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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NINGUÉM É UMA ILHA / J. M. Simmel
NINGUÉM É UMA ILHA / J. M. Simmel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

“Ninguém é uma Ilha” são palavras pronunciadas por Sylvia Moran, uma bela mulher e artista internacional de cinema, durante opulenta reunião de gala em Monte Carlo, de fins beneficentes. Poucos anos mais tarde, quando esta mulher alcança sucesso extraordinário com seu último filme, ela é acusada de homicídio. O motivo que a levou a praticá-lo é um enigma para o promotor, o juiz e o advogado de defesa, tanto mais que a própria Sylvia insiste em se acusar do crime.
Johannes Mario Simmel deixa Philip Kaven, o “constante companheiro” da artista, relatar como o assassinato chegou a ser praticado. É uma confissão que prende a atenção de todos os que a lerem, deixando-os sem fôlego da primeira à última linha. Kaven, que se acha sob prisão preventiva, não poupa nem a si nem aos outros, mostrando as enganadoras aparências do mundo do cinema, dos impiedosos e cansativos trabalhos de filmagem; fala das brilhantes pré-estréias, das intrigas de dirigentes frios e calculistas, do brilho e da desgraça do terque-se-manter jovem e bela, e de chantagem brutal.
Acima de tudo, no entanto, Philip Kaven nos relata a tragédia de uma mulher, como mãe. No auge da fama é obrigada a suportar o mais amargo sofrimento por causa de Babs, sua filha. Uma dor que centenas de milhares de mães são obrigadas a suportar. A desgraça revela a Philip Kaven um mundo inteiramente diferente, que ele, como a maioria dos homens, ignorava ou fazia questão de ignorar. É mundo do heroísmo silencioso, da dedicação a criaturas indefesas. Mundo da Sra. Reinhardt, que consagrou sua vida a pessoas sem esperança de cura. Para Kaven, este encontro com Ruth Reinhardt leva a uma mudança radical. Ele, um cínico playboy, que não conhecera outra coisa que não fosse egoísmo, em ambientes de mentira e hipocrisia, descobre algo em que nunca acreditou-, o amor.
Como de outras vezes, este novo romance de Simmel é a expressão de um engajamento do autor-. “É uma arrogância inadmissível, e mesmo criminosa, um ser humano declarar que a existência de seu semelhante tem ou não sentido. É uma decisão que não cabe a nós, criaturas desnorteadas e impotentes, que rastejamos por este mundo. Jamais poderemos avaliar o significado que poderá ter uma vida humana, significado extraordinário até em sua profunda miséria, ou talvez exatamente devido a ela”, pois Ninguém é uma Ilha.

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CDD - 833 CDU-830-31 É uma arrogância inadmissível, criminosa até, um ser humano querer declarar que a existência de seu semelhante tem ou não sentido. É uma decisão que não cabe a nós, criaturas desnorteadas e impotentes, que rastejamos por este mundo. Jamais poderemos avaliar o significado que poderá ter uma vida humana, significado extraordinário, até em sua mais profunda miséria ou talvez, exatamente devido a ela.Número do processo: 5 Js 422/73.
I. ACUSAÇÃO
na causa criminal contra
MANKOW Susanne, conhecida por MORAN Sylvia nascida em Berlim em 25 de maio de 1935. Estado civil: solteira; nacionalidade: alemã; profissão: artista. Atualmente em prisão preventiva em Nuerenberg. Residência: Mandeville Canyon, 705
Beverly Hills, Califórnia Estados Unidos.
Filha de: MANKOW Erich, falecido e de
MANKOW Olga, Oster em solteira, falecida.
O Ministério Público apurou os seguintes fatos em inquérito:
A ré marcou um encontro para o dia 8 de outubro de 1973, às 17 horas, no Hotel "A Roda Branca", com Romero RETTLAND, seu conhecido há anos, artista de cinema, nascido em 9 de agosto de
1912, em Myrtle Creek, Oregon Estados Unidos, e que lhe havia
pedido uma entrevista.
A ré não revelou o motivo deste encontro, nem o teor da conversa aí mantida com Rettland. Porém, diante de fatos como ser este hotel conhecido local de encontro, e da acusada ter-se apresentado disfarçada, de peruca e óculos escuros, deduz-se que ele tenha sido de caráter estritamente particular e sigiloso.
Provou-se que em 1961 Rettland fora contratado para trabalhar num filme rodado em Berlim em companhia da acusada, então artista inteiramente desconhecida, que usava o nome Mankow. Rettland vivia insistindo ser o pai de BARBARA {Babs), agora com onze anos, filha da ré, que conforme testemunha e declaração da imprensa, se encontra nos Estados Unidos, num internato em Morristown, cerca de quarenta quilômetros ao norte de Filadélfia, no Estado do mesmo nome. A ré apresentou provas que excluem a paternidade de Rettland, negando-se no entanto veementemente a prestar qualquer declaração a respeito de suas relações com a citada pessoa, bem como sobre o teor da entrevista mantida com ela em 8 de outubro de 1973. Daí conclui-se que a ré esteja ocultando propositalmente o motivo do crime.
Pelas provas constatou-se que:
A ré trazia consigo uma pistola marca Walther, modelo TPH, calibre
6,35 mm, e foi encontrada no quarto 39 do Hotel “A Roda Branca” empunhando a pistola. Portanto, ela mesma deve ter disparado o tiro. O projétil retirado do corpo da vítima foi, segundo o parecer do perito em balística, disparado por aquela arma e, conforme declaração do médico-legista, a morte foi instantânea.
Rettland não trazia arma alguma, nem tampouco qualquer documento de identidade. -Nos bolsos de seu terno foram encontrados apenas uma argola com três chaves, 85 dólares e 30 cents, e dois traveller-cheques de 2.000 dólares cada um.
O quarto em que ocorreu o crime havia sido reservado pela ré.
Diante destas circunstâncias conclui-se que Rettland estava indefeso, sem suspeitar de nada.
Por isto a ré é acusada de ter assassinado Romero Rettland traiçoeiramente, abusando de sua boa-fé e da impossibilidade de defesa da vítima, respondendo portanto por crime de homicídio qualificado, conforme o parágrafo 211 do Código Penal Alemão.
Anexo à Acusação de 20 de dezembro de 1973
na causa criminal
contra
MANKOW Susanne, conhecida por MORAN Sylvia
1) Testemunhas:
a) Josef KUNZINGER, porteiro do Hotel “A Roda Branca”, Nuerenberg; fl. 4.
b) Elfie KRAKE, prostituta registrada, Nuerenberg; fl. 7.
c) Joe Gintzburger, Presidente da SEVEN STARS, sociedade cinematográfica americana de Hollywood; fl. 15.
d) Rod BRACKEN, empresário da ré, Hollywood; fl. 15.e) Dra. Ruth REINHARDT, chefe da Casa de Saúde Sophia, Nuerenberg; fl. 35.
f) Philip KAVEN, sem profissão, por ocasião em prisão preventiva; fl. 8.
g) Wigbert SONDERSEN, comissário-chefe, Nuerenberg; fl. 10.
h) Dr. Elliot KASSNER, chefe do Departamento de Psiquiatria do Hospital Santa Mônica, Beverly Hills; fl. 62.
i) Dr. Robert Sigrand, chefe do Hospital Sainte-Bernadette, Paris; fl. 51.
j) Dr. Clemens Holloway, diretor do Internato de Norristown; fl.
72.
k) Alexandre DROUANT, comissário-chefe da Policia de Segurança de Monte-Carlo; fl. 81.
l) Julio KAVA, diretor de cinema, Madrid; fl. 93.
m) Carlo MARONE, distribuidor de filmes, Roma; fl. 97.
n) Frédéric GÉRARD, locutor-chefe e animador, RÁDIO e TV MONTE-CARLO; fl. 76.
o) Bob CUMMINGS, diretor de filmagem da SYRAN Productions, Hollywood; fl. 100.
p) Carmen CRUZEIRO, secretária de línguas, Madrid; fl. 87.
2) Peritos:
a) Dr. Walter LANGENHORST para balística, Berlim; fl. 96.
b) Prof. Hans PRINNER do Instituto Médico-Legal, Nuerenberg; fl. 14.
c) Prof. Wilhelm ESCHENBACH da Clínica Psiquiátrica da Universidade de Erlangen; fl. 107.
3) Provas coletadas:
a) Pistola marca Walther, modelo TPH, calibre 6,35mm;
b) um par de óculos escuros;
c) uma peruca loura;
d) um medalhão de abrir de ouro, contendo uma foto em cores da filha da ré
4) Testemunhas.Por determinação do parágrafo 80 da legislação geral e parágr. 7 e 9 do Código de Processo Penal Alemão, o julgamento é de competência do Tribunal do Júri, do Tribunal de 1ª Instância de Nuerenberg-Fuerth.
Advogado de Defesa: Dr. Otto NIELSEN, Nuerenberg. Loblerstrasse 126*
Eu apresento a denúncia, requerendo que:
a) a acusação seja admitida ao Tribunal de Nuerenberg-Fuerth para audiência;
b) seja marcada a audiência;
c) seja mantida a prisão preventiva, uma vez que persistem as razões da mesma.
Termo de detenção provisória, segundo o parágrafo 117 Abs. 5 StPO:
Expiração do prazo indicado no parágrafo 121 Abs. 2 StPO, 8 de abril de 1974.
Próximo termo de detenção provisória, segundo o parágrafo 122 Abs. 4 StPO: 8 de abril de 1974
d)
Como provas aponto:
1. Testemunhas:
2. Peritos:
3. Documentos:
4. Outras provas:
II. Com os Autos
vide Anexo
Ao sr. Presidente do Tribunal
Correcional de 1ª Instância de Nuerenberg-Fuerth.
Nuerenberg, 20 de dezembro de 1973
A Procuradoria do Estado junto ao Tribunal de 1ª Instância de Nuerenberg-Fuerth
Procurador-GeralSintoma
SABINA: Somos todos tão ruins quanto possível.
“Conseguimos Escapar Mais Uma Vez”
THORNTON WILDERBoa tarde. Queira por favor se apresentar diante da janela de vidro
fosco, junto à coluna esquerda do portão. Preste atenção para que seu rosto fique bem em frente ao vidro, mantendo sempre uma distância deste, cerca de
dez centímetros. Muito obrigada. A voz feminina, profunda e metálica
(certamente gravada) que saía dos sulcos de uma placa cromada, e era ouvida sempre que se apertava a campainha do portão, calou-se. Ouvia-se o ruído da
ligação e eu já conhecia toda esta cena pois estivera aí antes na noite
anterior.
Dirigi-me portanto ao pequeno quadrado de vidro fosco, na coluna esquerda do portão. Tive que me abaixar um pouco, pois tenho 1,82m de altura, mantendo sempre a distância pedida. Era uma quarta-feira, 24 de novembro de 1971. Chovia a cântaros, um vento irritante fustigava Paris. O frio era intenso.
A chuva escorria da minha capa, entrava pelo colarinho, penetrava pela sola dos sapatos. Por medida de precaução estava tomando remédio contra gripe desde que cheguei a Paris nesse tempo miserável, pois só me faltava ficar doente agora! Gostaria é de me embebedar completamente, me sentia tão arrasado, tão deprimido! Mas agora não podia nem pensar em semelhante coisa. Precisava de idéias claras para poder raciocinar friamente. Se acontecesse mais alguma coisa... Uma luz violenta se acendeu sobre minha cabeça. Também isso eu já conhecia. Todos que vinham aqui e tinham o direito de entrar, o conheciam. Éramos informados antes, como eu o havia sido. Na velha mansão lordesca lá no fundo do parque, que não se podia distinguir na escuridão, havia uma pequena instalação de televisão de circuito fechado. O gigante que estava de guarda (eles se revezavam ininterruptamente de oito em oito horas, conforme também me haviam informado) possuía em seu quarto (que não me mostraram, mas do qual me falaram) um aparelho de televisão. Nele agora via meu rosto. Todos que aqui vinham e obtinham permissão para voltar, eram imediatamente fotografados. O guarda de serviço provavelmente possuía álbuns com todos os retratos na sua frente. Os mais recentes talvez ainda estivessem espalhados na mesa diante dele. Certamente agora devia estar procurando o meu, confrontando-o com o do vídeo. E a voz metálica de mulher: Agora diga seu nome, por favor. Devagar e claramente, por favor.
Este solo ouvia-se primeiro em francês, depois o pedido era repetido em alemão, inglês e italiano.
- Now pronounce your name. Slowly and clearly, please...
- Adesso dica il suo nome, perfavore. Lentamente e chiaramente, per favore...
Sempre a mesma voz. Uma senhora culta, sem dúvida.A chuva me escorria do cabelo para dentro dos olhos; tinha tirado o chapéu.
Philip Kaven respondi eu.
E a voz:
And your number please (E seu número, por favor).
Ed il suo numero, per favore.
Antes já fizera o pedido tm francês.
Desta vez respondi em francês para variar:
Treize.
Treze, era este o número que me havia sido dado na noite anterior quando aqui estive pela primeira vez. Os funcionários do estabelecimento tinham vindo nos apanhar numa grande camioneta americana. Não disseram uma única palavra no longo trajeto desde o aeroporto de Orly até aqui. Eram dois sujeitos imensos. Um deles também teve que saltar e se postar diante da janela antes do portão se abrir. Mais tarde então, antes de sair, me disseram que meu número de identificação era treze.
Não esqueça, sr. Kaven. Treze. Sem este número o senhor não
conseguirá passar pelo portão...
Lugar grã-fino! O mais grã-fino talvez e também o mais caro. Era impossível passar por cima da grade que cercava o parque, pois era arrematada por setas ligadas por um arame que certamente devia estar eletrificado. Por toda parte havia alarmas instalados, conforme me haviam explicado. O prédio todo, juntamente com o parque, devia ser tão seguro pelo menos quanto o tesouro do Banco da Inglaterra.
Aí fora, na pequena Rue Cave, bem junto ao Bois de Boulogne, havia apenas duas luzes acesas. Não tinha vivalma à vista. Mais deserto nem poderia ser. O que faziam durante o dia, quando estava claro e sem chuva, quando passava tráfego e pedestres? Certamente procederiam da mesma forma, pensei. O tráfego não devia ser grande. Os poucos transeuntes que passavam por esta rua com suas cinco mansões grandiosas, já deviam estar acostumados a ver e ouvir aquilo. E se não estivessem... o problema era deles.
Merci Disse a voz sedutora do gravador (sem dúvida tinha sido
escolhida por causa de seu timbre), repetindo “obrigada” em mais três línguas. Em seguida a fita desligou e a luz foi apagada. Os dois portões se abriram deslizando com um zumbido sobre trilhos. Estava no caminho de cascalho do parque. Imediatamente as duas bandas do portão se fecharam atrás de mim. Muito imponente, não acham? A mim também impressionou.
Nenhuma luz no parque. Apenas no chão, meio ocultas entre os arbustos, pequenas setas luminosas indicavam o caminho. Eram amarelas cor de ouro. Viam-se aí toda espécie de árvores, bordos, faias vermelhas, abetos, pinheiros, tílias. salgueiros e até uma palmeira! Esta, no entanto, parecia estar morrendo. Havia moitas com arbustos de tudo que era tipo. Não se via o gramado. O parque era fechado pela vegetação. Nas copas das árvores rugiao vento. Eu estava novamente de chapéu e seguia a direção indicada pelas setas. Consultei o mostrador luminoso do meu relógio. 18 horas e 36 minutos. Às 16 horas eu tinha saído do Hotel Le Monde. Evidentemente não usei o Rolls Royce de Sylvia, nem minha Maserati Ghibli. Também não tomei um carro dizendo ao motorista para onde devia me levar. Indiquei uma direção errada:
Place de la Concorde, por favor.
Perfeitamente.
O motorista partiu como louco. Já atravessaram Paris de táxi? Na hora do rush! Com um chofer francês? Então poderão me entender. Nunca? Então não têm a menor idéia do que seja. Não podem imaginar nem de longe! É realmente uma falha na cultura, que deve ser remediada, mas desde que disponham de bons nervos. Bons não; ótimos. Se este for seu caso, não deixe de passar por esta experiência! É algo que sem dúvida deve estar lhe fazendo falta. Sem isto também nunca aprenderá o autêntico francês dos parisienses.
Crevez, salopard!
Ta gueule, crapule!
Idiot, foutez le camp!
Bougre de con!
Gueule-de-merde!
Mond Dieu, quel con!
Enfoirè!
E assim por diante, sem parar. E tudo, evidentemente, sem nunca tirarem o cigarro do canto da boca. Acresce a isto as repetidas quase-colisões, as freadas com os pneus rangendo. As arrancadas bruscas, que jogam o passageiro violentamente para trás. As manobras do motorista, onde só nos resta rezar. Mas não diga ao motorista para andar mais devagar! Ele não o fará. Só irá lhe dizer para pegar você mesmo o volante e dirigir aquela maldita manjarra, ou o que é pior e mais provável ainda, apelará para a senhora sua mãe!
Eu já tinha passado por aquilo tantas vezes que nem percebia mais. Além disto estava ocupadíssimo. Olhava para os lados e para trás também. Estariam me seguindo? Se estivessem, tinha que arrumar um jeito de despistar. Até hoje sempre tinha conseguido. Mesmo ontem, depois da conferência no Hotel Bolder. Cheguei ao Le Monde a uma e meia da manhã. A esta altura já ocorrera a primeira desgraça.
Clarissa, a governanta, e Bracken estavam à minha espera. Bracken ligeiramente embriagado. Esperavam no salão feericamente iluminado do apartamento, onde há anos, sempre que vinha a Paris, me hospedava com a Sylvia. Um homenzinho baixo, de óculos com grossas lentes e expressão de infinita tristeza e bondade, também estava presente. Eu o conhecia.
Doutor Lévy!? Que faz o senhor aqui?
E ele me contou...
Era uma e meia da madrugada.Agora, na noite do mesmo dia, eu estava sentado no táxi. Tinha saltado na Place de la Concorde, e trocado de táxi. Continuei pela margem esquerda do Sena, ao longo do Quai D’Orsay. Seguindo pelo Quai Branly, em direção oeste, atravessei a Pont de Jéna, para o outro lado do rio. Outro táxi. O motorista esbravejava mais ainda que o anterior; teve que dar a volta pela Place du Trocadéro, atravessar a Avenue Poincaré, e depois seguir para o norte. Na esquina da Avenue Foch mudei mais uma vez de carro. Atravessei o Bois de Boulogne e segui para a Pont de Madrid. Havia feito praticamente um circuito inteiro e estava mais calmo: ninguém me seguira.
Enfrentando aquela chuva horrível, a ventania violenta, continuei andando. A distância até o Boulevard Richard Wallace não era longa. Não vi ninguém. A chuva era tanta que em dois minutos meus sapatos ficaram encharcados, as pernas das calças ensopadas, a capa escura de tanta água. Quando finalmente comecei a subir o Boulevard Richard Wallace estava ensopado da cabeça aos pés. A capa forrada de pele, brilhava. Água escorria do chapéu. Escorregava a todo instante. Praguejava mais que todos os motoristas juntos. Finalmente cheguei à Rue Cave. Em pé diante do portão de ferro batido, toquei a campainha.
Foi então que ouvi, em quatro idiomas diferentes, a voz feminina metálica e erótica ao alto-falante:
Boa tarde. Queira por favor se apresentar diante da janela de vidro
fosco, junto à coluna esquerda do portão...
Agora já havia atravessado o parque. A construção datava de 1880 ou
1890. Era exatamente a época em que sempre quis ter vivido. Carruagens, luz de lampiões, Oscar Wilde, que poderia até ter recebido algumas sugestões minhas para seu “Retrato de Dorian Gray”. Bons tempos! Quando a luz apagava não era por falta de energia, e quando a cortina descia, era uma cortina discreta de seda, e não de ferro...
Subi uma larga escadaria ladeada à esquerda e à direita por anjinhos de pedra. Um clarão como uma luz de flash iluminou-me mais uma vez. Depois a grande porta de entrada se abriu como por mão de fada. Eletrônica, tudo aqui era eletrônico! Entrei. Sabia perfeitamente o que me esperava. Na noite anterior tinha sido um choque para mim. O que por fora parecia um castelinho de Fin de Siècle, era por dentro uma clínica supermoderna.
Tudo branco. Aço e cromados. Corredores. Portas com letreiros: Laboratório I Eletrocardiograma Anestesia Laboratório II Chefe
médico Sala de Operação I Raio X Operação II InternaçãoOperação In. Lâmpadas vermelhas por cima das três salas de operação, apagadas. Nos corredores, que eu já atravessara uma vez. sentia-se um cheiro limpo de clínica. Ultralimpo. Não encontrei ninguém; não ouvi barulho nenhum. Por ocasião da minha primeira visita tinha sido assim também. Parecia não haver ninguém na casa. Até isto era extremamente bem organizado.
Cheguei aos dois elevadores. Um deles era amplo, para o transporte de doentes; o outro, um elevador comum. Como já disse, sabia andar por ali. Entrei no elevador, apertei o botão do terceiro andar. Com um leve zumbido o elevador subiu. Olhei-me no pequeno espelho da cabina. Vi meu rosto. Molhado. Chuva e suor. olheiras profundas. (Há duas noites não dormia mais de duas horas.) Tirei o chapéu. A- água escorreu.
Terceiro andar. Uma luz muito suave num corredor imenso. Nas portas números enormes, nada mais. Ainda não estivera aqui. mas sabia exatamente para onde queria ir.
Quarto número 11.
Era ali que eu tinha que entrar, pois me haviam dito à tarde, quando liguei do Le Monde. Abri a porta. Uma ante-sala escura. Não encontrei o interruptor. Infelizmente a porta se fechou e não consegui mais achar o
caminho de volta. Não havia jeito de encontrar a maldita porta os
senhores devem conhecer esta sensação. Fui tateando pelas paredes, suando
de raiva e fraqueza. Isto uma porta! Pronto uma maçaneta! Apertei-a.
A porta abriu. Pensei que fosse sair no corredor. Engano. Tinha aberto uma segunda porta. Dava para um quarto enorme. Também aí não encontrei o interruptor; mas consegui entrever alguma coisa, pois embutida na parede logo acima do assoalho, atrás de um grosso vidro amarelo, havia uma lâmpada acesa. Consegui distinguir uma cama de hospital no meio do quarto. Reconheci-a porque era branca. Lá fora o vento uivava. A chuva açoitava as vidraças. Aproximei-me da cama quase caindo por cima de uma cadeira. Foi aí que vi o belo serviço!
A cabeça completamente enrolada em grossas ataduras brancas. Só o nariz e a boca estavam livres. Gaze também por cima dos olhos. Aquele objeto branco imenso, era horrível. Só se via aquela enorme bola branca. Todo o resto estava coberto. O cheiro de Casa de Saúde era bem forte. Não consegui agüentar. Comecei a sentir enjôo.
- Sylvia! Nada.
- Sylvia! mais alto. Nada. ’-’-
Mais três vezes a chamei pelo nome, por fim já estava gritando. Nenhuma reação. Parecia morta.
Meti a mão debaixo do cobertor e peguei-lhe a mão. Gelada. Apertei a mão; belisquei-a. Nada. Notei então que atrás da bola branca, onde deviam ser as orelhas, e atrás na nuca, debaixo das ataduras, saíam finos tubos de plástico, descendo até o chão, para dentro de um vidro. Como não conseguisse enxergar direito, me abaixei. No vidro havia sangue; não muito mas havia. Levantei-me de novo. O suor me escorria pelo corpo. Tirei a capa encharcada e joguei-a no chão juntamente com o chapéu. Abri o paletó; afrouxei a gravata; abri o. botão do colarinho. Fiquei olhando para aquela horrível bola branca que envolvia a cabeça da Sylvia. Sylvia, que estava ali imóvel. Fiquei preocupado. E se acontecesse alguma coisa? Afinal temos que pensar em nós também, não é verdade?...
Muito bem. Todas as mulheres são loucas por mim.
Sim senhor, sou um daqueles tipos de homem com quem toda mulher sonha.
Por que não dizer logo, sou um Playboy.
Aqui no presidio tudo é excelente. As celas. Os colchões das camas. O tratamento psicológico. As instalações sanitárias. O atendimento médico e, a pedido, o conforto espiritual. A comida. A atitude compreensiva e delicada de todos os moradores e responsáveis, desde os guardas até o diretor. A possibilidade de praticar diversos esportes. A biblioteca. Nela se encontram não só as obras completas dos clássicos de diversos países e toda a espécie de ficção e não-ficção que serve de assunto de conversa para todo mundo, mas também modernos livros de consulta, como a quarta e nova edição revista da enciclopédia alemã o BROCKHAUS, publicado em Wiesbaden em 1971. Em seu
quarto volume (NEW SID) encontra-se à página 201, na coluna do meio
“Playboy” (ingl. pl’eiboi) herói de mulheres, elegante mundano, quase
sempre rico e desocupado.
O senhor leu, sr. Juiz? Gostaria de chamar sua atenção para as palavrinhas “quase sempre”. Quem quer que seja o autor da definição, eu lhe dou
meu aperto de mão espiritual embora (e eu lhe peço encarecidamente para
não tomar isto por critiquice, censura ou mania de pôr defeito) sendo imensamente grato pelo “quase sempre”, acho que a expressão ideal seria “por vezes”.
Playboy diz-se sem a menor cerimônia. O senhor, meritíssimo sr.
Juiz, pronuncia a palavra com certo desprezo, não é verdade? E tem razão, não é lá grande coisa mesmo. Porém, pela própria definição da enciclopédia, pelo “quase sempre”, conclui-se que existem nuanças, não é? E como são acentuadas! Um playboy na verdade nem sempre é rico, e seria bom que o público aceitasse esta circunstância como um fato. Eu, por exemplo, não tenho nenhum tostão. O senhor sacode a cabeça (não negue, sr. Juiz, sinto que está duvidando). O senhor está pensando no meu irmão e nas conhecidas indústrias de cabos de aço herdadas de meu pai. O drama que o senhor me faz contar - e o senhor sabe muito bem que não estou exagerandocausou sensação no mundo inteiro. O nome de minha família apareceu milhões e milhões de vezes em tudo que é meio de comunicação de massa. Pobre irmão Karl Ludwig! Como gostaria de lhe ter poupado tudo aquilo! Mas nunca dependeu de mim. Nunca! Eu estava sempre nas mãos de poderosas potências.
Se o senhor por acaso acha que é maravilhoso ser um playboy como eu, sem um tostão sequer, então se engana redondamente. É uma boa porcaria! É uma droga de profissão, uma existência desgraçada, sei lá o quê! Peço desculpas pelas palavras violentas que me escaparam. Receio até que em breve irão me escapar outras muito mais violentas ainda (“escapar” aliás não é bem o termo, não vou é poder evitá-las). Bem que não gostaria de ser playboy. Mas o que posso fazer? Sou mesmo. E que playboyl Sabe, meritíssimo sr. Juiz, muitas vezes tive ânsias de me esbofetear, esbofetear com vontade, horas a fio por tudo que fiz, pelo belo caráter que sou. Mas logo me lembro de minha boa vida, da despreocupação...
Que fique só entre nós. Houve tempos que nem foram dos piores. Já imaginou ser amado por uma Greta Garbo, por exemplo? E o senhor vai concordar quando afirmo que a artista que me ama é maior do que uma Greta Garbo. Ela é sem dúvida, e acho que o senhor não pode negar, a maior que já existiu em toda esta indústria. A maior: Sylvia Moran!
Evidentemente, e eu digo antes que o senhor o pense, estamos vivendo numa época em que a concepção de grande estrela, estrela de primeira grandeza, quase não existe mais. São muito poucas. Temos a Elizabeth Taylor, Claudia Cardinale, Sophia Loren, Barbara Streissand, Romy Schneider, Liza Minelli a filha de Judy Garland, e pouquíssimas outras, numa época em que o cinema internacional necessita cada vez mais de artistas homens. Os temas foram se tornando cada vez mais masculinos, sendo raras as produções que tenham grandes atrizes como atração principal.
O que está acontecendo afinal? Estará morrendo o interesse pelo que é feminino? Será que consciente ou inconscientemente os homens chegaram à conclusão de não sentir mais prazer no sexo oposto? Será que chegaram à decisão de resolver até isto entre si mesmos? Por que o repentino (aparente, será?) desinteresse naquilo que até hoje sempre foi do maior interesse? Será que o nosso planeta está ficando frio, impotente, homossexual, lésbico? E se, por quê? Será que no futuro seremos severamente punidos por sermos fósseis? ou melhor, normais?
A indústria cinematográfica não cria os sentimentos de uma época. Ela procura captá-los, se amolda a eles. E ela tem razão, embora talvez nem saiba por quê. Em sua obra “1984”, George Orwells chegou bem perto da explicação.
Será que o senhor sabe me dizer, sr. Juiz, de onde vem este evidente mai-estar diante de tudo que é feminino, esta patente glorificação de tudo que é masculino, do quanto mais bruto melhor? Certamente são tempos bons para muitos representantes do sexo forte, mas o senhor deve concordar, para uma criatura como eu, são perspectivas muito deprimentes, não acha? Medo de castração, complexo de Édipo, o tabu do incesto, aumento de repressão, regressão, o perigo dos impulsos, introjeção, substituição, ocupação, contra-ocupaçao, etc., etc., também não valem lá grande coisa. Faz muito tempo que Freud esgotou tudo isto. Hoje? Ele só presta é para o lixo! Sic transit gloria mundi. Mesmo assim não passou inteiramente a fama das mulheres. Elas ainda aparecem em filmes cada vez mais acentuadamente internacionais, com heróis masculinos, que mal conseguem correr de tão corpulentos. Ainda existem produções com estrelas de renome, e das poucas grandes que citei, Sylvia Moran é a maior. Ela é o expoente, não apenas no quadro deste desenvolvimento desolador (os tempos são realmente tenebrosos, sr. Juiz!), mas até se levarmos em conta toda a indústria cinematográfica.
Agora já não adianta mais. Logo no início tive que me tornar indiscreto, e em breve terei que fazer coisa pior ainda nesta minha confissão, pois esta estrela de primeira grandeza resolveu me dominar, o senhor nem sabe como! Para agora e todo o sempre, dos pés à cabeça, eu estava em seu poder. Eu era seu pão diário. Ela é que pensava assim. Eu gostaria de pensar coisa bem diferente, mas não conseguia mais sair deste círculo diabólico. E como não tem jeito mesmo, continuo a girar. Só lhe digo isto para que fique bem claro, desde o início, que não pretendo disfarçar meus atos com uma capa de ética fingida. Disto já passei há muito. Não pretendo mais me fazer de super-herói, coisa que aliás nunca fui. Sou um bom pedaço de bosta! Um patife dos mais infames que lhe conta aqui sua história. O autêntico crápula. Meu nome: Philip Kaven.
Por este nome me conhece o mundo inteiro, sem que disto eu me orgulhe; muito pelo contrário. Sou Philip Kaven, o eterno companheiro de Sylvia Moran. Tinha vinte e sete anos quando a conheci, e ela trinta e três. Já fazem agora cinco anos. Na próxima semana festejarei aqui, nesta confortável cela, meu trigésimo-segundo aniversário. Com trinta e oito está portanto agora a Sylvia, esta figura divina da indústria cinematográfica, universalmente reconhecida, e ao mesmo tempo também a mais louca, mais insaciável e mais imoderada de todas. O que fazer? Estamos em novembro de 1973. Desde 1968 sou sustentato por ela; por ela e mais ninguém. Antes, o playboy Philip Kaven vivia na miséria, numa merda de vida, e posso lhe garantir, sr. Juiz, que isto ainda é eufemismo. É bom lembrar a definição da palavra. “playboy” na enciclopédia, e as palavrinhas “quase sempre”.
Há cinco anos vivo exclusivamente da Sylvia; não adianta negar, pois agora tudo acabará vindo à tona. Tenho pena é de meu irmão Karl Ludwig, daquele rapaz honesto e de sua indústria. Mas tudo mudou por completo, principalmente depois de ainda ter sido morto aquele fulano. Vivo às custas da Sylvia Moran, e não vivo mal. Os ternos sob medida, as camisas de seda, os relógios de platina, todo meu guarda-roupa, a Maserati Ghibli (só ela
custou 130.000 francos! e sempre consegui engrenar 290 com a maior
facilidade!) tudo isto e muito mais ainda ela me dá. Só porque ela estoulonge de querer me gabar porque ela é louca por mim. Sempre fiz tudo
para contentá-la. Estava à sua disposição dia e noite, sempre. Cumpria todas suas ordens, atendia a todos os seus pedidos, e o senhor pode ter certeza, sr. Juiz, que não eram poucos. Ciúmes ela também tinha, evidentemente. Ciúmes loucos. Este sentimento vinha se agravando tanto, que na época em que começou tudo isto que iria culminar com o assassinato, eu mesmo muitas vezes pensei que fosse enlouquecer.
Em companhia de Sylvia Moran conheci nestes últimos anos tantos países e cidades em todos os cinco continentes do mundo, passei tanto tempo em hotéis de luxo, andei tanto de avião em linhas internacionais, voando de local a local onde eram rodados seus filmes, que minha memória me falha parcialmente. Uma coisa porém nestes cinco anos me deixou impressões que nunca esquecerei, que estarão para sempre gravadas na minha memória. São os homens e as mulheres que conheci e de cuja existência antes não tinha a menor idéia. Criaturas sem nome, por quem não se tocam fanfarras como para os monstros vertendo sangue, que seduzem e destroem a humanidade. Não existem condecorações para eles, apenas sacrifícios, privações, trabalho até a exaustão, novos desesperos e desilusões, mas também novas esperanças, novo ânimo, alimentados por fontes inesgotáveis. Homens e mulheres tão diferentes de tudo a que eu e também o senhor estamos acostumados, que, ao
conhecê-los, pensei ter chegado a outro planeta e tinha mesmo, a um
pequeno e belo planeta, em meio a este nosso tão grande e horrível.
“Uns vivem em plena luz; os outros no escuro estão. Só se vêem os na luz, os outros ninguém vê não.” Isto é Brecht, senhor juiz. E que seja, apesar de todo respeito que tenho pelo genial autor, eu o contradigo. Eu, um nada. Contradigo, porque sei e porque vi aqueles que estão no escuro. E digo mais ainda, praticamente nem vale a pena ver os que vivem na luz, sr. Juiz, isto eu hoje sei, depois de tudo por que passei neste outro estranho e maravilhoso planeta. Realmente, para alguém como eu, agora só vale a pena falar daqueles, já que eles fazem questão de não serem vistos.
O encontro com estas pessoas foi a coisa mais emocionante em toda minha vida. Nunca mais, isto eu garanto, poderei esquecer o menor detalhe sequer. Tenho a obrigação de falar sobre o bem que paradoxalmente, de maneira sinistra e perversa, surgiu do pior mal, das maiores calamidades, e que só a elas deve sua existência. Quero divulgar isto, pois creio que atingirá o espírito dos homens, terá que atingi-lo infalivelmente, numa proporção que não posso avaliar. Tenho que anunciá-lo nestas páginas, agora apenas ao senhor, mais tarde porém a muitos, ao maior número possível de pessoas. Para isto fui eleito, sr. Juiz (Por que eu? Exatamente eu, o mais indigno de todos!).
8E assim decidi, para sua tranqüilidade também, não mentir nunca. Não ter escrúpulo algum ora, eu e escrúpulos! Mas depois de toda minha experiência junto àqueles que vivem no anonimato, dos fracos, que por integridade e infinita humanidade acabaram se tornando os mais fortes entre os fortes,
9depois de tudo isto, não posso mais mentir. Não consigo mais! Poderia é me calar; mastenho que falar, tenho que prestar testemunho, e o farei, valendo-me da verdade, apenas da verdade. Revoltante, não acha, sr. Juiz, o atrevimento com que eu a esta altura ainda insisto em me dar luxos o luxo da verdade...
Prosseguindo, portanto, dentro deste meu. espírito: a Sylvia simplesmente me dava tudo. Ou melhor, quase tudo. Seu talão de cheques ou uma procuração de plenos poderes ela nunca me deu. Nem dinheiro na mão. Apenas uma mesada, que também não era lá muito polpuda. Pois ela estava certa de que se o fizesse, eu iria imediatamente traí-la, ou sumir com tudo que era seu, ou ambos. Esta mulher, sr. Juiz, tinha um instinto incrivelmente aguçado. Além disto ainda havia a menina, a Babs. Eu não era o pai, mas ela me solicitava como se fosse três vezes seu pai!
Atualmente ela tem quase onze anos. Tinha seis quando a vi pela primeira vez. Babs se tomou de amores por mim desde o primeiro instante. Mais agarrada nem podia ser. A mim, no entanto, ela sempre repugnou...
Eu a detestava. Detestava tudo que era criança. Tinha ódio talvez a
expressão até seja um pouco forte demais para uma coisa tão sem interesse mas eu odiava crianças. Babs no entanto existia; e eu existia: azar o meu!
E agora?
O jeito era me controlar.
O senhor está chocado, meritíssimo sr. Juiz?
O senhor, como todo mundo aliás, durante anos ouviu coisa bem diferente. Viu e leu também a respeito do emocionante relacionamento do trio
Sylvia Moran Babs Philip Kaven; desta estória das Mil-e-Uma-Noites,
o “Amor do Século”, que qualquer esquimó conhecia. Por isso, minhas palavras acima teriam chocado toda a humanidade tanto quanto chocaram o senhor.
O que o senhor e todo mundo acreditam há anos, pois sempre lhes FBI apresentado assim, é que Sylvia Moran, a divina, tem uma filha sem jamais ter sido casada. O senhor conhece muito bem o alarido que a imprensa marrom vem fazendo há anos. Babs a filha do amor, a criança ardentemente desejada. Linda desde bebê, cada vez mais bonita à medida que os anos iam passando. THE WORLD’S GREATEST LITTLE SUNSHINE GIRL - A GAROTA RAIO DE SOL; MAIOR DO MUNDO, assim ela era e ainda é chamada. Rod Bracken, empresário de Sylvia, foi quem imaginou o epíteto. Com certeza foi ele também o autor da estória da “filha do amor”, e da preocupação com a paternidade. Quem sabe se ele mesmo não é o pai? Bem possível. Mas agora, o que importa?!
s10A coisa no entanto não pára aí.
Há cinco anos a Sylvia encontrou a grande paixão de sua vida: Eu. Fomos feitos um para o outro (Responsável pela formulação do texto: Rod Bracken). Sylvia era realmente a mulher emancipada, livre em todos os sentidos. Já desde o início, e milhões de vezes mais tarde, ela declarou:
Eu amo a Phil e ele me ama. Nós nunca nos casaremos. É exatamente por nós amarmos tanto, por ser este um amor tão perfeito, que nunca nos casaremos. Pois mesmo nas uniões mais acertadas, qualquer casamento é sempre a morte do amor (a responsável por esta declaração é a própria Sylvia, e era sua opinião honesta).
Talvez até, quando olho em volta, ela tenha uma certa razão, se não levarmos em conta sua loucura, mas desta infelizmente todos nós temos um pouco. Eu por mim teria casado com ela. Não se esqueça, sr. Juiz, a gente vai Ficando mais velho, começa a pensar no futuro... a idade, o senhor sabe, a segurança. A segurança acima de tudo neste mundo. Mas a Sylvia era de outra opinião; e para que afinal as coisas continuassem ao menos como estavam, eu concordava. Nunca tive opinião própria, mas também nunca tive constrangimento em fazer minhas, as opiniões dos outros.
Muito bem, somos pois o casal ideal do século vinte, eu e a Sylvia, o casal moderno digno de admiração, preservando nosso amor, mandando às favas a aliança no dedo, as assinaturas, o “até que a morte nos separe”. Formidável, não acha? Mais admirável ainda do que este amor a dois era o amor a três! Como adorávamos a Babs, principalmente eu!
O senhor sabe, sempre viajando, sempre posando diante de câmaras e microfones, à luz do público, eu era obrigado, custasse o que custasse, a representar sempre o papel do perfeito, a fingir que gostava tanto daquele fedelho quanto ele de mim. Estávamos eternamente cercados de repórteres e fotógrafos, de gente da televisão, da revista e do rádio. Era assim que Rod Bracken, aquele patife, conseguia nossa sensacional e diabólica publicidade. O senhor sabe muito bem, onde quer que a Sylvia estivesse, eu e a Babs estávamos sempre a seu lado; a acompanhávamos em suas viagens, de avião, de carro ou de que fosse; nós três estávamos sempre juntos. E sempre surgiam novas estórias sobre este amor tão sublime que nos unia.
Quantas vezes, sr. Juiz, cheguei a pensar nestes últimos anos: ainda acabo esganando esta menina. E a mãe também. Com muita perspicácia. O crime perfeito. Só para ser livre novamente. Livre! Claro que era pura histeria. Em primeiro lugar, eu era covarde demais; em segundo, imagine só se alguém como eu que descobre uma mina de ouro como aquela, vai destruí-la? Nem a ela nem a ninguém. O que lhe resta então? Jurar que a ama e à sua querida filhinha também! Não existe nada pelo qual um sujeito como eu, não jure nesta hora.
Desculpe, sr. Juiz.
Sei muito bem que o senhor não precisa deste
tipo de sentimentalismo.
11O senhor precisa é da verdade, dos fatos que acabaram enterrando uma bala no coração daquele homem.
Mas a verdade...
A verdade nada tem de edificante. Ela é horrível. Creio até que sempre é. Mas antes de relatá-la com todo seu horror, com tudo que ela tem de
revoltante e que o fará estremecer eu primeiro tive que descarregar tudo
isto, caso contrário acabaria sufocando...
Muito bem; foi assim que tudo começou. Naquela noite de chuva e vento do dia 24 de novembro de 1971, numa quarta-feira, em Paris.
Tentando me livrar de meus perseguidores, cruzei a cidade em todas as direções, chegando finalmente àquela casa da Rue Cave, com todo seu esquema de segurança, bem perto do Bois de Boulogne. Logo depois, em pé diante da cama no quarto número 2 do terceiro andar, vi o que tinha acontecido. Vi aquela cabeça inteiramente envolta em grossas ataduras brancas. Apenas o nariz e a boca estavam livres. Tubos de plástico saíam debaixo das ataduras e desciam até o chão, para dentro de recipientes de vidro, onde se juntava o sangue que ia pingando. Sylvia imóvel não reagia ao meu chamado. O quarto estava quase totalmente escuro. Lá fora gemia o vento, a chuva batia contra as vidraças.
Sylvia! chamei bem alto.
Nada.
Nenhuma reação. Parecia morta.
Isto já me deixou meio preocupado. E se tivesse acontecido alguma coisa? Afinal também temos que pensar em nós, não é verdade?
Tateando no escuro, consegui sair deixando a porta do quarto aberta, para que penetrasse um pouquinho de luz na sala de entrada. Assim encontrei a segunda porta. Estava agora no corredor escuro. Segui até a sala da enfermeira. Diante da porta uma cortina. Empurrei-a para o lado. Luz clara! Numa mesa, rodeada de remédios em vidrínhos, tendo por cima de sua cabeça prateleiras e embalagens hospitalares, e a seu lado aparelhos de esterilização para seringas de injeção, estava uma jovem irmã vestida de branco,
com óculos enormes. Estranho! Uma freira aí! Era sim. Usava um longo
hábito branco, com aquela coisa na cabeça (no momento me escapa o nome), O senhor sabe.
Bon soir, chère soeur... tomara que esteja certo. :
Devia estar.
12Ela levantou o rosto. Que beleza! Aquilo, freira... Que tristeza! Que desperdício de coisa bonita! Como se sobrasse por aí, à toa! Fiquei muito triste. Bonita digo eu? Uma beleza, isto sim. Pura e virtuosa. Eu na verdade tinha preferência pelas mais picantes. Porém mesmo diante das puras e virtuosas, pensava logo naquilo. Era jeito meu: podiam me apresentar o que quisessem, brancas, pretas ou amarelas, cândidas, puras ou picantes, virgens, prostitutas ou donas de casa, bastava que fosse mulher, para eu pensar logo naquilo.
Boa noite, monsieur... e ela olhou interrogadora para mim.
Treze - disse eu.
Ah, treze lançou um olhar para o quadro de ocupação dos
quartos. Desculpe, não o reconheci na hora.
Mas nós nunca nos vimos, irmã.
É verdade. Não costumo trabalhar nesta sessão. Ela se levantou. Duas enfermeiras faltaram hoje. Vim substituí-las. Meu nome é
Hélène.
Muito prazer, irmã Hélène.
Costumo trabalhar lá embaixo no térreo; em cirurgia plástica também, mas só para casos de ferimentos, queimaduras, deformações causadas por acidentes... com todos estes pobres infelizes. Aqui nunca.
- Sei.
Sou contra cirurgia plástica... para fins puramente estéticos...
Sei que não cabe a mim criticar... Mas o Todo-Poderoso deu a cada um de nós um rosto e uma figura, conforme lhe aprouve em sua insondável sabedoria...
- E a senhora acha que aqui estão estragando sua obra, eu entendo. O senhor desejava alguma coisa?
A paciente do número onze... Eu vim de lá agora. Ela não se
mexe. Parece morta...
Qual nada, está perfeitamente bem! Ouvi dizer que não conseguiram acalmá-la na sala de operações. Ela continuava a sentir dores; por isto lhe deram uma dose maior de anestesia. Quando acordou começou a se agitar novamente e a gemer. Há uma hora, o dr. Delamare deu ordens para que lhe aplicassem uma injeção.
- De quê?
Domopan. Cinco centímetros cúbicos. Agora ela está calma.
- Domopan?
- Sim senhor. Hélène trazia uma cruz de madeira preta pendurada no pescoço. De repente fiquei sentimental (o sentimentalismo dos lobos). Como devia ser agradável acreditar em Deus, e confiando e descansando Nele, viver em paz, cumprindo seu dever! Serena, retraída, livre de todo vício e de todo mal, feliz dia a dia, a consciência tranqüila. Devia ser realmente agradável...
13O senhor sabe, foi uma operação muito cansativa para a paciente.
Plástica completa de rosto, pescoço e pálpebras. Tudo de uma vez!
Está certo. Mas logo Domopan...
Eu estou lhe dizendo, ela estava muito agitada. Vi como a cruz
subia e descia sobre aqueles seios que deviam ser muito bonitos. Olhei
depressa para o lado. Não precisa se preocupar. O senhor está muito
apreensivo, não é?
Não.
Eu estou vendo. Que voz agradável, macia! Eu logo fiquei
imaginando coisas... Eu já disse, sempre imaginava coisas diante de qualquer mulher, em qualquer parte do mundo, em qualquer situação. Posso lhe garantir, é uma obsessão minha, que às vezes faz a gente sofrer um bocado, sr. Juiz.
O dr. Delamare não está mais na casa. Mas se o senhor quiser
posso ligar para a residência.
Por favor, irmã.
Ela foi andando devagar para a mesa, com imensa dignidade, e logo me estendeu o fone para eu falar com o médico.
É um prazer falar com o senhor. O dr. Delamare, dono da clínica
aqui em Neuilly, era um dos três maiores cirurgiões plásticos do mundo. Rainhas e imperatrizes, atrizes e cantoras, as primeiras damas da alta sociedade vinham a ele para serem restauradas (não havia nada que o dr. Delamare não consertasse: busto, pernas, barriga, traseiro, quadris, pescoço, nariz, orelhas, pálpebras, rostos inteiros, tudo enfim!). A ele eram levados famosos corredores retirados com um resto de vida de suas máquinas em fogo, multimilionàrios, a quem algum malvado tinha rebentado o queixo ou qualquer outra parte, e também pedreiros despencados de andaimes, e ainda por cima caídos numa tina de cal virgem, secretárias com rinite (coisa bem desagradável, aliás, da qual a vítima não tem a menor culpa. Simplesmente acontece.). Destes, Delamare tratava de graça. Ele tinha consciência. Apesar de cobrar verdadeira fortuna aos ricos, operava os pobres sem pedir tostão. Eu nunca conseguiria ser igual a ele, pensei comigo. Com sua voz suave ele me acalmava:
- A operação durou três horas e quinze. Foi bom termos feito todos aqueles exames antes, meu amigo. Tudo correu às mil maravilhas, posso lhe dar minha palavra de honra. Foi formidável.
Mas nós combinamos que eu viria à noite para falar com ela. O
senhor bem sabe o quanto ela desejava...
Eu sei. Mas o senhor pode ter certeza, o Domopan foi imprescindível. Tive que acalmá-la de qualquer maneira... Evidentemente agora não tem o menor sentido, ela dorme profundamente...
Acha que devo esperar?
Pode demorar horas. Mas se o senhor quiser, pode esperar ou até passar a noite aí na clínica.
14Irmã Hélène lhe arranja um quarto vago, embora eu pessoalmente não seja a favor...
Por quê?
As primeiras horas são sempre as piores. Eu preferia que o senhor
voltasse amanhã...
Senti um calor agradável subir dentro de mim. Ora, claro que então iria embora. Devia deixar uma carta para Sylvia? Não era necessário. Com todas aquelas ataduras de qualquer maneira não ia poder ler.
Eu entendo, doutor. Amanhã à noite dou um pulo aqui.
Muito bem. Boa noite, então.
Boa noite, doutor. E muitíssimo obrigado.
Ora, foi uma honra para mim disse ele e eu pensei com certa curiosidade no total da conta.
Então, satisfeito? O rosto angelical de Hélène me fitou sorridente ao pendurar o fone.
Estou sim. Bem, então eu vou. Poderia me fazer um favor...
Pois não...
Diga à paciente quando ela acordar...
- Sim?
Sério agora, Kaven. Sério e ardoroso.
... diga que eu estive aqui, que a amo acima de tudo, e que estarei de volta amanhã à noite.
Pode deixar que dou o recado. Também vou rezar por ela e pelo senhor.
Como?
Vou rezar disse ela com toda a calma A gente lê nos jornais
e não acredita. Mas agora eu mesma sou testemunha...
Testemunha de quê?
Deste grande amor respondeu a irmã Hélène Deus quer que nos amemos. Rezarei para que Ele o proteja...
Por favor, querida irmã, reze sim.
... e para que Ele lhe dê ainda muitos anos de felicidade e o livre de todo mal disse ela com os olhos brilhando. Com tudo que aconteceu depois, até esta hora, eu me lembro sempre, sr. Juiz, que a irmã Hélène ia rezar pela nossa paz, para que Deus ainda nos desse muitos e muitos anos de felicidade e nos livrasse de todo mal...
15Apertei a mão da irmã Hélène e segui pelo corredor até chegar ao elevador. Só queria sair dali o mais rápido possível. Daria um pulo até a casa da Suzy, onde poderia passar algumas horas agradáveis, com calma, sem ter que me apressar.
Veja, sr. Juiz, eu disse antes que Sylvia era de um ciúme louco. E era mesmo. Mas por maior que seja o ciúme de alguém, é sempre possível ajeitar as coisas de maneira que esta pessoa não tenha prova nenhuma. Em todas as cidades por onde andamos, sempre conseguia arrumar uma mulher, casada mesmo, junto de quem pudesse me refugiar quando a tensão era grande demais. Por favor, não ria, sr. Juiz, pois é exatamente isto. Tinha vezes que não era mais possível agüentar as loucuras da Sylvia. Mesmo alguém como eu, não precisa necessariamente, só por causa de sua profissão, procurar ter um enfarte, não acha?
Para me manter em forma pois, para conseguir agüentar e no tudo que eu fazia era para Sylvia, para o seu bem, pois só assim podia estar sempre firme a seu lado, calmo e equilibrado eu sempre conseguia dar as minhas escapadas, encontrar alguma pequena, doce e encantadora.
Não estou a fim de lhe dar nenhum conselho, sr. Juiz, pois talvez o senhor seja feliz no casamento. Não sei, só quero deixar claro que numa posição como a em que me encontro é de importância capital, aliás é condição sine qua non agir de maneira para que a garota não tenha a brilhante idéia de fazer qualquer chantagem, exigir dinheiro ou querer vender suas aventuras para uma revista ou contar para as amigas. Como evitar isto? Muito simples; é só pegar uma que seja bem casada, se possível com um marido rico, ou que esteja noiva ou prestes a se casar com um fulano de dinheiro. É o que basta para lhe garantir um sono tranqüilo, sozinho ou nos braços dela. É garantido; pois eu sempre dormi na maior paz de Deus.
Há um ano arrumei aqui em Paris uma manicure. Grande garota a minha Suzy. Oficialmente noiva de um filho de conde menor de idade, cujo pai possuíra diversas e grandes fábricas de tecidos em Roubaix, ao norte da França. Papai e mamãe morreram, e o gentil rapazinho era herdeiro único, milionário. Papai determinou que no momento de sua maioridade, as fábricas, dois ou três castelos, vinhedos, terras, matas e tudo mais passariam diretamente para as mãos do filho. A partir daí poderia fazer o que quisesse. Por ora, advogados e tutores cuidavam de tudo. Suzy havia feito as unhas do garotão no mesmo dia em que a seu lado outra moça cuidava das minhas. Querendo ou não, num barbeiro ou num salão de beleza, ouve-se tudo que o vizinho diz. Quando as minhas unhas estavam prontas, eu sabia tudo a respeito dela. Ela por sua vez sabia quem eu era, pois meu belo rosto aparecia todos os dias (agora mais do que nunca) em jornais, revistas, cartões-postais, na televisão e no cinema.
16Fiz minhas unhas à tarde e o resto à noite. A Sylvia estava filmando...
Toda vez que chegava a Paris, arrumava um jeito de ver a Suzy. Em casa dela. A coisa era tão violenta que acabávamos de pernas bambas. Até eu! Pois a verdade seja dita, sr. Juiz, sob este aspecto (o único talvez), eu era, modéstia à parte, uma criatura especialmente bem dotada.
Tinha mais.
Logo de saída eu dizia às garotas que nunca deixaria a Sylvia para casar com elas. Seria uma loucura, uma vez que eu não possuía tostão nem para lhes dar um ramo de rosas ou uma caixa de bombons. Por estranho que pareça, todas elas sempre aceitaram. Sabiam perfeitamente que eu dizia a verdade quando afirmava: Comigo vocês não podem contar! E mesmo assim, sr. Juiz, ficavam maluquinhas. Completamente loucas! Era estranho o reflexo que o brilho da fama da Sylvia me emprestava!
Já de Zurique (não do hotel evidentemente, pois não sou muggle) tinha avisado à Suzy de minha chegada. Ela estava na glória, principalmente depois de eu lhe dizer que desta vez ficaria por dois ou três meses. Começou a chorar. Tinha realmente que permanecer este tempo todo, pois a Sylvia não podia sair da clínica do dr. Delamare enquanto seu rosto não estivesse completamente desinchado, todos os pontos retirados, sem o menor vestígio da plástica. Suzy chorava de felicidade...
Segui rapidamente pelo corredor. Apertei o botão para chamar o elevador. Estava feliz pensando em Suzy. Já a via diante de mim, nua. Não havia nada mais excitante que seu...
Monsieurl monsieur]
Eu me virei. v “ : “’•
Irmã Hélène vinha correndo atrás de mim.
O que houve, irmã?
Sua senhora acaba de tocar a campainha... Hélène ajeitou os óculos. A cruz que lhe pendia no peito subia e descia, ela viera correndo..
Sua senhora acaba de acordar... Ela perguntou pelo senhor...
- Sim?
Eu disse que o senhor tinha estado ali.
Boa alma. Santa ignorância!
Mas claro, irmã.
Disse que o senhor tinha acabado de sair... O elevador veio descendo e parou... então eu vim ver se ainda conseguia alcançá-lo.
Muito obrigado, irmã disse eu esperando que aquilo que eu estava esboçando tivesse alguma semelhança com um sorriso. Alguém devia ter apertado o outro botão do elevador, pois a cabina iluminada por trás da porta de vidro fosco desapareceu, e com ela toda minha alegria.
Por sorte ainda consegui alcançá-lo continuou ela.
É mesmo, que sorte!
Ela quer muito falar com o senhor. Por favor, venha. -
17E ela foi andando na frente.
Merda.
O senhor está vendo quanta coisa aparece para atrapalhar? Será que agora o senhor tem uma idéia, ao menos vaga, da vida que eu levava?
Tem mesmo?
Sabe de uma coisa? O senhor bem que poderia ter um pouco de pena de mim.
Meu Lobinho!
Sim, que é minha Bruxinha?
Me dá... a mão...
A mão da Sylvia foi tateando pela colcha. Apesar da luz acesa ela não podia ver nada. Com todas aquelas ataduras estava inteiramente cega. Aquela enorme cabeça branca parecia crescer como uma bola de sabão que ia se desprendendo, como um balão de gás cheio demais. Horrorizado, pensei: Isto não vai bem. Vai acabar estourando e a cabeça da Sylvia irá pelos ares em mil pedacinhos!
Eu disse... me dá a mão! Ela agora falava francês. As primeiras palavras tinham sido trocadas em alemão. Daí por diante continuou em três línguas, acrescentando ainda o inglês. Era o Domopan. Sylvia tinha voltado a si, mas apenas por instantes, longe ainda de estar completamente lúcida. Confundia línguas, tempo e situações.
Aqui está minha mão (em francês). Segurava a mão de Sylvia
que de repente estava muito molhada e quente. Sobre os lábios roxos descobertos, esvoaçavam fiapos de gaze toda vez que ela falava, o que fazia aliás com uma voz completamente diferente, que eu nunca teria reconhecido se não soubesse que ela era realmente a paciente do quarto número 11. Como estava dopada! Ou teria a irmã Hélène se enganado e outra pessoa estava lá na minha frente? Ora, bobagem! Como poderia uma outra me chamar pelo apelido? Era ela mesma, Sylvia Moran, o ídolo do mundo. Vi um pouco de sangue escorrer pelo tubo plástico que saía por debaixo das ataduras, na altura da orelha. Plup, plup, plup, gotinhas de sangue e bolhas de ar; e o líquido descia pelo tubo até o recipiente debaixo da cama, plop, plop, plop!
- Foi... horrível... Lobinho...
- Minha pobre Bruxinha! disse eu respirando o menos possível,
pois agora que ela falava, o cheiro de hospital me parecia cem vezes mais forte. Meu estômago se embrulhou. O amor é uma força divina!
18Lobinho, era assim que ela me chamava. Bruxinha dizia eu. Ambos os apelidos tinham sido escolhidos por ela. Ela os achava lindos! Amantes, dizia ela, sempre se tratam por apelidos. Na verdade as mulheres que se apaixonavam por mim me chamavam de coisa bem diferente, e também eu a elas. Mas, obediente como era, concordei de imediato.
Horrível... mesmo... dizia ela agora em alemão. Não conseguiram... me anestesiar... foi impossível...
Claro, pensei eu, quando um organismo está acostumado à quantidades de álcool assim como o seu, não é fácil para os médicos.
Ainda agora... ainda agora... eu sinto... eu tenho medo...
não vai... não vai embora... Até aí ela falou alemão, para logo continuar em francês. Tirem o champanha! Atrevimento... só porque
tem rolha... rolha! E voltando ao alemão mais uma vez: A anestesia
foi pouca... não foi possível... a circulação...
Pobre Bruxinha!
Já conversaram com uma bola branca destas, que só têm duas aberturas, uma para o nariz e outra para a boca? É uma mer..., uma situação nada agradável.
Pobre Bruxinha? (Em alemão). Sou mesmo sua pobre Bruxinha?
Claro que é!
E o que mais? Plop! Mais uma gota de sangue.
Plop!
Outra.
Pobre, adorada Bruxinha.
Sou adorada?
Pobre Bruxinha, que eu adoro acima de tudo.. Não podia haver homem mais obediente do que eu; mais dependente também não. (Aí é que está!)
Sylvia continuou a falar alemão enquanto eu murmurava patético:
Que eu adoro mais do que tudo neste mundo! A cadeira dura na qual eu estava sentado era incômoda. Suava em bicas, embora tivesse deixado meu casaco na ante-sala. Estava de chapéu molhado na cabeça. Que importava? Afinal ela não via nada.
Que eu amo mais que qualquer outra coisa no mundo anunciava devagar, com voz rouca, estranha e sem nitidez, aquela horrenda bola branca que na minha imaginação aumentava cada vez mais...
Logo passou para o inglês para continuar sem o menor nexo:
- Corte... Mister Joyce... corte... Três pontos a mais... O meu... Quem disse que... Zanuck estava no telefone?... Ligação intercontinental... ora idiota... E de repente em alemão: Não está certo
não, mãe... lá no poço... todo dia água fresca... Ninguém mija lá dentro... quem foi que... apanhou o móvel... A voz foi se tornando mais lenta, mais baixa. De repente emudeceu.
Bruxinha!
19Nada.
Bruxinha! “
Nada.
Bem, então talvez...
Com a mão livre procuro com todo cuidado soltar a outra. Em tempo, em alemão:
... se você algum dia me abandonar, se você me trair, eu o mato... sua mão apertou a minha.
Eu? Que bobagem, Bruxinha! Nunca poderei abandoná-la... Jamais a enganarei! Podia chegar em casa de Suzy mesmo de madrugada, não fazia diferença.
Gemidos, e em inglês:
Quantas vezes eu já disse... odeio esta porcaria de cosméticos novos... Katie, por favor, tenha um pouco de consideração! Uma pausa longa. Ela respira profundamente. Sopra aquele cheiro de anestesia bem no meu rosto. Ainda acabo passando mal!
Baixinho em francês:
Um iate novo... Elizabeth... Richard... Eu compro... para você... um...
Eu não quero iate.
O que você quer então?
Quero você. Só você!
Que amor! E em alemão: Você é um amor, meu Lobinho... E logo passando para o inglês: Sumir... Mister Joyce... o
senhor se lembra... UNILEVER... apenas três pontos... perdidos...
perdidos... Seguiu-se um longo silêncio. Respiração profunda. Hálito de anestesia. Meu Deus! Acho que daqui a pouco poderei estar com a Suzy e...
Está Docndo de novo.. Bem nítido, em alemão: Dói horrivelmente
Lobinho... principalmente atrás das orelhas...
Minha Bruxinha, minha pobre Bruxinha! Tomara que a Suzy
não esteja dormindo quando eu chegar lá, ou cansada.
Man petit Loup e logo continuou em inglês: Eu não lhe disse
logo. Jack... toda a projeção de fundo tremida... tudo tem que ser rodado de novo... Escala intermediária, por quê?... Pegar gasolina!... Agora basta... Na próxima vez sigo diretamente pela SAS... para Tóquio... meu tempo é... Depois emudeceu de repente, no meio da frase. Totalmente! Deitada de costas, roncava alto. Minha mão soltou-se. Ergui-me em silêncio, centímetro por centímetro. Um passo em direção à porta. Mais um
Lobinho!... ouviu-se bem claro em alemão.
O ser humano tem sorte! Tanta, quanto um cemitério em época de epidemia de peste.
Ou es tu, mon petit Loup? soou a voz excitada.
Suas mãos agitaram-se nervosas no ar.
20Voltei rápido. Sentei-me novamente. Peguei uma de suas mãos.
lei, ma petite Sorcière, ici, voilà...
Fez um ruído como um pneu escapando ar. Continuou em alemão:
Desculpe, Lobinho.. e rapidamente em inglês: Uma maravilha... Gobelin... uma verdadeira maravilha, Sophia... Carlo... homem formidável... entendo que outros homens nunca lhe... Em alemão: Você está zangado, não é Lobinho? Eu desconfiei de você... pensei
que fosse me deixar...
Eu? Deixar você? Nunca! Eu amo a você!
Você me ama, meu Lobinho? Que bom... que bom.. Acariciei a mão que segurava a minha. E mais uma vez tudo recomeçou. Quanto ela me amava. E eu a ela. Ela não podia mais viver sem mim. Nem eu sem ela.
Esta noite no entanto, sr. Juiz não estou querendo me apresentar
melhor do que sou, estou apenas expondo fatos mas esta noite, não me
sentia tão à vontade mentindo. Talvez fosse o calor, ou então porque não conseguia livrar-me dela para ir ter com a Suzy.
Agora a mão da Sylvia apertava mais uma vez a minha. Sair? Eram dois passos apenas! Mas apesar da minha querida Bruxínha apagar de vez em quando, ela logo vinha a si novamente... Não havia a menor possibilidade de sumir, a menos que quisesse arriscar toda uma existência, a minha miserável existência!
Homem algum... mulher alguma (em alemão agora) teria permissão para me ver neste estado... Só você, mais ninguém! Porque em toda minha vida só amei mesmo a um único homem... a você, meu Lobinho!
E eu, só a uma única mulher; a você, minha Bruxinha!
Da capo. E tudo recomeçou mais uma vez...
Para sua informação, sr. Juiz:
É relativamente raro, uma mulher jovem ainda ter que se decidir a fazer uma plástica completa do rosto. O senhor entende, no caso da Sylvia era uma necessidade profissional. As câmaras de cinema e de televisão são implacáveis. Longos anos de constante maquilagem, máscaras de beleza diárias, muitas vezes com produtos meio violentos como no caso em que o rosto jovem de Sylvia teve que ser transformado no de uma velha; as muitas noites passadas em claro, ingerindo quantidades enormes de álcool e cigarros, em locais cheios de fumaça, em verdadeiros bacanais; além dos anos de trabalho, de carreira, de tensão por que a Sylvia passara, não podiam melhorar sua pele.
21Por natureza já tinha uma cutis extremamente sensível, muito bonita e por isso mesmo extremamente valiosa. Se ela não tivesse aquela profissão, não haveria o menor motivo para uma operação plástica. Mas assim, tinha sido inevitável. Ela o sabia tão bem quanto os figurões da SEVEN STARS, sua companhia de Hollywood. Em seu último filme, em que tivera como parceiro o famoso artista italiano Alfredo Bianchi, rodado em Roma e com algumas cenas tomadas na Suíça, seus dois maquiladores, o casal Joe e Katie Patterson, que a serviam há anos, tiveram as maiores dificuldades. Mas a carreira da Sylvia não podia terminar. Milhões e milhões de dólares estavam em jogo. Ela era um tipo de marca registrada. Mas até um cigarro Lucky Strike ou uma Coca-Cola, precisam de embalagem nova de vez em quando. Por isso ela estava ali agora, agarrada à minha mão.
Me deixa... em paz dizia ela aos arrancos, cheia de ódio.
Me deixa em paz... Romero! Vá para o diabo que o carregue, seu cretino... E de um momento para outro apagou mais uma vez. Apagou
segurando firme minha mão com suas garras.
Meus pensamentos começaram a vagar. Comecei a recordar...
É, sr. Juiz, agora que é tarde demais, me lembro como então ela amaldiçoou este Romero, mandando o patife para o inferno. Naquela noite pensei que se tratasse apenas de Romero Rettland, o artista. Não prestei muita atenção. Nem perguntei quem era Romero. Mais tarde também não. Devia ter perguntado. Talvez então tudo... que importa; depois que as coisas acontecem é fácil falar.
Não liguei pois, absolutamente para o tal Romero; nem então, nem nunca. Infelizmente. Estava sentado ali de chapéu na cabeça. Meu relógio marcava 19 horas e 47 minutos, minha mão estava tão quente e molhada quanto a de Sylvia, e eu recordava... Recordava tudo que havia acontecido no dia anterior, em 23 de novembro de 1971.
Fechei os olhos... i...
Phil!
Babs ergueu-se de um salto e veio correndo ao meu encontro quando entrei no salão do apartamento que ela ocupava com a governanta. Usava calças americanas, uma blusa amarela, e pequeninos mocassins amarelos e macios. Seu cabelo preto esvoaçava. Riu para mim. Tinha os mesmos cabelos, os mesmos cílios longos, os mesmos enormes olhos escuros, a mesma tez alva da mãe. Era alta para sua idade quase nove anos e por ser tão bonita, o mundo todo a adorava,
22só eu sentia algo parecido com uma violenta azia, quando ela, como agora, me apertava em seus braços.
Phil, meu querido Phil!
Minha querida Babs! exclamei tomando-a no colo e alisando seus cabelos, pois na minha frente, ao lado da mesinha rococó, estava instalado o dr. Wolken contemplando-me com imensa satisfação, o pobre coitado! Ele não se cansava de repetir como ficava feliz vendo a Babs gostar tanto de mim e eu dela.
THE WORLD’S GREATEST LITTLE SUNSHINE-GIRL tinha um professor particular. Era o dr. Alfons Wolken que agora se ergueu para me cumprimentar, inclinando-se profundamente. Há três anos ele estava conosco cuidando da instrução da Babs. Viajava conosco para todos os lugares, pois o juizado de menores da Califórnia insistia que Babs recebesse aulas regularmente.
Babs me deu dois beijos, um em cada face. E eu, ora pílulas, também lhe dei dois. Seu rosto estava quente.
O que está acontecendo com a senhora?
E por que, meu senhor?
A senhora está com febre...
Clarissa também já disse. Nós até medimos. No traseiro. ,
- E?
Nada. Ela tossiu algumas vezes. Uma tosse seca e áspera.
Nada mesmo. Trinta e seis e oito, e isto lá atrás.
Olhei para ela. Suas pálpebras me pareceram inflamadas.
Eu não sei não...
Está tudo em ordem disse a Babs me espirrando bem no rosto.
Pardon Monsieur, excusez moi.
Pas de quoi. Tirei-a do colo. Como está se sentindo? Falávamos alemão novamente, língua que a Babs também aprendia. Era aliás sua língua materna. Sylvia Moran não nasceu americana, e nem sempre se chamou assim. Mas isto é outra estória...
Como vão as coisas?
Ora, é tudo uma merda.
A senhora sabe muito bem que não deve usar esta palavra disse
eu e o dr. Wolken sorriu divertido.
Sei sim, Phil. Me desculpa. Mas veja só que droga! Olha só como eles querem que alguém aprenda! Nos tratam como se fôssemos idiotas.
Foi me puxando para junto da mesinha onde estavam seus livros de capas coloridas. Dr. Wolken inclinou-se mais uma vez. A Babs deu mais algumas tossidas secas, parecia tosse de cachorro.
Isto fora ontem à tarde por volta das 16 horas. Até as 15 horas Babs sempre fazia a sesta, depois tinha mais uma aula. Estávamos em Zurique no GRAND HOTEL DOLDER, lá no alto da montanha, que dominava a cidade. Pelas amplas janelas via-se o bonito campo de golfe, os negros e despidos galhos das velhas árvores, e lá embaixo o lago de Zurique e a cidade.
23O lago estava cinzento. O céu estava cinzento. Tudo estava cinzento. A luz do sol já desaparecia nesta tarde de novembro. Em breve seria noite.
Babs parou junto à mesa.
Olha só! Revoltada pegou o livro de cálculo. Espera um instante, acho já. E continuou a folhear.
No alemão mais puro, o dr. Wolken disse baixinho para mim:
Babs é uma criança muito crítica. É inteligente demais. Não sou eu quem faço os livros didáticos, sr. Kaven. Uso o que existe de mais moderno. No mundo inteiro hoje quase só há livros estruturados desta maneira.
Dr. Wolken tinha a mania de se inclinar até quando falava. Balançava ligeiramente para frente e para trás, erguendo e abaixando a cabeça em ritmo certo. Não havia o menor motivo para que fosse tão serviçal, não que eu soubesse ao menos.
Este homem nos havia sido recomendado pelo mais famoso internato da Suíça, como sendo o que havia de melhor para a Babs, e realmente era. Talvez... Sabe de uma coisa, sr. Juiz, já observei que pessoas especialmente cultas e inteligentes, e também as de grande sucesso, são freqüentemente de uma timidez e acanhamento que chegam a ser Docntios. Babs gostava do dr. Wolken. Todos nós gostávamos dele. Andava sempre sóbrio mas impecavelmente vestido. Tinha olhos azuis de criança, rosto estreito, que se fosse por ele estaria sempre escondido atrás de uma máscara, um cavanhaque de um louro desbotado igual ao cabelo já grisalho. Dr. Wolken tinha quarenta e seis anos.
O rosto apoiado nos punhos, o livro diante dela, a Babs tinha começado a ler:
Dona Curiosa perguntou ao avô que idade tinham os netos. Este respondeu: “George e Erika têm juntos doze anos. Erika é dois anos mais velha que...” Espirrou e passou as costas da mão no nariz.
Saúde disse o dr. Wolken inclinando-se.
Obrigada, doutor. “Erika é dois anos mais velha do que George.
Huberto e Martin têm juntos vinte e três anos. Huberto tem”.. Babs respirou fundo. Resfolegava um pouco, pois tinha lido muito rápido...
“Huberto tem três anos menos do que Martin, e Thomas tem a soma das idades de George e Huberto.” Babs olhou para mim, a testa franzida Você está vendo? E você acha que um avô ia dizer isto, falando da idade dos netos?
Mas isto é feito de propósito disse eu para que as crianças que estão aprendendo a calcular, se divirtam resolvendo charadas. É por isto que o avô fala desse jeito.
Está bem, mas logo para d. Curiosa? Se fosse uma criança que tivesse feito a pergunta, ainda servia para a criança aprender se divertindo como você diz. De qualquer maneira seria meio idiota. Mas uma mulher! E de nome d. Curiosa! Você acha isto engraçado? Vai ver que é para a gente aprender também o que é engraçado!
24Tossiu mais uma vez.
Para que isto Phil? Por que não usam a, b, c, d e alguma equação?
Não, o avô tem que desfiar todo aquele relatório (Babs conhecia estas palavras, sabia o que significavam. Babs conhecia muitas palavras do mundo dos adultos, afinal estava sempre junto de sua mãe). Ela não parava de sacudir a
cabeça: Quando as crianças vão ficando mais velhas, será que continuam a apresentar este tipo de idiotice?
Dr. Wolken riu.
Viu, até o dr. Wolken acha idiota.
Pode ser que seja para você, Babs disse eu mas tem criança que gosta.
Ora Phil disse Babs. Sei que por causa de nossa profissão não conheço muitas crianças, só algumas. As da tia Elizabeth, da tia Romy e da tia Claudia, não é? Estas são educadas exatamente como eu. Quando estiver com elas, vou perguntar, mas garanto que vão achar tão idiota como eu. Divertir-se fazendo contas! Sei que nem todo mundo se diverte, mas eu sim. Sabe de uma coisa? Com estas besteiras eles conseguem acabar com qualquer divertimento. Sério Phil, por que será? Será que estão querendo nos transformar em idiotas?
Claro que não respondi.
Mas é o que fazeml Fazem como se tivessem lidando com débeis mentais... desde o início.
Bem, já que você é tão esperta, então já deve saber a idade de todas aquelas crianças disse eu.
- Claro que sei respondeu Babs. Logo da primeira vez que li,
sabia. Isto é problema de primeiro ano! E ela continuou: Erika temsete, George cinco, Martin treze, Huberto dez e Thomas quinze.
Espirrou.
- Escuta, será que a Clarissa mediu direito?
- Claro. Fiquei deitada quietinha e apertei bem. Agora foi só porque falei muito depressa. Sério Phil... isto dá até para a garotada de jardim de infância rir! Puxa, você botou o terno azul com as listrinhas brancas. Que alinhado! É meu terno preferido!
- Você também tem que mudar de roupa, Babs disse eu. -
Desculpe doutor, mas por hoje basta.
Consultando o relógio que trazia no bolso do colete e cuja tampa fez saltar, dr. Wolken disse:
- Claro, sr. Kaven. Desculpe, sr. Kaven.
- Ora disse eu (este dr. Wolken me deixava nervoso com seu jeito submisso) o senhor é quem deve me desculpar. Babs, vai lá com a mãe!
Clarissa está com ela. Ela vai lhe dizer o que vestir.
25Vestir? Puxa! Babs se ergueu de um salto Tinha até esquecido! Eu que gosto tanto! É para a entrevista com a imprensa, não é?
Foi assim, primeiro tio Rod quis falar com os senhores. Depois Phil. Depois a mãe declarou que era claro, quem ia falar era ela. Bem, quando ouvi toda aquela discussão eu disse: “Se vocês não conseguem se entender,
quem vai falar sou eu” e todos acharam que era a melhor coisa. Eu já assisti a muitas entrevistas da imprensa, mas esta é a primeira que faço, e não estou nem um pouquinho nervosa!
Isto tinha sido às 18 horas e 15 minutos. Babs estava sentada diante de uma mesa coberta com uma toalha de brocado vermelho, em cima de um estrado. À sua direita estava a Sylvia, à esquerda eu, do outro lado da Sylvia, Rod Bracken. Três enormes vasos com rosas vermelhas enfeitavam a mesa. Além disso havia mais oitenta e cinco pessoas, ou melhor noventa e uma, pois seis graúdos haviam chegado sem avisar, Rod havia declarado que eles iam assistir, e pronto.
Claro que também foi Rod quem teve a idéia de deixar a Babs dar a entrevista. Desde o inicio. Grande idéia, não acham? Mas afinal era sua profissão. Esta observação talvez soe a desfeita, sugerindo aversão e rivalidade entre mim e Rod. E era exatamente isto; aversão e rivalidade, aliás mútua. Eu o achava tão intragável quanto ele a mim; mas éramos obrigados a nos aturar. Muitas vezes ficava imaginando que antigamente nas galeras, os pobres diabos eram acorrentados, e de vez em quando ainda levavam lambadas dos compridos chicotes quando ficavam cansados, às vezes... O que é que eu ia dizer? Ah, já sei: às vezes deviam ficar sentados um ao lado do outro, dois que não podiam se enxergar, que se odiavam cegamente, mas tinham que remar juntos. Nenhum dos dois podia sair; estavam acorrentados. Os senhores irão dizer: Numa hora destas deveriam ao menos tentar tirar o melhor partido da situação. Mas eu posso lhes garantir, isto é coisa que se pode tentar quantas vezes quiser... porém quando um repugna ao outro, em qualquer que seja a situação, não tem jeito!
A coisa é muito simples disse a Babs e deu um espirro. Fazia um calor louco, pois havia muitos refletores enormes acesos. Babs falava inglês:
Nos últimos três anos minha mãe rodou quatro filmes, não foi?
Nunca teve uma vida tão corrida desde que entramos na profissão. Eu é que sei; sou sua filha. Há muito venho sentindo que está sendo demais para ela. Desde quando estivemos em Paris a convite da tia Romy. Eu, minha mãe e Phil.
26Brinquei com o pequeno David... digo pequeno porque eu já tenho
quase nove anos e ele mal fez seis... Por que os senhores estão rindo? De
fato os repórteres e fotógrafos, o pessoal da televisão, do rádio e da imprensa, eu, Sylvia e Rod... todos riam. Eu de inveja, pois sentia Rod me observando como quem quer dizer: “Viu, não tinha razão? Eu sabia o que estava fazendo quando sugeri que a apresentação hoje fosse feita pela menina e não por um de nós. Você, seu cretino, disse que a Babs não ia saber o que falar. Eu disse que ela saberia muito bem, que ela é tão esperta e mais sabida do que eu, você e a mãe juntos... viu seu idiota, aí está a prova!”
Babs olhou para nós muito espantada e perguntou:
Por que todo mundo ri deste jeito, mãe? Até você, Phil e o tio Rod.
Eu sou mais velha do que David, não sou?
Evidentemente Sylvia logo abraçou Babs; apertou-a contra si, acariciou-a e beijou. Na mesma hora desencadeou uma verdadeira tempestade de flashes; nas televisões só se viam pequeninas luzes vermelhas piscando. Todos. registravam ou transmitiam diretamente, todos, sem exceção: as duas televisões da Alemanha, a da Suíça, a ORTF francesa, a RAI italiana, a BBC inglesa, as sociedades americanas CBS e NBC, e mais uma dúzia de outras estações com suas equipes suíças de redatores para o estrangeiro. O que era transmitido diretamente, passava pelas transmissoras perto de Zurique, e estas enviavam a imagem para o céu, para um daqueles satélites que giram eternamente em torno da Terra, e daí era retransmitido para o mundo inteiro, captado em todos os continentes, e de acordo com a diferença de fusos horários, aparecia “via satélite” nos horários “nobres” da noite.
As enormes aparelhagens ficavam lá fora no pátio do Hotel DOLDER, entulhando-o. As que não cabiam mais, principalmente as das rádios que eram em muito maior quantidade, estavam estacionadas ao longo da entrada, desciam a rua em direção a Zurique ou subiam em direção à floresta. Lá em cima no mato, ouvia-se o ruído dos geradores que acionavam os refletores. Como acontecia sempre, havia um imenso emaranhado de fios. Todos os hóspedes estavam sentados no salão ou nos quartos diante das televisões, provavelmente rindo também. A televisão suíça transmitia diretamente, assim como a ARD e a ZDF. As transmissões da Alemanha Ocidental eram captadas pelo país inteiro.
- Quer dizer então que foi engraçado o que eu acabei de dizer? Fico
muito satisfeita em ver os senhores rindo... Babs continuou a falar, e
mais uma vez houve silêncio no imenso salão do DOLDER. Diante das pesadas câmaras, os homens estavam em pé em cima de estrados, os olhos fixos nos pequenos visores de seus aparelhos. De fones nos ouvidos, recebiam instruções dos dirigentes das transmissoras, sentados nos carros diante dos monitores. Deitados, sentados, acocorados, os fotógrafos disparavam suas Hasselblads, Leicas e Rolleis dos ângulos mais absurdos. O pessoal das emissoras de rádio estavam ajoelhados diante dos aparelhos de controle, igualmente munidos de fones através dos quais eram informados sobre a nitidez do som.
27De vez em quando corriam para a frente para acertar a posição de, no mínimo, duas dúzias de microfones instalados na minha frente, na de Sylvia, Babs e Rod. O pessoal da televisão e das revistas ainda haviam instalado outros microfones em compridas barras que pendiam sobre nossas cabeças. A equipe atrás dos refletores cuidava para que sempre estivéssemos cem por cento focalizados.
... eu estava brincando com David, e a mãe conversava com a tia
Romy. É claro que pensavam que nós não estivéssemos prestando atenção. Desculpe mãe, eu prometo não fazer mais, mas...
O que é que você não vai fazer mais? perguntou Sylvia sorrindo
espantada.
Ficar ouvindo disse Babs.
Você estava ouvindo?
Babs deu uma tossida seca.
Sim, mãe. Eu sei que isto não se faz. Mas também vocês falavam tão alto, e a coisa estava me interessando. Você tinha acabado de contar como aqueles quatro filmes, um atrás do outro, tinham sido cansativos. Era dia de folga seu, você se lembra? Tia Romy disse que entendia muito bem e que de vez em quando ela também tinha que desligar completamente. Você então respondeu que não podia, que tinha que continuar a rodar aquele filme, pois ele mal havia começado. Disse até que seria capaz de rodar um quinto; que aquele filme era muito importante para você, pois aparecia em quase todas as tomadas de cena, e que de noite chegava ao hotel completamente liquidada só querendo dormir e mais nada... mas tinha a menina (Eu).
Alvoroço geral.
Alvoroço sentimental, digamos. Violento.
Meu benzinho! disse a Sylvia apertando a Babs contra si.
Sinto tanto! É verdade, eu disse sim. Mas não era para você ouvir; meu Deus, que coisa horrível!
Babs soltou-se energicamente.
Tenho que espirrar.
Espirrou.
Até isto todo mundo achou engraçado. É sempre assim, quando a risada começa, no cinema, no teatro, em qualquer lugar, não tem mais jeito, todos riem de tudo, sem parar. A única coisa a fazer, é encerrar o espetáculo e descer a cortina.
Aqui, até o espirro foi uma bomba. Rod, aquele bestalhão, vibrava. Tenho a certeza de que se houvesse um prêmio Nobel para semelhante ato, ele ia querer recebê-lo pela brilhante idéia de ter deixado a Babs falar. E recebê-lo das próprias mãos do rei sueco, além do pedido de tratar Sua Majestade Gustavo Adolfo por “você”!
Bem disse a Babs para a multidão em sua frente foi aí que eu
soube como minha mãe trabalha! Se ela chegou a dizer aquilo! Porque o que ela queria dizer era: “Àquela altura não tenho mais força para me ocupar da menina, pois adormeço logo”.
28Quantas vezes minha mãe adormeceu no meio do jantar! E Phil sempre vinha me contar estórias dos “Três Ursinhos”, de “Oliver Twist” ou de “Huck” e “Tom Sawyer”. Phil por favor não se zangue,
adorava ouvir você ler... Ela colocou a mãozinha (quente) em cima da
minha... mas antes era sempre a mãe que fazia isto. Isto e rezar.
E eu não rezava? exclamei espantado como de praxe. Tudo que
dizia respeito à Babs, comigo havia se tornado rotina. Rezar, ainda mais essa, sr. Juiz! Vi Rod dar um sorriso de deboche. (Cachorro, geniozinho filho da
mãe!) É que eu não sabia... o que você rezava.. gaguejei Tudo
encenação, dava até náuseas!
Mas Phil... continuou a Babs e de todos os lados dispararam
flashes. Por quê, eu nunca consegui entender. Será que todos aqueles refletores não davam luz suficiente?... mas Phil, eu sei... que você não sabia.
Eu rezava sozinha. Para nós todos. Não tinha nada! E você lia tão bem. Gostava principalmente das estórias de “Alice no País das Maravilhas”, do “Chapeleiro Maluco” e do Coelho que vivia chegando atrasado; era formidável. Mas sempre pensava, quando o filme ficar pronto, minha mãe tem que fazer o
que a tia Romy aconselhou. Babs virou-se mais uma vez para as objetivas
e os microfones:
Agora eu cheguei aonde queria; expliquei o porquê. O filme com o
tio Bianchi está terminado, e pela primeira vez em quatro anos minha mãe vai
tirar férias antes de rodar outro. Babs tossiu novamente. Usava um casaco
de tricô verde de gola roulé, e por cima uma sainha vermelha de pregas, e sapatos vermelhos. Os cabelos pretos estavam amarrados, e presa no alto da cabeça, uma flor de fazenda vermelha; dos lados caíam cachinhos soltos.
Nós todos já estamos tão excitados continuou ela principalmente eu. É a primeira vez que eu, Phil e minha mãe não saímos juntos em férias. Para minha mãe poder descansar de verdade, ela vai sozinha! - Babs
riu. Eu, Phil, tio Rod, Clarissa e o dr. Wplken vamos nos divertir um
bocado aqui em Paris, em Madrid, por toda parte para onde formos. Aí está o que eu lhes queria contar; e tem mais: Minha mãe vai viajar para muito longe. Para onde? Isto é segredo. Sei que vocês todos gostam dela. Por isso espero que também atendam ao meu pedido. É o seguinte: Não procurem seguir minha mãe, fotografá-la e tudo isto, por favor! Não me levem a mal, mas deixem minha mãe em paz! Pode ser?
Durante três segundos houve silêncio.
Depois as pessoas ali reunidas começaram a gritar nos mais diversos idiomas:
- Pode.
Pode! Pode!
E os gritos não acabavam mais. Desta vez achei bom nem olhar para Rod, para aquele cretino. A Babs levantou-se, cumprimentou para todos os lados, ergueu a mão. Silêncio. Depois de ter tossido mais uma vez, ela disse:
29Muito obrigada. Eu sabia que vocês eram formidáveis. Vocês são
todos formidáveis!
Rod Bracken ergueu-se. Um homem alto, corpulento. Tinha então quarenta e um anos. Seu rosto era da palidez de quem vive pouco ao ar livre, o corte do cabelo tipicamente americano, bem curto, que lhe assentava muito bem com sua cabeça estreita. Já estava meio grisalho. Os olhos muito claros, de expressão fria, podiam também como agora, irradiar um brilho cálido e amável (fazia com o olhar o que queria). Seu nariz muito grande, os lábios finos. As sobrancelhas cerradas.
Naquela tarde usava um terno de flanela cinza, camisa branca, gravata preta de pontinhos azuis. Erguendo ambos os braços, disse:
Obrigado companheiros!
Sempre tratava qualquer espécie de jornalista como colega. Chamava-os de rapazes, amigos, chums. amici, copains, dependendo de onde estivesse. Falava três línguas com perfeição, e outras três bastante bem.
Vocês prometeram conceder estas férias à Sylvia Moran; prometeram não segui-la. Eu lhes agradeço, companheiros! Além disso a Sylvia irá para tão longe, que de qualquer maneira nenhum de vocês conseguiria encontrá-la. Risada meio forçada. Bem, agora eu preciso dizer mais umas
palavrinhas. No próximo ano Sylvia Moran poderá realizar o maior e mais importante papel de sua carreira. Ela irá trabalhar no maior filme jamais rodado por ela, na produção mais ambiciosa da SEVEN STARS, no papel por ela sonhado a vida inteira. Eu hoje só lhes posso revelar que a conselho
meu, Sylvia Moran fundou para este fim sua própria companhia a SYRAN PRODUCTIONS. O nome SYRAN é evidentemente formado pelas iniciais de Sylvia Moran. Esta companhia produzirá o filme para STARS, num colorido especial e... pausa propositada por vinte e cinco milhões de dólares...
Vi Rod falando, mas de repente sua voz sumiu. Por três segundos talvez; e nesses três segundos eu me lembrei... Três segundos dão para a gente se lembrar de tanta coisa...
Em 25 de setembro de 1960 houve uma pré-estrèia em Munique, que passou para a história.
Título do filme: O CÉU NEGRO. Custas de produção: 6,5 milhões de marcos alemães. Lucro líquido até a presente data: 156,7 milhões de marcos.
30O filme baseava-se num romance de Erich Walden, autor falecido em
1931 na maior miséria.
O CÉU NEGRO talvez seja tão conhecido quanto os romances de Bruno Traven, autor de estórias fantásticas, sempre cercado de mistérios. Por esta razão as companhias alemães de cinema viviam tentando levar o romance para a tela. Nunca conseguiram no entanto o dinheiro suficiente, nem mesmo através das mais complicadas Co-Produções. (A ação se desenrolava em diversos países, entre eles alguns bem distantes.) Walden, que faleceu logo após sua esposa, tinha apenas um herdeiro, o filho Otto. Otto trabalhava, em
1958, junto a uma firma imobiliária em Munique. Era divorciado duas vezes, sempre por culpa própria, sendo portanto obrigado a sustentar duas mulheres. Vivia com uma terceira.
Em 12 de abril de 1958, Walden recebeu uma visita à noite. Um certo Rod Bracken havia pedido uma entrevista. Afirmara repetidamente ao telefone ser funcionário de uma empresa conselheira para impostos de renda em Nova Iorque. O encontro fora precedido por uma troca de correspondência, e Walden tivera o cuidado de procurar informações. Em vão. Nenhum homem de finanças nem dos mais categorizados, conhecia o nome de Rod Bracken, nem o da firma por ele citado. Walden apenas conseguiu descobrir onde Bracken se hospedara em Munique: numa das mais baratas e miseráveis pensões da cidade.
Naquela noite, apareceu pontualmente em casa de Walden, mal vestido, magro, miserável. Mesmo antes de tirar sua capa de chuva (desbotada e puída), participou a Walden o motivo de seu vôo através do Atlântico:
Queremos levar o romance de seu pai para a tela, prezado amigo.
Walden achou que Bracken era um louco.
Dez minutos mais tarde, o pobre Walden, apertado por dívidas e desesperado, achava Bracken um gênio a quem ouvia boquiaberto. Bracken falava alemão bastante bem, apesar do sotaque, de maneira rápida e decidida, absolutamente seguro de si, e acima de tudo com a objetividade de um grande banqueiro.
Não se perdeu em preâmbulos, mas declarou logo que estava em condições de fazer o que nem a maior sociedade cinematográfica alemã conseguira, isto é, arranjar os 6,5 milhões de marcos alemães num prazo curtíssimo.
Eu venho disse Bracken, o estranho de sapatos cambaios, terno
amarrotado e rosto emaciado eu venho me interessando pela legislação de
imposto de renda alemã. Tenho um conhecido aqui em Munique que está pronto a me emprestar setenta mil marcos até o fim do ano. É o que nos basta.
Mas como? Setenta mil? O filme não está calculado por distribuidores e produtores em 6,5 milhões?
Não precisamos de distribuidores. Produzimos por nossa conta, e vendemos o filme à empresa de qualquer país que nos oferecer mais.
31O senhor não acha que nosso lucro será maior?
Então era um louco mesmo. O que fazer com 70.000 marcos? Rod
Bracken explicou a Otto Walden, e depois este não achou mais que Bracken era louco. Na manhã seguinte, ambos se apresentaram no cartório de registros públicos, a fim de registrarem uma firma de nome SCHWARZER HIM MEL FILMPRODUKTION G.M.B.H (“Produtora de Filmes Céu Negro e Cia. Ltda.”)- Sócios eram a princípio apenas Walden e Bracken. Capital inicial: 70.000 marcos (O amigo de Munique não falhara).
Imediatamente foram impressos os prospectos já anteriormente idealizados por Bracken. Em papel brilhante. Apresentação esmeradíssima. Estes prospectos Bracken enviou a 8.500 pessoas da República Federal Alemã. Um instituto de pesquisa de mercado havia sido encarregado da escolha dos nomes. Walden não tinha nada que ver com o projeto. Os nomes apontados eram todos de pessoas de alto nível econômico, gente muito respeitável que sofria do mesmo mal: encontravam-se na faixa mais alta do imposto de renda.
Nos prospectos em papel brilhante já se anunciava o elenco completo e definitivo; artistas, roteiristas, diretores, produtores, equipe técnica etc., etc. (que de fato mais tarde realizaram o filme). A nova sociedade anunciava seu propósito de iniciar a filmagem do legendário romance ainda antes do fim do ano. Depois, perfeitamente dentro do quadro da legalidade, chamavam a atenção para um ponto da legislação alemã de imposto de renda, que normalmente passava desapercebida pelos contribuintes, e que aqui registramos resumidamente: toda a renda empregada pelo contribuinte no financiamento de grandes projetos (o de um filme por exemplo), não pagava impostos, podendo ser deduzido na íntegra da declaração. Os aludidos prospectos ofereciam pois, aos interessados, a possibilidade de participarem da produção do filme. O famoso romance, os artistas e o diretor, tudo prometia um êxito sensacional. Uma antiga e venerável sociedade de Bremen foi escolhida como fiduciária, e incumbida de zelar pelos interesses dos sócios.
Este tipo de financiamento ainda não existia na Alemanha. Era a primeira vez que seria feito. Rod Bracken informara-se cuidadosamente. (Aliás ele agora só usava ternos sob medida e se hospedava no Hotel das Quatro Estações.)
O que o projeto anunciava solenemente, Bracken, o homem saído do escuro, havia explicado naquela noite de 12 de abril de 1958 em linguagem popular ao filho de Walden o escritor que morrera na miséria: “Aqueles sacos de dinheiro têm que pagar imposto que não é brincadeira! Se eles nos derem o
dinheiro quanto mais melhor terão primeiro a satisfação psicológica,
de que aqueles filhos da mãe não vão ver a cor do nosso dinheiro. A isto acresce o que poderíamos chamar de “Princípio Esperança”. Se meu filme der lucro, recebo minha parte e fico mais rico ainda! Se não der, também não perco nada, pois de qualquer maneira o imposto de renda teria ficado com ele.
32Assim, ao menos ainda tenho a chance de ganhar. Este seria o terceiro efeito psicológico: a cócega da roleta!
Otto Walden estava entusiasmado.
Ficou mais ainda, quando logo depois da distribuição dos prospectos, começaram a chegar as primeiras remessas em dinheiro: 100.000 marcos,
300.000 e mais 500.000.
Rod Bracken começou a viajar. Viajou muito neste verão. Nunca se sabia ao certo por onde andava. Fez muitos pré-contratos com artistas, operadores e diretores. Sempre escolhia o que havia de melhor. Em agosto, três roteiristas apresentaram um script fabuloso e Rod Bracken conseguiu assim reunir todo o elenco sonhado. Neste mesmo mês no entanto, Walden e a fiduciária de Bremen começaram a ficar histéricos. Até aquela data treze sócios haviam enviado um total de apenas 1,7 milhões de marcos.
1,7 milhões!
6,5 era a quantia necessária!
A fiduciária reclamou. Até o final do ano os 6,5 milhões teriam que estar integralizados. Os trabalhos de produção também teriam que ser iniciados antes do fim do ano. Caso contrário a antiga e venerável sociedade seria obrigada a mover um processo contra Bracken e Walden em nome dos outros sócios. Os dois acabariam certamente na cadeia.
Canalha desgraçado! disse Walden.
Calma pequenino respondeu Bracken. Faço questão de nem ter
ouvido o que acabou de dizer. É claro que em agosto a gaita ainda não pode estar aí.
Não entendo disse Walden.
Nem era de se esperar, seu idiota disse Bracken. Vou lhe
fazer uma proposta: fizemos um contrato particular entre nós na base de cinqüenta por cento cada um. Cada um receberia portanto metade do lucro liquido.
- Não haverá lucro líquido algum lastimou Walden.
É ponto de vista seu. O que eu lhe proponho é: assumo a responsabilidade de trinta de seus cinqüenta por cento. Procuramos um rábula e ajeitamos a coisa de maneira que nada lhe possa acontecer. Se tudo sair errado, fico sozinho na esparrela. Aceita?
Walden aquiesceu, os olhos cheios de lágrimas.
- Exatamente o que eu esperava murmurou Bracken.
Foram necessários três advogados e um tabelião para colocarem Walden a salvo e lhe garantir novamente um sono tranqüilo. Bracken nunca tivera problemas para dormir. O que ele esperava aconteceu. Em setembro havia cinqüenta e quatro sócios com um total de 2,8 milhões. Outubro trouxe apenas mais um com 320.000 marcos. A coisa tinha suas manhas! Até novembro. Aí de repente o número de sócios passou para cinqüenta e quatro, com 3,8 milhões. Em 1º de dezembro já eram 111, integralizando 6,49 milhões. Em 10 de dezembro havia ofertas de mais 22,7 milhões.
33A fiduciária no entanto se via obrigada a recusar qualquer quantia que passasse dos 6,5
milhões, mesmo que os candidatos viessem implorar de joelhos: Por favor,
aceitem, aceitem! Não era mais possível.
Conforme havia sido planejado, o trabalho de produção começou ainda antes do Natal. Em 25 de setembro de 1960 o filme estava pronto, sincronizado em vinte e oito línguas, com legendas em outras dezenove, e iria ser vendido à distribuidora que oferecesse mais no mundo inteiro. Logo depois da estréia, o dinheiro começou a entrar aos borbotões.
Walden a esta altura tentou reaver sua parte, porém Bracken apenas deu de ombros.
Nenhum vintém, seu idiota! disse ele entediado. Ambos agora
já se tratavam por “você”. Besteiras como a sua têm que ser castigadas.
Ainda em agosto me xingou, porque só tínhamos um vírgula sete milhões, e se cagou todo de medo do xilindró. Pensar um pouco, você não foi capaz.
Pensar?
Sim, pensar que aqueles sacos de dinheiro só lá pelo final do ano
iriam procurar com a maior urgência uma solução para livrarem suas fortunas do imposto de renda disse Rod Bracken Além do mais, com vinte
por cento você ainda tem mais do que o necessário, seu idiota!
Com isto Bracken praticamente desapareceu da noite para o dia de Munique, da República Federal, da Europa. Da noite para o dia apareceu na Califórnia. Em pouco tempo possuía uma mansão em Beverly Hills, uma frota de carros que consistia de um Mercedes, um Rolls-Royce e um Bentley. Tinha dois criados chineses, a mais bela e mais cara estrela de Hollywood da época, antigüidades sem conta e um gigantesco aquário. Nele criava, sob a orientação de entendidos, os mais raros, maravilhosos e terríveis peixes do mundo, pois um hobby afinal ele precisava ter.
Ainda me lembro como Rod, por ocasião de nosso primeiro encontro, me explicou durante horas as dificuldades da criação do Serrasalmus piraya, a mais temida das quatro espécies de piranhas, este “Assassino e Cia.” da bacia amazônica.
Inegavelmente ele havia ganho muito dinheiro com aquele seu filme. Não o bastante, no entanto, para manter todo aquele luxo. O que lhe rendera mais, muito mais, todos que conheciam Rod Bracken sabiam. Eu o interpelei certa vez, e ainda me lembro perfeitamente de suas palavras:
Claro que foi. E o senhor em meu lugar teria feito o quê? O truque
do financiamento pode ser aplicado em tudo que é setor. Usando o mesmo processo, comecei naquela época a financiar conjuntos habitacionais, casas próprias, companhias de trailers. Até empreendimentos maiores, como edifícios de luxo, grandes clínicas, frotas de caminhões-tanque.
Sei disto respondi. Mas quando começou?
Ora, na época que andei viajando; logo no princípio disse ele
depois de me convidar a acompanhá-lo, pois estava na hora de dar comida aos membros da família dos Serrasalmus piraya. Acrescentou ainda:
34Todos pensavam que eu ia levar semanas, meses até para conseguir a equipe
para aquela porcariazinha de filme. E grunhiu: Aquilo é coisa para seis
dias. Foi então que fundei minhas outras firmas com outros sócios. Fiduciária é coisa que não falta no mundo! Quando o filme estreou, os outros projetos já davam lucro, e a clínica já estava na prancheta. Idiotas! O senhor nem imagina quanto idiota há no mundo, meu amigo!
Quando conheci Rod Bracken, ele já era empresário da Sylvia Moran. Ganhava uma loucura! Recebia percentagem mais alta que qualquer outro empresário no mundo inteiro.
Ele merece dizia a Sylvia na época. Merece todo por cento
que recebe; todo centavo. É o homem mais genial que já encontrei. Por isso fiz questão que trabalhasse para mim.
... Sylvia Moran irá agora lhes contar pessoalmente de que trata
seu próximo filme, o’maior que ela e a SEVEN STARS jamais produziram
ouvi Rod dizer naquela entrevista à imprensa no Hotel Holder. De repente sua voz voltara. Durante três segundos apenas eu não a ouvira; estivera recordando. Quanta coisa a gente pode recordar em três segundos...
Lá estava o salão do hotel, as câmaras, os refletores, os microfones. Lá estava a Sylvia, a bela Sylvia. THE BEAUTY A BELDADE; slogan que evidentemente também era de Bracken. Outros agentes haviam criado outros nomes-símbolos para suas estrelas: THE SIN, THE BODY, THE VOICE - O PECADO, O CORPO, A VOZ.
Exatamente, meus senhores e minhas senhoras dizia a Sylvia, a artista perfeita e inteligente, sorrindo na hora certa, séria no momento exato - estamos preparando nosso maior filme. Por isso será necessário que eu descanse um pouco. Este novo filme, o meu novo papel, que tem sido meu sonho a vida inteira, irá exigir muito de mim. Sei muito bem que tenho agora na minha frente a fase mais bela e também a mais penosa de toda minha vida.
De que trata o filme, sra. Moran?
Os repórteres haviam escolhido como porta-voz, um homem da AFP (Agência France Presse). Era gordo e simpático, sentava logo na frente e se chamava Claude Parron. Nós o conhecíamos. Com o tempo ia se conhecendo todo mundo que trabalhava naquele ramo.
- Trata-se da filmagem do CÍRCULO DE GIZ CAUCASIANO de Brecht disse a Sylvia pausadamente.
Tumulto geral na sala. Exclamações abafadas. Uma grande sensação... tudo calculado! (Só não olhar para aquele cretino do Rod.)
35- De... Brecht?
- Exatamente. Eu serei a criada. Um papel inteiramente novo para mim.
Que nada tem a ver com seu tipo disse Parron da AFP.
Nada tem a ver com meu tipo, como? Ah, o senhor quer dizer
fisicamente? Certo. Mas de resto... O senhor conhece a peça... sabe que se trata de uma criada que fica com o filhinho da esposa do Governador, educa e protege a criança contra todo mal. A certa altura a referida senhora retorna de viagem e exige a criança de volta. Daí se desenvolve a famosa prova do círculo de giz. Na peça de Brecht o juiz absurdamente entrega a tutela da criança à criada, mas esta, para não feri-la, solta-a não a arrastando para fora do círculo, para junto de si. O que há de mais precioso na vida, não é ser mãe, mas ter sentimentos maternais. E passando um braço pelos
ombros da Babs que espirrara novamente: Esta aqui a meu lado é também
uma explicação porque venho sonhando com este papel... minha filhinha adorada!
Então é Brecht quem a senhora vai interpretar... Nós franceses
gostamos muito dele. Mas uma sociedade americana... um autor da zona oriental...
O maior dramaturgo alemão deste século, senhor Parron declarou Sylvia.
Concordo plenamente disse este. Acho até que é do mundo
inteiro. Mas como irá a senhora conseguir fazê-lo? As dificuldades não serão enormes?
Sylvia olhou para mim sorrindo.
Afinal eu também tinha que me manifestar alguma vez.
Até o momento, graças a Deus, ainda não houve dificuldade alguma disse eu (falar eu sabia, pois durante anos quis ser artista ou escritor, e
a meu modo acabara mesmo sendo um tipo de artista). Virei a cabeça ligeiramente para a direita, pois meu ângulo mais favorável não é de frente, e sim o perfil de esquerda, e falei devagar, com toda calma, a fim de impressionar os ouvintes.
Mas o outro lado, sr. Kaven... os herdeiros... os direitos...
Exatamente disse eu - sob todos estes aspectos... tudo em
perfeita ordem! O senhor compreende, sr. Parron disse eu, me inclinando
este filme é promovido oficialmente. Vivemos numa época em que se
procura acabar com a tensão entre ocidente e oriente. Não porque sejamos anjos. Simplesmente por motivos de pura sobrevivência.
Tudo isto (me repugna dizê-lo) havia sido calculado por Bracken; tudo estudado e planejado!
Numa época destas, nosso filme deverá ser, segundo a intenção de
ambos os lados, um exemplo de paz, de boa vontade, compreensão e possibilidade de coexistência.
36De ambos os lados? Quer dizer então que o senhor tem o apoio
oficial de ambos os lados, sr. Kaven?
Exatamente, sr. Parron. Autoridades de Washington e de Berlim
Oriental colaboram, cooperam conosco na produção deste filme. Movidos pelo mesmo sentimento, contamos também com a colaboração dos herdeiros e detentores dos direitos autorais do... bem agora tenho que usar as suas palavras, pois o senhor tem perfeitamente razão... do maior dramaturgo do nosso século.
E o filme será rodado na Espanha?
Sim. Nos estúdios da Sevilla Filmes em Madrid, nos Pirineus, em
Saragoça e em Barcelona. A peça se passa há muitos anos numa província do Cáucaso, na Grunísia, como o senhor sabe. E a Espanha é o país ideal para esta filmagem.
Como também foi no caso do Doutor Jivago declarou Parron.
Exatamente concordou a Sylvia.
Ela usava um conjunto (saia e blusa) de Pucci, no colorido vivo típico do grande costureiro, exuberante e flamejante, em ametista e cor-de-rosa. Uma bolsa preta também de Pucci, nas mesmas cores, sapatos pretos de crocodilo, e um colar de pérolas de quatro voltas, com um fecho enorme. Este apresentava o feitio de uma rosa, com folhas de brilhantes, tendo a flor ao centro três pérolas. Os brincos eram do mesmo feitio do fecho, assim como o anel, embora em ponto menor, tendo em vez das pérolas apenas um bilhante. Eu sabia que era de vinte quilates, o número um na nomenclatura americana onde era conhecido como River, sendo na França chamado de Bleu-blanc. (Veja como sou culto, sr. Juiz!) Além disto usava ainda na outra mão um anel de esmeraldas e no pulso um relógio de brilhantes.
Os preparativos já vêm sendo feitos há um ano - continuou a
Sylvia. Fazemos questão que até os papéis mais insignificantes sejam
interpretados pelos melhores artistas. Temos a melhor equipe técnica... fotógrafos, arquitetos, técnicos de som, etc. Temos o melhor roteirista...
Quanta coisa para eles digerirem! E justiça seja feita... Tudo, apesar de abominá-lo tanto quanto ele a mim, tudo obra de Rod. A Sylvia sabia muito bem porque lhe pagava honorários tão absurdos. O principal em tudo isto era ainda, que com todas estas sensacionais novidades sobre o filme. Rod conseguia explicar o que era de urgência imediata: o desaparecimento de Sylvia por algum tempo. Até Babs acreditava que a mãe ia tirar férias, pois ninguém ia cometer a tolice de contar a uma criança de nove anos que a mãe se submeteria a uma plástica.
- E especialmente para este filme... - continuou Parron.
- Ele deverá se chamar CÍRCULO DE GIZ, sr. Parron - disse Sylvia.
... especialmente para O CÍRCULO DE GIZ foi fundada a
SYRAN PRODUCTIONS!
37Era indispensável, em se tratando de um empreendimento tão
vultoso.
Claro, por causa dos impostos se manifestou alguém.
Por isto também, evidentemente. Afinal não tenho a intenção de
me esfalfar e pagar até o fim da minha vida, setenta, oitenta, noventa ou noventa e três por cento de impostos. Com uma sociedade, a situação se torna um pouco melhor. O senhor tem alguma coisa a objetar?
Ora, sra. Moran... disse Claude Parron meio sem graça
claro que não. E quem será o chefe de produção dessa sociedade? Quem será o diretor?
Sylvia olhou para mim, os olhos brilhando. Estaria ela pensando no que dissera antes, ou ela me amava realmente? Me senti mal. Muito emocionada e com grande orgulho ela declarou:
Philip Kaven!
Philip Kaven?! Claude Parron procurou disfarçar sua perplexidade, mostrando uma surpresa entusiástica. Mas isto é formidável!... A
senhora e o sr. Kaven trabalhando juntos, intimamente ligados até na profissão... formidável!
O senhor sabe continuou a Sylvia eu e Phil vivemos juntos
há quase três anos. Somos felizes como no primeiro dia, e sabe por quê?
Porque de acordo com sua convicção de que o casamento é a
morte do amor, a senhora nunca se casou declarou Parron.
Isto mesmo. É um princípio do qual estamos convencidos, embora
não pretendamos absolutamente propagá-lo. Conosco deu resultado. E por quê? Por estarmos unidos por um amor no qual tudo harmoniza, corpo e alma. E é o amor espiritual que permanece. Isto é o principal. Ter os mesmos pontos de vista, os mesmos sentimentos, preferências, aversões, ideais. É o que acontece comigo e Phil. Entre nós existe um entendimento completo! Apesar disso continuamos a ser dois seres inteiramente independentes. Sei
que Phil é inteligente, bom, altruísta... (Foram essas exatamente suas
palavras, sr. Juiz, e eu, a seu lado me fingia de encabulado!)
Depois de uma pausa emocional, Claude Parron disse sério (em inglês como vinha fazendo até então):
Eu lhe agradeço, sra. Moran, em nome de todos os colegas, ouvintes e espectadores. Todos nós, milhões de pessoas em todo mundo, nos alegramos e desejamos sinceramente que a senhora, o sr. Kaven e também nossa querida Babs, continuem juntos para sempre. Fazemos votos que o CÍRCULO DE GIZ obtenha o maior êxito. Muito obrigado!
Somos nós que agradecemos, meus senhores disse Sylvia erguendo-se. Também nos levantamos. Claude Parron aproximou-se, beijando a mão de Sylvia. Depois inclinou-se profundamente.
Em pé à luz dos refletores, nós três, eu, Sylvia e Babs sorríamos.
38Rindo, Babs estendeu a mão para um dos vasos, e entregou uma rosa vermelha a Parron.
E aí começou!
E com que velocidade, sr. Juiz! Eu já disse que minha Maserati Ghibli (de cor creme) que a Sylvia me dera de presente, desenvolvia facilmente
290km por hora. Dentro da cidade nem se podia pensar nisto. De maneira nenhuma. Os suíços exercem um controle severíssimo; por toda parte há placas indicando o limite de velocidade. Mas o carro cola no chão, pode-se fazer com ele as curvas mais fechadas sem tirar o pé do acelerador. Saindo do hotel, entra-se em algumas destas curvas. As ruas estreitas, vão serpenteando morro abaixo.
Eu seguia a toda velocidade. Atravessava rua após rua. Só os pneus cantavam quando eu jogava o volante violentamente de um lado para o outro. Só o ombro do casaco de pele de Sylvia era apertado contra mim, e seu extravagante gorro de marta (ela era conhecida por seus chapéus loucos) roçava meu rosto. Atenção! Estava agora na rua principal. Pelo espelho via a malta que me seguia, uns vinte carros pelo menos. Muito bem.
Destes não nos livramos nunca disse ela.
Nunca, não disse eu. Cuidado! Passamos pela universidade,
seguimos para o norte pela Escola Técnica Federal. Depois para oeste, e logo descemos para o sul. Era a própria caçada de raposas. Agora estava no centro da cidade! Atravessei a ponte. A estação de trem. Correr ali, não podia. Era questão de habilidade, de saber dirigir. E isto eu sabia! Afinal todo mundo sabe alguma coisa. A turma atrás de nós (os amigos, rapazes, amici, chums e copains de Rod) devia estar suando um bocado. Atravessei o cais infindável. Um cruzamento! Pronto. Atravessei o sinal vermelho. Mais devagar... senão o pessoal acaba nos perdendo de vista. Lá estavam eles novamente! Em frente então! Pisei o acelerador com vontade. Dobrei à direita. Sinais aos montes. Todos verdes. Em frente. Até que uma Maserati destas é um prazer, sr. Juiz! À esquerda, negro e imenso, estendia-se o bairro industrial. Continuei para oeste até a praça de esportes. Ali começavam as curvas fechadas que iam desembocar na auto-estrada. Esquerda, direita; direita, esquerda. O casaco de pele de marta negra da Sylvia e seu gorro me incomodavam constantemente.
Ela se virou:
- Não precisa ter medo. Eles vêm aí. Continuara firmes.
39Lá estava a auto-estrada para Berne. Acelerei. A turma que nos seguia acelerou também. Passamos por uma saída, outra; mais duas ou três e estaríamos no nosso destino, no restaurante do viaduto, na auto-estrada.
Este restaurante a dezoito quilômetros de Zurique, flutua lá no alto atravessando as duas pistas das duas vias da estrada, e ainda se estendendo um pedaço além. É um conjunto de seis restaurantes, dezoito lojas, uma filial de banco, uma central telefônica, instalações de banho, salas apropriadas para mudar as fraldas dos bebês, etc. Nós estacionamos em volta. Além do espaço para setecentos carros, existem, ainda, quarenta bombas de gasolina. Tudo funciona diariamente e (quase) as vinte e quatro horas do dia.
Parei no estacionamento. Saltamos. De braços dados atravessamos no escuro até a fantástica obra de arte. Escolhemos o último dos seis restaurantes. Seu nome era “Landbeiz”, o que em suíço quer dizer “Pequeno Albergue do Campo”. Aí se bebe mais do que se come. Instalamo-nos. Era quentinho e aconchegante como a confortável sala de estar de uma casa de camponês. Pedi uma garrafa de “Saint Saphorin” da safra de 69.
Debaixo de nós passavam os rastros de luz dos carros que seguiam em alta velocidade nas quatro pistas, numa e noutra direção. Era um espetáculo que sempre me fascinava. Já estive ali algumas vezes pois ali havia paz. Ela fumava. Agora o pessoal devia estar chegando. Um garçom trouxe a garrafa num balde de gelo. Enquanto ele abria o vinho, apareceram os primeiros dos “rapazes” de Rod, as câmaras prontas para entrar em ação. Olhei para eles indiferente. Ajudei Sylvia a colocar o casaco nos ombros e a tirar o gorro de zibelina, colocando-os numa cadeira vazia.
Ora merda! exclamou um dos repórteres em voz alta.
Os outros nos fixavam atônitos.
A mulher a meu lado não era Sylvia Moran. Estava apenas usando seu
casaco e gorro. (Desta vez a idéia tinha sido minha. Uma vez afinal e não
daquele filho da mãe, do Rod). A mulher a meu lado era Clarissa, a governanta da Babs.
O garçom havia colocado um pouco de vinho no meu copo. Experimentei. O “Saint Saphorin” era meio seco, excelente. Fiz um sinal e ele encheu os dois copos, emitindo uns sons guturais que deviam ser algum brinde. Agradecemos e bebemos. Na entrada, os repórteres continuavam em pé, indecisos. Cochichavam entre si e a certa altura um louro altão aproximou-se da mesa e disse em alemão:
Isto não se faz, sr. Kaven!
Não, por quê? Bracken não lhes pediu para deixarem a sra. Moran em paz?
40Eu nunca imaginei que vocês fossem manter a palavra, por isso estou aqui com d. Clarissa.
E a sra. Moran, onde está? ele ainda teve a coragem de perguntar.
Não dei resposta e ele voltou para junto do grupo. Depois, todos partiram menos ele. Instalou-se e pediu uma cerveja. Estava decidido a esperar. Virei-me para a Clarissa dizendo:
Agora temos que aguardar o telefonema.
É, sr. Kaven disse ela. Clarissa tinha nascido em Los Angeles
mas era de descendência alemã; chamava-se Clarissa Geiringer. Conhecia a Babs desde bebê. Uma boa alma. Tinha então vinte e sete anos, muito bonita e muito loura, só não sei se autêntica ou pintada. Como o senhor vê, sr. Juiz, desta moça eu nada sabia. Não a havia tocado com tenazes de fogo, pois ela não preenchia nenhum dos requisitos que eu exigia das minhas pequenas. Com os anos tínhamo-nos tornado bons amigos, pois contrário a Rod Bracken, a Clarissa me respeitava. Ela também amava a Babs com todo carinho, de todo coração, fato que em breve se provaria calamitoso.
O repórter continuava lá tomando sua cerveja, olhando furioso para nós. Eu sabia que o chamado telefônico ainda devia demorar algum tempo. Ficamos, pois, sentados calmamente, em todo conforto, esperando, enquanto lá embaixo as luzes passavam rápidas, luzes vivas, pois atrás delas estavam sentados seres vivos.
Eu me lembro que Clarissa, lá no alto, por cima das quatro pistas, perto de Zurique (afinal, em relação a que Zurique era perto? Onde era o canto seguro, o quartinho no mundo onde eu estivesse em casal Não existia. Eu não tinha lar no mundo, por pequenino que fosse, sr. Juiz), eu me lembro que a Clarissa me contou como Rod se havia vangloriado diante dela da perfeita organização da entrevista à imprensa, onde graças à sua habilidade fora possível disfarçar completamente aquilo que devia ser mantido em sigilo: a plástica da Sylvia. Rod havia dito para Clarissa:
Se não fosse eu, eles estariam mal arranjados. Toda vez que a coisa
começa a cheirar mal, sou eu quem tem que arrumar o desodorante íntimo.
Ele que cale a boca! disse eu logo excitado. Clarissa também
não gostava de Bracken. Estava do meu lado. Com ela eu podia falar abertamente, e foi o que fiz:
Se ele se acha tão formidável, se vive se queixando que seus
méritos não são devidamente reconhecidos, por que não vai embora?
Ele não pode; o senhor sabe muito bem disto, sr. Kaven respondeu a Clarissa. O senhor sabe o pânico em que vive.
Sabia sim. Clarissa havia me contado. Certa vez, na bebedeira, Rod lhe confessara. Nascera em Nova Iorque, no Bronx. Seu pai tinha sido um alcoólatra, sua mãe uma prostituta. Ambos morreram antes dele completar dez anos. Foi então mandado para um asilo, onde ganhava pouca comida e muita pancada. Cresceu em meio à miséria de Nova Iorque, que é uma miséria muito especial.
41Pedia esmola, roubava; foi engraxate, lavador de pratos, de carros e de defuntos; foi aprendiz de um eletromecânico sádico, de um batedor de carteira aleijado que formava bandos de garotos e os botava para trabalhar. Aos treze anos teve sua primeira experiência sexual; logo depois, sua primeira doença venérea, que o levou a odiar tudo que era mulher. Conheceu então os decrépitos homossexuais nos botequins do porto, e com eles as desgraças do outro lado do amor. Foi telhador, trabalhou em posto de gasolina, foi estafeta de correio da WESTERN UNIÃO, quando esta ainda obrigava os garotos a cantarem “parabéns para você” toda vez que entregavam um telegrama a um aniversariante. Tomou conta do aquecimento central de um prédio, dormindo no porão ao lado dos enormes boilers. Trabalhou como fiscal, marcando passagens nas barcas que atravessavam o rio Hudson, foi funcionário da limpeza urbana, entregador de jornal, empregado de uma dona de bordel a quem por alguns centavos trazia marinheiros bêbedos; arrumou meninas menores para velhos senis. Não existia, enfim, nada que Rod Bracken não tivesse sido antes de ir trabalhar com um “conselheiro de finanças”, arrumando dinheiro para este.
O referido “conselheiro” tivera sua licença cassada na Alemanha por motivos mais que justos. Partira daí para Nova Iorque, onde ajudava à nova freguesia a fazer todo tipo de trapaças. Este homem, no entanto, havia sido uma pessoa importante, um profundo conhecedor da legislação de imposto de renda de diversos países. E como aquele que, segundo Brecht, carrega um tijolo consigo para mostrar como era sua casa, também este levou para a América sua vasta biblioteca especializada. Lá estavam, pois, os livros em suas estantes, no quarto dos fundos sem janela, e Rod aproveitava cada minuto, passava noites inteiras lendo, se instruindo principalmente a respeito da legislação alemã. (Conseguiu até fazer curso de línguas!) Quando partiu para Munique, para iniciar sua grandiosa carreira, Rod era um perito em imposto de renda. O medo e o pânico que a partir de então o perseguiam até em sonhos, era de voltar ao inferno da miséria anterior. Até hoje este temor perdurava. Ele, a quem todos consideravam o mais frio e ladino empresário, era obcecado por uma única, mesquinha mas predominante idéia, a de nunca, nunca mais voltar a ser pobre!
O senhor sabe disto, sr. Kaven disse Clarissa O senhor sabe
que por esta razão ele nunca deixará a sra. Moran. Mesmo que ela o ponha para fora, ele cairá de joelhos na sua frente, lambendo-lhe os sapatos, implorando para ficar com ela a qualquer preço, sob qualquer condição.
Eu sei por que não gosto do Rod, Clarissa disse eu. Pelo jeito com que me trata. Como se eu fosse um caftén, por favor não me contradiga, é exatamente isto, um caçador de dotes, um gigolô, um patife, um ladrão. Sempre. Por que será que age assim, Clarissa?
O grande repórter louro continuava sentado nos observando pensativo, tomando sua segunda garrafa de cerveja.
Ora disse a Clarissa, aquela moça tão pacata, de repente com assustadora vivacidade
42porque ele tem pelo senhor uma admiração sem igual, sr. Kaven.
Ele? Admiração? Por mim? E por quê? Que conversa mais
estranha naquela noite lá nas alturas, por cima da luzes que passavam rápidas num canto da Suíça, num canto do mundo.
Por causa de seu charme. Por seu espírito, sua inteligência. Por sua
amabilidade e a estima que todos lhe têm. Por sua boa educação, enquanto ele se formou em bordéis e bares à beira do rio. Por ser um cavalheiro, coisa que ele nunca conseguirá, por mais dinheiro que tenha; e porque o senhor gosta de todo mundo, assim como todos gostam do senhor.
E eu que pensava que nunca ninguém gostava de mim (nem a Sylvia, apesar dela ser outro caso), e que também eu na verdade nunca gostara de ninguém.
Ficamos calados durante algum tempo, pois eu precisava digerir o que Clarissa havia dito a meu respeito, principalmente quanto a ser cavalheiro. Ela parecia estar fazendo o mesmo. Será que esta moça gosta de você, pensei comigo. Se fosse o caso, teria que convencer rapidamente à Sylvia a mandá-la embora. Não queria complicações!
O garçom que havia trazido o vinho aproximou-se da mesa:
Desculpe... sr. Kaven.
- Sim?
O senhor está sendo chamado ao telefone. Por aqui, por favor.
Foi andando na frente e vi que mancava. (Mais uma profissão para quem é aleijado, pensei eu.) O alemão levantou e nos seguiu. O telefone ficava num nicho, no corredor do restaurante; o fone estava ao lado, em cima de uma mesinha. O garçom saiu capengando. O alemão ficou parado.
Vê se te manda! disse eu. Anda, vai logo, senão ainda te
largo a mão.
Pareci tê-lo impressionado, pois logo sumiu. Peguei no fone.
Pronto!
Sr. Kaven, aqui fala Buerli.
Boa tarde, sr. Buerli. Era o dirigente da distribuidora da SEVEN STARS em Berlim. Um homem simpático, sensato.
O jato particular da sra. Moran partiu de Kloten há dez minutos.
Obrigado, sr. Buerli.
Até logo, sr. Kaven.
Voltei para a sala. Lá estava o alemão olhando furioso para mim.
Eu e d. Clarissa partimos agora para Kloten, para o aeroporto. Às
vinte e duas horas seguimos com um avião da Air France para Paris. Se o senhor quiser nos acompanhar, evidentemente não como hóspede... será bem-vindo a bordo.
4315
Ele não nos acompanhou.
Nenhum repórter, aliás. Não vi nenhum no enorme saguão do aeroporto. Estava certo de que eles não tinham desistido, deviam apenas ter constatado que aquilo não fazia sentido. O avião partiu pontualmente. A Maserati e o Rolls-Royce de Sylvia seriam levados para Paris pelos motoristas do hotel, e lá ficariam na grande garagem subterrânea perto de Orly, conforme o combinado. Eles tinham levado cópias das chaves. Os documentos do Rolls-Royce com o qual Rod, Babs e Sylvia tinham seguido para Kloten despercebidos, pois eu havia despistado a malta, já estavam trancados no porta-luvas. Antes de partir, também eu trancara os papéis da Maserati.
O estacionamento em frente ao aeroporto de Kloten é imenso e eu não consegui ver o Rolls-Royce da Sylvia. Seu jato particular, em SUPER-ONE-ELEVEN com uma tripulação de quatro pessoas (muitas vezes jà tínhamos atravessado o Atlântico nele), vindo de Frankfurt, havia aterrissado em Zurique sem os repórteres perceberem. O aparelho recebera instruções para pousar numa pista afastada. À noitinha, o sr. Buerli tinha levado os três em seu carro, do estacionamento até o avião conforme havia sido combinado, e depois do jato levantar vôo, ficara de ligar aqui para o restaurante. Toda nossa bagagem já se encontrava em outro avião como carga, a caminho de Paris, endereçada a: Philip Kaven - HOTEL LE MONDE.
Eu e Clarissa fizemos um vôo tranqüilo. Cinqüenta minutos. Ela cochilou um pouco, e pronto... lá estávamos.
Senhores passageiros, daqui a alguns minutos vamos descer em
Paris. Queiram apagar seus cigarros por favor. Apertem os cintos ouvia-se
a voz da aeromoça.
Também em Orly não vimos nenhum repórter. Conforme combinado, passamos pela fiscalização o mais rápido possível. Diante do guichê fechado da IBÉRIA, estava um homem corpulento de capote de lã. Não trocamos uma palavra. Seguimos atrás dele.
Fazia frio em Paris. Ao sairmos do prédio do aeroporto, um Chevrolet preto encostou. Entramos. Eu e Clarissa atrás, o homem de capote ao lado do motorista, que partiu logo em direção ao centro. Quinze minutos depois o motorista parou num estacionamento. Aí um segundo Chevrolet preto nos esperava.
Adeus, Clarissa disse eu. Até a vista.
Até a vista disse ela.
Dirigi-me para o segundo Chevrolet e abri a porta:
Graças a Deus você chegou! exclamou Sylvia, apertando-se contra mim.
44Senti que tremia e chorava Estou com medo Phil, com tanto
medo!
16
Neste segundo Chevrolet estavam dois sujeitos enormes. Também nada disseram. Ficaram o tempo todo olhando se estávamos sendo seguidos. O carro andava rápido; mesmo assim, levamos uma hora e meia até chegarmos a Neuilly.
Medo? De quê? Aconteceu alguma coisa? perguntei horrorizado.
Não. Nada. Correu tudo bem. Babs e Rod estão há muito tempo
no LE MONDE. E você?
Tudo bem. Mas então medo por quê?
Da operação, Lobinho soluçou ela Da operação... Eu...
eu tenho tanto medo... e a Babs...
O que tem a Babs?
Esteve insuportável durante toda a viagem... ranheta... agressiva... inquieta... inteiramente mudada. Nunca a vi assim. Levei um susto! De repente era uma estranha. Que será que houve?
Não tenho a menor idéia. Não deve ser nada, Bruxinha. Nada não.
- Tem qualquer coisa sim, Lobinho! Estou apreensiva... Será que ela não vai mais gostar de mim, porque a deixei sozinha?
- Bobagem! Acho que ela está resfriada. Talvez seja gripe. De tarde ela estava bem quente.
Criança tem febre à toa.
Mas ela não estava com febre. Clarissa mediu.
Bem, então se não é gripe, talvez seja apenas um resfriado. Mas ela
estava furiosa por não poder ir junto, só vendo! Será que ela não acredita nas minhas “férias”? Gosto tanto dela, Lobinho, e ela me trata desse jeito, logo agora que vou fazer essa... essa operação horrível! Estou com medo, Lobinho!
A viagem inteira, sr. Juiz, toda aquela enorme distância até Paris, depois atravessando a gigantesca cidade até o meio, dando volta na metade dela até chegarmos à clínica do dr. Delamare na Rue Cave, no Bois de Boulogne, eu só fiz uma coisa: consolar a Sylvia, fazer com que parasse de chorar, e não tivesse mais medo.
Quando finalmente chegamos, e um dos gigantes se plantou diante da janela de vidro fosco na coluna esquerda do portão, quando a luz acendeu, os portões se abriram e nós entramos naquele parque cheio de vegetação. Q
45uando paramos diante da entrada do palacete de fim do século, Sylvia já estava calma; já não chorava mais. Estava valente, olhava confiante para o futuro e conseguiu até esboçar um sorriso (ah, Françoise Sagan!) quando o médico de plantão nos recebeu.
Despedi-me de Sylvia na sala do médico que nos havia recebido, dizendo que à noite do mesmo dia (já passava de meia-noite) eu passaria lá. Renovei meus protestos de amor, afirmando que só a ela eu amava e a mais ninguém. A cena de despedida que consegui fazer foi inacreditável. Nem o médico conseguiu esconder sua emoção. Um dos gigantes me levou até o hotel.
A janela do meu lado estava aberta e eu respirava o ar frio da noite. Raios, Rod que tratasse de calar o bico e me deixar em paz! Aquele cretino gostar de mim, ele nem imaginava do que eu o livrara!
Voilà, monsieur.
Só notei que tínhamos chegado quando a porta do meu lado se abriu. Saltei, dei uma boa gorjeta ao gigante para dividir com o outro. Agradeceu e arrancou. Entrei no meu velho e querido LE MONDE, onde já tinha morado tantas vezes. Fica numa rua lateral, a três minutos a pé dos Champs Elysées com suas velhas árvores, bem perto da Place de PEtoile e do Arco do Triunfo.
Sr. Kaven!
De braços abertos, sinceramente emocionado, Lucien Bayard, um dos porteiros da noite veio ao meu encontro. Há quanto tempo já nos conhecíamos? Há quantos anos apostava nos cavalinhos para mim, sem que ninguém soubesse? Jean Perrotin, o segundo porteiro da noite, que eu também conhecia há muito tempo, se inclinou sorridente atrás do balcão. Eu conhecia todo mundo ali, há uma eternidade; toda a equipe da recepção que agora estava vazia, todos os porteiros do dia, o chefe, o respeitável monsieur Charles Fabre, o homem de quem diziam não existir nada no céu nem na terra que ele não conseguisse num segundo. Conhecia André Magnol, o chefe da recepção, todo o pessoal do bar, os garçons e mattres, os garçons dos diversos andares, as arrumadeiras, o pessoal da administração e o monsieur le Président-Directeur General do LE MONDE, aquele enorme, pesado e simpático Pierre Marechal.
A esta hora o saguão estava abandonado. Eu e Lucien em pé um frente ao outro. , yi Que prazer estar de volta, Lucien!
46O prazer é nosso! De todos nós, sr. Kaven! É uma satisfação tão
grande... Seu pessoal já está lá em cima. A bagagem também já chegou.
Há anos ocupávamos aqui o mesmo conjunto de apartamentos. 419 para mim e Sylvia; 420 para Babs e Clarissa; 421 para Rod; 422 para o dr. Wolken, que viria amanhã.
Eu o acompanho... O porteiro da noite foi andando a meu
lado até a porta do elevador No próximo domingo Une de Mai vai correr
em Vincennes.
Une de Mai era um cavalo maravilhoso, nunca houve igual.
- Alguém me falou que ele não está correndo mais disse eu.
De vez em quando corre. Também só estou lhe dizendo por dizer.
Nem adianta apostar. Ganha sempre. Todo mundo aposta nele. Por isto dá
tão pouco. Lá em Anteuil é que vai ser bom no domingo! Ele me deixou
entrar no elevador e seguiu atrás. Subimos para o quarto andar. O senhor
sabe, nunca dei bola para palpites de jornal. Mas tem três animais que eu venho observando há muito tempo: Poet’s Bay, La Gauloise e Valdemosa.
Formidáveis, sr. Kaven. Formidáveis! O porteiro da noite beijou a ponta
dos dedos. Todos três vão correr no domingo. Eu lhe aconselharia a
carregar no placé... Ainda não se espalhou muito... Sua voz passou a
um sussurro... que grandes cavalos são. Eu mesmo vou apostar neles.
Não é sem motivo que relato aqui nossa conversa sobre turfe, sr. Juiz. Esta conversa é importante para o senhor, se quiser compreender o que me levou a ser o que sou.
O elevador parou e Lucien abriu a porta.
Com licença desceu o corredor na minha frente, em direção ao
419.
- Então aposta para mim também, Lucien.
Com prazer. Quanto é que eu posso... O que o senhor quer...
Isto você decide, como sempre, Lucien.
Muito obrigado pela confiança. Ele se inclinou andando.
Nesse caso eu também lhe aconselharia a não deixar de fazer uma outra aposta, combinando os três cavalos de modo que se um dos favoritos perder o senhor ainda continua garantido.
- Está certo, Lucien.
- Ótimo. Pode deixar que eu penso direitinho e vejo todas as possibilidades.
Com isto chegamos ao 419.
- Muito obrigado, Lucien disse eu lhe apertando a mão.
- Eu é que agradeço, sr. Kaven respondeu o velho porteiro da
noite, guardando o dinheiro. Boa noite.
- Boa-noite, Lucien disse eu. Bati rapidamente na porta e entrei
no apartamento que conhecia tão bem. Para minha surpresa todas as luzes estavam acesas já na entrada, e o salão feericamente iluminado. Três pessoas se viraram; Rod, Clarissa e o pequenino dr. Levy, nosso médico de Paris.
47Que houve? perguntei. O velho relógio em cima da lareira
marcava 1h35min da manhã.
Merda de situação disse Rod. Estava ligeiramente bêbedo.
O que houve? Posso saber?
Pergunte ai ao doutor disse Rod olhando traiçoeiramente para
mim. Estava sentado no encosto de um sofá, ao lado de uma mesa cheia de garrafas, esvaziando seu copo. Arrotou.
Clarissa começou a chorar.
Dr. Lévy! Que faz o senhor aí? perguntei.
Fui chamado disse o homenzinho, inteiramente calvo, de gros-
sas lentes, com aquele rosto de extrema tristeza e bondade.
Por quem?
Pelo sr. Bracken.
E por quê?
Por causa de Babs.
O que há com ela? Fale logo, por favor!
Babs está doente disse ele.
doente?
É, sr. Kaven.
E onde está ela?
Nós a colocamos no quarto da sra. Moran, que não está sendo
usado. Quando cheguei estava passando muito mal; trinta e nove e meio de febre, sentindo calafrios e muito agitada. A luz a incomodava e suas pálpebras estavam inflamadas. Dentro da boca, na altura dos molares, a mucosa apresentava pontos brancos cercados por um campo vermelho. Já deve ser o décimo terceiro dia.
Décimo terceiro dia de quê? Pare de chorar, Clarissa!
Ela continuou.
Do início da doença disse o pequenino médico Esta doença
apresenta sintomas característicos, um período de incubação de nove a onze dias. Só depois é que ela se torna realmente patente.
Meu querido dr. Lévy, será que o senhor poderia me dizer o que a
Babs tem?
Sarampo disse ele. Mais nada. Eu espero.
O que quer dizer o senhor com “mais nada”? Por que “eu espero”?
Porque não tenho certeza absoluta. Existem também... outros
sintomas que não consigo entender direito. Não sei se é apenas sarampo. Que é sarampo eu tenho certeza; o sr. Bracken já foi inclusive até a farmácia apanhar o que estamos precisando no momento. Mas se tem mais alguma coisa... no momento ainda não se pode dizer.
E quando é que se poderá saber?
Acredito que amanhã. Se os sintomas continuarem... é muito
complicado, o senhor não ia entender mesmo... então eu gostaria de chamar um colega. E acrescentou meio perdido: É, um colega.
48Rod continuou a beber, arrotou novamente e disse:
Puta merda. Se for sarampo, a Babs tem que ir para uma Casa de
Saúde. Não vai poder ficar no hotel. Nenhum hotel permite a permanência de criança com sarampo.
O LE MONDE sim. Amanhã falo com o Marechal. Ele dá um
jeito. Digo a ele que é apenas alergia, por exemplo. O senhor confirma, não é doutor?
Confirmo, claro. Se for apenas sarampo, confirmo. Mas se não for
só sarampo, não confirmo não.
Tive que fechar os olhos. ,
18
Abri os olhos novamente.
Estava sentado na cadeira dura do quarto número 11, no terceiro andar da clínica do Professor Delamare em Neuilly. Lá estava a bola branca que escondia a cabeça da Sylvia, e os tubos que saíam das ataduras na altura das orelhas e da nuca. Lá estava a mão quente, molhada de suor da Sylvia, se agarrando à minha.
... Me deixe em paz... Romero! Ora vâ pro diabo!... Cachorro imundo... dizia ela cheia de ódio, em inglês. Depois emudeceu de um
momento para outro e pareceu estar dormindo. Meus pensamentos começaram a vagar. Eu me lembrei de tudo que havia acontecido no dia anterior, há poucas horas apenas...
Eram 19h47min quando olhei pela última vez para o relógio; vi que Sylvia parecia estar dormindo e fechando os olhos, comecei a me lembrar de tudo.
Abri os olhos novamente.
Ainda eram 19h47min do dia 23 de novembro de 1971. Apenas o ponteiro de segundos do meu relógio devia ter andado um pouco, não tinha reparado quanto.
... Lobinho...
Que é Bruxinha?
Sua voz formava sílabas, palavras, breves sons, cada vez com mais esforço.
49A bola branca não se movia mais. Apenas as palavras iam pingando. O corpo imóvel. A mão se soltara da minha, pendia frouxa, branca.
Ch... ch... chave...
Levantei, dobrei a coberta um pouco para trás, e vi numa correntinha que trazia pendurada ao pescoço, uma chave recortada. Abri o fecho e tirei-a. A chuva batia contra as vidraças e a ventania rugia nas árvores do parque.
Que chave é esta?
Ali disse ela apontando vagamente com a mão.
Olhei em volta. Onde será que... ah, ali na parede que dava para o banheiro. Aproximei-me e abri a porta do pequeno cofre de aço, embutido na parede e emboçado de branco. Dentro de um saco de plástico estavam as jóias. Num saco de plástico! Uma parte (pequena) das fabulosas jóias de Sylvia! Então ela realmente as trouxera para cá, esta pobre louca, esta mulher genial, a “mulher-criança” como tinha sido chamada por um de seus amantes, que devia ter sido um homem inteligente. Apesar de todo medo, apesar das crises nervosas, Sylvia havia trazido escondidas algumas jóias, para aqui onde certamente não iria usá-las. Dava para entender?
Me dá...
Levei as jóias até a cama. As mãos úmidas de suor estavam em cima da coberta.
Quero... pegar.
Sentei mais uma vez, abri o saco transparente (o famoso atelier de Zurique, Laube & Boehi devia nele ter fornecido alguma coisa) e fui tirando.
Primeira peça.
As mãos a apalparam, carinhosas, suaves, deslizantes.
... anel de rubi...
Mais duas peças.
... Brincos de rubi...
Outra peça.
... Turquesas... gargantilha... Turquesas persas e brilhantes, pensei eu. 10.000 dólares Como... como está... a Babs?
Muito bem disse eu. Aqui está o bracelete de turquesas...
O que ela apalpava, deixava cair na cama. Uma pulseira... as turquesas
da Pérsia, os brilhantes dos mais valiosos. 50.000 dólares Babs está muito
bem.
Ela não estava muito bem, melhor porém do que à noite. Dr. Levy estivera lá duas vezes durante a manhã. Trouxe um colega; um certo dr. Domoulin. Examinaram Babs durante quase uma hora, e finalmente concluíram que ela estava apenas com sarampo. Tinham quase certeza do que estavam afirmando. Embora fosse um sarampo diferente, com sintomas estranhos que haviam preocupado o dr. Levy na noite anterior. A febre baixara. Babs tinha sede. Comeu um pouco. O corpo inteiro agora estava coberto de manchas vermelhas. Mas era apenas sarampo! Estranho, ela não ter sido vacinada contra sarampo!
50Eu tinha evitado falar com meu amigo Pierre Marechal o Presidem-Directeur General do LE MONDE. Amanhã eu falo, pensei comigo, sentado na cama da Sylvia. Já nos conhecemos há tantos anos! Sou capaz até de lhe dizer a verdade! Sarampo. E daí? Pierre sem dúvida faria uma exceção, deixando a Babs ficar no hotel.
Ora, sarampo, nada mais. Dr. Levy sempre fora excessivamente preocupado, eu já sabia. Sempre superestimava sintomas insignificantes. Agora depois dos dois médicos terem feito um exame tão cuidadoso, eu podia estar tranqüilo. Sylvia era vacinada contra sarampo. Eu, Clarissa e Rod também. Lembrei-me de perguntar a Susy, assim que chegasse, se ela era vacinada ou se teve sarampo em criança. (Eu ainda chegaria lá hoje. Droga, ainda não eram oito horas, Sylvia já falava tudo enrolado.) O pequenino conde seu noivo, herdeiro das fábricas de têxteis em Roubaix não se importaria. Mas se Susy agora pegasse sarampo, durante semanas eu não poderia brincar com ela.
Meu bonito anel de turquesa!
Ele estava na palma da mão da Sylvia. Apalpou-o longamente. Pedra da Pérsia. 20.000 dólares.
Único no mundo inteiro... Muitas jóias da Sylvia eram peças únicas, como este anel. Sabia como ela gostava de remexer nas jóias, horas a fio. Era quase um coito para ela. Mesmo agora? Quem entendia esta “mulhercriança”? Zanguei com a Babs...
Eu lhe entreguei os brincos de turquesa.
Zangou?
No avião... ontem... Solitário... E como eu não o colocasse logo em sua mão, gritou: Solitário!
Está aqui, Bruxinha. Lá estava ele. 45 quilates. Lapidação
marquesa. 1.400.000 dólares. Categoria número 1.
Pobre Babs... eu... tão nervosa... Me dá o anel de esmeraldas... minha esmeralda. Apertou o anel contra a abertura na gaze, por
cima da boca, como se quisesse beijá-lo. Sabia que costumava beijar suas jóias.
Agora vou ficar bonita!
Você sempre foi a mais bonita!
Para você! Mas aqueles cretinos exigiram. Cretinos, patifes!
Acham que podem...
Entreguei-lhe os brincos que faziam conjunto com o anel. Eram enormes e muitas vezes as orelhas lhe doíam quando os usava em ocasiões de gala... uma dor de qualquer maneira suportável.
- Tinha que ser... esta... esta plástica.
Claro, Bruxinha.
Closes, bem de perto, Lobinho... Katie é uma idiota... mais
uma vez... ela não consegue... principalmente a... esquerda, a... me ajude!
51A pálpebra esquerda.
- É... está flácida... Katie nunca conseguiu direito... como esilo minhas jóias?
Um sonho.
Com as duas mãos remexeu as jóias. Fez um esforço para gritar:
Porcaria de televisão! Caixa para idiotas!
É isto mesmo, Bruxinha.
A Marlene nunca se apresenta diante daquele olho assassino! Milhões de filhos da mãe contam as rugas... E continuou a xingar a
televisão e a brincar com as jóias.
Engraçado, pensei eu. Há dois anos ela obteve tamanho sucesso na televisão, sucesso que será comentado durante anos ainda. Foi- fantástico! Embora tivesse resultado também em algo bem desagradável... para mim e a minha Bruxinha...
20
Faltavam 20 segundos para as 21h do dia 25 de junho de 1969, sexta-feira.
O ponteiro dos segundos do grande relógio elétrico da sala da TELE MONTE-CARLO avançava. Parecia a contagem regressiva em Cabo Kennedy. A sala era muito pequena, cheia de aparelhos. Cinco homens e uma moça em cadeiras giratórias diante da enorme mesa com lâmpadas, interruptores, reostatos e uma fila de seis vídeos......9...8...7...
Atrás dos aparelhos de televisão havia uma parede inteira de vidro. Ela dava visão total para o estúdio, o único da TELE MONTE-CARLO. Era do tamanho de uma sala de jantar normal. Três homens de calças de linho e blusões estampados, fones nos ouvidos estavam atrás das câmaras.
Uma parede azul-clara. Uma mesa igual às que os comentaristas de televisão costumam ter diante de si. Um vaso imenso com rosas. Não havia espaço para refletores no chão. Duas dúzias deles pendiam em longos cabos de aço presos no teto do estúdio. Este único estúdio da TELE MONTE-CARLO não era apenas minúsculo, tinha também um pé direito muito baixo.
A sala estava totalmente iluminada. Devia fazer muito calor lá dentro; mais ainda do que cá fora.
Eu me encontrava em pé, no fundo da sala, ao lado de Rod. Tínhamos tirado o paletó do smoking. Que calor! Era pleno verão. Dava para suar em Monte-Carlo!
Olhei para dentro do estúdio.
52Atrás da mesa estreita, diante da parede azul, Sylvia e Babs. então com sete anos, estavam sentadas lado a lado. Tinham sido maquiladas por Katie e Joe Pattersen, a quem Sylvia, trouxera de Hollywood para Monte Carlo. Viéramos direto de Los Angeles a Paris para este programa, e de lá para
Nice. Sylvia usava um vestido de crepe Georgette amarelo; como estivesse
sentada, só se via a parte de cima. Era todo coberto de pailleté branco, levemente decotado na frente, o busto entalhado, um decote fundo nas costas. A saia ampla. Como jóias usava apenas brilhantes: o grande solitário, pulseira, gargantilha e pingentes. Sapatos prateados. Babs trazia um vestido de organza branca, todo em babados à moda espanhola, pintado com flores e folhas verdes, amarelas e vermelhas.
Os olhos de Sylvia, de um negro-azulado, brilhavam enormes. Os da filha eram iguais. Negro e brilhante era o cabelo de ambas. Muito clara e lisa a cutis de mãe e filha, desta criança despreocupada, risonha e feliz, o encanto de todo mundo.
...6... 5... 4...
A transmissão extraordinária que iria ser iniciada em breve passaria pela EUROV1SÃO para mais de vinte países simultaneamente. Além disso a imagem seria transmitida via-satélite para os blocos de leste, para o oriente, o sudeste da Ásia, a América do Norte e do Sul. Poderia ser captada, aliás, pelo mundo inteiro. Em conseqüência das grandes diferenças de horário existentes em relação a certos países, tudo que agora seria dito e mostrado, tudo que seria visto no mesmo instante na Europa inteira, seria retransmitido mais tarde, no horário nobre de cada país, por várias centenas de estações. Calculava-se que uns 700 milhões de espectadores assistiriam ao programa.
Uma transmissão gigantesca desta, produzida pela menor estação de televisão do mundo, só foi possível através da colaboração de quase todos os governos, da UNICEF, da UNESCO e de inúmeras outras alianças. A estrela
daquela noite era uma das figuras mais famosas e queridas de nossa época
Sylvia Moran! Na verdade eram duas estrelas igualmente famosas e queridas, ultrapassando fronteiras, oceanos, desertos, montanhas; sem distinção de crenças, raças, ideologias; transformando por instantes num só, esse nosso mundo tão dividido. Duas estrelas: Sylvia Moran e Babs.
A menor estação de televisão do mundo ficava no primeiro andar da casa 16, do Boulevard Princese Charlotte. No térreo e no subsolo estavam as acomodações um pouco mais espaçosas da Rádio Monte-Carlo.
A TMC não transmitia longos noticiários, apenas notas telegráficas, impressas em fitas telegráficas que passavam pelo vídeo. Quase não transmitia produções próprias, mas séries estrangeiras e “UN GRAND FILM CHAQUE SOIR” - “UM GRANDE FILME TODA NOITE”. Para isto não era necessário mais do que um simples projetor e uma pequena equipe de funcionários. A torre ficava no ponto mais alto, da mais alta montanha de Monte Carlo, muito acima das três estradas que desciam serpenteando a montanha até o mar.
53Evidentemente a TMC não tinha possibilidades técnicas para poder, nem em sonhos, pensar numa transmissão para o mundo. Por esta razão, estava funcionando ligada à estação central da Eurovisão, a ORTF, televisão oficial de Paris. Daí, a imagem voltava, por assim dizer, para Monte-Carlo, sendo também transmitida para toda a Europa e via satélite, para o mundo inteiro.
... 3... 2... 1...
... zero.
21 horas, hora da Europa Central em Monte-Carlo.
O diretor desta gigantesca transmissão, sentado ao lado do assistente, levantou um dedo.
Pronto! disse ele em voz baixa.
Sylvia e Babs que podiam vê-lo, aquiesceram. A Sylvia umedeceu mais uma vez os lábios e a Babs acenou para todos nós na cabina de controle. Mãe e filha sabiam que só iriam aparecer na televisão, depois do diretor erguer dois dedos.
A parte que seria transmitida primeiro já estava pronta há mais tempo. A luz acendeu nos vídeos, e com o fundo musical característico, apareceu a auréola, símbolo da EUROVISÃO. Depois sentado na mesma mesa em que antes estiveram a Babs e a Sylvia esperando, diante de um outro fundo, sem flores ao lado, de smoking e camisa de seda com nervuras, apareceu Frédéric Gérard.
Frédéric Gérard, também sem paletó e de camisa aberta, via sua própria imagem na televisão de circuito fechado instalada atrás de mim e de Rod. Ele, o mais querido dos locutores e animadores da Rádio e Televisão de Monte-Carlo, não tinha quarenta anos ainda e era, usando as palavras de Shakespeare, “um rapaz de humor infinito”. Possuía um charme também infinito. Sua apresentação era impecável. Diziam que ele era muito gentil, prestativo e de enorme presença de espírito. Era há anos uma figura lendária, não só em Monte-Carlo, mas em todos os lugares até onde chegavam a TMC e a RMC. Dias antes, depois de nossa chegada ao HOTEL DE PARIS, vi todo mundo na rua cumprimentando Frédéric Gérard, acenando para ele, que retribuía as saudações, sorridente, com uma brincadeira para cada um. Homens, mulheres, moças e crianças, todos gostavam dele.
Desde o primeiro momento, a Babs ficou completamente louca por ele. Brincou de cavalinho no hotel, apareceu no corredor às gargalhadas, montada em seus ombros, depois na praça diante do hotel... horas a fio se divertiu com ela. Quando lhe perguntei onde morava, respondeu:
Na França, sr. Kaven. Em Cap D’Ail. A seis minutos de carro.
Mônaco é realmente um paisinho muito pequeno.
É verdade, todo mundo gostava de Frédéric. (Ninguém o chamava de sr. Gérard. Também a nós ele logo pediu que o tratássemos pelo primeiro nome.) Nossa arrumadeira ficou vermelha como um pimentão quando lhe consegui uma foto autografada dele. À tarde me disse:
54Na noite do seu programa vai fazer bom tempo.
Tem certeza?
Absoluta! Frédéric disse ontem à noite. E Frédéric está sempre em
contato com Paris.
Era como se tivesse dito: Em contato com Deus lá no céu!
Frédéric, um homem que em vida já era seu próprio monumento! Normalmente se apresentava diante das câmaras em manga de camisa. Hoje estava aqui ao nosso lado, envergando um smoking. Remexendo nos bolsos tirou alguns retratos de seu filho. (Uma lâmpada fraca iluminava o ambiente.) Muito cauteloso, disse logo tratar-se de homem e não de mulher, pois “numa criança deste tamanho não dá para reconhecer”.
Igualzinho ao pai! disse eu em francês.
Uma gracinha acrescentou Rod. Como se chama?
Frédéric respondeu Frédéric.
Não me refiro ao senhor, estou falando do garoto.
É Frédéric também seu idiota disse eu em inglês.
Cale a boca, seu espertinho disse Rod também em inglês,
acrescentando logo em francês: Deve se orgulhar muito dele, não é?
Frédéric concordou, sorriu e revirou os olhos.
Que idade tem ele?
Dezoito meses.
Rod murmurou baixinho em inglês.
Você também deve ter sido um bebê lindo! Frédéric se babava,
mas Rod estava olhando para mim, e eu disse:
Seu filho da mãe!
Como? perguntou Frédéric. ,
Eu disse que era um bebê muito bonito.
Não é? retrucou este. Era tão simpático!
Olhei para a moça ao lado do diretor, sua assistente. À sua esquerda estavam dois homens responsáveis pelo som, diante dos reostatos que brilhavam como prata. Os dois à sua direita eram responsáveis pela luz. Um dos técnicos de som levou uma garrafa quadrada à boca e bebeu longamente. Conhecia aquela garrafa e seu conteúdo. Era SCHOUM, em toda a França considerado o remédio milagroso contra qualquer doença do fígado. Podia ser adquirido em qualquer farmácia; custava uma bagatela. Isto era a França, a terra das mais nobres bebidas alcóolicas, e que, também batia o recorde em Docnças hepáticas. SCHOUM era sem dúvida o remédio mais vendido desta Grande Nação. Pelo que sabia no entanto, só devia ser tomado de manhã ou à noitinha. Aquele técnico devia acreditar que o consumo maciço de SCHOUM aumentava as possibilidades de cura.
Como já disse, Frédéric Gérard, o ídolo da Europa Meridional, envergava portanto seu smoking para esta ocasião. Podia-se vê-lo agora nos seis vídeos e ouvi-lo falar, em francês, com seriedade e com charme:
55Boa-noite, senhores e senhoras do mundo inteiro. Como todos
sabem, Sua Alteza a Princesa Grace Patrick de Mônaco organiza anualmente o baile da Cruz Vermelha. Esta noite, vinte e cinco de julho de 1969, ela promoverá ainda outra reunião de gala, cuja renda e sobretudo donativos reverterão exclusivamente para um fim pelo qual Sua Alteza tem especial carinho. Mil e duzentas pessoas de todo mundo foram convidadas para este grande acontecimento. Mil e duzentas pessoas compareceram, cheias de boa vontade, prontas a darem seu apoio, ajudando a conseguir ao menos uma pequena parte do capital imprescindível à pesquisa, à ajuda, aos cuidados, à acomodação e à educação de crianças excepcionais. Meus senhores e minhas senhoras, como convidada de honra, dirigir-lhes-á a palavra agora... Sylvia Moran!
O diretor ergueu os dois dedos, Sylvia e Babs estavam atentas. Enquanto a imagem de Frédéric ia desaparecendo lentamente, começou a transmissão ao vivo. O diretor em sua cabina ridiculamente pequena, dirigiu-se à assistente, falando também ao microfone instalado diante dele num braço flexível.
Câmara 1 entra em ação.
Vi as luzes vermelhas começarem a piscar na referida câmara, bem em frente à mesa na qual estavam sentadas Sylvia e Babs. (Câmaras 2 e 3 ficavam à direita e à esquerda.) Babs e Sylvia também viram as luzes. Sylvia apareceu na câmara I em ponto grande; na II ela e Babs eram observadas pela esquerda, a certa distância; na In eram focalizadas da direita, também a certa distância.
21h3min15seg sexta-feira, 25 de julho de 1969.
Tudo o que aqui se dizia era traduzido simultaneamente para as línguas dos diversos países.
Ocupando todo o vídeo, apareceu o rosto de Sylvia.
Em francês ela começou:
Alteza Real Princesa Grace Patrick, Alteza Real Príncipe Ranier,
meus queridos amigos aqui presentes, queridos amigos em todo mundo. É para mim uma alegria imensa, a maior honra jamais concedida, ter sido convidada por Sua Alteza para hoje lhes dirigir a palavra, para lhes falar de um problema muito sério e muito triste, que normalmente não nos interessa, mas que devia interessar a todos, a todos sem exceção, independente de quem sejamos ou aonde estejamos. É o problema da criança. Da criança doente que necessita da ajuda de nós todos, como se fosse nosso filho, pois ninguém vive só, ninguém é uma ilha. Somos todos parte da humanidade, a ela ligados, entrelaçados no seu destino como um fio na imensa tapeçaria da nossa vida, do nosso tempo, do nosso mundo...
Sim senhor! disse Rod Bracken enxugando grossos pingos de
suor de sua testa. Olhei para ele e cruzei com o olhar de Frédéric. Este sorriu. Eu também. Suávamos. Todos na cabina suavam. Fazia um calor incrível neste 25 de julho de 1969, uma maravilhosa noite de verão, de céu escuro e
56estrelas incontáveis. Nossa arrumadeira bem que tivera razão. O tempo estava magnífico. Frédéric tinha dito. E Frédéric, como vocês sabem, estava sempre em contato com Paris...
21
Existem estradas na Europa, estradas imensas, das quais basta eu me lembrar para que minhas mãos fiquem úmidas. A pior delas, nos meses de verão é a Promenade des Anglais em Nice, a artéria principal, a ligação entre o aeroporto e Monte-Carlo, o aeroporto e Cannes, o aeroporto e qualquer outro lado para onde se tenha que ir.
A Promenade des Anglais é um autêntico pesadelo. Daí a alguns anos não deverá ser mais, pois a auto-estrada Ventimigli deverá ser continuada, contornando Nice e ligando-se à auto-estrada Estérel. Grandes planos. Anos de obras... Até lá, sr. Juiz, se por acaso o senhor andar por aquelas bandas, se tiver que ir de Monte-Carlo a Cannes, eu só lhe posso aconselhar uma coisa: viaje de noite; de dia é de enlouquecer!
A Promenade des Anglais, que tem o mar à direita seguindo em direção a Monte-Carlo, e à esquerda um correr único de prédios entre os quais inúmeros hotéis, como o famoso NEGRESCO e o PALAIS DE LA MEDITERRANÉE com o cassino, fica absolutamente congestionada no verão, apesar das suas duas vias separadas por uma faixa de flores e palmeiras, com três pistas cada uma. Quando não irremediavelmente parados, os carros se arrastam alguns metros, param, se arrastam novamente e param... isto num clima subtropical, com um ar tremendamente úmido.
Muito bem. Seguíamos pois pela Promenade des Anglais; Sylvia, Babs, Rod Bracken, Katie e Patterson, os maquiladores de Sylvia. Andávamos num pequeno comboio: Rolls-Royce, Lincoln Continental, Mercedes 600. Na frente três batedores monegascos em suas motocicletas, todos de branco com dragonas, que mais pareciam almirantes. Sirenas ligadas. Nada adiantava. Nós não andávamos; nós rastejávamos nos carros com ar condicionado.
Eu estava no segundo carro, no Lincoln, ao lado da esposa do cônsulgeral americano que viera especialmente por nossa causa com o marido para a recepção em Nice, para o aeroporto Nice Cote d’Azur, com dois ministros do governo de Monte-Carlo e com um certo Alexandre Drouant, chefe da Polícia de Segurança monegasca. Desde o primeiro instante tínhamos simpatizado um com o outro. Ao volante do Lincoln ia um chofer negro.
No primeiro carro, o Rolls-Royce, viajavam a Sylvia, Babs, o cônsulgeral americano, o segundo ministro de Monte-Carlo e ao volante um dos motoristas do Príncipe. No terceiro, a Mercedes 600, seguiam o casal Patter
57Eram 14h45min. Todos os franceses a esta hora voltavam do almoço para o trabalho. Era, para ser breve, o próprio inferno.
Quando o avião de Sylvia aterrissou, houve todo aquele teatro de sempre quando eu, a Sylvia e Babs aterrissamos ou levantamos vôo de algum lugar. A pista cercada de fotógrafos, de gente do rádio e da televisão. A polícia controlando todos aquele rapazes, chums, copains e amicis de Rod Bracken. Mesmo assim, levou algum tempo até conseguirmos entrar nos carros que chegaram até a pista, e inteiramente suados, nos instalarmos no agradável ar condicionado. Um carro da ORTF e um da TELE MONTECARLO com câmaras armadas, seguiam a nosso lado. Continuavam a filmar. Até a Promenade des Anglais. Diante dela até os mais poderosos meios de comunicação fracassavam.
Conhecera o cônsul-geral e sua esposa em Londres. Um casal simpático, sendo ela uma senhora muito bonita. Contou-me como estava satisfeita da Sylvia ter aceito o convite para colaborar naquele show de Monte-Carlo, num fim de mundo daqueles. O Ministro de Mônaco falou da satisfação do Príncipe, da Princesa e de todos eles. E eu, da nossa. O comissário Alexandre Drouant, um homem de seus quarenta anos, que dominava cinco idiomas e que em semelhantes ocasiões era o responsável pela boa ordem durante um acontecimento social tão gigantesco, apenas sorria; era a calma em pessoa. Seu cargo no entanto exigia muito dele. Não é sem razão que seu cabelo já está todo grisalho, pensei eu.
Depois de uma pequena eternidade, nosso comboio chegou finalmente ao Porto Velho e com isso ao fim da Promenade. Os motoristas seguiram pelas estreitas e sinuosas ruas de Nice até uma rótula, de onde parte, em subida íngreme, a Moyenne Corniche, uma das três vias do litoral. Aí os carros finalmente conseguiram aumentar a velocidade. Iniciou-se uma conversa... uma daquelas conversas agradáveis, que no fundo não dizem nada, mas que são muito cordiais e muito comuns nestas ocasiões. Ora, eu já ia esquecendo, encerrando o comboio ainda vinha um ônibus com os malões da Sylvia e toda nossa bagagem.
A Moyenne Corniche subia sem parar. Já estive ali diversas vezes.
A temperatura está a mais de quarenta graus disse o simpático,
calmo e circunspecto comissário Drouant.
Eu via seus efeitos: em diversos pontos, o asfalto da estrada amolecera, transformando-se em poças brilhantes. Sinais ao longo da estrada advertiam. Os motoristas dirigiam com enorme cuidado. À esquerda se erguiam paredes de concreto. Eram muros de contenção, para impedir o rolamento de pedras das montanhas que de repente se erguiam a nosso lado. Estas paredes estavam inteiramente cobertas de buganvílias em flor. Na rocha despida acima, brilhavam tufos vermelhos, amarelos e cor de ouro, por entre os bosques de ciprestes. Já estávamos bem no alto. À direita da estrada, a rocha descia abrupta.
58Lá embaixo viam-se flores resplandecentes, árvores e arbustos floridos, areia da praia e o mar azul-escuro. Mar, e mais mar, até o infinito... Céu e mar se confundiam. Era um espetáculo tão maravilhoso que toda vez que passava por ali, pensava que a Terra tinha voltado a ser o que foi outrora segundo uma velha lenda o paraíso.
Suas Altezas contam com o prazer de poder recebê-lo ainda hoje
no palácio disse o Ministro. À sra. Moran, ao senhor, à Babs se for
possível evidentemente, e ao sr. Bracken. Os senhores devem estar cansados após o longo vôo. Mas talvez à tarde, pelas sete horas.
Perfeitamente disse eu. Muito obrigado.
Então, se me permitem, eu os espero às seis e quarenta e cinco na porta do hotel.
Eu lhe agradeço, Excelência.
É uma honra para mim, sr. Kaven.
Você nem imagina Phil, como nós americanos estamos orgulhosos
de ouvir a Sylvia falar amanhã disse a esposa do cônsul-geral americano.
A sra. Moran é querida e respeitada aqui em Mônaco como em
qualquer parte do mundo observou o comissário Drouant sorrindo.
Estão justamente levando um filme dela há onze semanas!
E assim continou... Este tipo de conversa não necessita de esforço para quem tem traquejo, e isto eu tinha. Tinha tanto, que podia até pensar em outras coisas enquanto conversava.
Nosso motorista acendeu as luzes. Entramos no primeiro dos três túneis abertos na rocha na Moyenne Corniche, entre Nice e Monte-Carlo.
Eu estava a quilômetros de distância, perdido em pensamentos, na casa de Sylvia em Beverly Hills Mandeville Canyon, 705. O secretário particular da Princesa tinha acabado de ligar. Viera à Califórnia especialmente por causa de Sylvia. Estava hospedado no BEVERLY HILLS HOTEL. Pelo telefone disse qual a sua missão. Sylvia o havia convidado para o chá. Eu, Sylvia e Bracken estávamos sentados na sala das três paredes de vidro. Bracken dizia:
É claro que você tem que aceitar o convite.
Eu não sei... já vivo num atropelo tão grande!
- O atropelo nunca é grande demais! E de graça! Você vai ser vista por seis, sete, oito milhões de pessoas! E justamente agora que está para sair seu novo filme! Phil, quem sabe, você podia se manifestar também!
Deve aceitar sim, Sylvia disse eu. De qualquer maneira.
Eu a conhecia apenas há pouco mais de um ano, e tomava muito cuidado com o que dizia, fazia e aconselhava.
- Ouviu, “seu garotão” também acha! disse Rod.
Tive vontade de lhe quebrar a cara pelo “garotão”, mas como já disse, vivia com Sylvia há um ano apenas. Tinha que ter cuidado. Sabia que Rod me detestava. Eu o detestava também, mas nenhum conseguia descartar o outro. Sylvia precisava de nós; de ambos...
59Pensei no que havia ocorrido em Beverly Hills, e continuei a conversar amavelmente com nossos anfitriões de Monte-Carlo. Small-talk dizem os ingleses; conversa de salão.
Chegamos ao ponto em que a Moyenne Corniche se bifurca. À esquerda segue para Menton, à direita desce para o mar, para Mônaco. Uma curva. Outra. E de repente, sr. Juiz, de repente estende-se lá em baixo aquele principadozinho independente, um quilômetro quadrado e meio apenas, a metade do Central Park de Nova Iorque, um décimo do Protetorado de Lichtenstein que também não é dos maiores; o Estado-anão, tão antigo e tão rico. Lá estava a ilha cercada de penhascos. Parece um polegar ligeiramente curvo, projetando-se para o mar, protegendo o porto com seus inúmeros iates.
Em cima da rocha destacava-se em amarelo-ouro o palácio com os ministérios; os telhados cor de tijolo, amarelo e branco de La Condamine, o bairro comercial. Là estavam as torres do cassino, minúsculas em relação aos arranha-céus que se erguiam nas encostas. Eu sabia que o número de habitantes fixos era de apenas 25.000, mas todo ano afluem mais de dois milhões de estrangeiros, vindos de todo mundo, muitos tendo casa em Mônaco. Mesmo do número de habitantes fixos, a quantidade de estrangeiros era maior do que a de monegascos.
Mônaco está hoje inteiramente coberta por construções; já estava em
1969. Ali não se planta nada para comer; só existem flores, palmeiras velhas e maleiteras da Abissinia. Como não houvesse mais espaço para os habitantes, a cidade cresceu para o alto. Um edifício ao lado do outro ergueu-se para o céu. Antes de conhecer a Sylvia já estivera ali diversas vezes, e sempre desejei poder viver nesta baía de paz e beleza, em meio a este povo bom, simpático e acolhedor. É mesmo! E mais uma vez meus pensamentos se voltaram para Beverly Hills...
Me diga uma coisa, você não anda boa da cabeça? perguntou
Rod excitado. Você venera De Sica e seus filmes! Para você ele é um dos
maiores diretores europeus ao lado de Fellini. E você já viu algum filme dele em que não apareçam crianças?
Isto mesmo disse eu.
Crianças, animais, padres.... é só eles aparecerem no filme, e tudo
dá certo disse Rod. Padres desta vez não vêm ao caso. Mas olha,
Sylvia, crianças e bichos isto é coisa que todo mundo gosta, sem exceção. O grande De Sica reconheceu isto. Um filme com uma criança e um animal é lucro certo; são milhões que entram para o bolso. Ainda mais se acontece algum mal a esta criança ou bicho. Vamos deixar de lado os animais. Mas as crianças... as crianças! E eles querem que você fale delas, de crianças que foram acometidas por um mal, Sylvia. E que mal! Milhares de pessoas morrem de fome... é realmente uma desgraça, mas uma criança necessitada, uma criança doente, uma criança correndo perigo! Bem entendido, que seja uma criança americana, européia talvez... as outras que vão pro inferno! Você entende?
60Mas o que é que vou dizer?
Pode deixar que eu redijo para você declarou Rod E a Babs
tem que ir junto, isto é óbvio.
- Babs?
Sim, claro!
Mas ela não vai ficar impressionada quando eu começar a falar
dessas... dessas crianças doentes?
Impressionada, a Babs? Ela é pequena demais para entender qualquer coisa.
Aquela entende tudo, Rod.
Bem, então ela que fique impressionada! Por quanto tempo? Uma
meia hora. Depois acaba esquecendo de novo. Ora droga, Phil, será que você não podia fazer o favor de abrir o bico de vez em quando?
Rod tem razão, Bruxinha disse eu. Isto é uma chance
enorme para você. É claro que a Babs tem que ir. Já pelo efeito de contraste, Babs sadia, rindo a seu lado... e você apelando para o mundo pela compreensão e ajuda para as crianças que não são sadias, que não riem!
Sylvia ficou nos olhando longamente.
Bem, se vocês acham realmente...
Até que enfim suspirou Rod. Pode deixar todo o resto por
minha conta. Preparo tudo; como sempre olhou para mim Gente! Que
grande homem é este De Sica!
Voilà disse o comissário Drouant, quando o carro descia lentamente em direção ao vale, passando pelo marco branco e vermelho que indicava os limites do condado chegamos.
Voltei ao presente. Vi o que já tinha visto tantas vezes: as ruas altas apoiadas em enormes colunas, os trevos dos entroncamentos, os túneis. Vi tudo lá do alto. Depois chegamos ao ponto mais baixo da estrada. Uma seta indicava o caminho de volta para Nice; em frente chegava-se à Itália; no meio, subindo de novo, ia-se para o centro da cidade.
Não conheço mais quase nada aqui disse eu Tantos edifícios,
tantas casas novas...
- Quando esteve aqui pela última vez, sr. Kaven? perguntou o
ministro.
Há quatro anos, Excelência.
Bem, então...
- Mas o senhor sabe onde ficam o HOTEL DE PARIS e o Cassino, não é? perguntou a esposa do cônsul-geral americano.
Isto eu sei.
Nosso comboio chegou ao Boulegrins, uma praça gramada com canteiros onde luziam e brilhavam as flores mais raras, mais preciosas. Em volta viam-se árvores tropicais e cactus da altura de carvalhos.
E lá estava o cassino! Sabia que tinha sido construído pelo mesmo arquiteto autor da Ópera de Paris, lá pelos anos setenta, do século dezenove.
61Era muito rebuscado, com torrezinhas nos cantos e enormes anjos de bronze, sentados no telhado. Ao lado ficava o HOTEL DE PARIS, em estilo semelhante. Aí vi novamente nas tribunas, os fotógrafos com suas câmaras e uma multidão de curiosos contida pela policia. Os carros pararam. Funcionários do hotel, de uniformes brancos com alamares dourados acorreram, abriram as portas, ajudaram-nos a saltar. Os fotógrafos gritavam. Pacientes, eu, a Sylvia e Babs atendíamos a seus pedidos. Babs ria e acenava para todos os lados; os curiosos cumprimentavam mãe e filha com gritos e aplausos. Nossos acompanhantes nos levaram até a entrada do hotel. O diretor veio descendo as escadas, uma figura elegante, bem apessoado, que eu também conhecia
Monsieur Jean Boéri. Cumprimentou a Sylvia beijando-lhe a mão, e se
inclinando profundamente. Babs fez uma reverência diante deles. Depois ele nos conduziu para o imenso saguão. Assim fora nossa recepção um dia antes, no começo da tarde...
22
O técnico de som levou outra vez a garrafa de SCHOUM à boca. Deve estar bem ruim do fígado, pensei eu, se chega a tomar esta droga até durante o trabalho.
O mundo inteiro estava agora vendo a Sylvia que falava sem paixão, muito calma, com grande insistência...
... tive sorte na minha vida, imerecida e tão grande, que chego a
ter medo...
O diretor disse qualquer coisa ao microfone.
A câmara I se afastou devagar, e no vídeo aparecia agora também a imagem de Sylvia, sentada ao lado de Babs, que de vez em quando olhava para a mãe, sorrindo. Sylvia passou o braço pelos ombros da menina...
... não me refiro à minha profissão. Falo de minha filhinha. Babs
é esperta, simpática, bem desenvolvida, me dá muita alegria, queridos amigos. Babs goza saúde!
Dois disse o diretor.
A assistente ligou a câmara II para transmissão. Primeiro focalizou a Babs bem de perto... a criança feliz olhando para a mãe... depois foi recuando. Ainda apertada contra a Sylvia, a Babs sabia por experiência que agora era ela que estava sendo focalizada. Pelo canto do olho viu as luzes vermelhas piscando na câmara II. Ficou séria.
Vivemos continuou Sylvia e todo o dia o sentimos, numa
época de grandes modificações. Certamente no ano 2000, este nosso mundo, se ainda existir, será completamente diferente. Terá que ser diferente; caso contrário, não existirá mais.
62Desde o início do século, cada vez mais gente reconhece que as leis da nossa sociedade devem ser modificadas... encontrar novas leis no entanto, parece um problema insolúvel. Mesmo assim existem muitas tentativas! Mas, honestamente falando, podemos afirmar que algumas delas deixa entrever, ao menos, a esperança de uma solução? Não falo a favor nem contra este ou aquele tipo de sociedade. Espero que estas sejam palavras que atinjam a todos, sem distinção de ideologias; palavras humanas, dirigidas ao ser humano unicamente. Ciente de sua incapacidade, o homem continua desesperadamente tentando pôr ordem em tudo isso... à força, sacrificando a sua própria vida, sacrificando a vida alheia. Ele ergue a voz, empunha as armas e luta por aquilo que acha certo. Brada alto, muito alto...
Que grande artista! disse o diretor na sua mesa, desabotoando
completamente a camisa. Estava cada vez mais quente na pequena cabina.
Frédéric, normalmente tão alegre e satisfeito, tinha ficado sério. Segurava na mão o retrato de seu filhinho.
Isto não é encenação disse ele é autêntico, Michel. É a pura
verdade o que aquela mulher formidável está dizendo; palavra por palavra...
Não tirou mais os olhos da parede de vidro e daquela mulher formidável.
Olhei para o Rod. Aquele patife piscou para mim, e cruzou os dedos.
Agora a In disse o diretor chamado Michel.
A câmara In focalizou a Sylvia e a Babs de lado; da direita.
... Mas dizia Sylvia, e eu agora a observava nos três vídeos, a
ela e Babs, em três posições diferentes, a terceira das quais estava sendo
transmitida.... ao lado destas pessoas tão ativas e eficientes, existem
outras caladas, inteiramente silenciosas, mudas...
O homem atrás da câmara três, fixada num tripé sobre rodas, aproximou seu aparelho, e por cima do vídeo que indicava TRANSMISSÃO via-se cada vez maior, o belo e emocionado rosto de Sylvia, que neste momento era visto com uma diferença de horas, por pelo menos 700 milhões de pessoas em todos os continentes.
... Quando falo destes calados, mudos perguntadores, me refiro
aos seres mais desamparados, mais pobres e menos respeitados entre todos os seres humanos... Àqueles que preferimos não ver, em quem preferimos não pensar... as pobres crianças excepcionais!
SPORTING CLUB, Monte-Carlo.
A reunião de gala dos mil e duzentos, realizava-se esta noite ao ar livre. Mil e duzentos entre os mais poderosos e ricos, os maiores gênios e artistas, homens e mulheres, celebridades do mundo inteiro que se preocupam com o destino da Criação, estavam ali reunidos. As mulheres nos trajes mais caros e elegantes, cobertas de jóias; os homens, de smoking ou summer, de uniformes ou vestes religiosas.
63Chefes de Estado de leste e oeste, dignitários de Igrejas das mais variadas confissões, reis e membros de velhas e famosas nobiliarquias, armadores gregos, banqueiros americanos, herdeiros de fabulosas fortunas, altas patentes militares, donos de companhias de aviação, de cadeias de hotéis e fábricas de automóveis, embaixadores, detentores de prêmios Nobel, escultores, diretores de cinema, médicos, escritores, editores, magnatas da imprensa, arquitetos, artistas, violinistas famosos no mundo inteiro, o comandante da sexta frota americana (Mediterrâneo), o almirante da terceira esquadra soviética (Mediterrâneo), uma imperatriz, princesas, estrelas de cinema e teatro, cantoras... mil e duzentas pessoas.
Ali estavam elas (e o que passo a relatar agora sobre os acontecimentos no SPORTING CLUB, sr. Juiz, me foi contado mais tarde pelo comissário Drouant), ali estavam elas portanto, debaixo de um céu coberto de estrelas, sob palmeiras, cercadas de plantas e arbustos exóticos, cujas flores exalavam um perfume inebriante. Sentados em longas mesas com toalhas de damasco, as mais nobres porcelanas, finíssimos cristais, valiosas pratarias à sua frente, esperavam serem servidas. Equipes de garçons a postos, as jaquetas brancas brilhando.
Três carros da TELE MONTE-CARLO estavam estacionados em locais cuidadosamente escolhidos. Em suas capotas viam-se homens em pé, atrás de grandes câmaras, pois a reunião ia ser transmitida mais tarde para o mundo inteiro. Numa das mesas, em meio às demais, estava o Príncipe e a Princesa de Mônaco com a filha Carolina e o filho Alberto, o sucessor ao trono. Séria era a expressão do rosto de uma beleza clássica de Grace Patrick, aquele rosto bem talhado, eternamente jovem.
O que se via ai em jóias, valia milhões e milhões de dólares. Não só por causa delas, mas também para proteger celebridades e potências, fora armado um poderoso esquema de segurança. Inúmeros presentes se fizeram acompanhar por sua guarda pessoal, e além da quantidade de detetives oficiais e particulares, havia também a polícia monegasca. Homens sérios, atentos, de smoking, podiam ser vistos, para quem prestasse muita atenção, fumando pensativos ao que parecia, espalhados estrategicamente por todo o SPORTING CLUB. Muito garçom, na verdade nem garçom era. Ninguém notava as armas que todos estes detetives, agentes de polícia e falsos garçons portavam. Muito menos reparavam nos homens pesadamente armados, ocultos atrás de palmeiras e arbustos, de smoking, formando um cordão impenetrável que cercava a propriedade toda, de rádios na mão.
Despercebidos passavam também os homens vestidos a rigor que observavam o espetáculo das janelas do SPORTING CLUB, dos telhados, do alto do HOTEL DE PARIS. Munidos de binóculos especiais para a noite, estavam constantemente em contato pelo rádio com os colegas, e todos eles se comunicavam permanentemente com o responsável pela segurança e pelo transcurso tranqüilo da reunião, que estava em pé no telhado do SPORTING CLUB: Alexandre Drouant.
Para Drouant estes acontecimentos gigantescos eram sempre associados a um trabalho, planejamento e tensão infinitos.
64Não se tratava apenas de impedir fabulosos assaltos gangsterianos, tratava-se sobretudo de impossibilitar que algum político ou religioso fanático se aproximasse de punhal, granada de mão ou pistola... ou, o que era o pesadelo de Drouant, com uma arma especial com mira-telescópica e raio infravermelho, com o qual pudesse atirar de dia ou de noite, e alvejasse, por exemplo, o Presidente do Estado Soviético, o representante do Governo Americano, ou o Ministro do Exterior Israelense.
Todos os homens e mulheres eram vigiados sem que o soubessem. Em muitos telhados de outras casas, em apartamentos alugados nos andares altos dos edifícios, estavam em pé imóveis, os homens da brigada de Drouant. Até a polícia marítima entrara em ação. As velozes lanchas ancoradas no porto em meio aos iates, espalhavam-se até Cap Martin; as luzes apagadas, os motores ligados, comunicavam-se entre si e com Drouant através do rádio. Nunca houve o menor incidente; nunca poderia haver. Aí é que estava o problema. Nunca!
O comissário Drouant, casado, com cinco filhos, olhava para a multidão. Via a imensa tela erguida num local onde pudesse ser facilmente vista por todos os convidados. Sobre ela a TMC projetava a imagem de Sylvia Moran, exatamente como milhares de pessoas a viam naquele instante, apenas em ponto maior. A voz da Sylvia saia do alto-falante armado atrás da tela. Em pé no telhado do SPORTING CLUB, o comissário Drouant, de walkietalkie na mão, via e ouvia a Sylvia, e olhando a pequena Babs, pensava nos seus cinco filhos...
... Indiretamente, caladas ou mudas dizia a voz de Sylvia, e
mais de mil e duzentas pessoas olhavam atentas para a tela estas crianças
nos fazem todas a mesma pergunta: E vocês aí, o que pensam de nós?
Na casa 16 do Boulevard Princese Charlotte, havia televisões pequenas instaladas em todos os corredores. Faxineiras, secretárias, porteiros, todos estavam diante delas, ouvindo a Sylvia falar.
-... Neste mundo de vocês, tão ativo e eficiente dizia Sylvia
Moran nestes muitos mundos! Nestes tão diferentes tipos de sociedades
criadas por vocês ou sendo abolidas por vocês em nome da liberdade e da fraternidade; para alcançar a liberdade, o bem-estar e a segurança; pelo direito de igualdade de todos, visando uma vida de felicidade para todos...
Então, como vão as coisas “garotão”, perguntou Rod em voz
baixa na cabina. Era o próprio descarado com halo de santo.
Vai muito bem, seu rei dos patifes disse eu.
Não repita isso!
E vecê não me chame mais de “garotão”, senão acabo lhe metendo
a mão sussurramos em inglês todo esse cordial diálogo.
Cheio de inveja e ódio eu ainda arrematei:
- Vão muitíssimo bem, seu miserável. A Sylvia dizia neste momento:
-... com tão grande número de alvos e finalidades. Pensamos em tantas coisas; desejamos tantas coisas. Não é isto que quero, nem posso
65julgar. Mas de uma coisa tenho certeza: Num ponto as massas no mundo inteiro... as massas digo eu, não as pessoas isoladamente... estão de acordo: aquele que não lhe for útil, aquele que não for um membro perfeito da sociedade, é excluído de qualquer uma delas.
Em uma das mesas do SPORTING CLUB, a esposa de um embaixador começou a chorar convulsivamente. O marido procurou acalmá-la. Poucos entre os presentes sabiam que esta senhora tinha dois filhos: uma filha perfeitamente sadia, e um filho completamente retardado...
Câmara I disse o diretor em sua mesa. Tinha acabado de tirar a
camisa. Minha vontade foi imitá-lo. A luz vermelha na citada câmara começou a piscar.
... vivemos na época das massas solitárias, do massificado solitário disse a Sylvia enquanto a Babs olhava espantada para ela. E neste
mundo das massas, não o mundo do impotente isolado, meus queridos amigos!... Neste mundo, uma criança excepcional, nem é considerada gente!
Agora eu consigo até dobrar minha participação nos lucros dos
filmes murmurou Rod, e estalou a língua, feliz da vida.
... Um ser destes dizia a Sylvia naquele pequeno estúdio da
TMC é no máximo tolerado, nunca reconhecido. Não quero acusar ninguém! Não é mais que natural que o assim chamado sadio, repudie instintivamente o doente, o retardado...
A esposa do diplomata continuava a chorar convulsivamente. O marido ergueu-se, e conduziu-a para fora cuidadosamente. Lá no alto do telhado, o comissário Drouant viu a cena através de seu binóculo. Viu também atrás dos bastidores e nas passagens do palco armado ao ar livre, moças altas de corpo queimado pelo sol, roupa muito reduzida e fantástica, entre elas uma escura. Esperavam a sua apresentação; eram as DANÇARINAS DE MONTE-CARLO. Nas outras passagens, Drouant viu homens de smoking e policiais uniformizados. Viu quadros encostados na parede. Depois das palavras da Sylvia haveria no palco um leilão de quadros de Picasso, Chagall, Modigliani, Léger e Buffet. Drouant pensou: Estes multimilionários vão elevar os preços a alturas vertiginosas. Tenho certeza! Ninguém quer ouvir dizer que foi avarento. A Princesa pensou bem. Eu já dei uma olhada nos quadros. Bonitos! Entre eles tem um Chagall, meu preferido; um de seus casais de amantes. O do vaso, com as flores cor-de-rosa, os amantes em meio às nuvens, e sobre elas a pomba branca e o garoto tocando flauta. Nunca vou possuir um quadro daqueles! Bem que gostaria. Mas é melhor que fique para alguém, que mesmo não gostando tanto dele, possa pagar bastante dinheiro para aquelas pobres crianças!
Drouant pensava nos seus cinco filhos.
Olhou para o mar. Lá estavam as embarcações das quais, na hora do encerramento da festa, iam ser disparados fogos de artificio, num espetáculo deslumbrante! Aquilo só podia mesmo ser feito do mar. Drouant virou-se mais uma vez, assestou o binóculo, viu a imagem da Sylvia na imensa tela, ouviu sua voz...
66... apenas uma compreensão relativa, e acima de tudo o convívio
regular com crianças excepcionais poderia corrigir esta repulsa, convertê-la numa atitude oposta. Digamos meus amigos: Só o reconhecimento leva ao amor; o não-conhecimento, à repulsa e à injustiça...
Volta a câmara In disse na pequena cabina da TfvíC, o diretor
a quem Frédéric chamara de Michel.
Frédéric continuava a segurar o retrato de seu filhinho. Contemplou-o novamente, e observando-o, podia-se ler em seu rosto o que ele pensava: Meu Deus, eu Te agradeço por ter um filho normal!
De repente percebeu meu olhar, e disse baixinho:
Ele é toda minha felicidade. Mas eu gostaria dele igualmente se não
fosse sadio, se fosse retardado ou tivesse alguma doença incurável. O senhor não pensa assim também?
Concordei automaticamente. Não pensava nada! Que me importava o filho do Frédéric?
No estúdio, a Sylvia olhava diretamente para a objetiva da câmara I. Ela dizia:
Me parece que em nossa sociedade humana ainda temos muito que
aprender; muito mesmo, antes que ela mereça o qualificativo de humana...
Babs olhava pensativa para a mãe.
Os sãos... os assim chamados sãos... e os excepcionais têm
muito mais coisa em comum do que se julga. Também eles anseiam pela alegria de viver como os outros. Também eles gostariam não só de receber amor, mas também de poder dar, embora muitos só o consigam exprimir de maneira dificilmente identificável...
No quarto do hotel de Katie e Joe, os maquiladores de Sylvia, havia um aparelho de televisão. Instalados em frente a ele estava o casal e Clarissa. Mais tarde me contaram que tinham ouvido a Sylvia falar.
... Também os excepcionais querem realizar alguma coisa, assim
como os normais. Eles não se encontram em igualdade de condições como os mais bem dotados. Mesmo assim querem realizar algo, dentro do possível. E quem entre nós ousa julgar o que possa considerar realizar algol
Silêncio completo. No HOTEL DE PARIS, os três olhavam mudos para o vídeo. Joe segurava a mão de Katie. Estavam imóveis...
- Número I, bem de perto disse o diretor, segurando o texto do
discurso que a Sylvia havia decorado. Falava com a assistente, e pelo microfone, diretamente para os fones do cameraman I.
-... Por esta razão dizia a Sylvia somos obrigados a proporcionar toda oportunidade possível a estes excepcionais, se nos quisermos intitular “Humanos”! E com isto, queridos amigos, chegamos ao cerne da
questão... Babs colocou sua mão sobre a da mãe. Sylvia sorriu para a
filha; esta riu para a mãe. Em seguida a Sylvia olhou novamente para a câmara. - Graças aos progressos da medicina, de ano para ano, centenas de milhares de crianças que em outros tempos teriam morrido, continuam vivas.
67São crianças excepcionais... mas continuam a viverí
Ora merda disse Rod para mim na cabina. Por que a
SEVEN STARS vai continuar a ganhar aquela dinheirama toda, e a Sylvia pagando aquela exorbitância de imposto de renda? Com esta sua apresentação ela chegou a um ponto nunca antes alcançado. Sabe o que ela vai ser agora?
Não.
Seu próprio produtor! Pode deixar que eu ajeito. Ela precisava ter
a sua companhia, e só produzir para a SEVEN STARS se esta for boazinha. Depois deste programa, a Sylvia consegue o que quiser em Hollywood!
... Em bem pouco tempo dizia a Sylvia diante da câmara o
problema do excepcional nos fará pensar de outra maneira, principalmente pelas proporções que terá atingido.
Minha camisa estava começando a ficar encharcada. O técnico de som levou mais uma vez a garrafa de SCHOUM à boca. Vi Babs passar a língua nos lábios. Devia estar com sede. Lá dentro, debaixo dos refletores, o calor devia ser pior!
Sylvia continuou:
... Somos obrigados a reconhecer que ao nosso mundo não
pertencem apenas os mais esforçados, os que se fizeram na vida, os bons e os gênios, os que aparentemente alcançaram mais êxito...
- Câmara In!
... Pertencem igualmente a ele os incapazes e os fracos; os mudos
e os excepcionais! A Sylvia falava cada vez com mais ardor, com mais
insistência. Implorava. Pelo que me pareceu era-lhe até dificultoso falar diante
da gravidade do que precisava dizer. Absolutamente! Todos pertencem a
este mundo, pois todos o formam, todos ajudam a constituir este nosso mundo humano, onde não é dado a ninguém pensar que a mais pobre, a mais ínfima das criaturas não lhe diz respeito, pois ela continuará a ser sempre seu irmão, seu semelhante!
De qualquer maneira, O CÍRCULO DE GIZ, a Sylvia já vai fazer
com sua própria companhia, isto eu juro murmurou Rod. E você, você
será nomeado chefe de produção!
Ora vá...
Pode deixar. Não precisa ter medo. Sei que você não vai dar conta.
Nunca trabalhou em toda sua vida. Eu resolvo tudo para você... E você afinal recebe um bonito título!
... Sim, meus amigos dizia a Sylvia e Babs se apertava contra
ela, olhando séria para a mãe. Hoje já é possível conseguir uma certa
melhora até nos casos mais graves. Não sabemos aonde a medicina estará amanhã! Terá progredido bastante, mas não o suficiente a ponto de conseguir curar completamente essas crianças excepcionais.
Câmara II!
68... Chegamos a um ponto continuou Sylvia em que o grau
de cultura de uma sociedade é medida pela proporção em que ela reconhece nos excepcionais uma igualdade de direitos... Embora estas crianças, apesar de todos os esforços da medicina e da pedagogia, nunca chegarão a realizar o que realizam os mentalmente sadios. Parecem palavras banais, mas é um fato, queridos amigos, o que mais falta ao homem de nossa época é humanidade]
O calor estava ficando insuportável. Mesmo ali no estúdio. A Babs começou a ficar inquieta. A Sylvia falava com esforço...
Não quero assustar ninguém, mas pensem bem: a todo casal pode
acontecer o que já aconteceu a tantos. De repente, marido e mulher se vêem diante do problema de um filho excepcional... Um remédio errado durante a gravidez... um pequeno incidente durante o parto... uma demora na oxigenação do cérebro... ou talvez, anos mais tarde, um tombo... uma queda... uma infecção... uma inflamação... Ninguém pode garantir que seu filho não esteja sujeito a uma desgraça semelhante, a tornar-se um excepcional...
Número um disse o diretor ao microfone, enquanto a Sylvia
dizia aquelas palavras. Aproxime-se rápido do rosto da criança. Focalize-o bem de perto.
... Os senhores sabem dizia a Sylvia para os mil e duzentos
convidados, vendo-se sua imagem na tela do SPORTING CLUB. Estou
me dirigindo a todos, não só em meu nome, mas primordialmente em nome da Princesa, para lhes pedir donativos. Peço a todos aqui reunidos em MonteCarlo... e também a vocês amigos do mundo inteiro. Por favor, ajudem enviando dinheiro! Em todo pais existe alguma organização encarregada de crianças excepcionais. Enviem seus donativos a estas organizações. Enviem muito, enviem pouco, enviem o que puderem... qualquer moeda é uma ajuda! Qualquer moeda, por menor que seja, é uma boa ação. Eu lhes peço de coração, queridos amigos! As crianças excepcionais não têm para nós como talvez pensem, apenas um significado negativo. Elas em verdade têm um valor muito positivo. E é através de nossa atitude diante deste problema que podemos provar aquilo que realmente importa: Que queremos viver para os outros e com os outros, e que o fluxo da vida nos carrega a todos...
Na sala da direção o técnico de som que tomava todo aquele SCHOUM para curar o fígado afetado pelo consumo excessivo de álcool, inclinou-se por cima do microfone:
Alô, alô! Central! Central chamando os três carros do SPORTING
CLUB!
Três vozes masculinas se anunciaram, uma após a outra.
- Tudo bem disse o técnico. Preparem-se. Daí a instantes
passaremos a transmissão para vocês.
Depois disso meteu mais uma vez a mão debaixo da mesa. Desta vez tirou outra garrafa, desarrolhou-a, levou-a à boca... era vinho tinto
69 Mais de mil e duzentas pessoas no SPORTING CLUB viam neste momento o rosto de Sylvia.
Ela dizia:
... O significado imenso, inaquilatável dos fracos, dos mais miseráveis entre os homens, é que só eles através de sua existência, podem nos ajudar a sair do caos, da desgraça, das catástrofes que temos atrás de nós e às quais ainda continuamos presos, para passarmos a viver como irmãos no mundo inteiro, para sempre! Meus amigos, eu lhes agradeço.
A Sylvia inclinou ligeiramente a cabeça. Mil e duzentas pessoas no clube, setecentos, talvez oitocentos milhões no mundo inteiro viram as lágrimas correndo por suas faces. Rapidamente a imagem mudou. Lá estava o rosto feliz e risonho da Babs, aumentando cada vez mais, chegando cada vez mais perto, até finalmente ocupar a tela inteira, todos os vídeos inteiros...
Seguiram-se segundos de silêncio no clube.
Depois aplausos frenéticos.
Os refletores foram acesos, iluminando a cena como se fosse dia. A sala de controle da TMC, na casa 16 do Boulevard Princese Charlotte, chamou as três equipes do SPORTING CLUB, que entraram em ação, mostrando as imagens das beldades, dos gênios, dos detentores do poder do Estado e da Igreja instalados nas mesas brancas entre as palmeiras, os arbustos floridos, as flores em profusão. Do fundo do palco ergueu-se uma plataforma com toda uma orquestra. A música começou a tocar...
Vi três imagens diferentes nos vídeos da sala de controle. O diretor falava com o pessoal das câmaras no clube.
Frédéric entrou rápido no estúdio. Eu e Bracken o seguimos. Os refletores foram apagados, só a luz normal do teto continuava acesa. Nos estúdios os homens ainda estavam em pé atrás de suas câmaras. Sylvia se levantara; Babs também.
Eu lhe agradeço, minha senhora disse Frédéric. Foi maravilhosa! Beijou-lhe a mão, inclinando-se profundamente. Vi a Sylvia beijarlhe as faces espontaneamente; Frédéric abaixou-se, abraçou e beijou a Babs. Esta riu, enlaçando-o com os braços. Eu e Rod nos aproximamos.
A Sylvia olhou para todos nós e com lágrimas ainda nos olhos, disse:
Eu é que lhe agradeço, Frédéric. E a vocês dois também; a você
Lobinho (ela me tratava assim até em público!), e a você meu querido Rod
pelos conselhos e colaboração no trabalho mais bonito da minha vida!
Olhou para a parede de vidro da sala de controle, atrás da qual estavam sentados o diretor, sua assistente e o técnico de som, que cuidava de seu fígado tão maltratado, com o milagroso SCHOUM e, como bom pedagogo, para demonstrar que sem aquele remédio também podia viver, ministrava-lhe logo em seguida uma boa dose de álcool. Agora mesmo, levou mais uma vez a garrafa de vinho tinto à boca, e gluque, gluque, gluque... O microfone do estúdio ainda continuava ligado, e a Sylvia disse:
70Eu lhes agradeço, a todos vocês! e enxugou as lágrimas com a
mão.
Abraçou Rod, que a beijou.
Me abraçou, e a beijei dizendo:
Eu a amo (sim senhor, sr. Juiz, foram estas as minhas palavras!).
Eu a você também, Lobinho. Tanto! Depois virou-se para Rod:
Será que você podia levar a Babs para o hotel?
Ora mãe! Pra cama não, mãe!
Criancinhas obedientes vão para a cama agora. E você é minha
filhinha querida e obediente. A Sylvia ajoelhou-se e beijou a Babs. Eu,
Phil e tio Rod ainda temos que trabalhar. Se você for boazinha, pode ficar na cama ainda vendo meia hora de televisão com a Clarissa.
Que bom!
Rod Bracken tomou a mão de Babs.
Dali sigo direto para o clube disse ele.
Eu ainda tenho que refazer rapidamente a maquilagem, depois vou
com Phil disse a Sylvia.
E eu, apanho meu carro e espero lá em baixo observou Frédéric. Vamos juntos. Mais tarde vão precisar de mim lá no clube.
Olha que vai demorar um pouco... disse a Sylvia. Sabe
como são essas coisas, meu querido Frederic.
Claro, Madame Moran.
Ora, por favor, não me trate de Madame Moran, sou Sylvia!
Sylvia... repetiu ele e corou como garoto de escola. Claro
que sei. Estaciono lá na entrada e espero. Olhou para Rod e Babs,
pegou-lhe a mão e disse: Sabe de uma coisa, vamos juntos; eu levo você e
o sr. Bracken depressa até o hotel.
Oba! Babs estava reconciliada. Que carro você tem, tio
Frédéric?
Ele respondeu.
Esta marca não conheço... Até logo Phil! Tchau, mãe! Partiram. Sylvia e eu sorrimos ouvindo Babs ainda perguntar: É hidramático?
Virando-se para a parede de vidro, Sylvia disse:
- Mais uma vez muito obrigada e boa-noite.
Boa-noite responderam cinco vozes de homem e uma de mulher
pelo microfone do estúdio. O pessoal na sala de controle acenou. Nós também. Não podiam levantar; estavam controlando a transmissão do SPORTING CLUB.
Saindo do estúdio, seguimos pelo corredor até uma porta de ferro. Não havia ninguém à vista. Abri a porta para a Sylvia. Já estivera aí antes. A porta era almofadada por dentro, portanto, este pequeno camarim tão perto do estúdio, devia ser à prova de som. Deixei a Sylvia passar, entrei atrás dela,
71fechei a porta e me virei. Assustei-me. Nunca, sr. Juiz, nunca tinha eu visto num rosto humano tamanha expressão de ódio, como via agora no de Sylvia.
23
fí O que houve? perguntei encostado contra as almofadas da
porta de ferro.
No mesmo instante a Sylvia começou a gritar, alto e vulgar:
Nunca! Nunca! Nunca mais! Você ouviu? Nunca mais na vida faço
isso, nem que me paguem um milhão de dólares!
Nunca o quê? Não... estou entendendo... gaguejei, tendo o
cuidado de passar a chave na porta, trancando-a.
Nunca mais na vida ninguém... nem a Grace, nem o Presidente
dos Estados Unidos... e nem o Imperador da China... vão conseguir que eu me preste a semelhante papel, a uma porcaria dessas!
E se o quarto não fosse à prova de som? Não me restava outra saída senão proceder como procedi.
Cale a boca, Sylvia! ordenei eu.
Avançou para mim de braços erguidos, me bateu com os punhos fechados no rosto, socou meu peito. Deixa, pensei eu, contanto que ela não grite...
Mas gritou.
Cachorro desgraçado! Vê como fala, seu porcaria! Você é tão
culpado quanto o Rod que escreveu toda aquela merda desgraçada que vocês me obrigaram a falar!
Sylvia... por favor!
Merda, sim! Gritava como uma vendedora de peixe! Ela, Sylvia
Moran, adorada e venerada pelo mundo inteiro como a divina, a pura, a maravilhosa! No calor do camarim sua maquilagem começou a derreter. Dos cílios escorriam finas linhas pretas, descendo pelo rosto do qual o pancake estava se soltando. Cada vez mais parecia um palhaço, ou para ser mais
exato, a encarnação do mal. Merda, sim! Estou me sentindo tão mal!
Tenho vontade de vomitar. Vomitar horas a fio!
Tirei a chave da porta, e com dois passos estava ao lado da mesinha com o espelho. No canto havia um aparelho de televisão. Em cima da mesa uma garrafa de conhaque. Arranquei a rolha, enchi um copo inteiro e me aproximei da Sylvia. Recuou de repente, em pânico, parecia acreditar que eu quisesse matá-la... Isto ainda não me havia acontecido! Continuou a recuar cada vez mais; eu devia estar olhando para ela com uma expressão horrível.
72Chegou até o divã; o salto do sapato ficou preso debaixo, e ela caiu em cima dele, de costas. Imediatamente ajoelhei a seu lado, segurei o copo e rosnei:
- Bebe!
- Não!
Eu disse bebe!
Eu... não... quero...
Para que o senhor não acredite que eu não sabia fazer estas coisas só porque fui criado no Salem e não no Bronx, eu lhe conto: Agarrando-a pelos cabelos, puxei-lhe a cabeça para trás. Ela abriu a boca para gritar e despejei o copo de conhaque, sem mais nem menos. Engasgou, tossiu; perdeu o fôlego, quase sufocou. Larguei-a, peguei a garrafa e entornei mais. Se ela desmaiasse, que maravilha!
Mas ela não desmaiou, sr. Juiz.
Jogada no divã, em sua roupa de gala, coberta de jóias, começou de novo:
Você ousa levantar a mão contra mim, seu cachorro?
Eu não bati em você!
Não bateu, seu desgraçado, cachorro imundo que eu tirei da lama,
que eu...
Cht! - fiz eu, e o senhor nem tem idéia como isto funciona.
Olhou para mim perplexa. Seu rosto parecia uma palheta de pintor.
Mais disse ela.
Mais o quê?
Mais conhaque! Me dá de beber! Ande logo! Senão acabo vomitando tudo aquilo. Entreguei-lhe a garrafa e ela tomou um trago imenso
dizendo: É um milagre até, não ter vomitado diante das câmaras.
É, sr. Juiz, aquilo era apenas uma pequena, agradável cena de família. A vida particular de Sylvia Moran e Philip Kaven! Olhei para o vídeo e vi de repente bem grande, o rosto da Princesa. Depois o Príncipe. O filho Alberto. O rosto de homens conhecidos pelo mundo inteiro. Meio fantástico aquilo tudo, pois um aparelho daqueles apenas transmitia a imagem, sem som. Vi rostos, jóias, trajes de mulheres bonitas. A TMC transmitia diretamente do SPORTING CLUB.
Lá no clube ninguém tinha a menor idéia do que se passava aqui. Nem mesmo o comissário Drouant no alto do telhado. Nenhum daqueles milhares de espectadores que estavam instalados diante de seus aparelhos. Muitos ainda deviam estar chorando, comovidos pelo discurso da Sylvia. Outros, certamente contemplavam assombrados toda aquela fortuna, beleza e poder. Um comentarista devia estar falando. Via a orquestra. Santo Deus, faça com que tudo dê certo, senão tudo comigo está acabado! Amém.
- Me dá aqui! e a Sylvia agarrou a garrafa.
Muito bem, pensei eu. Daqui a pouco ela estará grogue. Então você conseguirá tirá-la daqui e carregá-la para o hotel. Uma desculpa por ela não comparecer ao SPORTING CLUB, conforme havia sido combinado, aparece na hora.
73Deixe-a se embriagar! Meu Deus, por favor, eu lhe peço, prometo também acreditar que você existe e dizer a todo mundo que devem acreditar em você, mas me ajude!
Sabe, sr. Juiz, eu e Deus, isto é coisa que nunca funcionou. Quanto ao embriagar-se, minha Sylvia, minha Bruxinha querida, não chegou nunca! Começou a gritar de novo:
Aquele merda do Rod! Fazer aquilo comigo! Mas ele me paga,
boto ele no olho da rua!
Fale baixo!
Baixo, uma merda! Minha garrafa!
.. Claro. Ótimo!
Só que ela não ficou grogue. Não adiantou!
Se eu tivesse uma garrafa lá na frente, das câmaras...
Você enlouqueceu? O que houve afinal? Há pouco ainda chorava
diante das câmaras! Você estava comovedora! Suas lágrimas...
Minhas lágrimas! Eram lágrimas de nojo, de raiva!
Raiva de quê?
De ter que falar aquilo tudo que o Rod escreveu para mim. Raiva
de vocês dois terem me arrumado uma situação daquelas! Humanidade! Bondade! Compreensão! Misericórdia! Ajuda! A garrafa!!
Eu a entreguei.
Lá estava Podgorny, o Presidente do Estado, no vídeo. Lá estava Nelson Rockfeller, a Begum, Sammy Davis, Jean Paul Sartre, o representante do Vaticano, a mãe de John Kennedy, Pompidou, a Princesa Ana da Inglaterra, a rainha Juliana dos Países Baixos, os três astronautas da Apoio
10, uma beldade negra, um chinês de uniforme branco...
Lá estava a Sylvia:
Me ajude!
Ajudei-a a se levantar. Ficou em pé diante de mim, a garrafa na
mão.
Pobres crianças doentes! Aqueles gaguejadores! Babadores! Cretinos que não são gente, nem bichos chegam a ser! E eu me prestando a isto!
E desandou de novo. Bem, se aquele quarto não era à prova de som,
estava tudo perdido. Fluxo da vida! Fluxo da vida é ter sucesso, ser rica,
bonita, ter poder! Gozar a vida! Dar um chute no traseiro dos fracos! Isto é que é fluxo da vida! Quando ficar fraco, ficar velho... morrer sem pestanejar! Mas agüentar lá em cima até o fim! Ter a coragem de dizer: Pronto, acabou-se! Não ficar preso a esta merda de existência! Isto é que é humano! Isto é que é normal! E eu vou ficar lá em cima! E apareço eu agora com aquela besteira toda, arrancando dinheiro do bolso daqueles idiotas! Para
que? Para nada! Puro fraude! Mentira pura! De repente seu humor
mudou. Assustada, ela disse: Que conseqüências você acha que isso tudo
vai ter, Phil?
Phil, e não Lobinho.
74Lobinho, agora não!
Só pode ter conseqüências boas, Sylvia! Evidente... excelentes
até... para você principalmente...
Sem nenhuma explicação começou a se despir. Ficou só de calcinhas e sutiã, sentou-se diante do espelho, tirou os brincos e a gargantilha, tentou refazer o rosto.
Excelentes, diz você! Catastróficas, digo eu! De onde é que vem
toda aquela dinheirama? Dos Estados Unidos! Aonde é que se brada mais alto em favor da eutanàsia? Nos Estados Unidos! Ora qual nada, por toda parte, no mundo inteiro! E é óbvio, porque é normal. Centenas de milhares de dólares são jogados fora para cada uma dessas crianças retardadas! Joe vai gostar muito de me ver e ouvir!
Referia-se a Joe Gintzburger, Predisente da SEVEN STARS, uma das três maiores sociedades produtoras do mundo, para a qual a Sylvia trabalhava.
Vai ficar satisfeito comigo, com Rod, com você! Que merda de
creme de limpeza é este?
Comigo por quê?
Porque você conseguiu me convencer de vir! Leite para a cútis.
Esponjinha. A pintura borrada desapareceu. O verdadeiro rosto de Sylvia apareceu. Será que aquele era seu rosto verdadeiro? Agora tinha chegado a minha vez de precisar de um gole. Será que uma boca tão bonita podia pronunciar tantos impropérios? Podia tal demônio rugir atrás de uma fronte
tão angelical? O senhor aquiesce, sr. Juiz, o senhor conhece os homens!
Você já imaginou quantos milhões de pessoas desligaram seus aparelhos durante aquela porcaria de discurso? Vocês é que enlouqueceram, você e Rod, não eu! Vocês é que são uns loucos varridos, arruinaram meu nome!
Sylvia, por favor...
Cale a boca! Passe pra cá! Arrancou-me a garrafa da mão e
bebeu como um carroceiro, bateu a garrafa em cima do tampo de vidro da mesinha. Com um estalo, o vidro partiu.
Fraude! Mentira! continuou ela preocupada com seu rosto,
falando sem parar, aos brados, alto demais. Aqueles balbuciadores! Trêmulos! Espasmódicos! Cabeças d’agua! Paralíticos! Sofrendo de convulsões!
- Tomou um grande gole. Me mandaram lá para o hotel um álbum cheio
de fotografias destas crianças. Para que eu pudesse fazer a coisa com mais sentimento. Aquelas fotografias me embrulharam o estômago. Que fotografias! Em papel brilhante; dezoito por vinte e quatro. Nunca vi nada tão monstruoso, tão horrível, tão repugnante! Ainda vou sonhar com elas. Centenas de vezes, milhares! Nunca vou conseguir esquecer aquelas fotografias!
Yehud Menuhim apareceu no vídeo. Alberto Moravia. Ali Khan. Abba Eban. Andrej Gromyko. Sophia Loren. George McNamara. Norman Mailer. Marc Chagall. Dr. De Bakey. Billy Wilder. Cardeal Koenig.
Olhando para o espelho, a Sylvia gritou:
75Eu e você, nós dois sabemos que essas coisas têm que ser dizimadas!
Agora bastava. Se ela gritasse daquela maneira, ouvia-se toda palavra lá fora.
Pare com isto! Depende do grau da lesão. Existem casos, inúmeros
casos, gravíssimos até, que hoje já podem ser melhorados.
A Sylvia bebeu mais um trago.
O conhaque lhe escorria da boca, corria pelo queixo, descia pelo pescoço, entrava pelo sutiã entre os seios. De repente riu como louca.
Melhorar, é? Para que daí há dez anos possam contar até três...
se é que até lá conseguirão dizer alguma coisa, não é? Para que dentro de quinze anos consigam ir à privada sozinhos, sem soltar tudo onde estiverem sentados ou deitados? Santo Deus, que melhora!
Droga, pare com isso!
Ela não parou.
Eu estou dizendo, vi as fotos que me mandaram para o hotel! Só
gostaria de saber quem foi o idiota que teve a idéia. Aquelas fotos... aquelas fotos...
Aquelas fotos eu também vi disse eu.
No vídeo viam-se dezenas de garçons servindo a ceia de gala.
Viu, e daí? Ela olhou para mim. O rosto agora estava sem
pintura. Um rosto lindo, rosto de santa!
Sr. Juiz, logo no princípio escrevi que a verdade que tenho a relatar é horrível, é repugnante, irá lhe dar calafrios. Escrevi também que nunca mais iria mentir. Se acha repelente o que se segue, controle-se, poupe um pouco a sua repugnância, pois ainda estou no começo, bem no começo. Tudo que acabo de relatar não é nada em relação ao que ainda vem.
Quando a Sylvia levantou os olhos para mim, eu sabia o que tinha que fazer em meu próprio interesse e, evidentemente, no dela também. Seu bem-estar garantia o meu. Por isso o que fiz não me causou esforço...
O que quer dizer “e daí”? perguntei, sacudindo a cabeça.
Você e Rod sabiam desde o início... e lembre-se quanto tempo eu hesitei antes de concordar... sabiam que você nunca pretendeu ajudar àquelas crianças, nem consertar o mundo, mas que visava apenas a. publicidade’. Isso tinha sido discutido e resolvido. Você concordou, não foi? Ou vai dizer que
não? Coloquei minha mão sobre seu ombro nu. Acredite, minha
Bruxinha, foi uma grande publicidade! No mundo inteiro! Você nunca teve uma chance igual! Aposto a minha vida: milhões, centenas de milhões choraram; você esteve formidável’.
Evidente que não ia surtir efeito logo da primeira vez. Não surtiu mesmo... -.
Formidável, é? Pergunte a quem quiser,
76Aqui onde sou hóspede ninguém vai dizer que não! Agora passava outro creme na pele. Deixe de ser ridículo! Pergunte a alguém de Hollywood, Nova Iorque, Paris ou Viena o que ele achou da minha baboseira! Sylvia virou-se bruscamente, o cabelo preso para cima, o rosto brilhando de creme, e gritou:
Pergunte a quem quiser! Todos vão lhe dizer a mesma coisa que
eu: Estes débeis que se lixem! Que morram! Morram o mais depressa possível!
Dei-lhe um tapa com toda a minha força.
O que alguém criado no Bronx consegue, o de Salem também faz. Minha mão ficou escorregadia daquele maldito creme. Sequei-a com papel-Yes.
O efeito foi imediato.
Ela apenas murmurou:
Deixar que morram, isto é humano! Quanto mais depressa, melhor.
Só Deus sabe quanto odeio os nazistas, mas se há um ponto em que eles têm razão é no caso da eutanásia em relação a estes débeis mentais.. - Depois tampou a boca com a mão. Aparentemente o álcool estava fazendo seu efeito. Ou o tapa. Ou apenas o tempo. O tempo sempre ajuda...
Agora rápido! Inclinei-me e cocei-lhe as costas. Ela gostava disto, excitava-a; chegava a ficar exaltada, frenética, a entregar-se completamente.
Eu repito mais uma vez, vê se entende, eu e Rod só estávamos nos
preocupando com seu prestígio! Para que o mundo visse a mulher formidável que você é... mesmo na sua vida particular! Só isto. Meu Deus, Bruxinha, quantas vezes em seus filmes você já disse da maneira mais do que convincente, coisas em que não acredita absolutamente. Coisas que lhe pareciam absurdas, que você odiava tanto quanto a essas crianças! Quantas vezes?
Lembra? Pelo espelho vi como se ia torcendo devagar debaixo de minhas
carícias, vi seu rosto com um misto de excitação e triunfo, e disse olhando para o espelho: E então, entendeu finalmente?
Entendi murmurou ela.
Torcia-se como uma serpente. Seus olhos brilhavam, respirava com dificuldade.
- Hipocrisia disse ela. Hiprocrisia pura.
Não respondi. Continuei a coçar. Sabia que isso dava mais resultado.
Hipocrisia repetiu e seus seios arfavam. Hipocrisia minha e
de Rod! Hipocrisia por parte de todos aqueles que agora lá na festa vão entregar seus donativos... hipocrisia é só o que existe, no mundo inteiro.
Continuava a coçar-lhe as costas.
Incuráveis reformadores do mundo! Presunçosos! Belos cristãos!
Bonitos judeus! Grandes comunistas! Nulidades multimilionárias que precisam chamar atenção sobre si: Olhem como somos bondosos! Vejam quanto
damos para estes pobres cretinos! disse a Sylvia respirando cada vez com
mais dificuldade.
77Eu continuei... Pelo que conhecia Sylvia, não precisaria continuar a lhe coçar as costas por muito tempo a mais.
- Você vai ver só a dinheirama que vai entrar quando começarem a leiloar os quadros! Juro que vão entrar dezenas, centenas de milhões! E juro também que em todos os jornais do mundo você vai ler que você nunca esteve tão formidável. Formidável como nunca! Você é a maior! É o máximo! Agora você está lá nas alturas e para sempre.
De repente seu corpo estremeceu. Ela se contorceu toda e eu sabia que estava... bem, então ela disse:
Eu estava realmente tão maravilhosa assim?
Claro que estava.
E acha que vai adiantar alguma coisa?
Juro.
A Sylvia olhou para o espelho, contemplou-se longamente e disse tranqüila:
Ora, então está tudo em ordem.
Tudo concordei eu,, Sim senhor, de minha profissão eu entendia.
Só gostaria de saber como uma mulher inteligente como você pode ficar
tão alterada? perguntei.
Ela deu de ombros. Depois de sentir seu estremecimento, eu tinha parado. Meio entediada, já começando a se maquilar novamente, ela disse:
Não é nada, Lobinho. São os nervos. Veja, sr. Juiz, agora
voltara a ser Lobinho. É porque não consigo esquecer aquelas fotos.
Aquelas fotos horríveis! Claro que foram mandadas com a melhor das intenções. Mas foi um ato meio idiota, não acha?
Foi, Bruxinha. Mas agora ajeita sua maquilagem, se arruma direitinho para irmos ao clube. Seu lugar é ao lado do Príncipe. Todas as câmaras devem ficar focalizadas em você. Centenas de milhares de olhos estarão fixos em você... a mulher mais bela, mais maravilhosa do mundo!
Você é um amor, Lobinho disse Sylvia. Me beije!
Que beijo! Ela gemia e suspirava. Por fim me ergui.
Então, tudo em ordem, Bruxinha?
Tudo, Lobinho. Sylvia olhou para o vídeo. Olhe só aquela
vaca, a mulher do Presidente... você já sabe... aquela de teta de fora... silicone, não é?
Claro disse eu.
Cheia de silicone. Mas uma gargantilha de brilhantes como aquela
eu ainda não tenho, Lobinho.
Ora, é só comprar.
E vou comprar mesmo, você vai ver- De repente sorriu - Sabe
de uma coisa?
Que é Bruxinha?
78É esquisito, mas depois de toda essa confusão eu fiquei com uma
fome! Seria capaz de comer uma lagosta inteira!
Pode ganhar uma dúzia até!
Rimos.
24
Ela conseguiu deglutir uma lagosta e meia, mais duas garrafas de champanha, e uma enormidade de uísque. Todas as câmaras a focalizavam conforme eu havia previsto. Logo depois, as Dançarinas de Monte-Carlo rodopiaram pelo palco; os quadros foram leiloados. Frederic era o leiloeiro. Arrecadação total: 11,5 milhões de francos! A Sylvia também deu seus lances, noblesse oblige, ora. Desde aquele dia ela possui um Léger. Eu teria preferido um Modigliani, aquela figura reclinada em roxo. Mas o dinheiro era dela, e até que era um Léger bem decente. Arrecadado por bem mais do que seu valor real, evidentemente; muito mais: 80.000 francos!
Rod Bracken apareceu enquanto a Sylvia dançava com Niarchos. Disse que entregara Babs aos cuidados da Clarissa e em seguida tinha vindo com Frederic. Achou que tudo fora fantástico. Eu lhe contei o “fantástico” que tinha sido, ele xingou e blasfemou, depois agradeceu a Deus a sorte que tivemos (essa estória de Deus, todas essas implorações e agradecimentos são realmente engraçadas), depois tomamos uma garrafinha juntos. Pela primeira vez desde que nos conhecemos, estávamos nos entendendo, estávamos quase simpatizando um com o outro.
O sucesso no mundo inteiro logo em seguida foi exatamente como eu havia previsto... O senhor deve se lembrar daquele programa, sr. Juiz; ele entrou para a história da televisão.
Dois dias mais tarde voltamos a Hollywood. Voando por cima do Atlântico relembrei tudo; nos menores detalhes. Será que houve alguma falha? Será que alguma coisa podia nos acontecer? Será que alguém tinha percebido algo daquela cena da Sylvia?
Não. Claro que não.
O som ali não tinha como sair, pensei eu.
Quando mais tarde constatei que havia me enganado, fui obrigado a voltar a Monte-Carlo com Rod. Não para afastar o perigo de uma catástrofe, para isto já era tarde demais. Com este perigo, capaz de destruir a carreira de Sylvia num piscar de olhos, tivemos que viver daí por diante até este momento, até o instante em que escrevo este depoimento. Não foi para evitá-lo que eu e Rod voamos para Monte-Carlo. Foi apenas para controlar o perigo, para refreiá-lo, ou melhor tentar refreiá-lo.
79Quando nos encontramos com Frédéric Gérard, o locutor-chefe da TMC, com quem tínhamos que falar, voltei mais uma vez ao pequeno camarim. Vi então a caixinha preta em cima da mesa. Naquela noite horrível ela me passara despercebida. É muito comum nos camarins de teatro, nos estúdios de cinema e televisão existir um interfone destes, para poderem comunicar aos artistas a hora de se apresentarem, o tempo de que ainda dispõem e muita coisa mais. Grande parte deles funciona nos dois sentidos, transmitem a voz por alto-falantes, e quando ligados para tal, funcionam como microfone, captando as vozes...
25
Suzy Sylvestre, minha manicura de Paris, já tivera sarampo em criança. Nada mais lhe podia acontecer. Inteiramente despidos, estávamos deitados em sua cama louca (muito grande e redonda) no quarto igualmente louco de móveis supermodernos de fibra de vidro, com efeitos de luz e posters por toda parte (de Che Guevara, de propaganda de conservas maravilhosas, do punho junto ao arame farpado da Anistia Internacional, tudo misturado!). Eu achava aquele ambiente simpático e aconchegante. A luz no quarto onde estivéramos ocupados as duas últimas horas era regulável. Tinha ficado acesa bem clara, pois nos excitava ficar observando um ao outro. Finalmente esgotados e exaustos, caímos ofegantes, de corpo bambo, um ao lado do outro. Só depois de algum tempo, conseguimos tomar um gole de uísque (ambos no mesmo copo).
Naquela quinta-feira, 25 de novembro de 1971, quando finalmente consegui chegar a sua casa por volta de 21h e 30min, nos atracamos literalmente. Lá pelas 20h a Sylvia adormecera de repente e não acordara mais. Consegui sair então: Boa-noite, querida irmã Hélène... Suzy Sylvestre, de vinte e quatro anos, loura de pernas compridas, seios enormes e olhos azuis, tinha o mais belo traseiro jamais visto. Por isso também dedicava a ele uma atenção muito especial que deixava Suzy completamente louca (Pensei
que já conhecesse tudo, mas isso nenhum homem ainda fez comigo! dizia
ela). Minha pequena Suzy tinha que tomar muito cuidado por causa do noivo menor de idade ainda. O senhor se lembra, sr. Juiz, do herdeiro de fábricas de têxteis, de terras, castelos etc. em Roubaix? Francois, chamava-se ele. Francois, conde de não sei o quê. Pelo que ela contava, ele também não lhe dava grandes alegrias...
Você agora tem três meses só para mim, querido? perguntou
ela.
80Três meses, sim senhora. De vez em quando tenho que dar uma
escapada. Mas é por pouco tempo.
Ainda vão acabar tendo que nos levar para o hospital. A nós dois
disse ela. Suas unhas dos pés e das mãos estavam com um verniz quase
preto. Eu achava horrível; ela gostava, pois era moda; e afinal eu não vinha
por causa de suas unhas... Para o hospital, por esgotamento total.
Nunca conheci um homem como você; sim senhor!
Outras moças já me haviam dito o mesmo. Mulheres são mesmo uns pobres diabos. Quem quer que as tenha criado, grande trabalho não se deu! Tudo para elas é difícil, é complicado. Quando então conseguem pegar alguém como eu, com quem as coisas dão certo, estão liquidadas! Melhor exemplo disto: Sylvia Moran.
Querido, não podíamos viver felizes juntos? perguntou ela.
De quê? perguntei eu. Me dê mais um gole.
Com gelo?
- É.
Ela preparou um drinque e eu tomei.
Ora não fale assim, de quê? Eu tenho meu salão. Eu ganho bastante. Para nós dois. Boto Francois no olho da rua e..
A coisa estava ficando perigosa.
Você não vai fazer nada disso. Esqueça isso, e já. Você sabe que eu
não sou nada, não tenho nada... Nem um ramo de flores pude trazer para você hoje. Amanhã você ganha. Mas não ganha castelos, nem fábricas, nem milhões. E muito menos um título de condessa! Eu sou apenas um playboy que se deixa sustentar.
Não diga isso! Odeio essa palavra! Odeio a tal de Sylvia Moran.
Eu também não gosto de minha situação. Mas que posso fazer? Se
ela me botar pra fora, eu me dano todo!
Nunca! Eu tenho bastante para nós dois.
Não posso aceitar nada de você. Somos parecidos demais. Nos
entendemos bem demais. De você nunca poderia aceitar nada!
Isso a impressionou muitíssimo apesar de ser uma mulher bastante inteligente!
E de Sylvia... dela você aceita dinheiro, dela você se deixa sustentar?
Deixo.
E por quê?
Porque com a Sylvia a coisa é muito diferente (Quantas vezes eu já
havia dito isso antes!). Tanto pelo lado espiritual como pelo lado erótico... é completamente diferente.
É mesmo? Palavra de honra?
- Palavra de honra. É sim.
Mas com ela... com ela você também... não é?
81Mas claro; evidente. Você acha que do contrário estaria sentado ali
no meu lugar ao sol? Claro que tenho que lhe dar algo em troca. Ela não faz nada de graça.
- Eu odeio essa tal de Sylvia. Você já disse uma vez.
- Mas aquelas coisas gostosas... aquelas mais gostosas... que... você já sabe... estas você nunca faz com ela?
Nunca menti eu. Só com você!
E também nunca fez com mulher nenhuma?
Nunca.
Jura?
Juro disse eu cruzando os dedos. Era estranho, mas todas as
minhas lindas pequenas perguntavam a mesma coisa. Até a Sylvia. Parecia fasciná-las. E a todas elas eu jurava. Mulheres, pobres criaturas...
Suzy riu.
Qual é a graça?
Me lembrei que vou ser condessa... e milionária! Mas toda vez,
assim que nos encontrarmos, vamos enganar o Francois.
É disse eu isso é engraçado. E ri também. Por que iria
estragar seu bom humor?
Depois você faz de novo?
Com prazer, condessa!
Querido, você é um amor!... Agora você está de novo com aquele
seu cheiro disse ela beijando meu peito. Ganhei uma porção de beijinhos.
O cheiro-Philip. O típico cheiro-Philip. Nenhum outro homem tem esse
cheiro... tão... tão animalesco. Basta sentir esse cheiro, que eu quase já... E o cheiro fica; você pode tomar quantos banhos quiser. Você acabou de tomar um.
Quando cheguei ela havia torcido o nariz:
Ih! Que é isso? Cheiro de hospital!
Eu venho de lá mesmo. Fui ver um amigo. Tem a minha idade.
E imagine só, pegou sarampo! Foi por isso que antes de vir, liguei para saber se você já tivera.
Graças a Deus já tive sim. Mas agora ande, direto para a banheira!
Ela me esfregou, e a primeira vez aconteceu lá mesmo. Grande pequena, aquela Suzy!
Quando naquela quinta-feira saí da clínica do dr. Delamare, logo depois de oito horas (bastante cedo portanto) não chovia mais, apenas ventava muito. Tinha que tomar cuidado. Sempre podia haver alguém me seguindo. Por isso fui andando um bom pedaço até o seguinte ponto de táxi, de chapéu na mão, pois o vento o teria arrancado, a gola do casaco levantada, respirando fundo. Ar puro!
O ponto de táxi. ’.
’soir, ’sieur.
82Boa-noite. Montmartre, por favor. Só até o pé da escada.
Bien, ’sieur.
Era um caminho longo e complicado, mas se eu quisesse chegar à casa de Suzy tinha que tomá-lo. Seu salão ficava no centro, na Avenue Charles Floquet, mas sua residência (por motivo óbvio) ficava bem distante, numa velha casa na Place du Tartre.
Durante a viagem desci o vidro da janela. O vento da noite me batia no rosto e eu continuava a respirar fundo.
Quando chegamos, subi a escadaria. O funicular, o bondinho de motor estacionado, já tinha parado de funcionar. Para mim não fazia diferença. Fui subindo até o alto da igreja Sacre Coeur. O que sempre me fascina em Paris, a cidade que eu tanto adoro, é a vista lá de cima. Por isso já estive ali várias vezes. Naquela noite, em pé sozinho, a ventania quase me arrancava a capa; rugia, bramia, assobiava, gemia, e eu olhava o panorama da cidade, as milhares de luzes dos bondes, dos carros e das janelas; vi as igrejas, o Sena com suas margens, a torre Eiffel. Lembrei-me de Hemmingway que tivera perfeitamente razão quando em seu último livro sobre Paris e suas recordações nessa cidade, deu-lhe o título de MOVEABLE FEAST. Paris era realmente “a festa móvel”, que passava do dia pela noite a dentro, da noite pelo dia afora, sem cessar. Vive-se numa eterna festa móvel; o dia emendando na noite, a noite no dia.
Fiquei em pé ali por muito tempo, e aos poucos fui me sentindo melhor, mais” leve, mais livre. Depois, seguindo pela praça da igreja, dobrei à direita entrando na Rue Azais. Cheguei à Rue Saint-Eleuthère, que me levava à Rue de Mont-Cenis. Tudo muito escuro, rruito poucas luzes, subúrbio ainda. A esquerda entrava-se para a Place de Tertre.
Aí ainda se viam as velhas casas e as seculares árvores negras já completamente despidas. Lembrava muito a praça do mercado de uma cidade provinciana francesa. Havia pequenos restaurantes e bistrôs. Também já estivera nesse lugar, e fiquei apreciando os velhinhos jogando “boule”. Nessa época do ano, em pleno novembro, não havia velhinhos. Ruas desertas. Um cachorro de pêlo todo arrepiado me seguiu, na esperança talvez de que eu o levasse. O que faria eu com um cachorro? Me virava constantemente. Ninguém me seguia, disso tenho certeza, apenas aquele cão.
Era uma casa cor-de-rosa. Embaixo um restaurante, CHEZ EMILE. Eu tinha a chave do portão, para não precisar acordar o porteiro; para evitar falatório. Abri o velho portão. O cão também quis entrar. Essa não! Muito contra minha vontade, mas sem que me restasse outra saída, dei-lhe um chute. Saiu correndo; esfomeado, triste na noite escura... As escadarias eram antiqüíssimas. Os degraus rangiam. Segundo andar. Uma porta com uma tabuleta: SUZY SYLVESTRE.
Toquei. Dois toques curtos, um longo, outro curto. Nosso sinal.
Imediatamente a porta foi escancarada. Lá estava a Suzy, radiante, jovem e bonita, com um cintinho segurando as meias, sapatos de salto alto. Nada mais!
83Uma recepção destas é sempre uma alegria, não acham? “Nada mais” escrevi eu; não exatamente. Usava ainda VIVRE, de Molyneux; sentia-lhe o perfume. Eu mesmo lhe dera de presente. Dava a todas as minhas pequenas o mesmo perfume que a Sylvia usava no momento. Era óbvio que tinha que ser o mesmo perfume, não é?
26
Gosto tanto de você, meu amor, tanto! dizia Suzy Sylvestre
agora, duas horas mais tarde, depois de o termos feito pela primeira vez.
Você nem imagina quanto; não tem a menor idéia. Ela ligara o toca-disco.
LP de John Williams... o homem tinha uma voz!... Cantava naquele instante a canção preferida de Suzy: O Dieu, merci, pour ce paradis, qui s’ouvre aujourd’hui à 1’un de íes Jils... Agredeço a Ti senhor, pelo paraíso que se abre hoje para um de Teus filhos...
Eu também te adoro tanto, minha Bru... Droga! Por um triz.
Meu benzinho.
Faria qualquer coisa por você, Philip. Qualquer coisa! Você não
acredita. Acha que sou como qualquer uma? Tem razão. Mas elas fazem qualquer coisa pelo homem que amam.
... pou le plus petit, le plus pauvre Jils, c’est pourquoi je cris:
Merci, Dieu, merci, pou ce paradis...
Toda vez que ouço isso me dà vontade de chorar dizia a Suzy,
de cigarro na boca, copo de uísque na mão, nuazinha diante de mim, nu eu também. E ela chorou mesmo, sr. Juiz, ao ouvir:... “para o menor o mais pobre de Teus filhos, por isto eu exclamo: Obrigado meu Deus, obrigado por este paraíso”.
Bonito texto. E continuava assim por aí a fora...
Você sabe tudo sobre mim dizia Suzy. Do meu pequeno
conde. Dos homens que tive; tudo eu contei.
Eu nunca fiz questão de saber, Suzy.
Mas eu quis contar, meu amor.
Você foi muito boazinha, Suzy.
Eu sou boazinha. Mas você... você não me contou nada. Não sei
nada de sua vida.
Você sabe tudo que é importante disse eu acariciando-a. Me
estende o copo. Obrigado. Você sabe que não presto, que não tenho dinheiro, que sou o gigolô da Sylvia Moran.
Não diga essa palavra! gritou ela.
Ora, mas eu sou.
84 Mas não quero que você diga! Lágrimas escorriam novamente
por sua face. Ora, manicura! Claro que era uma prostitutazinha. Mas naquela época eu estava convencido de que elas eram as criaturas mais simpáticas, mais fiéis, mais comportadas, mais honestas, mais humanas. Nem todas, evidentemente. Não sou nenhum fetíchísta. Outras também me serviam perfeitamente. Mas com as prostitutazinhas do tipo da Suzy, eu virava o sentimental, sempre...
Está bem, não digo mais nada.
Me conta como você conheceu aquela velha.
Ora...
Ah, conta... conta! Foi escorregando, pegou o travesseiro que
estava debaixo de seu traseiro e colocou-o atrás das costas. Recostou-se.
Quase não tem o que contar. Encontrei-a em Baden-Baden. Em
Iffezheim.
Que é isso?
Um prado. Prado famoso. Assim como Anteuil aqui. Ou Long-
champs.
Você conhece muitos, não é?
Conheço disse eu. Suzy, você tem um pêlo lindo.
Deixa isso agora. Daí a pouco você pega. É seu mesmo; você sabe.
Mas agora deixa. Ela ajeitou uma perna. Conta!
Bem. Você sabe, tenho um irmão chamado Karl-Ludwing. Meu pai
era dono das fábricas de cabos de aço em Duisburg.
- Rico?
Muito. Meu pai morreu... junto com minha mãe. Desastre de
avião. 1960. Eu tinha dezenove anos. Meu irmão é mais velho. Dez anos mais velho. Eu e ele herdamos as fábricas. Depois... Para ser breve: a coisa não deu certo, entre nós. Ele aumentou as fábricas cada vez mais, todos confiavam nele; em mim, ninguém. Nem o próprio cabo de aço.
Como, nem o próprio cabo de aço? perguntou Suzy. Então
você mesmo não confia em si?
Nunca confiei.
- E trabalho? Você nunca tentou trabalhar na vida? É apenas uma pergunta, meu bem, não é nenhuma censura! Você nunca na vida tentou trabalhar?
Nunca. Não, espere aí. Trabalhei sim e como]
Quando?
- Tinha vinte e dois anos. Fiz uma transação formidável com enrolamentos de esferas. Vagões cheios. Trabalho pesado. Grande sócio.
- E?
- No fim não era tão formidável assim. Os rolamentos não serviram. O sócio deu no pé. Todo meu dinheiro foi-se.
Que dinheiro?
85A herança, ora. Muito dinheiro. Eu tentei honestamente, Suzy’. Não
deu certo. E o que é pior ainda. Eu só dei azar para ele. Aí pensei: É melhor deixá-lo trabalhar só, antes de nos arruinar a ambos.
Pensou mesmo?
O quê?
Que você preferia deixar seu irmão trabalhar só, para não arruinar
a ambos?
Claro que não.
Me diga uma coisa, você ao menos acredita naquilo que diz?
Nunca. Por quê?
Você é um amor! Você simplesmente quis facilitar a vida para
você, quis a sua parte em dinheiro para nunca mais trabalhar, não foi?
Claro.
Meu Deus, como adoro você! disse a Suzy. Quanto ele lhe
pagou?
A metade.
E era muito? perguntou ela muito impressionada. Quando se
falava em dinheiro sempre tinha grande respeito. Agora aquilo parecia uma igreja, aquele quarto louco, com a cama redonda toda desfeita, os posters na parede. Um bem por cima de nós dizia MAKE LOVE-NOT WAR!
Treze milhões de marcos.
Santo Cristo! E o que você fez de tanto dinheiro?
“Diga-me aonde estão as flores, para onde foram elas?” Conhece a
canção? Realmente meu amor, isso não é pergunta que se faça.
Você não vai me dizer que de 60 a 67, isto é, em sete anos, você
conseguiu gastar treze milhões de marcos!
Oito anos, querida. Não sete. Só fui conhecer a Sylvia em 68.
Está bem, oito então.
Foram até alguns meses mais.
Meu Deus, mas como você conseguiu isso?
Ora disse eu alegremente existe uma série de possibilidades.
Por exemplo?
Por exemplo: pequenas formidáveis como você. É uma pena eu não
tê-la conhecido a mais tempo. Uma pessoa tão maravilhosa como você não existe, Suzy! Mas de qualquer maneira houve mulheres simpáticas até, ou você acha que eu ia dormir com uma boneca de borracha? Estas mulheres simpáticas ganhavam presentes. Antes era diferente, antes eu dava presentes...
Jóias, é?
Jóias também.
Por isso é que você entende tanto de jóias.
Me custou um bocado, esta sabedoria.
Está se vendo disse Suzy. E casas, casacos de pele, dinheiro
etc. e tal, para essas simpáticas mulheres?
86Exatamente. Você vê, a gente faz questão de ser cavalheiro; faz
presentes. É idiota, mete dinheiro em firmas que vão à falência... Comigo as coisas são engraçadas, a Bernie, por exemplo... mas isso não interessa. Até fazendas. Sabe que também se podem dar fazendas de presentes?
A mim nunca ninguém deu nenhuma.
Ainda vem. Espere quando for condessa! Também existem apartamentos de cobertura, hotéis caríssimos. Apartamentos alugados, para o ano inteiro são um pouco mais baratos. Pouca coisa só. Automóveis caríssimos. Sabe, teu amorzinho sempre teve um fraco por carros caríssimos. Por corridas de cavalo. Por cassinos. É, minha pequenina Suzy, corrida de cavalos e cassinos... Las Vegas e Freudenau. Grafenberg e Epsom. Santa Anna na Califórnia, por exemplo é o prado mais lindo do mundo! E Chantilly e Vicennes. Tóquio e Buenos Aires. Nova Iorque e Madrid. Estocolmo e...
Você esteve em todos esses lugares?
E em muitos outros mais. Na verdade, jogar se pode em qualquer
parte.
Você é um jogador? perguntou Suzy com grande admiração.
Jogador? disse eu. Não; não sou jogador. Sou é um tarado!
Quando vejo uma mesa de bacará, ou um cavalinho daqueles, é quase tão bomo como...
Deixe de ser vulgar! disse a Suzy.
... como uma noite de Natal arrematei eu.
Então você conseguiu acabar com treze milhões em oito anos!
Se fizermos a conta certinha, foi.
Meus respeitos! exclamou a Suzy. Eu jà disse, agora deixa.
Daqui a pouco você ganha. Mas agora eu quero finalmente saber quem você é!
- E não sabe ainda? Em 68 eu estava a zero. Quando digo zero, é porque era mesmo. Já havia pedido dinheiro emprestado a todo mundo, tinha dívidas por tudo que era lado, até em Baden-Baden, no BRENNERS PARK HOTEL.
O melhor deles?
- O melhor, sempre. Já não pagava a conta há três semanas. No restaurante continuava a comer caviar e beber champanha, e a botar na conta. Eles não diziam uma palavra. Pensavam que no pior dos casos meu irmão pagaria. Teria que pagar. Já o fez tantas vezes. O que eles não sabiam é que meu irmão me havia dito, que agora bastava. Não pagava mais nada. Nem que eu tivesse que ir para a cadeia. Ou que houvesse um escândalo. Ele estava cheio! Por sorte, ninguém sabia. Só eu. Não era nada agradável! De quem eu tinha mais pena, era do porteiro da noite.
- Daquele hotel?.
- É.
- E por quê?
87Porque já tinha chegado até a pedir dinheiro emprestado a ele. São
meus grandes amigos os porteiros dos hotéis, sabia? Sempre me ajudaram.
Àquela altura, eu pensei, você devia ir para Iffezheim mais uma véz, tentar a sorte. Pela última vez. E quando você tiver perdido seu último marco, pega uma corda e acaba com tudo. Tinha chegado a este ponto, honestamente. Bem, naquela tarde conheci a Sylvia.
Que fazia aquela velha ali?
Estava trabalhando em Frankfurt. Qualquer estréia. Um monte de
gente; seu empresário, o relações-públicas. Todos chefões de sua companhia, a SEVEN STARS; até o Presidente. Chamava-se Joe Gintzburger. Estavam todos hospedados no HOTEL BRENNER. E todos estavam lá no prado. A única coisa que me restava era roupa decente. Sou um esnobe, você sabe muito bem.
Um amor de esnobe! Você ainda continua a engraxar seus sapatos?
Continuo e não pretendo deixar. Esteja onde estiver. Nem arrumadeira, nem mordomo, ninguém põe a mão. Meus sapatos sou eu quem limpo. Vou lhe revelar um segredo, meu amor, ninguém sabe engraxar sapatos.
Mas você sabe! disse Suzy.
Ora droga, pelo menos uma coisa eu sei.
Ela havia colocado outro disco enquanto eu falava. Agora ouvia-se de novo John Williams agradecendo a Deus por ter aberto o paraíso a um de seus filhos, o menor, o mais pobre...
Incomoda? Não reparei que era o mesmo disco...
Em absoluto... Sabia que ainda me restavam dois mil marcos.
Dinheiro que o porteiro me havia emprestado. Foi no terceiro páreo. Eram seis. Ela veio a mim dizendo:
Vamos apostar juntos? Se ganharmos dividimos meio a meio.
Veio a você?
- Foi.
Mentira!
Mentira nada, Suzy. Veio sim. Disse mais tarde que me achou
simpático e veio. Ela é assim mesmo.
Prostituta! disse Suzy zangada. Ah, minha Suzy!
Que nada. Naquele ambiente em que vive, ela faz o que bem
entende... Grande estrela, artista famosa. Ninguém ousa abrir o bico. Também nunca lhe passou pela cabeça casar comigo.
É uma superprostituta! E aí?
Ai, claro que eu disse: “Com muito prazer madame. É uma honra!” Eu estava... Suzy! Eu só tinha dois mil marcos que nem me pertenciam! Eram do porteiro. E o hotel? O alfaiate? O camiseiro? A financeira? E
Já entendi. Foi assim então. Claro que vocês perderam.- Que nada! Ganhamos. Um bocado! Depois fomos festejar! Perdi tudo, foi à noite no cassino.
E vocês dormiram juntos, logo na primeira noite.
Foi.
E eu pago dez francos para ficar olhando no cinema para uma
vaca destas! disse Suzy. O resto você nem precisa contar. Daí em
diante você ficou amarrado.
E como!
Até hoje?
Até hoje.
Vai continuar a ficar.
- Vou.
Suzy calou-se um instante. John Williams acabava de cantar a canção do paraíso para um de seus filhos. <
27
Eram quase duas da manhã quando cheguei ao LE MONDE. Meu velho amigo, Lucien Bayard e porteiro da noite, estava novamente de serviço. Também seu colega Jean Perrotin. Mais uma vez o saguão estava deserto. Mais uma vez Lucien Bayard veio correndo radiante, me acompanhou até o elevador sussurrando:
Já tracei todo o plano de ataque, sr. Kaven. Me entregou um
envelope. Está tudo aí dentro. Dê uma boa olhada com toda calma, até
amanhã à noite. Apostei em Poet’s Bay, La Gauloise e Valdemosa. Nesses três. Era isso mesmo, não era sr. Kaven?
Perfeito, Lucien.
Eu tomei a liberdade de distribuir certas quantias... Espero que o
senhor concorde. É muito dinheiro... as apostas são meio altas. E ainda tem os placês.
Pode deixar que dou uma olhada, Lucien disse eu estendendo-lhe a mão.
Amanhã à noite então será a grande reunião do Estado Maior!
Já estou ansioso, sr. Kaven. Eu vou... Ainda o vi falando
através da porta de vidro do elevador, quando este já subia para o quarto andar.
Silêncio de morte aqui em cima nos corredores. Uma porção de sapatos diante das portas. Passei a metade da minha vida em hotéis, no entanto os sapatos que ficavam diante das portas, nunca deixaram de me fascinar.
89Desci o corredor até o 419. Lucien me havia dito que a Clarissa estava com a Babs e que portanto a chave devia estar com ela. A porta estava aberta. Mais uma vez todas as luzes estavam acesas, o salão feericamente iluminado. Mas não era apenas a Clarissa que esperava por mim...
Lá estava também Rod Bracken, o pequeno e triste dr. Lévy, e o dr. Demoulin, que tinha sido convocado pelo dr. Lévy. E ainda um homem alto e forte, a quem eu nunca tinha visto. De repente uma sensação de medo se apossou de mim; sentia frio e calor ao mesmo tempo.
Estavam todos em pé, personalidades históricas de um museu de cera. Os olhos fixos em mim. Rostos sem expressão. Mudos.
Boa noite disse eu.
Nada.
- O que houve? perguntei tirando minha capa, ainda de chapéu
na cabeça.
O que houve, dr. Lévy? Aconteceu alguma coisa à Babs?
Sim, sr. Kaven.” - disse baixinho o pequenino médico, inteiramente calvo, ajeitando os óculos de grossas lentes.
O que foi? Babs... está com sarampo, eu sei. O senhor e o dr.
Demoulin mesmo diagnosticaram...
- Não é apenas sarampo, sr. Kaven. O que tem mais?
Por que Rod, aquele cretino, me olhava daquele jeito? Por que a Clarissa, aquela vaca, me fitava assim?
- Este aqui, é o dr. Sigrand. Robert Sigrand disse o dr. Lévy
apontando para a figura alta de cabelos grisalhos, que se inclinou ligeiramente. Dr. Sigrand é o médico-chefe da seção de otorrinolaringologia do
Hospital Sainte-Bernadette. Eu e o colega Demoulin o convocamos porque jà não podemos mais assumir a responsabilidade sozinhos.
Mas o que houve com ela?
Ela está em perigo de vida, sr. Kaven disse o dr. Sigrand muito
devagar e muito claramente. Estamos há três horas esperando pelo senhor.
Não conseguimos localizá-lo. Também não podíamos tomar nenhuma medida sem o senhor. O sr. Bracken disse que só poderíamos agir com seu consentimento.
Lá você não estava mais; eu liguei disse o Rod. Estava pálido,
com fundas olheiras negras.
Aonde é que você andou todo esse tempo?
Fui jantar. Eu não sabia... não tinha a menor idéia... O que quer
o senhor dizer com perigo de vida? gritei eu de repente.
Quer dizer respondeu o dr. Sigrand que essa criança terá que
ser removida daqui imediatamente. Não se pode mais perder tempo.
Removida? Para onde?
Se o senhor concordar, para minha clínica. Acho que seria o mais
indicado.
90Mas afinal o que é que a Babs tem?
O que eu receava desde o início... mas meu colega o dr. Demoulin também não... gaguejou o velho dr. Levy.
O que a Babs tem? gritei eu.
Não disse o dr. Sigrand muito baixinho.
Não, o quê?
Não grite, sr. Kaven.
O que é então que os senhores receiam? perguntei e tive que me
encostar numa parede.
Nós receamos... não, nós sabemos, sr. Kaven. Babs está com
otite. O senhor pode dar uma olhada para ver como ela está. Ela talvez não o reconheça. Está com mais de 40 graus de febre. Isso já está certo continuou o dr. Sigrand otite e sarampo. O que nós receamos, é que ela já está
ou vai ter meningite.
Meningite?
Sim, inflamação das membranas do aparelho cerebrospinal, sr.
Kaven disse o dr. Sigrand, e todos olharam novamente para mim.
O Dieu, merci, pour ce paradis...
28
Fui até o bar do salão do apartamento, enchi um copo de uísque e emborquei-o, sem gelo, sem água; puro e quente. Depois entrei no quarto em que estava Babs. Os três médicos me acompanharam. O grande cômodo estava iluminado apenas pela luz da mesinha de cabeceira, velada e colocada no chão. Babs estava deitada na cama de casal. Cama enorme. Babs minúscula. Lá fora o vento rangia, gemia, arquejava, sacudia tudo.
Do cobertor aparecia apenas a cabecinha da Babs. O cabelo úmido de suor, o rosto também úmido e todo pintado de sarampo. O travesseiro debaixo de sua cabeça, molhado de suor. Os olhos abertos revestidos por uma película viscosa. Não era um aspecto bonito. Nem um pouco.
- Babs!
- E navios disse ela. :’..
Que navios?
- Fogo.
Mal se entendia o que falava. Eu tinha acabado de passar por uma situação semelhante com a mãe de Babs lá no hospital. Pode ser até que eu não tenha entendido direito. Qualquer coisa de navio eu tenho certeza que ela disse. Babs estava rouca. Além disso balbuciava.
91- Babs!
Olhou para o teto, para aquele luxuoso teto de estuque, daquele suntuoso quarto.
Babs, sou eu, Phil!
Voar.
Coloquei a mão na sua testa. Ardia. Tentei virar-lhe a cabeça. Berrou como animal. Recuei assustado.
Deixe, sr. Kaven disse o dr. Sigrand. Com uma pequenina
lanterna de bolso iluminou os olhos da Babs. Ela nem piscou, ficou olhando fixo para a luz. - Está com distúrbios visuais e auditivos disse o médico.
Há uma hora estava com quarenta vírgula cinco de febre
acrescentou o dr. Levy, abaixando a cabeça calva. Falava muito alto, pois Babs continuava a gritar. Era horrível. Nenhum animal ferido gritava assim. Babs gritava como uma muda que era torturada e que através da tortura reencontrou a voz.
Pare! gritei eu. Por que ela não pára?
Não grite! advertiu o dr. Sigrand.
Meus senhores, por favor prezado colega! O dr. Levy torcia as
mãos.
Babs balbuciou qualquer coisa. Depois emudeceu completamente.
E agora? Perguntei horrorizado.
Os três médicos não responderam.
Babs não se movia.
Toquei levemente na sua cabeça, bem de leve e ela recomeçou a gritar. Recuei novamente.
Eu já lhe disse, não faça isso! disse o dr. Sigrand. Aquele
médico me odiava. Senti desde o início.
Por que ela grita assim quando é tocada?
- Dores respondeu dr. Levy acabrunhado.
Na cabeça?
E na nuca - respondeu dr. Sigrand enquanto a Babs gritava sem
parar. - A nuca enrijeceu. Dói muito. Também o ouvido direito deve estar Docndo muito. E todos os membros. Por isso ela está tão quieta. Ela está totalmente desorientada, perturbada.
... bada repetiu a Babs. Sua boca estava aberta; arquejava,
esgotada de gritar. O suor lhe escorria do rosto para o travesseiro. Na mesinha ao lado da cama viam-se remédios, injeções, um termômetro e um aparelho de medir pressão.
O que foi que o senhor deu a ela?
Tudo que era necessário no momento disse Sigrand. - Não
adianta eu lhe explicar, pois de qualquer maneira não ia entender. No fundo nós apenas a preparamos para ser transportada.
Tentamos preparar disse o dr. Levy.
É. Só espero que a tentativa tenha êxito. Senão... O dr.
Sigrand calou-se.
92Senão, o quê?
Nada.
E a Babs choramingava, arquejava, gritava e chorava.
Será que o senhor podia, fazer o favor de se decidir, ou prefere
esperar até que aconteça qualquer coisa à criança? - perguntou o dr. Sigrand.
Vi Rod em pé na porta do quarto nos observando. Seu rosto estava esverdeado.
Temos que levar a criança daqui. O mais depressa possível. Do
contrário não assumo nenhuma responsabilidade disse Sigrand.
Vi Rod me fazer um sinal, e disse:
Espere cinco minutos. Tenho que combinar com o sr. Bracken a
maneira de transportá-la.
De repente a Babs deu um gemido horrível. Estremeci.
E então? observou o dr. Sigrand. Será que agora entende a
gravidade de seu estado? Há três horas estamos esperando pelo senhor! O senhor sabia que a criança estava doente. Por que não veio mais cedo?
Sabe de uma coisa, o senhor... comecei eu, mas o pequenino dr.
Lévy me interrompeu. Virando-se para o dr. Sigrand, disse:
Isso não adianta, meu amigo, nos “Provérbios dos Patriarcas” está
escrito: “Não condene seu próximo. Você não sabe, o que faria se estivesse em seu lugar”.
Prezado colega, o senhor está querendo que eu recupere meu bom
humor com as palavras do Talmude?
Fui rápido para junto de Rod, que me puxou para dentro do salão, trancando a porta. Diante de mim estava a Clarissa e o dr. Wolker. Sr.Alfons Wolken de Winterthur. O professor particular da Babs. Tinha esquecido inteiramente dele. Lá estava ele, desconcertado como sempre, pronto a esconder seu rosto, devoto e obediente.
Boa-noite, sr. Kaven. Cheguei há três horas. Passei rapidamente no
meu quarto. Tudo isto é horrível. Tão horrível! Meu Deus, a pobre Babs!
Chega! gritei eu.
Ele se assustou.
Perdão, sr. Kaven. Peço mil desculpas...
Ora... Botei a mão na testa. Assim não dava! Não podia me
portar desse jeito. eu é que peço desculpas, sr. Wolken... Eu agora
preciso dar uma palavrinha com o sr. Bracken... Será que o senhor poderia ir para seu apartamento um instante com a d. Clarissa?
Claro, sr. Kaven. Dr. Wolken inclinou-se três vezes. Depois
desapareceu com a Clarissa que continuava chorando... Abriu a porta e deixou-a passar.
A porta fechou-se.
Com quem você andou por aí copulando? ’ •
Cale essa boca imunda!
93Falávamos inglês.
Pode deixar que descubro disse Rod. Agora você está com
as calças na rmão.
Não respondi.
Há muito venho esperando por uma coisa dessas Continuou
Rod. Você não Porque você é um idiota, não pensa. Só agora que se
lembra, não é? Sabe que se transparecer uma palavrinha sequer do que aconteceu à Babs, a Sylvia pode mandar lhe enterrar? E você pode pegar as velhas por aí e... (não posso reproduzir suas palavras). Eu pressenti. Sabia que ia acontecer. Um dia qualquer. Como, eu não sabia, mas tinha certeza. Meu Deus, se ao menos não tivéssemos ido a Monte-Carlo àquela vez! Agora, se transparecer qualquer coisa, aquele patife vai exigir milhões, tenho certeza! Vai continuar a exigir cada vez mais... e ainda acaba dando com a língua nos dentes. Bela esparrela, boa merda em que nos metemos!
Continuei mudo.
Se a Babs morresse logo! Se já estivesse morta. Mas com isso não
podemos contar. Você mesmo ouviu: Casa de Saúde. Isso é teu fim, seu gigolô. O da Sylvia também.
Aí eu falei:
Ora, vá à merda. Será que você ainda não entendeu que agora que
a Babs vai para o hospital, você vai ter que me lamber o cu? Que você vai ter que beijar meus pés, rastejar de quatro diante de mim, me implorar para que eu o ajude!
Eu? E por quê?
- Se transparecer o que aconteceu à Babs, se é que ela realmente está com meningite... e você sabe muito bem o que a meningite pode trazer... se uma única pessoa souber, então você volta para o lugar de onde veio, para onde é realmente seu lugar: para aquela grossa merda!
E você também.
Eu não, seu idiota. Eu não sei de nada. Eu sou o grande amor da
Sylvia; ela o meu. O empresário dela é você! Eu não sabia de nada de toda aquela porcaria que vocês arrumaram com as fitas gravadas.
Sua voz também está nas fitas disse Rod tremendo de raiva
Aquela bosta de voz! E você vai querer dizer que não sabia de nada?
Claro que não sabia!
E tudo que você disse nas fitas?
O quê? Que foi que eu disse? Naquela ocasião a Sylvia teve um
colapso total. Nervos! Quem vai jogar a primeira pedra? Uma mulher que realiza coisas tão extraordinárias? Chega um dia em que os nervos não agüentam!
Você deu razão a ela quando xingou aquelas crianças retardadas!
Eu, absolutamente! Disso eu tinha certeza. Pois já no camarim
da TMC eu sabia que não lhe podia dar razão nunca! Sabia por quê? Deve ter sido um sexto sentido, sr. Juiz. Eu só procurei acalmá-la.
94Com conhaque e um bom tapa!.
Exatamente. Para acabar com seu histerismo. Agi como um médico. Como um psiquiatra. Esquecer as crianças! Falar só de publicidade! Tudo, só para acalmá-la. Tudo por amor.
Por amor! Seu miserável!
- Prove o contrário então!
- Posso provar que você voltou comigo a Monte-Carlo! Que estivemos com Frederic! Frederic está de prova!
Quando? perguntei eu.
Quando, o quê?
Quando foi que voltei com você a Monte-Carlo, e estivemos com
Frédéric?
Em dezembro de 69.
Exatamente.
Exatamente, o quê?
A reunião de gala foi em junho de 69. Isto é, quase meio ano antes.
Quando liguei para Frédéric já era fim de outubro, porque vocês vieram a mim, você e Sylvia, em completo desespero, implorando para que eu lhes ajudasse; porque àquela altura vocês já tinham recebido o primeiro, o segundo e o terceiro pacotinho.
Ora, você estava presente quando chegou o primeiro. E todos os
outros.
Prove! disse eu Você não pode provar. Nem a Sylvia. Afinal
os pacotinhos eram endereçados a ela. Não tem jeito! Em outubro vocês vieram me contar o que havia acontecido e continuava a acontecer, porque não sabiam o que fazer. E porque imaginavam que Frédéric pudesse ajudar. Por isso pediram a mim, seu amigo, que ligasse para ele. Por isso também em
dezembro fui com você a Monte-Carlo. Eu me empertiguei. E só por
amor à Sylvia. Para ajudar a ela. Naquela época quando vocês me confiaram tudo, eu fiquei horrorizado vendo há quanto tempo a Sylvia já vinha pagando, ou melhor: há quanto tempo você vinha pagando com o dinheiro dela! Foi você quem sempre enviou o dinheiro, eu não! Eu nunca! Só você! Isto pode ser provado! Depois, quando finalmente vocês vieram falar comigo, já era tarde! Você teve que continuar a pagar. Você. Eu não. Eu teria forçado vocês imediatamente a se comunicarem com a polícia. Por isso talvez tenham demorado tanto a falar comigo. Só quando não sabiam mais o que fazer, não encontraram outra saída. Eu aí, como última tentativa, liguei para Frédéric. Até então eu nada tinha a ver com tudo aquilo; nem sabia de nada.
- Seu cachorro! disse ele. Mas teve que tomar um trago. Agora
ele estava liquidado, de vez.
- Você é uma figura trágica, Rod. E sabe por quê? Porque não tem escolha. De agora em diante terá que me respeitar, me honrar, como a Bíblia o exige dos filhos, seu filho da mãe! Mais uma ofensa, mais um olhar atravessado e acabou-se. Você é uma figura tão trágica quanto Otelo.
95Seu cagador de sapiência!
Claro! Você não tem nem idéia de quem. possa ter sido Otelo.
Tenho sim.
Então diz!
Ficou mudo, bebendo.
Tem nada! disse eu. - Otelo acabou perdendo tudo que dava
sentido à sua vida. E por não poder suportá-la mais, acabou se suicidando com uma punhalada. É nisso que você tem que pensar agora. Não precisa ser punhal, veneno também serve. Ou sedativo ou um pulo pela janela. O que você preferir, seu cretino, que só tem uma chance, uma única.
E qual é? perguntou ele em voz baixa.
Ouvi o dr. Sigrand me chamar.
Já vou, doutor! disse eu por cima do ombro. Uma porta se
fechou. Eu e Rod tínhamos falado baixo. Baixinho continuei: A chance é
você ajudar a ajeitar as coisas de maneira que ninguém venha a saber coisa alguma a respeito da meningite da Babs.
Talvez nem seja meningite.
Bem, se você acha, então vamos esperar.
Não disse ele. Não, por favor. Eu... sempre tive ódio de
você, Phil.
Eu de você também.
. Mas... mas isso acabou...
Acabou uma merda!
Não, é verdade! Juro! Pela luz dos meus olhos! Não tenho mais
nada contra você! Afinal você é... o que é! Eu sou pior que você...
Isso eu também acho!
Se você não me ajudar agora estou realmente perdido, se nós não
nos mantivermos unidos... Aí... para mim acabou-se...
Viu? Já está funcionando, seu filho da mãe! disse eu. Agora ele
teve o que mereceu, por tudo que engoli dele todos esses anos. Agora ele não tem mais como se defender, como se vingar. Agora só lhe resta uma coisa: me lamber o cu. E ele sabia disso. Feliz da vida, vi como ele se deixou cair numa poltrona forrada de brocado de seda amarelo-ouro. Ele, o grande Rod Bracken, o mais famoso e eficiente empresário da maior atriz do mundo, outrora um rato, um rato de esgoto saído do seio do Bronx, do seu canto mais fedorento, mais imundo!
Monte-Carlo disse Rod movendo automaticamente as pernas de um lado a outro. Santa Mãe de Deus!... Monte-Carlo...
96Contarei daqui a pouco o que aconteceu logo após a cena da Sylvia em Monte-Carlo. Primeiro no entanto, sr. Juiz, me deixe relatar o que se passou com a Babs naquela noite, senão perco o fio da meada.
Babs precisava ser levada para o hospital, disso não havia a menor dúvida. O problema era como levá-la até lá, sem que repórter algum, sem que ninguém por lá soubesse do aDoccimento da menina. Num hotel enorme desses, não era tarefa fácil.
O dr. Sigrand, que não simpatizava comigo, chegou para nós lá no salão e disse furioso, que ele esperava só mais cinco minutos, depois ia se comunicar com as autoridades, já que eu ainda não tinha conseguido chegar a um acordo com Bracken quanto ao transporte da doente. Ele estava saturado! Eu também estava, mas evidentemente não disse. Respondi ao invés.
Por favor, entenda. É evidente que a Babs tenha que ir para uma
clínica. Mas trata-se de Babs Moran, doutor! Ninguém, nem por acaso, pode vir a saber que doença ela tem.
E por que não? perguntou ele irritado, enquanto eu ouvia o
choro da menina pela porta do quarto. Será que vai prejudicar os negócios
da madame?
Vai sim respondi. Agora já estava por aqui com o dr. Sigrand.
E por favor pare cem isso, senão ainda acaba lhe acontecendo qualquer
coisa! Eu lhe explico depois por que prejudica. Agora não. Agora não há tempo. Tenho que ver como consigo tirar a Babs daqui do hotel. O senhor encontrará um jeito de se justificar diante de sua consciência médica por mais alguns minutos.
Devo ter dito aquelas palavras com uma expressão tão zangada, que ele ficou perplexo. Cheio de ódio ainda, mais perplexo. Ficou calado enquanto eu me dirigia para a porta.
Eu vou também disse Bracken.
Você fica ordenei eu.
- Está certo, Phil. Como você quiser. Se você acha melhor eu ficar, fico.
É assim que se tampa a boca de um valentão desses, sr. Juiz!
Desci para o saguão do hotel. Cinco mulheres com aspiradores de pó, esfregões e panos de chão, trabalhavam ali. Fui até a portaria.
Ninguém.
Sr. Lucien!
Nada.
Mais alto:.. s.
- Sr. Lucien!
97Ao lado da larga parede de mogno com a tábua para as chaves, e as fendas para a correspondência, havia uma porta. Sabia que ela ia dar nos aposentos onde descansavam os porteiros da noite. Enquanto um ficava alerta, o outro, evidentemente dava uma dormida.
A porta estava encostada. O velho Lucien meteu a cabeça para fora; tinha ouvido minha voz. Eu também ouvia uma voz, ou melhor, diversas.
Sr. Kaven... Lucien tinha afrouxado a gravata, desabotoara o
colarinho; seu rosto pálido tinha manchas vermelhas. Aconteceu alguma
coisa?
Eu é que pergunto As vozes excitadas atrás da porta continuavam. O que houve?
É que... Em que posso lhe ajudar sr. Kaven?
Posso dar uma entrada?
Claro, sr. Kaven.
Entrei pois, no pequeno quarto do porteiro da noite. Um divã, aparelho de televisão, rádio, alguns móveis, um tapete. A televisão estava desligada. Do rádio, diante do qual sentava-se o segundo porteiro roendo as unhas, saíam vozes. Vozes de repórteres! Confusas, agitadas, falando rápido.
“... há pouco colocaram soldados diante das residências em frente
às casas...”
“... os três terroristas japoneses... armados de pistolas e granadas de mão, tomaram de assalto a embaixada francesa, fizeram reféns e entrincheiraram-se no quarto andar do edifício...”
“... Acabamos de ser informados de que, além dos três terroristas,
nove pessoas encontram-se presas dentro do prédio da embaixada: O embaixador francês no Haag, conde Jacques de Senard, quatro diretores da firma francesa de óleos minerais a “Copagnie Française des Pétroles-Total”, uma telefonista de vinte e dois anos de nome Bernadine Geerling, a secreária do embaixador da mesma idade que a telefonista, e dois agentes de segurança. Os diretores da companhia de petróleo estavam na hora do seqüestro em reunião com o embaixador, e esta se prolongou além do que estava previsto...”
Bela porcaria! disse Jean Perrotin, o segundo porteiro da noite.
Não tenho a intenção de relatar em detalhes o que aconteceu naquela madrugada de 25 de novembro de 71 na embaixada francesa do Haag, nem como a situação se desenrolou no dia seguinte. O senhor deve se lembrar perfeitamente, sr. Juiz. Talvez também não se lembre muito em detalhe, pois essa nova diversão, fruto da riqueza da criatividade humana, os seqüestros de avião, os reféns, as carnificinas em aeroportos, a chantagem contra países inteiros levadas a efeito por dois, três, cinco frios fanáticos ou pistoleiros, em troca de altos resgates, alcançava seu primeiro apogeu.
No caso, tratava-se de um japonês de nome Yukota Furuya, que em 21 de julho havia sido preso no aeroporto de Orly. Causa: Furuya trazia consigo três passaportes falsos, 10.000 dólares em cédulas falsas de cem dólares e uma carta em código.
98Foi levado para a penitenciária Santé, em Paris. Para tirá-lo dali, três japoneses penetraram na embaixada francesa do Haag. Declararam imediatamente por telefone serem membros da Renko-Sekigun, do Exército Vermelho Unido. Essa organização terrorista foi responsável, em 72, pela carnificina no aeroporto de Lod, em Tel-Aviv. A Renko-Sekigun funcionava ligada às organizações guerrilheiras da Palestina.
Uma das faxineiras que trabalhava no saguão, meteu a cabeça pela porta:
Alguma novidade? perguntou ela com voz rouca, um cigarro no
canto da boca.
Os japoneses informou Perrotin exigem que soltem aquele
sujeito, o Furuya, e que...
Canalhas amarelos! disse a faxineira.
... que o governo francês o envie com um Boeing da AIR-FRAN-
CE para Schiphol...
Que é isso? perguntou a faxineira:
O aeroporto internacional de Amsterdam... E que este japonês
reviste o avião. Se ele...
Canalhas amarelos!... repetiu a faxineira.
... verificar que o aparelho está em ordem, então os japoneses da
embaixada soltam primeiro as duas moças; ainda não está muito certo.
Canalhas amarelos, sujos disse a faxineira.
... Parece no entanto que esse Furuya, a quem estão querendo
tirar da prisão, não faz a menor questão disso. Exigiu um milhão de dólares para ser levado de avião para o Haag e asstm salvar a vida do embaixador francês, a quem queriam liquidar primeiro...
Canalhas amarelos, imundos! continuou a faxineira. Um
Boeing especial para uma secretária e uma telefonista! Quanto será que eles teriam pedido por duas faxineiras? Pediram um milhão de dólares por um embaixador! Seria melhor que anunciassem logo uma lista inteira, de quem vale quanto.
- Daí a mais alguns instantes, dizem os repórteres, também as televisões estarão prontas para transmitir diretamente do Haag disse meu
amigo Lucien. - Acho que a essa altura já a metade da França está diante dos rádios. Quando entrar ainda a televisão! E se isso durar dias?
E se durar dias... Puxei Lucien pelo braço.
Pronto.
Onde posso lhe falar?
- Onde quiser. : Aqui ou em qualquer lugar. Por quê?
99Aqui não. Num lugar onde ninguém possa nos ouvir disse eu
baixinho.
Quinze minutos depois uma ambulância Entrava no pátio interno do hotel, parando bem em frente a uma rampa de carregamento, onde normalmente estacionavam os caminhões das firmas de gêneros alimentícios e bebidas, ou das lavanderias. Soube imediatamente da chegada da ambulância, pois Lucien ligou para meu apartamento.
Dois homens vão subir com a maca disse ele. Eu também
vou.
Muito bem disse eu.
Os três médicos, Rod, Clarissa’ e o dr. Wolken olharam para mim, quando pendurei o fone.
Tudo pronto. •
Ninguém se manifestou.
O dr. Sigrand entrou no quarto. Vi que dava mais uma injeção na Babs. Gemendo baixinho, ela adormecera. Agora recomeçou a chorar alto. Choro alto no corredor, era só o que faltava!
No salão, o televisor estava ligado. Tinha sido Bracken.
Bateram delicadamente à porta.
Fui correndo abrir. Dois enfermeiros de capa por cima dos jalecos brancos, e Lucien o porteiro da noite, entraram. Os enfermeiros carregavam a maca e cobertores.
Ali disse eu apontando para o quarto. Entraram rapidamente.
Obrigado Lucien. Ele dera um jeito para que ninguém do hotel
soubesse o que estava acontecendo com a Babs, nem mesmo seu colega Perrotin. De manhã eu tinha dito a Lucien, que daria uma palavrinha com o chefe. Lucien era um porteiro muito velho e muito sábio, de um hotel muito velho e muito bom.
Vários hóspedes já estão acordados disse ele. Ligaram para
eles. Estão instalados diante de suas televisões. Acho que todo morador de Paris, a não ser que esteja dormindo, ou que tenha que ir para o trabalho, está sentado diante da televisão.
Que sorte a nossa! disse eu.
Como, sr. Kaven?
Nada retruquei, voltando para o quarto.
Os enfermeiros colocaram a Babs em cima da maca, cobriram e amarraram.
100Chorou alto, depois choramingou, respirou arquejando, e disse qualquer coisa.
Que foi que ela disse? perguntei ao dr. Levy que me acompanhara.
Não entendi.
Babs murmurou qualquer coisa novamente, depois choramingou.
Ursos disse o dr. Sigrand que dirigia o trabalho.
Ursos, o quê?
Ela disse qualquer coisa de ursos.
Disse o quê?
Não entendi. Podemos ir?
Os enfermeiros aquiesceram.
Então vamos!
Levantaram a maca.
Cuidado! disse o dr. Sigrand. Muito cuidWo.
Levaram a Babs até o salão, onde estava Clarissa chorando novamente. No vídeo via-se uma rua larga inteiramente deserta e um edifício alto. Por baixo apareceu a legenda: DIRETAMENTE DO HAAG. !
“... Os nove reféns e os três homens do comando encontram-se no
quarto andar...”
A imagem focalizou uma fileira de janelas; estava escura e pouco nítida.
Os médicos tinham apanhado as capas, chapéus e maletas. Enfiei minha capa.
Vocês todos ficam aqui disse eu. Eu vou junto. Clarissa e sr.
Wolken, vão descansar, por favor.
Não! soluçou a Clarissa.
Agora não tenho sono declarou o dr. Wolken de cabeça baixa.
Inclinou-se.
Bem então fiquem acordados disse eu. Rod, você não sai de
perto do telefone.
Claro, Phil disse ele. Depois de nossa pequena desavença ele de
repente estava inteiramente sóbrio; não bebeu mais nada. Parecia ter envelhecido dez anos nessas últimas horas. (Minha aparência com certeza não era muito melhor).
A porta do apartamento fechou-se atrás de mim. Estávamos agora no corredor deserto. No corredor, com os muitos sapatos. E se alguém voltasse para casa a esta hora? Se mais alguém fosse colocar sapatos diante da porta? Se alguém do andar chamasse o garçom...
Os enfermeiros andavam rápidos. Depressa, ágeis como gatos, desciam o corredor. Tive dificuldade em acompanhá-los. Ouvi vozes masculinas. Passaram-se alguns segundos antes que eu percebesse que as vozes eram sempre as mesmas. Vinham dos quartos onde os hóspedes estavam com as televisões ligadas a todo volume.
101 Depois chegamos ao elevador de carga. Todos couberam confortavelmente. O elevador desceu devagar.
Ursos dizia Babs Claro que existem esses e aqueles tipos de
ursos.
Era uma ambulância grande. Os enfermeiros amarraram a maca e eu e os três médicos estávamos sentados diante dela. O carro andava depressa. Babs choramingava. O dr. Sigrand tomava-lhe o pulso, auscultava-a com um estetoscópio, media a pressão; tudo com muito cuidado. Não tive mais coragem de lhe perguntar por seu estado. Sigrand olhou para os dois médicos. Deu de ombros.
Mais nada.
Com um lenço, enxuguei o suor da testa. Os enfermeiros lá na frente, tinham ligado o rádio do carro. Não muito alto; queriam apenas estar informados. Transportar doentes para eles afinal era rotina. Não falavam; e como nas ruas por onde passávamos o silêncio era sepulcral, ouvi a voz de um locutor:
O embaixador da República Federal Alemã, dr. Max Obermaier
também reside com sua família no local isolado...
Olhei para fora, por uma estreita janela lateral da ambulância. Não vi vivalma. Eram mal duas horas da madrugada... e ninguém mais na rua, no centro de Paris! Nunca vira isso e eu conhecia Paris como a palma da minha mão! A ambulância tinha ligado a luz vermelha e a sirena.
Não dá pra desligar? - perguntei.
Não respondeu o dr. Sigrand olhando para mim como se eu
tivesse acabado de assassinar sua mãe. O que estava acontecendo com aquele sujeito?
Mas não tem ninguém na rua!
Podem sair carros das transversais disse ele. A sirena tem
que ficar ligada. A luz vermelha também. Pode deixar, que o senhor vai conseguir agüentar.
De onde vem de repente esse cheiro de perfume? pensei eu. Os outros deviam estar pensando a mesma coisa, pois vi o dr. Lèvy e o dr. Demoulin farejarem. Logo me lembrei. Era o lenço com o qual tinha enxugado minha testa! Cheirava a VIVRE. E muito. Droga, e eu ainda tinha tomado banho antes de sair da casa de Suzy. Por aí se vê que bom perfume é VIVRE!
Guardei rapidamente o lenço e olhei mais uma vez para fora da janela. Antes estávamos na Place de L’Etoile, dando a volta no Arco do Triunfo.
102Agora já tínhamos subido um bom pedaço da Avenue de Ia Grande Armèe. A sirena continuava ligada. A luz vermelha piscava dentro do carro. A Babs apenas murmurava. Place de Verdun. Porte Maillot. Continuando em direção oeste, Avenue de Neuilly.
Avenue de Neuilly
Assustei-me. Mais um pouquinho e estávamos...
A ambulância dobrou à esquerda.
Em muitas janelas de muitas casas, vi luzes acesas. A cidade tinha começado a se animar novamente. O seqüestro do Haag...
... daí a poucas horas milhares de pessoas não vão poder chegar
a seus locais de trabalho dizia a voz do repórter no rádio lá na frente da
ambulância. Até a Secretaria do Principe Claus dos Países Baixos fica na
zona isolada...
Rua principal.
Avenue de Madrid.
Um momento... isso fica bem perto do Bois de Boulogne. Santo Deus! Atravessamos a avenida. Segundo cruzamento bem à esquerda. Mais uma rua preferencial. Rue de Longchamps. Subimos cerca de um quilômetro. O enfermeiro ao volante buzinou, e entrou no pátio do Hospital Sainte-Bemadette.
Já estávamos sendo esperados. Homens e mulheres vestidos de branco acorreram. Tudo foi muito rápido. Saltamos. A maca foi colocada em cima de uma espécie de carreta com rodas de borracha. Na penumbra podia ver indistintamente que se tratava de um hospital gigantesco, um conjunto formado por diversas clinicas e pátios. Estávamos no pátio da clínica de otorrinolaringologia. Entramos no prédio. Corredores brancos. Azulejos brancos. Luz fria, branca. Já passei por isso uma vez e essa noite, pensei comigo. Um elevador para os doentes. Virei-me para o dr. Sigrand:
Doutor, quero lhe pedir uma coisa.
Nada.
Sei que o senhor não simpatiza comigo. Não sei por que. Mas
tenho que lhe pedir um favor.O senhor está me ouvindo? As últimas
palavras foram ditas em voz bem alta.
- Estou ouvindo, sim disse ele,
- Mais tarde eu explico...
- O quê?
O elevador subia lentamente.
- A razão do meu pedido. Agora o senhor não tem tempo... Mais tarde. Por favor! É muitíssimo importante: a criança não pode ser registrada com o nome verdadeiro!
- Não posso imaginar nenhuma razão porque ela não possa
- Tenho meus motivos, ora disse eu irritado. Comecei a ficar
traiçoeiro: - Eu lhe pedi, doutor.
Sigrand me olhou surpreso.
103Então como é, nome falso ou não?
Por mim. Qual?
Americano. O mais banal possível. Para mim também. Eu sou o
pai. Por favor, diga o mesmo a todos os médicos e ao pessoal também, entendeu?
O senhor aqui não decide nada!
Mas é o que estou fazendo! E o senhor, trate de fazer o que eu
digo! Meti a mão no bolso e tirei um par de óculos escuros. Trazia-os
sempre comigo. Usava muitas vezes, como agora por exemplo. Eu o
advirto mais uma vez: o senhor tem consciência de quem é a doente aí na sua
frente? E, sussurando-lhe quase ao ouvido: Sabe o que poderá lhe
acontecer se...
Está bem disse ele enojado Outro nome; por mim... Como
quer se chamar?
Faça uma sugestão.
Paul Norton?
Serve. >
E Babs Norton. Babs tem que ficar! Ela reage a ele!
Está certo.
O elevador parou.
Mais um corredor. Uma infinidade de portas, a maioria aberta. Escritórios. Laboratórios. Consultórios. Aí fedia a Lysol. Havia muita gente, homens e mulheres de branco. Aproximaram-se. Uma dúzia pelo menos. O dr. Sigrand havia ligado para o hotel. Disse rapidamente:
Esse senhor aqui é Paul Norton e sua filha Babs.
Boa-noite disse eu.
Mas como... começou um jovem médico.
Não tem como! É Norton, entendeu? perguntou o dr. Sigrand.
Não respondeu o jovem médico.
Vai acabar entendendo. Agora vamos!
Descemos todos pelo corredor até uma porta de vidro fosco, na qual estava escrito ENTRADA PROIBIDA.
Uma sala aberta. Dentro uma televisão. Homens e mulheres diante dela. Um dos enfermeiros perguntou:
Como estão as coisas, Jacques?
O Jacques, a quem eu não podia ver, respondeu:
Pode durar semanas. Primeiro o Governo se recusa a tirar aquele
patife da Santé e pagar um milhão de dólares...
Mas aí os japoneses acabam liquidando todos os reféns disse o
segundo enfermeiro.
Passamos pela porta, passamos pela voz de Jacques. Atrás de nós alguém gritou:
Claude! Claude, vem cá! Agora eles estão focalizando a Santé!
O dr. Levy disse:
104Dr. Sigrand é o melhor médico de Paris para esse tipo de doença.
O que for humanamente possível, ele e sua equipe farão.
A Rue Cave, onde estava Sylvia na clínica do dr. Delamare, saía do Boulevard Richard Wallace.
Onde fica aqui o Boulevard Wallace? perguntei.
A vinte minutos a pé. Por quê? perguntou o dr. Levy.
Só queria saber. Muito bem, pensei comigo. Vinte minutos a
pé...
A proximidade em que mãe e filha agora se encontravam em breve nos iria arrumar uma surpresa. Uma bela surpresa!
Tínhamos chegado à porta de vidro fosco. Um médico abriu-a. A maca onde estava Babs, entrou. O dr. Sigrand voltou-se para mim:
Aqui o senhor não pode entrar. A criança será examinada imediatamente. A fundo. Todos os que o senhor está vendo aqui, sr. Norton, são especialistas. Sente-se naquele banco.
Quanto tempo vai demorar?
Muito respondeu ele, seguindo os outros.
Eu e o dr. Lévy ficamos sozinhos de repente.
Também tenho que entrar disse o velho judeu.
Aquiesci.
Prezado sr. Ka... Norton, não se preocupe. Está escrito: “Não
podemos cair em ne’nhum abismo, que não seja nas mãos de Deus” disse o
dr. Lévy. Depois a porta se fechou atrás dele. Do lado de fora a maçaneta era fixa.
Sentei-me no banco branco.
Estava exausto, não conseguia mais ficar de olhos abertos. Estava ali, só, a gola do casaco levantada, de óculos escuros. Lembro-me, sr. Juiz, que ainda pensei no que Babs havia dito antes, deitada na maca: “Claro que existem esses ou aqueles tipos de ursos”.
Depois adormeci.
- Olha só esses peixes cor de fogo disse Rod Bracken. Falava
rápido, todo entusiasmado. Já viu alguma vez qualquer coisa tão maravilhosa?
- Não.
- Nunca me canso de olhá-los. Rod aproximou-se das paredes de
vidro do aquário... Olha só as nadadeiras, parecem véus de bailarina!
Uma beleza!
105Realmente aqueles peixes de listras púrpuras e claras, com sua estranha figura e as enormes nadadeiras, eram um espetáculo fascinante...
Até venenosos são! Rod parecia especialmente entusiasmado
por essa particularidade. Não era de estranhar... ele também gostava de piranhas, que arrancam a carne do corpo das vítimas vivas, até que em poucos minutos só resta o esqueleto!
Consultei o relógio. Eram 16h e 35min, sábado, 13 de dezembro de
1969. Frédéric já estava com uma hora de atraso. Estávamos diante do aquário do Museu de Oceanografia em Monte-Carlo. Eu e Rod Bracken. Há uma hora e meia, tínhamos vindo de Los Angeles via Paris. Descemos em Nice, onde alugamos um carro. Agora no fim do ano, aquela horrível Promenade des Anglais estava deserta. Pesadas, pendiam as nuvens negras, a ventania açoitava as ondas contra a murada do cais do Velho Porto. A Moyenne Corniche oferecia um espetáculo desolador. Sem flores, sem árvores. Tudo cinza e despido. Inverno. Fazia frio; estávamos de capote.
E ali, olhe só: peixes-escorpiões da costa da Califórnia! disse
Bracken, o entendido em peixes. Igualmente venenosos. Também pertencem à mesma família. Acredito até que se pudesse, teria passado a mão
em alguns deles. Mas não podia. A quantidade de divisões iluminadas que havia ali embaixo, eram embutidas, na mesma distância umas das outras, na parede do imenso aquário. O famoso Musèe Oceanographique, dirigido atualmente pelo comandante Cousteau, é uma obra gigantesca. No primeiro andar, onde se chega de elevador, fica o aquário. Na entrada, uma grande jaula com dois leões-marinhos. Um deles costuma estar nadando, e outro vive escorregando para frente e para trás numa pista de material sintético. Aqui embaixo o cheiro de mar, de algas e animais, tudo mergulhado numa luz tão irreal, dá a impressão de que a pessoa se encontra no fundo do oceano. O museu fica num rochedo atrás do palácio do príncipe, sendo a parte dos fundos o próprio prolongamento da rocha que se projeta sobre o mar.
Um peixe-pedra eu teria que ter dizia Bracken É o Synanceja. Pertence à mesma família também. É mortalmente venenoso.
Parecia ter esquecido completamente o motivo de nos encontrarmos ali. Os peixes o fascinavam. Depois do dinheiro, são os peixes que o fascinam mais, pensei eu.
Éramos os únicos visitantes naquela tarde. Os peixes estavam nadando diretamente colados no vidro. Alguns apertavam a cabeça contra a parede e
era como se olhassem para nós. Um deles parecia, até querer dizer: Não
tenho pena de vocês. Nenhuma.
Diante da divisão seguinte Rod ficou novamente extasiado:
Holacanthus! Que maravilha! Infelizmente não está escrito qual a
espécie. Também nunca vi. Olha que bonito o amarelo-dourado na cabeça e na cauda! Um milagre, Phil! Você acredita em Deus?
Não sei respondi.
106Não se pode deixar de acreditar Nele, vendo semelhante coisa -
disse Bracken. Quem a não ser Ele, poderia ter imaginado tudo isso? Olha
só, lá do outro lado, aqueles bichinhos bonitinhos! Alegres e coloridos como palhacinhos! Por isso mesmo em inglês são vulgarmente conhecidos como
peixe-palhaço. Cientificamente: Amphiprion. Isso dizia Rod Bracken, o
maior empresário do mundo, maior empresário da maior atriz, ex-mendigo,
lavador de pratos, vigarista no Bronx. Muito vivo. Procuram proteção
junto à grande anêmona do mar que via de regra pega todos os peixinhos e os devora. A esses, no entanto, não faz nada. Isso não é um verdadeiro milagre?
Apertou o nariz contra o vidro como o faziam alguns peixes do lado de
dentro. Todo ser humano, tem necessidade de gostar de alguém, pensei eu, mesmo o mais frio, o mais infame, o mais perverso. Se não for capaz de amar a outro ser humano, como é o caso de Bracken, então ama os animais. Em último caso, até peixes. Ter alguém de quem gostar, isto é imprescindível. Aqueles que não encontram absolutamente nada, talvez amem a Deus. É uma
merda de filosofia, pensei comigo e ouvi Rod dizer: Hoje já se consèguerrL
esses peixinhos em qualquer posto de venda de jardim zoológico, por alguns dólares apenas.
Ouvi passos.
Frederic Gerard da Tele Monte-Carlo vinha descendo rapidamente as escadas. Estava sem fôlego. De capote, veio a nosso encontro; apertou-nos a mão, e logo estava de volta a velha cordialidade de verão, mas não a alegria, a despreocupação de Frederic. Se atrasara devido a um desastre na cidade, no Boulevard Princese Charlotte. Uma batida de dois caminhões.
Tínhamos escolhido por telefone o museu oceanográfico como ponto de encontro, pois Frédéric achava que nessa época do ano aqui chamaríamos menos a atenção. O locutor-chefe parecia preocupado e consciente de sua culpa, embora ele não tivesse a menor responsabilidade no que havia acontecido.
Vamos andando um pouco sugeriu ele. Conversamos no
caminho. Onde estão morando?
- Em Nice. No NEGRESCO.
- Muito bem observou ele. Não em Monte-Carlo.
- Ora, não somos idiotas disse eu.
É horrível observou Frédéric Com que cara fico eu aqui diante
de vocês?
- Mas você não tem culpa nenhuma!
- Aconteceu num dos meus programas!
Ficamos andando devagar, lado a lado, naquela fantástica sala.
- Descobriu alguma coisa? perguntei a Frédéric.
- Nada disse ele acabrunhado. Absolutamente nada.
- Merda! disse eu.
- Peíxes-morcegos disse Rod. ’<
- Como? perguntei.
107Rod estava parado diante de outra divisão contemplando por cima e por baixo um peixe em forma de disco, de dorso alto e enormes nadadeiras.
Platax. Normalmente apenas se encontram os peixes novos, listrados. Uma espécime adulto desses, medindo quase setenta centímetros, não é coisa para amador.
Já contei, sr. Juiz, que depois da Sylvia se apresentar na TV de Monte-Carlo, exatamente meio ano depois, eu e Rod Bracken tivemos que voltar àquele lugar. Não para afastar do mundo o perigo de uma catástrofe... para isso já era tarde demais. Há meio ano já vivíamos com a catástrofe que poderia arruinar a carreira da Sylvia num piscar de olhos. Tínhamos voltado a Mônaco no inverno para tentar ao menos controlar o perigo, tentar. Agora no entanto, nem isto mais parecia possível.
Veja, sr. Juiz, em poucas linhas: Logo após nossa volta naquele verão, numa segunda-feira, 4 de agosto de 1969, lembro-me perfeitamente, é uma data que não esquecerei nunca... o correio da manhã trouxe um pacotinho para a Sylvia, para sua casa em Beverly Hills. Dentro encontrava-se uma fita gravada. O embrulho havia sido despachado em Viena. Expresso. Via aérea. Correio Central. Todos os dias a Sylvia recebia montanhas de cartas e presentes do mundo inteiro, os mais loucos, os mais comoventes. Uma secretária particular encarregava-se disso. Da fita, encarregou-se Rod Bracken.
Isto não está me cheirando bem declarou ele. Estou sentindo. Aí vem qualquer patifaria.
Se vinha!
Tocamos a fita. Logo após as primeiras frases Sylvia cambaleou; consegui ainda ampará-la e sentá-la num sofá. Enquanto ouvia o que saía do alto-falante do toca-fita, preparei um martini bem forte para nós; isto já de manhã. Que importava! Sabia que íamos precisar dele.
A voz da Sylvia soava vulgar, furiosa: pobres crianças doentes!
Aqueles gaguejadores! Balbuciadores! Cretinos que não são gente, nem bichos chegam a ser! E eu me prestando a isso!... Pausa. Depois...
Fluxo da vida! Fluxo da vida é ter sucesso, ser rica, bonita, ter poder! Gozar a vida! Dar um chute no traseiro dos fracos! Isto é que é fluxo da vida! Quando ficar fraco, ficar velho... morrer sem pestanejar! Mas agüentar lá em cima até o fim! Ter a coragem de dizer: Pronto, acabou-se! Não ficar preso a esta merda de existência! Isto é que é humano! Isto é que é normal! E eu vou ficar lá em cima! E venho eu agora com aquela besteira toda, arrancando dinheiro do bolso daqueles idiotas! Para que? Para nada! Pura
fraude! Mentira pura! Depois a minha voz: Depende do grau de lesão.
Existem casos, tantos casos gravíssimos, e que hoje já podem ser melhorados.
A essa altura já tínhamos tomado nossos martinis e eu já havia preparado
outra dose. Mais uma vez ouvia-se a voz da Sylvia: Melhorar, é! Para que
daí a dez anos possam contar até três... se é que até lá conseguirão dizer alguma coisa, não é? Para que dentro de quinze anos consigam ir à privada sozinhas, sem soltar tudo onde estiverem, sentados ou deitados! Santo Deus, que melhora!
108Pausa. E depois: Deixar morrê-las, isto é humano!
Quanto mais depressa melhor! Só Deus sabe quanto odeio os nazistas, mas se há um ponto em que eles têm razão é no caso da eutanásia em relação a esses débeis mentais... Nova Pausa. Tive que me sentar. Meus joelhos pareciam de repente feitos de gelatina. Derramei meu drinque.
Soou então uma voz masculina disfarçada, tornada irreconhecível:
Boa-tarde, prezada sra. Moran. A senhora sabe muito bem em que
ocasião disse essas palavras e muitas mais; em Monte-Carlo. Estou lhe enviando apenas uma pequena amostra. Tenho o texto completo em minhas mãos. Creio que seria seu fim se um terceiro ouvisse o que a senhora falou para o sr. Kaven lá no camarim, depois do seu comovente apelo ao mundo inteiro, pela televisão. A senhora não acha também?
Cachorro desgraçado! disse Bracken se eu...
Cala o bico! interrompeu a Sylvia. Suas mãos tremiam. Estava
branca como quê.
É evidente que isto seria seu fim continuou a voz disfarçada
Tenho um coração muito grande, sra. Moran. Realmente não quero ser a causa de sua desgraça. Mas devido a esse meu bom coração, sempre tive azar. Sou pobre. Tenho dívidas. Preciso de dinheiro. Uma sugestão amiga: a senhora compra as fitas originais. Agora. Tenho pressa! A senhora paga cinqüenta mil dólares... é realmente muita consideração de minha parte! Depois de receber o dinheiro, eu lhe envio as fitas. Agora passo a explicar como quero o dinheiro e para onde...
A explicação era longa, complicada e muito bem imaginada. O dinheiro passava pelas mãos de advogados que nada desconfiavam, saía da América para a Europa, para a Suíça através de outros advogados que também de nada sabiam. Passava para a conta de uma fiduciária e daí para uma conta em Lichtenstein. Não quero aborrecê-lo com maiores detalhes. Não havia o menor risco para o homem que estava com as fitas.
Rod desligou o toca-fita, voltou a gravação e ouvimos mais duas vezes. Cada um de nós tomou também mais dois martinis. A Sylvia chorava. Eu disse que a única coisa certa a fazer, seria notificar imediatamente a polícia. Bracken era contra:
Seu idiota, aí está tudo acabado!
A tarde, enviou conforme pedido, os cinqüenta mil dólares.
Cinqüenta mil dólares]
Uma semana mais tarde chegaram as fitas. Dois rolos grandes. O texto completo.
Seis semanas depois chegou outro embrulho com um rolo pequeno. Tudo se repetiu novamente. Só que agora a voz dizia:
- Tenho realmente muito azar, sra. Moran. Cinqüenta mil não bas tam. Preciso de mais. Eu não possuo nada no mundo, a não ser algumas fitas, copias de originais. Será que poderia me enviar mais uma vez cinqüenta mil dólares?
109Da mesma maneira. Eu lhe agradeço e desejo muitas felicidades, sra. Moran. Peço a remessa imediata. Quem é pobre não tem outra saída!
Muito bem, Rod enviou mais cinqüenta mil.
Durante três meses ninguém se manifestou.
Depois chegou outro rolinho. A mesma coisa. O patife tinha cada vez mais azar. E por acaso possuía mais duas fitas onde tinha regravado a conversa original...
O senhor vê, sr. Juiz, que situação horrível, sob quatro aspectos aliás:
Primeiro: Na mesma hora contratamos os melhores detetives particulares. Foram a Viena. Nenhum deles achou o menor indicio que pudesse levar ao chantagista.
Segundo: Depois da terceira remessa tivemos certeza de que a coisa ia continuar assim para sempre. Talvez o sujeito ainda estivesse em poder de
cem, cinqüenta fitas... ou, o que era mais provável, apenas uma a
original. Daí ele podia regravar o diálogo tantas vezes quantas estivesse disposto, e isso certamente ele estaria por muito tempo ainda.
Terceiro: A Sylvia tinha que pagar. Se não pagasse, e a coisa se tornasse pública, ela estaria perdida. Completamente. Liquidada, para sempre. (Já pelas poderosas Associações Femininas Americanas.) Infelizmente, minha querida Bruxinha tinha se excedido lá no camarim da TV-MonteCarlo.
Quarto: Se comunicássemos o fato à polícia, tudo estaria acabado de vez. (Mais tarde cheguei até a dar razão a Rod). Um número imprevisível de pessoas acabaria sabendo da estória. A polícia de Viena, a de Monte-Carlo, e quem sabe até a INTERPOL acabariam intervindo. E tudo seria divulgado oficialmente. Teríamos que dizer a verdade à polícia. A verdade sobre a cena da Sylvia. Teríamos que lhe entregar as fitas, o que seria impossível...
Só restava pois uma solução: Liguei para Frédéric Gérard em MonteCarlo, e lhe contei o que tinha acontecido (ele tinha que saber a verdade). Pedi-lhe que investigasse de tudo que era jeito possível, sem no entanto jamais pedir ajuda a seu amigo, o comissário Alexandre Drouant ou à polícia monegasca.
Frédéric hesitou muito. Era para ele um grande drama de consciência, pois achava que seria melhor informar Drouant. Insisti que não; de maneira alguma. Essa conversa transoceânica durou hora e meia. Finalmente Frédéric concordou, angustiado e muito inseguro, sem saber se o que fazia estava certo. Dizia que só concordara por se tratar de mim. Para me ajudar. Não disse que era para ajudar a Sylvia, sabia agora o que ela havia dito lá no camarim. Prometeu fazer todo o possível para descobrir a origem da fita, quem a havia gravado e se a pessoa era o próprio chantagista, e se não fosse, de que maneira a fita teria chegado às suas mãos.
Três semanas mais tarde, em dezembro, eu e Rod fomos portanto a Nice, e estávamos agora, na tarde deste 13 de dezembro no aquário do Museu Oceanográfico de Monte-Carlo. Diante de outra divisão...
110Isso aqui parece uma espécie de perca denteada disse Bracken.
Ele deve ter perdido o juízo, pensei comigo. Aqui se tratava de coisa muito mais importante do que aquela porcaria de peixe. Rod Bracken estava realmente à beira da loucura e, como sempre, procurava disfarçá-lo mostrando-se indiferente. Meio idiota, mas era seu jeito. Um animal gigantesco...
E vocês pagaram disse Frederic. Tínhamos continuado a andar;
muito devagar.
Claro que pagamos. Não tínhamos outra saída. E aquele cachorro
vai continuar com a sua chantagem enquanto ele for vivo! Enquanto nós formos vivos! Como foi possível fazer essas gravações, Frédéric? Tecnicamente?
Eu lhe mostro mais tarde lá na rádio.
Então não conseguiu achar nenhuma pista que leve a esse patife?
perguntei.
Infelizmente nada disse Frédéric. Tudo isso é horrível. Mas...
me desculpe... foi horrível também o que a sra. Moran disse lá no camarim.
Nervos disse eu. Pura questão de nervos. A Sylvia é a
melhor e a mais bondosa mulher do mundo.
Frédéric me olhou mudo por muito tempo, depois virou-se.
Se havia um microfone no camarim, e a conversa foi gravada, deve
ter sido alguém que entende do assunto, não acha Frédéric? perguntou
Rod.
Perfeitamente concordou esse Em quem está pensando?
Ora disse Rod durante a transmissão havia dois técnicos de
som na sala de controle, não é?
Sim.
Um deles nos chamou a atenção, a mim e a Kaven. Aquele que
vivia tomando SCHOUM, e logo uma boa dose de vinho tinto em cima. Um pé-de-cana, hein?
Frédéric concordou.
O senhor não acha possível que ele...
Jean Duval?
Não sei o nome. É aquele beberrão.
Verifiquei em detalhes a atividade de cada um. O único que poderia ter feito aquilo é Duval, o outro nem entra em cogitação.
E o que foi que descobriu do beberrão? perguntou Rod.
Você não ouviu: Nada disse eu.
Mas eu gostaria de dar uma palavrinha com aquele... como é
mesmo o nome? Aquele pé-de-cana.
Frédéric ficou olhando para ele. Estávamos agora diante de uns peixes cujo nome Rod murmurou. Eram peixes engraçados com seus compridos focinhos em forma de tubos, mais compridos ainda do que o corpo.
No momento, no entanto, não estávamos a fim de achar nada engraçado.
111Como é? Posso falar com aquele pé-de-cana? perguntou Rod.
Até que enfim deixara de se interessar pelos peixes.
Não respondeu Frederic.
Como não? Ele se mandou? Então deve ser ele o homem.
Não é não. Não pode ser, Bracken disse Frederic.
- Como não?
Porque logo depois daquele programa, Duval quebrou uma perna e
teve que ser internado. Ali ele não pôde continuar a beber. No terceiro dia entrou em delirium tremens. Quatro dias depois estava morto. Como o senhor vê, não foi Duval. Ele não teria nem tempo de passar adiante as fitas que eventualmente tivesse gravado. Além disso, teria sido praticamente impossível fazê-lo, pois havia outras pessoas na mesa da sala de controle.
É uma pena disse Rod.
Frédéric nos contou tudo que fez para encontrar alguma pista. Realmente, não poderia ter feito mais.
Não achou, nem sombra de pista. Nada.
Quando saímos do museu, já estava escuro. Nossos carros eram os únicos no estacionamento. Partimos em direção à cidade. Frédéric ia na frente. Paramos no pátio da transmissora e subimos mais uma vez até o primeiro andar, para o camarim onde eu estivera meio ano atrás. Frédéric então me mostrou a caixinha preta em cima da mesa. Como o senhor sabe, sr. Juiz, os camarins em teatros, cinema e televisão têm esse tipo de interfone. Através dele comunica-se aos artistas a hora de entrarem em cena, o tempo de que ainda dispõem, e outros avisos.
O aparelho funciona nos dois sentidos esclareceu Frédéric.
Como?
Normalmente funciona como alto-falante. A sala de controle chama o artista em seu camarim. Mas aqui, o senhor está vendo esse botãozinho branco?
O que tem ele?
Se o artista, ou quem quer que seja, apertar o botão, a caixinha
funciona como microfone, e a voz pode ser ouvida lá na sala de controle.
Um momento disse eu. Então é possível que a caixinha
tivesse funcionando o tempo todo como microfone, e que alguém gravou tudo o que foi dito.
Não. Impossível.
Por quê?
Porque o botão teria que ser apertado constantemente. A sra.
Moran não deve ter feito isso.
Garanto que não.
Exatamente por isso que é impossível.
Mas a conversa foi gravada.
Certo disse Frédéric Mas como? Como?
Não tenho idéia respondi.
112Nem eu disse Frederic. É isso que me deixa desesperado.
Eu e Rod Bracken também estávamos.
O que adiantava? Sem ter conseguido coisa alguma, voltamos a Beverly Hills. Uma semana mais tarde veio novamente um pequeno rolo de fita. Dessa vez continha apenas a voz disfarçada que dizia:
Os senhores nada conseguiram em Monte-Carlo. Nunca conseguirão coisa alguma, meus senhores. Não sou nenhum monstro. Os originais estão em meu poder, mas de agora em diante não exigirei mais quantias tão vultosas. A partir do próximo mês, peço apenas dez mil dólares mensais, a serem remetidos da maneira que já lhes é conhecida. Se no dia sete de cada mês não estiver de posse do dinheiro, vendo os originais aos concorrentes da SEVEN STARS. Tenho a certeza de que me oferecerão uma boa quantia. Venero-a realmente como a maior artista de nossos tempos. Com os maiores protestos de admiração e estima...
A partir do dia primeiro pois, por todos os meses e anos, até o dia de hoje, Rod Bracken enviou e ainda continua a enviar pontualmente, os dez mil dólares... isentos de impostos...
O senhor pode imaginar agora, sr. Juiz, o pânico em que eu me encontrava na época em que a Babs aDocceu em ParíS? E ainda daquele jeito?
Se alguém revelasse uma palavra que fosse, seria uma catástrofe de efeito imediato, incomensurável, imprevisível...
Sr. Norton! Sr. Norton!
Senti alguém sacudir meu braço meio violentamente. Abri os olhos de pálpebras pesadas, olhos que ardiam atrás dos vidros escuros de meus óculos. Levou algum tempo até eu saber aonde estava. O cheiro! O cheiro de lisofórmio é que me trouxe à realidade: Hospital Sainte-Bernadette! Corredor diante da porta da sala de exames. Banco branco. Eu adormecera sentado naquele banco branco. E não era de espantar. A segunda noite de agitação e aflição. Zurique. A fuga. Sylvia. Suzy. Babs. Não; não era de espantar! Tudo me parecia muito escuro, nublado. Minha cabeça latejava. Tinha um gosto horrível na boca.
Sr. Norton, levante! Temos que falar com o senhor a respeito da
criança. Uma voz desagradável. Zangada. Irritada. Pisquei com grande
esforço. Depois o reconheci. Usava um jaleco branco, estava inclinado por cima de mim, com a mão sobre o meu braço. Ele, o encantador dr. Sigrand, me acordara. A seu lado estava mais alguém.
113Ergui-me cambaleando. Me sentia tão mal! Com a língua colando no
céu da boca, consegui dizer: Já vai. Dei um passo e tropecei. Dr.
Sigrand me segurou. Tudo que ele conseguiu dizer foi um Ora!
Imperativo.
Com a visão meio nublada e os óculos escuros, vislumbrei ainda
uma segunda figura. Mas não conseguia acordar. Como devia ter dormido!
Dr. Sigrand pigarreou:
Posso lhe apresentar: sr. Paul Norton, dra. Reinhardt de Nurenberg, onde trabalha numa clínica pediátrica. Está conosco há seis meses.
Boa-noite, doutor disse eu em alemão com a voz rouca, ainda
meio zonzo.
Boa-noite, sr. Norton respondeu uma calma e doce voz feminina
em alemão.
Tirei os óculos.
A luz de repente me ofuscou. Entrava pela janela em frente. Entre farrapos negros de nuvens, brilhava um claro e fraco sol de inverno. A luz era tão clara que via duas pessoas à minha frente apenas como silhuetas. Realmente já amanhecera! Era dia, sabe Deus que horas do dia!
Desculpe disse eu... não ouvi bem... pensei que fosse homem...
Ruth Reinhardt disse a médica. É um prazer conhecê-lo, sr.
Norton. Ela me estendeu a mão. Era uma mão pequena, de aperto
enérgico. Por que razão estaria essa mulher dizendo que era um prazer me conhecer?
A dra. Reinhardt é especialista no ramo que precisamos para a
Babs. Por isso vai conversar com o senhor, lhe explicar tudo, sr. Norton.
Obrigado disse eu, agora novamente em francês. Obrigado,
doutora A luz que penetrava pela janela era tão violenta que eu mal podia
distinguir os traços da médica. Via apenas que era de estatura mediana, esbelta, o cabelo penteado liso para trás, a cabeça estreita. Pela voz, devia ter seus trinta anos.
Temos muito que conversar, sr. Norton disse a voz também em
francês.
Sim senhora disse eu. Que... e pigarreei que horas
são?
Nove e dez, sr. Norton disse a dra. Reinhardt.
Então eu tinha dormido sete horas? De repente estremeci, pois me voltou a lembrança de tudo.
Sr. Norton disse o dr. Sigrand - o senhor esta tão... está
sentindo alguma coisa?
Medo respondeu a doutora. Evidente que ele tem medo.
E em alemão para mim: Não é, sr. Norton?
114Apenas consegui mover a cabeça afirmativamente. Sim, estava com medo. Mas apenas por mim, pela minha existência. Babs, ora, o que me importava ela?
Estava quase totalmente escuro no grande cômodo. Por cima da cama da paciente, uma luz azul-escura. A princípio não vi quase nada... depois fui distinguindo as silhuetas do velho dr. Levy e do dr. Demoulin. Estava em pé diante da cama, olhando para a Babs que agora também distingui. Deitada de bruços, não se mexia. No primeiro instante pensei: morreu! Depois me ocorreu que seria a melhor coisa que poderia ter acontecido, durante o tempo em que dormi, mas logo me lembrei que não devia ter morrido, pois do contrário a doutora não teria dito aquilo. Não, morta ela não estava.
Aproximei-me, e me inclinei sobre ela. Via-se apenas a cabeça;
aquela cabeça pequena com os cabelos pretos despenteados, colando de suor. Inclinei-me mais. Nada. Me ergui. Diretamente atrás de mim estava a doutora; quase colidimos.
Ela não está respirando disse eu.
Está sim, sr. Norton. Muito de leve. Dorme profundamente. Nós
lhe demos um remédio.
Que remédio? perguntei eu.
Pode falar alto à vontade disse o dr. Sigrand. - Também a ele
via apenas como silhueta, e não conseguira ainda distinguir as feições da doutora. Era um ambiente meio fantástico, aquele quarto com aqueles vultos, e a criança parecendo morta, mas vivia. Um remédio depois da punção.
Por que esse médico me odiava tanto? matutei eu. Até aqui, em meio
a essa escuridão em que mal conseguia vê-lo, sentia seu ódio. Era só prestar atenção à sua voz...
Punção? Ouvi o dr. Demoulin pigarrear. Depois veio se encaminhando para mim juntamente com o dr. Levy. Dr. Demoulin disse:
Nada mais temos a fazer aqui, sr. Norton. A criança está em boas
mãos. Ele me estendeu a mão.
Estou à sua disposição noite e dia. Sempre que precisar disse o
pequenino dr. Levy, me apertando a mão.
- Obrigado doutor disse eu.
Os dois médicos cumprimentaram os colegas e saíram.
Punção raquiana disse a dra. Reinhardt é uma punção para
se obter líquido da espinha e do cérebro. Durante o nosso exame essa punção foi indispensável... evidentemente mediante anestesia local.
115
 Por que indispensável?
Para ter certeza disse o dr. Sigrand.
Certeza de quê? perguntei. Babs gemeu no sono.
Sobre a doença respondeu o dr. Sigrand, e lá estava ela novamente aquela voz fria, irritada e agressiva. Agora sabemos... infelizmente... com certeza absoluta. Meus receios eram bem fundamentados. A Babs está com meningoencefalite, portanto uma inflamação das membranas e do
cérebro. Fiquei calado, as mãos fechadas em punho. Sinto muito, mas
é um fato disse ele, e tive a impressão de que o falava com certa
desafronta. Ele, um médico! Por aí o senhor vê, sr. Juiz, como estava me sentindo naquela manhã.
Tudo isso é conseqüência da otite dizia agora a doutora E
essa por sua vez, é resultante do sarampo. Falava com toda calma.
Infelizmente no caso, as duas infecções graves do sistema nervoso ocorreram juntas. As meninges são as membranas que envolvem o cérebro. Meningite, portanto é a inflamação destas membranas. No caso da Babs esta inflamação progrediu.
Progrediu como? perguntei eu, de repente sentindo frio.
A inflamação se estendeu. Passou para os vasos, e pelo sangue
penetrou no tecido do cérebro. Surgiu assim a encefalite, ou seja a inflamação do cérebro.
Inflamação do cérebro repeti eu.
Esses dois tipos de inflamação na prática raramente aparecem
isolados continuou a doutora. O diagnóstico e o tratamento nesses
casos dependem do tipo do bacilo e da modificação do líquido do cérebro. Para isso é necessário a punção raquiana. Antes que o paciente tenha tomado qualquer antibiótico, pois aí seria difícil reconhecer nitidamente os bacilos. O senhor está entendendo?
Estou, sim respondi desta vez em alemão.
E a Babs continuava a não se mexer, parecia morta. Morta. Mas estava viva. Viva.
Por enquanto...
O laboratório, os médicos, todos nós ainda não estamos inteiramente seguros se a doença foi provocada apenas por bactérias, ou por bactérias e um vírus. Tudo parece indicar a existência de um vírus... está ficando complicado para o senhor?
É pior quando entra vírus? perguntei eu.
É respondeu ela. <
Era coisa de louco, mas de repente ouvi a voz de John Williams
cantando a canção predileta da Suzy: “O Dieu, merci, pour ceparadis que
s’ouvre aujourd’hui...”
É pior por quê?
O tipo de tratamento se torna mais complicado. Vírus são mais difíceis de serem tratados do que bactérias.
116Mas talvez consigamos. Já conseguimos tantas vezes.
- A dra. Reinhardt é pediatra e especialista em neurologia. Por isso a convoquei disse o dr. Sigrand.
Aquiesci.
“...Pour le plus petit, le plus pauwefils, merci, Dieu, merci, pour ce paradis...” soava a voz-fantasma em meus ouvidos.
Passei a mão no rosto. Estava com a barba por fazer.
Ainda fizemos diversos outros exames continuou a doutora
Os glóbulos brancos aumentaram muito; a pressão do líquido cerebral...
Dieu! Dieu! Dieu!
... graças a Deus não aumentou. Já iniciamos o tratamento.
Com quê?
Hemoglobulina, antibiótico disse a médica com sua voz calma.
Um medicamento semelhante à penicilina. Intravenoso. Derivado da Cortisona.
Quanto tempo?
Eu já não agüentava mais. Estava enjoado. O que seria de mim, se...
Isso ninguém pode dizer, sr. Norton disse meu inimigo íntimo, o
dr.Sigrand, com certo prazer. Ora bobagem, evidentemente, mas agora eu também o odiava. Disse com prazer sim, pensei eu, já sem saber o que estava pensando, de medo por mim mesmo, de raiva do dr. Sigrand, por causa do meu mal-estar.
O senhor precisa se controlar ouvi ao longe a voz da doutora.
Sua mão está fria, fria como gelo Só aí percebi que ela segurava minha
mão esquerda com a sua direita, como se quisesse me amparar. Retirou a mão.
E quais são as chances de ficar boa?
Nós vamos conseguir, sr. Norton. Não sabemos ainda como vai
reagir a esses remédios. Um pouco de paciência o senhor precisará ter.
Um pouco de paciência...
O Dieu, merci.
Mas pode ser também que o senhor consiga salvá-la, mas que fique
alguma lesão... séria, talvez...
Sr. Norton, é realmente muito cedo para Çazer qualquer prognóstico; muitas vezes tudo dá certo.
Mas muitas vezes não, doutora respondi eu rispidamente.
E muitas vezes sim, sr. Norton.
Muito bem disse eu Então, já que todos sabemos em que pé
estão as coisas, eu tenho que lhes contar uma estória. Eu já lhe disse ontem à noite, dr. Sigrand. Nas circunstâncias atuais, é uma estória da maior importância.
Estamos ouvindo, sr. Norton disse o dr. Sigrand.
117Não; aqui não respondi eu. Mas antes tenho que telefonar,
urgentemente. Rod Bracken precisava de notícias; ele já estava esperando
a noite inteira e a manhã.
Então vamos para minha sala disse a médica em alemão.
Inclinei-me sobre Babs. Nada. Coloquei a mão com muito cuidado na sua nuca. Estava quente e molhada de suor.
A febre subiu mais ainda disse a doutora.
Pobre Babs! disse eu, e ao dizè-lo, senhor Juiz, senti um ódio,
um ódio.tamanho como nunca na vida. Ódio da Babs. Sei até perfeitamente o que pensei: Era só isso que faltava você me arrumar, seu fedelho!
O senhor gosta muito da menina, não é, sr. Norton? perguntou
a dra. Reinhardt.
Muito disse eu. Como se fosse minha filha.
Pegou meu braço e me conduziu até a porta, que ela mesma abriu. Ainda me virei mais uma vez, já recolocando meus óculos escuros, com os quais era mais difícil ser reconhecido. Olhei para Babs e pensei: Talvez ela ainda venha a morrer. Mas logo depois me ocorreu: Merda! Sempre morrem as pessoas erradas!
A porta se fechou atrás de nós três. Estávamos no corredor. Passamos por toda a enfermaria silenciosa. Depois chegamos à ala que eu já conhecia. Aqui ficavam as salas da administração, os gabinetes dos médicos. Aqui, o silêncio acabara.
Uma enfermeira passou correndo por nós, chamando:
Michèle! Michèle! O japonês agora está em Schiphol! Os terroiristas prolongaram seu ultimato e ainda não mataram ninguém! Vem! Estão focalizando Schiphol e a Embaixada!
O seqüestro no Haag. Até já tinha esquecido...
35
Prezada dra. Reinhardt:
Remetemos a seguir o vocabulário e sons do nosso filho Martin, para que a senhora e sua equipe possam entendê-lo, com mais facilidade.
- Mãe..-.
Pai
i o irmão Freddy ;
O ele mesmo :->..:
ééééh ruim, horrível, desagradável ,
mm carro, táxi
m negócio do pai (seguro) ;
118mmeh bonde
mmtut ônibus
mmtututut comboio, trem
Isso estava escrito em alemão, manuscrito, numa folha de papel comum. A lista ainda’continuava. Li as primeiras linhas depois de ter contado ao dr. Sigrand e à dra. Reinhardt tudo que eles deviam saber. Contei que há dois anos Sylvia tinha feito aquele apelo pela televisão transmitido para o mundo inteiro, pedindo auxílio para as crianças excepcionais. Falei nas palavras de ódio e revolta pronunciadas por aquela mesma boca no pequeno camarim, contra aquelas crianças. Falei da quantia que há dois anos ela vinha pagando a um estranho que gravara a cena, e a usara para chantagem. Contei que a Sylvia agora se encontrava em completo sigilo na clínica do dr. Delamare, logo ali na Rue Cave onde se submetera a uma plástica completa do rosto... Contei tudo que aqueles dois médicos responsáveis por Babs tinham que saber, se eu quisesse impedir uma tragédia, o que era imprescindível, para o meu próprio bem.
Ouviram-me em silêncio. Quando terminei, ficaram olhando para mim. Não agüentei. Desviei o olhar para a folha de papel na mesa da doutora e que estava virada para mim. A mesa estava coberta de papéis, cronômetros, embalagens de remédios, livros, uma máquina de escrever, dois telefones. A sala era espaçosa e clara; a luz do sol de inverno que aí entrava ia aos poucos cedendo lugar à sombra, pois sobre o céu de Paris passavam rápidas pedaços de nuvens negras; a ventania da madrugada havia aumentado.
Uma das paredes da sala era coberta por uma estante de livros. Muita literatura especializada e pastas, provavelmente relatórios dos doentes. Logo ao entrar fiquei surpreso em ver que a sala mais parecia um quarto de brinquedos de um jardim de infância. Viam-se bolas jogadas por toda parte, bonecas, aros, jogos de dados e de armar, e uma série de outros brinquedos bem primitivos, a maior parte daqueles com pinos ou figuras de encaixe. Havia também blocos de madeira maiores com grandes parafusos igualmente de madeira, pequenas tábuas com recortes quadrados de diversos tamanhos e cubos correspondentes. Quebra-cabeças bem simples, e muito papel rabiscado pelo chão. Uma quantidade enorme de caixas de tintas e pincéis, cubos de armar de todos os tipos. Tudo muito colorido.
Nas paredes viam-se alguns desenhos, manchas vermelhas de forma indefinida e símbolos, rabiscados em aquarela. Muitos destes rabiscos eram feitos diretamente na parede branca. Junto à janela estavam duas cadeirinhas de roda, tão pequenas que pareciam de anões. No encosto de uma delas estava jogado um pedaço de pano sujo de tinta. Havia também um toca-disco e uma quantidade de discos numa prateleira, um pandeiro e um quadro-negro.
No centro deste quadro, estava preso um disco redondo que devia representar o mostrador de um relógio. Este possuía apenas um ponteiro de papelão. Por dentro estavam marcados os números para as doze horas.
119Por fora, figuras singelas desenhadas por adultos, representando crianças que dormiam, comiam, brincavam. Debaixo das figuras, palavras isoladas como: MEIO-DIA, TARDE, NOITE, MANHÃ, DORMIR, etc. Havia ainda outras palavras presas neste estranho quadro: PELE, BORRACHA, PÊLO, CALOR, INVERNO, SONO, ESCOLA, CREME, CAMISA, TERNO, PRIVADA, tudo evidentemente em francês.
Debaixo dessas palavras, escritas com muita nitidez no quadro que quase encostava no chão, uma ou diversas crianças tentaram reproduzi-las a giz. As tentativas davam pena, eram uma rabiscação tremida, falha, ilegível.
Esses rabiscos me haviam chocado especialmente logo que entrei, mais ainda do que aquelas duas cadeiras de roda. Viam-se também livros de figuras na sala da dra. Reinhardt; espalhados pelo chão, na maioria abertos e violentamente rabiscados. Por fim, seis pequenos capacetes de ataduras traçadas, mas que não eram fechados como os dos motociclistas. Imaginava quem poderia usar esses capacetes, para que na hora do tombo não quebrassem a cabeça. Muitos brinquedos tinham sido barbaramente pisados, rebentados. A doutora segurava uma pequena ovelha de pelúcia na mão.
Ela estava sentada atrás da mesa lotada; o dr. Sigrand a seu lado, e eu em frente aos dois. Em cima da mesa ainda havia uma moldura com uma fotografia talvez, mas que estava virada de costas para mim. O silêncio que se fizera depois de eu ter terminado minha narrativa perdurava. Eu estava ficando cada vez mais nervoso e furioso. Por que nenhum dos dois se manifestava? Por que isso’
Finalmente, com expressão de quem ao olhar para mim via algo sumamente asqueroso, o dr. Sigrand disse:
Nós lhe agradecemos o que nos contou, sr. Norton. Eu agora
entendo sua posição.
O senhor a entende? sem a menor razão, fiquei realmente
satisfeito, parecia ter encontrado um amigo, e logo o dr. Sigrand! Mas foi só por alguns instantes.
Entender disse o dr. Sigrand. Eu não me expressei muito
bem. Melhor do que “entender” seria “respeitar”. Eu respeito sua posição, sr. Norton.
- Hm.
Eu a respeito na mesma proporção que ela me enoja acrescentou ele logo a seguir.
Ergui-me.
Escute aí comecei eu fora de mim, mas ele também levantou, e
encostando um dedo no meu peito, caí de volta na cadeira.
Escute aí, o senhor disse ele, enquanto a doutora olhava para
mim muda Cada um de nós faz o que é sua obrigação, ou que ele acha ser
sua obrigação. Nós aqui achamos que a nossa é ajudar aos doentes da melhor maneira e ao máximo.
120O senhor, sr. Norton, acredita ter como obrigação salvaguardar a carreira da sra. Moran, sua estima e seus negócios, porque isso está intimamente ligado a seu bem-estar...
Se o senhor disser mais uma palavra...
Ora, fique quietinho, sim? Eu ainda não lhe disse que ia colaborar
com seus míseros esforços. Eu não sou obrigado a fazê-lo. Ninguém poderá
me obrigar, muito menos o senhor Eu já lhe disse, fique quietinho! Tão
irritado como agora eu ainda não o tinha visto. A doutora continuava a olhar para mim sem dizer uma única palavra, enquanto o dr. Sigrand se aproximou:
Pessoas como a sra. Moran e... fez uma pausa ofendedora...e
como o senhor, trazem mais desgraça para o mundo do que todas as Docnças de que tratamos aqui juntas.
Isso eu não admito! gritei eu erguendo-me de um salto.
Então por que não vai embora? disse ele, o rosto bem junto ao
meu.
Ande, pode ir! Faremos pela menina tudo que for humanamente
possível! Mas o senhor, desapareça! Imediatamente!
Fitei-o, perplexo. Estava entregue às mãos desse sujeito, disso não havia a menor dúvida. Por isso respondi logo, de rabo entre as pernas:
Desculpe doutor, é o nervosismo. Não foi de propósito. O senhor
tem toda razão.
Prezado colega... foram as únicas palavras que a doutora
falou.
Pode deixar, ela olhou para mim. Tudo será mantido em
segredo, exatamente como o senhor deseja.
Obrigado disse eu. Que o idiota tivesse seus ataques comigo,
contanto que ele mantivesse tudo em segredo. Quanto a seus pontos de vista, ele que fosse tomar no cu. Eu lhe agradeço, dr. Sigrand.
Não tem o que agradecer disse ele me fitando com infinita
tristeza. Agradeça à dra. Reinhardt.
Não estou entendendo... à dra. Reinhardt, por quê?
Durante a sua conversa ela escreveu alguma coisa num papel e me mostrou. Eu tinha visto. Estou fazendo apenas o que ela pediu.
E o que foi? perguntei eu, olhando de um para outro.
Diga a ele disse o dr. Sigrand.
Pedi ao dr. Sigrand para manter tudo em segredo - disse a
doutora. Ela agora não olhava mais para mim. Olhava para a folha de papel na qual eu tinha lido as palavras e sons que formavam o vocabulário de Martin.
Por que a senhora fez isso? perguntei.
Ela virou a cabeça e mais uma vez ficamos em silêncio. O que se passa com essa mulher? Pensei eu. Olhei para o dr. Sigrand. Este olhou para mim. Estranho... Não agüentei. Voltei a olhar para o papel e continuei a ler:
Si sim
na não
121oja aprovação satisfeita
chchch sino, campainha de telefone, tudo que tem relação a som.
A mãe da Babs disse o dr. Sigrand no momento não entra
em cogitação. Não podemos arriscar, tão pouco tempo depois de uma operação plástica.. e sua voz era escárnio puro... dando-lhe uma notícia
dessas, mesmo que ela seja de opinião que crianças excepcionais devam ser imediatamente exterminadas. Ela poderia exigir que liquidássemos a Babs, pois afinal existe o perigo... e ele sempre existirá, sr. Norton, da criança sofrer alguma lesão incurável. Mas nós aqui não liquidamos nossos pacientes. O senhor terá que nos desculpar. A sra. Moran, e o senhor também, terão que transigir e ser condescendentes... afinal nós também estamos fazendo o
mesmo com os senhores. E o tempo inteiro o homem que dizia essas
palavras parecia estar lutando contra as lágrimas Por outro lado, nós aqui
na Casa de Saúde temos nosso regulamento. A Babs não poderá decidir por si o que será feito dela, nem o tratamento que deverá receber. Ela não poderá nos autorizar a agirmos segundo um critério que nos pareça melhor. Outra
pessoa terá que fazer isso, sr. Norton. Fechei os olhos. Era só o que
faltava! Vejo que o senhor me entendeu. Só poderemos ficar com a Babs,
sr. Norton, só poderemos executar seus desejos, se houver alguém que esteja pronto a se responsabilizar por ela...
Eu! Eu responsável pela Babs!
... e que nos dê por escrito os direitos previstos por lei, e que possa
ser encontrado a qualquer hora, caso seja necessário a autorização para algum tratamento especial.
Que tratamento especial?
Os mais diversos. O senhor não aceitaria isso, não é?
Por que não? Claro que lhes dou essa declaração.
Ele deu uma risada.
Será que a senhora então podia fazer o favor de preencher o
formulário?
Olhei para a doutora. Ela colocou a máquina na sua frente e, empurrando a ovelhinha para o lado, tirou um formulário da gaveta, prendeu-o na máquina juntamente com carbono e papel-cópia, e começou:
Sobrenome... Norton... nome?
Não me lembro disse eu. Qual é mesmo meu primeiro nome,
doutor?
Paul disse este.
Paul disse e bateu a doutora. Agora seu nome verdadeiro.
Este precisamos ter. Philip Kaven. O senhor tem passaporte aí?
Tenho disse eu estendendo-o
Procurou o número e colocou-o no devido lugar do formulário.
Olhei mais uma vez para a-folha com o vocabulário de Martin e li:
Au-Au gato ou cachorro.
Gogó galinha
1ZÍGuga passarinho ou alguém que está “com parafuso solto”
Bata boa tarde
Ago obrigado
Se ele faz bico como quem quer beijar, é porque deseja qualquer coisa.
Se deita a cabeça na mesa ou nas pernas e não levanta os olhos, ele está ofendido.
O verdadeiro nome da mãe? Ela é alemã, se não me engano, e
Moran é apenas seu nome de artista, não é? perguntou a doutora Ruth.
Susanne Mankow - respondi eu. Nascida em Berlim em vinte
e cinco de maio de 1935.
A doutora continuava a escrever.
E eu a ler:
Quando Martin estica a língua, é porque está com sede ou fome.
Residência?
Dei o endereço da Sylvia.
Li:
Quando Martin aponta para o chão, ele normalmente se refere ao metrô, a um túnel ou passagem subterrânea.
Atualmente se encontra na Clínica do dr. Delamare disse e
escreveu a doutora.
Tive um sobressalto:
Por favor...
Ninguém saberá disso. Os papéis ficam trancados. Sempre disse
o dr. Sigrand.
E o senhor, qual é sua residência?
Respondi e ela escreveu.
Continuei a ler:
Quando Martin põe a mão no ombro, significa escola (mochila).
A doutora falava e escrevia:
... nos dá, com a assinatura desse formulário, seu consentimento
no que diz respeito a todos os itens acima especificados, em relação a... aqui também teremos que colocar o verdadeiro nome... Babs, é Barbara, não é?
- É.
... Barbara Mankow... nascida onde e quando, sr. Norton?
Em Beverly Hills, cinco de setembro de 1962.
Enquanto ela escrevia eu lia com tanta raiva, me sentindo tão perdido que eu nem sabia mais o que estava fazendo.
Como um idiota, continuei a ler a carta daqueles pais:
Espernear significa para Martin ginástica.
Pronto disse a doutora Data de entrada... enquanto dizia,
ia escrevendo: vinte e cinco de novembro de 1971...
123E eu li:
Se por acaso a senhora não entender o que Martin diz, prezada doutora, entregue-lhe um bilhete, por favor.
A dra. Reinhardt deve ter percebido que eu não tirava os olhos da carta por isso, enquanto soltava o formulário da máquina disse:
Isso é da minha clínica em Nurenberg depois me entregou o papel
e uma esferográfica. Assine por favor. Original e cópia. Com seu verdadeiro nome. Em cima da linha, embaixo, à direita.
Peguei a caneta. Minha mão tremia tanto que tive que segurá-la com a outra enquanto assinava. Mesmo assim saiu apenas um rabisco semelhante àquele no quadro-negro. Com isso você assinou irremediavelmente sua sentença de morte, pensei comigo. Não. Irremediavelmente também não. Não sejamos tão pessimistas. A Babs poderá morrer, nesse caso não será sentença de morte. Ela também poderá ficar inteiramente curada. Aí também não será. Se no entanto ela escapar com vida e ficar como Martin, bem, nesse caso... ora, por que entregar os pontos? Por que afinal “sentença de morte”? Em qualquer um dos casos você poderá sempre se mandar e...
Não! pensei logo. Não! Isso é que agora não poderá mais, Kaven! Aí você estará e ficará na rua da amargura. Portanto, é uma sentença de morte. Mas logo pensei (sempre fui otimista, sr. Juiz), afinal são sempre duas chances positivas contra uma negativa. 2 contra 1. Logo... logo havia uma chance muito grande de que tudo saísse bem, se os médicos acertassem, ou se a Babs esticasse as canelas. Em ambos os casos, eu continuaria aos olhos da Sylvia mais altruísta e heroicamente-herói do que antes.
A doutora tinha relido o formulário e entregue os papéis ao dr. Sigrand. Este não disse uma palavra, cumprimentou a colega e saiu da sala. Enquanto a porta esteve aberta ouvi uma voz masculina dizendo alto:
... três dos reféns sofrem do coração, um é diabético e nenhum...
A porta se fechou atrás do médico. Olhei para a doutora. Pela primeira vez desde que a conheci, olhei direito para ela.
Para descrever aquele rosto de modo que o senhor obtenha uma impressão ao menos parcialmente certa, sr. Juiz, até hoje ainda me faltam as palavras, ainda mais porque naquela manhã eu pensava e sentia de maneira tão diferente. Como? Isso relatarei agora. Posso lhe garantir uma coisa: Naquela manhã não havia nada que me fosse tão indiferente quanto o rosto daquela médica de Nurenberg. O que posso dizer hoje, a respeito desse rosto, apesar das grandes modificações pelas quais passei, satisfaz tão pouco; mas tão pouco... Mesmo assim vou tentar.
124Ruth Reinhardt tem cabelos castanhos; usa-os bastante curtos. Olhos também castanhos com cílios espantosamente compridos. Sua pele é muito clara e lisa. A boca grande. Os malares salientes, o que dá a seu rosto qualquer coisa de eslavo. Seus dentes são bonitos, as orelhas pequenas e coladas; o nariz, pequeno e reto.
Ela tem... qual seria a palavra mais acertada?... tem o rosto mais disciplinado que já vi. Um rosto alerta, de inteligência marcante, com cunho de tolerância e intuição, mesmo em casos extremos. Era um rosto triste, sr. Juiz. Triste como o rosto daqueles que viram muito sofrimento, viveram em meio a muita dor. Apesar disso cheio de força. Nunca vi aquela médica sorrir em conversa com adultos. Mas quando em companhia de crianças, sempre, qualquer que fosse a ocasião, sempre a vi sorrindo. Ao escrever o presente, isto é em 1973, ela contava trinta e cinco anos; era solteira. Conforme contou mais tarde, tinha de vez em quando um caso com algum homem, quando este lhe agradava.
Sua ânsia de saber, de pesquisar, de conhecer a verdade era imensa. Não tinha filhos, mas lembro-me de ter dito certa vez:
Todas as crianças que me são trazidas, são meus filhos! Toda cura
me traz riqueza e felicidade. Toda piora, toda morte, me empobrece, me torna infeliz. Não importa que se trate de crianças relativamente normais ou daquelas diante das quais eu mesma tenho que fechar os olhos quando as vejo pela primeira vez.
Ruth Reinhardt não é bonita no sentido normal da palavra: hoje posso julgar isso; não é uma Sylvia Moran. Uma coisa no entanto ela tem superior a todas as mulheres que já conheci: sua gargalhada. Possui a gargalhada mais maravilhosa, mais gostosa que já ouvi. Mas só no meio de crianças: de crianças doentes. A força dessa gargalhada é tão grande que até as mais desgraçadas daquelas pobres criaturas, as completamente retardadas, faziam coro com ela. Pude observá-lo mais tarde, por diversas vezes.
O senhor deve ter notado, sr. Juiz. que escrevo esse relato em dois
estilos diferentes: o de acima e outro em tom arrogante, em linguagem
grosseira, agressiva. Não posso manter o estilo cínico ao descrever os que vivem no escuro, aqueles de quem falei a princípio, os altruístas incansáveis, que não se deixam desencorajar por nada nesse mundo a parte que então passei a conhecer, e de cuja existência até aí não tinha a menor idéia. Nesse caso escrevo, ou melhor sai diferente. Além de Ruth Reinhardt. encontrei ainda muitas pessoas semelhantes. Ela foi a primeira. Peço desculpas se o que tenho a dizer soa meio patético. Digo e escrevo apenas o que hoje realmente sinto:
Ruth Reinhardt é uma pessoa que dá tudo. Não importa a quem. O importante para ela é dar, o que no seu caso específico, significa, ajudar. Com isso ela se dá a si mesma. Até o fim de minha vida, me lembrarei dela como de uma criatura que, receio eu, sempre deu mais do que devia... até seu fim.
125Isso talvez lhe dê uma imagem bastante imperfeita da mulher que estava diante de mim naquela manhã de 25 de novembro de 1971, em Paris, no Hospital Sainte-Bernadette. Uma imagem de Ruth Reinhardt...
Eu lhe agradeço, doutora disse eu depois que o dr. Sigrand
tinha saído da sala. Mas o que tem esse médico contra mim? Eu não fiz
nada a ele! Por que me trata dessa maneira?
Também os médicos não passam de criaturas humanas, sr. Norton
respondeu ela. O dr. Sigrand, esteve casado durante doze anos. Tiveram um filho, excepcional, espástico. Ano após ano ele foi se agarrando mais àquele menino, achando que poderia melhorar... um pouquinho que fosse. Há dois anos finalmente foi obrigado a reconhecer que no caso não existia a menor possibilidade de melhora. Ele é médico; ele sabe. Seu filho não tem chance!
Sinto muito falei.
Ele se conformou... heroicamente. A doutora brincava com a
ovelhinha. Imagine só, sr. Norton, o dr. Sigrand dirige uma clinica que
ajuda a crianças desse tipo, cura muitas, dá alta a outras que melhoram, e ele mesmo tem um filho que até morrer será apenas uma mísera massa viva, incapaz de jamais poder fazer coisa alguma.
Agora entendo.
Ainda não, sr. Norton. Há meio ano ele descobriu que a mulher o
enganava com outro homem, e que descuidava e odiava aquele filho. Um amante foi o refúgio desta pobre mulher.
A senhora disse pobre!
Sim, sr. Norton. Evidente que é. Pobre e desesperada. Nunca se
deve condenar alguém tão depressa. Todas as pessoas têm uma razão para agirem da maneira que agem. A esposa do dr. Sigrand se descontrolou. Deve ter sido horrível quando o marido veio lhe pedir explicação. Disse que não agüentava mais aquela criança e que havia realmente outro homem. Naquela mesma noite saiu de casa e foi para junto do amante. Divorciaram-se. O dr. Sigrand ficou com o menino. Ao terminar seu dia de trabalho, volta para casa, para junto do filho incurável.
Agora entendo.
Ainda não. O homem com quem a sra. Sigrand foi viver é muito
mais moço do que o ex-marido. É um rapazinho rico e mimado e que acaba de herdar uma fortuna. Vive com ela agora em Paris ou na Cote d’Azur. Para
126o marido, a mulher não existe mais. O rapaz nunca trabalhou; sempre viveu do dinheiro alheio e continuará a viver.
Como eu.
Isso não é da minha conta. Eu apenas quis lhe esclarecer porque o
dr. Sigrand, aliás uma pessoa admirável, o tratou daquela maneira, sr. Norton. Se não tivesse sido traído pela mulher, e ainda por cima com um homem daqueles, nunca o teria ofendido.
Naquele instante a porta se abriu bruscamente depois de uma rápida batida. Um médico meteu a cabeça para dentro e começou a falar sem fôlego:
Os terroristas acabaram de declarar que a execução terá início se
não ganharem de comer nem beber, e... Calou-se. Desculpe, não
sabia que... A porta fechou-se novamente.
Ruth Reinhardt parecia nem ter percebido a interrupção. Inclinou-se para a frente:
Preste atenção e verá que a maioria das pessoas carece é de
compreensão... de compreensão baseada na experiência, na vivência.
Fez uma pausa Compreensão repetiu mais uma vez quero dizer, as
pessoas não sabem como se portar diante de tais crianças... Não se assuste, faremos tudo para que a Babs fique boa novamente, mas as suas reações são bem típicas. Muitos erros são apenas conseqüências do maior constrangimento. As pessoas ficam com uma pena imensa. Reconhecem cedo que o filho não é uma criança malcriada, e sim retardada, mas não sabem como se portar. O senhor me entende?
Entendo. Falávamos alemão agora.
As pessoas de fora não tiram os olhos da criança, porque nunca
viram nada semelhante, ou viram, e sabem que não se deve ficar olhando. Esse é um comportamento tão pouco natural quanto o outro, e é considerado pelos pais imediatamente como repulsa.
Entendo.
Eu sempre digo em minhas preleções: seria tão importante conseguir mostrar aos homens, com exemplos práticos “É assim que se pode fazer também”, para eles verem como se age naturalmente com essas crianças. Sei que é difícil, pois elas têm um aspecto estranho, se locomovem de maneira estranha, procedem de maneira estranha, chegam até a ser repulsivas. É um
problema enorme Ela deu um suspiro Mas só assim, acho eu, é que se
pode livrar as pessoas do sentimento de culpa e constrangimento que sentem diante dessas crianças. Por que me olha dessa maneira, sr. Norton?
Porque a coisa me parece tão evidente, doutora respondi emocionado (pela primeira vez na minha vida realmente emocionado, sr. Juiz, coisa que não fiquei nem por ocasião da morte de meus pais, nunca!).
Muito bem disse ela. Veja só: nojo, aversão, repulsa...
tudo isso na verdade ocorre apenas por se sentirem perdidas diante dessas crianças. É a conseqüência de sentimentos de culpa; culpa por não conseguirem compreender... Compreender, essa parecia a palavra predileta da doutora.
127Por não compreender eu me sinto culpada, e reajo mal, com
violência e repulsa... Ficou olhando para aquela quantidade de brinquedos coloridos na sala, e sua voz foi se tornando mais baixa: Às vezes
também é apenas inadvertência... Ela abaixou a cabeça. Além disso
muitos pais ainda são severamente punidos. Lares se desfazem, como no caso do dr. Sigrand. A sensação de culpa vai se tornando insuportável e o desespero também. Sabe quantos desses pais se entregam ao álcool? Sabe quantos se suicidam? Principalmente aqueles que não aceitam os filhos, os repelem ou escondem... Nenhum deles escapa sem punição, a não ser que encontre seu
caminho a tempo... Levantou-se e começou a andar pela sala cheia de
brinquedos, as mãos no bolso de seu jaleco branco, um estetoscópio pendurado no pescoço. Temos que chegar a um ponto, sr. Norton, em que nossa
sociedade seja tão aberta, de modo a aceitar como parte integrante aqueles que nunca estarão em condições de realizar o mesmo que conseguem os que gozam de saúde...
Meu Deus, pensei eu, tudo isto a Sylvia disse daquela vez em MonteCarlo, tudo isso Rod Bracken escreveu para ela, e hoje me acontece exatamente igual!
Esse mundo continuou Ruth Reinhardt só será perfeito, e
esse deve ser o alvo de nossos esforços, quando nele houver lugar para os velhos e desamparados, para as crianças retardadas, para os cegos e surdos, os psiquicamente doentes, os desocupados... para todos enfim... O mundo só será bom quando aquele que goza saúde souber: não é mérito meu, nem honra alguma eu ser sadio! Assim como essa criança está doente, poderia ser eu. Além disso é também minha obrigação entender os doentes não apenas
aqui... e ela apontou para o coração.... mas também aqui. Ela
apontou para a testa. Essa é a esperança que eu tenho. Esperança que no
entanto pressupõe uma modificação na maneira de pensar! Vamos sair do esquema de que só tem valor aquele que ganha dinheiro, que presta algum serviço! Essa atitude que ainda persiste, é desumana; é indigna do homem.
Certo. Disse eu. Mas afinal o que está acontecendo com a
Babs? Tenho o pressentimento de que o perigo é muito grande.
Ela ficou calada.
Me responda, por favor. Tenho razão com minha suspeita?
Talvez, sr. Norton. Não quero enganá-lo. A Babs está muito doente. Eu já lhe disse, faremos tudo para que ela fique boa novamente. Mas... sua voz desapareceu.
Mas as probabilidades são contra disse eu.
Ficou me fitando, muda, depois abaixou a cabeça.
Obrigado disse eu.
Obrigado por quê?
128Por me ter dito a verdade.
E a ventania continuava a fustigar Paris.
O Sol tinha desaparecido; o céu estava negro. Lá embaixo no pátio, via as árvores escuras e despidas. Ruth apertou o botão da lâmpada. A luz acendeu.
Sr. Norton disse ela o senhor é o produto do seu ambiente, de sua educação. Nunca tomarei a liberdade de criticar sua vida com Sylvia Moran. Acho que como produto deste seu ambiente e educação, não lhe restava outra escolha.
Hoje quando o dr. Sigrand me acordou, a senhora disse que era um
prazer conhecer-me.
E foi mesmo.
Por quê?
Porque trouxe a Babs para nós. Porque dormiu a noite inteira em
cima de um banco. Porque não fugiu; não tirou o corpo fora.
Mas eu não podia!
O homem pode fazer as coisas mais ignóbeis e as mais belas
disse Ruth Reinhardt. O senhor ficou com a Babs. Fiquei satisfeita ao
vê-lo. Por isso foi um prazer conhecê-lo. Pelas histórias que lia nas revistas, tinha outra impressão do senhor.
Eu imagino!
Nós todos reagiríamos de maneira diferente se soubéssemos o
destino de nosso semelhante. Eu tinha resolvido lhe dizer o que pensava de Sylvia Moran e do que ela disse lá no camarim em Monte-Carlo, quando estivéssemos a sós.
E por quê?
Porque a entendo perfeitamente.
Fiquei olhando para ela perplexo.
Em primeiro lugar, tudo que ela disse diante das câmaras foi
escrito para ela, não foi? Ela o recitou, como grande artista que é. Afinal por que concordou com tudo aquilo? Porque conseguiram convencê-la de que seria uma publicidade imensa, uma oportunidade que não teria jamais. Sylvia Moran vive em meio ao show-business. Por que não daria ela ouvidos aos que lhe aconselharam? O que sabe o senhor a respeito dela? Me diga, sr. Norton?
Ora, quase tudo, penso eu.
Acho que não! O senhor gosta dela?
Eu... claro que gosto. ’’’
129Claro que não gosta! Nunca gostou, nem gostará! Na posição em
que o senhor se encontra, o amor é impossível disse ela, e eu me calei
Portanto o senhor também nada sabe a respeito dela. Nada de real. Nada do que ela na verdade é.
E a senhora sabe?
Creio que posso imaginar disse Ruth Reinhardt. Sylvia
Moran é uma concepção mundial. É uma marca de qualidade. Só por isso
já é uma mulher fora do comum, um ser a parte. O mundo, e também o senhor, isso mesmo sr. Norton, também o senhor, só conhecem de Sylvia Moran o que ela aparenta, o papel que ela desempenha a vida inteira, que ela tem que desempenhar como grande estrela. Como é que eu posso explicar isso? Eu, o senhor, o mundo inteiro, vêem apenas o cartaz Sylvia Moran; o cartaz que aparece nas portas de cinema, nas fotografias has revistas, a imagem na televisão... o aspecto externo... Ela tem razão, pensei comigo,
assustado. Eu realmente só conheço superficialidades. Lembrei-me da cena fantástica na clínica do dr. Delamare, quando ela ficou apalpando suas jóias
sem vê-las. Essa mulher não consegue nem mais ser como quer! O dr.
Sigrand foi injusto com ela, o senhor agora sabe por que. Temos que nos esforçar no entanto para não sermos injustos. Temos que nos esforçar para sempre encontrar explicações; explicações e justificativas, sr. Norton.
Não sei o que aconteceu comigo, mas falando da mulher de quem e com quem vivia, disse para outra, que mal conhecia:
Mas afinal, aquilo que a Sylvia disse lá no camarim foi realmente
revoltante!
Ao que Ruth Reinhardt respondeu:
Muitas pessoas procedem de maneira revoltante porque se sentem
infelizes.’
A senhora então consegue desculpar aquela cena de ódio?
Desculpar e entender. A sra. Moran foi praticamente obrigada a
fazer aquele apelo... isto mesmo, obrigada! O senhor, sr. Bracken, a companhia de cinema de Hollywood e sei lá quem mais, obrigaram na a falar, sem ao menos lhe perguntarem se estava de acordo com o que iria dizer, se aquilo era sua opinião também. E não se esqueça, sr. Norton, naquela época a Babs gozava saúde!
E agora ela tem exatamente a doença cujas manifestações repugnavam tanto a Sylvia!
Sylvia Moran é uma estrela! Ela é obrigada a fazer o que lhe
pedem, querendo ou não! O senhor não acha isto horrível? Já pensou no que acontece se ela se negar a fazer o que o estúdio ou outra pessoa lhe ordenam? E o medo de perder uma carreira que precisa continuar? O medo de fracassar? O medo de intrigas? Nenhum trabalho mais para ela; e sei lá o que mais! Muita coisa, sem dúvida, sr. Norton. A situação em que ela se encontrava era horrível... sem esquecer de como é horrível a em que ela se encontra agora! E ela sempre terá que ser o sucesso! O cartaz, sr. Norton!
130Como o senhor vê, sr. Juiz, foi a essa altura que conheci “aquele mundo à parte”, aqueles que vivem no escuro.
Depois da apresentação, ela chegou ao camarim já não conseguindo mais se controlar continuou a doutora, cujas palavras me impressionavam cada vez mais... Envergonhada, por estar consciente ue seu grau de
dependência, apesar de toda sua fama... pois realmente, quanto mais famosa, mais dependente a pessoa é! E o senhor mesmo sabe como reagem as pessoas que ficam muito envergonhadas ou que foram muito envergonhadas: elas se tornam agressivas! Foi o que aconteceu com a sra. Moran. Posso entender muito bem que uma pessoa como ela, cuja existência depende de uma certa imagem, e nesse caso ainda com a Babs, não aceita a idéia da criança excepcional, e que seja apenas por superstição, por receio de chamar o mal a si. Além disso, da imagem Sylvia Moran depende sua renda, seus honorários, e o senhor também. Me desculpe. Estou apenas dizendo a verdade, espero não tê-lo ofendido.
Claro que não E não estava mesmo. Com aquela mulher, não.
Me parece que além disso a sra. Moran gosta realmente do senhor,
embora a recíproca se me afigure inteiramente negativa. Sr. Norton, uma mulher cuja existência está baseada em primeiro lugar em sua apresentação física, uma mulher com uma vida complicada destas, hoje aqui, amanhã ali! Quase nunca em casa; sempre em outros países, em outros hotéis; uma mulher que trabalha tanto! Tudo isto, e talvez mais ainda, Sylvia Moran deve ter reconhecido em Monte-Carlo. Eu não posso condená-la. E como já disse: o senhor não a ama. Portanto, não sabe absolutamente nada a seu respeito!
- De repente Ruth Reinhardt abaixou a cabeça e disse: Afinal quem realmente sabe alguma coisa sobre alguém... por mais que o ame?
Carros blindados. Soldados armados até os dentes; uniformes camuflados. Uma rua deserta...

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                                                            CONTINUA
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Foi a primeira coisa que vi quando às quinze para o meio-dia, neste 25 de novembro de 1971, entrei da ante-sala para o salão do apartamento 419 do hotel LE MONDE. Tinha voltado de Neuilly para a cidade, caindo de cansado. Prometera à dra. Reinhardt voltar à noite. Não tinha mais tirado os óculos escuros.
Um dos porteiros me disse que a chave do 419, não estava no lugar; certamente o sr. Bracken, o dr. Wolken ou a governanta, ou todos eles deviam estar no meu apartamento. Isto já me surpreendeu, mas não disse nada. Quando cheguei à porta do 419, ela estava trancada. Pelo que vi, a chave estava por dentro.
131Bati. Tive que bater durante muito tempo e com muita força antes que a Clarissa abrisse. Olhou para mim como se eu fosse um fantasma, tremia dos pés à cabeça, os olhos vermelhos. Recuou. Atrás dela vi a televisão. Carros blindados, soldados armados até os dentes, uniformes camuflados...

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O que houve?
Eu... eu devo ter adormecido...
Mas afinal que faz a senhora aqui?
O sr. Bracken me disse para ficar aqui, me trancar, e só abrir para
quem eu reconhecesse a voz. Liguei a televisão para me distrair, e adormeci, e então... Clarissa se virou, correu para dentro do salão, se jogou numa poltrona aos prantos.
Fechei a porta e fui para junto dela. Nem prestei atenção no noticiário da televisão.
Clarissa!
Ela estava toda encolhida, tremendo, fungando, amassando o lenço.
Onde está Rod, e o dr. Wolken?
Foram atrás daqueles sujeitos.
Que sujeitos?
Que me pegaram. Soluços. Aqueles cretinos! Peguei
Clarissa e sacudi-a; sua cabeça balançava de um lado a outro. Estava tão
cansado que tudo dançava, diante de meus olhos. Que cretinos? berrei eu. Ora droga, vê se fala!
“... neste meio tempo o movimento no centro da cidade parou
com...” Virei-me bruscamente e desliguei aquela porcaria da televisão, gritando mais uma vez: Fala!
Afinal, entre choro, lamúrias e fungação ela contou...
Esta noite nós três dormimos aqui no apartamento, sr. Norton...
porque, depois do senhor ter ligado do hospital, ficamos muito nervosos. O sr. Bracken disse que num caso tão grave teria que se comunicar imediatamente
com o sr. Gintzburger. Joe Gintzburger de Hollywood, Presidente da
SEVEN STARS para a qual Sylvia trabalhava. Rod agira certo Na verdade ele ainda nem sabia como a situação era grave! Evidentemente não quis ligar aqui do hotel.
Claro que não.
... Por isso foi até o Correio Central. Clarissa soluçou.
E? Anda, continua!
E o dr. Wolken de repente pegou no sono lá no sofá... Assim
como eu daqui a pouco, pensei... fui para meu quarto, pois queria
descansar também, e lá encontrei os três sujeitos...
Que sujeitos?
Jornalistas... da imprensa... Um fotógrafo e dois repórteres...
Acho que vieram calmamente pelo corredor. De manhã cedo o movimento lá embaixo sempre é grande, aí eles subiram até aqui e...
132Até aqui como? Como entraram no seu quarto?
- Esqueci de trancar... Disseram que sabiam onde me encontrar. Nós sempre ocupamos os mesmos quartos aqui no LE MONDE, não é?
E a senhora deixou o seu aberto?
- Foi.
Idiota! Ela recomeçou a chorar. Desculpe, não quis magoála, Clarissa. É nervosismo. E depois?
A Clarissa de repente se agarrou a mim.
E depois? perguntei mais uma vez alisando o cabelo de Clarissa. Talvez assim ela se acalmasse.
Depois me perguntaram o que estava acontecendo, e eu disse que
não estava acontecendo nada. Clarissa começou a falar rapidamente:
Eles disseram para eu deixar de besteira, pois era óbvio que estava acontecendo qualquer coisa, e que eu podia estar certa que iam conseguir arrancar de mim... Respirou fundo. Um pouco mais controlada continuou: Perguntaram aonde estava Babs. Aonde estava o senhor... E o sr. Bracken. Por que o dr. Wolken “estava deitado dormindo num sofá do 419? Por que no quarto apenas uma cama estava desfeita, as cortinas fechadas e...

 

 

                                                                  

 

 

                                                   

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