire?

‑ Como? ‑ exclamou o rapaz.

‑ Isso foi antes de começar a perder a memória ‑ disse Nicholas tranquilamente. ‑ O tempo estava quente ou frio?

‑Húmido. Muito húmido! Disse sempre, quando chovia com força, que era como na noite em que fui e eles costumavam juntar‑se à minha roda, a rir, por me verem chorar quando a chuva caía com violência. Parecia uma criança, diziam eles, e isso fazia‑me pensar mais nesse dia. Tornei‑me algumas vezes indiferente por me ver como era depois de ter entrado por aquela mesma porta.

‑ Como eras então e como foi isso? ‑ interrogou Nicholas, que parecia desprendido.

‑ Uma criança tão pequena ‑ replicou Smike ‑ que eles deviam ter tido pena e misericórdia de mim. Só me lembro disso.

‑ Tu não deves ter ido sozinho ‑ observou Nicholas.

‑ Não! Oh, não! ‑ contestou Smike.

‑ Quem estava contigo?

‑ Um homem... um homem escuro,seco. Ouvi‑os dizerem isto na escola e antes lembrava‑me. Fiquei contente por o deixar, visto ter medo dele; mas os outros não eram melhores.

‑ Olha para mim ‑ convidou Nicholas,desejando atrair‑lhe toda a sua atenção. ‑ Não te lembras de nenhuma mulher, duma mulher carinhosa, que se inclinasse alguma vez para ti, te beijasse e te chamasse seu filho?

            ‑ Não ‑ respondeu a pobre criatura. ‑ Não,nunca!

‑Nem de nenhuma coisa,sem ser Yorkshire?

‑ Não ‑ repetiu o jovem,com um olhar melancólico. Um quarto. lembra‑me de dormir num quarto, um quarto grande e solitário no topo duma casa,onde havia no tecto uma porta de alçapão. Cobria com frequência a cabeça com a roupa para a não ver,pois metia-me medo e costumava perguntar a mim próprio o que haveria do outro lado. Também havia um relógio,um relógio antigo,a um canto. Lembro‑me disso. Nunca esqueci esse quarto,pois quando tenho sonhos terríveis,ele aparece‑me tal qual era. Vejo coisas e pessoas que então nunca vi,mas é o quarto tal como era; isso nunca muda.

‑ Deixas‑me agora levar a carga? ‑ perguntou Nicholas, mudando subitamente de assunto.

‑ Não! ‑ objectou Smike. ‑ Não! Continuemos a caminhar.

Apressou o passo com a impressão de terem estado parados durante o precedente diálogo. Nicholas ia junto dele, lembrando‑se de todas as palavras da conversa.

O dia amanheceu e todas as cores da natureza brilharam à luz do sol,que dissipou os nevoeiros da noite. Chegaram por fim,a Goldaming,onde passaram a noite. Caminharam até à beira do Devil's Punch Bowl onde Smike ouviu,com muito interesse a leitura da inscrição na pedra,por Nicholas.

Quando escureceu estavam a doze milhas de Portsmouth.

‑ Doze milhas ‑ comentou Nicholas,agarrando o cajado com as mãos e olhando para Smike.           

‑ Doze compridas milhas ‑ repetiu o estalajadeiro.

‑ A estrada é boa? ‑ perguntou Nicholas.

‑ Muito má ‑ informou o estalajadeiro, pois sendo estalajadeiro tinha,forçosamente,de dizer mal da estrada.

‑ Queria continuar ‑ observou Nicholas,hesitante. – Não sei o que hei‑de fazer.

‑ Não quero influenciá‑lo,mas se fosse eu,não ia ‑ advertiu o estalajadeiro.

‑ Não ia? ‑ inquiriu Nicholas,com a mesma incerteza.

‑ Não,se soubesse que estava bem alojado ‑ disse o estalajadeiro.

E tendo dito isto puxou o avental para cima,meteu as mãos nas algibeiras e deu um ou dois passos fora da porta, olhando para a escuridão da estrada, presumindo grande indiferença.

Um relancear pela cara fatigada de Smike decidiu Nicholas e, sem atender a mais nada, determinou ficar onde estava. O estalajadeiro conduziu-os à cozinha e como havia ali um bom lume, fez notar que estava frio. Se por acaso o lume fosse mau, teria dito que estava calor.

‑ O que nos pode dar para cear?‑foi a pergunta natural de Nicholas.

‑ O que querem? ‑ foi a resposta natural do estalajadeiro. Nicholas sugeriu carne fria, mas não havia carne fria; ovos escalfados, mas não havia ovos; costeletas de carneiro, mas não havia costeletas de carneiro num raio de três milhas, embora a semana passada tivesse havido tantas que eles não sabiam o que fazer com elas, e devia haver um extraordinário fornecimento daí a dois dias.

‑ Então ‑ decidiu Nicholas ‑ deixo isso inteiramente consigo; o que teria feito logo de entrada se mo tivesse dito.

‑ Nesse caso vou dizer‑lhe o que há ‑ replicou o estalajadeiro. ‑ Na sala está um cavalheiro que me encomendou para as nove um pudim quente de carne e batatas. Há mais do que ele consegue comer e quase não duvido que possam cear com ele se eu lhe for pedir. Faço isso num minuto!

‑ Não não ‑ objectou Nicholas, detendo‑o. ‑ Prefiro que não. Eu. pelo. menos. bolas! Por que não hei‑de falar claro? Como vê viajo duma maneira muito humilde e fíz todo o caminho até aqui a pé. É mais do que provável, que o cavalheiro não deseje a minha companhia, e embora eu esteja todo empoeirado, como v, sou orgulhoso demais para fazer má figura.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou o estalajadeiro. ‑ apenas Mr. Crumles ele não é esquisito.

‑ Não? ‑ perguntou Nicholas, em cuja ideia, a dizer a verdade, a perspectiva de saborear o pudim estava a causar certa impressão.

‑Não ‑ replicou o estalajadeiro. ‑ Tem tal qual a sua maneira de falar. Mas depressa vamos tirar isso a limpo. Aguarde um minuto!

O estalajadeiro apressou‑se a ir para a sala e Nicholas esforçou‑se para o impedir, considerando, que uma ceia em tais circunstâncias era um assunto sério demais para brincadeira. Não demorou muito que o hospedeiro voltasse muito excitado.

‑ Está tudo arranjado ‑ informou ele em voz baixa. Eu sabia que ele concordava. Vão ver alguma coisa que vale a pena. Como eles o vão pôr em movimento!

Não houve tempo de perguntar a que se referia esta exclamação, dita num tom arrebatador, por já se ter aberto a porta da sala, na qual entrou Nicholas seguido de Smike, carregando ainda com a bagagem.

Nicholas estava preparado para encontrar alguma coisa de especial, mas não aquilo que viu. Numa das extremidades da sala estavam dois rapazes, um alto e outro baixo, vestidos de marinheiros, pelo menos como marinheiros de teatro, que se empenhavam num combate com sabres de abordagem. O mais pequeno estava em grande vantagem sobre o outro e a observá‑los a ambos estava empoleirado num ãngulo da mesa um homem forte e alto, incitando‑os a baterem com os sabres.

‑ Mr. Vincent Crummles ‑ disse o estalajadeiro com um ar de grande deferência. ‑ É este o jovem cavalheiro.

Mr. Vincent Crummles recebeu Nicholas com uma inclina ção de cabeça, uma coisa entre a cortesia dum imperador romano e o aceno dum companheiro de borracheiras, e pediu ao estalajadeiro para fechar a porta e ir‑se embora.

‑ uma demonstração ‑ informou Mr. Vincent Cruxnmles, fazendo sinal a Nicholas para não avançar e não perturbar. Ali, o pequeno, tem‑no na mão; se o mais alto o não tocar em três segundos é um homem morto. Recomecem rapazes!

Os dois combatentes foram de novo para a luta fazendo faíscas com os sabres, com grande satisfação de Mr. Cruznxnles. Depois de vários ataques e defesas, de passes e fíntas executados com mais ou menos mestria e vigor, o mais pequeno conseguiu vencer o maior, que caíu e expirou no meio duma grande tortura. ‑Será um duplo encore, se tiverem cuidado, rapazes!

‑ disse Mr. Crummles. ‑ É melhor irem agora tomar ar e mudar de roupa.

Depois de dirigir estas palavras aos combatentes, cumprimentou Nicholas, que observou, então que a cara de Mr. Crummles era proporcional ao corpo, em tamanho; o lábio inferior grosso, voz rouca, como se tivesse o hábito de gritar muito, cabelo preto, muito rapado até ao alto da cabeça para poder mais facilmente pôr as cabeleiras de qualquer modelo ou forma, como soube mais tarde.

‑ O que pensou disto, sir? ‑ inquiriu Mr. Cruxnxnles.

‑ Muito bom, na verdade. excelente! ‑ respondeu Nicholas.

‑Creio que não deve ver com muita frequência rapazes como estes ‑ disse Mr. Crun.

Nicholas concordou, observando que se eles se conbinassem um pouco melhor.

‑ Combinassem! ‑ exclamou Mr. Crummles.

‑Quero dizer, se eles fossem um pouco mais do mesmo tamanho. ‑ explicou Nicholas.

‑ Tamanho ‑ repetiu Mr. Crummles. ‑ Porquê, se a essência do combate é haver uns centímetros de diferença. Como quer o senhor conseguir a simpatia dos espectadores duma maneira legitima, se não houver um homem pequeno a combater com um grande. a não ser que haja cinco contra um e, para isso, ainda não temos na companhia gente bastante.

‑ Compreendo ‑ retorquiu Nicholas. ‑ Desculpe-me. Surpreendme que isso não me tenha passado pela cabeça.

‑ o ponto principal ‑ afirmou Mr. Crum. – Depois de amanhã abro o teatro em Portsmouth. ‑ Se vai para lá, entre no teatro e verá tudo quanto digo.

Nicholas prometeu, se pudesse e, chegando a cadeira para mais perto do lume, começou imediatamente a conversar com o empresário. Este era muito falador e comunicativo, não só por uma disposição natural, como pela aguardente que sorvera em quantidade e pelo rapé que tomava. Falou dos seus negócios sem a mais pequena reserva, da companhia e da família, a ambas as quais pertenciam os dois rapazes dos sabres de abordagem.

‑ Vai para aqueles lados? ‑ perguntou o empresário.

‑ Vou ‑ respondeu Nicholas. ‑ Sim, vou.

‑ Conhece bem a cidade? ‑ indagou o empresário, que parecia considerar‑se tão digno de receber as confidências como de as ter revelado.

‑ Não ‑ informou Nicholas.

‑ Nunca esteve lá?

‑ Nunca!

Mr. Crummles teve uma tosse curta e seca, como para dizer, Se não queres ser comunicativo, não sejas, e tirou muitas pitadas de rapé, uma após outra, enquanto Nicholas, perguntava, maravilhado, onde ele as ia meter todas.

Assim entretido, Mr. Crummles olhava, de vez em quando, com grande interesse para Smike, que parecia ter‑lhe dado no goto desde o princípio. O rapaz tinha adormecido, sentado na cadeira.

‑ Desculpe‑me ‑ disse o empresário, inelinando‑se para Nicholas e baixando a voz ‑ mas que excelente expressão tem o seu amigo!

‑ Pobre rapaz! ‑ replicou Nicholas com um meio sorriso. Desejava‑o um pouco mais gordo e menos perturbado.

‑ Gordo?! ‑ exclamou o empresário, completamente horrorizado. ‑ Estragava tudo!

‑ Julga isso?

‑ Julgo! Como ele agora está ‑ afirmou o empresário, batendo no joelho enfaticamente ‑ sem qualquer chumaço no corpo e um leve toque de pintura na cara, faz um papel de esfomeado como nunca se viu neste país. Basta que se mantenha no papel de Boticário do Romeu e Julieta, com a ponta do nariz ligeiramente vermelha, e pode ter a certeza de vir três vezes à cena agradecer os aplausos.

‑ O senhor vê‑o com olhos de profissional ‑ comentou Nicholas, rindo.

‑ Pode dizê‑lo ‑ replicou o empresário. ‑ Nunca vi um jovem tão bem talhado para esse papel desde que sou pro fissional e represento desde os dezoito meses de idade!

A aparição do pudim de carne juntamente com os jovens Crummleses desviou a conversa para outros assuntos e acabou até por parar. Os rapazes manejavam os garfos e as facas com menos habilidade do que os sabres de abordagem. Acabada a última garfada Mr. Crummles manifestou o desejo de se repetir, o mesmo acontecendo a Smike, que, durante a refeição, tinha adormecido várias vezes. Em vista disto Nicholas propôs irem os dois descansar, mas o estalajadeiro não quis ouvir falar em tal, visto tencionar convidar o seu novo conhecimento a partilhar uma caneca de ponche.

‑ Deixe‑os ir ‑ sugeriu Mr. Crumxnles ‑ e nós vamos regalar‑nos com o ponche, cómoda e confortavelmente instalados junto do lume.

Nicholas não estava, na verdade, muito disposto a dormir, por isso, tendo trocado um aperto de mão com os jovens Crummleses, sentou‑se em frente do pai e dentro em pouco saboreava um ponche duma fragância muito convidativa. Apesar do ponche e das histórias do empresário, que fumava cachimbo e tomava rapé ao mesmo tempo, o espírito de Nicholas estava ausente. A sua atenção vagueava embora ouvisse a voz do companheiro, não percebeu nada da história que contou, terminando com uma formidável gargalhada e com a pergunta do que faria ele no mesmo casa. Nicholas teve que confessar a sua desatenção, desculpando-se o melhor que pôde.

‑ Eu vi isso ‑ observou Mr. Crummles. ‑ O senhor não estava aqui. Que se passa?

Nicholas não pode deixar de sorrir com o inopinado da pergunta e, achando que não valia a pena iludi‑la, revelou que andava preocupado com receio de não ser bem sucedido no objectivo que o levava ali.

‑ E qual é? ‑ perguntou o empresário.

‑ Arranjar trabalho para prover às vulgares necessidades da vida, a mim e ao meu pobre companheiro ‑ declarou Nicholas. ‑ Esta é que é a verdade. O senhor adivinhou‑ a há muito tempo, portanto digo‑lha de boa vontade.

‑ E por que vieram para Portsmouth em vez de irem para outro sítio? ‑ quis saber Mr. Vincent Crummles, pondo na boquilha do cachimbo lacre fundido à vela, e rolando, ainda fresco, com o dedo mínimo.

‑ Suponho que há muitos navios a sair do porto ‑ respondeu Nicholas ‑ e tentarei trabalhar num ou noutro. Pelo menos há lá que comer e beber.

‑ Carne salgada e rum, pudim de ervilhas e bolacha ‑ informou o empresário, aspirando o cachimbo para o conservar aceso e voltando ao trabalho de o embelezar.

‑ Pode‑se ter pior do que isso ‑ replicou Nicholas. ‑ Creio que posso suportar trabalhos desses tão bem como muitos homens da minha idade!

‑ Precisa de aptidões ‑ observou o empresário ‑ se for para bordo dum navio e o senhor não as tem!

‑Por que não?

‑ Porque não há nenhum mestre ou piloto que cuide valer a pena empregá‑lo, enquanto houver pessoas práticas ‑ respondeu o empresário ‑ e essas têm‑nas elas tantas como de ostras há pelas ruas.

‑ O que quer dizer? ‑ perguntou Nicholas, alarmado com esta intonação e pelo ar de certeza com que foi dita. ‑ Mas os homens não nascem marinheiros. Suponho que têm de ser ensinados.

Mr Vincent Crummles fez que sim com a cabeça.

‑ Sim, mas não na sua idade nem jovens cavalheiros como o senhor.

Seguiu‑se uma pausa. A expressão de Nicholas entristeceu e contemplou o lume melancolicamente.

‑Não lhe ocorre outra profissão que um homem novo, com a sua figura e maneiras possa desempenhar facilmente e veja nela algum lucro? ‑ inquiriu o empresário.

‑ Não ‑ respondeu Nicholas, abanando a cabeça.

‑ Então vou‑lhe dizer uma ‑ declarou Mr. Crummles atirando o cachimbo para o lume e levantando a voz. ‑ O palco!

‑ O palco! ‑ exclamou Nicholas em tom de surpresa.

‑ A profissão teatral ‑ disse Mr. Vincent Crummles. ‑ Eu estou na profissão teatral e os meus filhos também. Tive um cão que viveu e morreu nela desde pequeno, e o meu pónei vai na mesma. Timour the Tartar. Levá‑lo‑ei e ao seu amigo também. Diga uma palavra. Preciso duma novidade.

‑ Eu nada conheço disso ‑ retorquiu Nicholas que quase perdera a respiração com a súbita proposta. ‑ Nunca desempenhei um papel na minha vida, a não ser na escola.

‑ O seu andar e as suas maneiras têm o seu quê de comédia gentil, o seu olhar duma juvenil tragédia e a sua gargalhada duma farsa enternecedora ‑ declarou Mr. Vincent Crummles. ‑ Fará tão bem como se desde a nascença não pensasse senão nas luzes da ribalta.

Nicholas recordou‑se dos poucos trocos que lhe ficariam na algibeira depois de pagar a conta da estalagem e hesitou.

‑ O senhor pode‑nos ser útil num cento de coisas ‑ disse Crummles. ‑ Pense nos excelentes cartazes que um homem com a sua educação pode escrever para as montras das lojas.

‑ Bem, julgo que posso dirigir essa secção ‑ afirmou Nicholas.

‑ Com certeza que pode ‑ ripostou Mr. Crummles. ‑ Para casos especiais pode ver os pequenos cartazes escritos à mão. devemos ter meio volume de todos eles. E peças, também. Pode escrever uma peça para fazer sobressair todo o vigor da companhia, sempre que precisemos duma.

‑ A respeito disso não tenho tanta confiança ‑ replicou Nicholas. ‑ Mas atrevo-me a dizer que posso escrivinhar de vez em quando alguma coisa que lhes convenha.

‑ Temos agora uma nova peça a representar ‑ informou o empresário. ‑ Deixe‑me ver. recursos peculiares deste estabelecimento. um cenário novo e esplêndido‑ O senhor tem de introduzir uma bomba verdadeira e dois tubos de água.

‑ Na peça? ‑ perguntou Nicholas.

‑ Sim ‑ replicou o empresário. ‑ Comprei‑os baratos no outro dia. E um plano de Londres. Eles lá têm alguns adereços e artigos e arranjam uma peça para os fazer entrar.

A maioria dos teatros têm autores de propósito para isso.

‑ Sim?! ‑ exclamou Nicholas ‑ uma coisa vulgar ‑ afirmou o empresário. ‑ Nos cartazes, em linhas destacadas, faz um belo efeito. Uma bomba verdadeira! Esplêndidos tubos! Grande atracção! O senhor não parece ter nada de artista, pois não?

‑ Não faz parte dos meus dotes ‑ respondeu Nicholas.

‑ Ah! Então não há nada a fazer ‑ disse o empresário. Se fosse, podíamos arranjar uma grande perspectiva na última cena, mostrando toda a profundidade do palco com a bomba e os tubos no meio, mas como não é, não há nada a fazer!

‑ Quanto posso receber por tudo isso? ‑ inquiriu Nicholas depois dum momento de reflexão. ‑ Posso viver com o ordenado?

‑ Viver? ‑ exclamou o empresário. ‑ Como um principe! Com o seu salário e o do seu amigo, e os escritos, pode fazer uma libra por semana.

‑ Não me diga!

‑Decerto que digo; e se tivermos boas casas, dobro aproximadamente o dinheiro.

Nicholas encolheu os ombros e, sem pensar mais, apressou‑se a declarar que era negócio feito e estendeu a mão a Mr. Vincent Crummles para firmar o contrato.

 

A companhia de Mr. Vincent Crummles e os seus negócios domésticos e teatrais.

Como Mr. Crummles tinha na cocheira da estalagem um estranho animal de quatro pernas a que chamava pónei, e um veículo duma forma desconhecida, que designava por faetonte, Nicholas continuou a viagem com muito maior facilidade na companhia de Smike.

O pónei levou tempo a andar e, talvez devido à sua educação teatral, tinha uma forte inclinação para se deitar, sendo preciso Mr. Vincent Crumnzles usar da palavra e do chicote para o fazer levantar, e um dos jovens dar‑lhe um pontapé quando parava.

‑ No fundo é um bom pónei ‑ declarou Mr. Cruxnmles, voltando‑se para Nicholas.

No fundo podia ser, mas com certeza não era no cimo pois o pêlo estava o mais mal tratado possível, por isso Nicholas limitou‑se a observar que não se maravilhava com isso.

‑Muitos e muitos têm sido os distritos que este pónei tem percorrido ‑ informou Mr. Crumxnles, dando‑lhe habilidosamente com o chicote na pálpebra por amor do velho conhecimento. ‑ Faz parte da familia. A mãe dele trabalhou nu palco.

‑ Trabalhou? ‑ interrogou Nicholas.

‑ Comeu pastelões de maçã num circo durante mais de catorze anos ‑ informou o empresário. ‑ Descarregava pistolas e ia para a cama com uma touca de dormir e, em resumo, desempenhava-se inteiramente da baixa comédia. O pai era dançarino.

‑ E distinguiu‑se?

‑ Não muito ‑ asseverou o empresário. ‑ Era um pónei duma qualidade bastante ordinária. O facto é que ele era de início espicaçado durante o dia e nunca perdeu os seus velhos hábitos. Era também esperto no melodrama, mas grosseiro demais. grosseiro demais. Quando a mãe morreu, enveredou pelo negócio do vinho do Porto.

‑ O negócio do vinho do Porto! ‑ estranhou Nicholas.

‑ Bebendo vinho do Porto com o palhaço ‑ esclareceu o proprietário ‑ mas era voraz e uma noite mordeu a caneca de vidro e feriu‑se, por isso a sua vulgaridade foi, por fim, a causa da sua morte.

O descendente deste desastrado animal precisava duma progressiva atenção de Mr. Crummles, que não tinha, portanto, muito tempo para conversar. Nicholas deixou‑o, portanto à vontade e engolfou‑se nos seus pensamentos até à ponte levadiça de Portsmouth, onde Mr. Crummles saltou em terra.

‑ Temos de descer aqui ‑ preveniu o empresário ‑ e os rapazes vão levá‑lo à cocheira e depois vão para a pensão com a bagagem. É melhor, o senhor ir para lá.

Agradecendo a Mr. Vincent Cnummles a sua cortés oferta, Nicholas saltou e, dando o braço a Smike, acompanhou o empresário pela High Street fora, perto o do teatro, sentindo-se bastante nervoso e incomodado pela perspectiva duma imediata entrada em cena, coisa tão nova para ele.

Passaram por uma grande quantidade de cartazes colados às paredes e dispostos nas montras, onde estavam em grandes caracteres os nomes de Mr. Vincent Crummles, Mrs. Vincent Crummles, Mister Crummles, Mister P. Crummles e Miss Crummles, e o resto em letras pequenas. Voltando, por fim, para uma entrada onde havia um forte cheiro a casca de laranja e óleo de iluminação, com uma sub‑corrente de serradura. Foram às apalpadelas por um corredor às escuras e, descendo um ou dois degraus, enfiaram por um labirinto de lonas e de latas de tinta, e apareceram no palco do Portsmouth Theatre.

‑ Cá estamos! ‑ anunciou Mr. Crummles.

Não estava muito iluminado, mas Nicholas viu‑se do lado do ponto, entre paredes nuas, cenários cobertos de pó, núvens bolorentas, tapeçarias incrivelmente sujas e tabulados porcos. Olhou em roda; tecto, plateia, camarotes, galeria, orquestra, alfaias e decorações de todo o género, tudo parecia áspero, frio, triste e miserável.

‑ Isto é um teatro? ‑ segredou Smike estupfacto. ‑ Pensava que fosse uma explosão de luz e de pompa.

‑ Assim é ‑ respondeu Nicholas, pouco menos surpreendido. ‑ Mas não de dia, Smike. não de dia.

A voz do empresário chamou‑o para uma inspecção mais cuidadosa do edifício, no lado oposto ao proscénio, ond a uma pequena mesa de mogno, de forma oblonga e pernas raquíticas, estava sentada uma mulher forte, de ar majestoso, aparentemente entre os quarenta e os cinquenta anos, com uma capa de seda desbotada, de chapéu balouçando na mão pelas fitas e com o cabelo, de que tinha uma grande quantidade, entrançado numa grande pôpa sobre cada lado.

‑ Mr. Johnson ‑ disse o empresário, pois Nicholas dera o nome que Newman empregara na sua conversa com Mrs. Kenwigs ‑ deixe‑me apresentar‑lhe Mrs. Vincent Crummles.

‑ Muito prazer em conhecê‑lo, sir ‑ respondeu Mrs. Vin cent Crummles com uma voz sepulcral. ‑ Tenho muito prazer em conhecê‑lo e ainda mais feliz me sentirei se for um membro prometedor da nossa companhia.

A senhora apertou a mão de Nicholas enquanto lhe dirigia estas palavras. Ele viu que essa mão era grande, mas não esperava a força com que foi honrado.

‑ E este‑ disse a senhora, atravessando para o lado de Smike, como uma actriz trágica atravessa a cena, obedecendo às indicações da acção. ‑ Este é o outro. Seja benvindo, sir.

‑ Julgo que ele será bom, minha querida ‑ disse o empresário, tomando uma pitada de rapé.

‑ É admirável ‑ concordou a senhora. ‑ Uma boa aquisição.

Quando Mrs. Vincent Crummles atravessou de novo para o lado da mesa, apareceu no palco, como saída dum misterioso buraco, uma rapariguinha de vestido solto, dum branco sujo com refegos até aos joelhos, calças curtas, sandálias, jaqueta branca, chapéu de gaze azul, véu verde e papelotes, que fez uma pirueta, agitou duas vezes as mãos no ar, fez outra pirueta, olhando para o lado oposto, estremeceu, saltou para a frente, a uns dois metros das luzes da ribalta, e caíu numa bela atitude de terror ao ver um cavalheiro miseravelmente entrajado com um par de velhos sapatos de quarto, em pele de búfalo, nos pés, que entrou a deslizar vigorosa mente, batendo os dentes e brandindo, ferozmente, uma bengala.

‑ Estão a representar o Índio Selvagem e a Donzela explicou Mrs. Crummles.

‑ Oh! O pequeno bailado do intervalo ‑ disse o empresário. ‑ Muito bem, continuem. Um pouco para este lado, se faz favor, Mr. Johnson. Atenção! Agora!

O empresário bateu as palmas como sinal para continuarem; o índio selvagem deslizou direito à donzela, que se lhe escapou com seis piruetas, a última das quais na ponta dos pés. O homem pareceu impressionado pela beleza da donzela e começou a fazer muitos gestos para indicar o seu amor, sendo isto, muito verosivelmente, a causa dela cair num banco a dormir. O selvagem, depois de acenar para toda a parte explicando que ela estava a dormir, dançou só. Quando terminou, a donzela levantou‑se, esfregou os olhos e dançou só também, com grande êxtase do selvagem. Por fim dançaram os dois juntos, acabando a dança com o selvagem pondo um joelho em terra sobre o qual a donzela assentou um pé.

‑ Muito bem, na verdade! ‑ aprovou Mr. Crummles. Bravo!

‑ Bravo! ‑ secundou Nicholas, resolvido a tomar tudo pelo melhor. ‑ Lindo!

‑ Esta, sir ‑ informou Mr. Vincent Crummles, trazendo a donzela à frente ‑ esta é a criança fenómeno. Miss Ninetta Crununles.

‑ A sua filha? ‑ perguntou Nicholas.

‑ A minha filha ‑ respondeu Mr. Vincent Crummles. ‑ O ídolo de todos os sítios onde vamos, sir. Temos recebido cartas de cumprimentos a respeito desta rapariga, sir, da nobreza e da alta classe média, de quase todas as cidades de Inglaterra.

‑ Não me surpreende ‑ confessou Nicholas. ‑ Deve ser um perfeito génio natural.

‑ Completamente!. ‑ Mr. Crummles parou. Não havia expressões suficientemente poderosas para descrever a criança fenómeno ‑Digo‑lhe, sir, que não se imagina o talento desta criança. É preciso vê‑la, sir. vê‑la. para se fazer uma pálida ideia. Vai para a tua mãe, minha querida!

‑ Posso perguntar a idade dela? ‑ interrogou Nicholas.

‑ Pode, sir ‑ respondeu Mr. Crummles, olhando com firmeza para a cara do seu interlocutor, como fazem alguns homens quando têm algumas dúvidas de serem implicitamente acreditados no que vão dizer. ‑ Tem dez anos, sir.

‑Não tem mais?

‑Nem um dia.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou Nicholas. ‑ extraordinário!

Era, pois a criança fenómeno, que, embora de pequena estatura, tinha cara de mais velha, possuindo, precisamente, a mesma idade uns bons cinco anos antes, segundo a recordação dos mais velhos conhecimentos. Mas fora habituada a deitar‑ se tarde todas as noites e a ingerir, desde a infância, quantidades ilimitadas de aguardente e água para evitar ser alta, e talvez este sistema de treino tivesse produzido na criança todos estes fenómenos adicionais.

Enquanto se travava este curto diálogo, o cavalheiro que fazia de selvagem aproximou‑se, com os sapatos da rua nos pés e os sapatos de quarto nas mãos, desejoso de meter conversa.

‑ Talento, aquilo, sir! ‑ disse o selvagem, acenando com a cabeça para o lado de Miss Crummles.

Nicholas concordou.

‑ Ah! ‑ disse o actor, cerrando os dentes e respirando com um som sibilante ‑ ela não devia andar pelas províncias, não devia.

‑ O que quer dizer? ‑ perguntou o empresário.

‑ Quero dizer ‑ replicou o outro convictamente ‑ que ela é boa demais para as barracas do campo e devia estar numa das grandes casas de Londres, ou de qualquer outra parte; e digo-lhe mais, sem rebuço, de que se não fosse por inveja e ciúme dum certo sector que o senhor sabe, ela lá estaria. Talvez me queira apresentar, Mr. Crummles.

‑ Mr. Folair ‑ disse o empresário, apresentando‑o a Nicholas.

‑ Muito feliz em conhecê‑lo, sir. ‑ Mr. Folair tocou na aba do chapéu com o indicador e depois apertou‑lhe a mão. Um recruta, sir, segundo ouvi?

‑ Um inútil recruta ‑ replicou Nicholas.

‑ Já viu uma intrujice como esta? ‑ segredou o actor, afastando‑o, enquanto Crumrres os deixava para ir falar à mulher.

‑ O quê?

Mr. Folair fez uma cara cómica da sua colecção de pantomina e apontou por cima do ombro.

‑ Não se quer referir à criança fenómeno!

‑ Criança, uma fava, sir! ‑ retorquiu Mr. Folair. ‑ Não há uma criança do sexo feminino, de esperteza vulgar numa escola de caridade, que não faça melhor do que isto. Pode agradecer ao céu ter nascido filha dum empresário!

‑ O senhor parece levar isso a sério ‑ disse Nicholas com um sorriso.

‑ Sim, por Júpiter, e tenho razão ‑ replicou Mr. Folair, dando‑lhe o braço e andando dum lado para o outro no palco.

‑Não é suficiente para tornar um homem rabujento ver que umas poucas de cambalhotas são todas as noites melhor espectácula e guarda o dinheiro fora de casa devido a certos boatos, enquanto às outras pessoas não ligam importância? Não é extraordinário ver a abominável família dum homem cegá‑lo mesmo contra os próprios interesses? Sei de alguns que vieram de Southampton uma noite do mês passado para me verem dançar o Highland Fling; e qual foi a consequência? Nunca me fiz valer desde aí ‑ nem uma só vez ‑ ao passo que a criança fenómeno todas as noites sorri por entre flores artificiais entre cinco pessoas e um bébé, na plateia, e dois rapazes na galeria.

‑ Se posso julgar pelo que vi ‑ insinuou Nicholas ‑ o senhor deve ser um membro valioso da companhia.

‑ Oh! ‑ respondeu Mr. Folair, batendo os sapatos para lhe tirar o pó. ‑ Posso fazê-lo lindamente bem; talvez ninguém seja melhor na minha especialidade. mas tendo aquí estes casos a preocupá‑la, é o mesmo que pôr chumbo nos pés em vez de giz e dançar com grilhões sem os possuir. Olá, meu rapaz, como vai isso?

O cavalheiro a quem se dirigiam estas últimas palavras era um homem de tez escura, inclinado à palidez, com cabelo preto, comprido e espesso, e indicação muito evidente, embora estivesse bem barbeado, duma barba cerrada e farto bigode. sua idade podia não ultrapassar os trinta, embora aparentasse mais idade. Usava uma camisa apertada, um velho casaco verde com botões dourados novos, um lenço de pescoço com riscas largas encarnadas e verdes, e calças azuis escuras, floreando uma bengala de freixo.

‑ Olá, Tommy ‑ correspondeu o cavalheiro, atirando uma estocada ao amigo, que ele aparou com o sapato. ‑ Novidades?

‑ Uma nova revelação ‑ replicou Mr. Folair, olhando para Nicholas.

‑ Faze as honras, Tommy! ‑ convidou o outro cavalheiro batendo-lhe repreensivamente na copa do chapéu com a bengala.

‑ Este é Mr Lenville, que fez a nossa primeira tragédia. Mr. Johnson ‑ disse o pantonúneiro.

‑Salvo quando os velhos tijolos e a argamassa se metem na cabeça fazê ‑ la por si, devias acrescentar, Tommy

‑ observou Mr. Lenville. ‑ Não sabe quem são os tijolos e a argamassa, sir?

‑ De facto não sei ‑ respondeu Nicholas.

‑Damos esse nome ao Crummles por o seu estilo de representar ser duma maneira bastante ponderosa

‑ explicou Mr. Lenville. ‑ Não devia estar a largar piadas pois tenho aqui um papel de todos os tamanhos, que devo representar amanhã à noite e ainda não tive tempo de olhar para ele. Sou um executante e grande estudioso, é o meu conforto.

Consolando‑se com esta reflexão, Mr. Lenville tirou da algibeira do casaco um manuscrito sujo e amarrotado, e tendo dirigido outra estocada ao seu amigo, continuou a passear dum lado para o outro, decorando o papel e abandonando-se, ocasionàlmente, a acções apropriadas, sugeridas péla sua imaginação e pelo texto.

Naquela ocasião parecia haver uma revista geral da companhia, pois além de Mr. Lenville e do seu amigo Tommy havia um jovem magro que cantava de tenor, um homem de nariz arrebitado, boca grande, cara larga e olhos espantados, que era o cómico; um cavalheiro de idade, embriagado, nos últimos degraus da baixeza, que desempenhava os papéis de velhos calmos e virtuosos; e ainda um outro cavalheiro de idade, de aspecto mais respeitável, cujos papéis eram de velhotes irrascíveis. Além destes havia uma pessoa com um aspecto de vagabundo, metido num sobretudo coçado, que passeava em frente das lâmpadas, floreando uma bengala de cerimónia e discursando a meio tom com grande vivacidade. Não era tão novo como parecia, mas tinha um ar de exagerada gentileza, que fazia adivinhar o herói duma comédia de fanfarronices. Havia, além disso, um pequeno grupo de três ou quatro jovens, que pareciam de importância secundária.

As senhoras estavam reunidas em volta da mesa atrás mencionada. Havia Miss Snevellicci, olhando para Nicholas por baixo do chapéu de palha e fingindo estar a ouvir uma história divertida da sua amiga Miss Ledraok; Miss Belvawney, que frequentemente aspirava a desempenhar papéis falados, mas que geralmente os fazia mudos, e estava a enrolar os caracóis da bonita Miss Bravassa; Mrs. Lenville, Miss Gazingi e Mrs. Grudden, que ajudava Mrs. Crummles nos seus trabalhos domésticos, recebia o dinheiro à porta, vestia as senhoras, varria a casa e desempenhava qualquer papel numa emergência, mesmo sem o ter aprendido.

Mr. Folair tendo, obsequiosamente, confidenciado estas particularidades a Nicholas, deixou‑o para se misturar com os companheiros. O trabalho de apresentação foi completado por Mr. Vincent Cruznmles, que publicamente proclamou o novo actor como um prodígio de génio e de instrução.

‑ Desculpe‑me ‑ pediu Miss Snevellicci, deslizando para o lado de Nicholas ‑ mas já representou em Canterbury?

‑ Nunca ‑ respondeu Nicholas.

‑Lembro‑me de ter encontrado um cavalheiro em Canterbury ‑ explicou Miss Snevellicci ‑ apenas por uns momentos, pois ia deixar a companhia a que ele se juntou, tão parecido consigo que estava convencida ser o mesmo.

‑ Vejo‑a a si pela primeira vez ‑ replicou Nicholas com toda a galanteria devida. ‑ Tenho a certeza de nunca a ter visto antes, pois de contrário não a teria esquecido.

‑ Oh, tenho a certeza. é muito lisonjeiro da sua parte dizer isso ‑ retorquiu Miss Snevellicci com uma graciosa inclinação de cabeça. ‑ Agora que o vejo melhor tenho a ideia de que ess cavalheiro de Canterbury não tinha os mesmos olhos que o senhor. Há‑de julgar‑me maluca por notar tais coisas, não há‑de?

‑ De forma alguma ‑ contestou Nicholas. ‑ Como podía eu sentir‑me, se não lisonjeado pela sua observação?

‑ Oh. Os homens são criaturas tão vãs! ‑ exclamou Miss Snevellicci que depois disto se tornou encantadoramente confusa e, tirando o lenço duma velha bolsa de seda com fecho dourado, chamou Miss Lebrook.

‑ Led, minha querida ‑ disse Miss Snevellicci.

‑ O que há? ‑ perguntou Miss Ledrook.

‑ Não é o mesmo.

‑ Não é o mesmo o quê?

‑ Canterbury. sabes o que quero dizer. Vem cá! Quero falar‑te.

Como Miss Ledrook não veio ter com Miss Snevellicci, foi esta obrigada a ir ter com ela, o que fez duma maneira tão saltitante que a tornava fascinadora. E Miss Ledrook evidentemente troçou de Miss Sneveilicci por se ter metido com Nicholas; seguiu‑se depois um alegre segredar, Miss Snevellicci bateu com muita força nas costas das mãos de Miss Idrook e retirou‑se num estado de graciosa confusão.

‑ Senhoras e senhores ‑ disse Mr. Vincent Crummles, que tinha estado a escrever num bocado de papel. ‑ Convoco todos para o Mental Strugglei rzhã s dez horas. A intriga sabem vocês de cor, portanto, precisamos só dum ensaio. Toda a gente às dez horas, se fazem favor.

‑ Toda a gente às dez horas ‑ repetiu Mrs. Grudden olhando em volta.

‑ Na segunda‑feira vou ler‑lhes uma nova peça ‑ anunciou Mr. Crummles. ‑ O título ainda se não sabe, mas toda a gente terá um bom papel. Mr. Johnson terá esse cuidado.

‑ Mas então ‑ exclamou Nicholas, estarrecido. ‑ Eu.

‑ Segunda‑feira de manhã ‑ repetiu Mr. Crummles, levantando a voz para abafar a advertência do infeliz Mr. Johnson

‑estarão aqui, senhoras e senhores.

As senhoras e senhores não precisaram de segundo aviso para se porem a andar, e em poucos minutos o teatro ficou deserto, com excepção da família Crummles, de Nicholas e de Smike.

‑ Palavra ‑ respingou Nicholas, tomando o empresário de lado ‑ não creio que tenha tempo para segunda‑feira.

‑ Ora, ora! ‑ disse Mr. Crummles.

‑ Mas realmente não posso ‑ declarou Nicholas. ‑ A minha invenção não está habituada a estes pedidos.

‑ Invenção! O que diabo vem para cá fazer isso? ‑ gritou o empresário.

‑Tudo, meu caro senhor!

‑ Nada, meu caro senhor ‑ retorquiu o homem com evidente impaciência. ‑ Sabe francês?

‑ Perfeitamente!

‑ Admirável ‑ disse o empresário, abrindo a gaveta da mesa e tirando um rolo de papéis, que deu a Nicholas. ‑ Aí tem! Traduza isso para inglês e ponha o seu nome na página da frente. Diabos me levem ‑ acrescentou Mr. Crummles zangado ‑ se o não tinha feito há mais tempo se tivesse na companhia um homem ou uma mulher que dominasse a língua e pudesse ler o original para poder ser representado em inglês!

Nicholas sorriu e meteu a peça na algibeira.

‑ O que vai fazer sobre os seus alojamentos? ‑ inquiriu Mr. Crummles.

Nicholas não pode deixar de pensar que, para a primeira semana seria uma invulgar conveniência arranjar uma cama na plateia, mas limitou‑se a observar não ter ainda pensado nisso.

‑ Então venha para mira c, ‑ ofereceu Mr. Crummles

‑e os meus rapazes podem ir consigo depois do jantar mostrar‑lhe os melhores sítios.

A oferta não era de recusar; Nicholas e Mr. Crummles deram o braço a Mrs. Crummles e subiram a rua em majestosa ordem, Smike, os rapazes e o fenómeno, foram para casa por um caminho mais curto, e Mrs. Grudden ficou para trás para comer um estufado frio à irlandesa e beber um copo de cerveja na bilheteira do teatro.

Mrs. Crummles pisava a calçada como se fosse para a forca com a consciência tranquila. Mr. Cnumrres assumiu um ar de déspota, mas foram ambos reconhecidos por muitas pessoas que passavam. O par vivia em St. Thoma s Street, na casa dum piloto chamado Bulph.

‑ Seja bem‑vindo ‑ disse Mrs. Crummle, voltando‑se para Nicholas quando chegaram à casa da frente, que tinha uma sacada envidraçada de forma redonda.

Nicholas curvou‑se num agradecimento e sentiu‑se verdadeiramente contente por ver a mesa posta.

‑ Só temos sopa de carne com molho de cebolas ‑ informou Mrs. Crumxnles muma voz sepulcral ‑ mas, tal como é, pedims‑lhe que compartilhe do nosso jantar.

‑ A senhora é muito boa ‑ disse Nicholas ‑ e eu far‑lhe‑ei todas as honras.

‑ Vincent ‑ perguntou a Mrs ‑ que horas são?

‑ passam cinco minutos da hora de jantar ‑ respondeu Mr. Crummles.

Mrs. Crunzrnles tocou a campainha.

‑Ponha o carneiro e o molho de cebolas na mesa. A escrava que servia os hóspedes de Mr. Bulph desapa receu para tornar a aparecer depois dum curto intervalo, com o banquete. Nicholas e a criança fenómeno ficaram em frente um do outro à mesa de Pembroke, o Smike e os Misters jantaram num sofá‑cama.

‑ A gente daqui é do teatro? ‑ inquiriu Nicholas.

‑ Não ‑ replicou Mr. Crummles, abanando a cabeça. Muito longe. muito longe!

‑ Tenho pena deles ‑ observou Mrs. Crummles.

‑ Também eu ‑ opinou Nicholas ‑ se não têm gosto pelos entretenimentos teatrais.

‑ Não têm nenhum, sir ‑ retorquiu Mr. Crunzmes. ‑ No benefício do fenómeno, o ano passado, na ocasião em que ela repetia três dos nossos mais populares caracteres e aparecia também na Fairy Porcupineii, houve casa que não rendeu mais de quarenta e oito libras.

‑ Será possivel? ‑ exclamou Nicholas.

‑ E duas libras dessas foram a crédito, papá ‑ lembrou o fenómeno.

‑ E duas libras foram a crédito ‑ repetiu Mr. Crummles. Mrs. Crummles representou por puro comprazer.

‑ Mas há sempre um auditório agradável ‑ comentou a mulher do empresário.

‑ Iiá muitos ouintes, quando têm bom desempenho. verdadeiro bom desempenho. uma coisa verdadeira ‑ retorquiu Mr, Crummles com violência.

‑ Dá lições, ma'am ‑ perguntou Nicholas.

‑ Dou ‑ respondeu Mrs. Crummles.

‑Suponho não haver ensino por aqui.

‑Houve ‑ informou Mrs. Crummles. ‑ Tenho recebido aqui alunos. Dei instrução à filha do fornecedor de navios mes verificou‑se que ela era anormal quando veio a primeira vez. Foi muito extraordinário ter vindo em tais circunstâncias.

Não tendo a absoluta certeza disso, Nicholas achou melhor calar‑se.

‑ Deixe‑me ver ‑ disse o empresário, cogitando depois do jantar. ‑ Gostaria de desempenhar um pequeno papel bonito com a criança?

‑ O senhor é muito amável ‑ respondeu Nicholas apressadamente ‑ mas julgo melhor trabalhar com alguém do meu tamanho, no caso de me mostrar desajeitado. Parece‑me que me sentiria mais à vontade.

‑ Tem razão ‑ retorquiu o empresário. ‑ Talvez, e depois chegará a ocasião de contracenar com ela.

‑ Certamente ‑ replicou Nicholas, esperando que se passasse muito tempo antes de ser honrado com tal distinção.

‑Então vou‑lhe dizer o que vamos fazer. Estudarei o papel de Romeu quando tiver feito essa peça. A propósito, não se esqueça de lá meter a bomba e os tubos. Julieta é Miss Snevellicci, a velha Grudden, a ama. Sim, assim está bem. O Rover também. o senhor podia animar o Rover enquanto estiver ocupado com isso, e Cassio e Jeremy Diddler. O senhor facilmente pode atirá‑los a terra: um papel ajuda bastante o outro. Aqui estão os papéis e o resto.

Com estas rápidas instruções Mr. Crummles atirou para as mãos de Nicholas uma quantidade de livrinhos e, pedindo ao filho mais velho para ir com ele e mostrar‑lhe onde eram os alojamentos, apertou‑lhe a mão e desejou‑lhe boa‑noite.

Em Portsmouth não havia falta de quartos confortavelmente mobilados, nem dificuldade em encontrar alguns proporcionados às mais magras finanças, mas os primeiros eram bons demais e os outros maus demais, portanto Nicholas começou a pensar seriamente em pedir licença para passar a noite no teatro. Contudo acabaram por dar com dois pequenos quartos num terceiro andar, por cima duma tabacaria, em Common Hard, uma rua suja que ia dar às docas. Nicholas alugou-os muito feliz por não lhe pedirem o pagamento antecipado duma semana.

‑Irra! Descarrega a bagagem, Smike ‑ convidou ele depois de ter acompanhado o jovem Cnles à escada. Vivemos em tempos estranhos e só Deus sabe o fim deles. Mas estou cansado com os acontecimentos destes trés dias e as reflexões ficam para amanhã... se puder!

 

O benefício de Miss Snevelliccz e a primeira apresentação de Nicholas no palco.

Pela manhã cedo já Nicholas estava levantado, mas mal tinha começado a vestir‑se quando ouviu passos a subirem as escadas, sendo saudado por Mr. Folair, o pantomineiro, e Mr. Lenville, o dramaturgo.

‑ Lar! lar! lar! ‑ exclamou Mr. Folair.

‑ Malditos sejam estes tipos ‑ pensou Nicholas. ‑ Suponho que vêm ao cheiro do pequeno almoço. Abro-lhes daqui a pouco a porta, se esperarem um instante.

Os cavalheiros disseram‑lhe para se não apressar e, como meio de passarem o tempo, puseram‑se a esgrimir com as bengalas no pequeníssimo patamar, incomodando os hóspedes de baixo.

‑ Podem entrar ‑ avisou Nicholas quando acabou de se arranjar. ‑ Em nome de tudo o que há de mais horrível acabem com esse barulho!

‑ Que invulgar caixinha tão apertada ‑ comentou Mr. Lenville, entrando no quarto da frente e tirando o chapéu antes de ver que o tecto lhe não consentia este gesto de delicadeza. Que buraco!

‑Para um homem com o prazer da comodidade é uma brincadeira ser pequeno demais ‑ ripostou Nicholas. ‑ Há uma grande conveniência em poder chegar a qualquer coisa que se queira, do tecto ou do chão, ou de qualquer lado do quarto, sem sair da cadeira, vantagens estas que só podem ter os quartos de tamanho limitado.

‑Não é por demais reduzido para um homem solteiro ‑ retorquiu Mr. Lenville. ‑ Isto lembra‑me. a minha mulher, Mr. Johnson. terá algum papel bom nesta sua peça?

‑A noite passada dei uma vista de olhos pelo exemplar francês ‑ confessou Nicholas. ‑ Parece‑me que deve ser muito boa.

‑ O que pensa dar‑me, caro amigo? ‑ perguntou Mr. Lenville, atiçando o lume com a bengala e limpando‑a depois à aba do casaco. ‑ Qualquer coisa de áspero e grosseiro?

‑Você põe a sua mulher e o seu filho mais novo fora de casa ‑ anunciou Nicholas ‑ e num acesso de raiva e de ciúme apunhala o seu filho mais velho na biblioteca.

‑ Ainda que isso me desagrade ‑ exclamou Mr. Lenville ‑ é um belo papel.

‑ Depois ‑ continuou Nicholas ‑ é perseguido pelos remorsos até ao último acto, quando se prepara para se matar. Mas quando está a levar a pistola à cabeça, um relógio dá horas. dez.

‑ Compreendo ‑ comentou Mr. Lenville ‑ muito bom.

‑ Pára ‑ prosseguiu Nicholas ‑ lembra‑se de ter ouvido um relógio bater as dez horas na sua infância. A pistola cai‑lhe da mão... está vencido. Desfaz‑se em lágrimas e torna‑se depois pessoa exemplar e virtuosa para sempre.

‑Excelente! ‑ exclamou Mr. Lenville. ‑ uma carta certa! Se o pano descer com um toque tão natural como será um sucesso triunfante.

Há qualquer coisa boa para mim? ‑ inquiriu Mr. Folair, ansiosamente.

‑ Deixe‑me ver ‑ disse Nicholas. ‑ O senhor faz de criado fiel e afeiçoado; é posto fora com a esposa e a criança.

‑ Sempre ligado a esse infernal fenómeno ‑ suspirou Mr. Folair ‑ e suponho que vamos para alojamentos pobres, onde não recebo qualquer salário mas onde há sentimentalismo?

‑ Ah! sim! ‑ respondeu Nicholas. ‑ É esse o decorrer da peça.

Preciso ter uma dança de qualquer género, bem sabe.

‑ objectou Mr. Folair. ‑ Terá de introduzir uma pára o fenómeno, assim será melhor fazer um Fas de deur e poupa tempo.

‑ Nada mais fácil ‑ observou Mr. Lenville, espiando os olhares perturbados do jovem dramaturgo.

‑ Palavra que não vejo como se há‑de encaixar isso ‑ ripostou Nicholas.

‑ O quê! Não é claro? ‑ raciocinou Mr. Lenville. ‑ Abençoado seja o Senhor! Quem não vê a forma de o fazer? Agarra na aflita senhora na criancinha e no fiel servo e põe-nos nuns alojamentos pobres, não é verdade? A desgraçada senhora cai numa cadeira e esconde a cara num lenço. Porque está a chorar mamã?, pergunta a criatura. Não chore, mamã, se não também eu choro! E eu! declara o criado, esfregando os olhos com o braço. O que é que lhe pode levantar o moral, querida mamã?. O que podemos nós fazer?

Oh! Pierre! exclama a aflita senhora, Como posso eu afastar estes dolorosos pensamentos!

Experimente-me, ma'am, experimente-me, convida o fiel criado, Lembras‑te daquela dança, meu leal amigo, que em dias mais felizes dançaste com este querido anjo? Nunca deixou, então, de me acalmar o espírito. Que eu a veja ainda uma vez antes de morrer!

eles começam, parece‑me a coisa mais natural, não é, Tommy?

‑ mesmo ‑ replicou Mr. Folair. ‑ A pobre senhora, ven cida por antigas recordações, desmaia no fim da dança e aí tem um quadro.

Aproveitando estas e outtras lições, resultado da experiência pessoal de dois actores, Nicholas de boa vontade lhes deu o melhor pequeno almoço que pôde e quando, por fim se viu livre deles, atirou‑se ao trabalho, não se sentindo, de forma alguma, descontente por ver que era muito mais fácil do que ao princípio supusera. Trabalhou afincadamente todo o dia e só deixou o quarto à noite, quando foi para o teatro, onde se dirigira Smike antes dele.

As pessoas aqui tinham mudado muito: Mr. Lenville era um guerreiro prometedor; Mr. Crummles um bandido highland; um dos velhos cavaleiros, um carcereiro e o outro um venerável patriarca; o cómico, um combatente de grande valor; cada um dos Misters Crummles um príncipe com as suas prerrogativas e o triste enamorado, um desalentado cativo. Estava pronto um banquete para o terceiro acto, consistindo em duas taças de sir‑tafl, um prato de bolaches, uma garrafa preta e um galheteiro.

Nicholas estava em pé, com as costas para o pano, contemplando a primeira cena, que constava duma arcaria gótica, coisa de dois pés mais baixa que Mr. Crumxnles e pela qual ele tinha de entrar. O empresário acercou‑se familiarmente dele e perguntou‑lhe:

‑ Já esteve lá fora, esta noite?

‑ Não ‑ protestou Nicholas. ‑ Ainda não Vou ver o espectáculo!

‑ Tivemos uma venda excelente ‑ declarou Mr. Crummles.

‑ Quatro lugares do centro na primeira fila e todo o camarote de boca!

‑ Oh! Na verdade! ‑ exclamou Nicholas. ‑ Uma família, suponho eu?

‑ Sim ‑ replicou Mr. Crunles ‑ Sim. É uma coisa comovedora. São seis crianças e não vêm a não ser quando o fenómeno representa.

Teria sido difícil para alguém ir ao teatro numa noite em que o fenómeno não representasse, pois todas as noites fazia, pelo menos, um papel quando não dois e três. Mes Nicholas, simpatizando com os sentimentos dum pai, não se permitiu referir‑se a esta circunstância e Mr. Crummles continuou a conversar, ininterruptamente, com ele:

‑ Seis ‑ repetiu este cavalheiro ‑ pai e mãe, oito, tia, nove, governanta dez, a avó e o avô, doze. Depois há o lacaio que fica de fora com um cesto de laranjas e um tabuleiro de torradas e água, vendo o espectáculo de graça pelo vidro da almofada da porta do camarote. é barato por um guinéu eles ganham ficando com o camarote.

‑ Espanta‑me como o senhor permite tanto ‑ observou Nicholas.

‑ Não há outro remédio ‑ retorquiu Mr. Crunneles. Isto espera‑se sempre no campo. Se há seis crianças aparecem seis pessoas para as fazerem entrar. Um camarote de família leva sempre o dobro. Toque para a orquestra, Grudden.

A amável senhora assim o fez e daí a pouco os três rabequistas faziam‑se ouvir. Isto prolongou‑se até se supor que a paciência do público aguentaria, pondo‑se depois um moço com outro toque de campainha, que, sendo o sinal de convenÇão, fez a orquestra tocar uma variedade de canções populares com involuntárias variações.

Miss Snevellicci saiu do camarim do empresário emtoda a glória da musselina branca com uma orla dourada; Mrs. Crummles era a digna esposa dum bandido; Miss Bravassa era a amiga confidente de Miss Snevellicci; e Miss Belvawney um pajem vestido de seda branca, fazendo o seu dever em toda a parte, e aspirando a viver e a morrer ao serviço de toda a gente. A acção era muitíssimo interessante. Não pertencia a uma determinada época, povo ou país e era isso, talvez, o mais delicioso; e ninguém era capaz de prever o desenrolar da peça. Um bandido, tendo sido bem sucedido nas suas proezas, vem para casa em triunfo, ao som de gritos e das rabecas, para cumprimentar a esposa, uma senhora de intelecto masculino, falando muito dos ossos do pai, que pareciam estar insepultos, não se sabendo se por um gosto do velho senhor, ou por negligência dos parentes. A esposa do bandido estava em ligação com um patriarca que vivia num castelo distante e era pai de várias das personagens, mas não sabia exactamente de quais, desconhecendo se trouxera para o castelo os verdadeiros ou os falsos filhos, mas estando inclinado para esta última hipótese; sentindo‑se constrangido, resolveu aliviar o espírito dando um banquete, durante o qual, alguém metido numa capa, avisou Cautela!; este alguém era de todos desconhecido, excepto do público, até mesmo do bandido, que viera ali por razões inexplicadas, mas possivelmente com o olho nas colheres. Havia uma agradável surpresa em certas cenas de amor entre o atormentado cativo e Miss Snevellicci, e o cómico combatente e Miss Bravassa. além disso Mr. Lenville tinha várias cenas trágicas na escuridão, todas frustradas pela habilidade e bravura do cómico combatente e pela intrepidez de Miss Snevellicci, que recompensava a prisão do seu cativo namorado com um cesto de mantimentos e uma lanterna de furta‑fogo. Por fim sabe‑se que foi o patriarca quem tratou os ossos do sogro do bandido com muito desrespeito, por cuja causa e razão a esposa do bandido aparece no castelo para o matar, e como isto é tentado num aposento às escuras, origina uma grande confusão, com tiros de pistola, perdas de vida e luzes de tocha. Depois disto vem o patriarca, que já sabe tudo acerca dos filhos, para casar a gente nova, achando a ocasião óptima, e para isso une-lhes as mãos, com o pleno consentimento do infatigável pajem‑ que é um dos poucos sobreviventes‑aponta com o chapéu para as nuvens, invocando uma benção e faz sinal para o pano descer, o que se efectuou no meio de geral aplauso.

‑ O que pensa disto? ‑ perguntou Mr. Cruneles quando Nicholas voltou para o palco, muito encarnado e cheio de calor por os seus bandidos serem rapazes danados para berrar.

‑Parece‑me que, na verdade, foi excelente! ‑ respondeu Nicholas. ‑ Miss Snevellicci, em especial, foi imvulgarmente bem.

‑ um génio ‑ afirmou Mr. Crummles ‑ um perfeito génio, essa rapariga. A propósito, tenho estado a pensar em levar aquela sua peça na noite do benefício.

‑ Quando? ‑ interrogou Nicholas.

‑ Na noite do benefício dela, na noite do seu espectáculo, quando os amigos e protectores pedirem a representação ‑ informou Mr. Crummles.

‑ Certamente! ‑ disse Nicholas.

‑ Está a ver ‑ continuou Mr. Crummles ‑ numa tal ocasião há a certeza de se poder ir para cantar e mesmo que se não trabalhe completamente como se espera, o risco será dela e não nosso.

‑ O seu, quer dizer! ‑ observou Nicholas.

‑ Eu diss o meu, não disse? ‑ retorquiu Mr Crummles.

‑ Na segunda‑feira da próxima semana. O que diz? O senhor faz a peça e tem a certeza de estar bem dentro do papel de namorado muito antes desse dia.

‑ Nada sei sobre o muito antes ‑ replicou Nicholas - mas por essa ocasião penso poder comprometer‑ me a estar preparado.

‑ Muito bem ‑ prosseguiu Mr. Crummes ‑ então damos o caso por resolvido. Agora quero falar‑lhe duma outra coisa. Nestas representações há umas pequenas solicitações, digamos assim.

‑ Entre os protectores, suponho eu? ‑ perguntou Nicholas.

‑ Entre os protectores, mas o facto é que a Snevellicci tem tido tantos benefícios nesta terra, que precisa duma atracção. Teve um benefício quando lhe morreu a madrasta, outro quando lhe morreu o tio; Mrs. Cruznmles e eu tivemos benefícios no anivrsário do fenómeno, no aniversário do nosso casamento e em ocasiões parecidas, por isso, de facto, há certa dificuldade em arranjar uma boa atracção. Quer o senhor ajudar esta pobre rapariga, Mr. Johnson? ‑ perguntou Crummles, sentando-se em cima dum tambor e tomando uma grande pitada de rapé, com os olhos fixos em Nicholas.

‑ O que quer dizer?

‑Não lhe parece que pode perder meia hora amanhã de manhã para ir com ela a casa de uma ou duas pessoas principais? ‑ murmurou o empresário num tom persuasivo.

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou Nicholas, com um ar de fortíssima objecção. ‑ Não gostaria de fazer semelhante coisa.

‑ A mãe acompanha-a ‑ explicou Mr. Crunnles. O momemto foi‑me sugerido e eu dei a licença para a criança ir. Não haveria absolutamente nada de impróprio ‑ Miss Snevellicci, sir, é a verdadeira personificação da honra. Seria um serviço natural o cavalheiro que vem de Londres, autor da nova peça e actor na nova peça, fazer a primeira apresentação em qualquer das qualidades. isso mobilizaria uma grande enchente, Mr. Johnson.

‑Pesa-me ter que deitar um balde de água fria sobre os protectores de alguém, especialmente duma senhora ‑ explicou Nicholas ‑ mas realmente oponho-me a fazer parte dum grupo que vai fazer pedidos.

‑ O que diz Mr. Johnson, Vincent? ‑ inquiriu uma voz perto do seu ouvido; olhando para o lado viu Mrs. Crummles e a própria Miss Sneaelcci por detrás de si.

- São as objecções, minha querida. ‑ respondeu Mr. Sneaelcci, olhando para Nicholas.

‑ Objecções ‑ exclamou Mrs. Crummles. ‑ É lá possível?

‑ Oh, que não! ‑ disse Miss Snevellicci. ‑ O senhor não pode ser tão cruel. oh, meu Deus. Bem, eu.

agora isso depois de ter alimentado a esperança!

‑ Mr Johnson não persistirá, minha querida ‑ tranquilizou Mrs Cotmtnles. ‑Julgue‑o melhor do que ele se supõe. Galantaria, humanidade, todos os velhos sentimentos da sua natureza têm de ser recrutados em prol desta interessante causa, Que enternece mesmo um empresário ‑ afirmou Mr. Crummles.

‑ E a mulher dum empresário ‑ acrescentou Mrs. Crumles com a sua habitual voz de tragédia. ‑ Vamos, vamos, o senhor comove-se! Sei que sim.

‑ Não está no meu modo de ser ‑ informou Nicholas comovido por estes apelos ‑ resistir a qualquer pedido, a não ser que seja para fazer alguma coisa positivamente prejudicial. Além dum sentimento de orgulho não sei de coisa alguma que me impeça de aceder. Não conheço aqui ninguém, nem ninguém me conhece. Seja! Então, assim, rendo‑me!

Miss Snevellicci corou imediatamente e desfez‑se em expressões de gratidão, de que também não foram parcos Mr, e Mrs. Crummles. Ficou combinado que Nicholas iria ter com ela, ao seu alojamento, às onze horas da manhã, e em seguida separaram‑se: ele para regressar a casa, para a sua peça; Miss Snevellicci para se vestir para o após peça; e o desinteressado empresário e a esposa para discutirem os prováveis ganhos do futuro benefício, do qual teriam dois terços dos proventos por solene tratado de convenção.

À hora estipulada da manhã seguinte, Nicholas apareceu no alojamento de Miss Snevellicci, situado na Lombard Street, em casa dum allaiate. Um forte cheiro a ferro invadiu o pequeno corredor logo que a filha do alfaiate abriu a porta.

‑ Miss Snevellicci mora aqui? ‑ perguntou Nicholas quando lhe abriram a porta.

A filha do alfaiate respondeu afirmativamente.

‑Quer ter a bondade de lhe dizer que Mr. Johnson está aqui?

‑ Tem de subir, se faz favor! ‑ replicou a filha do alfaiate com um sorriso.

Nicholas seguiu a jovem e entrou num pequeno aposento do primeiro andar, comunicando com um quarto des traseiras, no qual, a julgar por umas tilintadelas abafadas, Miss Snevelucci estava a tomar o pequeno almoço na cama.

‑ Tem de esperar se faz favor ‑ disse a lilha do alfaiate depois dum curto período de ausência, durante o qual as tilintadelas no quarto haviam cessado, substituídas por um segredar. ‑ Ela não demora!

Enquanto falava levantou o estore da janela, tendo por este modo distraído a atenção de Mr. Johnson do quarto para a rua, e apanhou alguns artigos que estavam a arejar e saindo depois.

Não vendo coisas interessantes na rua, Nicholas voltou os olhos para o quarto. Num sofá estava uma velha viola e vrias músicas, papelotes em desordem, junto com um confuso monte de programas e um par de sapatos verde e branco com rosetas azuis, muito sujas. Pendente das costas duma cadeira estava um avental de musselina, meio acabado. A um canto estavam umas pequenas botas amarelas, que Miss Snevellicci costumava usar quando fazia de jockey.

Mas o objecto mais interessante era, talvez, um álbum aberto em cima da mesa, no qual havia várias críticas da representação de Miss Snevellicci, extraídas de diversos jornais da província, juntamente com uns versos feitos em sua honra, começando:

Canta, Deus do Amor e explica-nos a razão

por que veio da terra Snevelliccz, esta mega ilusão, Encantando-nos com o seu sorriso, olhares e ais. . Canta, Deus do Amor, não nos faças sofrer mais!

Além desta efusão havia inumeráveis alusões complementares, também extraídas de jornais, tais como ‑ Soubemos por um anúncio publicado noutra página do nosso jornal de hoje, que a encantadora e muito talentosa Miss Snevellicci faz o seu benefício na quarta‑feira, para cuja ocasião vai ter um programa que deve despertar o riso no peito dum misantropo. Confiando que os nossos conciddadãos não tenham perdido a percepção das aptidões públicas e do mérito particular, qualidades em que tanto se ten sempre distinguido, predizemos que esta encantadora actriz será saudada por uma casa à cunha. Aos nossos correspondentes ‑ J S. está mal informado supondo que a muito talentosa e bonita Miss Sneveuicci, que à noite cativa os nossos corações no seu lindo e cómodo teatrinho, não é a mesma senhora a quem ultimamente fez honrosas propostas o jovem cavalheiro de imenssa fortuna residindo num raio de cem milhas da cidade de York. Temos razões para saber que Miss Snevellicci é a senhora que foi implicada nese romântico e misterioso assunto e cuja conduta nessa ocasião não menos honrou a sua cabeça e o seu coração do que os triunfos do seu brilhante génio. Uma copiosa variedade de períodos, tais como est, com compridos benefícios, todos encabeçados por letras maiúsculas, formavam o principal conteúdo do álbum de Miss Snevellicci.

Nicholas leu uma quantidade destes extractos e estava absorvido melancolicamente no decorrer dos acontecimentos que haviam levado Miss Snevellioci a torcer o tornozelo por ter escorregado numa casca de laranja deitada por um monstro com forma humana ‑ assim dizia o jornal ‑ para o palco de Peter, quando esta mesma jovem, com um chapéu parecido com um cesto de carvão e um vestido de passeio, entrou no quarto, pedindo mil desculpas por o ter detido tanto tempo depois da hora combinada.

‑ Mas na verdade ‑ explicou Miss Snevellicci ‑ a minha querida Ired, com quem vivo aqui, esteve tão doente esta noite, que julguei que me ia expirar nos braços.

‑ Um tal destino é quase para ser invejado ‑ retorquiu Nicholas. ‑ No entanto, sinto bastante o facto.

‑ Como o senhor é lisonjeiro! ‑ comentou Miss Snevellicci, abotoando a luva com muita confusão.

‑ Se é lisonja admirar os seus encantos e perfeições - observou Nicholas, pondo a mão em cima do álbum ‑ a senhora tem aqui melhores espécimes.

‑ Cruel criatura, a ler coisas como essas! Estou quase envergonhada em olhá‑lo ‑ confessou Miss Snevellicci, agarrando no livro e pondo‑o num armário. ‑ Como a Led é descuidada! Como se pode ser tão travessa?

‑Pensava que a senhora o tinha amavelmente deixado aqui para eu o ler ‑ disse Nicholas.

‑ Por nada na vida lho teria mostrado ‑ replicou Miss Snevellicci. ‑ Nunca me senti tão vexada... nunca! Mas ela é uma pessoa tão descuidada que não nos pode inspirar confiança.

A conversa foi interrompida neste ponto pela entrada do fenómeno, que discretamente se deixara ficar na cama até este momento e se apresentava com muita graça e leveza, trazendo na mão uma pequena sombrinha verde, com uma larga franja por guarnição, e sem cabo. Depois duma breve troca de palavras saíram.

O fenómeno era uma companhia bastante maçadora pelos vários acidentes sucedidos durante o caminho com as suas peças de vestuário, mas como era a filha do empresário, Nicholas levou tudo com bom humor e continuou a andar de braço dado com Miss Snevellicci dum lado e a criança do outro.

A primeira casa onde foram era dum tal Mr. Crudle. Depois de Miss Snevellicci ter batido à porta, apareceu um mandarete que, em resposta à pergunta da actriz, disse não saber se Mrs. Crudle estava em casa, e mandou‑os entrar para a sala de espera, até que por fim reapareceu pedindo para Miss Snevellicci esperar.

As pessoas melhor informadas supunham Mrs. Crudle perfeitamente integrada no gosto londrino da literatura e do dra ma. Mr. Crudle, que havia escrito um folheto de sessenta e quatro páginas sobre o papel da ama do falecido marido no Romeu e Julieta, onde provava que, alterando o modo de pontuação em qualquer das peças de Shakespeare lhe deturpava o sentido, era tido como um grande crítico, um profundo pensador e muitíssimo original.

‑ Então como passa, Miss Snevellicci? ‑ perguntou Mrs. Curdle, entrando na sala.

Miss Snevellicci fez uma graciosa reverência e esperava que Mrs. Curdle estivesse de saúde, assim como Mr. Curdle que apareceu nesta ocasião. Mrs. Curdle estava envolta num roupão com uma pequena touca no alto da cabeça. Mr. Curdle usava um roupão solto nas costas e tinha o indicador da mão direita na testa, como os retratos de Sterne, com quem alguém dissera que ele possuía impressionantes semelhanças.

‑Tomei a liberdade de vir com o intuito de pedir a sua cooperação para o meu benefício, maam ‑ disse Miss Snevellicci mostrando os predicados.

‑ Óh, realmente não sei o que dizer ‑ respondeu Mrs. Curdle. ‑ Não é o mesmo como quando o teatro estava nos seus dias de glória. ‑ não precisa estar em pé, Miss Snevellicci

‑ o drama morreu. positivamente, morreu!

‑ Como uma delicada materialização des visões dos poetas e uma realização da intelectualidade humana, dourando com refulgente luz os nossos momentos sonhadores, expostos num mundo novo e mágico perante a nossa mentalidade, o drama morreu, positivamente morreu ‑ acrescentou Mr. Crudle.

‑ Que homem há agora vivo, que possa apresentar perante nós todas aquelas cores prismáticas e mutáveis com as quais o papel de Hamlet está escrito? ‑ exclamou Mrs. Curdle.

‑ Que homem, na verdade. no palco? ‑ perguntou Mr Curdle, com uma pequena reserva para si próprio. ‑ Hamlet! Ridículo! O Hamlet positivamente desapareceu!

Completamente vencidos por estas sombrias reflexões, Mr. e Mrs. Curdle suspiraram e não falaram algum tempo. Por fim, a senhora, voltando-se para Miss Snevellicci, perguntou‑lhe que peça propunha levar.

‑ Uma peça absolutamente extraordinária, cujo autor é este senhor e na qual ele entra, sendo a sua estreia no palco. O nome deste senhor é Mr. Johnson.

‑Espero que tenha o uma certa harmonia, sir ‑ disse Mr. Curdle.

‑ A peça original é francesa ‑ informou Nicholas. ‑ Há abundância de incidentes, diálogos brilhantes, personagens fortemente marcadas.

‑Tudo inútil sem uma estreita observância de relações, sir ‑ objectou Mr. Curdle. ‑ Antes de tudo as identidades do drama.

‑ Posso perguntar‑lhe ‑ inquiriu Nicholas, hesitando entre o respeito que devia manter e o seu amor pelo fantástico - a que relações se refere?

Mr. Curdle tossiu e considerou.

‑ As relações, sir ‑ explicou ele ‑ são um complemento, uma espécie de junção universal com vista ao lugar e ao tempo... um género duma indivisão geral, se posso permitir‑me esta expressão tão forte. Tenho estas como sendo as relações dramáticas, tanto quanto a atenção que me tem sido permitido dar‑lhes e pelo muito que tenho lido e pensado. Recordando as representações desta criança ‑ continuou Mr. Curdle, voltando-se para o fenómeno ‑ acho uma relação de sentir, uma largueza de vistas, uma luz e sombra, uma colaboração forte, um tom, uma harmonia, uma ardência, um desenvolvimento artístico de concepções originais, as quais procuro em vão entre esecutantes mais velhos. Não sei se me fiz entender.

‑ Perfeitamente ‑ garantiu Nicholas.

‑Pois é essa a minha definição das relações do drama - disse Mr. Curdle, puxando o lenço do pescoço para cima. Mrs. Curdle escutara com muita complacência esta lúcida explicação. Acabada ela perguntou a Mr. Curdle o que pensava sobre inscrever os seus nomes.

‑ Não sei, minha querida! Palavra que não sei! ‑ afirmou Mr. Curdle. ‑ Se os inscrevermos deve‑se entender implicitamente que não nos comprometemos pela qualidade dos desempenhos. O mundo tem de saber que não damos a sanção dos nossos nomes, e que conferimos a distinção meramente a Miss Snevellicci. Ficando isto claramente indicado como uma obrigação de não devermos estender a nossa protecção a um palco sem classe, mesmo por amor das coisas a que está ligado. Pode trocar‑me dois xelins e seis pence por meia coroa, Miss Snevellicci? ‑ perguntou Mr. Curdlle, apresentando quatro destas moedas.

Miss Snevellicci procurou en todos os cantos da bolsa cor de cravo, mas não havia nada em qualquer deles. Nicholas murmurou uma graça a propósito dele ser o autor e pensou ser melhor não procurar nas algibeiras.

‑ Deixe‑me ver ‑ disse Mr. Curdle ‑ duas vezes quatro são oito. quatro xelins uma cadeira para os camarotes, Miss Snevellicci, é excessivamente caro no presente estado do drama; três meias coroas são sete xelins e meio; não questionamos por seis pence, julgo eu. Seis pence não têm importância, pois não, Miss Snevellicci?

A pobre Miss Snevellicci recebeu as três meias coroas com muitos sorrisos e reverências, e Mrs. Curdle, juntando várias indicações suplementares relativas à reserva dos lugares, à limpeza das cadeiras e ao envio de dois programas, tão depressa saissem, tocou a campainha como um sinal para o fecho da conferência.

‑ Que gente tão singular! ‑ comentou Nicholas, quando saíram da casa.

‑Asseguro‑lhe ‑ replicou Miss Snevellicci, agarrando‑lhe no braço‑ que me sinto muito feliz por não ficarem a dever todo o dinheiro em vez de serem só os seis pence. Agora se o senhor for bem sucedido, darão a entender a toda a gente que o têm sempre patrocinado mas se o senhor falhar, afirmam ter tido a certeza disso desde o princípio.

Na próxina casa que visitaram tiveram pouca sorte, pois viviam lá seis crianças entusiastas das actuações do fenómeno, as quais, sendo crianças, manifestaram a este as suas atenções conforme a idade.

‑Certamente persuadirei Mr. Borum a ficar com um ca marote ‑ informou a dona da casa, depois duma atenciosíssima recepção. ‑ Levarei apenas duas crianças e o resto do grupo será composto por cavalheiros, seus admiradores, MIss Snevellicci. Augustus, seu travesso, deixe a menina sossegada!

Esta advertência era dirigida a um homenzinho que belis cava o fenómeno pela parte de trás para ter a certeza se a criança era verdadeira.

‑ Estou couvencida de que deve estar muito cansada - disse a mamã, voltando-se para Miss Snevellicci. ‑ Não posso pensar em deixá‑la sair sem primeiro tomar um copo de vinho! Irra, Charlotte, estou envergonhada contigo! Miss Lane, minha querida, peço para olhar pelas crianças!

Miss Lane era a governanta e esta recomendação tornava‑se necessária em vista do inopinado procedimento de Miss Borum, que, tendo-se apropriado da pequena sombrinha verde do fenómeno, estava a brincar com ela, enquanto a pobre criança olhava muito atrapalhada.

‑Tenho a certeza de nunca ter visto representar como a senhora ‑ afirmou a bem humorada Mrs. Borum, voltando‑se outra vez para Miss Snevellici. ‑Não posso compreender... Emma, não estejas assim embasbacada. como ri numa peça e chora na outra, e sempre tão natural em tudo. Oh, meu Deus!

‑Tenho muito prazer em ouvi‑la exprimir uma opinião tão favorável ‑ agradeceu Miss Snevellicci. ‑ É um prazer saber que gosta da minha forma de representar.

‑ Gostar? ‑ exclamou Mrs. Borum. ‑ Quem pode deixar de gostar? Se pudesse ia duas vezes por semana ao teatro. Sou doida por ele. apenas, a senhora algumas vezes chega a abalar‑me! Põe-me em tal estado. as suas cenas de choro! Deus seja louvado, Miss Lane, como pode consentir que eles atormentem assim essa pobre criança?

O fenómeno, de facto, estava em risco de ser despedaçado membro a membro pelos endiabrados rapazes, que o puxavam em diferentes direcções, como se fosse uma prova de resistncia. Miss Lane estava muito ocupada em contemplar os actores mais crescidos para prestar atenção a uma coisa que felizmente, não teve consequências.

Foi uma manhã trabalhosa pelas muitas visitas a fazer e aturar os diversos desejos e gostos de cada uma das pessoas. Por fim, a e pouco e pouco, omitindo uma coisa aqui e acrescentando outra acolá, Miss Snevellicci empenhou‑se em compor um programa que fosse bastante compreensivo, ainda que não tivesse outro mérito, incluía entre outras ninharias, quatro peças, diversas canções, uns poucos de combates e várias danças, e voltaram para casa muitíssimo exaustos com o seu trabalho.

Nicholas atirou‑se à peça, que foi rapidamente posta em ensaio e depois estudou com grande perseverança o seu papel e desempenhou-o ‑ como toda a companhia dizia ‑ na perfeição. O grande dia chegou por fim. O pregoeiro, armado duma campainha, percorreu as ruas a anunciar o espectáculo. Foram postos cartazes em todas as direcções. Foram também colados às paredes, embora sem um grande sucesso, por o oficio ter sido desempenhado por um analfabeto, durante a indisposição do habitual colador de cartazes, dando como resultado ficar uma parte posta de lado e outros de cabeça para baixo.

As cinco e meia houve uma corrida de quatro pessoas para a porta da galeria; a um quarto para as seis as pessoas eram, pelo menos, uma dúzia; às seis horas os pontapés eram terríveis; e quando o mais velho dos Misters Crummles abriu a porta, foi obrigado a recuar para salvar a vida. Nos primeiros dez minutos foram cobrados quinze xelins por Mrs. Crudden.

Por detrás do palco, a mesma excitação. Miss Snevellicci transpirava tanto que a pintura mal se retinha na cara; Mrs. Crunnzles estava tão nervosa que quase se não recordava do papel. Os caracóis de Miss Bravassa desfizeram-se com o calor e a excitação; mesmo o próprio Mr. Crummles se pôs a espiar por um buraco do pano e corria para a rectaguarda, de vez em quando, para anunciar a chegada doutro homem à plateia.

Por fim, a orquestra foi‑se embora e o pano subiu para a nova peça. A primeira cena, em que não havia ninguém de especial, passou‑se bastante calmamente, mas quando Miss Snevellicci entrou na segunda, acompanhada pelo fenómeno a fazer de sua filha, o teatro veio abaixo com os aplausos! A gente do camarote do Borum levantou‑se como um só homem, acenando com os chapéus e os lenços e berrando < Bravo! Mrs. Borum e a governanta atiraram com grinaldas para o palco, caindo algumas nas lâmpadas e outra foi bater na cabeça dum senhor gordo da plateia que, estando a olhar entusiasmado para a cena, não deu pela honra que lhe faziam. O alfaiate e a família davam tantos pontapés nas almofadas dos camarotes superiores, que ameaçavam vir todos juntos parar cá abaixo. O próprio rapaz do ginger‑beer ficou atravessado no meio da casa. Um jovem oficial, que se supunha alimentar uma paixão por Miss Snevellicci, pôs o monóculo no olho para esconder uma lágrima. Miss Snevellicci cada vez se curvava mais em reverências e cada vez mais os aplausos se faziam ouvir. Por fim, quando o fenómeno apanhou uma das grinaldas e a atirou para o lado, caindo sobre os olhos de Miss Snevellicci, o entusiasmo chegou ao mais alto ponto e a representação prosseguiu.

Mas quando Nicholas entrou para a sua excelente cena com Mrs. Crunsrnles, como soaram as palmas! Quando Mrs. Crummles, que era a sua indigna mãe, sorriu com desdém e e ouviu rapaz presunçoso, e ele a desafiou, que tumulto de aplausos! Quando ele questionou com o outro cavalheiro por causa da rapariga e lhe declarou que se ele fosse uma pesoa digna lutaria com ele na sala até a mobília ficar salpicada com o sangue dum deles ‑ ou de ambos! ‑ como os camarotes, a plateia e a galeria seguiram numa enorme aclamação. Quando chamou nomes à mãe, por ela não lhe querer entregar os bens da rapariga, e ela abrandou, fazendo-o abrandar, igualmente, e cair de joelhos para lhe pedir a benção, como soluçavam os espectadores! Quando ele se escondeu por detrás do pano, no escuro, e o perverso parente esgrimiu uma espada afiada em todos os sentidos, excepto para onde as suas pernas eram bem visíveis, que estremecimento de ansioso receio correu por toda a casa! O seu ar, o seu modo de andar, o seu olhar, tudo o que ele disse ou fez, foi objecto de elogio! Cada vez que falava, ouvia-se uma série de aplausos. E quando, por fim, na cena da bomba e dos tubos, Mrs. Grudden acendeu a luz azul e todos os membros da companhia, que não entravam na peça, vieram ‑ não por que tivessem de fazer ali algo, mas para acabarem o quadro ‑ o público que por esta altura aumentara consideravelmente, deu largas a um berro de entusiasmo, como nunca se ouvira dentro daquelas paredes.

Em resumo, o sucesso da nova peça e do novo actor foi completo, e quando Miss Snevellicci foi chamada ao Palco no fim da representação, Nicholas seguiu‑a e compartilhou dos aplausos.

 

Uma jovem senhora vinda de Londres junta‑se à companhia seguida por um admirador de idade madura e tem lugar uma cerimónia em Consequência da chegada de ambos

A peça, sendo decididamente um sucesso, foi anunciada para todas as noites até ordem em contrário, e as noites quando a peça terminou, foram reduzidas de três para duas por semana. Nem foram estes os sinais de sucesso extraordinário: Nicholas, no sábado seguinte, recebeu ‑ devido à infatigável Mrs. Grudden ‑ não menos do que a quantia de trinta xelins. Além desta boa recompensa, criou considerável fama e honra, tendo‑lhe sido oferecido um exemplar do folheto de Mr. Curdle, enviado para o teatro, com o autógrafo do cavalheiro na primeira página, acompanhado com uma nota contendo muitas expressões de aprovação e a certeza, não solicitada, que Mr. Curdle teria muito prazer em lhe ler Shakespeare três horas de manhã, antes do pequeno almoço, durante a sua permanência na cidade.

‑Tenho uma outra novidade, Johnson ‑ anunciou Mr. Crummles uma manhã, com grande alegria.

‑ O que é? ‑ perguntou Nicholas. ‑ o pónei?

‑ Não, não voltaremos ao pónei, enquanto não estiver tudo falhado ‑ disse Mr. Crummles. ‑ Não me parece que voltemos ao pónei por toda esta temporada!

‑ Talvez um rapaz fenómeno? ‑ lembrou Nicholas.

‑ Há só um fenómeno, sir, e este é uma rapariga ‑ replicou Mr. Crmles muito sério.

‑ Lá isso é verdade ‑ concordou Nicholas. ‑ Desculpe‑me, Então não sei o que é!

‑O que diria duma jovem senhora vinda de Londres?

‑ perguntou Mr. Crummles. ‑ Miss Qualquer‑Coisa, do Theatre Royal, Drury Lane?

‑Atrevo‑me a dizer que isso faria muito sucesso nos cartazes ‑ observou Nicholas.

‑ Tem muita razão ‑ retorquiu Mr. Crummes ‑ e se dissesse também que ela causaria uma boa impressão no palco? O que pensa disto?

Com esta pergunta Mr. Crummles desdobrou um cartaz encarnado, um outro azul e um outro amarelo, onde estava escrito em grandes caracteres: Primeira apresentação da incomparável Miss Petowker, do Theatre Royal, Drury Lane.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou Nicholas. ‑ Eu conheço essa senhora!

‑Então está em rlação com o maior talento do mundo

‑ sentenciou Mr. Crummles, enrolando de novo os cartazes - isto é, talento duma certa espécie. duma certa espécie. The Blooddrlnkerv ‑ acrescentou Mr. Cromelechs com um profético suspiro. ‑ Há‑de morrer com essa rapariga; e ela é a única sílfide que ainda vi, podendo estar sobre uma perna e tocar pandeireta como uma sílfide.

‑ Quando chega? ‑ interrogou Nicholas.

‑ Esperámo-la hoje ‑ respondeu Mr. Crummles. ‑ E uma velha amiga da casa de Mrs. Crummles. Mrs. Crummles viu o que ela podia fazer. sempre o soube desde o princípio. Na verdade, ensinou‑lhe quase tudo o que ela sabe. Mrs. Crummles foi o original Blood. drinker.

‑Foi de facto?

‑ Claro. Foi obrigada a ceder-lho.

‑ Zangaram‑se? ‑ perguntou Nicholas, sorrindo.

‑ Não tanto com ela como com o público ‑ respondeu Mr. Crununles. ‑ Ninguém a podia suportar. Era tremendo! Não conhece bem Mrs. Crummles.

Nicholas aventurou‑se a insinuar que pensava conhecê‑la.

‑ Não, não conhece ‑ objectou Mr. Crummles ‑ Eu não a conheço, acredite. Não creio, tão pouco, que o seu país a conheça até ela morrer. Em cada ano da sua vida revela‑se nova prova de talento dessa assombrosa mulher. Repare. mãe de seis filhos, três dos quais vivos e todos no palco.

‑ Extraordinário! ‑ exclamou Nicholas.

‑Sim, é extraordinário, na verdade! ‑ retorquiu Mr. Crummles, tomando uma complacente pitada de rapé e abanando a cabeça gravemente. ‑ Dou‑lhe a minha palavra profissional de que nunca soube que ela dançava, até ao último benefício, tendo então representado a Julieta e Helena Macgregor e, entre as duas peças executou a dança dos marinheiros. A primeira vez que vi essa adorável mulher, Johnson ‑ confidenciou ele, chegando‑se para mais perto e falando num tom de íntima amizade ‑ estava ela com a cabeça sobre a extremidade duma lança, rodeada por fogo de artifício.

‑ O senhor assombra-me! ‑ exclamou Nicholas.

‑ Ela assombrou‑me ‑ respondeu Mr Cnomelec com uma expressão muito séria. ‑ Tal graça aliada a uma tal dignidade fez‑me adorá‑la desde esse momento!

Apesar do objecto destas observações, pôs um repentino ponto final no elogio de Mr. Crummles e quase a seguir Mister Percy Chzmm entrou com uma carta, chegada pelo correio e dirigida à sua graciosa mãe. A vista do sobrescrito Mrs. Cnmunles exclamou:

‑ É de Henrietta Petowker, ia jurar! ‑ e imediatamente se absorveu no seu conteúdo.

‑ Está?. ‑ interrompeu Mr. Crumnles, hesitando.

‑ Está tudo perfeitamente ‑ informou Mrs. Crummles, antecipando a pergunta. ‑ Que coisa excelente para ela, tenho a certeza.

‑ É a melhor coisa que tenho ouvido para bem de todos, penso eu‑afirmou Mr. Crumnles e depois Mr. Crummles, Mrs. Crummles e Mister Crummles desataram a rir desalmadamente. Nicholas deixou‑os a gozar juntos a sua alegria e encaminhou‑se para o seu alojamento muito intrigado sobre que mistério ligado com Miss Petowker podia provocar tal satisfação e ponderando ainda mais a extrema surpresa que essa senhora sentiria pelo seu alistamento numa profissão da qual ela era um ornamento tão distinto quão brilhante.

O encontro dela no teatro, no dia seguinte, com Mr. Crummles foi mais de dois queridos amigos de infância de que o reconhecimento entre um cavalheiro e uma senhora que se encontraram meia dúzia de vezes por mera casualidade. Quanto a Mr. Johnson, a senhora declarou tê‑la visto nos primeiros e mais elegantes círculos, com o que Nicholas não se mostrou surpreendido.

Nicholas teve a honra de contracenar com Miss Petowker nessa noite, numa peça ligeira, e não pôde deixar de notar que o calor da sua recepção provinha dum dos camarotes superiores, a que a encantadora actriz correspondia com olhares muito meigos. Uma das vezes Nicholas pensou que uma forma peculiar de chapéu, no mesmo canto, não lhe era inteiramente desconhecida, mas não se preocupou com isso por causa da grande atenção prestada ao papel, tendo-se‑lhe varrido de todo da memória, quando chegou a casa.

Mal acabara de se sentar para cear com Smike, quando um dos da casa veio à porta anunciar que um cavalheiro, que estava no fundo da escada, desejava falar com Mr. Johnson.

‑ Bem, se ele deseja, ele que suba! ‑ respondeu Nicholas.

‑Suponho que deve ser um dos nossos esfomeados companheiros, Smike.

Este olhou para a carne fria em silencioso cálculo da quantidade que devia deixar para o jantar do dia seguinte e pôs de parte uma fatia que cortara para si a fim do visitante achar menos com que se desforrar.

‑ Não é ninguém que já tenha estado aqui ‑ observou Nicholas ‑ pois a pessoa embirra em todos os degraus. Entre, entre! Em nome da maravilha das maravilhas... Mr. Lillyvick!

Era, na verdade, o cobrador da taxa da água que, contemplando Nicholas com um olhar fixo e uma expressão imóvel, apertou-lhe a mão com a mais portentosa solenidade e sentou‑se numa cadeira junto do canto da chaminé.

‑ Então quando chegoou? ‑ inquiriu Nicholas.

‑ Esta manhã, sir ‑ respondeu Mr. Lillyvick.

‑Oh, compreendo! Então esteve esta noite no teatro e foi o seu.

‑ Este guarda chuva ‑ disse Mr. Lillyvick, expondo um, bastante volumoso, de algodão verde com a ponteira amolgada. ‑ O que pensa daquele desempenho?

‑ Pelo que posso julgar, sendo da profissão! ‑ respondeu Nicholas ‑ Penso ter sido muito agradável.

‑ Agradável! ‑ exclamou o cobrador. ‑ Tenho a ideia, sir, de que foi delicioso.

Mr. Lillyvick inclinou‑se para a frente para pronunciar esta última palavra com grande ênfase e, tendo-o feito, ergueu‑se, franzindo as sobrancelhes e gesticulando com a cabeça muitas vezes.

‑Digo delicioso ‑ repetiu Mr. Lillyvick. ‑ Absorvente, como uma fada, tumultuoso. ‑ E Mr. Lillyvick tornou a erguer‑se, a franzir o sobrolho e a gesticular com a cabeça.

‑ Ah! Sim. é uma rapariga formidável ‑ disse Nicholas, um pouco surpreendido com estas aprovações extasiadas.

‑ uma divindade ‑ replicou Mr. Lillyvick, dando uma dupla ponteirada no chão, com o guarda‑chuva atrás mencionado. ‑ Antes, nunca conheci actrizes divinas, sir. Costumava cobrar, pelo menos costumava ir ‑ e ia com frequência ‑ a casa duma divina actriz para cobrar a água, a qual viveu no meu espírito para cima de quatro anos, mas nunca ‑ não, nunca, sir ‑ de todas as divinas criaturas, actrizes ou não actrizes, vi uma tão divina como Henrietta Petowker!

Nicholas teve muito trabalho para não se rir. Não conseguindo falar, limitou‑se a acenar com a cabeça de acordo com os sorrisos de Mr. Lillyvick e ficou calado.

‑ Deixe‑me dar‑lhe uma palavra em particular ‑ pediu Mr. Lillyvick.

Nicholas olhou bem humorado para Smike, que, percebendo o sinal, desapareceu.

‑ Um solteiro é um desgraçado digno de dó, sir ‑ afirmou Mr. Lilyvick.

‑ É? ‑ perguntou Nicholas.

‑ É ‑ confirmou o cobrador. ‑ Vivi na sociedade durante quase seis anos e sei o que isso é.

‑Deves conhecer, mas se conheces, ou não, é um caso diferente! ‑ pensou Nicholas.

‑Se acontece a um solteiro ter arranjado o seu pé de meia ‑ prosseguiu Mr. Lillyvick ‑ as irmãs, irmãos, sobrinhas, sobrinhos, olham para o dinheiro e não para ele; mesmo se ele, sendo funcionário público, é o chefe da família, ou, como sucede, ser o núcleo em volta do qual giram outros pequenos ramos, desejam que ele morra o mais depressa possível e ficam de queixo caído sempre que o vêem de boa saúde, por desejarem entrar na posse dos seus pequenos bens. Está a ver isto?

‑ Sim ‑ concordou Nicholas. ‑ É muito verdade, sem dúvida.

‑ A grande razão para se não ser casado ‑ continuou Mr. Lillyvick ‑ é a despesa; foi o que me afastou. Senhor ‑ exclamou Mr. Lillyvick, dando estalos com os dedos ‑ podia ter tido cinquenta mulheres!

‑ Formosas mulheres? ‑ interrogou Nicholas.

‑ Formosas mulheres, sir! ‑ respondeu o cobrador. Sim!. não tão formosas como Henrietta Petowker, pois ela é um espécime invulgar, mulheres que não aparecem no carro todos os homens, posso dizer‑lhe. Suponha agora um homem que pode arranjar uma fortuna com uma esposa em vez de.

‑Então ele é um tipo de sorte ‑ replicou Nicholas.

‑ É o que eu digo ‑ confirmou o cobrador ‑ justamente o que eu digo. Henrietta Petowker, a talentosa Henrietta Petowker, tem a fortuna em si e eu vou.

‑ Torná‑la Mrs. Lillyvick? ‑ sugeriu Nicholas.

‑ Não, sir, não fazê‑la Mrs. Lillyvick ‑ retorquiu o cobrador. ‑ As actrizes, sir, conservam sempre os nomes de solteiras ‑ é esta a norma regular ‑ mas vou casar com ela. depois de amanhã!

‑ Os meus parabéns, sir ‑ disse Nicholas.

‑ Obrigado, sir ‑ agradeceu o cobrador, abotoando o colete. ‑ Fico‑lhe com o ordenado, decerto, e espero que no fim de contas seja aproximadamente tão barato sustentar dois como um só; é uma consolação.

‑ Certamente não precisa de nenhuma consolação num tal momento ‑ observou Nicholas.

‑ Não ‑ replicou Mr. Lillyvick, agitando a mão nervosamente ‑ não. decerto!

‑Mas como vieram ambos para aqui, se se vão casar, Mr. Lillyvick? ‑ quis saber Nicholas.

‑ É isso que lhe venho explicar ‑ respondeu o cobrador da água. ‑ O facto é que achei melhor conservar isto em segredo para a família.

‑ Família? Que familia? ‑ estranhou Nicholas.

‑ Os Kenwigses evidentemente ‑ informou Mr. Lillyvick.

‑Se a minha sobrinha e os filhos soubessem uma palavra disto antes de me vir embora, desmaiavam e não me deixariam sair até jurar não casar com pessoa alguma. ou interditavam‑           me por loucura, ou qualquer outra coisa terrivel ‑ concluiu o cobrador, a tremer.

‑ Com certeza ‑ afirmou Nicholas ‑ sim, não há dúvida que teriam ciúmes!

‑ Para evitar isso ‑ continuou Mr. Lillyvick ‑ combinámos que Henrietta Petowker viesse ter com os seus amigos, os Crummles, com a pretensão de ser contratada e eu fosse para Guildford na véspera e me encontrasse na diligência com ela, o que fiz vindo com ela de Guildford. Com medo de que o senhor escrevesse a Mr. Noggs e pudesse dizer‑lhe alguma coisa a nosso respeito, pensei ser melhor metê‑lo no segredo. Sairemos para o casamento dos aposentos dos Crummles e teremos muito prazer em o ver lá, quer antes da cerimónia, quer ao copo‑de‑água. Não será dispendioso, ãem si ‑ acrescentou o cobrador, muitíssimo ansioso por evitar qualquer mal entendido neste ponto ‑ apenas uns bolos e café, uns camarões, ou qualquer coisa assim, para já.

‑ Sim, sim, compreendo ‑ retorquiu Nicholas. ‑ Ficarei muitíssimo satisfeito em ir; dar‑me-á o maior prazer. Onde está alojada a senhora? Com Mrs. Crummles?

‑ Não ‑ informou o cobrador ‑ eles não tinham sítio bom onde ela ficasse, por isso está com uma sua amiga, uma outra rapariga; pertencem ambas ao teatro.

‑Talvez seja Miss Snevellicci?

‑ Sim, é esse o nome!

‑E serão, naturalmente, damas de honor?

‑ São quatro damas de honor ‑ anunciou o cobrador com uma cara lúgubre. ‑ Receio que tornem isto muito teatral.

‑ Oh, não, absolutamente nada ‑ respondeu Nicholas, com uma desastrada tentativa de converter uma gargalhada em ataque de tosse. ‑ Quem podem ser as quatro? Decerto Miss Snevellicci. Miss Ledrook.

‑ O fenómeno ‑ rosnou o cobrador.

‑ Ah! ah! ‑ riu Nicholas. ‑ Desculpe‑me, não sei por que me estou a rir. sim, será muito bonito. o fenómeno. e quem mais?

‑ Qualquer outra jovem ‑ replicou o cobrador, levantando-se.

‑ Outra amiga de Henrietta Petowker. Bem, terá o cuidado de não dizer nada, sobre isto, não é verdade?

‑ Pode contar absolutamente comigo ‑ respondeu Nicholas. ‑ Não quer comer ou beber alguma coisa?

‑Não ‑ disse o cobrador. ‑ Não tenho vontade. Penso que será uma agradável vida a dum homem casado. hein?

‑ Não tenho a mínima dúvida a esse respeito – afirmou Nicholas.

‑ Sim ‑ confirmou o cobrador. ‑ Certamente. Oh, sim! Sem dúvida. Boa-noite.

Com estas palavras Mr. Lillyvick, cujas maneiras nesta entrevista, mostravam uma extraordinária mistura de precipitação, hesitação, confiança, dúvida, afecto, pressentimento, mesquinhez e auto‑importância, voltou as costas e deixou Nicholas a rir‑se para consigo.

Para Nicholas, as horas para o celebrado dia pareciam decorrer com muita lentidão, não se dando o mesmo com os outros, pois Miss Petowker, acordando na manhã seguinte no quarto de Miss Snevellicci, declarou que nada a teria persuadido da que mudava de estado.

‑Não acreditaria nisto ‑ confessou Miss Petowker. Não podia, realmente. Não merece a pena falar, mas nunca pus na ideia passar por esta experiência!

Ao ouvirem isto, Miss Snevellicci e Miss Ledrek que lhe tinham conhecido várias modalidades de disposição de passar por esta experiência, faltando, apenas, o cavalheiro que se aventurasse nela, começaram a animá‑la e a reconfortá-la dizendo‑lhe que se estivessem no mesmo caso ‑ graças a Deus que não ‑ submeter‑se‑iam com o espírito de humildade e brandura, aos decretos da Providência.

‑Eu havia de sentir como se fosse uma grande bofetada ‑ confessou Miss Snevellicci ‑ por quebrar velhos conhecimentos e ligações deste género, mas submetia‑me, minha querida, submetia-me.

‑ O mesmo faria eu ‑ reforçou Miss Ledrook. ‑ Preferia procurar a carga a evitá‑la. Decidi muitos corações antigamente, e sinto‑me penalizada por ser uma coisa terrivel para a gente pensar.

‑ Na verdade é ‑ confirmou Miss Snevellicci. ‑ Agora, Led, minha querida, temos de a preparar, ou ficaremos atrasadas.

O piedoso raciocínio, ou talvez o receio de estar atrasada demais, fez a noiva suportar a cerimónia de se vestir, depois do que lhe foi administrada, em doses alternadas, chá forte e brando, como um meio de lhe fortalecer os fracos membros e a fazer andar com firmeza.

‑ Como te sentes agora, meu amor? ‑ inquiriu Miss Snevellicci.

‑ Oh, Lillyvick! ‑ exclamou a noiva. ‑ Se soubesses o que passo por tua causa!

‑ Decerto que o sabe,amor,e nunca o esquecerá ‑ consolidou Miss Ledrook.

‑ Julgas que não? ‑ perguntou Miss Petowker,mostrando realmente, grande capacidade para o palco. ‑ Oh. julgas que não? Pensas que o Lillyvick se lembrará sempre... sempre,sempre,sempre?

Não se sabe quando acabariam estas explicações de sentimentos, se Miss Snevellicci não anunciasse a chegada da carruagem,fazendo com que a noiva corresse,alarmada,para o espelho para ajustar o vestido e, calmamente, se declarasse

pronta para o sacrifício.

Na carruagem foi suportada com perpétuas aplicações de sais no nariz e golos de brande e outros refinados estimulantes até chegarem à porta do empresário,           que já estava aberta pelos dois Misters Crummles,ornamentados com laços brancos nos chapéus e com os mais resplandecentes e escolhidos coletes achados no guarda‑roupa do teatro. Pelas forças combinadas destes dois jovens e das damas de honnra, ajudados pelo cocheiro, Miss Petowker foi por fim conduzida, num estado de grande esgotamento, ao primeiro andar, onde desfaleceu com muito decoro,logo que se encontrou com o noivo.

‑ Henrietta Petowker! ‑ exclamou o cobrador. ‑ Meu único amor!

Miss Petowker agarrou a mão do cobrador,mas a emoção não a deixou falar. ‑ a minha vista é assim tão horrível,Henrietta Petowker? ‑ perguntou o cobrador.

‑ Oh! Não, não, não! ‑ protestou a noiva ‑ mas todos os amigos... os queridos amigos... dos meus dias juvenis... deixá‑los a todos... foi um grande choque!

Com tais expressões de tristeza Miss Petowker pôs‑se a enumerar os queridos amigos dos seus dias juvenis,um por um,e a chamar por eles para a abraçarem,como se estivessem presentes. Feito isto lembrou-se que Mrs. Crummles tinha sido para ela mais do que uma mãe,Mr. Crummles mais do que um pai,os Misters e Miss Crummles mais do que irmão e irmã. Estas várias recordações foram acompanhadas por apertados abraços,o que levou muito tempo, vendo‑se obrigados a ir a correr para a igreja,com medo de ser tarde demais.

O cortejo consistia em duas carruagens e todos iam bem vestidos. As damas de honor estavam literalmente cobertas com flores artificiais e o fenómeno em especial era quase invisível. Ostentavam,também,muitas jóias de fantasia,quase iguais às verdadeiras. Mas talvez a aparência de Mr. Crummles fosse a mais deslumbrante. Encarnando o papel de pai da noiva,trazia um chinó de teatro de cor castanha,meias de seda cinzenta e fivelas nos sapatos. E para melhor desempenhar o aludido papel,os seus soluços,ao entrarem na igreja foram tão dilacerantes, que teve de ir à sacristia beber um copo de água antes da cerimónia começar.

O cortejo, a subir a igreja, era magnífico. A noiva e as quatro damas de honor formavam um grupo previamente arranjado e ensaiado; depois vinha o cobrador com o seu pa drinho, Mr. Folair, e a seguir Mr. e Mrs. Crummles. A cerimónia foi rapidamente concluída e, depois de terem assinado o registo, regressaram para o copo‑dágua, encontrando Nicholas que os aguardava. Nicholas que, ao regressar, estivera a ajudar Mrs. Grudden nos preparativos mais dispendiosos do que o cobrador contava.

‑ Vamos para a mesa, vamos para a mesa!

Não foi preciso segundo convite e toda a gente se sentou à mesa como pôde. Miss Petowker, corando muito quando alguém olhava para ela, comia muito quando ninguém a olhava. Mr. Lillyvick atirou‑se com fria resolução à comida visto que, sendo a conta paga por ele, queria deixar o menos possível para os Crunnles comerem depois.

‑ Foi depressa, não foi? ‑ perguntou Mr. Folair ao cobrador, inclinando-se sobre a mesa para se dirigir a ele.

‑ O que é que foi depressa, sir? ‑ quis saber Mr. Lillyvick.

‑ Arranjar uma mulher ‑ respondeu Mr. Folair. ‑ Não levou muito tempo, pois não?

‑ Não, sir ‑ replicou Mr. Lillyvick, corando ‑ não levou muito tempo. E depois, sir?

‑ Oh, nada ‑ disse o actor. ‑ Um homem não leva muito tempo a enforcar‑se, pois não?!

Mr. Lillivick pousou o garfo e a faca e olhou para todos os circunstantes com indignado assombro.

‑ Enforcar‑se! ‑ repetiu Mr. Lillyvick.

Seguiu‑se um profundo silêncio com que Mr. Lillyvick foi honrado fora de toda a expressão.

‑ Enforcar‑se! ‑ exclamou de novo Mr. Lillyvick ‑ Costuma, aqui no teatro comparar‑se a forca ao matrimónio?

‑ O nó, bem vê ‑ explicou Mr. Folair, um pouco com a crista caída.

‑ O nó, sir? ‑ retorquiu Mr. Lillyvick. ‑ Atreve‑se alguém a falar‑me dum nó e de Henrietta?

‑ Lillyvick ‑ lembrou Mr. Crummles.

‑ E de Henrietta Lillyvick ao mesmo tempo? ‑ disse o cobrador. ‑ Nesta casa, na presença de Mr. e Mrs. Crummles que educáram uma família talentosa e virtuosa a dar pessoas como fenómenos, vem o senhor falar de nós?

‑ Folair ‑ censurou Mr. Crummles, julgando ser decente intervir por se ter feito alusão a ele e à sua cara metade. Você espanta-me!

‑ O que é que tem a dizer? ‑ perguntou o infeliz actor. O que fiz eu?

‑ Fez, sir! ‑ exclamou Mr Lillyvick. ‑ Deu uma bofetada no alicerce de toda a sociedade...

‑ E nos sentimentos melhores e mais ternos ‑ juntou Crummles, secundando o velho.

‑ E nas ligações sociais mais altas e estimáveis ‑ continuou o cobrador. ‑ Nós! Como se o estado matrimonial consistisse numa ratoeira onde uma pessoa fosse apanhada, em vez de ir para ele de pleno acordo, a fim de glorificar o acto.

‑ Eu não quis dizer que o senhor tinha sido apanhado na ratoeira ‑ replicou o actor. ‑ Sinto o que se passou e não digo mais nada!

‑ É o que deve fazer, sir ‑ retorquiu Mr. Lillyvick ‑ e sinto‑me satisfeito por saber que tem suficientes sentimentos para proceder assim.

Como a questão parecia terminada com esta resposta, Mrs. Lillyvick considerou a ocasião mais apropriada para chorar, recusando-se a ser reconfortada até que os beligerantes empenhassem a sua palavra que não reincidiriam, o que eles fizeram com certa relutância. Houve muitos discursos, feitos por Nicholas, Mr. Crummles e pelo cobrador, dois por Mrs. Crummles e um pelo fenómeno, em nome das damas de honor. Houve igualmente canto por Miss Ledrook e Miss Bravassa, e mais haveria se o cocheiro não viesse dizer que cobraria mais dezoito pence além do preço estipulado, se o par se não despachasse para tomar o barco para Ryde.

Esta ameaça desfez a reunião e foi com patética despedida que Mr. Lillyvick e sua esposa partiram para Ryde, a fim de passarem dois dias de recolhimento, acompanhados pelo fenómeno, por expressa estipulação do noivo.

Como nessa noite não havia espectáculo, Mr. Crumles declarou‑se disposto a beber com quem o quisesse acompanhar, mas Nicholas, tendo de desempenhar o papel de Romeu pela primeira vez, na noite seguinte, escapou-se no meio duma temporária confusão causada pela embriaguez de Mrs. Grudden. Este acto de deserção foi executado, não só por ele, mas também por Smike, que tinha de representar de Boticário e não era capaz de meter o papel na cabeça.

‑ Não sei o que se há‑de fazer, Smike ‑ disse Nicholas, pondo o livro de parte. ‑ Receio que não possas aprender, meu pobre rapaz.

‑ Eu não tenho receio ‑ respondeu Smike, abanando a cabeça. ‑ Penso que se o senhor. Mas isso dava‑lhe muita maçada.

‑ O quê? ‑ perguntou Nicholas. ‑ Não te importes.

‑ Penso ‑ continuou Smike ‑ que se o senhor me disser o papel aos bocadinhos e mos repetir, eu possa lembrar‑me de tudo, só de o ouvir!

‑ Julgas isso? ‑ exclamou Nicholas. ‑ Bem dito. Vamos ver quem se cansa primeiro. Não eu, Smike, confia em mim. Vamos lá, agora. Quem chama tão alto?

‑ Quem chama tão alto? ‑ repetiu Smike.

‑ Quem chama tão alto? ‑ insistiu Nicholas.

‑ Quem chama tão alto? ‑ tornou a repetir Smik.

E assim continuaram, passando Nicholas a duas frases e depois a três, e assim por diante até que à meia‑noite o pobre Smike sabia alguma coisa do texto. De manhã cedo continuaram, passando Nicholas a ensinar‑lhe os gestos. Depois do ensaio da manhã tornaram ao trabalho, só interrompicto por um jantar apressado, continuando depois até à hora de aparecerem no teatro. Nunca houve um aluno tão dócil, humilde e ansioso, como nunca houve um professor tão paciente e incansável, atento e humano. Logo que se vestiram e em todo o intervalo, quando não estava no palco, Nicholas renovava as suas instruções. Foram bem executadas. O Romeu foi recebido com cordiais aplausos e ilimitada aceitação mas Smike foi unicamente considerado, tanto pelo público, como pelos actores, o verdadeiro príncipe e o prodígio dos Boticários.

 

Onde há certo perigo para Miss Nickleby

O lugar era uma linda série de aposentos particulares em Regent Street; a hora eram as três da tarde; as personagens Lorde Frederick Verisopht e o seu amigo Sir Mulberry Hawk.

Estes distintos cavalheiros estavam reclinados em sofás, tendo entre si uma mesa onde se via em rica confusão os aprestos dum pequeno almoço por comer. Pelo quarto estavam jornais espalhados, os convivas não conversavam e não se ouvia som algum.

Estas aparências tinham por si só fornecido uma excelente prova do deboche da noite anterior se não houvesse outros como um par de bolas de bilhar, dois chapéus amolgados, uma garrafa de champanhe suja em volta do gargalo, uma bengala partida, uma bolsa vazia, uma mão meia cheia de moedas de prata misturadas com cinzas e pontas de charutos, e muitos outros indícios a atestarem a natureza das brincadeiras da noite anterior destes dois cavalheiros.

Lorde Frederick Verisopht foi o primeiro a falar. Pondo os pés no chão, bocejou desalmadamente e esforçando-se por conseguir uma posição sentada, voltou os olhos mortiços e lânguidos para o amigo, por quem chamou numa voz sonolenta.

‑ Olá! ‑ replicou Sir Mulberry, voltando‑se.

‑ Vamos ficar aqui todo o dia? ‑ perguntou o lorde.

‑ Não sei se estamos capazes de qualquer coisa ‑ respondeu Sir Mulberry ‑ pelo menos por um bocado. Esta manhã não tenho um grão de vida em mim.

‑ Vida! ‑ exclamou Lorde Verisopht. ‑ Sinto que não haveria nada mais cómodo e confortável do que morrer imediatamente.

‑ Então por que não morres? ‑ interrogou Sir Mulberry.

Com esta pergunta pareceu ocupado em tentar adormecer. O amigo e pupilo experimentou comer, mas achando isso impossível, foi à janela, pasou a mão pela cabeça febril e deixou‑            se cair no sofá, chamando de novo o amigo.

‑ Que diabo é isso? ‑ rosnou Sir Mulberry, sentando‑se na almofada.

Embora Sir Mulberry proferisse isto de mau humor, não se sentiu com coragem de ficar calado. Depois de se aproximar da mesa e tentar comer, no que foi melhor sucedido do que o amigo, disse, com um bocado de comida na ponta do garfo:

‑Supunhamos que voltamos ao assunto Niclleby!

‑ Qual Nickleby? O usurário ou a rapariga? ‑ quis sa ber Lorde Verisopht.

‑ Estou a ver que me compreendes ‑ retorquiu Sir Mulberry. ‑ A rapariga, decerto.

‑ Tu prometeste‑me encontrá‑la ‑ lembrou Lorde Verisopht.

‑ Prometi ‑ considerou o amigo ‑ mas depois disso pensei no assunto. Tu desconfiaste de mim. por isso tens tu de a procurar.

‑ Não ‑ resmungou Lorde Verisopht.

‑ Mas eu digo que sim ‑ replicou o amigo. ‑ Tens de a procurar. Não penses que quero dizer que és capaz de lhe pôr a vista em cima sem mim. Não. Digo que a tens de procurar. tens e eu pôr‑te‑ei na pista.

‑Maldita seja, se tu não és um verdadeiro, diabólico, perfeito e estranho amigo ‑ afirmou o jovem lorde, a quem este discurso tinha produzido um efeito revigorante.

‑ Vou dizer-te tudo ‑ declarou Sir Mulberry. ‑ Ela esteve no jantar como isca, para ti.

‑ Não! ‑ exclamou o jovem lorde. ‑ O que diabo?.

‑ Como uma isca para ti ‑ repetiu o amigo. ‑ O querido Nickleby foi o próprio a dizer‑mo.

‑ Mas que grande malandro! ‑ comentou Lorde Verisopht.

‑Um bom velhaco!

‑Sim ‑ disse Sir Mulberry ‑ ele sabia que ela era uma criaturinha atraente.

‑ Atraente! ‑ interrompeu o jovem. ‑ Pela minha alma, Hawk, é uma perfeita beldade. uma pintura, uma estátua, pela minha alma que o é!

‑ Bem ‑ retorquiu Sir Mulberry, encolhendo os ombros e manifestando uma indiferença, fingida ou verdadeira ‑ é uma questão de gosto; se o meu não concorda com o teu, tanto melhor.

‑ Valha‑te o diabo! ‑ raciocinou o lorde. ‑Tu estavas turvado bastante com ela. Eu mal pude dizer uma palavra.

‑Bastante bem por uma vez! Porém, não vale a maçada de nos tornarmos simpáticos de novo. Se na verdade não queres andar atrás da sobrinha, dize ao tio que precisas de saber onde ela vive, como vive, e com quem, ou que deixas de ser seu cliente. E ele dá‑te todas as informações.

‑ Por que não disseste isso antes? ‑ perguntou Lorde Verisopht. ‑ Em vez de me deixares consumir e arreliar, arrastar uma existência miserável durante um século?

‑ Em primeiro lugar não sabia ‑ respondeu Sir Mulberry, descuidadamente ‑ e em segundo, não acreditava que estivesses tão interessado.

A verdade é que, no intervalo decorrido desde o jantar em casa de Ralph Nickleby, Sir Mulberry Hawk tinha furtivamente experimentado, por todos os meios ao seu alcance, descobrir donde Kate aparecera tão repentinamente e para onde desaparecera. Sem a ajuda de Ralph, com quem não voltara a falar desde a desagradávél separação naquela altura, todos os seus esforços foram infrutíferas, por isso chegara à conclusão de que só servindo‑se do jovem lorde podia saber o que queria. Assim raciocinando e no seguimento do seu raciocímio, ele e o seu amigo depressa se apresentaram em casa de Ralph Niekleby para a execução dum plano de operações da sua autoria, fingindo servir os interesses do amigo, mas na realidade servindo os seus próprios.

Encontraram Ralph em casa e só. Ao conduzi-los para a sala, a lembrança da cena ali desenrolada pareceu vir‑lhe à memória, pois deitou um curioso olhar para Sir Mulberry que não deu outro sinal de o ter percebido se não com um descuidado sorriso. Tiveram uma breve conferência sobre assuntos de dinheiro, então em execução, quando o crédulo lorde, seguindo as instruções do amigo, pediu, com algum embaraço, para falar com Ralph a sós.

‑ A sós? ‑ exclamou Sir Mulberry, fingindo surpresa. Muito bem! Vou para o aposento ao lado. Não me façam esperar muito.

Dizendo isto, Sir Mulberry agarrou no chapéu e, entoando o fragmento duma canção, desapareceu pela porta de comunicação entre as duas salas, fechando‑a atrás de si.

‑ Agora, meu lorde ‑ perguntou Ralph ‑ o que há?

‑ Nickleby ‑ disse o cliente, atirando‑se para o sofá onde estivera antes sentado, para ter a boca mais chegada ao ouvido do outro. ‑ Que linda criatura é a sua sobrinha!

‑ Acha, meu lorde? ‑ inquiriu Ralph. ‑ Talvez. talvez.

Não quebro a cabeça com esses assuntos.

‑ Você sabe que ela é uma rapariga formidável? ‑ declarou o cliente. ‑ Deve saber, Nickleby. Vamos, não o negue.

‑ Creio que é considerada assim. ‑ retorquiu Nickleby. Na verdade sei que é. Se não soubesse, o senhor é uma autoridade nesse assunto e o seu gosto, meu lorde. . em todos os capítulos na verdade, é inegável.

Só o jovem, a quem estas palavras eram dirigidas, podia ser surdo ao tom de desprezo com que foram ditas, ou cego para não ver o olhar de desdém com que foram acompanhadas. Mas lorde Frederick Verisopht era ambas as coisas e tomou as palavras como um cumprimento.

‑ Bem ‑ disse ele ‑ talvez tenha razão e talvez não tenha um pouco de cada, Nickleby. Quero saber onde vive essa beldade para poder dar‑lhe uma outra olhadela, Nickleby.

‑ Realmente. ‑ começou Ralph no seu tom habitual.

‑ Não fale tão alto ‑ recomendou o outro. ‑ Não quero que o Hawk ouça.

‑ Sabe que ele é seu rival, não sabe? ‑ inquiriu Ralph, olhando-o penetrantemente.

‑ sempre, diabos o levem! ‑ respondeu o cliente. E quero marcar um ponto sobre ele. Ficou escamado, Nickleby, por conversarmos juntos, sem ele. Onde mora ela, Nickleby? Diga-me, apenas, onde ela mora.

‑ O peixe morde, o peixe morde ‑ pensou Ralph.

‑ Nickleby, então? ‑ continuou o cliente. ‑ Onde mora ela?

‑ então, meu lorde ‑ replicou Ralph, esfregando as mãos devagar‑ preciso de pensar antes de lhe dizer.

‑ Não, nada disso, não precisa de pensar ‑ retorquiu Verisopht. ‑ Onde é?

‑ Não lhe serve de nada saber ‑ declarou Ralph. ‑ Ela tem sido bem e virtuosamente educada. Sem dúvida é bonita, pobre, desprotegida. pobre rapariga!

Ralph deu este breve sumário das condições de Kate como se as estivesse a repassar na mente e não tencionasse falar alto, mas o olhar astuto e velhaco que dirigiu ao companheiro, fazia desta pobre confissão uma mentira.

‑ Digo-lhe que apenas a quero ver ‑ confessou o cliente. Um homem pode olhar para uma mulher bonita sem lhe causar mal, não pode? Agora informe‑me, onde vive? Sabe que está a fazer uma fortuna comigo, Niekleby e, pela minha alma, ninguém me levará para outra pessoa se você me disser isso.

‑ Como promete isso, meu lorde ‑ respondeu Ralph com fingida relutância ‑ e eu estou muitíssimo ansioso em o servir, e como não há mal nisso. nenhum mal, vou dizer‑lhe. Mas será melhor conservá‑lo para si, meu lorde, estritamente para si. ‑ Ralph apontou para o aposento anexo e acenou expressivamente.

O jovem lorde, fingiu estar igualmente interessado com a necessidade desta precaução e Ralph descobriu‑lhe a presente morada e ocupação da sobrinha, observando que, pelo que ouvira da família, pareciam muito ambiciosos em terem conhecimentos de categoria elevada, e um lorde, sem dúvida, podia aproximar‑se com grande facilidade, se se sentisse disposto.

‑Sendo o seu objectivo vê‑la-a outra vez, pode efectuar isso em qualquer ocasião que escolha, adoptando esse processo.

Lorde Verisopht acolheu a sugestão com muitos apertos da mão áspera e dura de Ralph e, segredando que deviam terminar a conversa, chamou Sir Mulberry Hawk.

‑ Pensei que tinham adormecido ‑ disse Mulberry, reaparecendo com um ar mal humorado.

‑ Sinto ter‑te feito esperar ‑ replicou o tolo ‑ mas Nickleby foi tão estupendamente engraçado, que não pude deixá‑lo.

‑ Não, não! ‑ objectou Nickleby ‑ tudo isso foi Vossa Excelência. Bem sabe como Lorde Frederick é, um homem mordaz, humorista, elegante e perfeito. Cautela com os degraus, meu lorde. Sir Mulberry, ensine o caminho, peço‑lhe.

Com cortesias como estas, muitas reverências e o mesmo frio desprezo na cara durante todo o tempo, Ralph apressou‑se a acompanhar as visitas até à escada.

Uns momentos antes tocara a campainha, a que Newman Noggs atendeu quando eles chegaram ao átrio. Ordinariamente Newman teria admitido o recém‑vindo em silêncio, ou ter‑ lhe‑ia pedido para se conservar de lado enquanto os cavalheiros saissem. Mas logo que soube de quem se tratava e traindo o costume estabelecido na casa de Ralph às horas de expediente, olhou para o respeitável trio e exclamou numa voz alta e sonora:

‑ Mrs. Nickleby!

‑ Mrs. Nickleby? ‑ repetiu Sir Mulberry Hawk, enquanto o amigo olhava para trás e o encarava pasmado.

Era, de facto, a bem intencionada senhora que, tendo recebido uma oferta para a casa vaga na City, dirigida ao senhorio, â trouxera sem tardar a Nickleby.

‑ Ninguém a conhece ‑ diss Ralph. ‑ Entre para o escritório, minha. minha querida. Estarei consigo num instante.

‑ Eu conheço! ‑ exclamou Sir Mulberry Hawk, avançando para a surpreendida senhora. ‑ É esta Mrs. Nickleby. a mãe de Miss Nickleby. a deliciosa criatura que tive a felicidade de encontrar nesta casa a última vez que jantei cá! Mas não!

‑ disse Sir Mulberrv, parando de súbito. ‑ Não, não podie ser! Há o mesmo traçado de feições, o mesmo indescritível ar de. Mas, não não! Esta senhora é nova demais para isso.

‑Julgo que pode dizer a este cavalheiro, cunhado, se ele deseja saber ‑ declarou Mrs. Nickleby, agradecendo o cumprimento com uma graciosa inclinação ‑ que Kate Nickleby é minha filha!

‑ Sua filha, meu Deus! ‑ exclamou Sir Mulberry, voltando‑se para o amigo. ‑ É filha desta senhora, meu lorde.

‑ Meu lorde! ‑ pensou Mrs. Nickleby. ‑ Bem, nunca.

‑ Meu lorde, esta é, então, a senhora! ‑ disse Sir Mulberry ‑ a cujo casamento auspicioso devemos tanta felicidade. Esta senhora é a mãe da gentil Miss Nickleby. Observa a extraordinária parecença, meu lorde? Nickleby, apresente-nos.

Ralph assim o fez com uma espécie de desespero.

‑ Pela minha alma, é uma coisa muitíssimo deliciosa - comentou Lorde Frederick, adiantando‑se. ‑ Como passa?

Mrs. Nickleby estava demasiado confundida para estes invulgares cumprimentos e o seu pesar era não ter outro chapéu para dar uma resposta imediata, por isso apenas continuava a inclinar-se e a sorrir, mostrando grande agitação.

‑ E como está Miss Nickleby? ‑ perguntou Lorde Frederick. ‑ Espero que bem.

‑ Está bem, muito obrigada, meu lorde ‑ replicou Mrs. Nickleby; recobrando‑se ‑ completamente bem. Depois daquele jantar aqui ela não se sentiu bem durante alguns dias e não deixo de pensar que se constipou na carruagem quando regressou a casa. Os carros de aluguer, meu lorde, são coisas traiçoeiras e é quase preferível andar a pé em qualquer ocasião, pois embora creia que um cochheiro não possa ser condenado à morte por ter um vidro partido, são, contudo, tão descuidados, que têm todos os vidros quebrados. Uma vez fiquei com a cara inchada, durante seis semanas, por vir num carro de aluguer. Parece‑me que foi um carro de aluguel ‑ disse Mrs Nickleby, reflectindo ‑ embora não tenha a certeza absoluta que espécie de carro era; de qualquer maneira lembro-me que era dum verde escuro, com um número muito comprido, começando num zero e acabando num nove. não, começando num nove e terminando num zero, é isso, e decerto a gente de Stamp Office devia saber imediatamente se era um carro dum género ou outro, se se fizessem ali inquirições. contudo foi isso, uma vidraça partida e eu com a cara inchada durante seis semanas. Penso que foi o mesmo carro que eu encontrei depois com a parte de cima aberta, e nunca mais o conheceria se eles me não tivessem levado um xelim a mais por uma hora, por a terem aberto, o que parece ser da lei, ou era então, uma lei bastante vergonhosa. Não compreendo o assunto, mas devo dizer que as leis podiam não ter nada com essa Act of Parliament decreto.

Tendo falado muito razoavelmente de si, Mrs. Nickleby parou tão subitamente como tinha começado e repetiu que Kate estava perfeitamente bem.

‑ Na verdade ‑ disse Mrs Nickleby ‑ não julgo que ela estivesse alguma vez melhor desde que teve a tosse convulsa, o sarampo e a escarlatina, tudo ao mesmo tempo.

- A carta é para mim? ‑ rosnou Ralph, apontando para o pequeno embrulho que Mrs. Nickleby conservava na mão.

‑ É para si, cunhado ‑ confirmou Mrs Nickleby ‑ e vim a pé todo o caminho com o fim de lha entregar.

‑ Todo o caminho até aqui! ‑ exclamou Sir Mulberry, agarrando a ocasião pelos cabelos para descobrir donde viera Mrs. Nickleby. ‑ Que terrível distância! Quanto será?

‑ Quanto será! ‑ repetiu Mrs. Nickleby. ‑ Deixme ver. É justamente uma milha da noSsa porta até Old Bailey.

‑ Não, não é tanto ‑ contestou Sir Mulberry.

‑ Oh!, é, na verdade ‑ teimou Mrs. Nickleby. ‑ Apelo para Sua Excelência.

‑ Decididamente digo que é uma milha ‑ concordou Lorde Frederick com um aspecto solene.

‑ Deve ser, não tem uma jarda menos ‑ informou Mrs. Nickleby. ‑ Toda a Newgate Street fora, todo o Cheapside abaixo, toda a Lombard Street acima, descer a Gracechurch Street e ao longo de Thames Street até a Spigwiffin's Wharf. Oh! é uma milha!

‑ Sim, pensando melhor, é ‑ concordou Sir Mulberry. Mas a senhora, com certeza, não põe na sua ideia fazer todo o caminho de regresso.

‑Oh, não! ‑ respondeu Mrs. Nickleby. ‑ Volto no ónibus. Não viajo em ónibus desde que o meu pobre querido Nicholas morreu. Mas como bem sabe.

‑ Sim, sim ‑ retorquiu Ralph impaciente ‑ e faria melhor regressar antes de ser escuro.

‑ Obrigada, cunhado, assim farei ‑ respondeu Mrs. Nickleby. ‑ Julgo ser melhor dizer adeus imediatamente.

‑ Não se demora um bocado? ‑ perguntou Ralph, que várias vezes oferecia refrescos ou, pelo menos, alguma coisa tomada como tal.

‑ Oh, Deus, não ‑ retorquiu Mrs. Nickleby, dando uma vista de olhos para o relógio.

‑ Lorde Frederick ‑ disse Sir Mulbrry ‑ saímos com Mrs. Nickleby e vamos metê‑la no ónibus?

‑ Com certeza. Sim.

- Oh, não podia pensar nisso! ‑ exclamou Mrs. Nickleby.

Mas Sir Mulberry Hawk e Lorde Verisopht eram peremptórios nas suas delicadezas e deixaram a casa, levando Mrs. Nickleby no meio deles e, Ralph, numa situação ridícula. Quanto à boa senhora, pensava que Kate podia agora escolher duas boas fortunas e os mais irrepreensíveis maridos. Enquanto ela era arrastada pela torrente dos seus pensamentos, todos ligados à grandeza futura da filha Sir Mulberry Hawk e o amigo trocavam olhares por cima do chapéu que a senhora sentia não ter deixado em casa, e continuavam com muitos elogios sobre as muitas perfeições de Miss Nickleby.

‑Que delícia, que conforto, que felicidade essa amável criatura deve ser para a senhora ‑ disse Sir Mulberry, pondo na voz um sentimento de entusiasmo.

‑ É, na verdade, sir ‑ respondeu Mrs. Nickleby. ‑ o temperamento mais doce e a criatura de melhor coração. e tão inteligente!

‑ Parece muito inteligente ‑ opinou Lorde Verisopht com o ar dum juiz de inteligências.

‑ Asseguro‑lhe que é, meu lorde ‑ replicou Mrs Nickleby.

‑Quando estava na escola, em Devonshire, era tida como ultrapassando todas as excepções das mais inteligentes raparigas, e havia um grande número muito inteligente. E isso é verdade. vinte e cinco raparigas, cinquenta guinéus por ano sem os extras, ambas as Misses Dowdle, as mais perfeitas, elegantes e fascinantes criaturas. Oh meu Deus! nunca esquecerei o prazer que ela costumava dar‑me e ao seu pobre papá, quando estava naquela escola, nunca. aquela deliciosa carta todos os semestres, a participar‑nos que era a primeira aluna de todo o estabelecimento e que tinha feito mais progressos do que as outras! Mesmo agora, mal posso deixar de pensar nisso. Eram as próprias raparigas que escreviam as cartas e a professora de redacção premiava‑as depois com uma lente ou uma caneta de prata; pelo menos penso que elas as escreviam, embora Kate nunca estivesse muito certa disso, porque não era capaz de reconhecer a sua letra; mas de qualquer modo sei que era uma circular que todos copiavam e decerto era uma coisa que dava gosto. muito gosto.

Com semelhantes recordações Mrs. Nickleby amenizou o enfado do caminho até chegarem ao ónibus, onde só a deixaram depois de a verem embarcar. Mrs. Nickleby, encostando‑se no canto mais recôndito do transporte e, fechando os olhos, engolfou‑se no pensamento dos seus novos conhecimentos e na estranheza de Kate nunca ter falado neles. Ela que nunca se opusera às inclinações da filha, pensava ser esta uma razão para julgar que a escolha estava ainda por fazer, embora ela, por sua parte, preferisse Sir Mulberry, um cavalheiro muito fino e muito delicado. E na sua fantasia maternal, via a filha casada com grande brilho, melhor do que muitas com milhares de libras.

Entretanto, Ralph passeava no seu acanhado escritório, com a cabeça perturbada pelo que tinha acontecido. Seria a mais atrevida das ficções julgar que Ralph gostava, ou se importava, com qualquer criatura. Contudo, de vez em quando, sentia pela sobrinha compaixão e piedade, e olhava a pobre rapariga por um prisma melhor e mais puro do que qualquer outro ser humano.

‑ Desejava nunca ter feito isto ‑ pensava Ralph. ‑ E contudo conservarei este rapaz comigo enquanto houver dinheiro a arrancar. Vender uma rapariga. atirá‑la para o caminho da tentação e das grosserias. Dele já tnho quase duas mil libras de lucro. Ora! Muitas mes casamenteiras fazem o mesmo todos os dias!

Sentou‑se e contou as probabilidades, pró e contra, pelos dedos.

‑ Se os não tivesse posto hoje na verdadeira pista ‑ pensava Ralph ‑ essa parva têlo‑ia feito. Bem. Se a filha tiver juízo, como julgo pelo que tenho visto, que mal pode advir? Um pouco de arrelia, um pouco de humilhação e algumas lágrimas. Sim ‑ continuou em voz alta, enquanto fechava o cofre forte. ‑ Tem de se arriscar! Tem de se arriscar!

 

Mrs. Nickleby torna‑se conhecida de Pyke e Pluck, cuja afeição e interesse estão acima de todos os limites

Mrs, Nickleby nunca se sentira tão orgulhosa e importante como quando chegou a casa e deu expansão a todas as agradáveis visões, que a tinham acompanhado todo o caminho até ali. Lady Mulberry Hawk. era a sua ideia predominante. Lady Mulberry Hawk! ‑Na última terça‑feira, em St. George, Hannover Square, pelo muito reverendo Bispo de Landaff, Sir Mulberry Hawk, de Mulberry Castle, Gales da Norte, uniu‑se a Catherine, filha única do falecido Nicholas Nickleby, Esquire, de Devonshire.

‑Palavra! ‑ exclamou Mrs. Nickleby ‑ isto soa muito bem.

Tendo pintado a cerimónia com grande pompa e as honras que acompanharam Kate na sua nova esfera, não esquecendo a sua apresentação na Carte, decerto, imaginou o brilhante aniversário dela, em que o marido perdoaria aos rendeiros meio por cento na quantia da renda do ano anterior. O retrato de Kate, por Sir Dingleby Dabber, figuraria, com certeza, em meia dúzia de exposições anuais, pelo menos. Com estes castelos no ar passou Mrs. Nickleby toda a noite depois da acidental apresentação aos amigos titulares de Ralph. Estava a preparar o seu frugal jantar, no dia seguinte, ocupada com as mesmas ideias ‑ um pouco diluídas pelo barulho e pela luz do dia, quando a rapariga que a servia entrou a toda a pressa no aposento, anunciando dois cavalheiros que estavam no corredor, aguardando licença para subir.

‑Deus me valha! ‑ exclamou Mrs. Nickleby, compondo à pressa a touca e a cabeça ‑ se fossem. meu Deus, ficarem no corredor todo este tempo, por que lhes não vais pedir para subirem, estúpida?

Enquanto a rapariga ia executar a ordem, Mrs. Nickleby rapidamente meteu num armário todos os vestígios de comida e de bebida. Isto mal tinha sido feito e ela se sentava, quando dois cavalheiros, perfeitamente estranhos, se apresentavam.

‑Como está? ‑ perguntou um dos cavalheiros, imprimindo grande farça na última palavra.

‑Como está? ‑ repetiu o outro cavalheiro, alterando a ênfase, como se fosse uma variante de cumprimento.

Mrs. Nickleby cortejou e sorriu, cortejou novamente e observou, esfregando as mãos, que não tinha, realmente, a honra de.

‑De nos conhecer ‑ concluiu o primeiro cavalheiro. A culpa foi nossa, Mrs. Nickleby. A culpa foi nossa, Pyke?

‑ Foi, Pluck ‑ asseverou o outro cavalheiro.

‑Têmo‑nos arrependido disso com frequência, creio eu, não é, Pyke? ‑ perguntou o primeiro cavalheiro.

‑Muitas vezes, Pluck ‑ respondeu o segundo.

‑ Mas agora ‑ declarou o primeiro cavalheiro ‑ temos a felicidade em que penávamos e pela qual nos consumíamos. Temos penado e consumido por esta felicidade, Pyke, ou não temos?

‑Sabes que temos, Pluck ‑ replicou Pyke, repreensivamente.

‑ Ouve‑o, ma am ‑ inquiriu Pluck, olhando em redor. Ouve o testemunho irrepreensível do meu amigo Pyke. Que me lembra que as formalidades, as formalidades não devem ser esquecidas numa sociedade civilizada. Pyke. Mrs. Nickleby.

Mr. Pyke levou a mão ao coração e curvou‑se.

‑Se me devo apresentar com a mesma frontalidade - continuou Mr. Pluck ‑ se devo dizer que o meu nome é Pluck, ou se devo pedir ao meu amigo Pyke para garantir que o meu nome é Pluck; se devo pretender o seu conhecimento unicamente ao nível do forte interesse que tenho pelo seu bem‑estar, ou se devo dar‑me a conhecer como amigo de Sir Mulberry Hawk. estas, Mrs. Nickleby, são considerações que lhe deixo para determinar.

‑Qualquer amigo de Sir Mulberry Hawk não precisa de melhor apresentação para mim ‑ observou Mrs. Nickleby graciosamente.

‑ É uma delícia ouvir dizer isso ‑ afirmou Mr. Pluck, chegando uma cadeira para perto de Mrs. Nickleby e sentando‑se. ‑ consolador saber que tem o meu excelente amigo, Sir Mulberry, em tão elevada estima. Um segredo, Mrs. Nickleby. Quando Sir Mulberry o souber, será um homem feliz. digo, Mrs. Nickleby, um homem feliz!. Pyke, senta-te!

‑A minha boa opinião ‑ declarou Mrs. Nickleby, e a pobre senhora exultava com a ideia de ser maravilhosamente astuta ‑ é de muito pouca consequência para um cavalheiro como Sir Mulberry.

‑De pouca consequência! ‑ exclamou Mr. Pluck. ‑ Pyke, qual é a consequência para o nosso amigo Sir Mulberry a boa opinião de Mrs. Nickleby?

‑Qual é a sua consequência? ‑ ecoou Pyke.

‑Sim ‑ repetiu Pluck ‑ não é de grandíssima consequência?

‑ De grandíssima consequência ‑ concordou Pyke.

‑Mrs. Nickleby não pode ignorar ‑ confessou Mr. Pluck

‑ a imensa impressão que essa linda rapariga tem.

‑Pluck! ‑ avisou o amigo. ‑ Cautela!

‑Pyke tem razão ‑ murmurou Mr. Pluck depois duma curta pausa. ‑ Não devia mencionar isto. Pyke tem razão. Obrigado, Pyke!

‑ Realmente nunca vi tanta delicadeza como esta ‑ pensou Mrs. Nickleby.

Mr. Pluck, depois de fingir, durante uns minutos, estar em grande embaraço, continuou a conversa, advertindo Mrs. Nickleby para não fazer caso do que tão inadvertidamente declarara.

‑ Mas quando ‑ afirmou Mr. Pluck ‑ vi tanta doçura e beleza dum lado e tanto ardor e devoção do outro, eu. Desculpa‑me, Pyke, não tencionava continuar este tema. Muda o assunto, Pyke.

‑ Prometemos a Sir Mulberry e a Lorde Frederick ‑ disse Pyke ‑ passar por aqui esta manhã para sabermos se a senhora se tinha constipado a noite passada.

‑ Não me constipei nada a noite passada, sir – respondeu Mrs. Nickleby ‑ com muitos agradecimentos para Sua Excelência e para Sir Mulberry por me darem a honra de saber de mim; nem a mais pequena constipação ‑ o que é muito singular, pois realmente sou muito sujeita a elas... de facto muito sujeita. Tive uma vez uma constipação ‑ creio que foi no ano de mil oitocentos e dezassete; deixe‑me ver; quatro e cinco são nove, e. sim, mil oitocentos e dezassete, de que julgava nunca mais me ver livre. Por fim curei‑me apenas com um remédio de que não sei se alguma vez ouviu falar, Mr. Pluck. Tem‑se um galão de água tão quente quanto se possa suportar, com uma libra de sal e seis pence do mais fino brande, sentâmo-nos com a cabeça metida nele durante vinte minutos, todas as noites precisamente antes de ir para a cama, não queria dizer a cabeça. são os pés. É uma cura muitíssimo extraordinária, muitíssimo extraordinária! Empreguei‑a pela primeira vez, lembro-me, no dia seguinte ao Natal e no meado de Abril a seguir, a constipação tinha‑se ido embora. Parece um completo milagre quando se pensa nele, pois eu tinha a constipação desde o princípio de Setembro.

‑Que aflitiva calamidade! ‑ comentou Mr. Pyke.

‑ Horrível! ‑ exclamou Mr. Pluck.

‑Mas vale a pena ouvir, quanto mais não seja para saber que Mrs. Nickleby melhorou, não é assim, Pluck?

‑É uma circunstância que tem um interesse extraordinário ‑ replicou Mr. Pluck.

‑ Mas vamos ‑ advertiu Pyke, como se lembrasse subitamente ‑ não devemos esquecer a nossa missão no prazer desta entrevista. Viemos com uma missão, Mrs. Nickleby.

‑Com uma missão! ‑ exclamou a boa senhora, em cujo espírito se apresentou imediatamente, em vivas cores, um pedido formal de casamento.

‑De Sir Mulberry ‑ informou Pyke. ‑ A senhora deve sentir‑se muito triste aqui.

‑Bastante triste, confesso ‑ informou Mrs. Nickleby.

‑ Temos os cumprimentos de Sir Mulberry Hawk e um milhar de súplicas para que aceite um lugar num camarote privado para a peça desta noite ‑ disse Mr. Pluck.

‑Oh, meu Deus! ‑ respondeu Mrs. Nickleby. ‑ Eu nunca saio, nunca!

‑ É essa a verdadeira razão, minha querida Mrs Nickleby, por que deve sair esta noite ‑ replicou Mr. Pluck. ‑ Pyke, suplica a Mrs. Nickleby.

‑ Oh, peço-lhe! ‑ secundou Mr. Pyke.

‑Tem positivamente de ir! ‑ instou Pluck.

‑O senhor é muito amável ‑ disse Mrs. Nickleby, hesitando ‑ mas.

‑Não há mas neste caso, minha querida Mrs. Nickleby ‑ ripostou Mr. Pluck ‑ nem existe tal palavra no vocabulário. O seu cunhado vai connosco, Lorde Frederic vai connosco, Sir Mulberry vai connosco. Pyke vai connosco. uma recusa está fora de questão. Sir Mulberry manda uma carruagem para sí

vinte minutos antes das sete ‑ e a senhora não será tão cruel que desanime todo o grupo, Mrs. Nickleby.

‑O senhor é tão convincente que eu mal sei o que hei‑de dizer! ‑ replicou a digna senhora.

‑Não diga nada; nem uma palavra, minha queridíssima madanm ‑ pediu Mr. Pluck. ‑ Mrs. Nickleby declarou este excelente cavalheiro, baixando a voz ‑ é a quebra de confiança mais ridícula e mais desculpável o que lhe vou dizer; e, contudo, se o meu amigo Pyke a ouvisse ‑ tal é o delicado sentimento da honra dum homem, Mrs. Nickleby, punha‑me à margem antes do jantar.

Mrs. Nickleby deitou um olhar apreensivo para o homem delicioso, Pyke, que tinha ido para a janela, e Mr. Pluck, acenando com a mão, continuou:

‑ A sua filha fez uma conquista. uma conquista pela qual lhe dou os parabéns. Sir Mulberry, minha querida ma'am, Sir Mulberry é o seu escravo dedicado!

‑Ah! ‑ exclamou Mr. Pyke neste momento, tirando uma coisa de cima da pedra da chaminé com um ar teatral. O que é isto? O que é que eu contemplo?

‑O que contemplas tu, meu querido amigo? ‑ perguntou Mr. Pluck.

‑É a cara, as feições, a expressão ‑ exclamou Mr. Pyke, caindo na cadeira com uma miniatura na mão ‑ francamente retratadas, imperfeitamente apanhadas, mas contudo a cara, as feições, a expressão.

‑ Reconheço‑o a esta distância ‑ declarou Mr. Pluck num acesso de entusiasmo. ‑ Não é, minha querida madam, a pálida semelhança de.

‑ O retrato da minha filha ‑ informou Mrs. Nickleby com grande orgulho.

Assim era. A pequena Miss La Creevy trouxera‑o para o verem, havia apenas duas noites.

Mr. Pyke, logo que soube ter sido certa a sua conjectura, fez os mais extravagantes elogios ao original e Mr. Pluck apertou a mão de Mrs. Nickleby ao coração e deu‑lhe os parabéns por ter uma tal filha. A pobre senhora, que ouvira com muita complacência ao princípio, ficou conquistada por estas provas de estima pela família, e até a própria criadita ficou grudada ao chão, surpreendida com os êxtases dos dois simpáticos visitantes.

A pouco e pouco estes transportes acalmaram e Mrs. Nickleby continuou a entreter as visitas com os lamentos da sua fortuna perdida, da sua velha casa na província, pormenorizando-a até ao infinito, sem esquecer os degraus que havia a descer e a subir para o jardim e os excelentes apetrechos de cozinha. Esta última reflexão conduziu‑a, naturalmente, à casa da lavagem, onde se expandiu sobre os utensílios, e a conversa ter-se‑ia dilatado por uma hora se, por uma associação de ideias, Mr. Pyke se não lembrasse de que tinha uma sede horrível.

‑ E declaro‑lhe ‑ disse Mr. Pyke ‑ que se mandar buscar à taberna um jarro metade de cerveja forte e metade fraca, eu bebo‑o positiva e presentemente.

E positiva e presentemente Mr Pyke bebeu‑o, ajudado por Mr. Pluck, com grande assombro de Mrs. Nickleby.

‑Então aos vinte minutos para as sete ‑ lembrou Mr. Pyke levantando-se ‑ o carro estará aqui. Mais um olhar. um pequeno olhar para este lindo rosto. Ah! aqui está ele. Imóvel, imutável! Oh Pluck, Pluck!

Mr. Pluck só deu como resposta beijar a mão de Mrs. Nickleby com uma grande mostra de sentimento e de afecto. Tendo Mr. Pyke feito o mesmo, ambos os cavalheiros desapareceram rapidamente.

Mrs. Nickleby tinha, geralmente por hábito, atribuir‑se uma grande perspicácia, mas nunca como nesse dia. Nunca vira Kate com Sir Mulberry, nem lhe ouvira o nome deste, no entanto, previra logo, desde o princípio, a situação do caso. A prova suficiente tinha‑a na confidência que deixara escapar o amigo íntimo de Sir Mulberry. Gosto muito deste querido Mr. Pluck, declaro que gosto, confessou Mrs. Nickleby. Uma vez ou duas esteve quase resolvida a ir ter com Miss La Creevy e contar‑lhe tudo, Mas eu não sei, pensou Mrs. Nickleby, ela é uma pessoa digna, mas tão abaixo da posição de Sir Mulberry para nos fazer companhia. Pobre mulher! Rejeitando a ideia, contentou‑se em confidenciar vagas e misteriosas esperanças de dignidade à criadita, que recebera estas obscuras informações de grandeza com muita veneração e respeito.

Pontualmente à hora prometida, chegou o transporte, que não era um carro de aluguer, mas uma carruagem particular com o respectivo lacaio, onde Mrs. Nickleby se sentou muito direita e digna, não pouco orgulhosa da sua posição.

À entrada no teatro havia muita agitação e muito barulho e havia, também, Pyke e Pluck, esperando-a para a escoltarem ao camarote. Mal Mrs. Nickleby se tinha posto por detrás da cortina do camarote, sentada numa cadeira de braços, quando chegaram Sir Mulberry e Lorde Verisopht, na mais elegante maneira. Sir Mulberry estava um pouco mais grosseiro que no dia anterior e Lorde Verisopht parecia sonolento e esquisito, donde Mrs. Nickleby tirou a conclusão de que tinham acabado de jantar.

‑ Estivemos. estivemos. a beber à saúde da sua encantadora filha, Mrs. Nickleby ‑ sussurrou Sir Mulberry, sentando-se por detrás dela.

‑Oh! ‑ pensou aquela sabida senhora. ‑ Vinho na cabeça, verdade na língua. O senhor é muito gentil, Sir Mulberry.

‑Não, não, pela minha alma ‑ protestou Sir Mulberry Hawk. ‑ A senhora é que é gentil, pela minha alma que o é. Foi muito amável da sua parte em ter vindo esta noite.

‑Quer dizer que o senhor foi muito amável em convidar-me, ‑ retorquiu Mrs. Nickleby, levantando repentinamente a cabeça e olhando duma forma prodigiosamente matreira.

‑Estava tão ansioso por conhecê‑la, tão ansioso em cultivar a sua opinião, tão desejoso de que houvesse entre nós uma deliciosa espécie de harmonioso entendimento familiar

‑ declarou Sir Mulberry ‑ que não deve pensar que sou desinteressado naquilo que faço. Sou um infernal egoista. pela minha alma que o sou!

‑Tenho a certeza de que não pode ser egoista, Sir Mulberry! ‑ contestou Mrs. Nickleby. ‑ Tem um rosto muito franco e generoso para isso.

‑Que extraordinária observadora a senhora é! ‑ comentou Sir Mulberry Hawk.

‑Oh, não, na verdade não vejo as coisas muito profundamente ‑ declarou Mrs. Nickleby num tom de voz que deixou o baronete convencido de que ela, de facto, via profundamente.

‑ Tenho muito medo da senhora ‑ confessou o baronete.

‑ Pela minha alma ‑ repetiu Sir Mulberry, olhando em redor para os seus companheiros ‑ tenho medo de Mrs. Nickleby. Ela é tão astuta!

Pyke e Pluck abanaram as cabeças misteriosamente e observaram juntos que tinham visto isso há muito tempo. Por causa disto Mrs. Nickleby sorriu, Sir Mulberry riu e Pyke e Pluck resmungaram.

‑Mas onde está o meu cunhado, Sir Mulberry? ‑ perguntou Mrs. Nickleby. ‑ Eu não devia estar aqui sem ele. Espero que ainda venha.

‑ Pyke ‑ disse Sir Mulberry, tirando um palito e encostando‑se à cadeira, como se sentisse muito fatigado responder a esta pergunta. ‑ Onde está Ralph Nickleby?

‑Pluc ‑ repetiu Pyke, imitando o gesto do baronete e endossando a mentira ao amigo. ‑ Onde está Ráph Nickleby?

Mr. Pluck ia a dar uma resposta evasiva, quando o barulho causado por umas pessoas a entrarem no camarote ao lado pareceu atrair a atenção dos quatro cavalheiros, que trocaram olhares de muita compreensão. Os recém‑ chegados começaram a conversar entre si e Sir Mulberry pôs‑se subitamente a escutar com muita atenção, implorando aos amigos para não respirarem. ‑ Por que não? ‑ respingou Mrs. Nickleby. ‑ De que se trata?

‑Silêncio! ‑ recomendou Sir Mulberry, pondo a mão no braço da senhora. ‑ Lorde Frederick, reconheces o tom desta voz?

‑O diabo me leve se não penso ser a voz de Miss Nickleby.

‑Senhor, meu lorde! ‑ exclamou a mamã de Miss Nickleby, tirando a cabeça para fora do cortinado. ‑ Kate, minha querida Ciate!

‑Está aqui, mamã? É possível?

‑É possível, minha querida, pois é.

‑ Quem... quem são as pessoas que estão consigo,mamã?

‑ perguntou Kate, atirando-se para trás quando viu um homem a sorrir e a beijar a própria mão.

‑Quem supões tu,minha querida? ‑ retorquiu Mrs. Nickleby, cumprimentando Mrs. Wititterly e falando um pouco mais

alto para conhecimento desta senhora. ‑ São Mr. Pyke, Mr. Pluck, Sir Mulberry Hawk e Lorde Frederick Verisopht.

‑Bendito Céu! ‑ pensou Kate,horrorizada. ‑ Como veio

ela em tal companhia?

Kate,ainda com a lembrança do medonho jantar de Ralphtornou‑se extremamente pálida e agitada, o que, sendo observado por Mrs Nickleby, foi por ela tomado à conta dum violento amor. A boa senhora apressou‑se a deixar o seu camarote levada pela ansiedade de mãe e a entrar no de Mrs. Wititterly

a qual, pensando na glória de ter um baronete e um lorde como conhecimentos,fez sinal ao marido para deixar a porta aberta. Em vista desta disposição o camarote de Mrs. Wititterly encheu‑se dentro de pouco tempo,de tal modo que só houve espaço para Pick e Pluck meterem as cabeças e os coletes.

‑Ah, querida criança. ‑ disse Mrs. Nickleby,beijando a filha afectuosamente ‑ como parecias tão doente há um momento atrás! Declaro que me assustaste bastante!

‑ Foi uma impressão sua,mamã... talvez o reflexo das luzes ‑ respondeu Kate, relanceando nervosamente em redor e vendo ser impossível sussurrar‑lhe qualquer explicaçãoou aviso para ter cautela.

‑Não vês Sir Mulberry Hawk,minha querida?

Kate inclinou‑se ligeiramente e,mordendo os lábios,voltou a cabeça para o palco.

            Mas Sir Mulberry Hawk não era assim tão facilmente batido,por isso avançou com a mão estendida e como Kate foi disso oficiosamente informada pela mãe,foi obrigada a estender também a sua. Sir Mulberry reteve‑a enquanto murmurava uma profusão de cumprimentos,que Kate considerou como agravos ao insulto que lhe fizera. Seguiu‑se depois o reconhecimento de Lorde Verisopht,de Mr Pike e de Mr. Pluck efinalmente,para completar a mortificação da rapariga,foi compelida,a pedido de Mrs. Wititterly,a apresentar tão odiosas pessoas,que ela olhava com a maior indignação e aborrecimento.

‑ Mrs Wititterly está encantada ‑ afirmou Mr. Wititterlyesfregando as mãos ‑ encantada,meu lorde,tenho a certeza, com a oportunidade de contrair um conhecimento que, espero, meu lorde se estreitará. Júlia,minha querida,não te deves excitar demasiado. Não deves, minha querida,Mrs. Wititterly é duma natureza muito excitável,Sir Mulberry. O pavio duma vela,o morrão dum candeeiro,a cor dum alperche,a penugem duma borboleta. Podia atirá‑la com um sopro para longe,meu lorde,podia de facto.

Sir Mulberry parecia pensar que a senhora fosse afastada com um sopro,no entanto,disse que o prazer era mútuo e Lorde Verisopht acrescentou que era mútuo, após o que se ouviu Misters Pyke e Pluck murmurarem a distância que era mútuo, de facto.

‑ Tenho um interesse meu lorde. ‑ declarou Mrs. Wititterly com um pálido sorriso ‑ um tal interesse pelo drama!

‑Sim, é muito interessante ‑ corroborou Lorde Verisopht.

‑Depois de ouvir Shakespeare fico sempre doente ‑ confidenciou Mrs. Wititterly. ‑ No dia seguinte mal vivo; sinto uma reacção tão grande depois duma tragédia, meu lorde, e Shakespeare é uma criatura tão deliciosa!

‑ Sim ‑ replicou Lorde Verisopht. ‑ Era um homem muito esperto.

‑ Sabe, meu lorde ‑ continuou Mrs Wititterly depois dum longo silêncio ‑ acho que tomo muito mais interesse pelas suas peças depois de ter estado naquela triste casinha onde ele nasceu. Já lá esteve alguma vez, meu lorde?

‑ Não, nunca! ‑ respondeu Verisopht.

‑Então deve lá ir, meu lorde ‑ replicou Mrs. Wititterly com acentos lânguidos e pachorrentos. ‑ Não sei como é, mas depois de se ter isto o lugar e de escrever o nome no livrinho, parecemos ficar inspirados; ateia‑se uma chama dentro de nós.

‑ Sim ‑ concordou Lorde Verisopht. ‑ Terei certamente de ir lá.

‑Júlia, minha vida ‑ interrompeu Mr. Wititterly ‑ estás induzindo em erro Sua Excelência. impensadamente, meu lorde, ela está a enganá-lo, minha querida. a tua alma etérea. a tua férvida imaginação que te atira para um fogo de génio e de excitação. Não há nada na casa, minha querida. nada, nada!

‑ Creio que deve haver alguma coisa na casa ‑ disse Mrs. Nickleby, que tinha estado ‑ em silêncio ‑ pois pouco depois de casar fui a Stratford com o pobre querido Mr. Nickleby numa sege de posta desde Birmingham. era uma sege de posta! ‑ reflectiu Mrs. Nickleby. ‑ Sim, deve ter sido uma sege de posta porque me lembro de observar nessa ocasião que o cocheiro tinha o olho esquerdo negro. numa sege de posta até Birmingham e, depois de vermos o túmulo de Shakespeare e a casa onde nasceu, voltamos para a estalagem, onde dormimos essa noite, e lembro‑me que durante toda a noite só sonhei com um cavalheiro preto, de tamanho natural, em gesso, com um colarinho voltado para baixo, atado com duas borlas, encostado a um poste a pensar; e quando acordei de manhã e descrevi a Mr. Nickleby, ele disse que era Shakespeare tal e qual como quando era vivo, o que foi, de facto muito curioso, Stratford. Stratford ‑ continuou Mrs. Nickleby a considerar ‑ Sim, tenho a absoluta certeza disso porque me lembro de estar, ao tempo, grávida do meu filho Nicholas e assustei‑me muito nessa mesma manhã com um retrato dum rapaz italiano. De facto foi uma completa providência, ma'am ‑ acrescentou Mrs. Nickleby num murmúrio para Mrs. Wititterly ‑ o meu filho não se tornar num Shakespeare e que horrível coisa teria sido!

Quando Mrs. Nickleby acabou esta interessante história, Pyke e Pluck, sempre zelosos da causa do seu patrono propuseram a divisão dos espectadores pelos dois camarótes e de tal forma se houveram que Kate, apesar dos seus protestos, teve de sofrer a presença de Sir Mulberry Hawk. Sua mãe e Mr. Pluc acompanharam‑nos, tendo a senhora o cuidado de não largar a filha de vista durante toda a noite fingindo prestar atenção às conversas do cavalheiro que tinha sido posto como sentinela junto de si. Lorde Frederick Verisopht ficou no outro camarote a ouvir conversar Mrs. Wititterly, com Mr. Pyke como auxiliar, e quanto a Mr. Wititterly não pode ter mão em si que não mostrasse os seus conhecimentos das pessoas distintas com quem conversavam, o que fez morrer de inveja muitos respeitáveis guardalivros.

A noite terminou, por fim, e Kate foi acompanhada a descer as escadas pelo detestado Sir Mulberry, devido às hábeis medidas de Misters Pyke e Pluc, que fizeram com que eles fossem os últimos do grupo.

‑Não se apresse, ‑ disse Sir Mulberry quando Kate procurava tirar‑lhe o braço e tentava caminhar mais rapidamente. Ela não respondeu e continuou a andar mais ligeira.

‑ Não, então. ‑ observou Sir Mulberry, parando‑a rapidamente.

‑ É melhor que me não procure deter, sir! ‑ protestou Kate, zangada.

‑E porque não? ‑ perguntou Sir Mulberry. ‑ Minha querida, porque conserva essa aparência de desprazer?

‑Aparência! ‑ repetiu Kate indignada. ‑ Como se atreve a falar comigo sem eu o autorizar. a dirigir‑se‑me. a vir à minha presença?

‑ É mais bonita quando está zangada, Miss Nickleby - afirmou Sir Mulberry Hawk, curvandw-se, para melhor lhe ver o rosto.

‑Tenho por si a mais profunda abominação e o mais profundo desprezo, sir ‑ disse Kate. ‑ Se acha algum atractivo nos olhares de desgosto e de aversão, o senhor. deixe-me ir ter imediatamente com os meus amigos, sir! Quaisquer considerações que me impeçam de continuar, desprezo‑as todas e digo‑lhe duas coisas de tal maneira que mesmo o senhor há-de sentir, se me não deixa imediatamente prosseguir o meu caminho.

Sir Mulberry sorriu, ficou a olhar‑lhe para a cara e, com o braço dela agarrado, encaminhou‑se para a porta.

‑ Se o meu sexa ou a minha desprotegida situação o não leva a desistir desta perseguição grosseira e insolente ‑ declarou Kate mal sabendo o que dìzia no tumulto da sua indignação. ‑,tenho um irmão que um dia lha fará pagar caro!

‑Pela minha alma! ‑ exclamou Sir Mulberry como se falasse consigo e passando o braço pela cintura dela ‑ parece mais linda e gosto mais dela deste modo de que quando de olhos baixos e está em perfeita calma.

Quando Kate chegou ao salão, onde os seus aguardavam, passou a correr por eles sem os ver e, libertando-se subitamente do companheiro, entrou na carruagem, onde se atirou para o canto mais escuro, desatando a chorar.

Misters Pyke e Pluck, conhecendo a sua obrigação, começaram a gritar pelas carruagens, estabelecendo uma violenta questão com algumas pacíficas pessoas que ali estavam; no meio do tumulto conseguiram meter na sua carruagem Mrs. Nickleby, esquecendo-se da rapariga. Por fim, o carro onde esta tinha vindo, pôs-se a andar e os quatro dignos compa nheiros, ficando sós sob o alpendre, começaram a rir às gargalhadas.

‑Não te disse a noite passada que se pudéssemos saber onde eles iam, peitando um criado por intermédio do meu camarada, e estabelecermo‑nos depois junto da mãe, que a honra desta gente seria a nossa? Aqui tens, feito em vinte e quatro horas ‑ declarou Sir Mulberry, voltando‑se para o seu nobre amigo.

‑ Sim ‑ replicou o tolo ‑ mas eu fiquei amarrado à velha toda a noite.

‑Ouçam‑no ‑ disse Sir Mulberry, dirigindu-se aos seus dois amigos ‑ ouçam este rosnador descontente. Não dá vontade uma pessoa não o tornar a ajudar nos seus planos e estratagemas? Não é uma vergonha indecente?

Pyke perguntou a Pluck se era, ou não uma vergonha indecente, e Pluck perguntou a Pyke, mas nenhum deles respondeu.

‑ Não foi verdade? ‑ inquiriu Verisopht. ‑ Não foi assim?

‑ Não foi assim? ‑ repetiu Sir Mulberry. ‑ De que maneira terias tu obtido as coisas? Como terias conseguido um convite geral à primeira vista. ‑ Venha quando quiser, vá quando quiser, demore‑se o tempo que quiser, faça o que quiser ‑ se tu, o lorde, não te tivesses tornado agradável à parva da dona da casa? Importo‑me com esta rapariga a não ser por ser teu amigo? Não estive a apregoar aos ouvidos dela as tuas prendas e sofrendo os seus amuos e impertinências toda a noite por tua causa? De que estofo pensas tu que sou feito? Faria eu isto por toda a gente. sem ao menos merecer gratidão em paga?

‑Tu és um belo camarada! ‑ disse o pobre jovem lorde, agarrando no braço do amigo. ‑ Pela minha vida, és um belo camarada, Hawk.

‑ E procedi bem, não procedi?

‑ Perfeitamente.

‑E como um pobre pateta e bondoso cão amigo, como eu sou?

‑ Sim, sim, como um amigo ‑ respondeu o outro.

‑Então bem ‑ disse Sir Mulberry. ‑ Estou satisfeito.

E agora vamos tirar a nossa desforra ao barão alemão e ao francês, que te limparam tão lindamente a noite passada.

Com estas palavras a sociável criatura agarrou no braço do companheiro e conduziu‑o dali, voltando‑se um pouco para Pyke e Pluck, a quem piscou o olho e sorriu desdenhosamente. Estes, metendo os lenços na boca para denotarem o seu silencioso divertimento com tudo o que se estava passando, seguiram o patrono, e a vítima, a uma pequena distância.

 

Miss Nickleby, desesperada pela perseguição de Sir Mulberry e com aflições que surgem, apela, em último recurso, para a protecção do tio.

A manhã seguinte trouxe reflexões consigo, mas essas reflexões foram diferentes para as diversas pessoas que tomaram parte nas cenas da noite antecedente, devidas à actividade de Pyke e Pluck. As reflexões de Sir Mulberry Iiawk sobre Kate Nickleby era que ela era indubitavelmente bonita e que podia ser facilmente conquistada por um homem com a sua experiência, desde que lhe fizesse uma cerrada perseguição. As de Mrs. Nickleby eram dum género mais orgulhoso e complacente e sob a influência da agradável ilusão em que vivia escreveu uma comprida carta à filha, dando o seu inteiro aplauso à escolha feita e pondo Sir Mulberry nos píncaros da lua. A pobre Kate, não tendo pregado olho toda a noite, chorando e velando no seu quarto, foi obrigada, no dia seguinte, a mostrar boa cara e boa disposição a Mrs. Wititterly, pois para isso lhe pagava e a sustentava.

Eram quatro horas da tarde e Mrs. Wititterly, reclinada no sofá da sala, como de costume, escutava uma nova novela em três volumes, intitulada The Lady Flabella, que Kate lia em voz alta. Era uma produção admiravelmente talhada para a doença de Mrs. Wititterly, por não despertar qualquer excitação fosse a quem fosse.

Kate leu:

Cherizettee, disse Lady Flabella, metendo os pézinhos nos sapatos de quarto em cetim azul, que tinham, imprudentemente, ocasionado uma altercação, meio a brincar, meio zangada, entre ela e o jovem coronel Befillaire no salon de danse do Duque de Mincefenille na noite anterior. aCherizette, ma cenère, don nez‑moá de 1'eau‑áe‑Coloque, s'il vous plait, mon enfant' Mercie.

‑ Obrigada, disse Lady Flabella quando a viva, mas dedicada Cherizette, borrifou a fragrante composição no mouchoir de finíssima cambraia de Lady Flabella, debruado com riquíssima renda e brasonado nos quatro cantos com o escudo de Flabella, mostrando a heráldica desta nobre família. Mercie, já está.

Neste instante, enquanto Lady Flabella ainda aspirava aquele delicioso perfume, levando o mouchoir ao seu nariz delicado e sonhadoramente cinzelado, a porta do boudoir, artisticamente escondida por ricos cortinados de damasco, na cor alacre do céu de Itália, abriu‑ se de par em par e dois Valets‑dechambre, vestidos com sumptuosas librés cor de pêssego e ouro, avançavam silenciosamente, precedendo um pajem com bas de soie ‑ meias de seda ‑ o qual, enquanto os outros ficavam a alguma distância, fazendo as mais graciosas reverências, seguiu até aos pés da sua adorada senhora e, pondo um joelho em terra, apresentou‑lhe uma perfumada cartinha numa salva dourada, finamente cinzelada.

Lady Flabella, com uma agitação que não pôde reprimir, rasgou rapidamente o sobrescrito, quebrando o perfumado selo. Era de Befillaire ‑ jovem elegante, de voz magoada ‑ o seu Befillaire.

‑Oh! Que encanto! ‑ interrompeu a patroa de Kate, que era algumas vezes literata ‑ Realmente poético. Leia outra vez essa descrição, Miss Nickleby.

Kate, satisfez‑lhe a vontade.

‑ Linda, na verdade! ‑ comentou Mrs. Wititterly com um suspiro. ‑ Tão voluptuoso, não é? Tão mavioso?

‑Sim, julgo que é ‑ respondeu Kate amavelmente,Muito mavioso!

‑Feche o livro, Miss Nickleby ‑ pediu Mrs. Wititterly. Não posso hoje ouvir mais nada; ficaria triste se perturbasse a impressão desta doce descrição. Feche o livro.

Kate assim fez, não sem vontade, e quando fechou o livro Mrs, Wititterly ergueu a luneta com mão lânguida e observou que ela estava pálida.

‑Foi o sobressalto do barulho e da confusão da noite ‑ explicou Kate.

‑Como isso é singular! ‑ exclamou Mrs. Wititterly com um olhar de surpresa.

E começou a pensar que era muito singular que qualquer coisa pudesse ter perturbado a sua companheira. Uma máquina a vapor, ou outra engenhosa peça de mecanismo, fora de ordem, não seria nada comparado com isso.

‑Como conheceu Lorde Frederick e as outras amáveis criaturas, minha filha? ‑ perguntou Mrs. Wititterly, olhando para Kate, ainda através da luneta.

‑Encontrei‑os em casa do meu tio ‑ informou Kate, vexada por se sentir corar profundamente, mas incapaz de impedir que o sangue lhe subisse às faces quando se lembrava daquele homem.

‑Conhece‑os há muito tempo?

‑ Não ‑ respondeu Kate ‑ não muito.

‑Estou muito contente com a oportunidade que sua mãe nos deu de os conhecermos ‑ declarou Mrs. Wititterly em tom mais alto. ‑ Alguns amigos nossos estavam para no‑los apresentar o que torna o caso muito notável.

Isto foi dito para Miss Nickleby perceber bem a honra e dignidade de terem conhecido quatro grandes pessoas pois Pyke e Pluck estavam incluídos entre as deliciosas criaturas, as quais não eram das relações de Mrs. Wititterly, Mas como esta circunstância não fazia impressão alguma no espírito de Kate, a força da observação perdeu‑se inteiramente.

‑ Pediram licença para vir cá ‑ informou Mrs. Wititterly ‑ e eu dei‑lhes, naturalmente.

‑Espera-os hoje? ‑ aventurou‑se Kate a perguntar A resposta de Mrs. Wititterly perdeu‑se no meio do tre mendo barulho que faziam a bater à porta da rua enquanto saía dum lindo cabriolé Sir Mulberry Hawk e o seu amigo Lorde Verisopht.

‑Eles aí estão ‑ anunciou Kate; levantando-se e fugindo.

‑Miss Nickleby! ‑ chamou Mrs. Wititterly, espantada com o gesto da dama de companhia em deixar o aposento sem primeiro lhe pedir licença e obtê‑la, ‑ Peço-lhe para não se ir embora.

‑A senhora é muito boa, mas disse Kate.

‑Por amor de Deus, não me queira irritar, fazendo‑me falar muito ‑ declarou Mrs. Wititterly com grande severidade. ‑ Meu Deus, Miss Nickleby, eu peço...

Era inútil Kat protestar que se não sentia bem, pois já se ouviam os passos das visitas na escada. Voltou, portanto, para o seu lugar e mal acabara de se sentar quando o duvidoso pajem entrou como uma seta no aposento e anunciou Mr. Pyke e Mr. Pluck, Lorde Verisopht e Sir Mulberry Hawk, duma só tirada.

‑ A coisa mais extraordinária do mundo ‑ disse Mr. Pluck, saudando ambas as senhoras com a maior cordialidade, quando Lorde Frederick e Sir Mulberry chegaram com o cárro à porta, Pyke e eu tínhamos acabado de bater.

‑Batemos naquele instante! ‑ confirmou Pyke.

‑Não importa como vieram, uma vez que estão aqui - declarou Mrs. Wititterly, a qual, pelo facto de se sentar no mesmo sofá durante três anos e meio, tinha completamente adquirido uma pequena mímica de graciosas atitudes, entregando-se a uma série delas, das mais surpreendentes, para espantar os visitantes. ‑ Estou encantada, posso assegurar‑lhes!

‑E como está Miss Nickleby? ‑ perguntou Sir Mulberry Hawk em voz baixa, aproximando-se de Kate, o que não foi isto dito tão baixo que não chegasse aos ouvidos de Mrs. Wititterly.

‑Queixa‑se do sobressalto da noite passada ‑ informou a senhora. ‑ Não me espanta nada disso, pois os meus nervos ficaram num feixe.

‑ E, no entanto, a senhora parece ‑ observou Sir Mulberry, voltando‑se ‑ e no entanto a senhora parece.

‑Estar acima de tudo ‑ completou Pyke, vindo em socorro do patrono e naturalmente, Pluck disse o mesmo.

‑Tenho receio de que Sir Mulberry seja lisonjeiro, meu lorde ‑ declarou Mrs Wititterly, voltando‑se para o jovem fidalgo, que tinha estado a chupar o castão da bengala, em silêncio, olhando para Kate.

‑Oh! diabos! ‑ respondeu Verisopht, voltando depois ao entretenimento anterior.

‑ Nunca a aparência de Miss Nickleby foi pior ‑ observou Sir Mulberry, deixando cair sobre ela o seu olhar atrevido. Foi sempre linda, mas, pela minha alma, ma'am, parece que lhe comunicou parte do seu bom aspecto.

Mrs. Wititterly, depois do rubor que subiu ao rosto da pobre rapariga, podia supor ter‑lhe concedido um pouco da sua cor artificial, admitindo, embora de má vontade, que Kate era linda, e começou a acreditar que Sir Mulberry não era uma pessoa tão agradável como supusera.

‑Pyke ‑ disse o atento Pluck, observando o efeito que o elogio fizera em Miss Nickleby.

‑ Mize, Pluck ‑ respondeu Pyke.

‑Não há ninguém? ‑ perguntou Mr. Pluck misteriosamente ‑ Ninguém que tu conheças que te faça lembrar o perfil de Mrs. Wititterly?

‑Que me faça lembrar? ‑ respondeu Pyke. ‑ Decerto!

‑Quem tens tu na ideia? ‑ inquiriu Pluck, com as mesmas maneiras misteriosas. A D. de B. ?

‑A G. de B. ‑ replicou Pyke, com o ligeiro traço dum sorriso a aparecer‑lhe nas feições. ‑ A irmã linda é a condessa e não a duquesa.

‑Está certo ‑ afirmou Pluck ‑ a C. de B. A semelhança é espantosa.

‑Perfeitamente assombrosa ‑ confirmou Mr. Pyke. Segundo o testemunho de duas verídicas e competentes pessoas, Mrs. Wititterly foi considerada o verdadeiro retrato da condessa. Era uma das consequências de entrar na boa sociedade. Os dois cavalheiros, tendo percebido que Mrs. Wititterly mordia a isca, começaram a dar‑lha em maiores doses, para Sir Mulberry poder manobrar à vontade junto de Miss Nickleby. Lorde Verisopht, sentindo‑se enjoado com o gosto do castão de ouro da bengala, estava para dar por terminada a entrevista quando Mr. Wititterly, muito oportunamente, chegou a casa, levando a conversa para um campo mais favorável.

‑ Meu lorde ‑ disse Mr. Wititterly ‑ estou encantado, honrado. orgulhoso. Suplico‑lhe que se torne a sentar, meu lorde. Sinto-me orgulhoso, de facto... muitíssimo orgulhoso.

Foi com secreto aborrecimento da esposa que Mr. Wititterly afirmou isto, pois embora ela rebentasse de orgulho e arrogância, queria fazer crer aos seus ilustres hóspedes que a sua visita era uma ocorrência completamente vulgar e tinham lordes e baronetes a vê‑los todos os dias. Mas os sentimentos de Mr. Wititterly não se podiam disfarçar.

‑É, na verdade, uma honra! ‑ continuou Mr. Wititterly.

‑ Júlia, minha alma, amanhã sofres por causa disto!

‑ Sofre? ‑ exclamou Lorde Verisopht.

‑A reacção; meu lorde, a reacção ‑ explicou Mr. Wititterly. ‑ Este violento esforço do sistema nervoso, meu lorde, o que causa? Um abatimento, uma depressão, uma prostração, uma lassidão, uma debilidade. Meu lorde, se Sir Zrnley Snuffim estivesse a ver esta delicada criatura neste momento, não daria isto pela sua vida.

Para ilustrar a sua observação Mr. Wititterly tirou uma pitada de rapé da caixa e atirou‑a ligeiramente para o ar como um emblema de instabilidade.

‑Nem aquilo ‑ prosseguiu Mr. Wititterly, olhando em volta com uma expressão séria. ‑ Sir Tumley Snuffim não daria aquilo pela existência de Mrs. Wititterly.

Mr. Wititterly afirmou isto com uma espécie de sóbria exultação, como se fosse uma distinção ter uma esposa num tão desesperado estado, e Mrs. Wititterly suspirou e olhou como se sentisse a honra, mas estando determinada a suportá‑la tão suavemente quanto pudesse.

‑ Mrs. Wititterly ‑ atirmou o marido ‑ é a doente favorita de Sir Izmley Snutfim. Creio poder dizer que Mrs. Wititterly foi a primeira que tomou o novo remédio que se supõe ter destruído uma família em Kensington Gravel Pits. Creio que sim. Se estou enganado, Júlia, minha querida, corrige‑me.

‑ Creio que fui ‑ confessou Mrs. Wititterly em voz fraca. Como parecia haver uma certa dúvida no espírito do seu protector a respeito da melhor forma de entrar na conversa, o infatigável Mr. Pyke atirou‑se para a luta e perguntou se o remédio era bom.

‑Não, sir, não era. Não tinha, mesmo, uma recomendação. ‑ informou o marido.

‑ Mrs. Wititterly é uma mártir ‑ observou Pyke com uma reverência de cumprimento.

‑Penso que sou ‑ afirmou Mrs. Wititterly, sorrindo.

‑Julgo que és, minha querida Júlia ‑ replicou o marido num tom que parecia dizer que ele não era vaidoso, mas devia insistir nos privilégios de ambos. ‑ Se alguém, meu lorde - acrescentou, voltando‑se para o fidalgo ‑ me mostrasse uma mártir tão grande como Mrs. Wititterly, tudo o que podia dizer era que me sentia feliz em conhecê‑la, fosse homem ou mulher.

Pyke e Pluck, notando que a visita se tinha prolongado, obedeceram ao olhar de Sir Mulberry e levantaram‑se para sair, sendo imitados por Sir Mulberry e Lorde Verisopht. Trocaram‑se mútuos protestos de amizade e foi renovada a certeza da casa dos Wititterlys ter sempre muita honra com tão distintas visitas.

E as visitas sucederam‑se, jantando um dia, ceando noutro, encontrando-se por casualidade, fazendo grupo para visitarem lugares públicos, estando sempre Miss Nickleby exposta à constante perseguição de Sir Mulberry Hawk. As coisas seguiram assim durante quinze dias e, embora Sir Mulberry fosse baronete e Lorde Frederick um lorde, não deixavam, contudo, de ser grosseiros, vulgares e insolentes. Mas como a dona da casa os tolerava, o que podia a dama de companhia fazer contra isso? E o pior é que o odioso Sir Mulberry Hawk se ligava a Kate, com mais ou menos disfarce e Mrs. Wititterly se sentia ciumenta dos atractivos de Miss Nickleby. Se este sentimento servisse para não a admitir na sala, enquanto recebesse estas visitas, Kate só teria que se congratular mas, infelizmente para ela, possuía a graça natural e a verdadeira gentileza de maneiras, que dão o maior encanto a uma reunião especialmente quando a dona da casa não passava duma bonéca animada. A consequência disto era Kate ser obrigada a estar sempre presente e exposta ao mau humor de Mrs. Wititterly quando eles se iam embora.

Mrs. Wititterly nunca tirou a máscara a Sir Mulbeny, mas quando viu não ser mais do que uma personagem secundária, apossou‑se dela a maior indignação e sentiu ser seu dever, como senhora casada, mencionar a circunstância à jovemn sem demora.

De acordo com isto Mrs. Wititterly enristou a lança na manhã seguinte.

‑Miss Nickleby ‑ disse Mrs. Wititterly ‑ desejo falar‑lhe muito gravemente. Tenho muita pena de o fazer, mas não vejo outra alternativa.

Aqui Mrs. Wititterly levantou repentinamente a cabeça, não apaixonadamente, mas virtuosamente e notou, com uma aparência de excitação, temer que as palpitações do coração lhe viessem de novo.

‑O seu procedimento, Miss Nickleby, está muito longe de me agradar. Tinha muito interesse, na verdade, de que se conduzisse bem, mas se continua assim, deixa muito a desejar.

‑Ma'am! ‑ exclamou Kate orgulhosamente.

‑Não me irrite, falando-me dessa forma, Miss Nickleby

‑ preveniu Mrs. Wititterly com uma certa violência ‑ ou obriga‑me a tocar a campainha!

Kate olhou para ela, mas não disse nada.

‑Não vá supor ‑ prosseguiu Mrs. Wititterly ‑ que o olhar‑me dessa forma, Miss Nickleby, evita o que lhe vou dizer e que reputo ser um dever religioso. Não precisa de me dirigir esses olhares ‑ insistiu com uma súbita explosão de despeito.

‑Eu não sou Sir Mulberry, Lorde Frederick Verìsopht, nem Mr. Pyke ou Mr. Pluck.

Kate voltou a olhar para ela, mas menos firmemente e, apoiando o cotovelo na mesa, cobriu os olhos com a mão.

‑ Se estas coisas se tivessem passado quando eu era uma jovem rapariga ‑ continuou Mrs. Wititterly ‑ não suponho que alguém acreditasse nelas.

‑Não julgo que acreditem ‑ murmurou Kate. ‑ Não penso que alguém acredite sem o saber, o que me parece estar condenada a sofrer.

‑Não me fale de estar condenada a sofrer, se faz favor Miss Nickleby ‑ pediu Mrs. Wititterly com uma vibração na voz muito surpreendente em doente tão grave. ‑ Não quero que me responda, Miss Nickleby, não estou acostumada a que me respondam, nem lho permito por um só momento. Ouviu?

‑ acrescentou, aguardando com uma aparente inconsistência, por uma resposta.

‑ Tenho de a ouvir, ma'am ‑ respondeu Kate ‑ com surpresa. a maior surpresa que posso exprimir.

‑ Sempre a considerei como uma jovem bem educada para a sua situação na vida ‑ declarou Mrs. Wititterly ‑ e como a sua aparência é saudável e a sua maneira de vestir é correcta, tomei interesse por si, como ainda tenho, considerando que contraí uma espécie de dever para com essa respeitável senhora que é a sua mãe. Por estas razões, Miss Nickleby, devo dizer‑lhe duma vez para sempre que tome conta no que digo: quero que mude imediatamente o seu procedimento para com os cavalheiros que visitam esta casa. É impróprio, completamente impróprio.

‑Oh! ‑ exclamou Kate, levantando os olhos e torcendo as mãos. ‑ Isto é cruel e duro demais para se suportar! Não basta que tenha sofrido como tenho, noite e dia, como ainda quase baixar‑me na minha própria estima pela vergonha de ter dado a conhecer essa gente, e ser incriminada com essa injusta e infundada acusação.

‑Terá a bondade de se lembrar, Miss Nickleby ‑ advertiu Mrs. Wititterly ‑ que quando usar esses termos, injusta e infundada, acusa‑me a mim, dizendo que falto à verdade.

‑ Acuso ‑ respondeu Kate com honesta indignação. ‑ Se a senhora faz essa acusação deitando‑a para cima dos outros, procede como eu. Digo que é uma mentira vil, torpe e perversa. É possível que uma pessoa do meu sexo possa estar sentada ao pé de mim e não veja a mágoa que estes homens me causam? É possível que a senhora, ma'am, tenha estado presente e não tenha notado a insultante liberdade que todos os seus olhares contêm? É possível que não tenha querido ver que esses libertinos, no seu claro desrespeito por si, só tiveram um fim ao introduzirem-se aqui e que o progresso dos seus desígnios numa rapariga sem amigos e sem apoio devia ter o seu repúdio sem a necessidade desta humilhante confissão? Não. Não posso crê‑lo!

Se a pobre Kate tivesse o mais leve conhecimento do mundo não se aventuraria a fazer um tal discurso. Mrs. Wititterly ouviu com heroismo tudo quanto ela disse sobre os seus sofrimentos, mas quando chegou à altura dos cavalheiros a desrespeitarem sentiu uma violenta emoção e caiu no sofá, proferindo fracos gritos.

‑O que é isto? ‑ exclamou Mr. Wititterly, entrando de repente na sala. ‑ Céus, o que vejo! Júlia, Júlia! Olha para mim, minha vida, olha para mim!

Mas Júlia olhava para baixo e gritava ainda mais, Mr. Wititterly tocou a campainha, dançando em volta do sofá onde Mrs. Wititterly jazia, gritando por Sir Tumley Snuffim e sem deixar uma só vez de pedir uma explicação para a cena que tinha diante de si.

‑ Corre à procura de Sir IZmley ‑ ordenou Mr. Wititterly ao pajem, ameaçando-o com ambos os punhos. ‑ Eu sabia isto, Miss Nickleby ‑ disse ele, olhando em volta com um ar de melancólico triunfo ‑ que a sociedade tem sido demasiado grande para ela. Isto é tudo alma, tudo sofrimento!

Com esta convicção Mr. Wititterly agarrou no corpo prostrado de Mrs. Wititterly e levou-o para a cama.

Kate aguardou até Sir Tumley Snuffim ter feito a visita e, tendo Mrs. Wititterly providencialmente adormecido, vestiu‑se rapidamente para sair, deixou o recado que voltaria dentro de duas horas e correu para casa do tio.

Tinha sido um dia completamente feliz para Ralph Nickleby, que passeava dum lado para o outro no aposento das traseiras, fazendo cálculos às quantias ganhas nessa manhã e o sorriso duro que lhe encurvava a boca, e olhar frio e vivo, pareciam dizer que nenhuma resolução o levaria a não aumentar os seus recursos.

‑Muito bem ‑ disse Ralph, sem dúvida uma alusão a qualquer acontecimento do dia ‑ ele desafia o usurário, não desafia? Bem! Havemos de ver. A honestidade é o melhor procedimento, não é? Experimentemos isso também.

Parou e depois recomeçou a passear.

‑Ele está contente ‑ continuou Ralph, abrandando o sorriso ‑ por opor o seu carácter e conduta contra o poder do dinheiro. escória, como lhe chama. Mas que estúpido cabeçudo deve ser! Escória também... escória! Quem está aí!

‑Eu ‑ respondeu Noggs. ‑ A sua sobrinha!

‑ O que é que ela quer? ‑ perguntou Ralph asperamente.

‑ Está aqui.

‑ Aqui?

Newman acenou com a cabeça para o seu pequeno escritório a indicar que ela estava lá à espera.

‑ O que quer ela? ‑ inquiriu Ralph.

‑Não sei ‑ respondeu Newman. ‑ Quer que lhe pergunte? ‑ acrescentou rapidamente.

‑ Não ‑ retorquiu Ralph. ‑ Traga‑a para aqui. espere.

‑ e rapidamente substituiu um cofre que estava sobre uma mesa por uma bolsa vazia. ‑ Agora pode entrar.

Newman, com um frio sorriso por esta manobra, fez sinal à rapariga para avançar e, tendo posto uma cadeira para ela, retirou‑se, olhando, furtivamente por cima do ombro, para Ralph.

‑Bem ‑ principiou Ralph com um modo bastante áspero, mas ainda assim mais amável do que teria mostrado a qualquer outra pessoa. ‑ Bem, minha querida. O que se passa?

Kate levantou os olhos cheios de lágrimas e, esforçando-se por dominar a sua emoção, tentou falar, mas em vão. Assim baixando a cabeça, ficou silenciosa. Ralph não lhe podia ver a cara mas percebeu que ela estava a chorar.

Adivinho a causa disto, pensou Ralph depois de a olhar por muito tempo em silêncio. Adivinho... Bem! Bem!ir, continuou a pensar completamente desconcertado pela angústia da linda sobrinha. Onde está o mal! Apenas umas poucas de lágrimas, que são uma excelente lição para ela. uma excelente lição.

‑O que se passa? ‑ perguntou Ralph, puxando uma cadeira para defronte e sentando-se.

A súbita firmeza com que Kate o encarou e lhe respondeu, atirou‑o para trás.

‑ O que me traz aqui, sir ‑ respondeu ela ‑ é de natureza a fazê‑lo corar e envergonhá‑lo de ouvir, como me envergonho de falar. Tenho sido injuriada, os meus sentimentos têm sido ultrajados, insultados, feridos sem cura possível, pelos seus amigos.

‑Amigos! ‑ exclamou Ralph severamente. ‑ Eu não tenho amigos, rapariga.

‑Então pelos homens que vi aqui ‑ retorquiu Kate rapidamente. ‑ Se não eram seus amigos e sabia quem eram, então mais vergonhoso foi o seu procedimento, tio, por me ter trazido para o meio deles. Ter‑me sujeitado a que me expusesse aqui, com uma indevida confiança, teria uma farta desculpa, mas o senhor fê‑lo ‑ como creio agora que fez, conhecendo‑os bem e isso é muitíssimo cobarde e cruel.

Ralph atirou‑se para trás com perfeito espanto por este discurso franco e contemplou Kate com um olhar furioso, mas ela afrontou os seus olhos altivos e firmemente e, embora o rosto estivesse muito pálido, resplandecia mais nobre e bonito, iluminado como estava e como nunca aparecera antes.

‑Vejo que há em si alguma coisa do sangue desse rapaz ‑ disse Ralph, falando num tom aspérrimo, como se perdurasse nele um pouco do olhar fuzilante de Nicholas no seu último encontro.

‑ Espero que haja! ‑ replicou Kate. ‑ Sinto‑me orgulhosa em sabê‑lo. Sou nova, tio, e todas as dificuldades e desgraças da minha situação conservaram esse sangue escondido, mas hoje revoltw-me contra todo esse sofrimento e venho dizer‑ lhe que não suportarei estes insultos por mais tempo, como filha do seu irmão.

‑Que insultos, rapariga? ‑ perguntou Ralph com um modo cortante.

‑Lembre‑se do que se passou aqui e pergunte a si próprio ‑ respondeu Kate, corando intensamente. ‑ Tio, o senhor deve - tenho a certeza de que o fará ‑ livrar‑me dessa vil e degradante companhia a que tenho estado exposta até agora. Não quero dizer ‑ acrescentou Kate, correndo para o homem e pondo‑lhe o braço no ombro ‑ não quero dizer para ser violento ‑ desculpe‑me se lhe dei isso a entender, querido tio ‑ mas não sabe o que tenho sofrido, com certeza! Não pode perceber o que é o coração duma rapariga... mas se lhe digo que sOu desgraçada e que o meu coração sofre,tenho a certeza de que me ajudará. Tenho a certeza... que sim! Ralph olhou por um instante para ela, depois voltou a cabeça e bateu nervosamente com o pé no chão.

           ‑ Tenho andado dia após dia ‑ confessou Kate,curvando       ‑se para ele,pondo timidamente a sua mão na dele ‑ com a esperança de que esta perseguição cesse. Tenho sido obrigada a aparentar alegria quando sou muitíssimo infeliz. Não tenho tido um cavalheiro,ninguém para me proteger. A mamã supõe que eles são homens honrados,ricos e distintos e como posso eu... como posso eu desiludi‑la... sendo esta a única felicidade que tem? A senhora onde me colocou não é uma pessoa a quem possa confiar assuntos tão delicados,por isso vim em última análise ter consigo,o única amigo que tenho à mão ‑ quase o único amigo que tenho ‑ para lhe suplicar e implorar que me ajude.

           ‑Como posso eu ajudá‑la,criança? ‑ perguntou Ralph            levantando-se da cadeira e passeando de cá para lá no aposento.

           ‑ Eu sei que tem influência sobre um destes homens ‑ replicou Kate enfaticamente. ‑ Uma palavra sua não os levará a desistirem deste desumano procedimento?

           ‑Não ‑ respondeu Ralph,voltando-se de golpe – pelo menos... não posso dizê‑la,mesmo se ela produzisse efeito.

            ‑ Não pode dizê‑lo!

           ‑Não ‑ afirmou Ralph,parando e apertando mais as mãos atrás de si ‑ não poso!

           Kate recuou um passo ou dois e olhou para ele,na dúvida se tinha ouvido bem.

           ‑Estamos ligados em negócios ‑ explicou Ralph,pondo ‑se, nas pontas dos pés e nos calcanhares,e olhando para a cara da sobrinha ‑ e não me atrevo a ofende‑los. No fim de contas de que se trata? Todos temos as nossas cruzes e esta é uma das suas. Algumas raparigas sentir‑se‑iam orgulhosas de terem tais admiradores a seus pés.

‑ Orgulhosas! ‑ exclamou Kate.

           ‑Não digo ‑ replicou Ralph, levantando o indicador     que não faça bem em os desprezar; não,mostra com isso o seu bom senso,como na verdade sabia desde o princípio que assim procederia. Não é muito para suportar. Se esse jovem lorde lhe segue os passos como um cão e lhe segreda parvoíces ao ouvido,o que tem isso? uma paixão ignominiosa.

           Seja,mas não deve durar. Qualquer outra novidade o fará despertar qualquer dia e a menina ficará livre. Entretanto...

           ‑Entretanto ‑ interrompeu Kate com verdadeira altivez e indignação ‑ sou o escárnio do meu sexo e o joguete do outro; justamente condenada por todas as mulheres de         sentimentos dignos e desprezada por todos os homens honestos e honrados; abatida na minha própria estima e aviltada por todos os olhos que me fitam. Não, ainda que tenha de suportar o trabalho mais duro e mais árduo. Não me julgue mal. Não desonrarei a sua recomendação. Permanecerei na casa em que me colocou até estar em situação de a deixar pelas condições do meu compromisso. embora. cuidado eu nunca mais veja esses homens. Quando deixar o emprego esconder‑me‑ei deles e de si, e esforçar‑me‑ei para sustentar a minha mãe com um serviço duro, mas ao menos viverei em paz e na esperança de que Deus me ajude.

Dizendo estas palavras Kate saudou com a mão e abandonou o aposento, deixando Ralph rígido como uma estátua. A sua surpresa, quando fechou a porta foi encontrar Newman Noggs num pequeno nicho na parede junto dela, quase a obrigando a gritar. Mas Newman pôs o dedo nos lábios e ela teve a presença de espírito para se reprimir.

‑Não chore, não chore! ‑ implorou Newman deslizando para fora do nicho e acompanhando-a através dó átrio; enquanto falava duas grandes lágrimas caíam‑lhe pela cara.

‑Vejo como isto é! ‑ disse o pobre Noggs, tirando da algibeira o que parecia um velhíssimo pano de pó e limpando os olhos de Kate com tanto cuidado como se ela fosse uma criança. ‑ Esteve agora a trair‑se. Sim, sim, muito bem; perfeitamente, gosto disso. Não foi bom trair‑se à frente dele. Sim, sim. Pobre menina!

Com estas desconexas exclamações, Newman limpou os seus próprios olhos com o mesmo pano e indo a coxear para a porta da rua, abriu‑a e deixou‑a sair.

‑ Nunca mais chare ‑ sussurrou Newman. ‑ Vê‑la‑ei em breve. E também outra pessoa! Sim, sim!

‑Deus o abençoe ‑ respondeu Kate, apressando‑se a sair.

‑Deus o abençoe!

‑O mesmo lhe desejo ‑ replicou Newman, abrindo a porta outra vez, só um bocado para dizer isto. ‑ ah! ah!

E Newman Noggs voltou a abrir a porta para acenar alegremente e rir. e fechou‑a para abanar a cabeça melancolica mente e chorar.

Ralph ficou na mesma atitude até ouvir o barulho da porta a fechar‑se; depois encolheu os ombros e sentou‑se à secretária. Embora Ralph não sentisse remorsos pela sua conduta para com a inocente rapariga, embora os seus libertinos clien tes tivessem feito precisamente o que ele esperava, e precisamente o que contribuia para sua maior vantagem, contudo odiou‑os por o terem feito, do fundo da alma.

‑Uf! ‑ exclamou Ralph com uma grande carranca e batendo com as mãos enclavinhadas nas caras dos dois malvados que julgava ter diante de si. ‑ Vocês hão‑de pagar isto! Oh! hão-de pagar isto!

Quando o usurário voltou aos seus livros e papéis ficaria muito surpreendido se soubesse o que se passava fora da porta do seu escritório. Newman Noggs, com as mangas do casaco levantadas, ocupava-se a dar os mais vigorosos, cientificos e bem aplicados socos no ar Qualquer pessoa julgaria estar devido aos seus hábitos sedentários, a abrir os pulmões e á reforçar os músculos. Mas como os socos eram todos dirigidos a um painel cinco pés e oito acima do chão, um observador atento perceberia a intenção de atingir mentalmente, o retrato do seu activíssimo patrão, Mr. Ralph Nickleby.

 

                                                                                            CONTINUA  

 

                      

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