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Foi a primeira coisa que vi quando às quinze para o meio-dia, neste 25 de novembro de 1971, entrei da ante-sala para o salão do apartamento 419 do hotel LE MONDE. Tinha voltado de Neuilly para a cidade, caindo de cansado. Prometera à dra. Reinhardt voltar à noite. Não tinha mais tirado os óculos escuros.
Um dos porteiros me disse que a chave do 419, não estava no lugar; certamente o sr. Bracken, o dr. Wolken ou a governanta, ou todos eles deviam estar no meu apartamento. Isto já me surpreendeu, mas não disse nada. Quando cheguei à porta do 419, ela estava trancada. Pelo que vi, a chave estava por dentro.
131Bati. Tive que bater durante muito tempo e com muita força antes que a Clarissa abrisse. Olhou para mim como se eu fosse um fantasma, tremia dos pés à cabeça, os olhos vermelhos. Recuou. Atrás dela vi a televisão. Carros blindados, soldados armados até os dentes, uniformes camuflados...
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O que houve?
Eu... eu devo ter adormecido...
Mas afinal que faz a senhora aqui?
O sr. Bracken me disse para ficar aqui, me trancar, e só abrir para
quem eu reconhecesse a voz. Liguei a televisão para me distrair, e adormeci, e
então... Clarissa se virou, correu para dentro do salão, se jogou numa
poltrona aos prantos.
Fechei a porta e fui para junto dela. Nem prestei atenção no noticiário da televisão.
Clarissa!
Ela estava toda encolhida, tremendo, fungando, amassando o lenço.
Onde está Rod, e o dr. Wolken?
Foram atrás daqueles sujeitos.
Que sujeitos?
Que me pegaram. Soluços. Aqueles cretinos! Peguei
Clarissa e sacudi-a; sua cabeça balançava de um lado a outro. Estava tão
cansado que tudo dançava, diante de meus olhos. Que cretinos? berrei
eu. Ora droga, vê se fala!
“... neste meio tempo o movimento no centro da cidade parou
com...” Virei-me bruscamente e desliguei aquela porcaria da televisão,
gritando mais uma vez: Fala!
Afinal, entre choro, lamúrias e fungação ela contou...
Esta noite nós três dormimos aqui no apartamento, sr. Norton...
porque, depois do senhor ter ligado do hospital, ficamos muito nervosos. O sr. Bracken disse que num caso tão grave teria que se comunicar imediatamente
com o sr. Gintzburger. Joe Gintzburger de Hollywood, Presidente da
SEVEN STARS para a qual Sylvia trabalhava. Rod agira certo Na verdade
ele ainda nem sabia como a situação era grave! Evidentemente não quis
ligar aqui do hotel.
Claro que não.
... Por isso foi até o Correio Central. Clarissa soluçou.
E? Anda, continua!
E o dr. Wolken de repente pegou no sono lá no sofá... Assim
como eu daqui a pouco, pensei... fui para meu quarto, pois queria
descansar também, e lá encontrei os três sujeitos...
Que sujeitos?
Jornalistas... da imprensa... Um fotógrafo e dois repórteres...
Acho que vieram calmamente pelo corredor. De manhã cedo o movimento lá embaixo sempre é grande, aí eles subiram até aqui e...
132Até aqui como? Como entraram no seu quarto?
- Esqueci de trancar... Disseram que sabiam onde me encontrar. Nós sempre ocupamos os mesmos quartos aqui no LE MONDE, não é?
E a senhora deixou o seu aberto?
- Foi.
Idiota! Ela recomeçou a chorar. Desculpe, não quis magoála, Clarissa. É nervosismo. E depois?
A Clarissa de repente se agarrou a mim.
E depois? perguntei mais uma vez alisando o cabelo de Clarissa. Talvez assim ela se acalmasse.
Depois me perguntaram o que estava acontecendo, e eu disse que
não estava acontecendo nada. Clarissa começou a falar rapidamente:
Eles disseram para eu deixar de besteira, pois era óbvio que estava acontecendo qualquer coisa, e que eu podia estar certa que iam conseguir arrancar de mim... Respirou fundo. Um pouco mais controlada continuou: Perguntaram aonde estava Babs. Aonde estava o senhor... E o sr. Bracken. Por que o dr. Wolken “estava deitado dormindo num sofá do 419? Por que no quarto apenas uma cama estava desfeita, as cortinas fechadas e a lâmpada da mesinha no chão?
Espere aí, então estiveram no 419 também?
Estiveram; deixei aberto.
- Por quê?
Para o dr. Wolken poder sair na hora que acordasse.
Ele poderia ter ligado para seu quarto. Santo Deus, Clarissa!
Tem razão... Nova torrente de lágrimas. Nem tinha me lembrado...
Mas por que os três cismaram que estava acontecendo alguma coisa aqui?
Foi o que eu também perguntei.
- E?
Disseram que alguém lá embaixo viu uma ambulância à noite, e o
senhor também... Ligaram para a redação do jornal... Eles pagam cinqüenta francos por uma notícia dessas... E então vieram para cá de manhã... à noite não dava jeito: Teriam sido barrados na entrada...
- E?
Fizeram perguntas e mais perguntas! Eu recomecei a chorar, um
deles fotografou... Os outros disseram que ele já havia fotografado tudo...
Tudo o quê?
... lá no 419; o dr. Wolken dormindo. A cama. A lâmpada no
chão. Uma ampola que ficou jogada lá. Me ofereceram dinheiro! Estiveram aqui quase uma hora!
Muito devagar, alisando suas costas perguntei:
E a senhora, o que disse?
133Clarissa empertigou-se, o rosto inchado de chorar, falou com toda calma:
Eu não disse uma única palavra, sr. Kaven, juro por minha alma!
Clarissa era muito piedosa, se ela dizia isso, é porque era verdade mesmo.
Você foi muito valente disse eu. Muito boazinha, querida
Clarissa. Ficou olhando para mim bem de perto, tremendo, tresnoitada, e,
de repente apertou os lábios contra os meus. Exatamente o que eu receava há muito... Também ela era louca por mim. O medo tinha conseguido vencer seus escrúpulos.
O que podia eu fazer, sr. Juiz? Afastá-la? Arrumar uma inimizade, logo agora? Por isso beijei-a também, procurando demorar o menos possível. Custou um pouco, mas consegui. Sentada a meu lado, na larga poltrona, os braços ainda em torno do meu pescoço, ela continuou a repetir que não tinha dito uma única palavra; nenhuma. Acredito perfeitamente. E acabou dizendo:
Nunca fiz uma coisa dessas, Philip. Nunca! Mas eu o amo. Desde
o primeiro momento. Foi um inferno para mim; ainda é um inferno, Philip.
Sr. Kaven disse eu. Sr. Kaven é o meu nome. Fico muito
lisonjeado em pensar que você me ama, Clarissa. Mas é um amor inteiramente impossível, você deve reconhecer. Meu coração, toda minha alma, pertencem a Sylvia. (Foi o que eu disse literalmente, sr. Juiz. Sabia muito bem por que. Clarissa era a pessoa, que só reage a esse tipo de palavras.)
O efeito foi imediato.
Claro... Eu respeito tudo isso... Nem que seja a morte para
mim... Sempre respeitei, não é verdade? Desculpe o que acabei de fazer, sr. Kaven...
Ora Clarissa!
Foi mais forte do que eu! (Foram estas suas palavras e, por elas o
senhor pode ver o tipo de pessoa que era.) Juro pela Virgem Maria, nunca
ninguém há de notar nada! Por mais que eu sofra.
Está certo. Mas, e os repórteres?
O sr. Bracken voltou do correio e entrou no 419. Encontrou o dr.
Wolken dormindo. Acordou-o. Foram me procurar e encontraram aqui os três homens. O sr. Bracken entendeu logo o que estava acontecendo.... Eles também. Saíram na disparada... o sr. Bracken e o dr. Wolken atrás...
Sabe de que jornal são?
Não. Não disseram.
Meu...
O sr. Bracken disse que ia alcançá-los ainda no hotel ou então na
rua. De qualquer maneira antes de chegarem à redação.
Quando foi isso?
Há... há uma hora mais ou menos... não sei dizer exatamente.
E o que fez a senhora depois?
Estava tão nervosa e com tanto medo, que voltei para o 419, liguei
a televisão para ver a estória do seqüestro. Para me distrair.
134E aí adormeceu arrematei eu. Não importa. O principal é
que Bracken pegue aqueles sujeitos. O principal é que a Babs consiga escapar.
Isso eu não devia ter dito. Foi um erro grave, como em breve iria constatar. Mas estava tão cansado, sr. Juiz, que nem sabia mais o que dizia.
Escapar? Como? É tão sério assim?
E aí cometi o segundo erro, mais grave ainda que o anterior.
Contei a verdade a Clarissa; contei tudo que a dra. Reinhardt me dissera. Clarissa recomeçou a chorar.
Para com isso.
Não consigo! soluçou ela. Não... não... Gosto tanto da
Babs... se acontecer qualquer coisa... Se ela... se ela... E a mãe lá na clínica sem saber de nada... sem nem ter conseguido ver a filha antes
dela... antes dela... O toca-disco estalou, mudando de disco. Não
conseguiu pronunciar a palavra “morrer”. Era melhor até.
Não dá para...
O telefone tocou.
Clarissa não podia atender, era evidente. Portanto fui eu.
Pronto?
Sr. Kaven?
Sim.
Aqui é da portaria. É muito desagradável para nós, mas foi tudo
tão rápido, o movimento aqui está tão grande, um grupo enorme de turistas americanos...
O que é que foi tão rápido?
Dois homens entraram aqui, perguntaram à telefonista o número de
seu apartamento, e infelizmente ela deu.
- E?
Os homens saíram e não sabemos para onde foram. Possivelmente
estão indo para aí. Se o senhor quiser aviso ao pessoal todo, inclusive à polícia, para que eles...
Nada disso.
Como?
Não avise nada à polícia! Era só o que faltava. - Nem dê
alarma nenhum! Eu sei quem eles são. Já estava esperando.
Desliguei e disse para a Clarissa:
Anda! Depressa; para o seu quarto! Mas dessa vez tranca mesmo.
Só abre se ouvir uma de nossas vozes. Entendeu?
Entendi, mas por que... O que...
Arrastei-a para fora do salão.
Anda! sibilei eu. Corre!
135Ela cofrreu. Logo depois desapareceu em seu quarto. Ouvi dar a volta na chave.
Muito bem, o primeiro dos dois eu abati assim que pisou na entrada da suíte 419, após eu ter dito “pode entrar”. Era o menor deles; segurava uma máquina na mão, e outra lhe pendia no pescoço, presa a uma correia. Tinha um lábio leporino muito feio, o lábio superior todo fendido. O segundo me deu trabalho. Com um pontapé fechei a porta atrás dele, e com um soco por cima do que estava no chão, acertei-o no queixo. Ele apenas se sacudiu como um cão saído da água, e saltou para cima de mim. Caí de costas para dentro do salão, ele me deu uns bons socos na minha guarnição; depois chegou a minha vez. Dei-lhe a sua parte, ele caiu, mas ainda não estava satisfeito. Ergueu-se, levantou o pé para me dar um chute. Rolei rápido para o lado, ergui-me, e acertei-lhe um soco debaixo do queixo, com toda minha força. Cheguei a erguê-lo um bom pedaço no ar, voou para trás, derrubando uma mesinha. Em cima dela havia um autêntico vaso-lâmpada chinês. Um abajur de seda cinza-prateado, um vaso azul de formas lindas com delicados ramos de flor e passarinhos. Conhecia o vaso há anos.
O vaso quebrou, o que me deixou furioso; gostava tanto dele! Ergui-me de um salto e comecei a lhe retalhar a cara; cuspiu um dente, uma porção de sangue, tudo bem no meio do meu rosto; aquele patife, depois me apertou a garganta até eu começar a ver tudo preto. Caí. No mesmo instante se jogou por cima de mim, aos socos e pontapés. Por algum tempo a pancadaria continuou, mas por fim o leporino voltou a si e a coisa começou a ficar preta para mim. Me jogaram no chão de costas; um socava em cima o outro embaixo; doía, doía horrivelmente. De repente desmaiei.
Desmaiei sem mais nem menos, sr. Juiz.
Tive a impressão que estava sufocando.
Não conseguia respirar, cuspi um líquido que ardia, mas voltei a mim. Ainda estava esticado no tapete. Ajoelhado diante de mim estava Rod, com uma garrafa de conhaque na mão, e a seu lado o dr. Wolken, curvando-se sério.
136Puxa, chegamos na hora, hein? disse Rod.
Parece. Onde estão aqueles dois canalhas?
Calma disse Bracken que estava todo desarrumado; eu até disse a ele.
E você? Dê uma olhada em você! O terno pode ir para o lixo de tão cheio de sangue e sei lá o quê. E a cara!... Bem, é melhor nem se olhar no espelho.
Por que não?
Todo cheio de sangue.
Sangue? Mas não é só meu. Tem muito daquele grandalhão.
Como foi que vieram parar no seu... ora, tanto faz. Ajudoume a levantar. Todos os ossos me doíam.
Vocês entraram bem no meio? perguntei.
Foi respondeu Bracken. E demos uma lição neles, meu velho! Nós dois. Eu e o dr. Wolken. Você nem imagina a violência dele! Liquidou um.
O menor?
Não, o maior respondeu Bracken.
Sim senhor, seu doutor! Olhei para ele com admiração. O
senhor conseguiu isto? Quem diria!
Ora, por favor, sr. Kaven disse ele virando-se encabulado.
E depois vocês chamaram os tiras? perguntei eu.
Quisemos chamar. íamos chamar. Mas infelizmente descuidamos daqueles canalhas um instante, e eles se mandaram.
Mandaram?
Na toda! Telefonei no mesmo instante para a portaria, mas ninguém os viu. Devem ter saído por outro lado qualquer. O pequenino perdeu as máquinas... olha ali... Estavam em cima da mesa.
O leporino?
É fez Bracken. Italiano. O outro era francês. Eles apanharam! Principalmente o grandalhão. Do dr. Wolken! - O professor particular da Babs fez uma mesura.
Muito bem disse eu. E os outros três? Vocês os pegaram?
Bracken deu uma risadinha.
Não ria! Pegaram ou não?
- Se pegamos! disse Bracken.
- Onde?
Na estação do metrô, Place de la Nation disse firacken.
Tivemos uma sorte, meu velho! Quase que escapam. Estavam no metrô. Pegamos eles no último instante. Quando nos viram, saltaram do trem, sumiram no mictório lá embaixo. Ali mesmo os liquidamos, e espero que ainda estejam deitados lá.
Todos três... vocês dois?
137Eu já lhe disse, você não tem a menor idéia de quem é o dr.
Wolken disse Bracken. A garrafa? Isso mesmo. Toma. Devagar, meu
velho, pra que esta ânsia toda? Bebi em grandes goles. Comecei a me
sentir um pouco melhor.
O doutor liquidou dois deles, ficaram deitados lá mesmo, dentro do
mijo! Nunca vi coisa igual! Bracken continuava de capa. Tirou dois
grandes novelos de filmes de um dos bolsos e mais três rolos... Peguei
tudo daquele merda de fotógrafo. Tudo que estava com ele disse Bracken
satisfeito. Não tem mais fotografia nenhuma daqui! Então o que me diz
disso?
Vocês foram formidáveis disse eu. Me lembro bem de ter dito
essas palavras, depois não me lembro de mais nada. Creio que nunca na vida dormi tão profundamente. Mas é estranho, sr. Juiz, lembro-me com que sonhei. Com ursos! O tempo inteiro. Com urso de tudo que é tipo.
Abri os olhos. Vi Rod na minha frente.
Não tinha a menor idéia onde estava, nem que dia ou hora eram.
Logo depois percebi que me encontrava deitado nu na grande cama. Na cama em que antes estivera a Babs. Do outro lado, em cima da mesinha, havia uma luz acesa.
Até que enfim! disse Rod. Sabe que horas são?
Não.
Cinco. Você dormiu quase quatro horas e meia. Vim acordá-lo.
Está na hora de levantar.
Pra quê?
Você não disse que tinha que ir ver a Babs na Casa de Saúde; e a
Sylvia também?..-,..- i
Dei um gemido.
- Dói?
Não.
Claro que doía; mas eu tinha gemido porque depois daquele agradável sonho com os ursos, me lembrei de toda a miséria, de toda a desgraça que caíra sobre nós.
Levantei-me.
Tirei sua roupa disse Rod. Dei tudo logo para lavar. Limpei
o sangue de seu rosto. Ainda bem que já está ficando escuro e vote ter» seus óculos. Pode dizer que bateu em qualquer coisa.
138Fui até o banheiro, me olhei no espelho, e fiquei aliviado. Meu olho esquerdo estava escuro, de um azul esverdeado. Na face direita tinha um respeitável arranhão. Meu corpo é que estava horrível, mas como eu não andava por aí nu... Fui tomar banho. Enquanto eu me ensaboava, Rod entrou e sentou na borda do bidê.
Sabe de uma coisa Rod, quando você quer, até que sabe ser um
sujeito legal disse eu.
Que jeito, é melhor mesmo ser legal, já que estamos na mesma
merda de esparrela.
O que disse Joe?
Cagou-se na mesma hora retrucou Rod. Você conhece
aquele canalha covarde. Fala como um vendedor de Bíblia, mas por dois dólares mataria a própria mãe; por sorte ela já morreu.
Achei aquilo uma descrição muito feliz de Joe Gintzburger.
E disse o quê?
Primeiro xingou a Sylvia, pelo que ela falou lá em Monte-Carlo.
Ele sabe de tudo, fomos nós mesmos que contamos para ele não desmaiar na hora que o chantagista fosse procurá-lo diretamente... Depois me xingou.
A você, por quê?
Sei lá. Xingou por xingar. Xingou a você e a Babs também. E você
sabe por quê? Em relação à Babs eu entendo. É o cúmulo, aquele fedelho arrumar uma meningite, logo agora. Depois disse que se aquilo transparecesse, ele nem conhecia o nome da Sylvia, e nenhum estúdio do mundo arrumaria mais emprego para ela. Rod arrotou. Deixei-o falar aquelas
besteiras todas. Tinha que informá-lo. Comentários, ele podia fazer. A essa altura só a sorte podia nos ajudar.
Sorte e cuidado disse eu.
Sorte e cuidado repetiu ele.
E o que mais disse o Joe?
Ele hesitou.
Como é?
- Da primeira vez nem ele mesmo sabia o que fazer. Disse que teria que falar com os advogados, com os vice-presidentes e aqueles merdalhões todos. Pediu que ligasse duas horas depois. Foi o que fiz. Você dormia profundamente. Pedi ao dr. Wolken para ficar de guarda e dei mais um pulo até o correio.
E o que disse Joe então?
Você não vai gostar.
Ora, diz logo.
Então está bem disse Rod. Joe disse que agora os repórteres
não vão mais deixar ninguém em paz. Vão passar a importuná-lo dia e noite. Você sabe muito bem como é quando essa corja gruda.
- Sei.
139Disse que vão seguir você dia e noite, passo a passo, se continuar
morando aqui.
Claro.
Joe também acha. Por isso, você vai ter que sair daqui.
Como?
Deixar o LE MONDE. Agora. Assim que estiver vestido. E a Babs
vai com você.
Você bebeu?
Que bebeu! Lúcido como nunca. Foi Joe quem mandou dizer. Isso
é uma ordem, entendeu? Eu já arrumei três malões para você e dois para a Babs. A Clarissa me ajudou. O dr. Wolken também. São gente boa. Neles pode-se confiar. Você vai pegar um avião e levar a Babs, o mais depressa
pOSSÍvel.
Pegar avião? Eu com a Babs?
Sim senhor; para Madrid. Com a Babs.
Espere aí, Rod. A Babs está quase batendo as botas, e eu... Você
deve ter perdido o juízo. Você e Joe, aquele velho idiota!
É o que você acha! Tudo foi muito bem pensado. Também já falei
com seu velho amigo o President Directeur General do LE MONDE...
como é mesmo o nome dele?
Pierre Marechal.
Isso mesmo. Disse a ele, que a Babs teve um problema alérgico e
que você partia.
E por que logo Madrid?.
Ele continuou calmamente:
Disse a Pierre Marechal que uma enfermeira iria junto; que ela
levou a Babs mais uma vez ao médico, portanto, jâ foi com a criança. Na hora de sair, você faz uma movimentação grande lá embaixo no saguão, para que todo mundo fique sabendo que você vai para Madrid.
Santo Deus, mas por que Madrid, eu...
Pst! Deixa eu falar. Teu amigo Marechal colocou um carro do
hotel à disposição, com duas pessoas de confiança. Vão levar as malas para o aeroporto.
Ora droga, o que é que eu vou fazer em Madrid?
Será que você não está bom da cabeça? Não é em Madrid que a
Sylvia vai rodar o próximo filme, o CÍRCULO DE GIZ? Não é você o chefe de produção da SYRAN PRODUCTION? E não é você também que tem que fazer os preparativos todos para a rodagem do filme?
Ora raios, Rod, eu não tenho a menor idéia do que é preciso fazer!
Você não precisa fazer nada.
Mas você não acabou de dizer que tenho que ir para Madrid? Vou ter que passar pela alfândega. Meu nome, vai constar da lista da companhia de aviação. Tenho que me registrar num hotel. Em duas horas os repórteres sabem onde me encontrar.
140Se você for para Madrid, vai no avião de Sylvia! Seu nome não
aparece em lista nenhuma. A alfândega já descobriu alguma vez para onde você foi no avião dela? E então!
Mas no hotel eu tenho que me registrar. Sempre tive. E à Babs
também. E vão nos ver. Eu ainda estava muito atordoado.
Idiota! E quem disse que você vai para Madrid?
Você acabou de dizer...
Como é que você quer viajar, sua besta? Babs não está em condições, e nós precisamos de você aqui. Claro que vocês dois ficam em Paris. É apenas o avião que vai para Madrid. Sem vocês...
Tudo começou a rodar em volta de mim. Que horror!
Você vai ficar em Paris, de jeito que eu possa entrar em contato
com você a qualquer momento, mas que a Sylvia não note nada. Para não
levantar suspeita na clínica. Ele deu um grunhido. E vê se não se mostra desesperado, meu velho!
Pode deixar. Mas onde é que eu vou ficar em Paris?
Ficou olhando mudo para mim. Isso era a vingança pelo que eu tinha feito com ele na noite anterior! Depois disse como por acaso:
Você não tem uma pequena aqui em Paris...
Ora, cale...
Você tem. Não me diga que não! Nós agora precisamos dela.
Precisamos de alguém que goste de você, que faça qualquer coisa por você. Eu o imploro, Phil, diga que tem. Juro que não conto a ninguém. Agora está tudo em jogo, homem! Como é?
Tenho sim. Mas não sei se posso ir para lá, se posso morar lá. Pelo menos tenho que telefonar antes e perguntar.
Então ande! Depressa! Vamos, saia da banheira! Deixa de estórias! Ele me estendeu uma toalha enorme. Levantei, me enxuguei e enrolei
numa segunda toalha (evidentemente pré-aquecida; afinal era um hotel de luxo, e eu teria que deixá-lo!). Fui descalço até a sala e disquei primeiro para o salão da Suzy. Tive sorte. Ela ainda estava. Deu um grito de alegria ao ouvir minha voz.
Ouça disse eu, Bracken estava lá longe ouça meu amor, seria
possível eu morar algum tempo com você? Por que? Explico depois. Agora não posso.
Alguma encrenca?
Sim e não. É uma estória muito complicada.
Então vem. Vem logo. Hoje à noite. Depois das oito. Ouvi sua risada.
Que sorte a sua, hein?
Sorte, como?
Meu condezinho vai viajar às sete horas para Acapulco. A convite. O que você me diz disso? Vai ser um bocado divertido, hein?
É, um bocado divertido...
141Mas eu trago bagagem. Cinco malas ao todo.
Mande lá pro salão. Fica aberto até as sete. Depois dou um jeito de
levar para casa.
Obrigado.
E quando é que você vem?.
Hoje mesmo. Talvez chegue tarde.
Fico esperando.
- Mais uma vez muito obrigado.
- Ora, não quero incomodar você...
Estou tão feliz. Até de noite Pode vir tarde. Eu espero.
Desliguei.
A - Como é? - perguntou Rod se aproximando.
Dá sim disse eu.
- Ótimo. Daqui a pouco ligo mais uma vez para Joe. Ele está aflitíssimo. Mas vamos dar um jeito. Já demos um jeito em coisas bem piores, não é?
Como o patife agora se insinuava! Só que no momento era um patife útil; eu precisava dele.
Nós nos telefonamos sempre. Você continua a ir ver a Babs, e a Sylvia. Ela evidentemente não deve saber nada a respeito da Babs.
Claro que não.
Aonde mora sua pequena?
Muito longe daqui.
. Eu perguntei, onde?
E eu disse muito longe.
Está bem; se não quiser não diz. O principal é que seja longe e
você não tem que andar se escondendo aí pelo centro da cidade. E o número do telefone?
Eu ligo hoje ainda para você e lhè dou.
Muito bem. Eu já separei um terno limpo, a roupa e tudo que é
necessário. Só falta você se vestir.
Apoiei a cabeça nas mãos e fiquei olhando fixo para a mesa. A coisa estava ficando cada vez mais preta. Mas Joe e Rod tinham razão, era o único jeito. Só havia este. Se é que ainda havia algum.
Vi grandes folhas de cálculo na mesa. Distraído, comecei a ler:
PRODUÇÃO CÍRCULO DE GIZ - PRIMEIRA TABELA
DESPESAS PRÉVIAS
DESPESAS DE PRODUÇÃO: I. Direitos e roteiro. II. Pagamentos: a) Equipe de produção, b) Equipe de direção, c) Equipe de construtores e decoradores, d) Artistas, e) Música. In. Estúdio, incluindo o terreno e preparo: a) Construção do estúdio, b) Estúdio de rodagem, c) Aparelhagem de som, d) Equipamento, etc...
142De baixo de cada coluna viam-se números. Representavam dinheiro. Dólares.
Custas previstas, vinte e cinco milhões.
O filme. Aquele filme gigantesco na Espanha! Ainda mais essa... e o que mais?
Não fica aí olhando para o meu trabalho! disse Rod Já estava mais do que combinado que eu ia preparar tudo. E como vê, já comecei. Cada um tem agora sua tarefa... Você a sua; eu a minha. A sua é mais importante.
E Clarissa... e Wolken?
Eles ficam aqui. Deles, nenhum repórter arranca nada. Eu também fico. Temos de permanecer todos aqui, se... Ele não continuou.
Se? perguntei eu.
Babs está muito mal, não é?
Está sim.
Rod respondeu qualquer coisa que não dá para escrever.
Mas como vou conseguir tirar aquelas porcarias de malas lá do aeroporto?
Ele sorriu cheio de si.
Já falei com seu querido amigo Lucien Bayard.
Ele só trabalha à noite, seu idiota.
Mas ele tem telefone, sua besta. Seu querido amigo manda depois apanhar as malas lá no aeroporto por uns amigos, que por um milhão não vão dar com a língua nos dentes. De saída ele já lhes adiantou algum dinheiro. Uma caminhoneta leva as malas para onde você estiver. É só dar o endereço. Levam você também, e deixam lá perto do Hospital Sainte-Bernadette. Não perto demais, é claro.
Dei um gemido.
Sei que isso tudo é revoltante. Tanta merda por um fedelho daqueles. Mas talvez você pare um pouco e pense em você também disse Rod.
O efeito foi imediato.
Os homens levam a bagagem lá para a casa de sua pequena.
Claro, e você descobre o endereço! Até o numero do telefone isso já é possível disse eu.
E para quê? Nós dois não estamos no mesmo barco, foi você mesmo quem disse de noite. Por mais ódio que um tenha do outro, temos que ficar unidos, isto é óbvio. Para mim ao menos é. Espero que para você também.
É disse eu olhando mais uma vez para as enormes folhas e continuando a ler, enquanto meu estômago se embrulhava cada vez mais...
IV. Despesas externas. V. Despesas com viagens e despesas extras. VI. Material para o filme em geral...
Meu olhar se turvou. Passei rapidamente os olhos na lista.
143And only yesterday, pensei eu. E ontem ainda...
VENÇA A IRA COM A CORDIALIDADE
“PAGUE O MAL COM O BEM
CONQUISTE O AVARENTO COM DÁDIVAS
ATRAVÉS DA VERDADE, CONQUISTE O MENTIROSO
A VITÓRIA GERA ÓDIO, PORQUE O VENCIDO SE SENTE INFELIZ
NUNCA NO MUNDO O ÓDIO PORÁ FIM AO ÓDIO. O ÓDIO SE EXTERMINA COM O AMOR.” Gautama Buda.
Li estas palavras com vagar. De manhã tinha visto uma moldura em cima da mesa da doutora Reinhardt. De costas apenas, por isso concluí tratar-se de alguma fotografia. Agora à noite, sentado sozinho em sua sala esperando por ela, virei a moldura. Não continha nenhuma foto. Apenas uma folha de papel debaixo de um vidro com as palavras de Buda. O ÓDIO SE EXTERMINA COM O AMOR...
Depois de uma espalhafatosa cena de despedida no saguão do LE MONDE, eu tinha realmente seguido com bagagem e tudo num carro do hotel para o aeroporto. Ali os amigos de Lucien vieram me apanhar numa caminhoneta, e me deixaram em Neuilly perto do hospital Sainte-Bernadette. As malas já estavam há muito no salão de Susy. É, a vida de um homem pode se transformar completamente de um instante a outro! Como esta nova vida ia continuar, eu não tinha a menor idéia!
O porteiro do hospital a quem dei meu nome (falso), pedindo para falar com a dra. Reinhardt, tinha ido para o telefone. Demorou bastante.
Ela não está lá na sala. Mandamos chamá-la.
O hospital possuía, portanto, uma rede interna de comunicação e todo médico carregava no bolso de seu jaleco um receptor do tamanho de um maço de cigarro que segurava ao ouvido assim que o aparelhinho começasse a dar sinal. Depois de algum tempo o porteiro me disse:
A doutora está ocupada; é um caso grave. Pede que o senhor vá
até a sala dela... O senhor sabe aonde é?... Espere lá. Ela virá assim que puder.
Subi no elevador para a clínica de otorrinolaringologia, no quarto andar, passei pelo corredor da administração, por portas abertas, muitos médicos, enfermeiros e enfermeiras. Estava de óculos escuros. „
144A conversa que conseguia captar por aí girava quase toda ainda em torno do seqüestro no Haag.
Justamente agora que os terroristas pedem que o sujeito que mandaram tirar da prisão, seja enviado de volta a Paris de avião, e que lhe entreguem aquela carta...
Que carta, dr. Janson?
Ora, o senhor então não está acompanhando o caso? Tudo se
desenrola principalmente em torno da “Rainha dos Terroristas”, Fusako Shigenobu...
Era como meu velho amigo Lucien Bayard tinha predito: Em pouco, todo mundo naquela cidade não falaria mais de outra coisa a não ser do seqüestro.
Irmã, o número vinte e oito faleceu há um quarto de hora. Por
favor ligue para os parentes.
Como disse, o que se ouvia aqui, tratava principalmente do seqüestro; mas afinal era um hospital, e num hospital sempre morre gente. Mais do que em outros lugares. Aonde então as pessoas tinham mais direito à morte?
VENÇA A IRA COM A CORDIALIDADE...
A porta abriu-se e a dra. Reinhardt entrou. Seu aspecto era de quem estava a ponto de cair de cansaço. Fundas olheiras debaixo dos olhos castanhos. Parecia frágil e fraca, mas seu aperto de mão continuava firme como pela manhã.
Desculpe sr. Norton, um caso urgente...
Ora, doutora. Meio sem graça recoloquei a moldura em cima da
mesa. Sentamos. Buda disse eu. O que está escrito ali é muito
bonito. A senhora... quero dizer a senhora...
Se eu sou budista? Sua expressão era sempre séria. Passou a
mão pela testa, num gesto de esgotamento. Eu me interesso por Buda...
O que houve com seu olho?
Tropecei por cima... Não, essa mulher eu não podia enganar Foram os repórteres Contei tudo Tive que sair do LE MONDE. Por enquanto estou morando em casa de um conhecido.
Muito sensato. Não esqueça de me dar sem falta o número do telefone de seu conhecido.
Como está a Babs?
Infelizmente não está bem, sr. Norton. Não está nada bem; infelizmente.
Hum.
Creio que sei no que está pensando.
Acho que não.
- Acho que sim. Tinha certeza de que ela sabia. Por isso acrescentei depressa. A senhora está de serviço desde ontem à noite... deve
estar exausta.
É o turno longo disse ela. Para o dr. Sigrand também. Na verdade eu agora teria folga das nove até as nove de amanhã à noite.
145Por que teria?
Porque vou ficar na clínica. O dr. Sigrand também.
Por causa da Babs. Num caso grave destes, dormimos na clínica.
Por que essa cara? Durmo onde me deitar, até no chão. Em qualquer lugar.
Bem, mas agora vamos ver a Babs. Ela se ergueu com dificuldade. A
ovelhinha caiu no chão. Apanhei-a. Obrigada disse a Ruth. O
senhor sabe, as crianças gostam tanto de brincar com ela.
Aquiesci e saímos da sala. No corredor da administração ouvi a voz de um locutor de televisão:
“yma unidade especial de vinte e oito homens, treinada para entrar
em ação em caso de seqüestres e atos de terrorismo... Passamos agora a falar diretamente do aeroporto de Schiphol. Alô, alô, Pierre Renoir...”
A voz emudeceu. Estávamos na ala dos pacientes.
Ruth Reinhardt abriu uma porta. Entrei no quarto da Babs onde já estivera uma vez. Agora não estava escuro. Havia luz acesa. Inclinados sobre ela estavam o dr. Sigrand e uma irmã. Vi colocar uma seringa de injeção num recipiente que a irmã segurava. O rosto do médico estava cinzento, esgotado, abatido... parecia um homem muito velho. Cumprimentou. Estava cansado demais até para odiar... devia estar mesmo exausto.
Vi a Babs.
Assustei.
O rosto todo pintado de sarampo, estava inchado e de um vermelho escuro. Na orelha direita via-se uma grossa atadura. Dos olhos esgazeados e revirados, quase só se via o branco. Embora ela estivesse olhando para cima, seu corpo estava completamente de lado. E em que posição! A barriga encolhida, as pernas dobradas, torcidas para os lados. O dr. Sigrand falava com a irmã em voz baixa. Esta fez um movimento com a cabeça e desapareceu.
Que injeção o senhor lhe deu, doutor?
Durante toda essa nossa conversa em francês, ele não olhou para mim.
Contra as convulsões que acabou de ter.
Convulsões?
Olhou para um espelho que segurava diante dos olhos da Babs. Notei que ele refletia luz em seus olhos. Babs não reagiu absolutamente.
De que vem a convulsão? perguntei. Babs gemeu. Por que ela está gemendo?
Que pergunta! Porque sente dor, ora.
Mas por que...
As convulsões aparecem em conseqüência do aumento de tensão da musculatura disse a doutora baixinho. As meninges inflamadas e
sobremodo tensas, isto é, as membranas do cérebro, e as raízes dos nervos muito irritadas e doloridas, não permitem que a criança relaxe, o senhor entende?
Daí também as pernas dobradas?...
146Hills disse Babs. Sua voz estava rouca.
O quê? perguntei eu. ’
... anda Mônica disse ela.
Isto tudo não significa nada disse Ruth enquanto o dr. Sigrand
continuava a se ocupar com a paciente, cobrindo-a da maneira mais delicada possivel, enxugando o suor que lhe brotava do rosto. Sua respiração chiava.
Babs! disse eu.
Silêncio! ordenou o dr. Sigrand.
Ela tem dificuldade em ouvir, sr. Norton disse a doutora.
Talvez não ouça praticamente nada.
Há uma hora esta criança estava com quarenta e um de febre. Está
completamente desnorteada disse o dr. Sigrand.
No mesmo instante ela vomitou. A doutora se adiantou rápida e apertou o botão da campainha. Dr. Sigrand suspendeu-lhe a cabeça. Ainda vomitando, ela começou a gritar horrivelmente.
Por que o senhor suspende a cabeça?
Do contrário ela acabaria sufocando com o próprio vômito.
A porta abriu-se de repente. A irmã de antes entrou precipitada. Com água e panos molhados ela e os dois médicos ajeitaram a Babs da melhor maneira possível. Outra irmã trouxe roupa limpa. Mudaram a roupa de cama. Babs gritava sem parar. No momento, me pareceu que ninguém mais notava minha presença. Não agüentava mais olhar para aquela criança, para aquela
MENINA-RAIO-DE-SOL The World’s Greatest Little Sunshine Girl.
Prepare uma cama lá no canto disse o dr. Sigrand, apontando
para um estrado no canto do grande quarto. Vou passar a noite aqui.
Sim senhor respondeu a irmã e saiu com a roupa suja.
Ela vai se salvar? perguntei à doutora.
O senhor está vendo, estamos fazendo todo o possível.
Aproximei-me da cama de Babs (me controlando de nojo) e ajoelhei a seu lado. Francamente não sei, sr. Juiz, se era compaixão humana, ou apenas encenação. Em caso de dúvida decido pela última.
Babs...
Nada.
Babs! mais alto.
Sr. Norton, deixe disto! ordenou o dr. Sigrand.
Ora doutor, o senhor... Babs!
No mesmo instante Babs começou a uivar. Parecia o próprio demônio. Ergueu-se com a boca cheirando a vômito bem perto da minha, a pequenina Babs que gostava tanto de mim, sr. Juiz! Com os dois punhos fechados, e com toda a força me deu um soco no rosto. Docu tanto, que eu agora dei um grito. Babs caiu para trás, sem fôlego, guinchando...
Para fora! berrou o dr. Sigrand.
Ruth Reinhardt me pegou pelo- braço e me levou até a porta.
147Venha comigo, sr. Norton.
Mas eu não quero!
Babs guinchava.
- Ora droga, já pra fora! - disse o dr. Sigrand num tom de voz perigosamente baixo.
O senhor tem que ir! A doutora pegou meu braço. Fiquei
espantado sentindo a força com que ela me empurrou para fora do quarto. A porta fechou-se O doutor não lhe disse que a menina estava completamente desorientada...
E que ela não reage a antibióticos... nem à... à...
Hemoglobulina.
... nem a hemoglobulina e a todas essas drogas? Disse sim.
Talvez em breve ela reaja.
Talvez nunca!
A doutora calou-se.
E aí? perguntei eu. E se ela não reagir nunca? O que acontecerá então?
Existem outros meios.
Existem, é? Sem a menor lógica, mas numa reação típica,
comecei a atacá-la, logo a ela! Será que a senhora tem mesmo outros?
Tenho sim, sr. Norton - respondeu aquela mulher que agora tinha voltado a falar alemão comigo, e que não perdia a calma nunca.
Que outros?
Não daria para o senhor entender. Evidentemente temos que contar com complicações.
Contar? E que nome a senhora dá a tudo isso que já aconteceu?
Isso ainda não são complicações?
Sr. Norton foi tudo que ela disse.
Sr. Norton, o quê?
Não, isso ainda não são complicações. É o andamento normal da doença.
Ah é? Não diga! Bonito!
De bonito não tem nada respondeu Ruth Reinhardt calmamente.
Não era isso que eu queria dizer... Estou tão nervoso... Tão abalado... Eu...
Eu estou vendo. Mas o senhor pode voltar quando quiser. Não sei se na ocasião poderemos deixá-lo ver a menina. Mas terá notícias dela. Eu lhe darei notícias. E eu nunca o enganarei, sr. Norton.
Fiquei mordendo meu lábio inferior.
Isso eu sei, doutora disse eu.
O senhor também pode ligar, a qualquer hora do dia ou da noite.
A senhora tem que dormir.
148Pode deixar. Vou dormir aqui mesmo na Casa de Saúde. Pode ligar
para mim mesmo de noite. E se...
Uma irmã entrou.
Dra. Reinhardt, por favor. O dr. Sigrand manda chamá-la. Diz que
é urgente. Precisa da senhora.
Já vou irmã disse ela e desapareceu. Nem boa-noite deu.
Não sei quanto tempo fiquei em pé diante da porta do quarto de Babs. Talvez um minuto. Talvez quinze. Só sei que não ouvia o menor barulho lá dentro. Finalmente fui andando. Passei pela ala da administração com todas aquelas portas e gente. Mais uma vez ouvi as vozes dos repórteres da televisão.
“... e aqui está um membro da unidade especial, meus senhores e
minhas senhoras, temos a permissão de lhe fazer algumas perguntas...”
Fui seguindo pelo corredor.
“Eles deixaram o Boeing 707 voltar.”
“Em troca lhes oferecemos um Douglas DC-8-62.”
Já eram nove horas.
“Mas os japoneses se recusaram...”
Apressei o passo.
Ao chegar lá fora, verifiquei que tinha parado de chover. Por ora ao menos. A ventania continuava como antes. Mas não chovia. Devemos agradecer a Deus por tudo que ele dá. Tratei de sair. Fui andando a pé. De uma clínica à outra. Afinal a Rue Cave não ficava longe.
44
Encontrei a Sylvia na cama, é claro.
Mas agora tinha uma luz acesa na mesinha de cabeceira. Notei que sua cabeça estava firmemente amarrada, talvez para fixar a parte do queixo. Os olhos estavam descobertos. Horríveis: todos inchados, lacrimejando constantemente, a pele em volta toda roxa, preta e esverdeada. O aspecto normal, enfim, de quem tinha feito uma operação plástica. Eram aqueles os olhos cuja beleza espantava o mundo inteiro? Certamente. Será que tudo estaria perfeito de novo daqui a dois meses? No momento...
Meu Lobinho! Até que enfim! Estou esperando há tanto tempo!
Hoje ela falava claramente.
Não pude vir mais cedo, Bruxinha. Eu...
Me dê um beijo.
Imagine só sr. Juiz, o que ela pedia! Mas vamos deixar de lado a autocompaixão! Beijei-lhe a boca. Notei então que os olhos não só estavam inchados, mas também apresentavam uma expressão da maior excitação.
149Meu Deus, que teria acontecido agora!
Ouvi um barulho na porta e me virei. Rod Bracken acabava de sair do banheiro. Olhou para mim furioso.
Será que estou num manicômio? Ou por que esses dois me olham
assim?
Clarissa disse Rod. A desgraçada da Clarissa!
O que houve com ela? perguntei.
- Esteve aqui à tarde. Aqui, aonde?
- Aqui, com a Sylvia, seu idiota! Aqui nesse quarto, idiota! Mas... ela não podia passar pelo portão.
Não podia, mas passou.
Como?
Ligou para a Sylvia lá do hotel, dizendo que havia acontecido
alguma coisa que ela precisava saber com urgência. A Sylvia então deu uma descrição minuciosa dela, e ela conseguiu um número. Depois de toda aquela encenação lá no portão de entrada, deixaram-na entrar até aqui no quarto sem o menor problema.
Aquela idiota! Tenho vontade é de matá-la.
Cala o bico ordenou Sylvia.
Depois da Clarissa sair disse Bracken a Sylvia procurou por
você. Você já tinha saído. Me encontrou. Fez aquela cena no telefone! Vi que tinha que vir para cá imediatamente. Falei com ela. Ela deu um jeito, exatamente como fizera com Clarissa.
Me deixei cair dentro da poltrona ao lado da cama. Rod corria de lado a outro. Sylvia chorava sem parar, os olhos inchados, entumescidos. Minha bagagem e a de Babs estavam em casa de Susy. O jato particular de Sylvia, em Madrid. E Babs talvez já estivesse morta. Não, isso não. Até agora só tínhamos tido azar. Por que de repente teríamos sorte?
Meu pobre Lobinho disse a Sylvia aos prantos. Como
aqueles patifes te massacraram. Rod me contou tudo. Quanta coisa você não faz por mim! Meu Deus, como adoro você!
Ora, esquece a pancadaria. Estou vindo do hospital. A Babs está
melhor.
Não disse ela. Não acredito numa só palavra do que você diz. Soluços.
Minha filha, a coisa que mais adoro nesse mundo... minha pequenina Babs! Ela está passando horrivelmente mal, a Clarissa disse.
Ora, merda disse eu. Foi a Clarissa que esteve no hospital?
E então? Ela viu a Babs? Então! Falou com os médicos? Maluca, histérica! A Babs está melhor; estou lhe dizendo. E eu venho diretamente do hospital.
É mentira - continuou ela soluçando dentro das ataduras. Não agüentava olhar para ela
150É mentira! E agora a imprensa está atrás de nós!
Vão perseguir vocês! E a mim e a Babs!
Vão perseguir ninguém disse Rod rispidamente. Eu já lhe
disse três vezes, resolvemos o caso deles. Para aqueles patifes, Phil e Babs estão em Madrid.
Com isso, de um momento para outro, Sylvia começou aquela cena. Nunca tinha visto nada igual na minha vida. Naquela noite reconheci que não entendia nada, absolutamente nada de mulheres, de seres humanos, de mães principalmente.
Sylvia Moran, sr. Juiz. Cabe-lhe agora descobrir a verdade sobre essa mulher. É a sua parte. Já falei tanto e tão mal dela, que tenho que relatar também como ela se portou àquela noite. Aquilo não era encenação! Não havia câmaras. O senhor precisa saber de tudo, disso portanto também...
Eu quero ver a Babs! - gritou ela de repente tão alto, que eu e
Rod nos assustamos.
Alguém aí sabe a verdade? perguntei a Rod. Ele apenas
conseguiu sacudir a cabeça, pois ela já continuava a gritar: Quero ver minha filha! Tenho que vê-la! Tenho, porque tenho! E tudo isso com aquela cabeça toda envolta em ataduras, já sem os tubos. Resfolegou. É minha filha! Não olhem assim para mim, é minha filha! Seus cachorros, idiotas, o que é que vocês entendem disso? Babs... Babs...
E continuou, sem que pudéssemos fazê-la calar. Rod disse ao meu ouvido:
Deixa, ela está muito fraca. Não agüenta isto por muito tempo.
Depois falo com ela Estava rouco. Tinha chegado antes de mim e já tivera
que aturar uma cena da Sylvia. As portas são forradas disse ele com
voz roufenha. Não se ouve nada lá fora.
Ficamos, pois, ouvindo durante uns dez minutos tudo que a Sylvia tinha a botar para fora. (Rod havia subestimado muito suas forças.) Na verdade, tudo que ela dizia era até muito comovedor, sr. Juiz, mas... poderia ser o fim de nós todos. Emocionante! Gritos cheios de dor, de amor... mas vãos, inteiramente vãos. Existem coisas que não adiantam, não é mesmo?
Quando a Sylvia parou um instante, Rod me fez um sinal. Agora era a minha vez. Pensei em tudo que a Ruth dissera, o quanto ela entendia aquela mulher. Puxei uma cadeira bem para junto da cama e tentei com toda doçura:
Minha pobre Bruxinha, claro que é horrível para você. Mas você
não pode ir ver a Babs. Vê se entende isso.
Posso sim! agora de repente falava baixinho. Posso!
Posso!
Pode não! Não dá! respondi. Pense nos repórteres...
Os repórteres que vão à merda!
Mas são eles que agora decidem seu futuro! Pense no seu futuro!
151 O futuro que vá à merda! Novamente as lágrimas começaram a
correr. Atrás de mim Rod Bracken xingava obscenamemte
Babs! Babs! E tudo por minha culpa!
O quê? fiquei olhando espantado para ela.
Eu é que sou culpada da doença da Babs!
Ela agora torcia as mãos.
Sou culpada! Inflamação do cérebro! Meningite! Logo isto! Sabe o
que é isto?
- O quê?
-É castigo de Deus pelo que eu disse em Monte-Carlo! Agora ele me castiga. Eu sou culpada, culpada! Culpada!! Gritava novamente.
Não grite! disse Rod e seu rosto estava crispado de ódio. De
ódio causado pelo medo, eu sabia disso pois sentia a mesma coisa. Pense
no seu rosto disse ele. Qualquer esforço, qualquer careta... Você não
pode ver a Babs. Como? Em cima de uma cama, por acaso?
Agora eu e Rod nos revezávamos. Quando se trata do bem-estar próprio, todos nós somos uns patifes ordinários.
Portanto, uma vez eu, uma vez ele.
Se descobrirem qualquer coisa sobre a Babs, sobre a plástica e todo
aquele mistério de antes, você pode desistir de sua profissão.
E a sua profissão é sua vida!
- Pense no CÍRCULO DE GIZ!
O filme de sua vida!
Vai tudo por água abaixo!
Acabou-se tudo. Falei com Joe pelo telefone. Ele diz que se transparecer qualquer coisa, nem um cachorro aceita mais o menor pedaço de pão de você.
Você não tem um contrato assinado apenas para o CÍRCULO DE
GIZ! Tem mais três, todos fechados!
Você tem a sua firma!
O que acha que vão dizer os bancos que estão financiando isso
tudo?
Isso, só não afrouxar.
Tratava-se da minha sobrevivência e de Rod Bracken.
Contratos fechados! Você conhece muito bem as cláusulas com
penalidades convencionais. Você nunca na vida conseguirá pagá-las, se não fizer o que estamos dizendo! E nós insistíamos: Você tem que ficar aqui. Phil sempre trás notícias! Para que os repórteres não o persigam, já se mudou até para um pequeno estúdio de um amigo que viajou. Num lugar completamente isolado. Rod trabalhara bem.
E cada dia as notícias serão melhores disse eu, vendo a Babs na
minha frente, vomitando, aos gritos, o corpo todo retorcido, ouvindo a voz de
Ruth Reinhardt: Ela está muito mal, sr. Norton. Ouvia a voz do dr.
Sigrand, pedindo que lhe ajeitassem uma cama ao lado da Babs.
152Me lembrei com que raiva a criança tinha me atacado, e disse: Os remédios já estão
fazendo efeito, palavra de honra, juro por meu amor a você, Bruxinha! Foi por isso que vim tão depressa. Para lhe contar que tudo vai acabar bem.
A sua profissão não conhece clemência, Sylvia disse Rod.
Um erro, o menor que seja... e você está liquidada para sempre Falando
cada vez mais depressa, passou a lhe pintar um quadro sinistro de como em breve, muito em breve, estaria vivendo às custas de serviços sociais, se agora não tivesse juízo.
- Juízo! - disse ela soluçando. - Quando eu sou culpada, quando
Deus me castiga! Realmente a sensação de culpa vem muito rápida, pensei
eu. me lembrando do que Ruth havia dito, e ouvi Rod dizer:
- Juízo sim. Você agora nada pode fazer pela Babs, mas pode estragar tudo para você. Para o resto da vida. Com a Clarissa e aquele professor idiota, o dr. Wolken, já está tudo resolvido. Ficam no hotel. Phil oficialmente fez uma rá pida viagem a Madrid, por causa dos preparativos para o CÍRCULO DE GIZ. Depois, volta a Paris. Aí a Babs já estará boa novamente. É só não fazer escândalo! Você nem imagina como eu gostaria de botar aquela idiota da Clarissa na rua. Mas aí ela dá com a língua nos dentes, e é pior ainda.
Clarissa gosta muito da Babs disse a Sylvia. Foi só por isso
que veio aqui.
Claro que gosta. É uma mulher maravilhosa disse Rod. Sentouse na beira da cama e eu sabia exatamente o que ele ia dizer, e foi o que falou:
Veja, Sylvia, no momento... por uns dias no máximo, existe apenas uma
pessoa que pode salvar toda esta situação. Phil.
Isso mesmo.
Ele sempre pode vir aqui, pode olhar pela Babs. Ele goza da
confiança dos médicos; mais ninguém. Ele consegue manter tudo no maior sigilo... só ele! Ele é o único que agora pode e vai zelar por sua carreira e sua felicidade junto a Babs... não é Phil?
Claro disse eu.
Com isso ela amoleceu.
Se não fosse você. meu Lobinho... O que faria eu agora sem
você... Estaria perdida...
Ora, mas eu estou aqui, eu amo você, minha Bruxinha, gosto da
Babs, você sabe disso. Ou não?
Lágrimas escorriam de seus olhos, desciam pelas manchas roxas e esverdeadas, para dentro das ataduras.
Claro que sei, meu Lobinho. Meu Lobinho adorado!
Rod olhou para mim. Eu para ele. Esta crise tínhamos conseguido superar. Não inteiramente, mas quase. Que troca de olhar, eu nem lhe digo, sr. Juiz!
Vocês têm razão disse a Sylvia É o único jeito. Agradeço a
vocês, tudo que estão fazendo por mim.
153Ela realmente estava sendo sincera. Pobre Sylvia! Que tudo que Rod e eu estávamos fazendo agora era bom para nós também, pois era a nossa existência que estava igualmente em jogo, ela não chegou a captar. Por sorte. Respirei fundo, para não passar mal (Sylvia continuava com aquele cheiro de Casa de Saúde); beijei-lhe a boca, mordi seu lábio. Ela gostava disso.
Você é o melhor homem que existe no mundo disse ela. A cena
estava terminada E você também, Rod. Vocês são os melhores homens do
mundo. Gosto tanto de vocês!
Vou dar mais um pulo até o hospital. (Nem estava pensando
nisso... Tinha é que ver a Suzy.) Só para dar uma olhada. Babs estava dormindo profundamente.
Amanhã volto para ver você, minha Bruxinha.
Obrigada. Lobinho. Muito obrigada. Nunca, nunca esquecerei o
que você está fazendo por mim agora. De seus olhos entumescidos rolavam lágrimas e mais lágrimas...
Lá fora no corredor me despedi de Rod. Ele tinha que voltar depressa para o hotel a fim de impedir novas desgraças. Constava que eu estava em Madrid com Babs; tinha pois que tratar de chegar a casa da Suzy, ao meu novo lar, sem ser reconhecido. É estranho, sr. Juiz, mas quando agora penso nisso, me lembro que nunca mais depois de adulto tive a minha casa, o meu lar. Um cantinho do qual eu realmente gostasse, que me pertencesse, aonde eu me pudesse recolher, me trancar e encontrar a paz. Nunca mais!
A irmã Hélène continuava a substituir a outra que faltara. Depois de puxar para o lado as grossas cortinas, eu a vi sentada na sala diante da enorme mesa com os relatórios dos doentes, as embalagens de remédios, as injeções. Ela levantou os olhos.
O senhor?... Já veio ver sua paciente?
Sim, prezada irmã.
Ela hoje está tão melhor!
Fiquei muito satisfeito.
Eu também. Ela até já pode receber visitas.
Eu sei. Será que a senhora poderia fazer o favor de me pôr em
contato com o dr. Delamare?
Aconteceu alguma coisa?
Não! Só queria falar com ele. É de caráter particular, a senhora
entende?
154Pois não disse a irmã. O doutor jà está em casa. Bem no fim
do corredor tem uma cabina de telefone. Vou lhe dar o número do dr. Delamare; o senhor mesmo poderá ligar.
Liguei para o médico. Durante muito tempo fiquei pensando se devia ou não fazê-lo, e cheguei à conclusão de que era minha obrigação. Evidentemente não disse nada a respeito do acesso de raiva da Sylvia em Monte-Carlos, nem das minhas preocupações. Disse apenas que a Babs estava internada com meningite no Hospital Sainte-Bernadette, e que a mãe soube do caso por intermédio de uma governanta muito nervosa.
Ela ficou muito agitada disse eu em pé na cabina de telefone
Queria de qualquer maneira ir ver a filha.
Mas isto é inteiramente impossível no estado em que ela se encontra! exclamou o médico.
Exatamente. Eu a acalmei. Disse que olhava pela menina e que iria
mantê-la constantemente informada.
Agiu muito bem.
Só queria lhe pedir, doutor, que deixasse instruções, para que
olhem por ela com especial atenção... O medo, a preocupação, poderão voltar... Deve haver meios de acalmar uma paciente num caso desses...
Claro. Sedativos. Excelentes. Assim que o senhor desligar toco
para a clínica e dou minhas instruções à irmã.
Muito obrigado, doutor.
Estou realmente com pena do senhor. Com tantos problemas, ainda a menina aDocce. Sinto muito, sr. Norton.
t Obrigado, doutor.
46
Maluco, maluco de todo é o que você é! disse a Suzy.
Estava instalada em sua sala louca, numa daquelas “coisas” de fibra de vidro de cor amarelo berrante com um robe preto transparente, sem nada por baixo. Recebeu-me em sua casa, há uma meia hora, radiante, feliz. Agora já não estava mais nem radiante, nem feliz. Estava nervosa.
Suzy fumava. Fumava sem parar, desde que eu chegara. Bebia também Calvados. Eu estava sentado diante dela em outro daqueles assentos de plástico, vermelho vivo (o senhor sabe, sr. Juiz, parecem camas de ar que se usam como bóia, só que têm encosto e são apoiadas no chão). Entre nós dois havia uma mesa do mesmo material, verde-bandeira, grossa, de forma ovalada, que mais parecia um queijo gigantesco. Todo o apartamento de Suzy era decorado nesse gênero. Com instalações de som, porters e móveis de fibra.
155Até os tapetes eram de algum material sintético especial. Tudo aquilo devia ter custado uma fortuna. Era até um moderno muito confortável, embora naquela noite eu não estivesse me sentindo lá muito confortável. O relógio marcava quase meia-noite.
O que eu podia fazer, sr. Juiz? Assim que entrei, a Suzy quase me estupra; depois me ataca com uma enchurrada de perguntas. Por que eu vinha para sua casa, se estava sendo perseguido, se tinha cometido algum crime? E apavoradíssima: Será que você liquidou algum tira?
Não tem nada a ver com a polícia!
O susto cedeu lugar ao entusiasmo.
Então está tudo bem. Então seu lugar é aqui mesmo perto de mim,
seja por que for. Mesmo se tivesse polícia metida no meio, eu podia ajudar. Ninguém podia. Mas assim...
Assim você pode?
Se posso disse ela muito orgulhosa. Você nem sabe quanta
gente da polícia conheço. Não aqueles pobres tiras, coitados! Os chefões! Gente lá de cima! Já fiz muito favor a eles, por isso também fazem qualquer coisa por mim. Se há uma casa que não é revistada, é a minha. Se procuram por alguém, não é aqui. Só em último caso. Isto me prometeram. Aí, você tem tempo de sobra para se mandar! Posso também arranjar documentos falsos, um carro roubado todo recauchutado.
O senhor entende porque tive que contar a verdade a Suzy? Do contrário ela teria ficado maluca. Já estava quase ficando, só de imaginar tudo que podia fazer por mim. Com certa dificuldade, consegui que ela se calasse.
Suzy, eu não me meti em encrenca nenhuma!
A dona da casa ficou me olhando com cara tão estranha quando as
malas chegaram, mas ela também não...
Suzy! berrei, porque ela já estava querendo me arrumar dinheiro falso, documentação falsa, metralhadoras e sei lá o quê! O efeito foi
imediato. Arrume qualquer coisa para beber. Você vai precisar. Depois
conto tudo.
E acabei contando tudo. Tudo. Não escondi absolutamente nada. No fim de.minha narrativa, ela disse:
Maluco, maluco de todo é o que você é!
Mas por quê? perguntei. A caminho de sua casa tinha comprado alguns sanduíches e engolido avidamente. Agora estavam me pesando no estômago. Bebi uma quantidade imensa de vinho com receio de que aqueles sanduíches pudessem estar estragados, e que eu pudesse aDoccer. ADoccer eu, agora... Isto seria o fim!
Ora por quê? Maluco porque continua metido nesta droga!
disse ela. O robe se abriu embaixo e eu fiquei olhando. Em outras horas só de imaginar já o calor me subia, mas agora me deixava inteiramente frio. Estava curioso para ouvir os argumentos da Suzy.
156Não conseguia mais pensar claramente. Ela sim. Era uma mulher sensata. Conhecia a vida.
Vamos pois ouvir o que ela tem a dizer. É melhor tomar antes mais um vinhozinho. A cara do rosbife não tinha sido lá grande coisa...
Mas eu tenho que continuar naquela droga disse eu.
Tem que nada disse ela encolhendo as pernas. Ninguém tem
que nada. Ela bebia também. Inclinou-se para a frente. A voz de nenê de
repente desapareceu; falava sério: Vamos admitir que a menina bata as
botas. Muito bem. Mas quem garante? E se não?
Então está tudo bem disse eu continuando a beber. (Porcaria de
bar! O queijo também não tinha sido dos mais frescos!)
Deixa eu falar, sim?
Se eles conseguirem salvar a menina, e ela nunca mais ficar boa de
todo, quero dizer se ficar cega, surda, muda, ou se virar débil? disse ela
muito séria. Como você imagina seu futuro? Eu gosto um bocado de você.
Você é o primeiro homem na minha vida... por favor não ria... é o primeiro homem a quem amo de verdade... Já disse, não ria!
Eu não estou rindo.
Ela acendeu um cigarro.
E sabe por que gosto tanto de você? Porque você é o primeiro na
minha vida, e eu nunca mais vou gostar de outro como gostei de você!
Não. Por quê?
O robe abriu. Ela estava sentada nua diante de mim. Eu vestido diante dela, e a mesa com cara de queijo entre nós.
Você me contou tudo. Você foi formidável. Principalmente pela
confiança que mostrou ter em mim.
Não vai começar a chorar, não é?
Mas eu não agüento! Me dá o lenço!
Estiquei-o. Ela primeiro assoou o nariz, depois enxugou as lágrimas.
Obrigada. Vou dizer por que gosto tanto de você. Mas não pode se
zangar. Não quero que se zangue!
Não precisa ter medo. Pode dizer o que quiser.
Isso é que é o maravilhoso entre nós disse ela. Cada um
pode dizer tudo ao outro, pode fazer com ele o que quiser: Um sabe tudo a respeito da vida do outro. Isto é, você sobre mim ainda não. Mas eu de você, meu amor. Eu sempre faço aquela cena toda dizendo que não quero ouvir...
Não quer ouvir o quê?
... quando você fala a seu respeito daquele jeito; mas no fundo sei
que é exatamente como você diz.
E o que é que eu digo?
Que você é uma boa merda disse ela.
Tive que emborcar mais um copo.
Agora você se ofendeu.
157Que nada! disse eu. Você tem razão. Eu, ofendido? Ridículo!
Graças a Deus! Eu ainda não terminei, meu bem. O principal é que
eu sou igualzinha a você. Você me entende? É por isso que nos entendemos tão bem. É por isso que você é o primeiro homem que amo de verdade.
Um momento disse eu. Que estória é essa de que você é
igualzinha a mim? Você dá um duro danado, tem o seu salão lá na Rua Charles Floquet perto da torre Eiffel, numa zona elegante, tem cinco auxiliares que são uma beleza, conseguiu chegar a alguma coisa na vida...
Ela me interrompeu:
Phil! Será que você nunca percebeu? Um homem como você! Será
que nunca percebeu mesmo?
Percebeu o quê?
Minas bonitas auxiliares.
O que têm elas?
São cinco lindas putas disse ela Não consigo entender como
você nunca tenha percebido isso. É verdade mesmo?
Verdade.
Você é mesmo um amor! É só pagar e qualquer uma delas deixa
você trepar. Elas só não se metem, porque sabem que você é meu. Mas se soubessem quem você é, garanto que elas é que lhe pagariam. Até hoje tudo correu às mil maravilhas. Os sujeitos vêm, passam a conversa nas meninas, se encontram depois em qualquer lugar, se servem e vêm entregá-las. Nunca nenhuma delas me enganou. Ponho minha mão no fogo por qualquer uma!
Muito bem disse eu Maravilhoso! Mas se tudo está correndo
tão bem, qual o problema?
Elas não dão mais conta.
De quê?
Ora de quê? disse ela. Foi se espalhando por aí que eram
gatinhas fabulosas, e os sujeitos voltam sempre, trazem sempre gente nova. Nós estamos nos enchendo de dinheiro, mas se continuar assim por mais um mês, posso fechar as portas, pois todas as gatinhas estarão liquidadas... liquidadas de vez.
Você está vendo? disse eu Cada um tem os seus problemas.
Já pensei até em ajudar também, trabalhando tanto quanto elas,
afinal eu não sou a “chefe”, não sou melhor do que elas. Todos somos iguais perante Deus, não é mesmo, meu bem? Mas o que adianta? É apenas uma gota dágua num oceano, mais nada. Justamente na hora que conseguimos juntar dinheiro como lixo, acabou-se. Não dá mais.
Mas você vai ser condessa disse eu. Você não precisa mais.
Vende o salão.
Condessa! disse ela com amargura. E quem eu ganho em
troca? Vou1 dizer uma coisa, desde que conheci você, o pequenino me dá nojo. Me arrepio toda só dele encostar em mim. Passo mal até de olhar para ele.
158Que é isso?
É isso mesmo. É a pura verdade! Você nem sabe como estou
satisfeita dele ter ido para Acapulco. Mas ele volta. E você vai embora. E aí eu me torno condessa! E depois?
Tomei mais um copo. A Suzy também.
As garotas gostam tanto de você disse ela. Todas. Qualquer
uma faria tudo por você. Falei com elas uma vez. Claramente. Tenho dinheiro bastante para abrir um segundo salão. Garota bonita anda solta por aí aos bandos. Mais bonitas até do que as minhas! Poderia escolher só especialistas. Você sabe... Tudo isso eu conseguiria. Ficaria riquíssima... ou você acha que não?
Tenho certeza que sim.
Bem, e aí é que está a dificuldade.
- Qual?
Eu não conseguiria mais controlar tudo. Seria um empreendimento
grande demais para mim. Controlar as meninas, prestar contas, controlar os sujeitos que aparecem. Daí, para abrir um segundo salão, eu ia precisar de um homem. Um homem como você.
Calei-me.
Eu disse: de um homem como você! repetiu ela.
Já ouvi.
E o que é que você acha?
Bem, eu...
Vê só - continuou ela ansiosa É tudo tão simples! Você larga
a velha de mão. Larga a Babs.
Se fosse tão simples assim!
Então não é? Você não tem a menor idéia quem é minha clientela.
Não é policialzinho, não. Que nada! É gente lá de cima. Sempre fiz questão disso. Primeiro arrumei um amigo na polícia; isso é o mais importante. Claro que se você desaparecer de repente, vai haver um escândalo. Mas encontrar, não vão encontrar você nunca! Você não deu meu endereço a ninguém, ou deu?
Claro que não.
Quando ligou para mim lá no hotel, nem meu nome você disse,
prestei bem atenção.
- Eu também; tinha alguém a meu lado.
Aí está!
- Mas os homens que trouxeram as malas do aeroporto?
Aí eu tomei minhas precauções - disse a Suzy cheia de si.
Nem apareci. Tenho lá aquela pequena, a aprendiz, que é idiota como quê, graças a Deus! Os homens não trocaram nem três palavras com ela. Se procurarem por você, ela vai dizer que a bagagem foi apanhada logo depois novamente.
E por quem?
159Por alguém. Era gente minha, não é? Aquela idiota nem se lembra;
nunca se lembra de nada. Arrumo uma papelada perfeita para você. Você fala francês como um francês. Muda o corte de cabelo; deixa crescer um bigode. Você é meu amigo. Em algumas semanas tudo estará esquecido. Eu me livro do meu conde, você de sua velha, e a criança... não que eu não tenha pena dela... mas tenho que pensar em nós dois! Uma coisa eu posso jurar a você: nunca vou tratar você do jeito que aquela velha trata! Fazendo plástica no meio dos trinta... puta velha! Comigo, você é que é o homem dentro de casa. O que você quiser, será feito. Você não é mais gigolô! Serei para você a melhor mulher do mundo... não precisa se assustar; não quero que case comigo. Serei a melhor mulher, mesmo sem casar. É só você ficar comigo. Como é, a proposta é tão ruim assim?
Agora o senhor já sabe alguma coisa a meu respeito, sr. Juiz. Agora o senhor poderá entender o que se passou pela cabeça de alguém como eu, quando ouvi Suzy dizer aquilo. Foi o que sempre desejei, pensei eu, mudar de vida. Deixar tudo para trás, começar de novo. Acabar de uma vez com essa vida de playboy. Acabar com isso tudo!
Eu perguntei se a proposta era ruim, meu bem. Ouvi a Suzy
dizer.
Não é não disse eu devagar. Não é nada ruim Ela ergueu-se
de um salto atirou-se em meus braços, jogou-se no meu colo. Senti seu corpo quente; me abraçou e beijou furiosamente e meteu a mão ali.
Meu amor! Meu querido!
- Se a Babs realmente ficar surda, muda, cega ou idiota, só me resta
passar uma corda no pescoço disse eu olhando fixo para frente. Suzy
ficou encantada. Viu? Eu não disse? Meu amor, como estou feliz!
Beijou meu rosto todo; dei até um grito quando ela encostou nos lugares roxos. Levou um susto imenso, e começou logo a soprar.
Agora vamos tomar aquela bebedeira, ligar a música... e fazer
todas aquelas coisas gostosas disse ela.
Até que uma bebedeira não é má idéia disse eu.
Ergueu-se de um salto, arrancou o robe, e saiu dançando nua pela sala. Depois executou uma dança especial só para mim. Bebemos, ouvimos discos, Gershwin, Cole Porter, Glenn Miller; ambos gostávamos deste velho melodioso tipo de jazz. O tempo inteiro nos beijávamos e acariciávamos, esperando ainda com o ir-pra-cama, pois eu sabia que era uma característica da Suzy. Por mais que ela me desejasse, ficava hesitando até o fim, o que para mim era especialmente excitante. As horas foram passando, sr. Juiz; a Suzy fez um café bem forte, para que não ficássemos bêbedos demais. Como sempre, fui ficando relativamente sóbrio, e lá pelas cinco da manhã talvez, carregamos o toca-disco para o quarto, e ela tirou minha roupa. Quando estava inteiramente nu diante dela, um novo disco caiu do pino para o prato, e ouviu-se a voz
de John Williams: “Dieu, merci, pour ce paradis, qui s’ouvre, aujourd’hui
à 1’un de tes fils...”
160Eu me sentei.
O que foi? O que você tem, amor? exclamou a Suzy assustada.
... pour plus petit, le plus pauvre fils... merci. Dieu, merci,
pour...” Mas eu já estava junto ao toca-disco. Arranquei a agulha (ouviu-se um arranhão), e quase estrago a aparelhagem toda, tentando tirar o disco do pino. Suzy olhava para mim horrorizada. Finalmente estava com o disco na mão; olhei em torno, vi um braço de poltrona, e em cima dele quebrei o disco ao meio. Parti as metades mais uma vez em dois, e cortei a palma da mão direita. O sangue escorreu. Atirei os pedaços do disco no canto. Depois fiquei em pé ali, nu, mudo, imóvel. Suzy também olhava muda para mim, depois olhou para o chão. Não chorou; estava triste demais para isso. Levantou-se apanhou iodo e esparadrapo, fez o curativo e disse:
- É Babs, é?
Aquiesci.
Você quer ir até a Casa de Saúde?
Aquiesci novamente.
Agora?
Só fiz sinal com a cabeça.
Com a voz mais triste que já ouvi ela disse:
Eu preparo depressa um café bem forte. Você tem que comer
alguma coisa também.
Não consigo engolir nada.
Mas eu consigo! Agora mesmo. Você vai se vestindo enquanto
isso. No banheiro tem tudo que precisa. Saiu correndo do quarto.
Entrei no banheiro, me vesti e fui até a cozinha, onde Suzy tomou café comigo. Ainda continuava triste, mas procurava sorrir. Também eu fiz um esforço. Aquele café bem forte estava excelente.
Gosto tanto de você, meu amor! disse ela.
Eu também respondi.
Aqueles meus planos... estava falando sério...
Eu também.
Mas agora não vão dar mais em nada.
Calei-me.
- Está vendo? disse ela.
Sinto muito.
Eu não quero que você se desculpe falou. É claro que você
fica morando aqui enquanto precisar de mim. Ela disse “de mim” e não
“da minha casa”. Ninguém vai saber que você está aqui; eu lhe prometo... a não ser as pessoas que você acha que precisam saber.
- Obrigado, Suzy.
Quer que eu chame um táxi? perguntou ela, passando as costas
da mão na boca.
Não disse eu. É muito arriscado. Além disso, ainda é muito
cedo. Vou andando um pedaço. Que horas são?
161Quase sete disse ela. Olha os óculos.
Coloquei os óculos escuros. Fomos até a entrada. Suzy apanhou minha capa e depois me beijou.
Vou pendurar todas as suas coisas. As da Babs, tiro da mala
também, para não amassarem. Você está levando a chave?
Estou.
Pode vir quando quiser. Daí a pouco vou para o salão. Mas você
volta assim que puder; está precisando de dormir.
Estou sim. Obrigado, minha Suzy.
Você não tem nada que agradecer disse ela Preciso falar com
os meus amigos da polícia para que eles não venham procurá-lo na minha casa.
Não precisa não falei. Deixei o hotel ontem em companhia
da Babs. Fui para Madrid. Não lhe contei.
Que bom! disse a Suzy, virando a cabeça.
Não chora não. Por favor, meu bem, não chora!
E quem está chorando? perguntou, olhando para mim e esfregando um olho. Tinha acendido um cigarro. Foi fumaça que entrou no
meu olho. Já passou. Fico satisfeita de você ao menos vir morar aqui comigo... por algum tempo. Mesmo que seja só por uma noite. Nunca se sabe. Claro que teria sido muito melhor se meus planos tivessem dado certo. Mas não vão dar nunca. Você nunca mais vai conseguir sair deste círculo.
Isto é que veremos disse eu.
Sai não disse ela. Não veremos nada. Se conseguisse sair,
você acha que ia agora ver a menina?
Eram sete e dez da manhã de quinta-feira, 26 de novembro de
1971.
A GAROTA-RAIO-DE-SOL!
A Babs.
Lá estava ela.
Banhada em suor em sua cama.
Vi pequeninas bolhas em seus lábios e manchas vermelhas no corpo inteiro. Soltou um grito. De repente os bracinhos e pernas se esticaram para o alto, primeiro duras, depois começou a estremecer. Todo o corpinho estremeceu. A respiração ofegante, chiava, sibilava; ela não conseguia ar suficiente. Se jogava de um lado para outro. As pupilas estavam reviradas, uma das pálpebras caídas, as bordas inflamadas. Tudo isto eu consegui ver na fraca luz da lâmpada azul.
162Os braços e pernas da Babs se contraíram com uma violência assustadora. Espuma escorria de sua boca, embora eu visse que os dentes estavam fortemente cerrados, e com tanta força que chegavam a ranger.
Duas irmãs, o dr. Sigrand e a dra. Ruth estavam ocupados com ela. Eu estava em pé mais afastado. As mulheres seguravam a criança, para que o médico lhe pudesse aplicar uma injeção.
Eram oito e quinze do dia 26 de novembro de 1971. Tinha andado alguns quilômetros a pé, antes de encontrar um táxi. Chegara há dez minutos. Fui correndo pela ala da administração. Passei por todas as portas abertas. Nas salas havia rádios e televisões ligados. Entendi apenas pedaços de frases.
“... conseguiram ainda evitar que soldados da infantaria holandesa invadissem o quarto andar.,.”
“... O japonês Furuya não dorme há sessenta horas. Seus guardas
acordam constantemente...”
Depois alcancei a silenciosa ala dos doentes.
Logo em seguida estava no quarto da Babs e vi as quatro pessoas em redor da cama. O dr. Sigrand foi o primeiro a se virar. Seu rosto estava cinzento de cansaço. Vi a cama improvisada na qual ele, naquela noite, não devia ter dormido mais do que meia hora. Seus olhos estavam injetados de sangue; seu rosto com a barba por fazer. Ao me ver empertigou-se.
O senhor!
Sim, eu.
E por que veio até aqui?
Não quis confessar mas acabei dizendo.
De medo, medo pela menina.
E por que não ligou?
Não teria sido a mesma coisa. Tinha que vê-la.
Naquele instante acabou a aversão do dr. Sigrand por mim.
Só mais tarde tive consciência disso. Foi o momento a partir do qual me tratou como gente.
Olhei para a médica. Respondeu meu olhar rapidamente, séria. Tinha que cuidar da Babs. A doutora parecia uma velha. Também ela mal devia ter dormido durante a noite.
Se o senhor ao menos tivesse telefonado disse o dr. Sigrand.
Por quê?
Porque aí lhe teríamos dito para vir imediatamente. Ontem em
meio a toda aquela agitação, o senhor esqueceu de nos deixar seu número de telefone. Ligamos para o Hotel. O sr. Bracken também não sabia como
encontrá-lo. A Babs gritou alto. O médico se virou para ela e disse por
cima dos ombros: Ele o procura desesperadamente.
Ora bolas, pensei eu, não é que eu tinha esquecido!
Mais estranho ainda é o senhor aparecer aqui assim disse Ruth
Reinhardt.
Por quê?
163Porque agora de qualquer maneira... Não conseguiu terminar
a frase. Babs gritou mais uma vez como um animal; braços e pernas ergueram-se para o alto, teve qualquer coisa parecida com um ataque de epilepsia. Creio que em toda minha vida nunca me assustei tanto. Sou um sujeito meio covarde, sr. Juiz, mas garanto que até o homem mais valente ficaria apavorado vendo a menina. Comecei a me sentir mal.
Saí rápido do quarto, vi a porta de um lavatório, entrei depressa, vomitei. Ao passar uma água na boca, me olhei no espelho. Meu aspecto era horrível. Fedia a Calvados. De repente minhas pernas fraquejaram. Tive que
me sentar. Fiquei sentado uns quinze minutos, olhando para o nada, e vi
escrito na parede: VIVA DE GAULLE!
Finalmente saí de novo para o corredor e entrei no quarto da Babs. Apenas duas irmãs estavam ali.
Sr. Norton...
O que houve com a menina?
Ela não está nada bem disse a irmã A dra. Reinhardt e o dr.
Sigrand estão a sua procura. Precisam falar com o senhor.
- Falar?
Sim, é urgente. Vou mandar chamá-los. Por favor espere na sala da
dra. Reinhardt.
As duas irmãs eram muito simpáticas.
O senhor sabe onde é a sala?
Aquiesci e saí. Segui pelo corredor silencioso. Outro corredor. A ala da administração. Aqui ouviam-se vozes novamente...
“... assumiram a direção durante...”
“... Os terroristas também pedem jornais...”
E com isso cheguei à sala da Ruth, àquela sala com a quantidade de brinquedos educativos, primitivos e coloridos; os jogos para testes, as pequeninas cadeiras de roda junto à janela. A sala com a mesa superlotada. Lá estava a ovelhinha. A moldura com as frases de Buda. Olhei depressa para o outro lado. Aqui, como em toda parte aliás, havia luz acesa; lá fora ainda continuava meio escuro. Parei em frente à estante dos livros de medicina.
Faber, N.W.: The Retarded Child; Carmichael, L.: Manual of Child Psychology.
Havia no mínimo uma centena de livros. Ingleses e alemães na altura dos meus olhos; russos no meio; filas inteiras de franceses, um pouco mais abaixo.
164Depois descobri um volume em cuja lombada estava escrito: Reinhardt, R.: “Clínica e Terapia da Lesão Cerebral.”
Ruth Reinhardt!
Ela escrevera aquele livro!
Tirei o volume e abri. Li uma dedicatória impressa: AO DR. BETTELHEIM MEU GRANDE PROFESSOR, COM ESTIMA E GRATIDÃO
RUTH REINHARDT. -
Ouvi passos.
Rápido recoloquei o livro na estante. A porta se abriu. Ruth Reinhardt, o dr. Sigrand e uma irmã entraram. A irmã trazia uma bandeja com um grande bule de metal, três xícaras e um açucareiro. Colocou a bandeja em cima da mesa e saiu.
Graças a Deus o encontramos disse o doutor. Deixou-se cair
numa poltrona, deu um suspiro, esticou as pernas, esfregou os olhos.
A médica olhou para mim.
Aceita um café?
Aceito, obrigado.
Encheu as xícaras.
A senhora escreveu um livro, doutora?
Escrevi disse ela, e pela primeira vez ficou meio encabulada.
Nos sentamos em volta da mesa, de xícara na mão, bebendo. Vi que a mão do médico tremia ligeiramente. Aquele homem devia estar à beira de um colapso. Sem olhar para mim, ele disse:
Desculpe meu comportamento, mas o senhor deve saber que...
Ele já sabe disse a doutora.
Melhor ainda respondeu ele. O senhor veio aqui de medo pela menina. Agora tudo mudou. Agora...
Ora, dr. Sigrand. Deixe disso, por favor. Disse eu.
Calou-se; tomou seu café quente. Nós também. Por um instante o silêncio era completo.
Infelizmente temos que lhe comunicar coisas bem ruins, sr. Norton
disse a doutora Penicilina e os mais diversos antibióticos, Hemoglobulina, derivados da Cortisona, etc. etc, tudo que se possa imaginar enfim, a nada a Babs reage.
Mas não reage absolutamente - interveio o médico. - Além disso as convulsões estão se acentuando.
Convulsões?
E aquele maldito dia não clareava.
Aquilo que o senhor acabou de presenciar.
Pensei que fosse um ataque de epilepsia.
É parecido... mas não era, sr. Norton disse o dr. Sigrand,
165aquele médico que agora me tratava como amigo. Tudo tem relação com as meninges inflamadas, com o cérebro inflamado.
Tudo confirmou Ruth Reinhardt. O ranger de dentes. Os
sinais priramidais positivos...
Que são sinais...
É complicado demais para lhe explicar disse o dr. Sigrand.
Chegamos ao fim de nossos recursos. Há três horas recebemos a pior noticia do laboratório. O que receávamos, se confirmou: não é apenas uma meningoencefalite. É uma forma mista.
Mista, como?
Tem um vírus junto. Além das bactérias. Por isso os medicamentos
não fazem efeito.
Ouvi umas gralhas grasnarem.
E agora, o que mais pode acontecer? perguntei. Nada?
Pode sim respondeu a Ruth olhando para sua ovelhinha.
Alguma coisa que salve a vida da Babs?
Alguma coisa que... olhou para Sigrand como quem pede socorro.
Alguma coisa que muito provavelmente a salve disse o médico.
Com uma probabilidade bem grande.
Mas não cem por cento disse eu.
Cem por cento, não concordou ele.
Aquelas malditas gralhas grasnavam sem cessar; devia estar nos sobrevoando.
E o que querem os senhores que eu diga?
Infelizmente o senhor terá que dizer alguma coisa, sr. Norton disse a doutora. E agora mesmo. O mais rápido possível. Como o senhor sabe...
Sabe repetiu o dr. Sigrand as bactérias podem ser controladas. De nada nos adiantaria no entanto, enquanto não conseguimos isolar o vírus. O mais importante, o mais urgente é, portanto, pormos um fim aos danos causados pelo vírus.
E não existem meios para isso?
Existe um, sr. Norton disse Ruth Reinhardt.
E então!
Existe um repetiu ela mas que ainda se encontra em fase experimental, sr. Norton.
- Ah!
Não tem nada de ah! Produtos novos destes gêneros, e no caso se trata de um antibiótico de amplo espectro com efeito virológico especial, por vezes permanecem durante anos e experiências clínicas. Já fizemos uso deles diversas vezes. E os resultados obtidos foram quase exclusivamente bons.
Quase?
166- Sim, sr. Norton. Na maioria das vezes chegam até a operar milagres. Mas nem sempre. Em alguns casos...
Eu compreendo.
De qualquer maneira é o único meio com o qual podemos salvar a
vida da Babs.
O único meio, através do qual existe uma grande probabilidade de
salvá-la disse eu.
- Exatamente - respondeu o médico. E para isso, para usá-lo,
precisamos de sua autorização escrita. Temos um regulamento. O senhor terá que dar sua permissão, caso contrário, não poderemos usá-lo.
Tomei meu café.
E se eu concordar, e a coisa não der certo?
Nenhuma resposta.
Olhei para Ruth Reinhardt. Ela olhou para mim e continuou calada.
Olhei para o dr. Sigrand. Também olhou para mim, calado. Deu de ombros. Depois disse:
Se não usarmos este medicamento, não podemos garantir que a
Babs consiga chegar até o fim do dia.
Sabe de uma coisa, sr. Juiz, pessoas como eu têm logo uma porção de idéias. A primeira que me ocorreu foi: E se ela não chegar até o fim do dia? Não seria melhor? Não é solução para tudo? Mas depois, aconteceu uma coisa que não consigo entender até hoje. Algo de inteiramente louco no procedimento de um homem como eu. Acho que existe uma única explicação para tudo isso: desde o momento que encontrei aquela doutora, qualquer coisa dentro de mim- não regulava mais. Só pode ser essa a explicação para tudo que fiz a partir daí, e também para a segunda idéia que me ocorreu. Eu nem pensava que a Sylvia pudesse me acusar de assassino da sua filha, se eu recusasse meu consentimento. Não, a segunda idéia (e é realmente constrangedor um sujeito como eu colocá-la em papel) era esta: E quem é você, para poder sem mais nem menos condenar à morte esta criança? Não só a ela, mas a qualquer ser vivo sobre a Terra?
Com uma voz que não era minha (ao menos assim me pareceu), eu disse:
Concordo. Façam tudo. Usem o novo medicamento.
A doutora Reinhardt colocou uma folha de papel diante de mim. Tudo que. era necessário já estava preenchido, conforme pude ver. Assinei.
Com esta assinatura estava decidido o futuro de todos nós, de tudo que ia acontecer e que em última análise levou Romero Rettland a ficar caído no chão imundo de um quarto de um dos mais sujos hotéis de encontro de Nurenberg, Morto, com uma bala de aço no coração.
167Diagnóstico
QUIROMANTE: O senhor sabe o que está para vir. Chuva e mais chuva! Torrentes de chuva. O dilúvio. Mas antes, irá ver coisas vergonhosas
vergonhosas. Alguns entre os senhores irão dizer: Deixem que ele se
afogue; ele não merece ser salvo; desistam de tudo! Posso ler isto em seus
rostos. Mas os senhores estão sendo injustos.
“Escapamos Mais uma Vez”
THORNTON WILDERO velho pegou a criança morta. Lágrimas lhe corriam pelas faces. Foi seguindo pelo caminho empoeirado entre os campos, sempre em frente. Carregava a criança nos braços. Seu chapéu estava todo amassado, os sapatos cambaios, a calça e a camisa rasgadas. O caminho pelo qual seguia, parecia não ter fim. Ia cambaleando, a passos inseguros, mas continuava sempre em direção às montanhas azuis que se erguiam lá no infinito, em meio à névoa e à luz do sol. Fazia muito calor, a terra estava ressecada e via-se que o velho tinha grande dificuldade em andar; mas continuava, a criança morta nos braços. Agora já estava bem pequenino. O quadro escureceu. Do escuro veio surgindo devagar a palavra FIM. A princípio pequena; aumentando gradativamente, parou no meio da tela. Esta também escureceu.
Nos últimos momentos reinara um silêncio de morte. O filme terminara sem música, sem o menor ruído. A enorme sala do Teatro Sistina na via Sistina perto da Piazza Barberini, continuou escura.
Era 18 de maio de 1972, uma quinta-feira, bem no centro da Cidade Eterna. Hora: 22 e 47 minutos, conforme consegui ver no mostrador luminoso do relógio de pulso. Fazia um calor infernal no imenso teatro. Há dias uma onda de calor, a mais intensa do século, torturava a Cidade Eterna. Eu estava sentado com Rod Bracken ao lado de Joe Gintzburger, num camarote lateral. Rod me dissera certa vez que Joe possuía a voz de um vendedor de Bíblias; foi do que me lembrei quando o Presidente da SEVEN STARS disse baixinho para mim:
Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! E o fato de Alfredo ter
partido desta vida há três semanas, é um milagre, Phil. Um verdadeiro milagre!
É mesmo, Joe respondi também em voz baixa.
Nunca poderemos agradecer bastante ao Todo-Poderoso, de Alfredo ter ido ainda antes da estréia. Só na Itália, isso ainda vai nos render meio milhão de dólares e mais. Meu Deus, eu lhe agradeço disse Joe Gintzburger de smoking como eu, pequeno, rosado, franzino; o homem com o rosto mais bondoso do mundo (apenas sua boca tinha saído pequena demais, parecia um furo).
- Amém respondeu Rod.
Aos poucos a quantidade de luzes na sala de projeção onde estava se realizando o festival, foram se acendendo. Fiquei imaginando um eletricista ligando as chaves uma a uma, até a sala ficar totalmente ilflminada. Aos pés da tela, flores... um arranjo fantástico, quase um jardim botânico. O silêncio na sala perdurava. De repente a Sylvia surgia no palco, entrando por uma cortina lateral. Um refletor a procurou, localizou, fixou. Envolta numa luz irreal lá estava ela, vestida a rigor.
171Num vestido cor de petróleo, na frente fechado até o pescoço, atrás com um decote bem fundo. Sapatos de cetim da mesma cor do vestido, brincos de brilhantes, pulseira de brilhantes, um solitário no dedo (o maior que possuía). Apenas isso. Bem sóbrio. Afinal estávamos ali reunidos para uma ocasião solene. Além de outras personalidades encontrava-se ali toda a “sociedade” de Roma. Não aqueles Dolce-Vita da Via Veneto, mas os que raramente apareciam em público: representantes de nobiliarquias seculares, presidentes dos maiores bancos. Os milionários do norte onde estão estabelecidas as indústrias de automóveis, pneus, locomotivas, armas e sapatos; umas duas dúzias de políticos; eu os conhecia a todos, eram membros dos partidos que dirigiam o país no momento. Era estranho, já assistira no mínimo a uma meia dúzia destas estréias de gala, e sempre encontrava os mesmos homens em outros governos. O governo mudava constantemente, eleitos porém eram sempre os mesmos homens, embora estivessem sempre em outros ministérios ou, por vezes, até fizessem parte de outros partidos. Era uma brincadeira da roda fantástica (a Itália no momento estava passando evidentemente por nova crise). Diretores de jornais, grandes artistas famosos do cinema e do teatro, cantores e pintores, tudo gente mundialmente conhecida, disto havia se encarregado Carlo Marone.
Quem é Carlo Marone, eu contarei logo a seguir. Narrarei também tudo que aconteceu entre aquela fria manhã de novembro de 71, quando dei meu consentimento para o tratamento da Babs com o antibiótico de amplo espectro e de efeito virológico especial, que ainda não estava suficientemente testado, e essa quentíssima noite de maio de 72. Muita coisa aconteceu; muita coisa horrível, tão horrível que ninguém aqui se espantou da Babs não estar presente...
Lá estava também a Igreja. Os representantes do Vaticano. Dignitários bem próximos à cadeira do Santo Padre, e representantes dos representantes. Diplomatas estrangeiros, evidentemente. O filme que acabava de ser apresentado era de um conteúdo altamente ético, baseado na obra de um famoso autor italiano que apresentava três qualidades essenciais para que sua obra fosse levada à tela. Primeiro: estava morto há mais de 80 anos; não havendo pois direitos a pagar. Segundo: tinha sido anarquista. Terceiro: tornara-se defensor inexorável da Igreja católica. Era o açúcar no mel. Daí também todos aqueles representantes do clero, a quantidade de chefes do partido comunista. Sejamos justos: Carlo Marone tinha tido a sua oportunidade e tirara o máximo proveito dela! Aí realmente só se encontrava a nata da sociedade italiana, o próprio Marone se encarregava de zelar por isto. O poderoso produtor de cinema, televisão, jornalista e editor Olieri e sua bela esposa, Marone havia deixado três dias na incerteza se poderia ou não ainda lhes conseguir um convite para aquela estréia. Soube que Aneto, o costureiro, ligara três vezes pessoalmente para Marone, e chegara a implorar dois convites para si e seu jovem amigo. E os críticos evidentemente. Apenas À fina flor dos melhores jornais. Vindos do mundo inteiro.
172E além disso, espalhados pela sala, vinte damas e cavalheiros muito bem vestidos, a quem ninguém conhecia.
No momento em que a Sylvia saiu dos bastidores irromperam os aplausos. Aplausos aliás, não é exatamente a palavra. Não acho que seja. Não encontro outra no entanto que traduza exatamente o que houve no Teatro Sistina. Os italianos são loucos por cinema, todo mundo sabe. Sylvia é a maior artista de nossos tempos, isto também é sabido. O filme que acabávamos de ver, TÃO POUCO TEMPO, era excelente (o último rodado pela Sylvia antes de sua plástica), mas aplausos não é a palavra exata. Não existe palavra para aquilo. As paredes do Teatro Sistina estremeceram. O chão debaixo de nossos pés no camarote também. Fiquei francamente com medo. Aqueles poderosos entre os poderosos, as beldades entre as beldades, os mais ricos entre os mais ricos, os mais vermelhos dos vermelhos, os mais piedosos e entre os piedosos, não batiam palmas. Batiam os pés, gritavam o nome da Sylvia como loucos, urravam vivas e bravos. E nós, sentados lá em cima naquela sala que parecia de loucos varridos num manicômio.
Aquele Marone...
Evidentemente que também eu, Rod Bracken e Joe Gintzburger aplaudíamos. Ora, e como! Rod ria para mim e Joe. Joe gritava (ele tinha que gritar para que pudéssemos ouvi-lo):
Lá na frente, aquele de roxo, não é gente do Santo Padre?
É, Joe! berrou Bracken. É sim, Joe!
Ele está chorando! gritou Joe.
Realmente, passou um lenço no rosto antes de continuar a aplaudir.
Mais um milhão na Itália! gritou Joe. Vi que também ele
puxava seu lenço. Também ele chorou.
No palco, no foco dos refletores Sylvia continuava imóvel. Linda como nunca! Realmente, sr. Juiz, não existe mulher mais bonita em toda a indústria cinematográfica. Aquele dr. Delamare é um verdadeiro artista, a conta exorbitante que ele apresentou era bem justificada; seu trabalho foi maravilhoso! Sylvia parecia irreal como a luz que a envolvia. O trabalho de plástica tinha sido perfeito. Joe Gintzburger continuava a chorar. Em lágrimas, inclinou-se para mim e me disse baixinho ao ouvido:
Entre o cardeal e Mastroianni, aquele não é o adido cultural soviético?.
É, Joe.
Olha só seu entusiasmo!
Estou vendo, Joe.
Vamos ganhar no mínimo o dobro de garantias para a União
Soviética, além de três Co-Produções disse ele soluçando alto, tomado da
maior emoção.
Do outro lado do palco, do bastidor oposto, entrava agora Carlo Marone. Eu ainda terei que falar muito dele, sr. Juiz. Tinha então 47 anos, era sem dúvida o homem mais elegante de Roma, e seu maior D. Juan também.
173Seu aspecto físico era extraordinário. Isto sem dúvida lhe foi de grande vantagem quando ainda era caftén. Agora era o tipo de beleza masculina, o homem mais belo da Itália... e não era mais caftén. Há muitos anos Carlo Marone era distribuidor de filmes na Itália, tendo a exclusividade para os filmes da SEVEN STARS. Só estes, o tornaram multi-milionário. Seu castelo na colina Píncio era um verdadeiro museu, e por causa das preciosidades ai existentes, era guardada noite e dia por um destaque especial da policia. Quando naquela noite vi Marone se encaminhando para Sylvia no palco, lembrei-me de outra noite quando falei com ele no salão de seu castelo. Como o tempo passa! Já fazia meio ano. Marone usava agora um paletó de smoking carmim e trazia um ramo de rosas. Primeiro inclinou-se profundamente diante de Sylvia. Depois beijou-lhe a mão, as duas faces, a boca. Entregou-lhe o ramo de flores. Sylvia chorou. Ela consegue chorar a qualquer momento, sr. Juiz, mesmo diante da Câmara, quando for preciso. Lá estava ela em pé, chorando, a pálpebra esquerda não pendia mais, Delamare a havia consertado. A maquilagem também não derreteu, Katie e Joe Patterson haviam se encarregado disso. Haviam sido avisados de que Sylvia iria chorar, e conseqüentemente usaram cosméticos especiais.
Tudo fora ensaiado diversas vezes pela manhã, no cinema vazio, sob a orientação de Joe. Tínhamos ensaiado duas horas, até que Joe ficasse satisfeito. Ele tinha dito para mim, que estava de espectador:
Todo movimento foi perfeitamente ensaiado. Quero que qualquer
idiota sinta que os artistas chegaram ao ponto de não poderem se controlar mais, de felicidade e tristeza. Uma atitude heróica, entende Phil? Duas figuras heróicas.
Joe era de Sofia, trabalhara em Berlim no ramo de confecções, mudara de nome, e suas primeiras comédias tinham sido mudas ainda. Depois transferiu-se para os Estados Unidos. Não tenho nada contra Sofia, sr. Juiz, pelo amor de Deus!
... Duas figuras heróicas! dissera Joe e virando-se para o
palco ordenou: Agora as garotas!
As garotas...
De manhã cedo elas haviam saído apressadas dos bastidores. Agora também, mas tudo era controlado. Eram estrelas bonitas, escolhidas a dedo, vestidas muito discretamente, trazendo arranjos de flores. Flores e mais flores, com orquídeas entremeadas, e a Sylvia se viu de repente em meio a um mar florido. O furacão de aplausos continuava.
Carlo Marone abraçou e beijou Sylvia mais uma vez, depois saiu do palco, pelos bastidores. As garotas tinham desaparecido. Sylvia levantou o braço. Depois de algum tempo, durante o qual alguém de smoking entrou e colocou um microfone na frente da Sylvia, voltou o silêncio. Lenta, muito lentamente a loucura amainara.
Com as rosas na mão, a Sylvia deu um passo à frente (tudo estudado, sr. Juiz; realmente, quando se trata de arte, Joe não deixa nada por conta do acaso),
174passou a mão nos olhos molhados (ora, pensei até que ela fosse esquecer!), e num italiano perfeito, pausadamente, meio angustiada como se tivesse que procurar pelas palavras com esforço, pronunciou o discurso cujo texto havia decorado no avião que nos trouxera a Paris, quando Rod Bracken lhe entregou a folha já pronta.
Meus senhores e minhas senhoras e nesse momento começou
um verdadeiro relampejar de luzes. Mais refletores foram acesos. Meus
senhores e minhas senhoras, eu lhes agradeço. Agradeço-lhes de todo coração. Muito me orgulho de poder estar aqui... nesta maravilhosa cidade... diante dos senhores, e ver que apreciaram TÃO POUCO TEMPO, este filme
em que tantos trabalham... onde eu sou apenas uma entre muitos. Não
conseguiu continuar por que o... quero dizer, aquilo para que não encontro palavra... recomeçou e não parava mais. Joe de Sofia olhou para o relógio. Sylvia ergueu mais uma vez o braço. Em vão. Ergueu-o quatro vezes sem o menor resultado. Finalmente voltou o silêncio.
Meu Deus do Céu! disse Joe, e sua voz tremia. Estava realmente chorando de novo. Pai do Céu! dois minutos e quarenta e sete segundos!
No entanto recomeçou a Sylvia e sua voz foi se tornando mais
lenta, mais pausada no entanto, meus senhores e minhas senhoras, tão
imenso quanto meu orgulho, tão imensa é também minha dor, diante da circunstância de não poder estar aqui no meu lugar aquele que trabalhou comigo neste filme. Ele era o gênio do cinema italiano. Os senhores sabem disso. Deu ao mundo uma obra prima após outra, este homem tão formidável, este grande artista, meu confidente, meu grande amigo a quem nunca esquecerei: Alfredo Bianchi. Pausa. Novas lágrimas dos belos olhos de Sylvia.
Soluços isolados entre o público. Eram daqueles vinte impecavelmente vestidos, que mencionei antes. Contratados por Marone. Espalhados pelo salão. Estas damas e cavalheiros sabiam exatamente o momento em que deviam soluçar. Honorários pela noite: 50.000 liras. Mas essas coisas compensam...
Alfredo Bianchi amou este filme disse a Sylvia. Ele me
confessou que nunca havia desempenhado um papel tão maravilhoso em sua longa carreira de artista. Meu Deus, como trabalhou! Quantas noites passamos discutindo com o diretor e os roteiristas, antes de começarmos a rodar o filme! As modificações que Alfredo propunha... todas eram fundamentadas. Ele disse... Sylvia não conseguiu continuar.
Que idade tinha Bianchi? perguntei baixinho a Rod.
Sessenta e oito.
... Ele disse... Sylvia se controlara, mas de agora em diante lutava constantemente com as lágrimas -... ele disse: Sylvia, minha filha, este é o filme com que sonhei. Acho que depois, não rodarei mais nenhum.
É um verdadeiro milagre ter conseguido chegar até o fim sussurou Rod para mim. Aquele velho morfinomaníaco. Quantas vezes chegou
a se internar?
175Cinco.
Sim senhor!
Na verdade ele se arrastou através deste filme, tomando morfina
constantemente, você sabe disso, não é?
Claro que sei disse Rod Quem você acha que era encarregado de não deixar faltar nunca? Sempre eu.
... Meus senhores e minhas senhoras, o que Alfredo me disse
naquela ocasião, se tornou realidade... embora de maneira diferente do que ele imaginava. Da maneira mais trágica, horrível, que poderia nos levar a uma contenda com Deus, embora sabendo que suas decisões são insondáveis e justas... Não, Alfredo, nosso querido Alfredo Bianchi, não rodará mais
nenhum filme disse a Sylvia. Ele não está mais entre nós. Esta noite
não pode mais ver o filme que ele... justamente ele tornou seu maior filme! Seu coração, que durante toda sua vida só bateu para o próximo, não agüentou o trabalho deste filme. Ele o sabia. Não se importou. Queria, precisava rodar o filme. E nós, nós que o amamos, devemos considerar este filme como um legado seu...
Tudo isto foi escrito por mim disse Rod Bracken baixinho para
Joe que fungava emocionado.
Joe apenas moveu a cabeça.
... Seis meses, seis meses depois de terminada a filmagem, o coração deste grande homem parou... para sempre. Em solo italiano, no cemitério de Campo Verano, bem perto da Basílica de San Lorenzo da qual gostava tanto porque ali jazem também seu pai e sua mãe, encontrou ele seu descanço final.
Solteirão por princípio, Bianchi nunca se casou, não tinha herdeiros nem outro impedimento qualquer. Toda sua fortuna, aquela fortuna imensa ficava para a igreja. Alfredo sofrerá muito por causa de seu vício. Cada vez que ficava curado, corria para a Igreja, se confessava, se arrependia, rezava. Mas quem sabia disto além de alguns que lhe eram íntimos? E a Igreja ia recomendar este filme ao mundo inteiro como “de especial valor”. Afinal, sorte também existe!
Eu... a respiração da Sylvia estava ofegante. Eu... me
desculpem meus senhores e minhas senhoras... não consigo mais falar. Só peço ainda um minuto de silêncio em memória deste homem maravilhoso, deste homem agraciado que foi Alfredo Bianchi.
Ela baixou a cabeça. Segurava as rosas apertadas contra o peito. Ouviu-se o zunido de câmaras. E aos poucos, um a um, depois em grupos, os presentes foram se levantando. Finalmente estavam todos de pé, até eu, Joe e Rod, em silêncio.
Olhei para todos lá em baixo, e me lembrei de tudo que havia acontecido nestes últimos seis meses.
176Tanta coisa. Tanta! Relembrei tudo. Um minuto só, dá para recordarmos tanta coisa...
A porta abriu-se de repente.
Uma mulher baixa, corpulenta com um usado casaco de fazenda, de chapéu na cabeça, debaixo do qual apareciam umas mexas de cabelo, e que parecia ter saído diretamente da cama, entrou na sala. Na sala da dra. Ruth Reinhardt. Eram oito horas da manhã daquele 27 de novembro de 1971, e ainda nem clareara completamente. Chovia em Paris. Eu estava instalado na mesa da doutora. A mulherzinha estava sem fôlego, a água da chuva escorria de seu guarda-chuva, mal conseguia falar, tão excitada estava.
Doutora! Como pôde isto acontecer? Por que não conseguiu evitar? Eu não lhe disse para tomar cuidado? Agora a Viviane está morta.
Morta. Morta! Na escuridão do quarto não dava para reconhecer quase
nada, nem a mim. A mulher tropeçava mais do que corria, veio em minha
direção, aos gritos, chorando: Morreu! Morreu! A senhora lhe deu aquele
remédio novo! Com ele matou minha Vivianzinha, eu... Ela chegara
bem perto e reconheceu seu engano. Oh... perdão... Esta não é a sala
da dra. Reinhardt?
Estou esperando por ela respondi. Foi chamada para ver
uma criança. Deve voltar daqui a pouco.
A mulher apertou a mão contra a boca, ficou olhando para mim perplexa, depois saiu correndo pelo corredor. Sentado ali, eu de repente tive medo, um medo horrível.
Isto, sr. Juiz, aconteceu, repito eu, num sábado de manhã, 27 de novembro de 1971. No dia anterior eu dera meu consentimento para que a Babs fosse tratada com aquele medicamento. No intervalo, muito e nada ocorrera. Nada, porque a vida da Babs continuava por um fio. A dra. Ruth e o dr. Singrand tinham ido dormir depois de eu ter assinado meu consentimento. Entregaram o tratamento a colegas, com a recomendação de chamá-los imediatamente, caso sobreviesse alguma piora. Ambos dormiram na clinica Eu tinha ido para casa (para casa!). Quando cheguei Suzy não estava. Ainda consegui forças para telefonar para Rod, no hotel. Dei-lhe o número do telefone da Suzy, aonde eu agora poderia ser encontrado e também o endereço, já que com o primeiro ele poderia facilmente conseguir o segundo. Era melhor então me mostrar amigo. Amigo! Rod afinal tivera aquela idéia genial de explicar à Sylvia, enquanto ela insistia naquela cena de querer ir ver a Babs, que eu me mudara para o estúdio de um amigo... o senhor se lembra?
177Para que nada pudesse acontecer, combinei com ele por telefone, que o endereço do referido estúdio devia ser na Avenue de Saxe, na sétima circunscrição administrativa. Ali, caso a Sylvia viesse a pedir informações (o que faria sem dúvida mais cedo ou mais tarde) não havia telefone, graças a Deus. Disse ainda a Rod que o estado da Babs era muito grave e contei o risco que eu tinha assumido. Ficou calado por algum tempo.
Não tinha outra saída não é Phil? dise ele por fim E agora,
só nos resta a esperança. Ah, tem mais uma coisa...
- O quê?
Aquele porteiro da noite, esqueço o nome dele...
Lucien Bayard.
Isto mesmo. Lucien Bayard disse que vocês marcaram um encontro para resolver qualquer coisa importante, e agora ele não sabe como proceder. A corrida no próximo domingo em Anteuil! Aqueles três palpites secretos! Aquelas apostas em La Gauloise, Poet’s Bay e Valdemosa. O velho Lucien sempre fazia as apostas para mim.
E onde você disse que eu estava?
Viajando, mas que podia alcançá-lo por telefone.
Muito bem disse eu diga-lhe para agir conforme ele achar
melhor, concordo com tudo.
- Certo, Phil.
Não ligue para mim do hotel. Não ligue do hotel nunca, nem para
o hospital, nem para a clínica. Estou diariamente com a Babs. À noite vou ver a Sylvia.
E o que você vai lhe dizer?
Que a Babs está cada vez melhor, evidentemente.
E se...
Pare com isso! disse eu e pendurei o fone. É a última coisa de
que me lembro. Devo ter adormecido logo em seguida. Quando acordei eram seis horas da tarde e já estava escuro. Desta vez fui de ônibus e de metrô até o hospital Sainte-Bernadette. Deixei um bilhete para a Suzy na mesa da cozinha dizendo que talvez voltasse tarde, para ela não se preocupar. Se alguém telefonasse, e ela não reconhecesse imediatamente pela voz, deveria se fingir de completamente desentendida.
Babs dormira e falara no sono. De Beverly Hills, de Tokio, dos ursos. Durante muito tempo eu, o dr. Sigrand e a dra. Ruth, ficamos em pé em volta de sua cama. O dr. Sigrand era outro; me tratava como amigo.
E o novo medicamento?
Só está tomando desde hoje de manhã, sr. Norton. Temos que
esperar.
E o estado, continua o mesmo?
O estado piorou disse a doutora. Os dois médicos estavam
relativamente descansados e com novas forças.
Tenho que ir ver minha mulher...
178Ambos ficaram calados.
O que digo a ela?
Diga que de acordo com as circunstâncias, a Babs está melhor
disse o dr. Sigrand, e foi o que repeti depois na Rue Cave, na clínica do dr. Delamare.
É verdade mesmo, Lobinho? Sylvia continuava de cama, com a
cabeça enfaixada. Apenas os olhos estavam descobertos, e eles não me deixavam. Pensei que teria sido bem mais agradável se eles estivessem vendados.
É sim.
- Jura?
Juro.
Pela luz dos seus olhos?
Isto já não era lá muito agradável. A gente passa por cada situação, sr. Juiz! O que podia eu responder?
Claro. Pela luz dos meus olhos!
Ah, Lobinho, se você agora não estivesse aqui... Eu acabaria comigo... Você trata de tudo... Você olha tudo... como se a Babs fosse sua filha.
Bem, sob certo aspecto até que é disse eu heroicamente.
Com uma amargura que na hora nem me chamou atenção, mas que agora que tudo está acabado não me sai da cabeça, ela disse:
Queria que fosse sua filha.
Tudo vai dar certo disse eu. Eles me deram tanta esperança
com esse novo medicamento. Já que tinha de mentir, era melhor mentir
direito! É um remédio milagroso. Você vai ver... mais alguns dias, e a
Babs está boa de novo.
Sim. Tudo vai ficar bom de novo. Vai sim... E adormeceu.
Depois de ter chegado em casa (em casa!, ter almoçado e contado tudo à Suzy, dado notícias a Bracken, tomei meu banho. Saí do banheiro para aquele quarto super-moderno com a mobília de fibra de vidro, e vi que em cima da mesa ardia uma vela que a Suzy tinha colado num pires. Suzy estava diante dela, movendo os lábios.
Pobre criança disse ela. Só Deus pode lhe ajudar!
Você acredita em Deus?
Claro disse ela.
Não respondi. De repente se agarrou a mim com toda força, se apertou contra mim soluçando:
Eu não sei, eu devia é dizer: O que tenho eu a ver com a Babs?
Com a Sylvia? Elas nunca vão permitir que... que nós sejamos felizes juntos... mesmo que a Babs venha a morrer! Mas nestas condições não quero ser feliz com você. A Babs não pode morrer!
Apenas talvez ficar débil mental disse eu.
Não fale assim! gritou ela.
Foi você mesma quem disse ontem
179Bem, mas aí... aí eu... será que você não entende que eu amo a
você, seu idiota?
Claro que entendo, meu amor. Estava apenas de roupão. Suzy
havia tirado todos meus ternos e minha roupa das malas, com todo carinho, e também as coisas da Babs... Pendurara tudo nos armários. Agora ela disse:
Quando você está com muito medo... quando está infeliz...
esgotado... você também se sente tão esquisito? Sei que é bobagem, mas sempre fico assim, o que posso fazer?
Dois minutos mais tarde estávamos na cama, e tudo se repetiu, na mesma loucura, sem o menor controle, nem medida; nesta noite talvez pior ainda que nas anteriores. Acabei adormecendo. Às seis horas, a Suzy me acordou.
O que... o.que foi?
Não consigo dormir, meu amor.
Ora, então ao menos deixa eu dormir.
Não. Está na hora de levantar.
Levantar?
É. Você tem que ir ao hospital. Precisa estar lá logo de manhã, na hora da visita das oito. Nós temos que saber como a Babs passou a noite
disse a Suzy. Ela havia dito “nós”.
Levantei pois, tomamos nosso café da manhã, depois saí no frio e no escuro até o ponto de ônibus mais próximo. Andei um bom pedaço junto com aqueles operários cansados; depois saltei para pegar o metrô. Aqui mais uma vez encontrei operários, com os rostos emacilados, pastas ao colo, com marmitas e garrafas térmicas. Alguns dormiam. Fiz um esforço, mas não consegui me lembrar quando tinha andado de ônibus ou de metrô pela última vez.
Ao chegar ao hospital Sainte-Bernadette, ouvi novamente na ala da administração, rádios e televisões ligados. Là no Haag eles ainda não tinham conseguido resolver o caso dos terroristas.
Continuei rápido até a ala das salas dos médicos. Aí encontrei a dra. Ruth.
Como está...
Ainda não sei. Estou indo para lá. O dr. Sigrand e mais dois médicos já estão à minha espera. Por favor, espere na minha sala, sr. Norton. Vou para lá depois.
Foi aí que apareceu aquela mulherzinha entrando precipitada, sem fôlego, encharcada pela chuva, gaguejando no auge do nervosismo: Doutora! Como pôde isto acontecer?... Por que não conseguiu evitar?
180Eu... eu não lhe disse para tomar cuidado?... E agora a Viviane está morta. Mortar Morta!...
Alguns minutos mais tarde Ruth Reinhardt entrou, a expressão controlada e séria de sempre.
Tocou levemente no meu ombro ao me erguer apressado.
Como está a Babs?
Olhou para mim em silêncio.
Por favor, doutora!
Seria horrível disse ela, falando alemão como sempre quando estávamos a sós. Seria horrível, sr. Norton se lhe desse esperanças falsas.
Foi por isto que me calei. Pela primeira vez desde que estamos usando o novo medicamento, a Babs está um pouco melhor.
Mas isto é formidável! exclamei eu, e tive a impressão de que
fora outro homem com outra voz, que havia pronunciado aquelas palavras.
Eu quis dizer: talvez um pouco melhor. A febre baixou, a rigidez
da nuca diminuiu, aquela posição horrível em que ela se encontrava devido à tensão dos músculos e inflamação dos nervos, não está mais tão acentuada, e outros sintomas mais. Claro que seria pior se eu tivesse que dizer: Babs piorou mais ainda. Mas o seu estado ainda está bem ruim. Temos que ter paciência e esperar. Babs ainda não está absolutamente fora de perigo. Será
que o senhor vai ter paciência? Será que vai saber esperar? Será que...
Uma pausa longa... será que continuará o mesmo, quando eu lhe der notícias piores, bem piores?
Não sei, doutora.
O senhor é outra pessoa desde que o vi pela primeira vez, sr. Norton. Falei com o dr. Sigrand a respeito. É espantoso.
Mas eu não quero ser outra pessoa disse eu.
Isto não cabe ao senhor decidir, sr. Norton. O senhor não decide,
nem para o bem, nem para o mal. É coisa que simplesmente acontece. O senhor mudou... mas não vamos falar nisso.
Prefiro disse eu. Prefiro que não.
O senhor estava aí quando a Madame Balouche entrou?
Quem? Ah, aquela senhora cuja filha morreu esta noite?
Sim. Ela ainda continua fazendo aquela cena! Quer me acusar, me
levar para a cadeia. Logo depois muda, chora, pede perdão e diz que talvez a morte de Viviane seja um grande bem. Logo recomeça tudo. Seu marido já
181está a caminho. Trabalha na Renault. No turno da noite. Não estava quando a menina faleceu. Agora vai chegar e poder se encarregar da mulher.
Se encarregar?
Sr. Norton, o senhor por acaso acha que tudo aquilo na Madame
Balouche eram sentimentos autênticos?
O que era então?
Ruth Reinhardt pegou a pequena ovelha de cima de sua mesa e começou a brincar com ela.
Viviane já tinha dezenove anos, sr. Norton. Há treze anos vem aqui
para se tratar, há muitos está internada. Lesão cerebral. Estas são apenas as reações ambivalentes que se apresentam por ocasião da morte de um doente desses. Nenhuma mãe gosta tanto de um filho normal quanto de um anormal. A nenhum no entanto, consciente ou inconsciente, a mãe deseja tanto a morte.
Babs estava deitada encolhida na cama.
A luz azul estava acesa no grande quarto. A menina tinha um modo horrível de respirar. Respirava fundo primeiro, e depois durante um tempo imenso parecia não respirar mais. Ruth me disse que aquilo era um sintoma típico.
Tínhamos ido ao quarto da Babs porque a doutora dissera que após repetida, e considerável dose do novo medicamento, a criança deveria ficar em observação durante uma hora. Puxamos duas cadeiras para junto da cama. Enquanto conversávamos, ela examinava a Babs constantemente, tomava-lhe o pulso, observava o ranger dos dentes, todos os movimentos, auscultava-lhe o pulmão e as costas com o estetoscópio. A Babs não parecia perceber absolutamente nada.
Ela está dormindo quase no limite da inconsciência disse a
Ruth. Podemos conversar normalmente, pois ela não ouve nada.
Conversamos pois, sr. Juiz.
Existe muita coisa que conheci em convívio com esta mulher e que nunca esquecerei. Uma delas é a conversa junto à cama da pequena Babs, cuja vida estava por um fio...
Logo no início perguntei à doutora por que havia dedicado seu livro àquele dr. Bettelheim.
Porque ele é o homem a quem devo tudo que hoje sei a respeito do
tratamento de crianças doentes, do problema que elas constituem, e da manei-
182ra inescrupulosa como são exploradas... por todos os lados, por capitalistas e socialistas, pela direita e pela esquerda, por comunistas e reacionários, pela Igreja no mundo inteiro.
Exploradas?
Sim. Não existe nada que o homem não abuse e explore para
conseguir poder. Poder sobre seus semelhantes.
Mas em relação às crianças excepcionais..”.
A elas também, sr. Norton! Sinto verdadeiro desprezo por aqueles
que só almejam o poder; nada mais que o poder. Sei que só posso fazer isto particularmente. Como médica, não vem ao caso se o meu paciente é um dr. Mengele ou um dr. Schweitzer, mas particularmente... Vi tanto... aprendi tanto... com o dr. Bettelheim.
Quem é ele?
Dr. Bruno Bettelheim é austríaco contou Ruth Reinhardt tomando com muito cuidado o pulso da Babs, os olhos presos no mostrador do seu relógio. Nasceu em Viena em 1903. Lá mesmo estudou psicanálise, e
também lá trabalhou. E...
Como está o pulso?
Cento e vinte.
Nada bom disse eu.
Tem razão. Mas em breve vai melhorar... espero - Vi que tirou
a ovelhinha surrada do bolso do jaleco. Na época dos nazistas Bettelheim
foi obrigado a... interromper seu trabalho. Foi levado para o campo de concentração de Dachau, depois para Buchenwald. Teve a rara sorte de ser posto em liberdade. Acabou indo para os Estados Unidos, onde se tornou diretor da clínica de crianças excepcionais na Universidade de Chicago. Orthogenic School chama-se a clínica. Trabalhei lá dois anos. Principalmente com ele, junto àquelas crianç as que vivem totalmente desligadas da realidade
exterior, que nem a percebem... São as que sofrem as piores lesões disse
a Ruth brincando com a ovelhinha Neste setor nós ainda não enxergamos
grande coisa. Mas já existe algum progresso. Isso realmente lhe interessa?
Claro que sim. Já que eu... Olhei para a Babs.
Ela vai ficar boa. Espero. É muito provável até. Eu o desejo tanto, a ela e ao senhor. Muitas crianças porém, não ficam boas nunca. Ou então levam anos para melhorar um pouco. Esse é um tema do qual muito pouca gente quer ouvir falar... a não ser como eu já disse, com a finalidade de alcançar fins ignóbeis...
Eu não viso nenhum fim ignóbil disse eu.
Ficou olhando para mim.
O que houve?
Me lembrei de uma coisa...
De quê?
O senhor pode se sentir ofendido.
- Por favor, de que se lembrou?
183Olha que vai se sentir ofendido, sr. Norton.
Por favor, diga! exclamei, olhando assustado para a Babs. Esta
não se mexeu.
Então está bem. Eu me lembrei que diante destas crianças excepcionais a média dos cidadãos... evidentemente não os diretamente atingidos... assumem a seguinte posição: Eu tenho meus próprios problemas. Não quero nem ouvir falar dessas crianças. Elas existem, é verdade; é um horror! Mas não quero ter nada a ver com elas, de maneira alguma. Não entendo nada sobre elas. Não sei o que fazer com elas. Eu não pago impostos? O Estado portanto que construa asilos para estes débeis, estes hidrocéfalos, e que cuide deles! Para isso afinal é que eu pago! Se quiserem, posso também ajudar com donativos. Mais, não me interessa! Nem quero ouvir falar! Sei perfeitamente que qualquer mãe está sujeita a ter um filho destes, qualquer criança pode de repente ficar doente mental. Mas eu não tenho filhos; ou então: meus filhos gozam saúde e espero que continuem. O cidadão médio normal, sr. Norton, não liga para estas coisas. Se no entanto, como acontece agora, vivem lhe esfregando no nariz pelos motivos mais diversos, quando vivem insistindo no assunto, ele se irrita! Uma grande parte desse público normalmente indiferente, quando querem obrigá-lo a se ocupar dele, vai achando cada vez mais que com esse tipo de crianças ninguém devia se importar; deviam é ser eliminadas.
Eu sei o que vem se passando nos Estados Unidos e em outros
lugares. Li alguma coisa sobre o novo movimento pró-eutanásia disse eu.
- Só na Alemanha o povo é mais reservado... talvez lembrando-se dos crimes de eutanásia dos nazistas.
Mais uma vez Ruth Reinhardt ficou olhando muda para mim.
- Por isso pensei comigo continuou ela depois a mim nada
poderá acontecer se me dedico a elas, se trato delas, escrevo sobre elas, falo delas. Ao senhor também nada poderá acontecer, pois... quero dizer o senhor não trabalha... ou melhor, eu queria dizer, o senhor conhece o mundo apenas como... Desculpe.
Não tem o que desculpar. Eu sei o que a senhora pensou. Babs
rangeu os dentes A senhora pensou: quem vai se meter com esse homem?
Este... este constante companheiro da Sylvia Moran. Minha respiração
ia rápido. Não foi isso que a senhora pensou?
Foi disse ela calmamente Foi exatamente isso.
Calei-me.
O senhor disse que não ia se ofender.
Não me ofendi. É a verdade.
Pensei mais ainda.
- O quê?
Que o senhor está mal informado, sr. Norton.
Sobre o quê?
184O senhor falou que contrário ao que acontece nos Estados Unidos,
o povo na Alemanha, numa época em que se faz tanto alarido por causa das crianças excepcionais, mantém uma posição mais reservada em relação à eutanásia, devido aos crimes cometidos pelos nazistas.
E mantém mesmo!
Absolutamente, sr. Norton. Infelizmente não. Eu sinto muito, pois
também sou alemã. Há pouco tempo fizeram uma pesquisa de opinião.
- E?
O resultado foi o seguinte: Sessenta por cento votaram pelo não
prolongamento da vida e trinta e oito por cento... trinta e oito... pelo extermínio de “vidas inúteis”. Ao fazerem a pesquisa escolheram de propósito o mesmo ponto de vista desumano dos nazistas. Trinta e oito por cento da população alemã, uma parcela bem alta, é pelo extermínio destas vidas. Um terço, e não fazem ainda nem trinta anos!
Mais uma vez fiquei calado.
E eu... eu pensei mais ainda, sr. Norton. Pensei: que bom que
este homem... eu simpatizei consigo, sr. Norton... que bom que ele é apenas o “companheiro constante” de uma artista famosa, que ele não trabalha, nem seja jornalista, ou escritor, nem faça publicidade ou...
Há anos quero escrever disse eu. Escrever um livro sobre
tudo que já vi e ouvi.
Meu Deus!
Por que “Meu Deus”?
Eu imaginava que o senhor fosse escrever um livro desses, mas
principalmente sobre o que está conhecendo agora, sobre seu encontro com o mundo das crianças excepcionais...
Que estou conhecendo agora... E se eu escrevesse este livro?
O senhor é alemão. O livro seria publicado na Alemanha!
- E?
E trinta e oito por cento! Nem imagina como o leitor alemão iria
ficar contente se alguém na Alemanha escrevesse um livro sobre crianças excepcionais... e não se manifestasse logo de inicio a favor de seu extermínio! Seria um escritor apreciado por leitores e pela crítica, sr. Norton.
Os críticos alemães são diferentes. Podem não ser todos objetivos,
mas são ao menos humanos... Nenhum deles faz parte daqueles trinta e oito por cento.
Isso não disse a doutora. Nenhum. Os críticos alemães
evidente não são a favor do extermínio... nem de crianças excepcionais, nem de escritores! No máximo liquidam as pessoas usando de suas penas. As vezes não funciona, mas outras, dá resultados excelentes. Eu posso lhe dizer exatamente, sr. Norton, como a crítica o “rotularia”.
Como?
185Como um autor trivial que não recua diante de nada, de absolutamente nada, disse Ruth Reinhardt..
Cinco minutos mais tarde.
Com seu estetoscópio, a Ruth havia auscultado as costas e o peito da Babs. Tinha medido a temperatura: 40,9. De manhã! Mas ela achava que a Babs estava melhor. Um pouco melhor.
Por que nossos trabalhos progridem com tanta dificuldade, sr.
Norton? perguntou ela naquele grande quarto, quase escuro. Porque
como já disse, o problema da criança excepcional agora é atacado dos dois lados, pela direita e pela esquerda. Isto torna a massa que via de regra é indiferente, inquieta, agressiva, irada, por se ver constantemente confrontada com um problema, atacada até. De nenhum dos lados existe o menor escrúpulo em usar até este problema tão grave visando alcançar o poder pessoal e sobretudo político, para vencer complexos de inferioridade, para disfarçar ataques políticos, para se tornar popular.
Como está a situação então?
Apesar de todas as nuances, nosso mundo se divide, cada vez mais
em dois campos: o da esquerda e o da direita. A direita, para começar com eles, apesar dos outros não serem absolutamente melhores, evitam conscientemente dizer ao povo algo como: Nós hoje não estamos mais vivendo no ano
500 a.C! Não vivemos mais em cavernas, no mato, entre lobos! Somos uma sociedade humana, bastante poderosa para se proteger perfeitamente das catástrofes da natureza, além de poder e ter conseguido um luxo material considerável. Mas sr. Norton, a inferioridade dos incapazes, isso é coisa que na verdade não existe!
Fiquei olhando para ela mudo, e apesar de toda a gravidade, me sentia tão protegido,, tão abrigado ouvindo a voz de Ruth Reinhardt, vendo seu perfil, apenas o perfil, pois enquanto falava não tirava os olhos da Babs.
A direita, sr. Norton, invoca a Vox Populi: Para que gastar dinheiro com o tratamento de crianças excepcionais? Não vai nos trazer proveito algum! Nós, o povo, a massa, somos por princípio contra toda essa onda com esses debilóides. São aqueles novos movimentos pró-eutanásia, especialmente
nos Estados Unidos dos quais o senhor estava falando. A Ruth não
parava de alisar o bichinho. A direita não se esforça nem um pouco para
mudar esta opinião. Ela não se interessa em cuidar do desenvolvimento progressivo do homem, ela se fundamenta, e agora sua voz era amarga, no “sentimento sadio do povo”, que deu tanta sorte a Hitler.
186Um Estado europeu moderno, e isto não seria mais que óbvio, tem a obrigação de fazer tudo em prol da assistência, da educação e da acomodação dos excepcionais. Seria óbvio, disse eu, mas não é. E por quê? Porque aquilo que devia ser óbvio, no caso, a sociedade aceitar essas pessoas, não pode ser explorado em termos de propaganda. “Ajuda à Etiópia!” isto sim é uma manchete. “Barragens na índia!” também. Esta como o senhor vê, é a posição da direita.
Agora eu entendo.
Entende apenas a metade, sr. Norton. Vejamos agora a esquerda.
A esquerda disse Ruth Reinhardt, são os que têm vergonha de
sua origem proletária. Nunca conseguiram fazer parte da classe média burguesa à qual intimamente almejam pertencer, alguns até à mais alta. Um estranho sinal de fraqueza, quando na verdade eles não têm o menor motivo para complexos de inferioridade. São inteligentes, têm talento, possuem o poder nas mãos! São eles que governam! Por que será que hoje qualquer pessoa não consegue dizer com orgulho: Sou filho de operário, ou então, sou filho de camponês?
Aqui no hospital temos um médico famoso, no entanto seu pai foi
guarda de barreira. Para que complexo de inferioridade, em pleno século vinte?
Mau disse Babs.
, O que foi que ela disse?
Disse “mau” repeti eu.
A médica alisou o ombro da criança.
Esta é a situação. A esquerda se sente fraca por algum motivo,
propaga a proteção de grupos fracos, a fim de acusar exatamente a camada que eles ao mesmo tempo desprezam e invejam. Esse é o quadro psicológico. Uma pessoa dessas na verdade não pensa: Aqueles cretinos da direita querem matar crianças excepcionais! O que ele pensa é: Eu sou ruivo, sou de estatura baixa, de mim eles também não gostam! Mas isso eu não devo dizer, não devo falar de mim, posso é falar das crianças excepcionais, dos retardados mentais! E tudo se transforma em politicagem!
Aquiesci.
As queixas de que estão negando ajuda às crianças excepcionais
vêm tanto dos países com governos de direita, como de esquerda. E aí é que está a tragédia.
- Estou passando mal - disse a Babs com espantosa nitidez.. Doutor...
187 O senhor conseguiu me acompanhar?
Perfeitamente respondi eu.
Não estaria passando tão mal, se não fosse o médico disse a
Babs. Depois rangeu mais uma vez os dentes.
É assim que são as coisas disse Ruth Reinhardt. A direita e
a esquerda. Cristãos e ateus, todos eles são iguais. São todos oportunistas. Aí é que está o grande mal; quem é atingido, de um lado ou de outro, são sempre as pobres crianças doentes, a quem na verdade uns não querem ajudar e os outros também não. É a política... até nisso! A esquerda faz propaganda do pensamento humanitário contra a direita. A direita se cala a respeito deste pensamento, contra os da esquerda. Acontecer mesmo, de concreto não acontece nada de nenhum dos dois lados. A esquerda poderia resolver o problema com uma simples emenda de lei, mas não o faz; assim como a direita também não. E a verdade amarga é que as crianças excepcionais só são assistidas, educadas e recebem acomodações através de dinheiro proveniente de fontes particulares. Dependem inteiramente de iniciativas beneficentes, de doações de seres humanos isolados, daqueles que realmente merecem o nome de humanos, como a Princesa Grace Patrick, que em seu pequeno país faz tanto bem, ou se preocupa em que ele seja feito. O senhor mesmo teve ocasião de ser testemunho disto. Esse tipo de iniciativa particular, existe em qualquer regime, tanto de direita quanto de esquerda, mas ele não basta.
Basta cada vez menos! E aí, sr. Norton o senhor me desculpe mas isso
sempre me irrita aí é que está a grande infâmia. Tanto de um lado quanto
de outro, essa atitude só traz sofrimento àqueles que nunca puderam, nem poderão se defender. Em qualquer época são sempre eles os atingidos... os pobres.
Além disso ainda existe um terceiro fator em relação a este problema disse eu. Os médicos.
Nós médicos obedecemos ao mandamento: Não matarás. Não vem
ao caso que seja um mandamento bíblico. Sob qualquer regime a responsabilidade de um médico é imensa, porque em último caso ele não pode ser controlado. O médico, em qualquer regime é responsável pela vida de uma criança, o que quer dizer que ela está entregue em suas mãos. Sendo assim, deve-se exigir sempre dele o máximo de ética. Todo médico pode agir sem que ninguém seja capaz de provar nada, o senhor sabe disso.
Sei disse eu, e ambos olhamos para a Babs que recomeçou a
respirar daquela maneira horrível.
188 Por isso, todo médico deverá ter dentro de si a responsabilidade
para com os seres humanos disse Ruth Reinhardt. Isso não quer dizer
que todos a tenham. Existem elementos inescrupulosos entre grupos que deveriam ter também maior ética, como advogados, políticos, padres, etc. Por que não entre médicos? Não lhe parece lógico?
Claro disse eu, pensando que a lógica, o pensamento claro,
eram capazes de banir qualquer medo. O meu, por exemplo. Ele tinha sido imenso quando cheguei à clínica de manhã; ainda continuava grande, mas já não tanto.
É lógico e horrível ao mesmo tempo disse Ruth Reinhardt.
Eu lhe digo, sr. Norton, não existe ideologia por mais bela que seja, da qual o homem não abuse. Pessoas de caráter fraco, médicos, psicólogos, sociólogos, exploram o problema da criança excepcional para se projetarem rapidamente. Intercedem a favor delas, aparentemente com um idealismo imenso. Conheço casos seríssimos de médicos, que uma vez em projeção, contam aos pais, casos de medicamentos estrangeiros caríssimos, que irão trazer melhoras certas, e isto em casos inteiramente irrecuperáveis, e os médicos o sabiam! Enganavam os pais desesperados, mentiam quando falavam em melhora, ganhavam fortunas desonestamente. Isto também existe, sr. Norton. Conheço maus médicos, médicos medíocres e até existências inteiramente fracassadas que subiram na vida dessa maneira e que agora são venerados como deuses. Ser “social” ser “humano” pode render muito dinheiro nos dias de hoje, pode trazer títulos, honras, poder.
Mas foi a senhora mesma quem disse, que médicos eram apenas
criaturas humanas.
Exatamente concordou Ruth Reinhardt. Só que o médico
assume uma posição especial. Ele se obriga a manter e prolongar a vida, a combater todo mal. Quanto mais ele estiver exposto à influências políticas, à pressão como foi o caso entre os nazistas, tanto maior é a sua obrigação de se
ater exclusivamente ao juramento de Hipocrates, ao qual se compromete.
A Ruth agora me encarou, e disse clara e nitidamente: Portanto, sob
hipótese alguma o médico poderá matar... O juramento de Hipocrates, e se o senhor quiser, os mandamentos religiosos, como o quinto mandamento bíblico, proíbem a todo médico, em qualquer que seja a circunstância, a contribuir para a morte mesmo nos casos dos piores megalocéfalos, dos mais
graves doentes mentais. Sua obrigação é conservar a vida. Nunca matar.
Ela falava cada vez mais apaixonadamente. Se algum dia houver uma lei
que obrigue a um médico, ou lhe permita transgredir o juramento de Hipocrates, as conseqüências serão imprevisíveis! Por todos os princípios religiosos e filosóficos, nenhum ser humano poderá concordar com o extermínio da vida de seu semelhante.
Sr. Juiz, escrevi no início dessa confissão que a minha vida a partir de então foi me aproximando cada vez mais daqueles que vivem no escuro, daqueles incansáveis, que se desesperam, mas sempre conseguem novas forças para continuar seu trabalho, que sacrificam sua vida pela dos outros.
189Escrevi que me sentia obrigado a fazer este relato, depois de ter conhecido estas pessoas. Talvez o senhor agora comece a entender o que eu queria dizer. E o fato de ainda ouvir uma delas, a doutora Reinhardt, esta inteligente e calada acólita que trabalha no escuro, dizer aquelas palavras neste quarto escuro, não é invenção visando qualquer efeito, mas é como todo este relato aliás, a pura verdade.
A única eutanásia permitida, no sentido exato da palavra continuou a doutora apertando as mãos contra o peito é a ajuda na hora da
morte, isto é, o direito do médico aliviar o sofrimento de um doente reconhecidamente incurável, que sofre torturas, que está apenas lutando com a morte, mesmo que com isso se reduza um pouco sua vida. Nesse ponto, sr. Norton existe um acordo tácito entre todos os médicos e teóricos, todos os filósofos e sacerdotes, que consente que então, mas apenas então seja consentida a prática da eutanásia. Pela simples razão que diminuir o sofrimento, é uma das obrigações de um médico. Quem é o “Super-Homem”, o “Semi-Deus” entre nós que sabe onde ele deve parar? Se um Estado permitir matar, sr. Norton, a que poderá isto levar? Nesta questão portanto, qualquer pessoa consciente só poderá gritar: Não!
Depois, ficamos em silêncio por muito tempo.
O problema se torna mais difícil disse Ruth Reinhardt finalmente quando se trata de manter a vida de alguém através de dispendiosos
recursos técnicos. Quando digo isso, me refiro também a certas crianças que não têm a menor esperança. Quando por exemplo uma criança com uma lesão cerebral, está com a respiração tão afetada que vive há três anos por meio de respiração artificial, sabemos com certeza que seu cérebro está morto há muito tempo. Uma vida em termos humanos, portanto não é, nem será nunca mais possível. Neste caso, sr. Norton, pode-se desligar o aparelho, quando ele for necessário para ser usado em outra pessoa que ainda tem chances de sobreviver. Isto é defensável. Mas aí não se trata de eutanásia ativa, e sim passiva. São casos isolados que poderão ser perfeitamente resolvidos pelo uso da razão. Uma morte ativa, mesmo a pedido dos pais, não entra
nem em cogitação para médico algum! Ela agora falava apressada, era
como se um dique tivesse se rompido... Tive dificuldade em acompanhar
suas palavras. Além disso é uma presunção humana inaudita querer
afirmar que uma existência não tem sentido! Quem, sr. Norton, quem pode se atrever a fazer tal afirmativa?
Calei-me.
É bem questionável, se um gênio como Einstein com sua teoria da
relatividade, que em última análise nos trouxe a bomba atômica, nos prestou realmente um serviço tão grande, e, se realmente agiu em prol do progresso para o bem.
Babs deu uma tossida.
190É bem possível até que uma criança excepcional possa conseguir
junto a algumas pessoas ao menos, sentimentos humanos, que a existência de uma pobre criança dessas, tenha muito mais sentido do que a dos maiores descobridores e inventores. Eu lhe pergunto, sr. Norton: em que baseamos nossos critérios?
A senhora tem razão, doutora disse eu.
Não sei se tenho razão retrucou ela O que sei é que é uma
arrogância inadmissível, criminosa até, um ser humano querer declarar que a existência de seu semelhante tem ou não sentido. É uma decisão que não cabe a nós, criaturas desnorteadas e impotentes, que rastejamos por esse mundo. Jamais poderemos avaliar o significado que poderá ter uma vida humana,
significado extraordinário, até em sua mais profunda miséria ou talvez,
exatamente devido a ela.
Na noite daquele mesmo dia, fui de metrô e ônibus para a clínica do dr. Delamare visitar a Sylvia. Ela estava sob o efeito de sedativos, graças a mim, e falava devagar e enrolado, querendo obviamente saber como estava a Babs. Evidente que eu disse estar muito melhor depois do medicamento novo, que logo fez efeito.
Tinha melhorado consideravelmente.
Pode acreditar, Bruxinha, pode ficar descansada.
Posso mesmo?
Juro... juro por meu amor a você... por minha vida - declarei
eu imediatamente. Jurei por um monte de outras coisas mais.
A Sylvia naqueles dias não me criou problema. Disse que estava feliz, que gostava tanto de mim, que nunca mais poderia viver sem mim, que se suicidaria se algum dia eu me metesse com outra mulher, etc., etc. Em breve tudo voltou ao que era antes. Ou melhor, com um pouco de diferença. Eu e Bracken lhe havíamos dito que, por causa dos repórteres, eu me mudara para o estúdio de um amigo que tinha viajado. Para a sétima circunscrição administrativa, na Avenue de Saxe. E sem telefone. Infelizmente. Aí começou:
Quem era o amigo? Jack Ronston Viajou pára onde? Para a índia.
- E por que ela nunca ouvira falar em Jack Ronston? Ela não acreditava numa palavra do que eu dizia! Eu devia é estar vivendo com alguma prostituta, levando um vidão, enquanto ela estava deitada lá na clínica, e a Babs, a coitadinha, gravemente enferma em outra. Logo depois de todas aquelas juras de amor, arrumou tamanha confusão que a irmã Hélène veio correndo ver o que tinha acontecido.
191Sylvia se controlou, sorriu como uma Vênus de Boticelli. Era realmente uma grande artista! A verdade seja dita.
Assim que a irmã saiu, tudo recomeçou, só que dessa vez baixou o tom de voz. A Sylvia é um perfeito vulcão, um furacão, como quiserem. Certa vez presenciei Silvana Magnani fazendo uma cena para Roberto Rosselini por causa da Ingrid Bergman, num restaurante de Roma. Os senhores sabem muito bem que com ela também não se brinca! Mas aquilo não era nada em comparação com as cenas da Sylvia! Deixei tudo passar calmamente, apenas jurava sempre de novo por tudo que me passava pela cabeça, que nunca seria capaz de enganá-la (jurava por tudo, menos pela vida da Babs, não é estranho?). Não me afobei. Não tinha eu dado um endereço falso à Sylvia? Não dissera que o estúdio não tinha telefone? Tudo havia sido combinado com Rod; fora até idéia sua. Nunca me vi obrigado a trabalhar tão intimamente ligado a ele, nunca um tinha sido tão dependente do outro, e a coisa ainda ia ficar muito pior.
Se você não acredita em mim, por que não pergunta ao Rod?
disse eu.
Você e Rod... vocês dois fazem parte da mesma panelinha!
Me fiz de ofendido, com olhar muito triste, disse que aquilo eu não merecia. Logo agora que cuidava tanto da Babs, que fazia tudo, era uma verdadeira ignomínia duvidar de meu amor, pensar que eu pudesse ser tão infame e dormir com outra mulher, quando a Babs estava doente no hospital e ela também...
Isto surtiu efeito.
Ficou envergonhada, beijou minhas mãos, perguntou se eu era capaz de lhe perdoar, pois ela realmente tinha sido injusta em duvidar de mim. Evidente que eu estava mentindo, evidente que dormia com outra mulher, só que com ela, com a minha pequena Susy, eu não estava enganando à Sylvia, no sentido sério e verdadeiro da palavra. Se eu a estava enganando, era com outra mulher em quem nunca encostei um dedo, em quem nunca ousaria encostar. Uma mulher, que depois de toda aquela conversa, eu de repente percebi claramente ter começado a amar, sr. Juiz, de uma maneira como nunca havia amado a ninguém na vida.
Depois de minha captura e entrega à prisão preventiva, o senhor recebeu uma série de diários meus, sr. Juiz, que lhe foram enviados pela polícia que confiscara todos os meus bens particulares. Eu lhe declarei então
192que só poderia escrever este relato se tivesse à disposição aqueles diários em código particular meu. O senhor concordou. Os livros estão na minha frente.
Abri um diário de 1971. Todos são cadernos bastante grossos, encapados de verde, com folhas pautadas. Agora passarei a relatar os acontecimentos até à catástrofe, me valendo desses apontamentos.
Na data de 27 de novembro, encontro em código, muito resumidas, algumas notas sobre minha visita à Sylvia, sobre a cena que ela fez, como eu a acalmei, e como para meu maior espanto me dei conta de que estava começando a amar a Ruth. (O assunto de nossa conversa de manhã no hospital, também está anotado nesta data, e relatado em detalhes, por isso, depois de tanto tempo, consigo reproduzi-lo com tamanha exatidão.) Leio também que naquela noite a Suzy preparou vagem com carneiro para mim, pois sabia que era um dos meus pratos prediletos. Suzy mostrava uma pena imensa da Babs. Me convenceu a ligar mais uma vez para o hospital para saber notícias da menina. Lembrei-me agora que leio meus apontamentos, que foi com ansiedade e angústia, mais angústia que ansiedade que esperava ouvir a voz de Ruth. Não foi ela quem atendeu. Uma irmã me informou que ela já havia saído, e me colocou em contato com o médico de plantão. Este me informou que o estado da menina era o mesmo, talvez um pouco melhor. Ela só dormia. Mas ele dizia, ser isso um sintoma típico da meningoencefalite. No momento ao menos não havia a menor razão para eu me preocupar. De qualquer maneira o hospital tinha meu telefone (o de Suzy), e eles ligariam imediatamente, se por acaso houvesse alguma piora. Dei notícias por telefone a Rod, que esperava no hotel.
Em seguida, pelo que vejo no meu diário, eu e a Suzy nos embriagamos... Dormimos juntos mais uma vez, e no ato, me lembrava constantemente da Ruth, o que dificultou tudo, tendo eu que procurar outros meios para satisfazer a Suzy. As notas finais deste dia são: Sem sono. Levanto; fico sentado na sala no escuro. Às seis, café com a Suzy. Muito solícita, mas, triste. Ao perguntar, respondeu:
Você sabe tão bem quanto eu. É uma pena. Nunca dei sorte com os
homens a quem amo. Desejo muitas felicidades à outra.
Domingo, 28 de novembro de 1971. Às oito da manhã no hospital. O dr. Sigrand e a doutora são especialmente amáveis. (Ou será apenas impressão minha?) Babs teve uma noite relativamente boa. 40,2 pela manhã. Delira. Inquieta. Estremece constantemente. Médicos declaram: tudo normal. Estão satisfeitos. Passo o dia na clínica. À tarde a sós com a Babs. Toda vez que saio para o corredor vejo uma porção de pais visitando os filhos.
193Ricos e pobres, tudo misturado. A tristeza em seus rostos me impressiona muito. Vou ver a Sylvia. Conto-lhe que a Babs continua melhorando. Ela dá a impressão de estar calma e satisfeita. Acredita no que eu digo? Muito cansado. Deito cedo. Durmo profundamente.
Segunda-feira, 29 de novembro de 1971. 8 horas da manhã, hospital. Ruth muito atenciosa. (Tudo impressão! Estou louco. Estou apaixonado. A Ruth é sempre a mesma. Esta é a verdade!). Babs na mesma. Passo o dia no hospital. À tarde Babs acorda um instante. Me vê, mas não reconhece. Quer me bater novamente, grita até ficar histérica. Ruth me pede que eu saia do quarto. Vou ver Sylvia, digo que Babs melhorou bastante. Sylvia diz que em dois dias devem tirar as ataduras e os pontos. Suzy. Telefono Rod. Ganhei mais de 65.000 francos na corrida de Anteuil! Lucien foi ao prado, contou a Rod. Peço Rod para dar 10.000 de presente ao porteiro, e guardar o resto.
Sempre digo a verdade a Rod sobre o estado da Babs. Ele tem que saber. À meia-noite, a Suzy recebe chamado de seu condezinho em Acapulco. Vai ficar mais três meses fora, ama-a muito. Coito. Sono profundo.
Terça-feira, 30 de novembro de 1971. Dia inteiro no hospital. A pedido meu, acompanho a Ruth em suas visitas. (Recebo um jaleco branco.) O aspecto de algumas crianças é tão horrível que tenho que me virar. Hidrocéfalos... a cabeça duas vezes maior que o corpo. Não consigo prosseguir. Me refugio junto à Babs. Dorme. Febre baixou: menos de 40. Ruth volta. Babs acordada por meia hora, embora meio desorientada. Há qualquer coisa errada com sua perna e braço esquerdos. Movimenta-os com mais dificuldade do que os outros dois membros. Ruth diz que é parte do andamento normal da doença.
O senhor não acredita em mim, não é verdade, sr. Norton?
Não disse eu, acrescentando rapidamente. Acredito, claro
que sim! Na senhora eu acredito!
Digo à Sylvia que a Babs continua melhorando. Ela fica satisfeita, embora nervosa porque amanhã vão tirar as ataduras, e pela primeira vez ela irá ver seu rosto. Suzy comprou uma boneca para a Babs; pede que eu leve para o hospital. Telef. diariamente Rod. Este para Joe Gintzburger em Hollywood. Seguindo instruções minhas, informa que Babs está melhorando. Rod acha que Joe não acredita.
Quarta-feira, 1º de dezembro de 1971. Largo de propósito a boneca de Suzy no metrô. Consciência pesa. Febre Babs baixa. Respiração mais normal. Ligeira perturbação mental. Ainda agitada. Repentinos ataques de raiva. Contin-ua tratamento com novo remédio. Babs não me reconhece. Duas crises nesse dia. Ruth as chama de cãibra “localizada”. Sigrand fala de cãibra “generalizada”. O que será? Encontro Sylvia muito deprimida. Mirou-se no espelho quando retiraram ataduras. Esperava talvez estar linda! Rosto completamente inchado, de todas as cores, como de um lutador após o décimo round. Passo 2 horas consolando. Claro que isto passa, Sylvia! Mas ela não acredita.
194Chora. Mal pergunta por Babs. Só preocupada consigo mesma. À noite dou um beijo em Suzy e digo que é da Babs, que ficou muito contente com a boneca. Suzy chora. Sentimentalismo. Se embriaga. Adormece diante da televisão. Mudo sua roupa e levo-a para cama. Mal durmo.
Quinta-feira, 2 de dezembro de 1971. Como sempre, às oito no hospital. Só ando de ônibus e metrô. Babs: 39.7. Está se orientando melhor. Novo sintoma assustador: está vesga. Os olhos virados para dentro. Ruth: paralisia dos músculos oculares; passageiro. E a perna e braço esquerdos? Babs só
consegue movimentá-los com dificuldade. Também passa diz a Ruth.
Tudo passa. Estou muito preocupado. Ruth diz: “Toda noite escura acaba no claro”. A quantas pessoas ela já deve ter dito isso!
Sylvia inteiramente preocupada consigo. Delamare estragou seu rosto completamente! Vai processá-lo! É um criminoso! Arruinando seu rosto! Nunca mais poderá aparecer diante de ninguém! Histeria, choro, etc. Babs: mentiras continuam. Tenho a impressão, que a Sylvia nem ouve o que digo. Perdi meus óculos escuros. Chego exausto em casa Suzy. Logo para cama.
19,45min. Tel. toca. Suzy atende. Para mim. Dr. Delamare. Completamente fora de si: acabam de descobrir que Sylvia desapareceu. Procurou em vão. Nada. Delamare em pânico. Eu também. O que fazer? Digo que ligo daí a cinco minutos. Quando vou discar para Rod, o telefone toca. Ruth ao aparelho:
Sylvia Moran está aqui.
Aqui, onde? pergunto eu e tenho que me sentar.
Aqui no hospital Saint-Bernadette. É uma complicação imensa, sr.
Norton.
E a senhora acha que eu não imagino?
O que houve? pergunta a Suzy que se aproximara. Usava uma
camisolinha sem calcinha.
Silêncio! disse eu.
Como? perguntou a Ruth.
Nada. Como foi que a sra. Moran foi; parar aí?
Nunca poderemos saber ao certo. Quando o médico de plantão me
chamou, tudo já tinha acontecido.
E onde está a senhora agora?
No hospital. Vim para cá imediatamente. O dr. Sigrand também.
O porteiro da noite na entrada do hospital, disse que apareceu uma mulher, uma freira, dizendo que havia sido chamada. Devia vir imediatamente ver uma criança enferma.
195Quem era a criança? Ela deu um nome falso, para si e para a criança.
Muito viva.
Foi mais ainda.
Por quê?
O porteiro disse que teria que telefonar primeiro para o médico da
clínica. Foi correndo para a guarita, o senhor sabe onde. Mas quando as coisas começam a sair erradas, não tem jeito. O porteiro não conseguiu falar logo com o médico. Uma irmã disse que iria mandar chamá-lo, que esperasse um instante. Quando o porteiro foi dizer à freira...
Como ela conseguiu entrar?
Já lhe conto. Estava de óculos escuros.
São os meus! Eu os perdi. Provavelmente lá na clínica da Sylvia. E
ela passou a mão!
Bem provável...
Mas isso é...
Não temos tempo para longas considerações, sr. Norton. O porteiro de qualquer maneira não tinha a menor idéia quem era ela. Quando saiu da guarita, já tinha ido embora.
Embora para onde?
Para a clínica de otorrinolaringologia. Ela devia saber exatamente
onde ficava. A esta hora tudo aqui é deserto. Não foi difícil. O senhor deve ter contado a ela como se chega ao quarto de Babs.
Tive que pigarrear duas vezes, antes de conseguir proferir qualquer palavra.
Contou? Não estou entendendo!
Contei sim, infelizmente.
Foi o que imaginamos. Ela conseguiu entrar no quarto da Babs.
Uma irmã no corredor, teve sua atenção despertada por gritos. Foi ver o que era. Belo espetáculo: Babs arrancada do sono, berrando, rangendo os dentes, batendo na mãe. Esta, caída no chão, igualmente chorando, fungando, soluçando, balbuciando em três línguas diferentes. Teve um ataque quando viu a Babs daquele jeito.
- Claro.
Aquela barulheira infernal acordou toda enfermaria. A sra. Moran
se portou como louca. A Babs na mesma hora teve outra crise. Por fim foram necessários três médicos e quatro irmãs. Um dos médicos finalmente conseguiu dar uma injeção na sra. Moran. Para acalmar. Enquanto isto uma irmã ligou para mim e para o dr. Sigrand. Quando cheguei ela já havia sido colocada num quarto separado. A injeção começara a fazer efeito; não muito. A que deram a Babs fez efeito imediato. Babs dorme novamente. A mãe não!
Raios! disse eu. Que loucura ela foi fazer.
O senhor também poderia dizer que fez aquilo apenas por amor à
filha.
196Mas ela estava tão calma, acreditou em tudo que eu disse, tudo que
contei a respeito da Babs quando estive lá à noite... que a Babs estava melhor, etc.
Não acreditou em nenhuma palavra, sr. Norton. É uma grande artista, realmente. Sentiu que estava sendo enganada.
Suzy acendeu um cigarro e ficou olhando para mim:
Qualquer coisa de grave? murmurou ela.
Aquiesci.
Mas como ela conseguiu sair da clínica do dr. Delamare?
Com muita astúcia. Saiu de seu quarto para o das irmãs. Ali
encontrou o uniforme da irmã da noite.’.. Hélène acho que é seu nome.
- É.
Então é isso! A sra. Moran pegou a roupa da irmã e a touca; vestiu
por cima da sua que já havia trocado em seu quarto. Lá embaixo no controle, virou a cabeça de lado e imitando a voz da irmã Hélène, disse boa noite. Estava na hora de sua saída e o porteiro nem olhou; cumprimentou e abriu a porta para... Sylvia Moran! Foi o que conseguimos descobrir. Depois veio correndo na chuva até aqui.
Praguejei.
Não faça isso, sr. Norton disse a voz da Ruth. Ponha-se na
posição da sra. Moran. É o que devemos fazer sempre, nos colocar no lugar dos outros.
- Está bem. Está bem. Fiz um sinal para a Suzy de que estava
urgentemente necessitando de tomar alguma coisa. Cada vez mais se apertava
o circulo ao meu redor. O círculo do caçador e dos cachorros. Que mãe
maravilhosa! Que exemplo comovedor de amor! Estou ficando com lágrimas nos olhos. Só agora percebo a grande pessoa que a Sylvia é...
Sr. Norton! Pela primeira vez desde que a conhecia, sua voz
estava irritada.
- Sim?
Pare com isso, sr. Norton. Seria melhor que me dissesse o que faço
agora!
Eu é que pergunto.
Não senhor, o senhor é que terá que responder! A sra. Moran não
pode continuar aqui. Terá que voltar para a clínica do dr. Delamare o mais rápido possível. Tanto no interesse dela, quanto no seu. E de jeito que ninguém perceba.
E como é que se faz isso?
Eu não sei. Principalmente no estado em que ela se encontra. Sinto
muito, mas aí o senhor é que terá que imaginar uma saída. E depressa! Ela não pode ficar aqui por muito tempo, caso contrário vão começar a circular rumores. Agora vou desligar. Tenho que cuidar da Babs. O dr. Sigrand está olhando pela mãe. Ligue assim que encontrar uma solução. Mas não demore! É o futuro da sra. Moran que está em jogo... e o seu também!
197 Clique! Ela havia desligado.
A Suzy apareceu com um copo enorme de Calvados.
Esvaziei-o em dois tragos.
Consegui entender mais ou menos o que aconteceu disse ela me
acariciando. Aquela prostituta está no hospital, e você tem que dar um
jeito de tirá-la dali e levar de volta para a clínica, não é?
Aquiesci. Não conseguia falar de raiva. Me sentia mal de tanto ódio. Amor à filha! Era só o que faltava! Mas a Sylvia tinha que voltar rapidamente para a clínica, sem ser reconhecida, senão nosso futuro ia por água abaixo. A Ruth tinha razão.
Vamos lá, vê se imagina uma saída; seu playboy! Arrume um plano fabuloso, trata-se de seu bem-estar! Ande, gigolô, vá! Pobre gigolôl Belo gigolôl Dance! Vamos! Está recebendo, dance pois!
Talvez uma hora mais tarde, um carro de entregas entrou na ala da clínica de otorrinolaringologia do hospital Saint-Bernadette, na Rue de Longchamps. Era um carro fechado, pintado de amarelo, tendo escrito em ambos os lados: LAVANDERIA IMPERIAL, endereço e número do telefone. Dois homens de capa amarela estavam sentados dentro. O do volante disse:
Muito bem, tudo pronto então.
O pior ainda vem disse eu, sentado ao lado.
Que Deus nos ajude! disse Rod Bracken ao volante.
Vamos lá! disse eu.
Saltamos. No pátio estava muito escuro..
Onde é? perguntou Rod.
Lá do outro lado Estávamos na clínica de olhos-nariz e garganta e pegamos o elevador de carga. (Eu idiota, realmente tinha explicado direitinho a Sylvia como chegar até o quarto da Babs). Desta vez o elevador sacudiu um pouco. Eram 20h35min. Recomeçara a chover em Paris...
Para sua informação, sr. Juiz: Depois da Ruth ter ligado para a Suzy, fiquei pensando um instante. Tive uma idéia. Liguei para o HOTEL LEMONDE. A mesa de telefone estava ocupada, mas os porteiros da noite já tinham entrado em serviço.
Boa noite. Posso falar com o porteiro, por favor?
Pois não.
Eu... eu, não posso ajudar nada, nada mesmo? perguntou a
Suzy em seu Babydoll.
Pode sim.
198- O quê?
- Calando a boca agora, meu bem.
Boa noite - Ao ouvir aquela voz me senti melhor. Era meu amigo Lucien Bayard.
- Ah, sr. Kaven...
- Pst! O senhor poderia largar seu balcão por cinco minutos?
Posso. Por quê?
Ao lado do elevador há duas cabinas de telefone. Vou lhe dar um
número, ligue para mim de lá. Era só o que faltava alguém da mesa ficar
escutando para se divertir. Eu estava em Paris, não é verdade? Dois minutos mais tarde Lucien ligou. Não precisei lhe contar o início da estória; ele sabia de tudo.
Acaba de acontecer uma coisa horfível, Lucien. Madame Moran
fugiu da clínica para ir ver a filha no hospital Saint-Bernadette. Ela não agüentava mais sem ver a menina.
Merde, alors!
- Tem razão. Mas preciso levá-la de volta o mais rápido possível Lucien, mas de jeito que ninguém perceba.
Rod lhe havia contado a
respeito da plástica. Você consegue tudo; por favor, me ajude Lucien! O
que podemos fazer?
Pensou um instante e disse:
Um carro do hotel não dá... é perigoso demais. Táxi nem entra
em cogitação. Então só resta uma coisa: a lavanderia.
- O quê?
Nossa lavanderia, sr. Kaven. Todo hotel usa uma. Toda Casa de
Saúde também. Por isso não vai dar na vista se o senhor aparecer num carro da lavanderia. A nossa é a Lavanderia Imperial. Tem um guardador que dorme sempre na garage junto dos carros. É um pobre coitado.
Pobre coitado, por quê?
- Vive me pedindo dinheiro emprestado. Cavalos infelizmente! Perde sempre. Não consegue pagar nunca. Então não é um pobre coitado? O que posso fazer? Posso até dar graças a Deus que seja assim. Vou ligar para ele agora. Ele faz qualquer coisa para mim! O senhor liga para o sr. Bracken. Eu depois dou a ele o endereço da lavanderia. Ele vai até lá de táxi. Pega um carro...
E se não conseguir?
Consigo sim; não se preocupe. Aquele pobre coitado me faz qualquer favor. Eu não vivo lhe adiantando dinheiro? Um dia ele tem que ganhar, não é? É o único jeito de eu reaver meu dinheiro. Ah, as capas ele também vai arrumar. Para que pareça autêntico mesmo. O senhor recebe tudo. Tudo. O sr. Bracken pega o carro da lavanderia; o senhor marca um encontro com ele em qualquer lugar e entram no hospital sem ninguém lhes perguntar absolutamente nada. Sei que eles também são fregueses da mesma lavanderia.
199Com as capas então, poderão ir para onde quiserem. Tiram a madame de lá sem o menor problema.
Lucien, eu nunca vou esquecer o que você fez por mim!
Ora, sr. Kaven. Não é mais do que natural eu lhe ajudar. O que é
que eu ia lhe dizer ainda? Ah sim, uma coisa muito importante.
- O que é?
Aquele domingo em Anteuil foi uma beleza, não foi?
É mesmo!
Eu lhe agradeço imensamente o presentão que me mandou. O mais
importante é que domingo que vem, vai haver uma corrida muito boa em Chantilly. Tem dois cavalinhos, sr. Kaven, que eu venho observando há um ano, King Twist e Le Parleur, eles são realmente sensacionais!... O senhor não pode deixar...
Claro, sr. Juiz, que neste caso eu não podia deixar. Disse a Lucien que poderia apostar a seu critério, o que sempre o deixava muito orgulhoso.
Liguei depois para Rod, e lhe contei o que tinha acontecido. Xingou mais que todo um bando de prostitutas junto, mas eu interrompi dizendo para ir até a portaria, apanhar o endereço da lavanderia com o Lucien. Eu ficaria esperando por ele na Avenue de la Grande Armée, em frente a uma livraria. Descrevi exatamente onde ficava a livraria, desliguei e toquei para o hospital. Contei nosso plano para a Ruth. Ela concordou. Vesti-me rapidamente, enquanto a Suzy chamava um táxi. Ao se despedir, depois de ter me beijado, fez o sinal da cruz na minha testa com um dedo. Imagine só!
Tudo saiu certinho. Rod veio subindo a Avenue de La Grande Armée, parou diante da livraria; entrei e continuamos. Ele já tinha vestido a capa. Eu vesti a minha por cima do terno, e deixei meu capote e chapéu dentro do carro. No peito da capa amarela estavam bordadas as palavras BLANCHISSERIE IMPERIALE. Bem grande, bem vivo...
O elevador parou. Saltamos e descemos rapidamente a ala da administração. Ninguém reparou em nós. Desta vez não havia aparelhos de televisão ligados. Hà muito tempo, depois de mais de cem horas, o caso de seqüestro fora resolvido. Sem derramamento de sangue e ao que parecia, os terroristas tinham conseguido exatamente o que queriam. Pensei comigo, e me lembro disso perfeitamente, se algum idiota me vier com a besteira de Bona causa triumphal, eu meto a mão. A boa causa triunfando, é coisa que em nossos dias só dá para rir!
Cheguei com Bracken até o gabinete da Ruth. Bati na porta. Entramos. Ruth estava sentada diante de sua mesa lotada; girou a cadeira, olhou ansiosa para nós. Sua expressão estava transtornada e ao mesmo tempo assustada.
Foram rápidos disse ela.
Onde está a Sylvia? perguntei
200Venham. Eu os levo até lá.
THE BEAUTY - A BELDADE
Lá estava ela em cima de uma cama, num quartinho afastado. Ao lado dela um médico; um verdadeiro atleta. Ruth e o dr. Sigrand não queriam correr nenhum risco. Bastava a confusão que a Sylvia já tinha arrumado. Ao entrarmos, olhou para nós. Naquele quartinho havia apenas uma cama e uma cadeira. O médico ocupava a cadeira. Olhava para a Sylvia pois tinha sido encarregado de tomar conta dela; todo o resto lhe era indiferente. Um bom médico. Ruth me disse baixinho que se precisasse dela, estaria no quarto da Babs, e sumiu. Nós dois, eu e Rod olhamos para ela. Sylvia nos fixava. Chorava. O rosto continuava totalmente entumecido. Equimoses debaixo dos olhos inchados de chorar, e em outras partes do rosto também. Manchas verdes, pretas e amarelas. O senhor nem pode imaginar o aspecto daquele rosto, sr. Juiz! Não era apenas o de alguém que acabava de fazer uma operação plástica. A dona daquele rosto sofrerá também um embate psíquico, que obviamente também deixa seus vestígios num rosto.
Escute aí, será que você enlouqueceu, sua ingrata, sua... começou
Rod mas eu o interrompi.
Cala o bico! disse eu. Cala essa tua boca, seu idiota.
aproximei-me da cama da Sylvia. O médico fez um sinal de consentimento. Depois olhou de novo para a Sylvia. Ele tinha sua obrigação...
Minha pobre Bruxinha! disse eu, e pela primeira vez eu o dizia
com sinceridade, com carinho. Afinal seu aspecto era horrível demais, e ela só tinha querido ver a filha, não é?
Cachorro! disse ela. Cachorro imundo! falava devagar.
Parecia procurar as palavras. E as lágrimas não paravam de correr por aquele rosto que mais parecia uma toalha de mesa com quatro semanas de uso, numa das mais miseráveis pizzarias de Nápoles.
- O que ela tem? perguntei ao médico.
Sem olhar para mim, respondeu:
- Neuroléptico. Um dos medicamentos mais violentos. Ela já devia estar dormindo. Não entendo.
É porque você não sabe a quantidade de álcool a que Sylvia está acostumada, pensei eu. O quarto era iluminado por uma forte luz na parede. Vi que as meias da Sylvia tinham escorregado e estavam rasgadas. Molhadas também, assim como os sapatos que eram forrados de seda. Não devia ter encontrado outros, e estavam tão molhados e ensopados que a sola desprendeu.
201Uma meia estava rasgada. No pé. Vi através da sola descolada, dedos do pé brancos. Não, sujos também. Um vestido de Dior; seda preta. Igualmente rasgado, enlameado, amarrotado. A roupa da irmã Hélène estava jogada nos pés da cama. Completamente encharcada! Uma poça dágua tinha se formado por baixo. A touca da irmã, aquela coisa branca complicada, parecia um trapo molhado. Ao lado da Sylvia, em cima da coberta, vi meus óculos escuros. Tinha passado a mão neles! Debaixo dos óculos um lenço de cabeça. Sylvia devia tê-lo amarrado para esconder o rosto. Um lenço de Hermes. Olhando para aquele trapo sujo, molhado e amassado, ninguém diria... Tinha sido até um lenço muito bonito, me lembrava muito bem. Vestida com tudo aquilo, viera correndo da Rue Cave até aqui. De noite; na chuva.
Cretino disse ela para mim.
Deixa...
Mentiroso. Cretino e mentiroso. A Babs está melhor, não é? Sabia
que era mentira. Foi por isso que vim.
O que é que se faz numa hora dessas? Não se diz nada. Foi o que eu fiz.
Babs! Minha pobre Babs! Eu sou culpada! É castigo de Deus!
Olhei para Bracken, este entendeu e saiu do quarto.
Mas por que Ele castiga a Babs? É tudo que tenho na vida! Por
que ela tem que sofrer desse jeito? Ela não me reconheceu. Gritou. Quis me
bater. Eu quero morrer! - disse Sylvia com aquela voz lenta e rouca, que
soava tão pastosa quanto inchado estava o rosto. Quero morrer agora!
Por que eles não me dão nada? Não posso mais viver vendo a Babs tão doente. Ela também vai morrer. Muito em breve.
Não vai não disse eu.
Vai sim retrucou ela E você também, seu cretino, mentiroso.
Eu só queria poupá-la.
Poupar! disse a Sylvia. Seu merda! É assim que você me
poupa? Você também vai morrer, não demora muito. Tomara que sua morte seja bem lenta, que sofra bastante!
Bruxinha...
E nunca mais me chame de Bruxinha! gritou ela de repente,
cuspindo na minha direção. Estava sem forças; não me acertou. Acertou o médico que pegou um lenço.
Desculpe disse a Sylvia com aquele rosto inchado e manchado,
com o talho e a marca dos pontos ainda bem visíveis. Seus lindos cabelos estavam amarrados para cima, sem brilho, gordurosos. Os olhos, vermelhos e inflamados. Antes, aquela bola branca tinha sido um exemplo de beleza comparado com o que era agora. Ela realmente dava dó. Cuspiu pela segunda vez e me acertou na testa. Passei as costas da mão.
A porta se abriu e a Ruth entrou com Rod. O rosto da Sylvia se crispou de ódio ao vê-la.
A senhora! - disse a Sylvia. Quer ir embora, por favor?
202Já estou indo disse a Ruth se aproximando mais.
Eu a odeio continuou a Sylvia.
Sei, sra. Moran.
A senhora não tem coração.
Não, sra. Moran.
A senhora não é mulher!
Não, sra. Moran.
Nem gente chega a ser, sabe disso? perguntou Sylvia.
Sei, sra. Moran respondeu Ruth, e finalmente o remédio fez o
seu efeito. Até que enfim! A cabeça da Sylvia rolou para o lado, a boca se abriu, o corpo afrouxou. Sylvia estava como que inconsciente. Desta vez estava liquidada.
Como está a Babs? perguntei.
Dormindo respondeu o dr. Sigrand, suspendendo uma pálpebra
da Sylvia Esta senhora aí também. Vai dormir durante algumas horas
Foi até a porta e abriu-a.
Dois enfermeiros entraram com a maca.
Fiquei espantado com o que aconteceu depois. Parecia uma equipe supertreinada de peritos, virtuosos, artistas... me lembrei dos famosos globetrotters. Talvez porque os enfermeiros e os três médicos se puseram a trabalhar com a mesma agilidade. Vestiram a Sylvia da melhor maneira possível. Colocaram-na em cima da maca. Cobriram. Amarraram. Um deles pegou a roupa e a touca toda amassada da irmã Hélène. Apanhei novamente meus óculos e os coloquei.
A correia está torcida disse um dos enfermeiros para seu colega
será que você não está vendo, seu idiota? Vê se...
Não é a. correia que está torcida, é o fecho.
Ora, então conserta o fecho, cretino.
Por favor! era a voz da Ruth.
Desculpe, doutora. Já estamos prontos.
Então vamos disse Rod Bracken.
Os dois enfermeiros com a maca em cima da qual a Sylvia estava amarrada, imóvel debaixo das cobertas, já estavam saindo do quarto. Ruth e o dr. Sigrand seguiram. O médico atleta inclinou-se amavelmente, fazendo um gesto para passarmos: Por favor, senhores!
Fomos descendo o corredor em direção ao outro elevador de pacientes. Notei que havia uma porção de irmãs, enfermeiros e médicos diante das portas, controlando para que não encontrássemos ninguém. Apenas a cabeça da Sylvia estava de fora, mas que cabeça meu Deus! Parecia até a avó de Frankenstein!
Entramos no elevador. Com um pouco de sorte, um pouquinho apenas, em dois ou três minutos a Sylvia estaria no carro da lavanderia, e de volta para a clínica do dr. Delamare. Tudo até agora tinha saído bem. Pronto! O elevador parou.
203Saímos. Mais irmãs, enfermeiros e médicos cuidando para que ninguém nos visse. Tudo perfeitamente organizado pela Ruth e pelo dr. Sigrand. Realmente tinha que lhes agradecer. Saímos para o pátio, para o escuro e a chuva. Rod Bracken saiu correndo. Vi que abriu apressadamente as portas traseiras do carro. Agora era só meter a maca e...
Foi aí que aconteceu.
Um flash! Outro flash! Mais um! Outro!
Sete ao todo.
Tínhamos sido vivos, mas não o bastante. Tínhamos prestado atenção se estávamos sendo seguidos quando viemos para cá. Não prestamos atenção suficiente. Um daqueles repórteres cretinos tinha nos seguido. Eu não o via; via apenas de onde partia a luz. Por precaução tirei os óculos, e sai correndo em direção à luz o mais rápido que pude. Voei literalmente por cima do sujeito, caí e me machuquei. Levantei. Agarrei-o pela lapela. Antes arranquei-lhe a máquina da mão. Atirei-a no chão áspero, pisei-a com toda minha força.
O sujeito era valente. Veio para cima de mim. Dei-lhe um chute na barriga e ele voou contra o muro. Sujeitinho teimoso! Avançou para mim mais uma vez, e me largou um soco no meio do rosto, bem no meu olho roxo. Docu pra burro. Levantei um joelho e acertei-o bem ali. Deu um grito, voou para trás; me joguei em cima dele. Comecei a lhe martelar a cara. Batia de volta, com toda sua força (bem respeitável até), e a chuva caindo... Ouvi o motor do carro da lavanderia arrancar, e pensei que o Rod podia muito bem aproveitar e se mandar com a Sylvia.
A pancadaria foi grossa, sr. Juiz! De repente o dr. Sigrand apareceu a meu lado. Entrou aos socos: não era brincadeira! Infelizmente não atacou o fotógrafo, mas a mim.
Pare! gritou ele. Pare!
Não parei. Dei um chute no médico e continuei a esmurrar o fotógrafo. Refletores foram acesos. Os pneus do carro cantaram na manobra. De repente, o carro partiu em direção à saída que estava logo a meu lado, e tudo ficou banhado em luz. Luz violenta. Vi quem tinha reduzido quase a frangalhos: o fotógrafo deitado lá em minha frente era meu conhecido. Já tínhamos brigado uma vez. Será que ainda não tinha apanhado bastante? Será que ganhava alguma coisa com isso?
Era o mesmo que há dias tinha entrado no meu apartamento do hotel, junto com um colega. O menor deles; o franzino, com o lábio leporino. Foi pelos lábios que o reconheci.
Os pneus do carro rangeram mais uma vez, quando Rod fez a curva atrás de nós para pegar a saída. O motor roncou. Meu Deus, ele pisava com vontade! Tomara que não se rebente contra outro carro qualquer, pensei eu.
204vendo o dr. Sigrand e os enfermeiros pegarem o fotógrafo, que gemia alto, e o levarem. Todos o seguiram; a Ruth também. De repente estava só. Olhei em volta e na escuridão (as luzes tinham sido apagadas novamente) não conseguia ver a máquina. Engatinhei pelo chão molhado e sujo do pátio, procurando. Logo a encontrei. Apesar de ter sido tão pisada, não quebrou. Tirei o filme inutilizando-o, e meti-o no bolso.
Ao procurar a máquina, achei também meus óculos escuros. Por um milagre estavam intatos. Coloquei-os.
Meia hora mais tarde estava de novo naquele quarto afastado. Dessa vez era o lábio leporino que estava deitado lá. Os médicos o haviam examinado na sala de socorros urgentes, tinham tirado radiografias. Havia qualquer coisa com seu queixo, dissera a Ruth. Não sei o quê, nem queria saber. Tiveram que lhe aplicar diversas injeções, contra tétano e contra as dores; estava com esparadrapo no rosto, e um braço na tipóia. Era italiano; trabalhava numa grande agência de reportagem em Roma. Trazia consigo diversos documentos, inclusive um passaporte. Sabia portanto a sua idade, a agência em que trabalhava, seu endereço em Paris e o da agência central de Roma. Chamava-se Ângelo Notti. Contava trinta e um anos e era solteiro. A meu pedido, deixaram-no a sós comigo. Num francês muito arrevezado disse-me tudo que iria fazer agora. E não era pouco! Ia dar parte à polícia e fazer um relatório para sua agência. Não tinha mais fotografias, mas podia contar uma história interessante de uma mulher, Sylvia Moran, que fora transportada de maca; ele a reconhecera na hora. Não precisava de fotografias. A história bastava. Bonito escândalo! Sensacional para jornais, rádio e televisão!
Deixei-o falar pois vi que isto lhe provocava dores. Falou um bocado ainda. Estava em meu encalço desde aquele dia no LE MONDE. Sempre conseguia escapar-lhe. Cometera um erro, ficara vigiando o hotel, e eu não morava mais lá. Hoje tinha tido sorte. Seguira Bracken, e quando este saiu com o carro da lavanderia, fora atrás em sua pequena Fiat. Agora eu estava imprensado: O que fazia a Sylvia no Sainte-Bernadette? O que lhe acontecera? O que havia com a Babs? Para onde a Sylvia estava sendo levada? Bastava ir à polícia perguntar. Ela se encarregaria do resto. Só as perguntas já valiam dinheiro. Qualquer jornal ou agência de notícias, a televisão francesa, os correspondentes americanos, etc. as comprariam. E assim continuou por uns dez minutos, até que não agüentou mais de dor. Calou-se.
Ai comecei eu. Tentei com dinheiro. Aquele sujeito não poderia dar com a língua nos dentes, de maneira nenhuma, não acha também, sr. Juiz?
205Não queria dinheiro. Italianinho valente! Ofereci mais. Não aceitou. Ofereci muito mais. Nada. Ele me odiava. Preferia receber uns miseráveis 100.000 dólares da agência. Ângelo Notti era um homem de caráter! Por fim ambos nos calamos.
A Ruth apareceu. Deu uma olhada no fotógrafo e mais uma injeção. Disse-lhe para não falar. Depois me levou para o corredor e fechou a porta. r; Bracken ligou. A sra. Moran já está novamente na clínica.
Fiz um sinal com a cabeça.
Disse que ia ficar lá esperando seu telefonema.
Muito bem.
E o que vai fazer desse italiano?
Não tenho a menor idéia.
Que coisa desagradável! disse Ruth.
É mesmo concordei. Como está a Babs?
Bem. Dormindo. Estive lá agora mesmo.
Respirei fundo.
Se eu pudesse lhe ajudar, sr. Norton... se pudesse... Mas acho
que não tem o que fazer não é?
Sacudi a cabeça.
Depois me encostei na parede e fechei os olhos.
O que é? Não está se sentindo bem?
Nada não. Só tenho que telefonar. Rapidamente. Posso ligar de sua
sala?
Claro.
Mas alguém tem que ficar de olho no italiano para que não escape.
O médico já está vindo para cá. Achou alguma solução, sr.
Norton?
Não sei. Talvez respondi. Espero que sim acrescentei.
Signor Marone?
É. Droga, quem é?
Philip Kaven disse eu. Falava italiano. Estava instalado na
mesa da sala da Ruth, que permanecia a meu lado. Seus olhos sérios não me largaram um só instante.
Kaven? perguntou Marone.
É. Kaven.
Está aqui em Roma?
Não, em Paris. No hospital Sainte-Bernadette.
206Você andou bebendo?
Não, Carlo.
Phil, o que faz você numa Casa de Saúde? perguntou ele. Sua voz era grosseira, agressiva. O grande Carlo, hoje tão poderoso, com seu palacete lá na colina Píicio entre a nata da grã-finada, não conseguira se livrar completamente dos vestígios de seu caftinismo. Eu lhe disse então o que estava fazendo no hospital. Notei que a Ruth olhou para mim horrorizada. Sacudi a cabeça; as palavras ditas em seguida acalmaram-na. Eu falei:
... bem, agora você sabe o que está acontecendo, Carlo. Sabe
também o que vai acontecer se passar adiante uma única palavra, uma sílaba que seja. Sabe, não é?
Sei respondeu Marone.
Então diga. Diga, Carlo insisti eu.
Sei que nunca mais receberei um filme sequer da SEVEN STARS,
e da Sylvia para...
Isso mesmo.
... e é desses filmes queeu vivo. Se não receber mais os filmes da
Sylvia estou liquidado.
Isso mesmo. E o que faz então?
Calou-se e eu o ouvi respirar com dificuldade.
Volta a fazer o que fazia antes, Carlo! - disse eu. Não será mais
distribuidor de filmes. Seu palacete, sua fortuna, todas as suas obras de arte, tudo a SEVEN STARS confiscará; pois sabe muito bem que está entalado até o pescoço. Poderá sair novamente à procura de garotas, viciá-las em drogas, prendê-las à cama durante dias, espancá-las, até que virem seus cordeirinhos, como fazia antes.
O olhar da Ruth continuou impassivel; Não havia repulsa, nem horror naqueles olhos castanhos; apenas interesse.
E depois, quando estiver novamente estabelecido como cáften, nós o processamos. Será metido numa bonita cela. Por muito tempo, Carlo. Isto eu lhe prometo., Muito tempo mesmo...
Pare com isso Phil! implorou ele. O que você quer que eu faça? perguntou o ídolo de mulheres. Gente da nossa laia parece até membro de uma liga internacional. Sempre nos entendemos na hora.
Diga logo, Phil. Que droga!
Ora, você sabe disse eu olhando para o relógio estranho no quadro da sala da Ruth. Para aquele relógio com apenas um ponteiro, com seus doze desenhos primitivos ao lado de cada marca de horas, e por baixo palavras como: MEIO-DIA, TARDE, NOITE, DORMIR, MANHÃ...
Você quer que eu consiga que a agência convença o Notti a calar a boca disse Marone, enquanto eu olhava o que estava escrito nos cartões
no quadro: PELE, BORRACHA, PÊLO, CALOR, INVERNO, SONO, SOL...
Isso mesmo. Você conhece o chefão da agência. Isso não era
uma pergunta. Era uma afirmativa.
207Marone conhecia praticamente todo mundo em Roma que pudesse ser útil, pernicioso, importante. Conhecia também todos os vicios, as orgias sexuais secretas com meninas, as fraudes fiscais, as negociatas com divisas, os crimes maiores ou menores de toda essa gente. Era especialista nesses assuntos. Um tipo sui generis, esse Marone.
Claro que o conheço - disse Marone. Seu nome é Pietro
Cossa.
E qual a especialidade dele?
Sadista. Está metido numa confusão com uma garota, morta há
uns três anos. Lembra-se? Uma que foi encontrada na praia de Óstia. O caso nunca ficou esclarecido. Comunico-me agora mesmo com o Cossa. Ele faz qualquer coisa para mim.
Estão vendo...
Ótimo - disse eu olhando para duas pequenas cadeiras de roda e
pensando se a Babs também iria precisar de uma daquelas... ou se nem a
cadeira ia adiantar Eu já dei uma olhada. Tem um BEA que vem de
Londres. É; Londres. Faz escala em Orly e à meia-noite segue vôo para Roma. Acho que podemos estar aí entre duas e duas e meia. É claro que trago
o Notti junto. Isso tem que ser liquidado logo.
Madonna mia, às três horas da madrugada! O Cossa vai ficar um
bocado satisfeito!
Claro disse eu. E como! Mande um carro me apanhar no aeroporto.
Que aeroporto?
Verifique onde o avião vai descer. É bom deixar de brincadeiras, não acha? Trate de arrumar um jeito do Cossa estar lá quando chegarmos.
Como é que isso foi acontecer em Paris?
Acaso. Estou apenas de passagem.
1 Vai custar uns tubos disse Marone.
Claro.
O Cossa vai cobrar alto. Bem, posso dar uma prensa nele. Mas existem certas regras. Nem sempre estive por cima; você sabe muito bem disso. Mas agora estou e o Cossa também. Temos que lhe pagar uma quantia decente pelo que ele vai perder, e o que é uma fortuna!
Fortuna eu não pago. Não tem o caso daquela garota? É evidente que vai me custar algum dinheiro, afinal não estou a fim de extorquir-lhe nada de graça.
Ora Phil, claro que não disse Marone.
Quanto vai ser então? Não pago mais do que o mínimo
Bem, acontece que... se a gente se mostrar mesquinha, o Cossa nos manda à merda, e é aquele escândalo... Eu fico liquidado, e vocês todos também.
E o Cossa por acaso não?
Ele não. Lembre-se que a Itália é um país maravilhoso.
Nisso ele tinha razão.
208Mencionou logo em seguida quanto me custaria conquistar o Cossa como aliado naquele maravilhoso país que era a Itália. Era uma pequena fortuna. Cerca de 100.000 marcos. Mas o que podia eu fazer? Cheguei até a contar com 200.000
Existe um jeito de ligar o telefone no quarto do Notti? perguntei à Ruth.
Por quê?
O chefe quer falar com ele pessoalmente, para lhe dizer que precisa dele em Roma, agora. Do contrário não vamos conseguir tirá-lo daqui.
Ah fez Ruth impassiva. Dá sim. Quem telefonar terá que ligar para o ramal 617.
- Carlo!
- Hein?
Ligue para o Cossa. Diga-lhe que se comunique com Paris daqui a
dez minutos. O número é... Ruth o havia escrito num bloco que empurrou para mim. Agradeci com um sorriso, mas ela continuou séria como
sempre. Dei o número do hospital a Marone, e pedi que ele repetisse.
Depois terá que pedir o ramal 617.
617, pronto.
Tudo certo então.
Tudo não disse Marone. Não esquece o dinheiro; deve trazê-lo sem falta. Acho que isso é evidente.
Claro disse eu pensando de que maneira ele e o Cossa iam dividir a quantia entre si.
Você não deve ter isso tudo em dinheiro disse ele.
Claro que não.
Também seria arriscado demais. O Cossa aceita cheque. Confia
em mim; conseqüentemente também em você. E se por acaso ele não tiver fundos ou se mandar cancelá-lo, o Cossa evidentemente vai se vingar. Portanto, não traga cheque para compensação. Aí eu não me responsabilizo. Faço tudo que você me pede, porque preciso dos filmes de Sylvia Moran. Mas se vocês tapearem o Cossa, e a estória toda vier à tona, eu nada tenho a ver com isso!
Quem fala em tapear? perguntei, notando que eu é que estava
brincando com a ovelhinha de pelúcia; há algum tempo já. Devia tê-la
encontrado lá em cima da mesa Pode deixar que trago seu querido Ângelo
e um cheque ao portador. Acho que não tinha mais de mil francos no
bolso.
Muito bem retrucou Marone. Dai a dez minutos o Cossa
fala com o Notti, mandando-o voltar imediatamente. Será um prazer revê-lo, meu querido.
Desliguei.
Ruth continuava a olhar para mim.
A senhora me despreza, não é - perguntei eu.
209Desprezar? Por quê? Isso tudo não tem que ser feito? Por acaso
resta-lhe outra alternativa, sr. Norton? Só desejo que tudo dê certo.
Eu também.
Mas onde vai conseguir tanto dinheiro... em tão pouco tempo?
Tenho que dar mais um telefonema disse eu.
Liguei para Rod na clínica do dr. Delamare. Disse-lhe o que
precisava. Ele estava sentado no quarto da Sylvia. Ela estava dormindo.
Então acorde-a! O talão de cheques está no pequeno cofre junto
com as jóias. Peça-lhe que assine um cheque. Diga para o que é.
De quanto?
Eu disse a quantia.
Ele deu um assobio.
Isso vai dar uma cena! disse ele.
Durante três minutos no mínimo não ouvi nada, apenas o ruído da ligação. Fiquei imaginando o que o Rod devia estar agüentando agora. Olhei para o papel debaixo do vidro; dentro da moldura em cima da mesa da Ruth, e li as palavras
...VENÇA A IRA COM A CORDIALIDADE...
Muito a propósito.
Espero que o sr. Bracken consiga o cheque disse a Ruth.
Eu também respondi rindo. Mas era de desespero.
Tenho pena do senhor disse a Ruth de repente.
Como?
Eu disse que tinha pena do senhor.
Eu ouvi. A senhora... de mim?
É, sr. Norton. Sua vida não é nada agradável.
Bem, se a senhora acha - disse eu é porque não deve ser
mesmo. Deve haver outro tipo de vida mais agradável. Olhei para as
cadeirinhas de roda. Mas bem piores também.
Quem sabe? retrucou a Ruth.
- Phil! < Era Rod.
- Sim?
Foi um custo, meu velho! Se eu não arranjo um uísque agora,
tenho uma síncope. Primeiro acordar a Sylvia. Depois lhe contar tudo. Em seguida dizer que precisávamos de um cheque. Quando mencionei a quantia, ela só faltou ficar maluca.
Ela está ouvindo?
Já emborcou de novo. Eu não tenho mais saúde para essas coisas,
meu velho. Eu...
Já sei. Mas conseguiu o cheque?
Consegui.
Ela preencheu direito?
- Não.
210Deixei cair a ovelhinha.
- Não?!
- Só conseguiu mesmo assinar, de fraqueza, raiva e atordoamento... colocou também a quantia em números no canto em cima, porém escrever por extenso fica por sua conta. Ficou ainda controlando até eu guardar o talão no cofre, trancar...
... e lhe pendurar a chave no pescoço completei eu.
Não. Tocou a campainha e pediu ao médico da noite para guardála. Meu velho, nenhuma mulher o amou tanto na vida! Meus parabéns! Nenhuma também teve tanta confiança em você.
Leve o carro para uma outra rua, tire a capa e venha até aqui no hospital o mais depressa possível. De táxi. Me espere na porta. Traga o neu capote e chapéu.
Está bem, Phil.
Um momento! Tem mais uma coisa.
Mais uma... santo Deus! O que é?
O jato da Sylvia está em Madrid, não é?
Claro. Você e a Babs foram com ele para lá. Mandei o aparelho
com a tripulação, e disse ao capitão para aguardar notícias.
E você sabe em que hotel eles estão?
- Sei.
Ligue para eles. Diga-lhes que partam imediatamente para Roma.
Como sempre, aeroporto Leonardo da Vinci. Posição quarenta e cinco. Bem ao lado. Quero voltar a Paris no SUPER-ONE-ELEVEN. Faz mais figura.
Tem razão disse Rod. Além disso, nunca se sabe. Pode acontecer qualquer coisa. Nesse caso o jato é sempre melhor. Ligo já para Madrid. Antes porém, falo com o Cossa em Roma. Tchau, querido.
Pendurei o fone e peguei novamente a ovelhinha.
Temos que ligar o telefone lá no quarto do Notti lembrou Ruth
como se ela fosse minha cúmplice. O chamado de Roma pode vir a qualquer momento.
Tem razão.
Levantamos juntos.
Com isso nossos rostos se aproximaram tanto que quase se tocaram. De repente tive uma vontade louca de beijar a Ruth, mas não ousei e dei um passo para trás.
O senhor disse uma coisa que eu não vou esquecer nunca
observou ela.
E o que foi que eu disse?
O senhor disse que só estava aqui de passagem.
Sim, e daí?
211Com essa frase o senhor descreveu toda sua vida...
Aquele Pietro Cossa, chefe da agência fotográfica de Roma, tocou realmente dois minutos depois da Ruth e eu termos ligado o telefone no quarto do Notti. O médico atleta continuava a tomar conta. Quando o telefone tocou e eu disse a Notti que o Signor Cossa queria lhe falar, olhou para mim como uma vaca em dia de trovoada. Tive que lhe meter o fone na mão e apertá-lo contra o ouvido. O Cossa não deu nem chance do Notti falar, berrou de tal forma desde o primeiro minuto, que esse mal conseguiu contribuir com um prego] (por favor!) em toda a conversa. O que não consegue
fazer a esperança de 100.000 marcos! pensei comigo (ou ao menos parte
dessa importância). Quinze minutos depois o Notti estava aniquilado. Só dizia: si, si, si. Quando pendurou o fone estava tão fraco que nem conseguiu olhar com ódio para mim.
Entendeu tudo? perguntei.
Balançou a cabeça e lambeu os lábios rachados.
Eu vou com o senhor disse ele baixinho. Não precisa ter
medo; não vou fazer nenhum escândalo, fico quieto, não amolo. Depois
acrescentou: Cachorro!
Agora tinha o chefe em quem despejar todo seu ódio. Alguém
afinal ele precisava ter.
Bem, então vamos, meu amigo.
Mas não assim! disse a Ruth. Primeiro temos que ajeitá-lo
ao menos um pouco, para ficar mais apresentável senão vai ser preso pelo primeiro policial.
Virando-se para o Notti, ela disse: Venha comigo.
Pois não, madame. Já vou, madame. Claro, madame. Obrigado,
madame balbuciou ele saindo da cama, calçando os sapatos e procurando
o paletó. O médico ajudava como a uma criancinha. Sujeito simpático aquele médico imenso, sr. Juiz, simpático mesmo.
Desculpe disse eu baixinho para a Ruth.
Desculpe o quê? perguntou ela.
Tudo que a senhora está fazendo por mim é ilegal, não é?
Claro que é, sr. Norton disse ela olhando para mim, calma e séria. Inteiramente ilegal.
Se algum dia a senhora tiver algum problema com a polícia, eu assumo toda a responsabilidade. Tui eu quem a obrigou... eu... eu... aí confesso tudo...
212Ora, deixe disso!
Mas não posso permitir que por minha causa a senhora venha a ter
dificuldades.
Não vou ter dificuldade nenhuma. Mas não pense que fiz isso tudo
pelo senhor]
E por quem foi então?
Ficou olhando para mim.
Posso ir dar uma olhada na Babs? perguntei muito baixinho,
sempre falando alemão.
Pode disse ela. O senhor sabe o caminho. Pode ficar lá um
pouco. Depois venha até a sala de emergências.
Fique boa. Completamente boa. Por favor! Existe tanta coisa em jogo. Prometo gostar sempre de você, brincar com você, fazer tudo que você quiser. Mas fique boa. Tanta gente vai ficar em dificuldades, se você não ficar boa. Se esforce. Por favor. Por favor; faça um esforço! Sei que agora você está muito mal. Mas se você se esforçar, ficará boa logo. É mais fácil ficar boa, quando se tem vontade. Você pode pedir o que quiser, eu lhe dou tudo. Sabe de uma coisa? Não é verdade que você me dava mal-estar. Quero dizer, você em particular. Criança em geral sempre me deu. Além disso você estava sempre atrapalhando. Pense em toda aquela encenação a que fui obrigado durante anos, só por sua causa. Mas eu juro que não vou mais precisar fingir, pois agora gosto realmente tanto de você quanto você de mim. Só quero que fique boa. Por favor!
Eu estava em pé diante da enorme cama, e a Babs deitada de lado, tão pequenina e perdida. Apenas a luz azul permanecia acesa. Uma irmã estava deitada no sofá junto à janela, completamente vestida, coberta com uma manta, pois tinha esfriado.
No peitoril da janela prendera uma dessas lampadazinhas que podem ser fixadas em qualquer lugar, e lia. Ainda me lembro o nome do livro: L’ESPOIR, de André Malraux.
Olhei novamente para a Babs. Ainda lhe pedi várias vezes para ficar boa, mas por fim pensei: tudo isso não faz o menor sentido. Era a mesma coisa que falar com uma figura de mármore. Disse boa-noite à irmã que me cumprimentou com um movimento de cabeça e continou a ler ESPERANÇA de Malraux.
213Saí do quarto. Eram quase nove e meia.
Que noite aquela, sr. Juiz!
Ruth, o dr. Sigrand e um outro médico ajeitaram o Notti de modo que ficasse apresentável ao menos para aquela noite. Estava com três grandes esparadrapos no rosto; seu casaco, chapéu e sapatos tinham sido limpos. Como tivesse escorrido muito sangue do seu nariz em sua roupa, o dr. Sigrand (dr. Sigrand!) lhe deu uma de suas camisas e gravata.
Os médicos costumam ter uma muda de roupa, um terno, um pijama etc. em seus quartos, nas clínicas. Evidentemente a camisa era larga demais, sobravam dois dedos no colarinho e a gravata descia-lhe até a barriga. Eu tinha ligado para a Suzy, e contado rapidamente o que acontecera. Disse que precisava ir a Roma. Chorou.
Amanhã estou de volta, meu amor.
Até amanhã pode acontecer tanta coisa! respondeu ela Já sei
que essa noite não vou conseguir dormir um minuto. Você está levando tudo? Roupa grossa? Passaporte... dinheiro... Eu vou até o aeroporto e levo todo o dinheiro que tenho em casa...
Não, meu amor. Tenho tudo que preciso.
Realmente tinha. O que eu ainda precisava e que não estava em meu poder, Rod traria. Esperava por mim na entrada do hospital. Enquanto acabavam de ajeitar o Notti, passando talco nos lugares mais afetados, desci com a Ruth ao porão do hospital, até o incinerador. Num daqueles recipientes enormes que coleta todo o lixo, destruí os filmes do Notti. Lá dentro rodava uma espiral de aço que triturava tudo, caixas, papel, panos ensangüentados, metal... até a câmara. Fiquei olhando-a ser reduzida a pedaços. Subi novamente. Fui até a entrada do hospital e lá estava o táxi. Entrei, fiz um sinal a Rod, tirei a capa amarela, peguei meu capote e chapéu. O motorista olhava fixo para a frente, assobiando “La vie en rose”. Meu passaporte estava comigo como sempre. Rod apenas me entregou o cheque parcialmente preenchido.
Que amor! disse ele.
Pegou minha capa e saltou, dizendo num tom de voz que o motorista não pudesse entender, que ia voltar para o hotel e ficaria acordado a noite inteira, caso eu telefonasse precisando de alguma coisa, ou se algo saísse errado. Disse também que da clínica do dr. Delamare, tinha reservado duas passagens de primeira classe para o vôo da BEA para Roma, que partia de Orly à meia-noite.
214Estavam no nome do Notti. Não havia outro jeito, já que na hora de retirá-las pediam os passaportes. O avião estava lotado, tinham sido os dois últimos lugares, disse Rod. Sorte, a gente afinal precisa ter!
Entrei no hospital novamente para apanhar o Notti. Rod já tinha ido. O porteiro da noite chamara um táxi para ele, me disse o motorista. Empurrei o Notti para dentro do táxi e entrei também. Ao partir virei-me uma vez para acenar, mas a Ruth e o dr. Sigrand já haviam entrado. Disse ao chofer para correr, pois tínhamos que pegar um avião em Orly. Ele se recusou. Se a polícia o pegasse, ou se ele caísse numa faixa controlada pelo radar, iam lhe tirar a carteira. Dei-lhe duzentos francos de gorjeta e na mesma hora tive a sensação de já estar voando.
Conseguimos chegar, oito minutos antes da partida do BEA que vinha de Londres. Passamos rapidamente pelo controle e pela alfândega. Um carro da BEA nos levou até o avião... Partimos.
Algumas pessoas evidentemente nos olharam curiosas. A maioria no entanto estava cansada demais ou dormia. Na primeira classe, instalei o Notti na janela; cobri-lhe o rosto com uma cortina. Pedi à aeromoça que me trouxesse qualquer coisa para beber. Para que ela não ficasse indo e vindo a toda hora, pedi logo uma garrafa de uísque, gelo e soda. Trouxe tudo. Preparei um drinque para o Notti; tomou e me estendeu o copo novamente.
Dei-lhe mais uma dose. Não disse nem obrigado, apenas o quanto me odiava.
Foi bom ter pedido logo uma garrafa, pois precisaria dela mais tarde. Foi um vôo horrível; entramos numa frente de tempestade, tivemos que ficar de cintos amarrados o tempo inteiro. O Boeing caiu no vácuo, sacudia e estremecia. Muitos passageiros acharam que o aparelho ia cair e ficaramhistéricos. Afinal, chegamos sãos e salvos. Na pista estava o Bentley prateado de Marone.
19
Não faz o menor sentido, sr. Juiz, eu lhe descrever em detalhes o palacete de Marone na mais sofisticada colina de Roma, a de Píncio. Ocuparia muito espaço. Talvez o senhor tenha visto o filme CIDADÃO KANE com Orson Wells como artista e produtor. Aquele filme famoso baseado na vida de Hearst, o multimilionário rei da imprensa, no qual o próprio Orson Wells representou o papel principal.
No filme, Hearst, o magnata, fez construir para si um palácio na Flórida. O palácio chamava-se “Sanadu”, nome do palácio erigido por Kubla-Khan, o príncipe mongol, neto de Dschingis-Khan, fundador da dinastia chinesa Juen
215(isto fora em 1279, o que sei graças às excelentes obras de consulta à biblioteca de nosso presídio).
O palácio de Kublai-Khan era um barraco em comparação àquele que Orson Wells mandara erguer para o filme, como residência do magnata da imprensa. Era, segundo o roteiro, “a maior residência particular de verão do mundo”. Orson Wells dera-me um exemplar de presente. Fui ver aquela obra prima nove vezes; sei o roteiro quase de cor.
O de Marone não era tão luxuoso assim, mas de qualquer maneira ao chegar na colina de Píncio, me lembrei de CIDADÃO KANE.
Levamos cinco minutos para atravessar o parque. Finalmente o carro parou diante da fachada de mármore branco coberta de ornatos loucos. Levamos mais cinco minutos para atravessar salões, bibliotecas e salas cheias de quadros. Finalmente chegamos à sala de trabalho de Marone: tudo em mármore branco, os estofos de um vermelho-escuro, as madeiras de lei, douradas. Espelhos gigantescos. Uma estátua grega: qualquer fulano nu, sem um braço, lançador de disco. Tudo mobiliário de peças antigas, evidentemente. Sim senhor, o Marone tinha se feito, graças aos filmes da Sylvia Moran!
Tive que dar um empurrão no pequeno Ângelo Notti, pois olhava perplexo para um gobelin que cobria a parede inteira, e que devia ter certamente seus trezentos anos. Notti entrou cambaleando direto para os braços de um homem que se erguera de uma poltrona funda. Esse o pegou pela gravata (a gravata do dr. Sigrand!), sacudiu-o de tal maneira, que o coitado voava de um lado para outro. Acertou-lhe um soco na barriga, e imaginei logo quem poderia ser ele: Pietro Cossa, chefe da grande agência fotográfica.
Carlo Marone estava sentado numa cadeira renascentista, soprando nuvens de fumaça para o alto, contemplando com os olhos meio cerrados, o Cossa espancar o pequenino Notti, sempre na barriga, cada vez com mais força, acertando-o por toda a parte, menos no rosto. Pobre-diabo, já era a segunda vez nessa noite que apanhava desse jeito. E agora ainda com uma muleta! O tempo todo o Cossa gritava com o fotógrafo. Entendo bem italiano, mas muita coisa do que o Cossa gritava, me escapou. Tenho certeza que Marone entendia: era italiano de príncipes...
Ouvi um arquejar e, me virando, descobri uma moça estendida num leito de ouro e púrpura. Tinha cabelos louros, seios imensos, pernas compridas, um bonito corpo se espreguiçando lascivo. Vestia apenas um sutiã e um biquíni pretos. Contemplava fascinada o espancamento.
Meu Deus! dizia ela. Meu Deus que coisa horrível...
Mas saboreava o espetáculo que lhe era oferecido. Um detalhe, sr. Juiz, sempre que encontrar um tipo desses em casa de um rico italiano pode ter certeza de que é alemã. Creio que o Marone a deixou là de propósito para que pudesse apreciar.
Ela devia estar “alta”, e bastante. Fungava constantemente. Sua mucosa nasal deve estar ressecada, pensei eu. Cocaína, na certa. Devo ter incomo dado o Marone em meio a uma alegre noite... Sinto muito!
216O infeliz Notti procurou dizer algumas palavras em sua defesa. O Cossa, no entanto, continuava a espancá-lo impiedosamente. Notti chorou alto. A loura deu gritos. Pietro Cossa, sádico milionário, chefão de uma imensa agência de publicidade, saiu arrastando o Notti atrás de si. As portas da sala eram brancas com entalhes de ouro. Folheado a ouro, conforme constatei certa vez. A porta, que devia ter no mínimo dois metros e meio de altura, bateu.
Some daí - disse o Marone para a loura.
Esta riu como uma idiota, ergueu-se, saiu rebolando, batendo as sandálias de salto nos tacos. Desapareceu por uma pequena porta falsa. No meio da porta virou-se, dizendo para o Marone num italiano deplorável:
Eu já vou me deitando, Carlo, está bem? Não demore, por favor.
Não demoro não respondeu esse atrás de sua mesa. Se
demorar vai começando sozinha, Christiane.
Ela achou aquilo ultracômico.
Feche a porta! ordenou Marone, e Christiane desapareceu.
O que o Cossa tem de desagradável é que sempre necessita de
platéia quando tortura alguém. Revoltante, não acha?
Pobre-diabo disse eu.
Quem?
O pequenino. O italiano fotógrafo.
Marone sacudiu a cabeça.
Ele não tem nada de pobre.
- Como?
Nada mesmo. Ele e o Cossa são amantes há anos. Quanta pancada
você não acha que o Notti já levou de seu querido? E como ele aprecia! Principalmente diante de uma platéia.
Mas como? Então o Notti é...
Masoquista respondeu Marone entediado. Por acaso não
notou?
Bem que você tinha razão, pensei eu comigo. Você sempre achou que ele sentia um prazer especial quando surrado. Vejam só!
Marone dissera qualquer coisa que eu não entendi.
- Como?
O cheque disse ele.
Ainda falta preencher respondi.
Por quê? Escute aí Phil, se você está a fim de me tapear...
Eu não quero tapear ninguém disse eu, explicando por que o
cheque ainda não estava completo. Sentei-me a uma mesa de mármore, escrevi a quantia por extenso, a data, e como local de emissão coloquei Roma. Tomei um cuidado louco para não me enganar, pois se inutilizasse aquele cheque teria que voltar a Paris e tentar arrumar outro. Tentar, digo eu, pois não tinha certeza de conseguir apesar de todo amor e confiança.
217Preenchido o cheque, entreguei-o a Marone que o examinou durante uns dois minutos e me avisou mais uma vez do que aconteceria se ele não tivesse fundos. Eu também disse o que eu faria. Riu e me perguntou se eu ia voltar logo no avião seguinte. Havia outro ao meio-dia.
Por que quer saber?
Se tivesse tempo poderia ocupar-se com a Christiane.
É muita amabilidade sua, Carlo respondi, mas tenho que
voltar rapidamente no jato da Sylvia.
Como quiser, Phil disse ele, ergueu-se e foi até o bar.
Christiane é fabulosa! É de Munique. Sabe o que ela faz? Ele me disse.
Parecia muito interessante, mas eu realmente tinha que voltar a Paris.
Uísque?
Aceito disse eu. Era a noite do uísque.
Instalamo-nos, cada um com seu copo, e ao lado ouvíamos o gordo sadista reinando.
Não demora muito disse Marone. Não tem mais platéia. É
apenas o epílogo. Ficou olhando triste para o cheque.
- Não precisa chorar! Você vai dividir com o Cossa.
Não; tenho que dar tudo para ele.
E por quê? Você não sabe do caso dele, da morte daquela garota?
Você não o tem na mão?
Eu já lhe disse, tenho que dar tudo para ele repetiu Marone. Era
um homem muito bonito; fazia até mal olhar para ele. O senhor sabe o tipo do romano de cabelos pretos, rosto bem talhado, nariz reto, olhar ardente. Algumas garotas já me haviam dito que ele era completamente impotente. Quando lhes perguntei por que se metiam com ele, pois era também um tremendo mão fechada (daquele ninguém ia herdar coisa alguma), todas, para meu espanto, responderam a mesma coisa:
Mas ele é tão bonito!
E agora o Marone dizia, com o olhar mais aveludado:
Faço qualquer coisa por você, Phil, mas sob uma condição. Afinal
eu também tenho que tirar algum proveito disso, não acha?
Você continua a receber os filmes da Sylvia para distribuir.
Não venha com chantagem. Esses filmes eu teria continuado a
receber de qualquer maneira, se não fosse aquele seu incidente em Paris, Phil.
Qual é então sua condição?
Como saiu o último filme da Sylvia?
Excelente.
Então só entro na jogada se a estréia for aqui em Roma disse
Marone rnastigando seu cigarro, enquanto ao lado Pietro Cossa continuava a berrar com seu querido Notti.
Hum... !
Sabe, sr. Juiz, Roma não é exatamente a cidade ideal para a estréia de superproduções como eram os filmes da Sylvia. É provinciana demais. A Europa toda aliás é.
218Todas as estréias dos filmes da Sylvia até hoje tinham sido nos Estados Unidos, em Hollywood ou em Nova Iorque. Mas na Europa...
Eu lhe prometo. Escolho o melhor cinema. O Cine-Festival, perto
do Coliseu, o Teatro Sistina! Juro, arranjo a melhor, a mais rica e famosa platéia! Será uma estréia como Roma nunca viu! Como você nunca viu! Daqui a dez anos ainda falarão sobre ela!
Hum...
Mando vir os melhores críticos. De onde você quiser. Você é quem
decide quem vai querer! Ou então Bracken, se você não estiver bem a par.
Esta eu engoli. Prometo, consigo gente do Vaticano, tudo que é Chefe de
Estado, e até um russo graúdo qualquer! Toda a aristocracia, editoras, indústrias, banqueiros... o que você quiser!
Por que faz tanta questão dessa estréia, Carlo?
Alfredo Bianchi disse ele bebendo.
O que tem Bianchi?
Ele trabalha com a Sylvia no filme.
Sim, e daí?
Que mês temos agora? Início de dezembro. Quando é que o filme
vai ficar pronto para ser lançado, com cópias, publicidade e tudo o mais?
Não antes de abril.
Então estamos feitos.
Feitos, como?
Bianchi está novamente internado, não é?
Ouvi falar. Aqui em Roma...
Dessa vez ele estica as canelas disse Marone Tenho minhas
ligações. Eu lhe digo, ele não agüenta mais três meses. Dá certinho, Phil.
E se ele não esticar as canelas? Quantas vezes já pareceu que ele ia
embarcar e não foi? perguntei eu.
Mas desta vez vai! Essa casa aqui é sua, se em abril Alfredo ainda
estiver vivo disse Marone. Foi a secretária do chefe da clínica que me
disse pessoalmente. Ele agüenta, no máximo, até abril. Daí não passa. Tin-Tin!
Tin-Tin disse eu, mas não me sentia lá muito bem.
Phil, o autor mais popular da Itália! Adorado no mundo inteiro!
Falecendo em Roma! E logo após sua morte nós lançaremos seu último filme com a Sylvia! Isso vai dar a vocês, de saída, o triplo de renda, só na Itália... Na França também. Pergunte a Joe. Quer ligar para ele e perguntar?
Sacudi a cabeça.
Meu Deus, pensei eu comigo, se o Alfredo realmente só tiver mais dois meses, e o filme for lançado logo após sua morte, então ele só poderá ser lançado em Roma, é claro! Mas, pensei eu, negócio é negócio e disse:
Eu por mim concordo. Mas naturalmente você terá que ir a Hollywood falar com Joe.
219E já que vai ganhar tanto a mais, terá que fazer evidentemente algumas concessões.
Escute, Phil...
Mas é lógico! Do contrário Joe não aceita disse eu, resolvido a
me comunicar com o Joe assim que chegasse a Paris. Se você concordar
com as exigências de Joe, afinal ele nunca pediu nada de absurdo, pode ter certeza de que a Sylvia vai concordar. Eu insisto com ela. Com Bracken também e com Joe. Ela vem a Roma. Se você respeitar as exigências do Joe, de qualquer maneira ainda fica com um bocado para você. Mas só na hipótese do Alfredo realmente morrer em tempo.
Isso eu posso jurar! disse Marone. Me dê seu copo. Preparou mais dois drinques, e quando íamos fazer o brinde, a imensa porta se abriu e o Ângelo Notti veio se arrastando para dentro, de cabeça baixa. Atrás dele, o gordo chefe.
Vamos disse esse para Notti.
Notti olhou para mim. Lágrimas (de volúpia) caíam no tapete quando ele falou.
Me desculpe, sr. Kaven. Peço mil vezes perdão. O que fiz foi
infame, traiçoeiro, vil. Sinto muito e peço perdão. Já recebi meu castigo.
Vi que os olhos do chefe brilharam. Agora ele estava satisfeito!
Que castigo você recebeu? perguntou Marone.
Notti calou-se.
Diga! gritou o Cossa.
A partir desse momento não trabalho mais em Paris disse o
Notti, chorando cada vez mais convulsivamente. Parto ainda hoje, para
bem longe. Vou trabalhar em outro escritório.
Onde? perguntei eu.
No Oriente Próximo disse o Notti soluçando. Tel-Aviv.
O Cossa olhou para mim triunfante e bateu com a muleta no chão de mármore.
O sr. Kaven ainda não lhe perdoou, Notti.
Perdão, sr. Kaven.
Está certo. Perdôo.
Obrigado, muito obrigado! soluçou ele.
Agora desapareça. Peça ao mordomo que chame um táxi para
você. Vê se chega lá na agência às dez! ganiu o Cossa.
O pequeno Notti se afastou, de costas, inclinando-se a toda hora. Desapareceu.
Muito obrigado sr. Cossa disse eu.
Não tem o que agradecer. Onde está o cheque? Ah, muito bem. E
agora Carlo vamos...
Eu já perguntei a Phil disse este.
- E?
Ele quer voltar agora mesmo.
220Signore disse o Cossa não sabe o que está recusando. Não
era sozinho... com a Christiane. Não, nós três juntos! E não é nada do que o senhor imagina. Tivemos aqui umas idéias... a Christiane faz tudo.
Nem sempre voluntariamente disse Marone, e o Cossa dava
gargalhadas.
Bem, nem tudo! Mas nós... nós conseguimos convencê-la... O
senhor não tem idéia da nossa habilidade em convencer alguém!
Vale a pena disse Marone. Como é?
Não posso disse eu. Realmente é muita gentileza sua, Carlo.
Mas tenho que voltar a Paris.
Ficaram com muita pena, e Marone mandou me levar ao aeroporto de Bentley, depois de chegarmos a um acordo de que ele ligaria para Joe e seguiria para Hollywood assim que esse tivesse tempo para atendê-lo. A viagem de volta, no jato SUPER-ONE-ELEVEN vindo de Madrid, que já estava na posição quando cheguei ao aeroporto, foi muito calma e agradável. Dormi duas horas. Aterrissamos em Orly quase ao meio-dia. Ao passar pelo controle coloquei novamente os óculos escuros. Tive a impressão dos funcionários me olharem de maneira estranha. Passei por uma banca de jornal e logo entendi o porquê daqueles olhares.
O mais ordinário, mais infame e popular de todos os jornalecos de Paris estava exposto na banca, trazendo, em letras garrafais, a seguinte manchete:
PHILIP KAVEN ESPANCA FOTÓGRAFO ITALIANO NO HOSPITAL SAINTEBERNADETTE!
E por baixo:
O QUE FAZIA O COMPANHEIRO CONSTANTE DA SYLVIA MORAN NA
CASA DE SAÚDE?
- Rod!
Até que enfim, Phil! Onde você está?
Orly. Acabo de chegar. Estou falando de um telefone público.
Nenhum repórter por aí?
Não vi ninguém.
Droga!
Droga, por quê?
Já viu aquela merda de jornaleco?
É por isso que estou ligando. Como foi que souberam?
221Não tenho a menor idéia. Talvez pelo motorista que levou você e o
Notti para Orly. Há horas estamos nos telefonando.
Nós, quem?
Eu e os médicos do hospital. Os médicos e os enfermeiros. Eu e
Delamare. A Sylvia por enquanto está fora de combate.
O que quer dizer com isso?
Quando ela voltou a si lá na clínica, começou a querer criar caso.
A irmã Hélène chamou o Delamare, e este não conversou.
Não conversou, como?
Ora, sabia o que a Sylvia fizera. Para evitar que a cena se repetisse,
deu-lhe logo uma série de injeções. Submeteu-a a uma pequena sonoterapia. Diz que antes de três dias ela não volta a si. Continua levando injeções. Com ela não precisamos nos preocupar.
Ótimo.
Depois falei com seu amigo Lucien, o porteiro da noite lá do
hotel... Esse ligou para a lavanderia... etc... etc.
- E?
E nada. Absolutamente nada! Ninguém imagina como a porcaria
daquele jornal foi descobrir aquilo. Joe diz que é a própria catástofre.
Joe Gintzburger?
- É.
De Hollywood?
- Claro!
Você ligou para ele também?
Escuta, você ficou meio pancada? Ele foi o primeiro para quem telefonei.
- Pegou logo um avião, e já está a caminho de Paris. E... o que foi que ele disse?
Agora é que a coisa vai pegar fogo! Agora é que você vai ter todos
os repórteres de Paris nas costas. Vamos exigir uma retratação daquele pasquim. Tudo já está preparado.
Tudo o quê?
Você pega um táxi e vai até a cidade. O Maître Lejeune espera por
você ao meio dia. No Fouquet’s. É para lá que você tem que ir. Sabe onde é?
- Quem é o Maître Lejeune?
- Você vai até o centro, no Champs Elysées...
- Merda! Eu sei onde fica o Fouquet’s. Quero saber é quem é esse Lejeune!
- Na esquina da Avenue George V você dobra e...
- Rod, eu te mato, assim que nos encontrarmos! O Fouquet’s que vá à merda. Diga-me quem é Lejeune!
- É o advogado de Joe em Paris. Já combinou com o diretor daquela porcaria de jornaleco.
222Às duas horas, vocês têm que estar lá. Amanhã sai a retratação. Quando vocês acabarem...
Como é que vamos conseguir isso?
Droga, não me interrompe! Joe diz que você terá que agir rapidamente. E não será tão fácil. Mas tem que ser feito, de qualquer maneira. Sem falta...
- O quê?
A Babs terá que sair do hospital, o mais rápido possível.
Mas como? Não pode! Em primeiro lugar ela não está em condições de ser transportada; e depois como você mesmo diz, tem repórter por tudo que é canto.
Desses eu me encarrego. O Lejeune também. Ele é fácil de ser
reconhecido. É o homem mais gordo de Paris, diz Joe. Quanto a Babs ela pode sair sim. Já falei com o dr. Sigrand pelo telefone. Sob certas condições, e com maiores cuidados, ela poderá ser transportada. Ela terá que sair de Paris ainda hoje. E você também.
Para onde?
Nurenberg.
Como?
Para Nurenberg, seu idiota. Uma cidade na Alemanha. Para a
clínica daquela médica, a dra. Ruth Reinhardt. Ela já está preparando tudo.
Preparando tudo...
É, seu idiota! A Babs agora vai para a sua clínica! Ela também vai.
De avião. E você também!
O Maître Lejeune devorava mexilhões quando cheguei ao Fouquet’s. Não se pode absolutamente dizer que ele estivesse comendo. Em toda minha vida, nem antes nem depois, nunca vi uma pessoa se portar tão mal à mesa.
Aquele advogado em quem Joe confiava cegamente estava sentado num banco de veludo vermelho, com um espelho atrás. Em cima da mesa um balde de gelo com uma garrafa de vinho branco... diante dele dois pratos. De um deles, onde devia ter havido uma boa quantidade de mexilhões (no segundo prato via-se uma montanha de conchas vazias), tirava os últimos com dedos muito grossos e rosados. Fiquei parado na porta olhando, pois uma comilança dessas nunca havia visto. Lejeune pedira mexilhões ao forno, abertos portanto, preparados com muita salsa, alho em quantidade e azeite. Seu rosto parecia o de um porco ja meio velho. Agora, em meio àquela devoração, parecia um porco velho em êxtase.
223Levava concha após concha à boca pequenina e rosada, e depois de ter engolido o mexilhão lambia com o maior enlevo a concha por dentro... e por fora (sob minha palavra de honra!), com aquela língua rosada. Tomava regularmente um gole de vinho. Suas mãos estavam engorduradas. Suas bochechas pareciam as de um hamster, com aquelas papadas dos lados, que pendiam por cima do colarinho e chegavam até a lapela do paletó. Maître Lejeune não tinha praticamente pescoço. Sua cabeça de porco era presa diretamente aos ombros. Era inteiramente calvo. A barriga de tão imensa obrigou-o a empurrar a mesa para poder sentar-se. Os braços eram espantosamente curtos e por isso tinha que fazer um esforço para alcançar os mexilhões e o vinho.
Um garçom se aproximou de mim. Disse-lhe que marcara um encontro com Lejeune. Em um minuto estava em sua frente. Em cinco, sabia que ele não só era um grande glutão gordo, mas também de uma astúcia incrível. Exatamente o homem de quem estávamos precisando no momento.
Ao chegar perto da mesa, apenas levantou os olhos um instante de seus mexilhões. Eram vivos e pequenos como os de um porco.
Muito bem, sr. Kaven disse ele com sua voz fina de garoto.
Como sabe o senhor que eu...
Ora, não faça perguntas idiotas disse ele ocupado com a última
concha.
Sente-se. Sinto muito, mas do meu lado não há lugar. Ocupo
sempre dois lugares. Pago por dois também. Glândulas, o senhor sabe, glândulas. - Suspirou. Dois garçons trouxeram nova travessa de mexilhões e trocaram os pratos. A mesa parecia um verdadeiro mapa, tão emporcalhada estava. Pediu mais uma garrafa de Blanc de Blanc. Sentei-me. O garçom esperava delicado. Lejeune encomendou para mim.
Uma dúzia de ostras para meu amigo. Mas não da espanhola,
quero “Imperial”. As espanholas são gordas demais.
Na verdade não estou com grande vontade de comer ostras
disse eu.
Claro que está.
Quando falava, soprava um bafo de alho por cima da mesa, quase me derrubando do banco.
- Uma dúzia de “Imperial” portanto, Charles, para começar.
Pois não monsieur Le Maître. E um copo... O senhor toma Blanc de Blanc?
Sempre me dá dor de cabeça respondi.
Então vinho branco, 162 disse o gorducho. Fez sinal ao garçom
para este se afastar e atacou sua segunda porção de mexilhões como um lobo
caindo por cima de sua presa. Depois do almoço vamos até aquele jornaleco disse ele, lambendo mais uma concha por fora Delicioso!
Só como mexilhão ao forno. Bebeu, arrotou e continuou: Horrível o
caso daquela pobre criança. Chegou até a me atacar os rins. Não tenho nem apetite.
224O garçom trouxe uma garrafa de vinho branco, deixou que eu provasse e ficou esperando. O 162 estava delicioso. A um sinal meu, encheu meu copo e se afastou.
Muita coisa ainda por fazer? perguntou Lejeune. Refiro-me
ao senhor.
Muita respondi. O senhor também.
Eu? Por quê? Ora, aquele pasquim? Ridículo! Aquele eu engulo
como se fosse um mexilhão! arrotou novamente. Preste atenção no que
vamos fazer, eu lhe explico enquanto esperamos por suas ostras e meu Cordon Bleu.
Fiquei ouvindo a explicação.
Era um tipo muito especial aquele Maître Lejeune. Até hoje ignoro seu primeiro nome.
O caso daquele pasquim ele realmente engoliu como um mexilhão. Com aquele diretor grã-fino ele por assim dizer limpou o chão. Além do jornaleco, o homem ainda possuía dois mais sérios, e era dono das duas maiores revistas da França. Ele mal conseguia abrir a boca.
O senhor sabe que eu posso condená-lo a um pagamento de dez
milhões de francos disse Lejeune quase como cumprimento, ainda segurando a mão do diretor. Esse deu rapidamente um passo atrás. O cheiro de alho que o advogado exalava enchia a sala, apesar do escritório ser um cômodo grande, decorado até com muito luxo. Mas também, depois de três porções de mexilhões ao forno...
Temos testemunhas e provas do que afirmamos disse o diretor
retirando-se para trás de sua mesa. Eu, aliás, apenas os recebi por questão
de delicadeza. Qualquer explicação é com meu departamento jurídico. O que publicamos é verdade. A mim o senhor não consegue intimidar com seus métodos famosos. A mim, nunca!
Eu tenho uma queixa do sr. Philip Kaven contra seu jornal
disse o homem mais gordo que eu já vira, com sua voz cantante de eunuco, tirando de sua pasta um maço de folhas escritas que colocou em cima da mesa.
Uma queixa por difamação. Por ela o senhor é intimado a publicar
no mesmo local de seu... hum... seu jornal, com a mesma apresentação e tipo de letra, que aquela manchete escandalosa era mentira, que está se retratando e que...
225Quer saber de uma coisa, também minha paciência tem limites! O
senhor quer fazer o favor de se retirar imediatamente...
... que o sr. Kaven meu constituinte, cuja procuração está aí
anexada, pretende processá-lo por calúnia e difamação a pagar dez milhões de
francos disse Lejeune A queixa será dada ainda hoje, se não chegarmos
a um acordo quanto à retratação Arroto Como o senhor sabe, sou um
homem que trabalha rápido e não deixa nada por conta do acaso.
Sr. Kaven disse o diretor (ostentava uma pérola na gravata)
o senhor pretende afirmar não ter agredido um fotógrafo no pátio do Hospital Sainte-Bemadette?
Sr. Kaven é alemão, como o senhor bem sabe disse o advogado
depressa (já havíamos combinado no restaurante que eu não ia abrir a boca).
Ele tem grande dificuldade em entender francês. Por esse motivo eu leio
agora para o senhor uma declaração em nome dele. Tirou mais um papel
da pasta e leu de um só fôlego: “Eu, Philip Kavenldeclaro que na noite de 2 de dezembro de 1971, tinha ido à clínica de otorrinolaringologia do Hospital Sainte-Bernadette a fim de visitar a srta. Clarissa Geiringer, nossa governanta, que ali se encontrava internada desde o dia 28 de novembro, em conseqüência de um grave problema de garganta. Arroto. Depois a voz de
castrado continuou: Quando eu... declara o sr. Kaven... deixei o
hospital fui abordado no pátio por um indivíduo que me agrediu. Eu me defendi. A pessoa, que me era desconhecida, fugiu. Pela manchete da edição
de hoje do... e aí Lejeune cantou enlevado o nome do jornal...e
pelo artigo que se segue, afirma-se que o homem que me importunou era um repórter que agia a mando de sua redação, que me escolhera como vítima para notícia de seu escandaloso e inescrupuloso pasquim, golpe que aparentemente já vinha sendo preparado há muito tempo. Novo arroto. A
srta. Geiringer se encontra no referido hospital, na citada clínica, no terceiro andar, na ala particular, quarto trinta e seis. Ela poderá, a qualquer momento, confirmar minhas afirmações. Peço que seja dada queixa por...
Pare com isso! disse o diretor para Lejeune. E virando-se para
mim. O senhor então admite que esteve no hospital e que espancou o
repórter, sr. Kaven.
Éa mim que o senhor deve dirigir as perguntas e não ao sr. Kaven!
ganiu Lejeune. Sim, ele admite, e com prazer. Ele, aliás, também dá
queixa-crime contra o repórter, por agressão. Não tem a menor idéia do nome da pessoa. É estranho aliás, que desde então, essa pessoa tenha desaparecido como por encanto.
Como sabe disso?
Antes de vir aqui, passamos pelas salas da redação e perguntamos
aos repórteres, principalmente aos fotógrafos.
Existe uma coisa chamada segredo de redação, Maître.
Nesse caso o tribunal terá que anular o segredo de redação com o
fim de descobrir a verdade. Vamos provar que o senhor, e não o redator-chefe daquele... daquele pasquim, é o responsável pela autoria da notícia caluniosa...
226Isso é mentira!
... pois foi o senhor mesmo quem estipulou que presidiria todo o
conselho de redação para a escolha dos temas do dia seguinte, e daria suas instruções a esse jornaleco bang-bang, que o senhor estima tanto, por ser o que mais dinheiro lhe rende: Depois do Cordon-bleu (com acompanhamento), Lejeune ainda pediu uma fatia de torta de creme, e um Armagnac
duplo. Nós provaremos que o sr. Kaven foi seguido por ordem sua, depois
de saber que ele já tinha ido ao hospital duas vezes, e por conseguinte farejava qualquer furo sensacional! No interesse da moralidade da imprensa francesa...
Agora chega! - disse o diretor, apertando o botão de uma campainha.
... é imprescindível que se acabe com as tramas desse jornaleco
continuou Lejeune impassivo (sempre cheirando a alho). E por isso
meu constituinte apela também pára o Conselho Francês de Imprensa, exigindo que este tome medidas severas contra esse folheto Lejeune contemplou
suas unhas não muito limpas. Diante de sua posição perante o referido
folheto e caso não saia a retratação, conforme eu receio, isto provavelmente marcará o fim de seu jornal.
Uma secretária jovem e benita apareceu, e ficou parada na porta.
Por favor, d. Henriette, ligue para o hospital Sainte-Bernadette
disse o diretor. Peça para falar com a clínica de otorrinolaringologia,
quarto número...
Trinta e seis completou Lejeune solícito.
Quando a ligação estiver completa, transfira para cá.
Pois não a secretária desapareceu. Pensei mais uma vez,, que
realmente Lejeune era um advogado muito astuto. (Já percebera isso na hora do almoço, quando me explicou todo o plano. Quando perguntei como conseguiu convencer a Clarissa de se internar na clínica particular do Hospital
Sainte-Barnadette, Lejeune respondeu: À noite ainda o sr. Bracken ligou
para me pedir um conselho... o jornal saiu a uma hora da manhã. Vi a d. Clarissa e percebi logo que estava apaixonada pelo senhor... Pronto; foi só. Meus parabéns.
Eu ainda perguntei:
Mas no hospital... não deve ter sido tãa fácil assim... foram
precisos lançamentos falsos. Os médicos e a administração deviam ser cúmplices também. Ao que ele respondeu:
Falei com uma única pessoa, sr. Kaven; foi ela quem arranjou tudo... na hora. Uma doutora... O senhor deve saber de quem estou falando. Ela também ama... não ao senhor... mas às crianças... crianças doentes... uma criança muito doente... Parece que piorou de novo, sr. Norton...
227A Babs piorou, pensei comigo, e eu tenho que levá-la de avião para Nurenberg, hoje ainda. Com a Ruth. Joe Gintzburger e seu bando de gananciosos já estão a caminho de Paris... Mais alguns dias, e a Sylvia vai acordar...
O telefone na mesa do diretor tocou. Ele atendeu, disse o nome e cumprimentou a Clarissa. Mais não conseguiu. Não entendi o que Clarissa dizia, reconhecia apenas sua voz e percebi que estava desabafando em cima dele. Um pouco de histerismo também tem suas vantagens, sr. Juiz. A Clarissa conseguiu que no fim o diretor apenas gaguejasse:
Peço mil perdões... não, não... garanto que não foram repórteres meus que tentaram... não sei dizer... não sei mesmo... Palavra de honra... a senhora deve entender que não tenho a menor influência sobre outros repórteres... mas os do meu jornal... posso lhe garantir que em cinco minutos hão terá mais ninguém aí do meu pessoal... Desligou, e olhou furioso para o gordo Lejeune.
O senhor disse ele o senhor... seu...
Sim disse amavelmente o velho com voz de menino cantor.
De repente o diretor se ergueu de um salto, e saiu precipitado da sala.
Viu disse Lejeune para mim, bocejando preguiçosamente Já
está começando a surtir efeito.
Está sim - respondi eu. Mas como vamos nos livrar dos
outros repórteres? Lá fora a essa altura deve haver gente de tudo que é jornal de Paris.
Calma, tudo tem sua vez, meu prezado amigo disse ele, delicadamente, mas eu entendi.
Perdão. O senhor deve saber o que está fazendo. Eu lhe agradeço.
Não tem o que agradecer. O senhor Gintzburger receberá a conta
de meus honorários.
A porta se abriu.
O diretor voltou com dois senhores. Um deles nos foi apresentado como redator-chefe do jornal, o outro como jurista da casa. Nos sentamos em redor de uma mesa grande. Durante a meia hora que se seguiu eu não disse uma única palavra, e em meia hora estava tudo acertado. A retificação da manchete de hoje sairia amanhã. Só isso já estragava metade da primeira página. A outra metade ia ser ocupada pela repetição do que se lia na manchete e a minha declaração do que realmente havia ocorrido; tudo preparado por Lejeune, até o tipo e tamanho da letra. Entregou mais papel que foi assinado pelo presidente, o advogado e o redator-chefe: Se até às 19h daquele dia seu cliente não estivesse de posse da cópia da primeira página do jornal que sairia no dia seguinte, ou se ele não ficasse satisfeito com o conteúdo, ele, Lejeune, tomaria as devidas providências. Disse ainda que conhecia um advogado amigo que tratava da parte ligada à imprensa. Marcaria com ele para esperá-lo no escritório...
228Gostaria de ter os nervos desse sujeito, pensei comigo. Sempre achei que eu tinha nervos de aço, mas comparados com ele não passava de uma pilha de nervos. Se Lejeune não fosse tão violento e astucioso, se tivesse dado um minuto de chance ao adversário para refletir, tudo teria ido por água abaixo, pois certamente alguém no hospital teria reagido de maneira errada, e toda a mentira teria vindo à tona. Quando os três acabaram de assinar, respirei aliviado. O diretor e os dois funcionários acompanharam-nos até o elevador.
Apertou-me a mão, pedindo desculpas. Desculpei-o. Lejeune também lhe perdoou, mesmo sem que lhe tivesse pedido. Descemos. No quinto andar o redator-chefe pediu desculpas. Perdoamos, e ele saltou no quarto. O advogado nos acompanhou até o saguão. Era um senhor distinto, já de idade. Diante da porta de mola da entrada, ele nos disse:
Nós todos sabemos que o senhor usou de chantagem; iludiu e
mentiu. Ao senhor e ele se virou para mim... eu desprezo. E seu
procedimento, caro colega - disse ele para Lejeune -... eu acho odiento.
Tant pis disse Lejeune bem humorado. Traduzido seria: Azar o
seu. Ou: Eu lá me importo com isso... Ou ainda: O problema é seu.
Já na rua eu ainda ria daquela resposta, sr. Juiz. Por quê? Porque infelizmente sou um idiota. Um perfeito idiota.
Primeiro comecei a estudar história da arte disse a Ruth Me
interessava muito também por estética e história da literatura. Depois, como aquilo não me satisfez, acrescentei ainda filosofia.
Eram a essa altura 19h45min de uma sexta-feira, 3 de dezembro de
1971. Eu e a Ruth estávamos sentados na beira da cama no pequeno salão de jato da Sylvia. Na cama, a Babs dormia profundamente debaixo do efeito de violentos remédios, que lhe haviam sido ministrados para que pudesse ser transportada. O avião atravessava tranqüilo uma noite de lua cheia, de céu límpido e inúmeras estrelas. As janelas da pequena sala tinham sido escurecidas por causa da Babs, mas lá na cabina podiam-se ver as estrelas e a lua.
Partíramos do aeroporto de Orly há quinze minutos. Os quatro membros da tripulação encontravam-se na cabina. Por todos eles eu punha minha mão no fogo: -eram homens que trabalhavam para a Sylvia há anos e que em circunstância alguma seriam uma ameaça para nós. A Babs não se mexia; parecia morta. O ruído ritmado das turbinas chegava até nós, abafado, neste salão onde ardia apenas uma pequenina lâmpada velada.
229Foi tudo meio louco continuou a Ruth e eu sabia perfeitamente
que ela falava para me acalmar, para eu ficar tranqüilo, para me dar coragem. Estava muito satisfeito ouvindo-a falar naquela noite estranha, lá no alto sobre as luzes, sob as frias estrelas que cintilavam, a dez mil metros de altura.
Na nossa frente, uma criança estava entre a vida e a morte. Pretendia
escrever minha tese de doutorado a respeito de questões de estética. Porém, quanto mais eu estudava mais claramente ia percebendo que a questão de beleza como nós a sentimos, por exemplo é em última análise um problema psicológico. Interrompi meus estudos, e comecei outro, medicina. Uma vida meio fracassada. Talvez.
Inclinou-se por cima da Babs, e de uma grande bolsa tirou um aparelho de medir pressão. Examinou a criança que dormia toda torta naquela cama onde eu tantas vezes dormira com a Sylvia.
O comandante se aproximou e ficou olhando mudo.
Como está?
Na mesma respondeu a Ruth.
Em quarenta minutos estaremos sobrevoando Nurenberg disse
ele. Uma ambulância já está nos esperando no aeroporto. Deverá chegar
até junto ao aparelho.
Obrigada, sr. Callaghan disse a Ruth. O comandante inclinouse e voltou para a cabina. Era canadense.
Ele gosta da Babs disse eu para a Ruth ouvindo o ruído das
turbinas. Disse-me também que a admirava muito... uma mulher com
uma profissão tão maravilhosa, a mais humana de todas elas!
Não deve pensar isso de mim disse ela. Ninguém deve
pensar isso de um médico, e principalmente nenhum médico em relação a si mesmo. Um médico que pensa assim, e que como eu por exemplo trata de crianças doentes, se ele achar que é uma espécie de mensageiro de Deus para anunciar o verdadeiro espirito humanitário, que sua missão é fazer coisas grandiosas em prol da humanidade, em breve estará desiludido. O trabalho de
um médico não é de um filantropo. Não é obra de caridade Ruth passou a
mão na testa da Babs, alisando para trás os cabelos molhados de suor.
Mas a senhora vive para essas crianças disse eu. Sacrifica
sua vida por elas.
Palavras disse a Ruth Palavras vazias... desculpe Continuou a falar sem olhar para mim. Tirou a ovelhinha surrada do bolso de seu
costume verde e rodou-a entre os dedos. Da mesma maneira que eu vivo
para essas crianças, ela vivem para mim, sr. Norton... E não se esqueça, seu nome deverá continuar a ser Norton.
Não esqueço, não. Só não entendi o que a senhora disse há pouco.
Quando chegarmos ao hospital onde trabalho disse a Ruth séria
o senhor vai conhecer muitas crianças. Crianças com tudo que é doença.
Creio que será mais fácil entender o que eu quis dizer, quando lhe contar uma conversa que tive com uma delas, antes de ir a Paris. É um garoto; chama-se Tim.
230Seu caso não tem cura. É paralítico. Muito inteligente, mas nada se pode fazer. Tem dezessete anos. Tim virou-se para mim e disse:
Sabe de uma coisa, não acredito que você esteja aqui só para falar
comigo, ficar me ouvindo, tratar de mim... Evidente que ele não usou
estas palavras.
- Claro.
Mas o que ele queria dizer era isto. O avião fez uma curva. Nos
inclinamos para evitar que a Babs escorregasse. Eu lhe perguntei então o
que ele achava, e respondeu: “Eu fico imaginando que você não tenta
apenas descobrir o que houve comigo, mas procura também descobrir o que houve com vocêV
O avião entrou novamente na reta. Nos ajeitamos de novo.
O que houve com a senhora!
É foi o que ele disse. E continuou ainda: “Você deve ficar
muito satisfeita em acreditar que você vive para mim... claro que não apenas para mim, mas para todas essas crianças aqui. Só que eu não acredito, que você esteja aqui só para cuidar de nós. Você quer também fazer alguma coisa por você mesma”.
, A Babs deu um suspiro profundo.
A Ruth olhou para mim.
Tim tem razão, sr. Norton. Eu... ela mordeu os lábios...
eu tinha motivos muito fortes para interromper meus estudos de história da arte, e me voltar para a medicina. Estudar pediatria. As crianças, por mais doentes que sejam, têm sentimentos mais autênticos do que os adultos. São também muito mais honestas em relação a si mesmas, isso na medida em que o seu cérebro não esteja totalmente destruído. Por vezes mesmo assim; pois querem entender o que houve com elas. Para mim, sr. Norton, foi desde o princípio uma experiência muito especial, ter contato com crianças desse tipo.
O senhor sabe... é estranho, pensei eu, como essa mulher tão enérgica e
resoluta tem dificuldade para formular as frases, chega quase a ser uma tortura! -... O senhor sabe, às vezes é difícil... entender seus próprios sentimentos e... os motivos que nos levam a agir de certa forma... Lá no hospital sou praticamente forçada... é, forçada a prestar contas comigo mesma, diariamente, de todos os erros que cometi... e cometo muitos, todos os dias!
Mais ou menos a essa hora (soube do acontecido mais tarde por Rod) duas radiopatrulhas pararam diante do aeroporto de Barajas. Foram chamadas pelo dono do restaurante.
231Barajas, é o nome do aeroporto de Madrid, e fica doze quilômetros a nordeste da capital. Um grupo de bêbedos tinha começado uma briga, e essa resultará em pancadaria. Os quatro ocupantes das radiopatrulhas ficaram olhando a confusão por um instante, e logo pediram reforços pelo rádio. Acabou numa rixa entre uns setenta desordeiros. Muitos foram presos e mais tarde processados por resistência à força pública, por lesões corporais, por contravenção à paz pública, danos propositais, injúria etc.
O jornal madrileno ABC, falava em escândalo da imprensa, exigindo medidas contra os responsáveis. De fato, logo após, foram demitidos sumariamente onze repórteres e fotógrafos da imprensa local. Juntamente com eles dois colaboradores da EFI, a agência noticiosa do Estado, e vinte e um jornalistas das mais diversas nações, jornais e agências. Foi-lhes interditado qualquer trabalho em solo espanhol, e proibida a permanência nesse território durante cinco anos. Na segunda edição do jornal do dia, saída às 23h20min, o público tomou conhecimento pela primeira vez do tumulto no aeroporto. Rod Bracken e Lejeune, o incrivelmente gordo advogado parisiense, estavam instalados diante de uma televisão no apartamento 315 do CASTELLANA HILTON HOTEL. Ambos estavam bastante embriagados. Em cima de uma mesa, entre as duas cadeiras, via-se uma garrafa de uísque, dois sífões e um balde de gelo, de prata... Eles assistiam satisfeitos ao noticiário e reportagem fotográfica de Barajas.
Então trabalhei bem? perguntou Maître Lejeune. Estavam ambos de manga de camisa, os colarinhos abertos. Lejeune, enquanto falava, comia um franguinho frio.
Se trabalhou! disse Rod. Formidável!
Pode contar a Joe Gintzburger se tiver ocasião.
É a primeira coisa que farei assim que ele chegar a Paris. Honestamente, não sou nenhum idiota, mas não entendo como conseguiu fazer isso.
Ora...
- Já vi jornalista fazer muita coisa, mas se portar daquela maneira... e logo tantos! Eles deviam saber o que ia acontecer na hora de se embebedarem daquele jeito e armarem tamanho tumulto! Nenhum deles podia morrer de desilusão. Podiam estar por conta conosco, mas fazer um escândalo daqueles, a ponto da polícia ter que se meter no meio e eles terem que se identificar, arriscar até uma cadeia... Ficou olhando para Lejeune.
Precisei dar uma ajudazinha disse este, com sua vozinha de
prata, roendo um osso.
- Quem?
Eu e alguns amigos. Se fingiram de jornalistas. É sempre bom a
gente ter amigos. Lejeune arrotou. Joe vai ter que pagar uma bolada
um pouco maior, afinal os meus amigos...
Claro.
Estamos no início de um caso muito sério. Bracken (esse concordou angustiado), e aqueles malditos repórteres sensacionalistas e as respectivas agências, tinham que levar uma boa lambada!
232Com expulsão, proibição de trabalho etc, para que no futuro nos deixem um pouco em paz. Primeiro era preciso acabar com o orgulho deles, acho que isso conseguimos e com galhardia...
Alguns repórteres ainda seguiram a ambulância até a clínica Salmerón disse Rod.
Que bom! Já havia falado com Salmerón por telefone. Quando a
ambulância chegou, ele recebeu a Clarissa diante da clínica e ainda disse umas boas palavras aos repórteres... Esse peitinho está que é uma manteiga!... Salmerón é meu amigo. Eu certa vez lhe prestei um favor quando um francês esticou as canelas debaixo de sua faca. Agora chegou a sua vez.
A nossa querida Clarissa terá que ficar uns tempos na clínica do meu amigo Salmerón. No final das contas, fui eu também quem a levou para Sainte-Bernadette, não é?
O chefe lá é amigo seu também?
Não. respondeu Lejeune. Falei com o dr. Sigrand. Ele me
disse que receber, ele recebia qualquer um. E não fez mais nada. Todo o resto foi resolvido pela doutora. Ela também se comprometeu a arcar com todas as responsabilidades por tudo que aconteceu de ilegal na clínica. Por escrito! Tudo isso só porque é uma moça cheia de amor.
Amor por Kaven? perguntou Bracken.
Não, pelo amor de Deus!
- Pela Babs?
Por todas as crianças doentes disse Lejeune Uma mulher
extraordinária realmente, Bracken. Ela assumiu um encargo enorme. Por outro lado também, quem já viu um médico dedurar outro?
Lejeune, você é realmente um sujeito fora de série disse Rod
impressionado.
Eu sei respondeu o gordo advogado. Saúde, amigo.
Depois que eu e Lejeune deixamos o prédio daquele magnata da imprensa, fomos até o LE MONDE, onde ainda se encontravam Bracken e o dr. Wolken. Rod e Lejeune discutiram detalhadamente comigo e com o dr. Wolken o que devia ser feito. Lejeune deu vários telefonemas. Às 16 horas o advogado e Rod partiram, este Com a maleta de viagem. Liguei para Suzy Sylvestre em seu salão de beleza. Estava nervosíssima, pois também lera aquela manchete.
E agora, querido?
Seja boazinha, vá até em casa e arrume todas as coisas da Babs
nas duas malas e...
Por quê?
Por favor, deixe eu acabar! Arrume também outra mala com roupa, ternos e tudo mais para mim.
Você vai embora? exclamou ela.
Pst! Se controla!
233Desculpa... mas... mas, se você for embora, vai ser horrível...
i; Eu não vou embora. É apenas um pulo. Aonde é que você está?
No escritório.
Alguém pode ouvir o que você diz?
Não.
- Bem, então preste atenção: Babs tem que sair de Paris por causa dos repórteres. Eu tenho que levá-la. De avião. O mais depressa possível.
Para onde?
Para a Alemanha. Ela vai para outra clínica. Nurenberg. Uma
médica vai junto. Essas coisas acontecem tão facilmente, sr. Juiz. Foi um
lapso, escapou.
Médica! Que médica? gritou a Suzy.
A que vem tratando dela.
Por que é que ela vai para a Alemanha?
Porque é alemã e trabalha em Nurenberg.
Eu pensei que ela trabalhava no Sainte-Bernadette.
Também. Mas na verdade...
Eu já entendi. Você dorme com ela, não é? Desde o princípio. Foi
por isso que disse que não podia ficar comigo, não é? Como é o nome dessa sem-vergonha?
Suzy, por favor!
Claro que você dorme com ela!
Durmo nada!
Dorme!
Não!
Quero saber o nome!
Isto não vem ao caso!
Muito bem. Pode deixar que eu descubro. Vou pedir informações
na clínica...
Isso estava se tornando perigoso.
Para resumir, sr. Juiz: depois de longas juras de amor e outras mais, consegui acalmá-la ao menos o suficiente para que ela desistisse de ligar para
o hospital. Ganhei quando disse: Ora, deixe de ser idiota; a maior parte
das minhas coisas vai ficar aí com você! Amanhã estou de volta!
Não acredito! Você não vai voltar nunca mais!
Jurei que voltaria. Toda a americanada de Hollywood já estava a caminho.
No dia seguinte teria que estar em Paris, de qualquer maneira.
Pobre Suzy! Tão bonita, tão perdida! Não tinha nenhuma confiança em si, apesar de ser uma prostitutazinha tão eficiente. Estranho. Com voz embargada ela disse:
Na frente daqueles americanos você se caga todo. Eu, pouco lhe
importo. Quando eles vêm, você também vem, isso eu acredito. Para onde você quer que eu mande as malas?
234Meu amor, eu te amo.
Eu também, ora! Você acha que se não o amasse estaria ligando?
E as malas, para onde mando? Dei o endereço.
Ainda estava claro quando Rod e Lejeune chegaram de táxi ao hospital Sainte-Bernadette.
Merde alors disse o motorista o que está acontecendo aqui?
Conforme relato posterior de Rod o espetáculo ali era de uma confusão sem par. De ambos os lados da rua havia carros estacionados, por vezes até em fila dupla. O trânsito estava praticamente parado. Homens escarrapachados dentro dos carros, encostados nas portas, de casacos de couro, capotes forrados de pele, grossos pulôveres. Muitos traziam máquinas fotográficas.
São aqueles merdas de repórteres, não é? perguntou o chofer.
Parece disse Lejeune.
O que querem eles?
Não tenho a menor idéia.
Meu Deus! Aquele motorista era meio lento. Não apenas na
marcha. É mesmo, essa noite teve uma pancadaria com aquele fulano da
Sylvia Moran e um repórter. Eu li.
- Foi, é?
Ora, então o senhor não leu?
Não disse Lejeune. Entre no primeiro pátio por favor. Na
clínica de olhos, nariz e garganta.
Isso é piada disse o motorita. Sinto muito, mas dai não vou
conseguir passar. A entrada é lá.
Rod pagou e saltou depois de Lejeune. Levaram encontrões, foram fotografados, gritavam-lhes coisas. Os repórteres queriam saber o que Bracken fazia ali, e o famoso Maître Lejeune. E eu, aonde estava? Rod não deu resposta. Seguiu atrás de Lejeune que à força abria caminho entre os jornalistas. Diante da entrada da clínica estavam dois policiais. Esforçavam-se com muito pouco êxito aliás, para abrir uma passagem a Rod e Lejeune. Finalmente os dois conseguiram entrar.
Um médico jovem se aproximou deles.
Sr. Bracken? Sr. Lejeune?
É piou o pançudo. E o senhor é o dr. Rivière, já talei com o
senhor por telefone. Estou reconhecendo sua voz. Tudo pronto?
235Tudo respondeu o médico. Levou os dois visitantes para um
quarto à direita da entrada. Lá estava a dra. Ruth e o dr. Sigrand. No chão, Rod viu a maca, e amarrada em cima dela, debaixo de cobertas com o rosto ainda aparecendo, a Clarissa.
Oi, Clarissa disse Rod.
Ela apenas respondeu com um movimento de cabeça, pálida, decidida.
Escutem, disse o dr. Sigrand isso agora tem que ser rápido
senão vai nos criar problemas.
Se o senhor estiver pronto, nós também estamos disse Lejeune.
Sigrand foi até um telefone de parede dar um rápido telefonema. - A
ambulância já está encostando - disse ele depois Os homens da maca já
vêm aí.
Obrigado, doutor disse Rod. Depois ajoelhou-se ao lado da
Clarissa. Obrigado a você também, Clarissa. Sinto muito, mas agora
vamos ter que cobri-la por alguns instantes. Olhou para a ponta virada da
coberta e perguntou: - Será que ela vai ter ar suficiente? - Sigrand ajoelhou-se também e mostrou diversos cortes na parte superior do cobertor. Dois homens se aproximaram, levantaram a maca mudos, e foram se encaminhando para a saída. Rod e Lejeune seguiram. O advogado ainda se inclinou diante da Ruth e do médico.
Muitíssimo obrigado.
Ruth e Sigrand não responderam.
Foi aí que tudo começou. Uma ambulância parou diante da entrada da clínica. De repente surgiram cinco policiais, além dos dois de antes. Empurravam, espancavam e chutavam os repórteres, que avançavam como loucos. Rod me contou mais tarde que nunca ouviu tamanho berreiro e xingação, tamanha confusão, nem por ocasião das estréias dos filmes da Sylvia. Um mais ousado procurou arrancar a manta que cobria o rosto da Clarissa. Rod levantou o pé e o acertou direitinho ali. O repórter caiu sentado.
Enquanto continuavam a fotografar, os enfermeiros colocaram a maca na ambulância; muitos repórteres já corriam para seus respectivos carros. Rod e Lejeune entraram na ambulância por último. A sirena foi ligada, a luz vermelha começou a piscar. O motorista pisou no acelerador a arrancou.
Para a rua! Rod olhou pela janela lateral e viu os repórteres
entrarem em seus carros e partirem também. Cinco minutos depois um respeitável comboio seguia o carro com a cruz vermelha.
Voilà disse o gordo Lejeune. Tirou um tablete de chocolate do
bolso.
Com nozes observou ele. • <..
236A ambulância dirigiu-se para Le Bourget, o menor dos dois aeroportos de Paris. Entrou na pista, onde ao lado de alguns aviões de linhas comerciais, viam-se três táxis aéreos. Com todo vagar, a maca foi colocada num deles.
Enquanto isso a malta de repórteres também chegara. A tripulação do avião só apareceu quando a maca já havia sido acomodada. Três homens. Contavam com a máxima boa vontade a quem os quisesse ouvir, que-o sr. Bracken havia alugado o avião para levá-lo a Madrid. Lejeune agora não tinha a menor pressa. Os repórteres sim. Assim que souberam da notícia saíram correndo para as cabinas de telefone dentro da agência de correio e comunicaram aos respectivos jornais, agências ou colegas em Madrid. Outros por sua vez descobriram que (oh, milagre!) um dos táxis aéreos ainda não havia sido fretado. Na verdade Lejeune tinha pedido para o aparelho ficar a postos. Sua tripulação era até muito lacônica. Por fim partiram dois aviões, num deles seguia Lejeune, Rod Bracken e Clarissa; o outro estava superlotado de repórteres. Rod me contou que a viagem fora tranqüila. Retiraram o braço de uma poltrona para que Lejeune pudesse sentar. Desamarraram a Clarissa da maca e jogaram 421, o jogo de dados que os franceses tanto apreciam. Tomaram alguma coisa também, e lá nas alturas, por cima dos Pirineus, onde todos os aviões sempre começam a estremecer e a vibrar, a Clarissa começou a passar mal. (Já me explicaram uma porção de vezes a origem das turbulências que aí ocorrem, mas na realidade nunca entendi muito bem.) A Clarissa gastou diversos sacos plásticos e acabou se deitando na maca, enquanto Rod e Lejeune continuavam a jogar 421.
Pelos sinais do rádio que guiavam o aparelho, os pilotos souberam que o segundo táxi aéreo os havia ultrapasado e chegaria a Madrid antes deles.
Pode voar um pouco mais devagar ainda, se der disse Lejeune
para o co-piloto, quando este lhe deu a notícia. Assim a turma terá
bastante tempo para se preparar.
Como estavam, preparados! Quando o avião de Rod parou na pista, sr. Juiz, um grupo enorme de repórteres de Madrid, mais os que vieram de táxi aéreo, rodeou o avião assim que a porta se abriu e dois membros da tripulação saíram levando a maca. Uma ambulância se aproximava, da cabeça da pista.
Mais uma vez houve o mesmo tumulto entre os fotógrafos. Lejeune seguia a maca bem de perto. De repente esbarrou na manta, e a ponta de cima ficou descoberta. Seguiu-se uma verdadeira tempestade de flashes. Depois... silêncio completo! Todos tinham visto que não era a Sylvia nem a Babs que estava ali na maca, mas Clarissa, a governanta. Muitos conheciam seu rosto. Todos viram perfeitamente quem era......
Em meio àquele silêncio Lejeune disse em inglês:
237Para vossa informação meus senhores: Esta senhora chama-se
Clarissa Geireinger, e é há anos governanta de Babs Moran. Alguns dias atrás foi levada para o Hospital Sainte-Bernadette em Paris por causa de um problema grave de garganta. Com sua voz de eunuco, enquanto colocavam a Clarissa na ambulância espanhola, Lejeune continuou: Os médicos
diagnosticaram uma liquorréia, isto é, a saída do líquido encefalorraquiano em conseqüência de uma lesão na parede separatória entre o cérebro e o nariz. Nestes casos existe sempre o grande perigo de uma infecção do cérebro. Os médicos de Paris exigiram por isso uma operação urgente.
Já que a sra. Moran está de férias como os senhores sabem, e como
agora, após o aDoccimento da Clarissa, a Babs foi para sua companhia, o que os senhores talvez não saibam, o sr. Kaven, para evitar qualquer risco pediu no Hospital Sainte-Bernadette que lhe indicassem a maior autoridade neste ramo. Este é o dr. Arias Salmerón. Sua clínica aqui em Madrid é mundialmente famosa. Estamos agora levando d. Clarissa Geiringer para a clínica do dr. Salmerón. Muito obrigado, meus senhores.
Estamos, quem? gritou um dos repórteres. O que faz o Senhor aí? Por que o sr. Kaven não veio sozinho ou em companhia de um médico?
- O sr. Kaven é um velho amigo meu. Ele não conhece Madrid. É bem possível que haja certas formalidades a serem resolvidas.
- E por que o senhor não nos disse tudo isso em Paris? perguntou
aos gritos outro repórter.
Porque ninguém me perguntou - respondeu Lejeune entrando na
ambulância de Rod Bracken.
Agora vamos, e rápido - gritou ele em espanhol para o motorista.
„ Vamos embora! Daqui a pouco vai acontecer alguma coisa!
E o que aconteceu, eu já contei, sr. Juiz...
Enquanto todos os repórteres seguiam em outro avião o táxi aéreo que levava a Clarissa para Madrid, a Babs recebia medicamentos para dormir, e poder resistir à viagem. Acompanhada da Ruth, seguiu depois numa ambulância para o aeroporto de Orly, onde eu esperava ao pé da escada do jato da Sylvia. Minha bagagem e a da Babs já se encontravam no aparelho. A pedido meu, Suzy a mandara para aí. Um dos dois homens que trouxeram as malas, entregaram ao comandante uma carta endereçada a mim. Eu tinha chegado ao aeroporto uma hora antes da ambulância, e li o que a Suzy me escreveu:
Por favor, volte. Faço tudo que você quiser, mas volte. Por favor.
Suzy.
238COM PERMISSÃO, SOU NERO.
VOCÊS JÁ DEVEM TER OUVIDO FALAR DE MIM. FUI IMPERADOR NA VELHA ROMA; MAS GOSTAVA ERA DE CORRIDAS DE BIGA, DE ARTISTAS E CANTORES. MATEI MINHA MÃE E LEVEI AO SUICÍDIO SÊNECA, MEU PROFESSOR. INCENDIEI ROMA, E ILUMINEI MEU JARDIM COM TOCHAS HUMANAS DE CRISTÃOS; LEVEI UMA VIDA DESREGRADA... ATÉ MEU HORRÍVEL FIM EM 68 DEPOIS DE CRISTO. SE MINHA HISTÓRIA LHES INTERESSAR, FALEM COM A DRA. REINHARDT.
NA BIBLIOTECA DA CASA DE SAÚDE EXISTE UM LIVRO FANTÁSTICO A MEU RESPEITO!
68 d.C, pensei eu. Não tinha a menor idéia...
Essas palavras estavam escritas bem grandes, em vermelho, numa folha de papel embrulho, colada numa das paredes do saguão na Clínica Infantil Sofia, em Nurenberg. O autor do cartaz deve ter recortado o busto em bronze de Nero de alguma propaganda, e colado no papel. As palavras que reproduzi acima apareciam num balão que saía da boca da cabeça recortada. O cartaz era de grande efeito visual.
Àquela hora, 21h45min, havia além de mim apenas duas pessoas no saguão: o porteiro de serviço, lá na sua janela de correr, e um homem de estatura média, de capote de inverno azul. Usava óculos iguais aos meus. Tinha um aspecto muito acabrunhado.
Aterrissamos em Nurenberg, conforme previsto. Uma ambulância da clínica já estava à nossa espera e a Babs foi transferida com os maiores cuidados do avião para o carro. Apesar de todas as precauções, o acordar foi horrível. Mal estava instalada na ambulância, a Babs veio a si; encontrava-se em estado de desnorteamento total, com medo, as dores voltaram. A ambulância atravessou as artérias principais da cidade, entrou na larga Erlanger Strasse, que segue em direção sul para o centro. (O aeroporto ficava ao norte.)
Ruth e um jovem médico da Clínica, que tinha vindo com a ambulância, se ocupavam da criança cujos membros se agitavam violentamente no ar.
Reação ao vôo disse a Ruth por cima do ombro.
A Babs gritava. A sirena do carro soava.
239A Erlanger Strasse, pela qual descíamos a toda velocidade, tinha mudado de nome. Pela placa vi que agora se chamava Bucher Strasse.
A Babs continuava a gritar.
Mais rápido! disse a Ruth para o motorista através de uma
janelinha. Este pisou todo o acelerador. A ambulância deu uma arrancada atravessando sinais vermelhos e cruzamentos.
Nunca estivera em Nurenberg. No Bairro Sankt Johannis (a Ruth ia me dizendo aonde estávamos) a ambulância dobrou à direita, fazendo a curva em duas rodas apenas. Tínhamos chegado à Clínica. A ambulância parou no pátio. Para Ruth, eu agora não existia mais. Ela cuidava apenas da Babs, que fora colocada dentro da maca em cima de uma cama de operação, e levada para a Clínica. Quis acompanhá-la. O jovem médico me barrou o caminho.
O senhor não pode entrar, Sr. Norton.
Quem disse?
Eu estou dizendo. O que temos que fazer agora, para salvá-la
depois de toda essa canseira é coisa para a qual temos que estar a sós. Por favor, volte e espere na entrada. Assim que a dra. Ruth puder, ela virá lhe dar notícias. Por favor.
Fiz o que ele pediu. Fazia muito frio em Nurenberg. O céu estava límpido. Fui até o pátio, dei a volta na Clínica, e na entrada disse ao porteiro que estava esperando pela dra. Ruth Reinhardt. Aquiesceu distraído, ocupado em arrumar os selos em seu álbum.
Sentei-me. Dei uma olhada no estranho cartaz de Nero e notei o homem calado na outra porta do saguão. Fiquei ali mais de uma hora. Quem sabe, pensei, talvez tenha até chegado a hora da Babs morrer? Será que já não estava morta? Não, me ocorreu logo, se assim fosse a Ruth teria vindo imediatamente falar comigo.
... Norton!
Levantei os olhos.
O porteiro tinha me chamado. Segurava o fone na mão.
O que é?
Sr. Norton, não é o senhor?
Sou, por quê? Se isso continuasse, se eu não conseguisse dar
uma dormida direito uma vez ao menos, acabaria caindo por aí, isso eu pressentia.
- Chamando no telefone! Ou aquele porteiro estava com preguiça
de formular uma frase completa, ou eu cansado demais para ouvi-la.
> - Eu?
Claro que é o senhor!
Quem é?
Santa Maria, eu sei lá! A telefonista mandou saber se o senhor
estava aí.
Disse que devia estar. E está. Como é, não vai atender?
- Não tem cabina?
240Não posso transferir a ligação mais uma vez disse o porteiro.
Na sua frente estavam espalhados uma porção de selos bonitos, entre eles uma série monegasca completa dos anos 1969 e 1970. Tomei o fone e me apoei com um cotovelo na madeira do peitoril da estreita janela.
- Alô?
Quem está no aparelho? Aqui é Bracken. •
O que houve?
Joe está em Paris. Com o pessoal dele. No LE MONDE. Quer
falar conosco imediatamente.
Joe que vá
Cala o bico. Acha que eu estou me divertindo? Eu também ainda
tenho que voltar hoje. Com Lejeune..
Aonde é que você está afinal?
Em Madrid. Aqui tudo correu bem. E aí?
Vou amanhã. Tenho que dormir.
Você vai hoje à noite! Como nós. Amanhã às oito é o encontro com Joe.
A... que horas?
Às oito, idiota. Como estão as coisas aí? Gostaria de saber.
Não tenho a menor idéia. Estou esperando há uma eternidade.
Será que a Babs está muito mal?
Quem sabe? Eu vou ficar aqui.
Você vai é estar às oito no LE MONDE! Mesmo que ela tenha
morrido! Joe está de um humor, eu nem lhe digo!
Ora, o Joe que...
Você já disse uma vez. Amanhã às oito então.
Não respondi. Simplesmente entreguei o fone ao porteiro e este o pendurou no gancho. Apoei a cabeça em ambas as mãos. Não! Não havia Cristo que agüentasse, isso!
Sr. Norton!
Virei-me. Na minha frente estava a Ruth. Usava um jaleco branco, e estava de novo com aquelas olheiras fundas de esgotamento.
Hein?... Ah, é a senhora... Como está a Babs?
Nada bem ela me puxou, afastando-me da janelinha do porteiro.
A viagem foi demais para ela.
Tenho que voltar disse eu Essa noite ainda. Tenho que estar
em Paris às oito da manhã. Acabaram de ligar para mim.
Antes que ela pudesse responder uma vozinha de criança disse a meu lado:
Quem é você?
Olhei para o lado. Vi um garoto de uns dez anos, de cabelos escuros e olhos pretos brilhantes. Usava um roupão por cima do pijama. Estava de chinelos.
241Sammy? O que faz você aqui? perguntou a Ruth assustada.
Você devia estar dormindo há muito tempo!
O garoto, que chamava Sammy, não ligou para Ruth. Olhou para mim e disse:
Já vi que você não quer me dizer quem é. Mas eu vou dizer quem
eu sou. Sou Malechamawitz.
Você é... comecei eu, mas fui interrompido por uma irmã que
veio correndo.
Sammy! Estou procurando por você por toda a parte! Você sabe
que de noite é proibido levantar!
A senhora também sabe, irmã Leonore disse a Ruth. Sabe
muito bem que Sammy já levantou várias vezes, e por isso deve-se olhar por ele com especial atenção. Ele está na sua seção. Como pôde isto acontecer?
Como posso tomar conta de tantas crianças, se vinte delas são
agitadas assim! O Conselho de Pessoal há muito vem pedindo um segundo turno para a noite.
Eu sei. Leve o Sammy de volta. Vá direitinho, Sammy. Boa-noite.
Ruth alisou o cabelo do garoto e sorriu para ele. Shalom.
Shalom respondeu o garotinho. Foi andando com a irmã e
virou-se uma vez dizendo para mim: Malechamawitz é meu nome. Entendeu?
Entendi respondi eu meio perdido. O garoto desapareceu com a
irmã.
O nome dele é assim mesmo? perguntei à Ruth.
Não.
Mas...
Ele é muito doente, Sr. Norton. Ele sempre afirma ser Malechamawitz. É uma palavra israelita.
E que significa?
Anjo da Morte disse ela continuando logo O senhor disse
que precisava voltar. Mas como? O senhor não pode! Eu trouxe tudo de Paris, os resultados, a sua procuração, os documentos falsos... Consegui que a criança ficasse anônima... e o senhor também... E agora o senhor vai embora assim, vai deixar a Babs?
Tenho que ir.
Por quê?
Os chefões de Hollywood chegaram. Amanhã vai haver uma reunião importante. Exigem que eu esteja presente.
E a criança vai ficar aqui; e o senhor em Paris?
Sim e não. Vai e não vai. Meu Deus, eu já não sei mais nada!
Sr. Norton, aqui não é absolutamente o lugar para se gritar.
Desculpe... Eu não quis gritar... É que eu estou... Eu não
estou me sentindo bem... Eu não consigo dormir...
Eu também não, sr. Norton.
242Desculpe. São os nervos. Só isso.
Está bem, sr. Norton, cada um tem que cumprir o que lhe cabe...
Mas o senhor volta, o mais rápido que puder, não é?
Dei um sorriso forçado.
O mais rápido que puder, claro. Eu... quase sufoquei ao
dizê-lo... eu gosto da Babs, não é? E eu... - de novo aquele sorriso
amarelo... eu também gostaria de lhe pedir aquele livro.
Que livro? Ela olhou para a parede que eu estava contemplando, e percebeu o cartaz. Ah fez ela. Também é uma razão para o
senhor voltar. Principalmente por causa dele, aliás.
Principalmente, por quê?
Lembre-se do que lhe contei no avião a respeito daquele garoto
incurável, o Tim? Tive que me encostar na parede para não cair. - O
senhor se lembra do que ele me disse? Que eu estou aqui tanto para ele e para as outras crianças, quanto para mim mesma?
Aquiesci.
O senhor precisa conhecer o Tim. Para qualquer coisa que acontecer na vida, ele sabe aconselhar melhor do que nós médicos, sr. Norton. Ele pode...
- Não pode não disse uma voz masculina.
Ruth virou-se rápida. O homem com o rosto acabrunhado que estivera sentado no saguão, inclinou-se:
Boa-noite, doutora.
Boa-noite, sr. Pastor disse a Ruth. O senhor disse “não
pode”. Por quê?
Porque disse baixinho o homem sério o nosso Tim nunca
mais vai poder explicar nada melhor que nós médicos, nem do que eu ou qualquer um.
Por quê? O que houve? Tim... Pela primeira vez vi o horror
estampado em seu rosto.
O homem sério balançou a cabeça.
Tim morreu, doutora.
Não gostaria de ter a sua profissão disse eu angustiado para o
pastor.
- É, às vezes a gente quase sucumbe debaixo do fardo comentou
ele baixinho.
243Mas por quê? perguntei eu. Por que, seu bom Deus permite
tamanha desgraça? Não vamos falar na fome, nas guerras, pestes e epidemias. Por que permite Deus que existam no mundo centenas de milhares de inválidos, de doentes mentais, espâsticos, epilépticos, mongolóides e aleijados que não morrem e também não vivem? Por que, sr. Pastor, em Sua onipotência escolheu Ele ainda por cima as crianças! Segundo a Escritura, Deus é onipotente, onisciente e de bondade infinita. Por favor, não me interrompa! Qualquer coisa na Sagrada Escritura deve estar errada... Pois, com sua licença, para mim o bom Deus pode ter no máximo duas dessas três qualidades que acabo de citar. Ou ele é onisciente e de bondade infinita, e nesse caso não pode ser onipotente, pois se fosse teria que impedir tal desgraça. Ou é onipotente e de bondade infinita, e neste caso é onisciente, pois se fosse teria que impedir tal desgraça. Ou finalmente é onisciente e onipotente. Então, pelo amor de Deus, ele não pode ser bondade infinita, se permite que tamanha desgraça aconteça. O que o senhor me diz a isso, sr. Pastor?
Disse estas palavras logo depois que o jovem pastor Hirtmann, Ernest Hirtmann, protestante que tinha a seu cargo também os cuidados espirituais da Clínica Infantil Sofia, havia dito à Ruth que o pequeno Tim morrera. Morrera há três horas..O pastor ainda se encontrava na casa, e ficou com ele até o fim. Procurou depois se comunicar por telefone com os pais. Tim era filho de um industrial de posses. Os pais tinham ido a uma festa; a empregada não sabia informar onde. Pediu-lhe então que dissesse a eles quando voltassem que o filho havia morrido e que eles poderiam vir logo, mesmo que fosse às sete da manhã, pois ele, pastor, estaria esperando.
A Ruth fora chamada para ver a Babs. O médico da noite precisava de sua ajuda. O estado da menina tinha piorado. Ruth saíra apressada, e eu me instalei num banco vazio ao lado do pastor, em frente ao cartaz de Nero, longe do porteiro que continuava ocupado com seus selos.
O Pastor Hirtmann era um homem que falava calma e pausadamente. Via-se que escolhia as palavras, pesava-as. Vivia ajeitando os óculos. Ao meu ataque ele respondeu:
A acusação que o senhor faz, sr. Norton, não é nova. É a chamada
“Questão de Exclusão”. Mas eu tenho que contradizê-lo, em termos bíblicos ela não se justifica!
Justifica sim.
Não disse ele calmamente. Pode crer em mim, sr. Norton.
Deste assunto entendo mais que o senhor. É minha profissão. A Questão da Exclusão não é exegética, ela é especulativa. E é justamente a especulação que deve ser evitada num assunto tão grave. Nenhum sacerdote do mundo poderá lhe dar neste ponto uma explicação lógica. Não há cálculo que possa resolver a dor logicamente. Mesmo assim, a acusação mais severa a Deus é para mim mais piedosa do que o rotineiro e cultuai encobrir de feridas. Deus, o acusado, este sr. Norton é o tema cristão!
Fiquei olhando para ele.
244Ele Retribuiu meu olhar sério.
Não agüentei, olhei sobre seu ombro, para aquele cartaz. COM PERMISSÃO, SOU NERO...
O pastor continuou a falar:
O que o senhor acaba de dizer sobre as três qualidades de Deus, sr.
Norton, se relaciona com a descrição escolástica das qualidades de Deus. Foi isto mesmo, que infelizmente, durante séculos a teologia nos ensinou. Mas isto
não é bíblico! Pegou no meu ombro e virou minha cabeça Gostaria de ver
seu rosto, quando estou falando com o senhor disse ele amavelmente.
Desculpe.
Com o senhor, evidentemente, falo de maneira diferente da que usarei mais tarde com os pais de Tim, diferente também do modo que falo com pais camponeses ou operários. Procuro falar com todas as pessoas em termos que elas possam entender. O senhor está me entendendo, não é?
Aquiesci.
Eu disse que não era bíblico. No. velho testamento fala-se de um
Deus criador e amoroso, mas vingativo e punidor... do Deus antropomórfico. Em parte alguma o senhor irá encontrar um sistema apresentando suas qualidades, sr. Norton! A queixa é tão alta quanto o louvor, o que se conhece dele tão positivo quanto negativo. Queixas e louvor... Veja os salmos!
Muito interessante disse eu ironicamente.
Sei que não está achando absolutamente interessante. Talvez ache
até enfadonho Disse o pastor O senhor gostaria é de ter uma resposta
à pergunta: Por que a Babs, que nunca cometeu mal algum, por que esta criança inocente foi aproximada da morte de maneira tão trágica? Não é isto que o senhor deseja saber?
É disse eu. Isto e nada mais.
Todo pai a quem isto acontece, só quer saber essa resposta e nada
mais. Toda mãe também. O senhor me fez uma pergunta. Não posso responder com duas frases, mas gostaria de responder, e talvez... talvez... assim lhe dar algum consolo. Posso falar e o senhor promete ficar ouvindo... ou está apenas a fim de me insultar? As duas atitudes eu entendo. O que quer o senhor?
Ouvir disse eu.
Obrigado - respondeu ele, ajeitando os óculos. Falo como
teólogo evangélico. Portanto, tudo que sei de Deus é através da pessoa de Cristo. Conheço apenas o procedimento deste. O problema do sofrimento me preocupa. O de Jesus não foi dos piores, por mais cruel que tenha sido sua execução. Desde então ele tem sido sobrepujado, milhares de vezes centenas de milhares, milhões de vezes. No campo de concentração dos nazistas. Na Coréia. No Vietnam... No caso do sofrimento de Cristo no entanto, tratava-se das conseqüências de sua vida, da sua vontade. E aqui? Aqui Deus se nos apresenta como o impotente...
245A noite fria e estrelada envolvia o gigantesco prédio com a quantidade de crianças doentes, sofrendo e morrendo. Eu estava sentado num banco de Nurenberg, mais uma vez num canto qualquer, perdido no mundo.
Já fiz o enterro de muitas crianças disse o pastor Inúmeras
delas. Quase todas desta casa. Eu mesmo tenho três filhos pequenos, sr. Norton. O senhor pode crer, os “preparativos” para enterrar estas crianças, são bem diferentes do que quando se trata de um rapazinho com dezoito anos.
Crianças disse eu. Eu estou falando de crianças.
Eu sei disse ele. Visitei os pais das crianças.. Estavam
desconsolados, perdidos... Eu mesmo também estava desconsolado e perdido... Tirou os óculos, limpou-os, e colocou novamente, sua voz era
inexpressiva, Mas o que posso fazer? É minha profissão, gosto dela. Não
podemos de maneira nenhuma ficar mudos, calados! Temos que dizer alguma coisa, que não é nem invenção nossa, mas que durante gerações vem ajudando às pessoas na vida e na morte.
Que coisa é esta?
Quando dizemos: quem vem das nossas mãos, não vem das mãos
de Deus, e que Cristo venceu a morte... isto significa que recebemos o encargo de uma vida, da vida em si, juntamente com todos os sofredores, da maneira mais óbvia, sem nenhum sentimentalismo... Só assim uma pessoa conseguirá viver... Mas isto não lhe basta, não é?
Não - respondi eu. -, Não basta.
Ainda tenho mais a dizer continuou ele A solidariedade não
é nenhuma qualidade que os cristãos possam reivindicar para si. Existe tanta gente que sabe ajudar, que participa da dor alheia por motivos inteiramente diversos. Os cristãos apenas vivem relacionados com Cristo, que aproximou os homens uns dos outros, tornou-os conhecidos, parentes... Eles têm obrigações uns com os outros!
Também isto não me satisfaz.
Deixe eu chegar até o fim. O que eu penso é que o sofrimento no
homem é uma missão... gostaria de encontrar uma palavra melhor! O sofrimento é um estigma do ser humano. Subjetivamente eu o conheço bastante bem, não para integrá-lo num sistema, numa teologia ou ideologia. Sei que o fato dele ser estigma, não é consolo nenhum. Mas acho que a honestidade nesse caso vale mais do que o bálsamo. Eu mesmo me sinto impotente diante do sofrimento; impotente, diante dos sofredores no que diz respeito a palavras e ação. Até no próprio sofrimento eu me sinto impotente. São os outros que me ajudam quanto podem.
Eu não quero...
Um momento! O que vou lhe dizer agora, irá lhe ajudar, tenho
certeza.
Tudo isso em termos de Cristo significa: É ele quem ajuda aos sofredores!
246É ele que sofre com eles; que já sofreu antes. Ele, o impotente, está ao lado dos impotentes!
De repente olhei fascinado para aquele homem sério.
Todo sacerdote é impotente quando chega a hora de dar uma
solução eficaz disse Hirtmann. - Apesar disto gosto da minha profissão
pois com o meu oficio, posso ajudar aos outros. Não sei oferecer nenhuma teologia que possa explicar o triste destino dos seres humanos. Também não me interessaria ser teólogo se tais destinos pudessem ser transformados em teorias! Uma coisa no entanto eu sei dizer, das maneiras mais diferentes, de
acordo com a pessoa com quem estou falando: Usando da razão, qualquer
ser humano só poderá corroborar que a ressurreição entre os mortos não existe. Mas se ela não existe, Jesus não pode ter ressurgido. S. Paulo continua esta lógica: Se Cristo não ressuscitou, então nós pregadores não passamos de uns caluniadores infames! Então toda a Igreja é uma imensa fraude para enganar o povo! Os impostos pagos à Igreja, dinheiro posto fora! E nós
perguntamos com toda razão: O que temos nós a ver com aquele pregador
da Galiléia que andava de cidade em cidade excitando seu povo contra a classe dos fariseus, para ser preso depois?
- E daí?
Deste abismo, deste absurdo, nos arranca S. Paulo (não sei se o
senhor sabe que ele era fisicamente inválido). Só se pode falar em ressurreição, quando a escuridão é total. Diante da impotência, do desespero total deve-se ouvir, e se ouve o júbilo de alegria.
Alegria?
Sim. Porque contra todos os argumentos, contra todas as dúvidas,
S. Paulo nos oferece esta frase como um fato: “Agora Cristo foi ressurgido entre os mortos”! O túmulo estava vazio, sr. Norton. Não podemos provar que estava. Não havia fotógrafo para registrar o fato. Ele não é historicamente comprovado. Mas mesmo assim, sr. Norton (e aí está nosso consolo, eu espero), como se explica que naquela época cada vez mais gente afirmava que o túmulo estava vazio, que Cristo tinha ressurgido, que ele vivia? Como se explica que aqueles mesmos homens que por ocasião da prisão de Cristo se esconderam em todos os cantos com medo de serem capturados também, de serem enforcados, como se explica que eles (e isto é um fato histórico) de repente davam pulos de alegria, jubilando: “Ele ressurgiu! Vitória! Vitória!” A História nos mostra que podemos confiar nestas pessoas e no que elas diziam. Cada vez mais gente foi dominada pela presença de Cristo ressuscitado. Começaram a se movimentar. O mundo inteiro foi se movimentando... Já há quase dois mil anos! Portanto, aquele que encontrar Deus em toda sua onipotência, está seguro! Pode desistir do seu lugar no “BUNKER”, pois encontrou a segurança. Cristo, o homem que estava com a razão, abriu mão dela. Estendeu os braços para enlaçar seus amigos... e morreu na cruz! A justiça de Deus tinha sido escarnecida, mas sua lealdade estava intacta. Da morte deste homem surgiu viva a força da confiança. A malha dos prisioneiros se rompeu.
247Através da textura dos parágrafos, através de confecções já petrificadas, um homem contempla a humanidade. Surge o homem que coloca a felicidade alheia acima do seu próprio direito. Nem os mais modernos mísseis de um sistema de defesa conseguem transformar um inimigo num amigo. O desarmamento só começa à medida que termina a desconfiança. Começa quando vem alguém e diz: Em Tuas mãos confio o meu espírito!... Ou quando em meio à dor existe a esperança, dela podendo surgir
a confiança cega. O queixoso, finalmente, sente-se seguro e abrigado. Seu direito à saúde, o direito à felicidade se transformou numa confiança ilimitada... O pastor respirou fundo. Com isto no entanto ficam excluídas,
primeiro: qualquer relatividade de sofrimento do tipo “O dos outros ainda é pior do que o meu”. Segundo: toda explicação fatalista como “Foi a vontade de Deus, você está sendo posto à prova”. Terceiro: a explicação compensatória de que “Lá em cima você será compensado!”. E por fim a mais idiota delas
todas: “Sofrimento é conseqüência de culpa”. O pastor baixou a cabeça,
apoiou-a nas mãos e disse num tom de voz quase inaudível: Com tudo
istoj sempre é horrível... sempre.
Phil disse Joe Gintzburger, as mãos entrelaçadas apoiadas na
barriga. Era um homem pequeno, franzino, de voz doce e suave, olhos doces com pestanas enormes, espessas sobrancelhas brancas. Também sua cabeleira
era toda branca e seu bigode bem cuidado. Meu querido Phil, primeiro
quero lhe agradecer em meu nome e em nome de todos, por tudo que tem feito neste caso tão triste.
Eram oito e cinco da manhã do dia 4 de dezembro de 1971, um sábado. Oito horas! E aqui no apartamento de Joe, no Hotel LE MONDE, ainda estava escuro. As luzes permaneciam acesas. Tomávamos nosso café da manhã instalados em diversas mesas pequenas e redondas, que foram trazidas por garções. A maioria dos presentes estava com os olhos vermelhos, quase sem apetite. Tudo aquilo tinha qualquer coisa de irreal; as luzes, os rostos pálidos, a voz de vendedor-de-Bíblia de Joe, toda essa gente, na maioria desconhecidos uns dos outros. Era como se estivéssemos tomando uma refeição num necrotério aquecido. O ambiente luxuoso do salão ainda tornava tudo mais irreal. À nossa frente, duas pessoas demonstravam um apetite imenso. Joe Gintzburger e Lejeune, seu advogado parisiense. Ambos consumiam pratos de aveia, presunto com ovos, pãezinhos com manteiga e tudo que era espécie de geléia. Lejeune pedira mais uma porção de presunto com ovos (quatro ovos de cada vez!) e devorava tudo, sempre como um animal.
Eu só consegui engolir um café preto.
Estava muito bem disposto graças a estimulantes. Sempre trazia comigo aqueles comprimidos, com toda razão condenados pelos médicos; e sempre que acabavam, conseguia nova dose. Havia situações em que eu não podia dispensá-los. Agora, por exemplo. O Perniton impede o sono, deixa a pessoa inteiramente lúcida e ainda por cima com uma vivacidade que beira à loucura. Tomei-os no avião que me trouxera de volta a Paris, pois estava completamente liquidado e impotente. Agora, sr. Juiz, bastava uma mulher passar a cinco metros de distância que fosse, e ela já estava grávida!
Todos os outros, inclusive Rod Bracken estavam mais dormindo que acordados, porém mesmo assim mostravam um respeito incrível a Joe, uma submissão indescritível. Isso aliás é de praxe em nossa indústria.
O mesmo devo dizer em relação a meu amigo Maître Lejeune
disse Joe. Também ele se sacrificou; conseguiu verdadeiros milagres.
Ora trilava encabulado o pançudo Lejeune, em sua límpida voz
de castrado com suas bochechas de hamster, deixando bem claro que eu não passava de um pedaço de bosta, e que ele, só ele, com todo seu engenho e arte tinha conseguido salvar a situação. Era de fato verdade. Aquele ora pronunciado com a boca cheia de pão e geléia, fora suficiente para emporcalhar toda a toalha. Parecia ser uma característica bem pessoal de Lejeune.
Além de Joe, Rod, eu e Lejeune ainda se encontravam ali o relaçõespúblicas da SEVEN STARS, três advogados americanos trazidos por Joe, um homem que parecia um médico e o espanhol Júlio Da Cava, Diretor do filme CÍRCULO DE GIZ a ser rodado em breve. Eu o conhecia de fotografias e de nome. Viera de Madrid com Rod e Lejeune.
Tomando meu café, escutava Joe falar, mas não entendia o que ele dizia. Aos meus ouvidos soava a voz da Ruth:
Do jeito que as coisas estão o senhor terá que voltar a Nurenberg,
sr. Norton. O mais rápido possível. Sei que o senhor vai fazê-lo. Não existe ninguém que nos possa ajudar a salvar a Babs. Sozinhos, para nós é impossível. Precisamos do senhor agora, com urgência, sr. Kaven.
Tinha chamado um táxi para mim e me acompanhara até a porta da Clínica. Quando o carro chegou, colocou ambas as mãos nos meus ombros, e bem perto de mim disse:
O senhor agora é mais importante para a Babs do que qualquer medicamento. Como a Babs me era indiferente apesar de todo meu medo, meu Deus! Mesmo assim fiz algo estranho: tomei uma das mãos da doutora e beijei-a. Ela se assustou, entrou correndo antes de eu pegar o táxi que me levaria ao aeroporto onde o jato da Sylvia me aguardava...
... os senhores estão vendo, meus amigos, nós todos estamos
fazendo e sempre faremos todo o possível para que a Sylvia, apesar do triste caso da Babs, consiga realizar o CÍRCULO DE GIZ, este maravilhoso drama sobre a mãe... dizia aquela voz aveludada, batendo as pálpebras embevecido.
249(Este sujeito nunca leu uma única linha de Brecht, pensei eu comigo, quando a voz de Joe soou novamente ao meu ouvido, ou então simplesmente ele não consegue entender do que a peça realmente trata...
Pobre Da Cava, você ainda terá muitas surpresas!) Nós todos, todos aqui
da SEVEN STARS formamos uma só família, unida e feliz. Somente assim, meus amigos, podemos produzir filmes internacionais realmente bons.
O senhor tem toda razão trinou o advogado Lejeune. Toda razão! Olhei para ele. Sua cabeça inteiramente calva brilhava à luz de um candelabro. Por causa de sua barriga, estava como sempre, sentado bem afastado da mesa.
Nossa visão é muito ampla disse Joe. Nosso anseio criador é alimentado constantemente pela força que advém de nossa maneira humana de pensar.
- Muito bem! aprovou o advogado, atacando um prato de queijos.
Mas o que seria de nós sem a nossa Sylvia continuou Joe, olhando para o teto Esta mulher maravilhosa! Esta mulher formidável! A maior artista que já conheci! E maior por quê? Ele quis formular a pergunta para si mesmo, mas o relações-públicas se antecipou; rapazinho inteligente!
Porque ela traz o maior espirito humanitário, a maior bondade, os mais profundos e puros sentimentos! disse ele.
Exatamente disse Joe, enquanto eu pensava naquele espírito humanitário, na bondade, nos sentimentos puros e profundos demonstrados lá no camarim da TV de Monte-Carlo Eu já posso lhes adiantar agora, meus amigos, os lucros do filme E O VENTO LEVOU... foram apenas uma fração daquilo que a Sylvia vai ganhar para nós com seu CÍRCULO DE GIZ... Ora, não existe nem termo de comparação! A Sylvia irá comover todas as mães do mundo, ela irá mostrar a todos que também é mãe!
Olhou para Lejeune.
- O senhor ainda tem mãe, meu amigo?
- Tenho, sr. Gintzburger. E lá foi uma migalha de Camembert para a toalha.
Então trate-a na palma da mão, meu amigo.
- É o que eu faço, sr. Gintzburger. Mais uns pedacinhos de queijo...
Tratem suas mães na palma da mão disse Joe com a voz
trêmula de emoção... A maior felicidade que se pode ter no mundo é ter
mãe! Eu... Ele teve que assoar o nariz... eu não a tenho mais.
Mãe! O ser que mais se deve venerar no mundo! É por isso que vamos rodar o CÍRCULO DE GIZ, meus senhores!
Olhei para Da Cava, o diretor. Retribuiu meu olhar meio desconcertado, com ar infeliz. Você nem sabe o que ainda o espera, pensei eu. Será que tem nervos resistentes, e força para se impor a Joe Gintzburger,
250este rei dos cretinos?
Existem pessoas que riem desse meu ponto de vista disse Joe
sacudindo a cabeça, abalado por este fato Mas basta olhar para os filmes
daquela gente! O que é que eles produzem? E chamam aquilo de arte. Arte
moderna! Ficou de mãos postas. Cineastas! O que fazem eles com as
mães em seus filmes? Com uma pobre mãe doente? Sabem o quê? Dão-lhe
uma marretada na cabeça! Jogam a pobre velhinha escada abaixo! Ele
ergueu a voz. Isto! Com força, mais um golpe! Jogam-lhe também um
prato de sopa quente no rosto! E por fim ainda um pontapé! Isto!
Levantou a perninha delicada como se estivesse dando um chute. Isto é
arte, meus amigos! Isto é moderno! E depois, quando estes pobres idiotas se
arruinam, eles se espantam! Não é assim? Olhou para seus advogados.
Um deles disse:
É isto exatamente, Joe.
O diretor espanhol pigarreou energicamente. O esperto relações-públicas percebeu logo que se continuasse, daí a pouco a coisa ia ficar preta. Voltou-se portanto para Da Cava:
O sr. Gintzburger é um dos mais antigos entre os grandes produtores americanos. Como Louis G. Mayer. Eu trabalhei para o Mayer. O mesmo tipo de personalidade. Exatamente! Lilian Ross, uma jornalista de NEW YORKER, escreveu certa vez um livro que se intitulava “Filme”. Nele descreve também o sr. Mayer. O senhor devia ler, sr. Da Cava. O espanhol fez
um movimento com a cabeça. No livro ela cita Thoreau. Disse Thoreau
que a maioria entre nós leva uma vida de mudo desespero. Já nós da SEVEN STARS somos de opinião que o cinema existe para melhorar o humor do espectador e não para piorá-lo.
Isto mesmo, Charley disse Gintzburger. E com isso chegamos ao cerne da questão. Nossa maravilhosa Sylvia foi duramente atingida pelo destino. Todos nós sabemos o quanto ela gosta da filha. E agora a menina aDocceu daquela maneira! Ele tinha acabado sua refeição, apanhou um estojo de metal no bolso interno do paletó e dele retirou um imenso charuto. Cortou-lhe a ponta, umedeceu a extremidade com a língua. Charley levantou-se de um salto, e solícito ofereceu-lhe o isqueiro. Joe soprou nuvens
de fumaça para o alto e se recostou Será impossível para a Sylvia rodar o
CÍRCULO DE GIZ debaixo de tão horrível tensão, não acham? Tirou
uma baforada de seu charuto. Temos que proporcionar à Babs o melhor
tratamento médico possível, mas... teremos que separá-la da Sylvia, sem a menor dúvida! Nenhuma mulher no mundo agüentaria este duplo encargo, representar um papel magistral, tendo a seu lado uma criança gravemente enferma.
Ainda mais quando se trata de um filme de vinte e cinco milhões de
dólares só de custas de produção disse um dos advogados. De repente
todos começaram a se animar, a discutir.
251É mesmo disse Joe. Continue Jim. j
O advogado chamado Jim continuou:
Sem levarmos em conta, que de agora em diante será praticamente
impossível apresentar mãe e filha juntas em público, não é mesmo?
Todos concordaram.
Eu não.
O estado da Babs ainda pode melhorar muito disse eu, sentindo
uma estranha sensação no estômago.
Doc! chamou Joe.
Não disse o homem que parecia médico.
Não, o quê?
Sr. Kaven, sua observação me surpreende. O senhor nesse meio
tempo deve ter ouvido bastante a respeito desta doença, para saber que o estado da Babs não irá melhorar muito. Eu repito... não poderá melhorar
muito! Fungou. Ou por acaso o senhor tem a esperança de muito em
breve poder comparecer em público com a Babs a seu lado?
Não respondi. Estava me sentindo cada vez pior.
Neste ponto Doc tem razão disse Rod Bracken. Meu bom
amigo Rod.
Evidentemente estamos partindo da suposição de que Babs consiga
sobreviver à doença... O que houve? Disse qualquer coisa que o senhor não tenha gostado?
É seu tom disse eu. Não estou gostando de seu tom.
Isto me parte o coração! - respondeu ele. Uma horrível claridade
entrava agora no salão misturando-se à desagradável luz das lâmpadas Se
a Babs conseguir sobreviver à doença repetiu Doc sou médico, sr.
Kaven, sei de que estou falando, uma infecção bactério-virótica, tão grave, deixa lesões tão acentuadas por tanto tempo, que a criança simplesmente não será apresentàvel.
Faça o favor de se expressar de outra maneira! gritei eu.
Comigo o senhor não grita, sr. Kaven disse o médico, acentuando a palavra senhor.
Controle-se Phil disse Gintzburger, lambendo uma ponta solta
do papel de seu charuto. Deixe Doc acabar de falar.
Não será apresentàvel repetiu o médico. Eu não vou me
expressar de outra maneira, sr. Kaven. A partir daí só me tratava de
senhor. Porém, mesmo admitindo que haja melhoras... dentro de certos
limites evidentemente, temos que nos conformar com um fato, nunca mais a Babs voltará a ser THE WORLD’S GREATEST LITTLE SUNSHINE-GIRL.
E também a mãe não continuará mais a ser a maior atriz do
mundo. Não creio nem que ela venha a rodar outro filme. Muito menos o CÍRCULO DE GIZ disse eu com maldade.
252Este problema pode deixar que nós resolvemos Phil disse Joe
apontando com o charuto para mim. A Sylvia continuará a ser a maior artista de todos os tempos. Ela vai rodar o CÍRCULO DE GIZ. Não lhe resta outra escolha, não acham, meus senhores? Olhou para seus advogados.
Estes riram.
Será que você não poderia se manifestar também? perguntei a
Rod.
Ele sacudiu a cabeça.
Quem consegue escapar de uma meningoencefalite destas disse
Doc passou por uma doença cerebral tão grave que após meses ou até
anos, poderão sobreviver novos males como por exemplo a epilepsia ou a doença de Parkinson. Os sintomas desta são a paralisia dos músculos, como os do rosto por exemplo, dificuldade de locomoção, salivação incontrolável, tremedeira, etc. Poderia ser o caso da Babs. Poderia também em pleno Sunset Boulevard ou em meio a uma entrevista com a imprensa ter um repentino ataque epiléptico, que não é um espetáculo nada agradável...
Pare com isto! gritei eu.
Não grite! gritou ele.
Gente, gente acalmou Joe. Tinha se recostado e fumava dando
chupadas profundas, compassadas Vocês já esqueceram o que eu disse da
grande família, unida e feliz?
Isso mesmo disse o outro advogado Tem outro ponto ainda.
O público nunca poderá saber o que houve com a Babs. Isto quer dizer que o senhor, sr. Kaven, e a sra. Moran deverão continuar como antes... e agora mais do que nunca... a se apresentar como o casal do século.
Sem a Babs? disse eu.
Claro, sem a Babs respondeu ele.
Todos nós sabemos disse agora o relações-públicas que
existem artistas, como por exemplo a grande cantora... e ele citou o
nome... que tem um filho excepcional, e que conta o fato a todo mundo. Em conseqüência ela é mais estimada, mais admirada ainda. Isto no caso da sra. Moran infelizmente não é possível.. tenho aqui o parecer da minha seção... Os senhores todos sabem por quê!
Monte-Carlo - sussurrou Rod tão baixo que mal dava para se
entender.
Levantei, fui até a porta e apaguei as luzes.
- E daí?
E daí disse Joe soltando baforadas tudo é muito simples,
meu querido Phil. Por enquanto a Sylvia ainda continua... de férias. De maneira nenhuma vamos incomodá-la agora. Fica para quando o estado da Babs chegar a um ponto crítico... do que Deus nos livre e guarde... ou então, o que nós todos esperamos, ela melhorar um pouco e a Sylvia retornar. Então falaremos com ela. Hoje temos que falar com você, Phil. Tenho a certeza absoluta de que a Sylvia se mostrará receptiva a nossos argumentos...
253 Dois advogados riram novamente. Rod blasfemou baixinho.
Com você meu querido Phil, temos que falar imediatamente, pois nesse meio tempo, e também mais tarde, apenas você será e poderá ser a pessoa que por um lado olhará constantemente pela pobre Babs, e por outro continuará a ser para o público o homem a quem a Sylvia escolheu na vida, com quem ela se realizou. Encontraremos uma explicação fácil e convincente para o fato da Babs não continuar mais a aparecer como terceira no grupo. Já me lembrei até de uma.
Voltei para minha cadeira e me sentei.
Foi então que conheci outra faceta do esperto e prestativo Maître Lejeune.
Virou-se para mim, me olhou impassivo e disse:: Entendeu?
Entendi respondi eu. Entendi que para a Sylvia continuar a
ser uma estrela, e vocês a ganharem milhões com ela, eu serei obrigado, a daqui por diante levar uma vida de dupla personalidade: o marido exemplar e a babá.
Pode colocar a coisa em outros termos também disse Lejeune.
E o senhor pode ir à merda também!
O senhor se lembra, sr. Juiz, que no que se refere a Maître Lejeune, eu disse que infelizmente eu era um idiota, perfeito idiota!
Contemplei a todos que estavam lá na sala de Joe, um por um. No rosto de nenhum deles vi o menor traço de simpatia, nem de compaixão; nada. Por isso, sem hesitar, revelei logo meu caráter, mostrei o que eu era então.
Cruzando uma perna por cima da outra eu disse:
Muito bem. Vocês decidiram. Então sou eu o homem que terá que
manter a Babs longe de qualquer publicidade, que terá que fazer sabe-Deus-o-que-mais por ela, ir para sabe-Deus-onde. Se no entanto, além disso... conforme as ordens dos senhores... eu ainda tiver que continuar a ser o eterno companheiro da Sylvia e seu grande amor, coisa que na prática ainda nem sei como será possível, então eu preciso de garantias, meus senhores, pois nenhum dos senhores poderá me dizer como será meu futuro, próximo ou remoto.
O que quer o senhor dizer com isso? perguntou baixinho o
advogado que sempre me tratava de senhor.
Quero dizer respondi eu igualmente baixo que se eu tiver que
continuar à disposição de vocês, a participar dessa merda toda, eu exijo de saída quinhentos mil dólares. Em dinheiro. Trocado. Vou abrir uma conta em meu nome. (Na verdade eu pensava num grande cofre, mas não disse.) Depois de eu ter falado, o silêncio foi total; por algum tempo. Todos... até Rod Bracken, meu grande amigo Rod!... me olharam como se eu fosse um inseto nojento.
254Em seguida Joe Gintzburger disse bem baixo (todos de repente só falávamos baixo):
Retire-se!
- Como?
Retire-se, já! sussurrou Joe. Não quero vê-lo nunca mais!
Suma da minha frente, seu chantagista ordinário!
O que teria o senhor feito se estivesse em meu lugar, sr. Juiz? O que se podia fazer?
Levantei-me, e saí do apartamento de Joe.
Existem planos que vão por água abaixo...
Eu estou tão feliz, meu amor disse a Suzy. Queria ir
correndo à igreja acender uma vela, colocar cem francos na caixinha de coleta
em agradecimento. Ela me beijou. Estávamos deitados nus, em sua cama
louca, tomando Calvados como sempre. Tínhamos justamente acabado. Suzy me beijava e acariciava.
Depois disse eu. Depois minha Suzy. Agora vamos tomar outro
trago.
Mas as outras coisas gostosas vamos fazer também disse a
Suzy. Por mim ponho até duzentos francos. Saúde!
Bebemos.
Eu vou com você e enfio mais cem na caixinha disse eu. Aí
são trezentos.
É melhor você enfiar outra coisa em mim disse ela.
Sr. Juiz, aquele Perníton não é brincadeira! A pessoa não fica cansada, não fica embriagada... e de resto, olalá!
O motivo de toda aquela felicidade da Suzy era porque do LE MONDE eu havia ligado para seu salão dizendo-lhe para dar um pulo em casa, pois eu tinha refletido melhor, e aceitava sua oferta. Transformaríamos aquilo num empreendimento enorme: eu assumiria a direção. Deu um grito de alegria tão alto que fui obrigado a levantar a voz e mandá-la parar.
É que estou tão feliz...
Eu sei. Mas não pode. Eu encontro você em sua casa.
Ainda tinha as chaves comigo. Quando cheguei de táxi ela já estava lá e quase me sufocou de tanto beijo e abraço.
Tenho que beber alguma coisa disse eu. Ainda estava fulo de
raiva por ter sido expulso da sala por Joe, pelos quinhentos mil que me haviam escapados; por eles principalmente. Por isso ligara para a Suzy.
255Pode-se ganhar muito dinheiro mesmo sem chantagem. Eu na época já era um tremendo patife, mas o Perniton, sr. Juiz, e agora o álcool ainda por cima, me tornaram um patife muito maior!
Ora, a Sylvia que vá à merda! disse eu. A Babs também.
Tudo vá à merda! Só se vive uma vez. Eu lá me presto para fazer aquele trabalho imundo para aquela turma de cretinos!
Eu estava inteiramente louco naquela manhã. Nem pensei nas conseqüências que minha atitude poderia ter. Não pensei em nada. Perniton e álcool! A única coisa que ainda me passou pela cabeça foi: Pronto; acabou-se! Afinal, quem eles acham que eu sou? Acham que podem fazer de mim o quê?
Fizemos mais uma vez. Suzy estava de pileque, eu completamente sóbrio e lúcido. Depois fomos para a cozinha, todos dois nus. Fiquei olhando-a abrir a lagosta com uma tesoura imensa. Suzy a comprara, já cozida, no caminho para casa, pois sabia que eu era louco por lagostas.
Estávamos sentados na cozinha. Lá fora brilhava um sol fraco de inverno. Comíamos com grande apetite. Enquanto comia, a Suzy já traçava planos detalhados, descrevia a vida maravilhosa que íamos levar, agora que eu resolvera ter juízo.
Hoje mesmo escrevo para meu conde dizendo que está tudo acabado. Amanhã mando vir a turma toda... hoje ainda ficamos sozinhos, está bem?... E você vai ver só como todo mundo vai gostar de você, meu amor. Aí nos reunimos e discutimos tudo tintim por tintim e... Que foi que houve? Você não está mais com fome?
Suzy abrira uma garrafa de champanha, esvaziei meu copo e devo ter olhado para ela como sonâmbulo quando disse:
Não vai dar não.
O que não vai dar? Largou a garra da lagosta que estava
chupando e me olhou assustada.
Com a gente. Não vai dar.
Você está de pileque, meu amor?
Não.
Então ficou maluco.
Também não. -
Ficou sim, meu amor disse ela, mas olhava séria para mim
enquanto falava: Primeiro ficamos juntos uma eternidade. Depois aquele
fedelho fica doente. A velha prostituta tem que fazer plástica...
- Ao contrário disse eu.
Merda! Você volta para cá; eu lhe faço uma proposta. Você diz
que não, porque de repente descobriu que gosta daquele fedelho que nem filho seu é. Eu reconheço tudo, procuro me controlar... você nem sabe quanto me custou daquela vez, meu caro!... Eu o entendo, nossos planos não dão em nada. Aí... vê só se você não está maluco... você vai embora, volta, liga para mim, manda tudo à merda, diz que agora a coisa vai.
256Você vem aqui, ficamos todos satisfeitos, acertamos tudo... e de repente você me diz que não dá! Assim não vai, meu amor. Afinal de contas eu também sou gente e isso não se faz com ninguém!
É fiz eu. Não disse eu.
É, o quê? Não, o quê?
É, você tem razão, isso não se faz. É isso mesmo.
Ela encheu o copo de champanha e esvaziou-o de um trago. Segurou a cabeça.
Viu disse ela Já começou Pileque desgraçado! Você está
sentado aí na minha frente e eu ouço você dizer coisas que nem disse.
Disse sim, Suzy.
Mas isso é uma loucura!
Claro que é uma loucura.
Você foi posto na rua por aquele sujeito de Hollywood. Ele xingou
você de chantagista ordinário. Disse que não queria ver você nunca mais. Você não tem nada; não é nada. O que é que você pretende fazer, pelo amor de Deus?
Não sei disse eu me levantando como em transe. Fui me lavar,
voltei para o quarto e fui vestindo uma a uma, todas as peças que na minha chegada arrancara com tanta ânsia. Enquanto isso, a Suzy estava sempre atrás de mim, ou a meu lado; as lágrimas lhe corriam pelas faces. Ficou olhando muito tempo para mim, muda, nuazinha, apenas de chinelos. Depois, torcendo os dedos engoliu em seco e disse:
É, você é mesmo um sujeito decente.
Eu a essa altura já estava na sala, de meias e cuecas.
Sujeito decente, uma merda! respondi eu.
Merda nada disse a Suzy. O Sol entrava pela janela.
. É isso mesmo. Onde está minha camisa?
Aqui... espera, eu ajudo... A mesma coisa de novo; como da
outra vez. Por causa daquela criança que nem sua filha é! Babs! Tão doente! Você não consegue tirá-la da cabeça. Para aquela velha, você está pouco ligando. Mas a criança, para a criança você liga! Ela agora é a coisa mais importante para você no mundo!
Não é não!
É sim.
Não é.
Não diga que não! insistiu a Suzy. Deixa que eu fecho as
abotoaduras. Você não tem filho. Por isso fez da Babs sua filha. Agora que ela está doente e precisa de ajuda, você não consegue deixá-la, tem que ir lá.
Eu lhe juro, sr. Juiz, se a Babs tivesse morrido naquela hora, algumas horas ou dias depois... pouco teria me importado. Palavra de honra! Depois do que soube em Nurenberg a respeito do seu estado, e de todo resto a que Joe Gintzburger queria me obrigar, não havia nada no mundo que naquele momento eu detestasse mais do que a Babs, aquela pestezinha desgraçada. que arruinara minha vida;
257arruinado para sempre! Esta é a pura verdade. Por que depois de tudo isso eu não fiquei com a Suzy, por que decidi ir embora, sem ter a menor idéia para onde, nem do que viver, eu só compreendi enquanto comia minha lagosta. Como se um raio me passasse pela cabeça: eu não podia, de maneira nenhuma, causar esta desilusão à Ruth. Faria tudo para estar junto dela de novo, para ouvir sua voz, ver seu rosto, sua figura, seu andar...
Enquanto vestia minhas calças, a Suzy disse:
É; você tem que ir ver a Babs. Eu queria poder te segurar. Mas não
posso, e agora também não me interessa, pois percebi o que está acontecendo
com você. Você é bom demais para mim. Santo Deus, pensei eu fechando
o zíper da minha calça. E com isto nosso plano morreu de vez. Esquece,
para sempre. Juro que nunca direi nada a ninguém a respeito de você, da
Babs ou daquela dona Ajoelhada me ajudou a calçar os sapatos, enquanto
eu amarrava minha gravata Para mim não é difícil jurar, pois amo a você,
amo demais até para dizer qualquer coisa.
Suzy, por favor...
Quietinho! Amo demais sim! Mas por favor não volte nunca mais!
Nunca, ouviu bem? Vesti meu paletó. Entre nós está tudo acabado.
Agora e para sempre! Porque senão... senão... se acontecer uma coisa destas de novo, eu ainda acabo fazendo uma sujeira!
Fui até a entrada, vesti meu capote e disse:
Mas nós podemos continuar a ser amigos...
Ela não me deixou acabar. Gritou de repente enquanto as lágrimas escorriam:
Anda, vai embora! Vai logo! Eu já disse, eu não presto! Se você
continuar aqui por mais um minuto, eu acabo mudando de idéia e acabo
agindo como quem não vale nada mesmo! Por isso vai embora! Vai! E eu
fui.
Demorou um pouco até encontrar um táxi. Fui até perto do LE MONDE, paguei e saltei. Lucien Bayard ainda estava com os meus 55.000 francos da penúltima corrida. Talvez até fosse mais. Quem sabe, podia ter ganho na última corrida também, sr. Juiz? De qualquer maneira era uma boa quantia da qual eu agora iria precisar. Sabia que Lucien deixara um envelope lacrado na gaveta da mesa do porteiro, para que eu pudesse pegá-lo quando quisesse. Era todo o dinheiro que eu tinha, pois quando a Sylvia voltasse da sonoterapia, eu não contaria mais com ela. Iam lhe contar logo, e com o maior prazer, que eu tinha sido posto na rua e o por quê.
258Diante da situação não lhe restaria outra saída a não ser me botar na rua também.
É claro que eu podia tentar fazê-la mudar de idéia, usando todas as artimanhas de um gigolô. Mas eu não queria; se o fizesse, era para conseguir mesmo, e só a perspectiva de pensar numa tentativa me enojava tanto que eu sabia que ia fracassar. Ora, podia também ter calado o bico, ou podia ter aceito a proposta da Suzy, mas não fizera nada disso. Uma pessoa como eu não tinha jeito.
No cofre do meu apartamento ainda estava um par de abotoaduras de brilhantes, uma pulseira de relógio de platina, e outras coisas que a Sylvia me dera.
Tinha que me apoderar delas antes que a Sylvia as retomasse. Na garagem do aeroporto estava meu Maserati Ghibli. Daria um bom dinheirinho se o vendesse. Também no aeroporto ainda havia coisas de valor que Rod na época não tinha colocado nas malas que mandara para a Suzy. Cada nota de dez francos agora era importante para mim, cada moeda de um, também. Eu era agora um pobre diabo! Não tinha a menor idéia do que ia ser de mim, nem conseguia me concentrar para pensar, por que a Ruth não me saía da cabeça. Também não tinha idéia de como voltar para ela e nem do que ia acontecer depois. Estava muito confuso. Perniton, champanha, coito e um coração puro não harmonizam absolutamente. Acima de tudo eu tinha era medo, um medo incrível de encontrar novamente Joe e seu pessoal, ou Lejeune aquele eunuco desgraçado, esfomeado, que me atacara tão traiçoeiramente.
Fui andando a pé até o hotel. Andava cada vez mais devagar. O sol desaparecera, começou a fazer frio, e eu a me sentir mal... Cada vez retardava mais os passos. O que adiantava, sr. Juiz, a gente acaba mesmo chegando onde tem que chegar.
O chefão da recepção e os porteiros do dia me cumprimentaram como nos bons tempos, e eu também os cumprimentei radiante. Lá estava Charles Fabre, o famoso chefe dos porteiros de quem diziam não haver nada no céu ou na terra que ele não conseguisse num instante. Falei com ele; me arrumou a chave do apartamento e o envelope lacrado com o dinheiro. Sentei no saguão, abri o envelope e lá estavam os 55.000 francos em notas de quinhentos.
Era um envelope grande, de papel manilha. Dentro encontrei também uma folha de fino papel timbrado, tendo no canto superior esquerdo impresso o nome de Lucien Bayard em letra ornamental. Lucien escrevia:
Muito estimado sr. Kaven:
Eu lhe agradeça de todo coração os 10.000 francos que o senhor
Bracken me entregou em seu nome.
Anexo, o senhor encontrará os 55.000 restantes. Sinto muito, mas
devo lhe comunicar que tivemos azar na segunda corrida em Chantilly com aqueles dois cavalos que eu tanto lhe recomendei.
259King’s Twist foi desqualificado, e Le Parleur chegou em quarto lugar. O senhor não imagina como me sinto constrangido, pois apostei para o senhor, 4.500 francos ao todo! Como foi palpite meu, é claro que também deve ser prejuízo meu.
O Velho Lucien! Ora, isto nem se discute, pensei eu. Antes de me mudar aqui do hotel preciso falar com ele, pessoalmente ou por telefone e lhe devolver o dinheiro.
Gostaria de poder falar com o senhor na próxima semana, pois no domingo, dia 12, correm três cavalos em Vicennes, pelos quais eu ponho a minha mão no fogo. Por favor comunique-se comigo. Já tentei várias vezes mas não consigo.
Com os protestos da mais alta estima, seu sempre criado,
Lucien Bayard.
Instalei-me numa mesa do saguão, peguei uma folha de papel de carta do hotel e escrevi para Lucien, para lhe agradecer. Não entrei em pormenores a respeito de minha nova situação. Coloquei 10.000 dentro do envelope; em dois maços. 4.500 Lucien havia gasto para mim na segunda corrida; 5.000, na primeira. Os 500 restantes eu lhe dava como prova da minha amizade.
Colei o envelope, escrevi o nome de Lucien em cima, entreguei a meu amigo Charles Fabre, pedindo para fazê-lo chegar às mãos de Lucien à noite.
Pois não, sr. Kaven.
Agora então me restavam apenas 45.000 francos da minha aposta... Mas existem certas coisas na vida que a gente não pode deixar de fazer.
Será que o senhor poderia me fazer um favor? perguntei a ele.
O que o senhor quiser, sr. Kaven.
Dei-lhe o número do telefone do salão da Suzy. Pedi que ligasse para ela e lhe dissesse para mandar com urgência minhas malas para o hotel (eu recebera apenas uma de volta). Ainda tinha um monte de coisas em sua casa. Só espero que por vingança ou dor, ela não se atrase de propósito, pensei eu. Também ainda tenho que esvaziar meu cofre, mas isso é a última coisa...
Vou já! respondeu Fabre, e radiante acrescentou: Aquele
jornaleco levou uma boa lição, hein?
Qual?... Ah, já sei. Ele se referia ao jornal com aquela manchete escandalosa.
A retratação ocupa uma página inteira, sr. Kaven! O senhor não
viu’
Não. Eu tive que viajar para...
Por sorte ele me interrompeu:
... Madrid, com a d. Clarissa, não foi? Como está ela?
260 Está melhor disse eu. Os médicos acertaram.
- Que bom! Fico muito satisfeito. A d. Clarissa é uma moça tão simpática!
Peguei o elevador e fui até o quarto andar. Desci o corredor, abri a porta do apartamento, fechei-a por dentro, sentei-me e fiquei olhando para meus apatos. Pensei em Ruth, a princípio meio confuso; a situação toda era realmente confusa. Comecei a matutar, a ver se arranjava um jeito de revê-la. Encontrei uma porção de soluções, estava cada vez mais absorto; reparei que meus sapatos estavam imundos, tirei-os para limpar (eu os limpava sempre), e me lembrei que o material estava numa das malas que ficara em casa da Suzy. Continuei a pensar, olhando para as minhas meias. Até elas haviam sido compradas pela Sylvia. Tudo que eu usava, lenço, cuecas e meias, eram comprados pela Sylvia. Eram meias azul-escuras, muito bonitas.
32
A porta abriu-se de repente e Joe Gintzburger entrou esbaforido. Atrás dele apareceu Lejeune, seguindo-se toda a equipe de Hollywood. Vieram rapidamente ao meu encontro e eu fiquei apavorado, pois apenas Lejeune era baixinho. Qualquer um dos outros, homens musculosos que praticavam esportes, e que devido a seus altos cargos, eram submetidos anualmente a.um check-up completo, que estavam sempre em perfeito preparo físico, qualquer um deles me liquidaria. Eu me refiro aos americanos, pois Lejeune, um bom chute bastaria para fazê-lo emudecer, mas de que adiantaria, se o resto cairia logo em cima de mim?
Levantei de meias, fui recuando. Eles se aproximaram rápidos. Continuei a recuar. Acabei batendo contra a parede atrás de mim e reconheci que não dava mais. Quanto eu não teria dado por um bom soco-inglês? Horrorizado, vi que deixara o dinheiro da corrida em cima da mesa.
Escute, Joe... comecei, mas o pequenino de cabelos brancos
me interrompeu em voz alta:
Nenhuma palavra, seu cretino! disse Joe Gintzburger.
Ponham-se daí pra fora comecei eu mais uma vez, enquanto
todos me cercavam e me olhavam, de uma maneira que não sei como descrever. Deve haver açougueiro que sente um prazer especial em matar um porco; a expressão dele antes de iniciar a matança devia ser a mesma. Será que estes carniceiros também ficam abalados? Pois abalados pareciam todos aqueles canalhas, principalmente Joe e Rod.
Cale a boca seu cretino disse o pequenino Joe, mas eu tive a louca impressão que o que ele tinha era vontade de me puxar para junto de si para me dar um beijo na testa.
261Cretino, disse eu...
Eu ouvi respondi, me sentindo meio perdido, ainda mais por
estar de meias.
Supercretino disse Joe quase carinhosamente. Você é um
supercretino Phil, mas um supercretino precisa ser pago quando se precisa dele. E nós estamos precisando de você.
Por um momento pensei que fosse cair de costas, mas não. De repente me ficou claro: depois do Joe ter me posto para fora, os canalhas devem ter entrado em pânico, pois precisavam de mim como do pão de cada dia. Devem ter discutido as soluções, não ter chegado a nenhuma, e ficado com medo que eu saísse correndo para qualquer agência de notícia e contasse toda a verdade. Eu só lhe digo uma coisa, sr. Juiz, o filho pródigo não podia ser mais bem tratado pela família do que eu agora estava sendo.
Sinto muito o que houve esta manhã disse Joe. Mas até de
noite você recebe seu meio milhão exatamente como pediu.
Realmente, sr. Juiz, não era fácil digerir aquilo! Dei um passo para a frente, Joe e seu pessoal recuaram; fui andando devagar até a cadeira, pois estava zonzo. Onde estavam meus sapatos sujos? Sentei-me. Vieram se aproximando silenciosos, quase na ponta dos pés, se acercaram de mim, me rodearam, exatamente como o faz a polícia com aqueles bandidos bem ordinários naqueles filmes policiais americanos. Só que não estavam de chapéu.
O que houve? perguntou Joe Não entendeu o que eu disse?
Entendi muito bem respondi.
Hoje à noite. Em cédulas pequenas conforme pediu. Já mandei
gente a vários bancos. Meio milhão é um bocado de dinheiro!
Não disse eu.
Não, o quê? perguntou Joe.
Não quero mais seu dinheiro disse eu. Desculpe Joe. Peço
desculpas a todos disse eu olhando para eles.
Qual é o golpe agora? guinchou Lejeune com sua voz de
menino-cantor.
Não é golpe nenhum. É a pura verdade.
Depois de ficar pensando tanto tempo, sr. Juiz, finalmente me ocorreu como poderia voltar para junto da Ruth. Não para junto da Babs, esta me continuava tão indiferente quanto antes (ao menos eu assim imaginava). Para junto da Ruth. Ruth! Era tão simples, e eu tinha levado tanto tempo para descobrir!
É a pura verdade. Não quero dinheiro nenhum. O pouco que
preciso para viver, a Sylvia vai continuar a me dar. Faço o que os senhores quiserem.
Olharam para mim como se eu fosse algum louco. O relações-públicas de nome Charles até virou para o médico perguntando:
O que houve com ele, Doc? Perdeu o juízo?
262Doc aproximou-se, me examinou com os olhos, farejou em volta de mim e disse:
Cheira um pouco a álcool. Mas não chega a estar bêbedo.
Todos se calaram.
Quero ficar perto da Babs disse eu finalmente. E da Sylvia.
Faço tudo que for preciso. Será que podia dar um passo atrás, Doc?
Por quê? perguntou o médico.
Porque está pisando no meu sapato respondi eu. Estou
ficando com frio nos pés e gostaria de calçá-los.
... Esta jovem criatura que agora está sendo enterrada, que foi
tão amada por todos, que foi o objeto de tantas preocupações, de inúmeras
tentativas de ajuda, que acabaram todas sendo em vão... dizia o Pastor
Ernest Hirtmann, pálido, acabrunhado, de estatura mediana, ajeitando seus óculos. Estava em pé à beira da sepultura aberta, cercado de umas vinte pessoas. Eu estava lá, a Ruth, os pais do Tim, aquele menino de dezessete anos, com um lado todo paralítico (COM PERMISSÃO, SOU NERO). Tim falecera em 3 de dezembro de 1971, em Nurenberg na Casa de Saúde Sofia, horas antes de eu ter chegado de Paris com a Ruth e a Babs. As nuvens pairavam baixas naquela tarde, um vento forte soprava, fazia frio no grande cemitério de Nurenberg, com suas alamedas largas, o forno crematório, a quantidade de árvores altas e velhas cujos galhos se erguiam nus e negros para o céu. Era terça-feira à tarde, 7 de dezembro de 1971.
Em vão e caras disse baixinho o pai de Tim. Estava em pé ao
meu lado, alto e pesado. Usava um casacão forrado de pele, seu rosto estava vermelho, não de frio, mas de raiva. Era um velho zangado, o pai de Tim.
Falando mais alto, acrescentou: Eu uma vez fiz as contas para ver quanto
os dezessete anos nos custaram. Só no último trimestre foram dezoito mil para aquele aparelho novo.
Por favor, fique quieto implorava a mulher com-lágrimas lhe
escorrendo pelas faces.
Dezoito mil repetiu o velho, como que forçado a falar.
Dezoito mil, num só trimestre. E por quê? Só porque aquele médico inglês vinha nos escrevendo há tanto tempo afirmando que o aparelho podia operar milagres... e nós acabamos acreditando. Nosso caixa disse logo que ele não ia reembolsá-lo. Mas você insistiu. Tim devia experimentá-lo. E os médicos daqui? Estes queriam evidentemente testá-lo. Eu lhe digo uma coisa: os médicos do mundo inteiro estão mancomunados.
263Dezoito mil - repetiu o homem alto e pesado mais uma vez. Depois começou a chorar.
Choque - sussurrou a Ruth Nada faz sentido no momento. É
um bom pai; uma pessoa decente. Já o conheço há muito tempo. Isto sempre se repete; a morte deixa as pessoas transtornadas,
... sabemos continuou o pastor Hirtmann que a vida
precisa continuar. Isto são ao mesmo tempo palavras vazias e a pura verdade. Mas como precisa ela continuar? De tal maneira que todos e cada um de nós tenha sempre a morte diante de seus olhos. Que nunca a esqueçamos, venha ela por doença, acidente ou guerra.
Se achamos algum sentido nas coisas úteis ou inúteis que fazemos
e falamos diariamente, devemos sempre testá-las, verificar se conservam seu sentido também diante da morte, ou se tudo é absurdo. Todos nós um dia morreremos, nossas palavras serão espalhadas pelo vento, e nem tudo que afirmarem depois de nossa morte será verdade. Verdadeiras no entanto jà são agora nossas dores, grandes ou pequenas; verdadeira é a dor causada pela morte de um jovem deste...
Estávamos todos ao lado do forno crematório, parentes e familiares e segundo me disse a Ruth, também algumas irmãs e médicos da Clínica, Longo e plangente soou o apito de uma locomotiva. Bem perto do cemitério passavam os trilhos que iam dar numa grande estação de carga. (Explicação dada por Ruth quando o trem apitou pela primeira vez durante o enterro.) Trens passavam a toda hora; apitos soavam.
Eu retornara de Paris há alguns dias. A sonoterapia da Sylvia havia sido prolongada por mais algum tempo. O dr. Delamare não queria correr nenhum risco. Hoje, se tudo corresse normalmente, ela jà devia estar acordando e esperando pelo meu telefonema.
O que devemos fazer, é nos ajudar a nós mesmos disse o pastor
confessando sinceramente nossa impotência. Fazia muito frio. Daí a
pouco vai começar a nevar, pensei eu. Até mesmo um pastor pode
confessar esta impotência, pois ele não inventa o consolo, ele apenas o transmite quando pode. Como sacerdote eu lhes digo agora: Quando o adeus é tão duro, tão comovente como no caso deste jovem, eu preferia me colocar ao lado de vocês, queridos pais, do que estar aqui em pé falando. Preferia ficar calado, ou apenas murmurar: Deus, não fique mudo diante de nossas lágrimas!
A Ruth estava mudada; estranha. Seu olhar vagava sempre além do cemitério, por cima dos campos. Parecia estar completamente ausente.
Outra locomotiva apitou.
À noite, também tinha ouvido estes apitos; eles me arrancaram de sonhos confusos lá no Hotel BRISTOL onde eu agora morava. Ao chegar, apresentara meu passaporte alemão com o nome Philip Kaven ao porteiro. Eu era alemão, mas vivia nos Estados Unidos, diziam as anotações do passaporte, que tinha apenas três dias, mas estava amassado e manchado de propósito, e evidentemente era falso.
264Adiante contarei como consegui.
Mas Deus não se cala continuou o pastor. Principalmente
diante de nossas lágrimas. Sua voz, que normalmente não ouvimos, pois é sufocada por nossas próprias vozes, e tumulto, só se tornará audível, quando estivermos pequenos... pequeninos em nossa dor.
Neste instante eu o vi. Vi perfeitamente.
Era um homem magro, de seus quarenta e cinco anos, talvez, usava um capote cinza por cima de um terno de meia confecção (O capote estava aberto)... uma camisa branca de nylon, amarrotada e não muito limpa, uma gravata azul, o cabelo preto cortado curto, rosto pálido, olhos escuros debaixo de sobrancelhas finas. Os olhos possuíam uma expressão ao mesmo tempo de ganância, atrevimento, medo e agilidade felina. Estava do outro lado do túmulo, um tanto afastado, com os olhos fixos em mim, só em mim, e mais ninguém. Quem será? pensei assustado.
Uma vida chegou ao fim. Uma criatura humana se acabou sem ter
nunca chegado a sentir a inquietação dos adultos, a preocupação que nos traz este mundo confuso, que não nos concede a paz...
Os olhos! Aqueles olhos estreitos, frios, impiedosos, olhos de louco daquele homem magro e mal vestido me fixavam sem cessar...
O que houve? perguntou a Ruth.
Por entre dentes eu disse:
Está vendo aquele sujeito lá do outro lado, de casaco, que me olha
tanto? Quem é ele? Não olhe ainda. Espere um instante.
Um homem, diz nossa mensagem continuou o pastor penetrou na imensa solidão. Os primeiros que através dele tiveram a paz, chamaram-no Cristo...
Não tenho a menor idéia murmurou a Ruth. Parece americano.
Isto eu tenho certeza que é respondi quase sem mover os lábios.
Um trem passou com o barulho de suas rodas. Hirtmann continuou
com grande clareza. Por causa deste homem a quem chamaram de Cristo,
hoje ninguém mais está só, nem os enlutados...
Por que o casaco dele está tào estufado debaixo do braço esquerdo? murmurou a Ruth. Acho que ele tem uma...
Também acho. Não olhe mais!
... e em nome deste Cristo que morreu tão tristemente só, nós
Lhe pedimos a paz, uma palavra firme e consoladora, principalmente para os pobres pais...
O homem do capote meteu a mão direita por dentro dele, exatamente onde ele estava estufado. Com dificuldade a Ruth abafou um grito. Eu me agachei, pronto para saltar. Diversas pessoas nos olharam espantados. O desconhecido tirou uma Minox do bolso, ergueu-a e disparou a máquina uma, duas, três vezes. Vi apertar o disparo e rodar o filme. Quis pegá-lo. Estava
265preso em meio à multidão. Não conseguia passar. Agora ela fotografava o grupo que rodeava a sepultura, o pastor, os presentes, a Ruth a meu lado.
De costas para ele, o pastor falava:
... Gostaríamos de acusar a Deus, pelo sofrimento que nos impôs. Podemos fazê-lo. Acusamos aquele que como acusado está ao nosso lado, que se tornou um dentre os sofredores, que sente conosco, que sofre enquanto o homem sofrer...
De repente o homem se virou, saiu correndo como acossado, penetrando cada vez mais pelo cemitério adentro, para onde tudo era mato, sem alamedas nem sepulturas, onde apenas vicejava alto o mato escuro, a floresta densa. Subitamente desapareceu.
Que significa isto? perguntou a Ruth.
1 Dei de ombros.
Estou com medo murmurou. E o senhor?
Balancei a cabeça afirmativamente.
Seu amor continuou o pastor Hirtmann, enquanto os trens
passavam seu amor envolve os mortos. Envolve também os vivos que
neste momento se encontram diante da morte, e que diante de uma sepultura tantas vezes esquecem de dizer: Senhor me ensina a pensar na minha morte, para que eu me torne mais sábio...
Nesse ponto, sr. Juiz, me vejo obrigado a dar uma parada e reparar uma falha, falando sobre o nascimento do amor-ódio.
Mal eu tinha dito que ficaria ao lado da Babs e da Sylvia, naquela horrível manhã de 4 de dezembro de 1971, quando Lejeune mandou todos os outros saírem da sala, dizendo que precisava falar comigo a sós.
Deixou-se cair numa poltrona. As molas rangeram, ele resfolegou. Com as perninhas separadas devido a seu imenso volume, devorava bombons de nata, radiante.
Por que essa risada idiota? perguntei eu.
Porque estou me divertindo com o desenrolar desta estória disse
ele engolindo bombons. De repente lembrou-se: Aceita um?
Pode imaginar muito bem d que eu respondi, sr. Juiz.
Lejeune riu às gargalhadas de boca cheia evidentemente, espalhando restos de bombom para todos os lados.
Ta gueule, salaud! disse eu. Cala a fuça, seu cretino!
, Assassin - retrucou Lejeune com um sorriso.
Sale assassin disse eu para aquele advogado pançudo.
266Eu ainda acabo fazendo de você um autêntico francês disse ele
satisfeito, e sério continuou: Primeiro no entanto terei que transformá-lo
num falso alemão.
Como?
Ora, o senhor não terá que levar uma vida de dupla personalidade... sempre oscilando entre Babs e Sylvia Moran? Na Alemanha não poderá de maneira nenhuma aparecer como Kaven, isso é óbvio. Terá que se portar, de maneira completamente diferente. Mais controlado, discreto, abatido, não chamando nenhuma atenção. Quando no entanto aparecer em companhia da Sylvia, continuará a ser Philip Kaven, o homem criado para o amor! Aí poderá reassumir seu verdadeiro papel! Deverá se portar como antes. Na Alemanha precisa de outro passaporte, outro estilo de vida, o pobre pai infeliz... não fique olhando assim para mim, seu cretino!... Na Alemanha vai precisar de um passaporte com o nome Norton. Não Paul Norton. Foi um erro, em meio a toda aquela confusão, quando Babs foi levada para o hospital. Agora... se a garota não esticar as canelas, pois então nada será preciso... agora deverá constar o nome Philip Norton em seus papéis.
E por quê?
Porque se a Babs voltar a ficar medianamente lúcida, o que também poderá acontecer, ela o chamará de Phil. Phil é o nome que ela redescobrirá. Não se lembrará tão cedo do nome Kaven.
E a mãe?
Crianças normalmente dizem mamãe e não Sylvia Moran, não é?
Palitou os dentes e ficou contemplando desiludido o achado de seus esforços. E a mamãe ainda continua em férias, não é? Portanto lhe arrumamos um passaporte alemão, mas você consta como radicado nos Estados Unidos. Carimbos e tudo mais estarão em ordem. O aspecto do passaporte também não será novo. O pessoal de Nurenberg tem lá seus métodos. Preciso imediatamente de retratos seu para o passaporte; mando-os expresso para meu amigo em Nurenberg.
Quem é seu amigo em Nurenberg?
Ele continuou a palitar os dentes.
Tenho que dar um pulo ao dentista disse ele. - O que foi que
disse?
Quem é seu amigo em Nurenberg?
Lejeune riu.
O que tem de engraçado? :
É um homem chamado Wigbert Sondersen. É o comissáriò-chefe
do presídio de Nurenberg. Da comissão de inquérito.
Como?
Estranho, não é?
Escute...
Eu e Sondersen somos velhos amigos. Certa vez consegui que a
267polícia daqui lhe fizesse um favor imenso. Gente como nós temos que nos manter unidos, não acha?
O que pode alguém que trabalha em comissão de inquérito ter a ver
com passaportes? Fazer um passaporte falso para mim?
É fez Lejeune. Estes bombons de nata são excelentes. Sondersen pode sim, é um dos mais eficientes criminologistas da Alemanha. Da Alemanha Ocidental. Do outro lado também tenho amigos. Tenho amigos por toda parte.
Como poderia trabalhar sem eles? Acredita que se não fosse assim,
Joe Gintzburger teria me contratado?
Isso me impressionou.
Sondersen é uma pessoa tão eficiente que não se lhe pode negar
favor disse Lejeune. Já me comuniquei com ele por telefone. A repartição de passaportes está esperando apenas por seu retrato; logo você ganha seu documento. Eles têm todos os carimbos! Vai ficar um belo passaporte. Para os outros casos continue a usar o verdadeiro. Mas ainda não é tudo. Na Alemanha deverá se portar como um pobre infeliz, pai de uma criança excepcional. Evidentemente não pode usar roupa de Cardin mas ternos de meia-confecção. Parte da bagagem, as coisas melhores, ficam no LE MONDE. As malas com a roupa da Babs também já foram trocadas. Em breve devem chegar as novas.
Isto é ordem de quem?
Ora, de quem? Minha evidentemente. Eu faço alguma coisa em
troca do meu dinheiro, e é um bocado o que Gintzburger me paga. Na Alemanha também deverá usar óculos de aro de tartaruga, com vidro transparante. Óculos escuros chamariam muita atenção. Deve levar uma vida bem modesta. Sua Maserati fica aqui. Se ainda não entendeu bem, de agora em diante deverá levar uma vida de dupla personalidade como o dr. Jekyll e Mr. Hyde por exemplo, embora o exemplo não seja dos mais felizes, mas acho que entende o que quero dizer.
Entendo.
Então venha. Não há um minuto a perder. Jà reservei seu quarto.
Hotel de classe média, sinto muito. Em hotéis de luxo só Philip Kaven poderá se hospedar. Agora vou lhe comprar um pouco de roupa, alguns ternos de meia-confecção...
Nesse instante, sr. Juiz, nasceu em mim o amor-ódio por aquele esganado Maître Lejeune.
268Um momento só, para eu não perder o fio.
Pelo meu diário, no dia 4 de dezembro de 1971, saí com Lejeune para fazer compras na GALERIE LAFAYETTE. Comprei tudo, até duas malas, de fibra, evidentemente.
Em 5 de dezembro veio a reação àquela porcaria de Perniton. Dormi o domingo inteiro e metade da segunda-feira. Como ainda não estivesse com o meu novo passaporte, tive que usar o jato da Sylvia. Nas primeiras horas do raiar da terça-feira voltei para Nurenberg. Debaixo de mim a noite escura; por cima, o novo dia, em cores irreais, vermelho, amarelo e ouro. No aeroporto de Nurenberg me despedi da tripulação, pois de agora em diante teria muitas vezes que me servir de companhias aéreas. Peguei um ônibus até a estação. O tempo todo xingava a Babs, aquele fedelho que tinha arrumado toda aquela encrenca, mas ao mesmo tempo meu coração batia alto ao pensar que ia rever a Ruth.
Da estação segui diretamente para o presídio. Precisava do meu passaporte novo. Lejeune me havia dito para procurar Sondersen imediatamente. Seu escritório ficava no segundo andar. Era uma sala de decoração muito prática e impessoal. Em cima da mesa, um vidro de geléia com água e uma rosa vermelha.
O comissário-chefe veio ao meu encontro. Era muito alto e magro; seu rosto lembrava o de um médico cauteloso. Seu cabelo grisalho parecia um pêlo grosso a lhe cobrir o crânio ossudo. Apertou-me a mão. Sentamos. Perguntou se eu trazia as fotografias. Entreguei-as. Telefonou e logo depois apareceu um rapaz para apanhá-las.
Não demora nada disse ele. O passaporte já está pronto, só
falta o retrato. Espero que a criança fique boa.
Eu também respondi pensando: Mas que não fique boa muito
depressa. Nem sei como lhe agradecer pelo serviço que me prestou, sr.
Comissário.
Pode me chamar de Sondersen, sr. Norton. Não é favor nenhum. É
tudo rotina. Nós ajudamos aos outros, e eles nos ajudam quando acham que há razão para isso. No seu caso os motivos são óbvios. Por sorte eu e Lejeune já nos conhecemos há muito tempo. Ele certa vez me ajudou, não ele diretamente, mas a polícia francesa.
Ele me contou.
Claro que a coisa não foi tão simples disse Sondersen. Através
da INTERPOL, todas as repartições de polícia do mundo agora sabem que o senhor recebeu um “passaporte de proteção”. Tem um número especial formado por algarismos em seqüência característica, além de uma letra impressa, também própria para este fim.
269Não é por desconfiança em relação ao senhor, é apenas uma combinação internacional.
Eu sei, sr. Sondersen.
Deu uma rodada no vidro de geléia e disse de repente. Mais um
pouco e liquido isto...
Isto, o quê?
Tudo. Vou me aposentar.
Mas seu trabalho é muito interessante.
No início também pensei. Queria trabalhar de qualquer maneira
com crimes e homicídios, embora tivesse que começar por trânsito. Mas
homicídio... O maior dos crimes... fez uma pausa. Tinha uma
obsessão, sr. Norton, queria servir à Justiça.
Lejeune me disse que o senhor o fez inúmeras vezes.
Sondersen ficou olhando para mim, as pálpebras caídas pesadas sobre seus olhos.
Fiz sim, sr. Norton. Mas fui ficando cansado. Quando moço, meu
sonho ainda era outro, queria estimular o bem, me tornar professor. Mas
depois... largou o vidro de geléia... logo depois, isto me pareceu
meio sem perspectiva, e então me decidi pelo combate direto ao mal.
Sondersen é uma das pessoas mais simpáticas que conheci na vida.
O senhor deve me achar um tipo meio esquisito, não é?
Absolutamente.
Pode dizer, eu estou vendo pela expressão do seu rosto. Não era
bem assim que o senhor imaginava alguém especializado em crimes, não é verdade? Sabe de uma coisa, o mal, o mal absoluto é muito, muito raro no mundo. A maioria das pessoas que praticam o mal, simplesmente carecem de imaginação suficiente para avaliarem a conseqüência de suas ações. Ao lado desses existem também os absolutamente depravados, sr. Norton. Como especialista em crime eu conheci muitos deles. Minha obrigação é combater o mal absoluto; e eu o faço na medida do possível. Cada vez no entanto vai sendo mais difícil. Sabe o senhor o que este mal absoluto tem de horrível?
Não.
É impossível combatê-lo respondeu Sondersen. Pode se
punir um indivíduo destes. Mas de que adianta? De nada. Fazer dele uma
criatura melhor, um pouquinho melhor que seja, é inteiramente impossível
Falava com toda calma, como sempre. E o pior de tudo, sr. Norton,
quando olho para trás, quando contemplo meu trabalho, minha vida, vejo tanta coisa que me escapou, tanta coisa em que errei, que perdi. Nada disto tudo no entanto pode ser compensando, nem remediado. Tudo que consegui nos anos passados, hoje não tem mais sentido. Nada é constante na vida. O tempo é arquivado, assim como a justiça arquiva os autos de um processo para o qual não existe mais recurso.
Existe uma continuidade nos acontecimentos disse eu.
270Não retrucou Sondersen. É exatamente isto que não existe.
É o seu sonho, sr. Norton, e o meu pesadelo. Aqui na Alemanha falou-se tanto em passado dominado, em relação a certos setores. Muito poucos no entanto sabem, e eu infelizmente sou um deles, que o passado não se deixa dominar nunca! O reconhecimento deste fato nesse meu trabalho, liquida com a gente.
Olhou para mim.
Então, por que continua a trabalhar?
Há dois anos tive a oportunidade de me afastar disse Sondersen. Mas na época tinha acabado de comprar uma casinha, sou casado, o
senhor sabe... me vi obrigado a levantar dinheiro, e para pagar, acabei ficando.
O mesmo rapaz de antes entrou trazendo o passaporte novo, que a equipe de peritos tinha manchado, preparado de tal maneira que já parecia velho.
Minha foto havia sido presa nele, e carimbada. Debaixo dela assinei Philip Norton, e meu verdadeiro nome em meia dúzia de outros papéis. Com isto a seção de passaportes me impedia de usar meu passaporte falso indevidamente.
Obrigado disse eu para o rapaz. Sorriu, deixou o documento e
saiu. Agradeço especialmente ao senhor disse eu para Sondersen.
Ora, que bobagem. Quando se pode ajudar... levantou-se também. Venha disse ele quero lhe mostrar uma coisa. Puxou a
gaveta de um arquivo. Presas internamente, uma em frente à outra estavam duas folhinhas com todos os dias e meses do ano. Uma terceira folhinha estava colada na parte da frente, por dentro; tive que me abaixar para poder vê-la. Eram calendários de 1971,.72 e 73. Os de 72 e 73 ainda estavam intatos. O último tinha sido feito pelo próprio Sondersen. No de 71, os dias estavam riscados com lápis vermelho, até o dia 6 de dezembro.
O dia sete risco hoje à noite antes de sair disse o comissário-
chefe.
Mas por que... para que...
Não esqueça seu passaporte, sr. Norton. Este é o meu prazer
diário. Em primeiro de dezembro de 1973, eu me aposento definitivamente.
E até lá o senhor vai riscando os dias que ainda precisa trabalhar?
Aquiesceu.
Este ano já está quase no fim. Depois, faltam só mais dois, senhor
Norton. Só dois!
Parecia tão feliz ao dizê-lo, sr. Juiz. Nem eu nem ele sabíamos então, que o comissário-chefe Sondersen não iria se aposentar em 31 de dezembro de 1973, porque pouco antes, em 8 de outubro, ele foi chamado para um dos quartos mais imundos, de um dos mais sórdidos hotéis-de-encontro, para começar a investigar um crime. Ninguém no mundo poderia, em 7 de dezembro de 1971, ter previsto isso. Mas foi o que ocorreu. E o homem a quem Sondersen encontrou poucos dias antes da data em que iria se aposentar, estava morto.
271Tinha sido morto pela bala de uma pistola Walther, modelo TPH. caiibre 6,35mm. Era o artista americano Romero Rettland, e a mulher de pistola na mão, em pé diante do morto, era Sylvia Moran.
Dois meses antes de se aposentar, Sondersen, o comissário-chefe, teve que se defrontar, mais uma vez, com o mal absoluto. Não o pouparam.
- - Phil...
Sim, Babs. Que é?
A mãe?
Ela vem aí. Vem já.
Jà morreu há muito tempo?
E com isto acabara-se o diálogo.
Com aquela pergunta a MENINA RAIO-DE-SOL fechou novamente os olhos que abrira quando falei com ela. Abriu a boca, cujos lábios estavam cobertos de pequenas bolhas, e continuou a dormir. Sua respiração era profunda e ritmada. Continuava deitada de lado, mas agora já quase toda esticada. Também aqui, neste quarto da clínica pediátrica de Nurenberg, as cortinas estavam fechadas; apenas uma grande lanterna de bolso que a Ruth segurava, iluminava a Babs, sua cama e pouca coisa ao redor.
Tinha saído do presídio para o Hotel BRISTOL, a fim de deixar minha miserável bagagem. Depois segui para a Clinica. A Ruth já estava à minha espera.
Venha disse ela tomando minha mão venha, sr. Norton...
Foi andando rápida pelo longo corredor até chegar ao quarto da Babs. Em pé diante da cama da Babs chamei-a pelo nome e depois sucedeu o que acabei de descrever.
Me aprumei. Ruth estava bem perto de mim, muito pouco iluminada, pois o foco da lâmpada estava dirigido para o chão. Ao olhar para a Babs sorriu, como fazia tantas vezes quando junto da cama de uma criança. Era o sorriso que inspirava confiança e esperança.
Viu? perguntou ela feliz, e em sua voz soava bem-aventurança
de todas as mães do mundo, ao contemplarem felizes seus filhos. Os filhos de Ruth!
Vi o quê?
Ora, a Babs disse Phil, sr. Norton! As palavras saíram precipitadas. Ela o reconheceu imediatamente! Isto não é maravilhoso?
272É fiz eu, ouvindo meu coração bater alto ao contemplar aquela
mulher de estatura mediana, em seu jaleco branco. É maravilhoso sim.
doutora.
Ela não está mais desorientada. Até a febre baixou.
A quanto?
Trinta e oito e nove. Ela já consegue ficar deitada quase esticada
outra vez. Há três dias sua respiração é normal. Desde que está aqui em Nurenberg. não teve ainda nenhuma crise. As batidas cardíacas são normais e mesmo a sensibilidade à dor diminuiu muito.
Quanto?
Já se pode tocar-lhe, sem que ela grite, sr. Norton. A rigidez da
nuca está regredindo. O ouvido ainda está supurando. A paralisia nos membros esquerdos ainda continua, mas bem menos acentuada. Seu organismo aceita todos os medicamentos e qualquer dose de injeção; está reagindo de maneira fantástica ao antibiótico. Pelo que podemos julgar...
- Sim?
... o pior passou. Hoje de manhã examinamos a Babs durante
longo tempo mais dois especialistas e o diretor. Acho que ela escapa.
... apa disse Babs como um eco.
E os olhos?
O que têm eles?
Ela continua vesga... a senhora não reparou?
São manifestações de paralisia da musculatura. Não se lembra de
Paris, sr. Norton? As pálpebras estavam quase totalmente paralisadas.
Lembro disse eu. E ao escrever essas linhas, sr. Juiz, constatei
que diante da melhora da Babs, fiquei num estado que talvez o senhor, o conhecedor da humanidade possa entender (talvez!). Pensei comigo: Desejo tudo de bom à Babs. Mas espero que ela não fique boa logo; espero que não fique inteiramente boa por muito tempo ainda, pois do contrário terá que deixar a Clínica; e eu também. Enquanto estiver doente permenacerá aqui; e eu com ela. Junto à Ruth. Ruthl Por causa dela é que estou aqui. Esta mulher exerce sobre mim uma estranha força de atração.
Ainda vai demorar... demorar muito até que a Babs fique boa de
todo? perguntei eu.
Boa de todo? e o sorriso em seus lábios desapareceu. - Sr.
Norton, nós conseguimos colocar a criança fora de perigo; nada mais por enquanto! Todo o resto vem com o tempo, não sabemos como o caso irá desenrolar. O senhor não deve esperar milagres.
Não conto com nenhum milagre, doutora. O fato de não haver
mais perigo de vida já é um milagre. Eu lhe agradeço. A mim não disse ela baixinho.
273À senhora sim. É a senhora que tenho que agradecer.
37
Bruxinha!
Sim, Lobinho a voz da Sylvia soou lenta e indistinta ao meu
ouvido. Estava no telefone. Delamare devia ter-lhe dado uma boa dose de
injeção se ela ainda falava desse jeito! Estava esperando tanto que você
ligasse! O doutor jà me contou onde você está com a Babs. Por culpa minha.
Bobagem.
Bobagem, não. Eu me descontrolei. Eu... eu sou mãe. A Babs é
minha filha. Tinha que ir vê-la... sinto muito pelo transtorno que causei. Como está ela?
Está melhor, Bruxinha. Muito melhor! Está fora de perigo! Me reconheceu, e até me chamou de Phil.
Eu... Eu sei que agora você não pode vir aqui. Lobinho... É
horrível... Mas a minha carreira.,. Você liga para cá não é?
- Ligo.
Todos os dias?
Todos os dias.
Duas vezes por dia?
Quando puder, ligo duas vezes sim, Bruxinha.
Como está o aspecto dela, da minha pequenina Babs? Conta! Fala!
Por que você não diz nada? Será que não é verdade?
Ninguém agüenta isto.
Estou na sala da dra. Reinhardt, Bruxinha disse eu. Já falei
com Rod. Ele tem meu endereço e sabe por que nome deve mandar me chamar se quiser ligar para mim. Passo a maior parte do tempo aqui na Clínica com a Babs.
Você é um amor!... É o mais adorado de todos os Lobi...
Eu agora passo o telefone para a doutora. Para que você acredite
em mim disse eu interrompendo bruscamente. Ela vai confirmar o que
acabo de lhe dizer. Vai lhe falar também como o caso se desenvolverá dai por diante... Entreguei o fone rapidamente à Ruth que se encontrava a meu lado.
Estávamos em sua sala.
A Ruth falou com a Sylvia, devagar, com segurança. Aquela voz só podia inspirar confiança. Estava a meu lado quando disquei para Paris e falei com a Sylvia. Sua sala aqui em Nurenberg na Clínica, era igualmente cheia de brinquedos, livros, discos, material para testes, quadros-negros, paredes todas rabiscadas a cores.
274Uma parede estava coberta por livros.
A Ruth não parava de falar, não erguia a voz; não perdia a paciência. Na sala havia ainda uma segunda mesa. Instalei-me ali. Eu estava feliz, e ao mesmo tempo tomado de uma inquietação louca, agora que começava a imaginar como as coisas iriam continuar.
Na segunda mesa havia uma máquina de escrever. Presa nela, uma folha de papel. Enquanto ouvia distraído o que a Ruth dizia, eu li:
QUERIDAS CRIANÇAS:
ESTA É A ÚLTIMA CARTA QUE LHES ESCREVO. TENHO QUE IR EMBORA. POR ISSO NÃO VENHO MAIS BRINCAR COM VOCÊS...
... não, sra. Moran, todos nós, junto com o chefe da Clínica,
chegamos à conclusão de que sua filha está fora de perigo ouvi a Ruth
dizer. Olhei para ela e sorri. Permaneceu séria. Sorrira apenas ao ver que a Babs me havia reconhecido. Continuei a ler:
...NÃO PRECISAM TER MEDO. JÁ ENCONTREI UMA SUBSTITUTA. ELA É MUITO DIVERTIDA. DE CABELOS LOUROS E OLHOS AZUIS. SEU NOME? IRMENGARD BREZELMEIER NA VERDADE ESTE NÃO É SEU VERDADEIRO NOME. (ELA SE CHAMA SELDMAIER). MAS TODOS A CHAMAM DE”“BREZEL” (ROSQUINHA). PORQUE ELA É DE MUNIQUE E GOSTA TANTO DE COMER ROSQUINHAS...
... ai a senhora terá que contar muitas semanas, muitos meses
ainda, sra. Moran...
... DE BISCOITO ELA ALIÁS TAMBÉM GOSTA MUITO. GOSTA DE URSOS. DE CACHORROS E DE SEU CARRO VELHO. MAS ACIMA DE TUDO. GOSTA É DE PINTAR E BRINCAR COM CRIANÇAS. SEMPRE TEM UMA PORÇÃO DE IDÉIAS NOVAS E ENGRAÇADAS; FOI IDÉIA DELA, MANDAR VOCÊS FAZEREM AQUELES DESENHOS COM AS MOCHILAS...
... Não, prezada sra. Moran, para isto é muito cedo ainda! Este
como é mesmo nome dele?... este dr. Wolken ainda não pode tratar dela. Por enquanto só mesmo nós aqui. Mais tarde seria até interessante se ele quisesse vir até Nurenberg... Não, sra. Moran, acredite em mim. por favor. Mesmo os primeiros ensinamentos através do dr. Wolken deverão ter lugar aqui mesmo na clínica... A Babs tem que ser controlada... Fico muito satisfeita em ver que a- senhora entende o problema...
... AQUELES DESENHOS COM MOCHILAS...
Que mochilas eram aquelas?
Vi ao lado da máquina uma pilha imensa de folhas de papel pintadas a aquarela. Folheei-as. Parecia que a professora tivera a idéia de pedir às crianças para desenharem bichos ou gente que tivessem todos uma coisa em comum: todos deviam estar carregando mochilas. Continuei a passar os olhos.
275Alguns desenhos eram só rabiscos, outros eram extraordinários, nítidos e engraçados. Todos muito coloridos.
Toda folha trazia embaixo, à direita, o nome da criança, sua idade c o significado do desenho. Por eles podia-se tirar muitas conclusões sobre o estado psíquico dos respectivos artistas. Havia figuras curvadas, rastejando quase sob o peso das mochilas, mas também figuras alegres que carregavam suas sacolas sem dificuldade, para as quais carregar aquilo era uma brinca deira.
... mas sra. Moran! A senhora ainda precisa ficar algumas semanas na clínica do dr. Delamare, não é? E mesmo quando a senhora já se apresentar novamente em público ainda devia ser adiado, especialmente qualquer cena para a Babs... Meu Deus. a senhora não está feliz por ela estar fora de perigo?
Eu li:
... RECEBEMOS TANTOS DESENHOS DE VOCÊS. QUE DARIA PARA ATAPETAR O CHÃO TODO DE UMA CASA INTEIRA. ESPERO QUE VOCÊS ENTENDAM QUE NÃO TEMOS TANTO LUGAR. MAS TALVEZ A GENTE POSSA FAZER UMA GRANDE EXPOSIÇÃO NUMA BIBLIOTECA INFANTIL; SE DER CERTO. MANDA MOS RECADO PARA VOCÊS. DIVIRTAM SE POIS COM A “ROSQUINHA”. E ATÉ QUALQUER DIA.
ABRAÇOS
KARIN
Ao ler isto, ouvi a Ruth dizer:
... claro que ele vai ligar diariamente, pode ficar descansada.
Sim... sim, eu digo a ele. Até logo, sra. Moran. Ruth colocou o fone no
gancho e disse: A sra. Moran o adora, sr. Norton, mais do que tudo no
mundo. Só da Babs ela gosta tanto quanto do senhor. Ela manda lhe dizer isto. Seu rosto estava inteiramente sem expressão.
Por que acabou a conversa tão de repente?
Caiu alguma coisa que estava em cima da colcha e a sra. Moran
teve que dar uma olhada para ver se não ficou danificado.
Caiu o quê?
Acho que foi uma pulseira de brilhantes, sr. Norton disse a Ruth.
Ah fiz eu.
É retrucou ela.
Quem é Karin?
Quem é...? Ah, uma colega. Karin Luns. Psicóloga de crianças.
Trabalhei com ela nesta sala. Temos muito pouco espaço. São crianças demais, muitas salas de exame. Karin vai para Chicago, para a Orthogenic School do dr. Bettelheim. O senhor se recorda dele?
Sim...
276Karin queria trabalhar com o dr. Bettelheim. Eu consegui o lugar
para ela. Vai me fazer falta. Embora a Rosquinha... quero dizer a dra.
Seldmaier seja uma psicóloga extraordinária. Ruth olhou para o relógio.
Daqui a duas horas será o enterro de Tim. Tenho que ir. O senhor me
acompanha?
Acompanho respondi eu meio ofegante. Posso... posso lhe
pedir uma coisa?
- Claro. O que é?
Fiquei olhando para “O cavalo e sua mochila”, de Leonie Hallke, 10 anos enquanto eu dizia:
Devo-lhe tantos favores, doutora. Estou tão feliz por estar aqui em
Nurenberg agora. A senhora está livre esta noite?
Estou.
Posso convidá-la para jantar? Por favor não diga que não.
E por que que iria eu dizer que não, sr. Norton? Claro que pode.
Fico até muito contente - respondeu Ruth.
Isto aqui foi em certa época o local de reunião dos Mestres Cantores disse a Ruth para mim. Estávamos na nave da velha igreja de Santa
Marta, e ela me havia mostrado as pinturas em vidro que datavam do século XV e XVI. Eram 19h30min. Já estava escuro há muito; fazia frio. Havia muitas luzes acesas na igreja. Reparei que todas as igrejas pelas quais passávamos ainda estavam abertas àquela hora. Talvez tivesse alguma relação com o Natal que se aproximava.
Depois do enterro do Tim, fui de táxi com a Ruth até a clínica e esperei que ela acabasse seu trabalho. Fiquei na sua sala, lendo livros e revistas, entre elas o último número do DER SPIEGEL. Na última página, debaixo da coluna “Espelho Côncavo”, descobri essa nota:
“O bispo-adjunto de Munique, Ernest Tewes, convida para uma preleção do teólogo de Bonn, Prof. Franz Boeckle, a realizar-se na academia católica. Tema: ’Morrer e ajudar a morrer’. Será seguida por um debate e um almoço de confraternização à moda da Baviera.”
Antes de deixarmos finalmente a clínica, Ruth e eu voltamos mais uma vez para o quarto da Babs. Ela dormia profundamente. Muitas vezes os músculos do rosto se retezavam, o corpo todo também.
Tudo isto faz parte do curso da doença, sr. Norton Ruth me dissera.
277Usava um costume cinza e um casaco de pele de carneiro, lembro me perfeitamente. Eu vestia um capote de inverno comum, um terno de flanela e estava com os óculos de armação escura, sem grau. Fomos de táxi até a estação central. Aí a Ruth me mostru a entrada da Cidade Velha, o portão reconstruído no estilo original, que se ergue por cima da vala de vinte metros de largura que contorna a cidade, com torres redondas de quarenta metros de altura. Ao lado ficava o portão real e o muro da cidade, recém-reconstruido.
Éramos ambos muito jovens para termos tido experiências concretas da Segunda Guerra Mundial ou do Terceiro Reich. Mas a Ruth nascera e crescera em Nurenberg e presenciara todos os bombardeios de Nurenberg. Sabia tudo que tinha sido destruído.
Levou-me até o pátio das armas do portão de entrada, que dava para a rua principal da Cidade Velha, a Koenigstrasse, conforme eu soube naquela noite. Nesta ocasião conheci uma nova peculiaridade sua.
Até aqui só estivera com a Ruth em clínicas e lugares fechados, agora a encontrava pela primeira vez fora de seu ambiente de trabalho. Procedia de maneira estranha, e o incidente se repetia com tanta regularidade, que já chegava até a esperar por ele. A principio me deixou bastante intrigado, pois não era procedimento que se pudesse esperar de uma pessoa como ela. Ao entrarmos na Koenigstrasse foi a mesma coisa, na estação também, e diante das lojas onde parávamos, em frente à igreja reconstruída de St? Marta. Ruth seguia alguns passos na minha frente, quando parou e olhou para mim com um sorriso meio sem graça.
O senhor deve achar que sou meio maluca, sr. Norton.
Por quê? perguntei eu.
Já tomei novamente a direção errada! Desde que venho lhe mostrando essa cidade, vivo tomando a direção errada. É horrível!
Está nervosa?
- Nada disso respondeu ela. É que... a partir de uma certa
idade... em criança não tinha nada... fui ficando assim.
Assim como?
Olhei para ela. Usava um lenço amarrado no cabelo curto, seus olhos castanhos brilhavam. Eu já lhe disse uma vez, sr. Juiz, Ruth não era nenhum tipo de beleza no verdadeiro sentido da palavra. Nem se comparava com a Sylvia. Tinha no entanto os olhos mais bonitos que já conheci, castanhos como os cabelos, com longas pestanas e sempre (mesmo agora) cheios de uma tranqüila tristeza.
Olhe disse ela e no frio eu via sua respiração. Conheço
Nurenberg como a palma da minha mão. Conheço muitas outras cidades. Não importa, em todas elas, quando paro um instante diante de uma loja, uma igreja, como agora por exemplo, quando vou continuar... posso apostar, sempre tomo a direção errada. Pela lei das probabilidades, e depois de todos estes anos eu poderia errar pelo menos só cinqüenta por cento. Mas não. Erro sempre cem por cento.
278Sou meio louca. É meio desconcertante para quem é médica.
Ora, de médico e louco cada un tem um pouco - disse eu.
Nem todos disse ela. Deve haver um motivo. O senhor nem
tem idéia do que já me aconteceu andando por Nurenberg. Paris e tantas outras cidades da Europa... dos Estados Unidos, ou em Chicago quando trabalhava com o dr. Bettelheim. E não é só andando a pé! De carro também. Quando encontro uma bifurcação, uma pista de alta velocidade, um cruzamento, mesmo que eu já tenha passado pelo local um milhão de vezes, acontece sempre, por mais absurdo que seja... Tomo sempre a direção errada! O pior no entanto é que chego sempre ao meu destino e ainda por cima, na hora. Apesar das voltas que dou, dos caminhos errados que pego, de todos meus enganos, sou conhecida entre os colegas como a pessoa pontual!
Talvez fosse bom pedir a um colega para fazer uma análise.
Andando, eu tinha lhe dado o braço, naquele instante senti que enrijeceu.
Não disse ela secamente, mas logo acrescentou amável: Aí
está o Edelbraeu-Keller, tinha imaginado jantar aqui.
Formidável disse eu pensando nunca ter encontrado na vida
mulher semelhante àquela; também não conseguia mais imaginar minha vida sem ela. Afinal, quem era o maluco aí?
O garçom que nos serviu já era de idade. Era gordo, cansado. Talvez até fosse doente, pois tinha a respiração arquejante. No entanto sorria; era da maior amabilidade. Logo me lembrei de um colega seu que mancava, daquele fantástico restaurante de beira de estrada em Zurique. Ficar velho e continuar a trabalhar é um problema, para todo mundo, para o garçom principalmente.
Aceita mais algumas batatas, doutora? perguntou ele sorridente
à Ruth. Ela devia ser freguesa da casa, pois o garçom a conhecia.
Aceito, sr. Arnold.
E o senhor também?
- Obrigado, sr. Arnold.
Estávamos sentados na “Sala das Carpas”. Ruth me contou a história em detalhes. A “Sala dos patrícios” ao lado, ostentava o brasão de velhas estirpes de Nurenberg. As paredes do salão tinham sido decoradas por alunos e professores da Academia de Artes de Nurenberg. Eram três quadros representando um grupo de patrícios, uma dança típica daquela cidade, e finalmente a legendária “Barca dos Tolos”.
Ao falar nesta nave a Ruth perguntou;
279Conhece o romance de Katherine Anne Porter?
Claro respondi. É um dos meus livros favoritos.
Meu também respondeu ela me olhando com os olhos castanhos
sérios, naquele rosto de nariz reto. maçãs salientes e pele tão alva. Seus cabelos castanhos brilhavam. Katherine Porter tirara o título de seu livro Ship of fools (Barca dos Tolos) da obra de Sebastian Brant, que no século XV escrevera uma alegoria com o mesmo nome.
Durante o jantar, a Ruth veio a falar mais uma vez naquela grande poetisa americana.
Em seu livro disse ela Katherine Anne Porter usou a mesma
alegoria simples mas universal de Brant: o navio deste mundo em sua viagem pela eternidade.
Eu conheço Katherine Porter.
Não diga!
Conheço sim retruquei eu me sentindo tão abrigado, tão infinitamente abrigado ao lado da Ruth. Sentia-me quase um homem decente, sr. Juiz.
Na ocasião em que a escritora deu sua famosa entrevista à PARIS RE
VIEW, nós estávamos presentes.
Nós. quem?
Ora eu e... a sra. Moran.
Ah, claro, que pergunta boba.
É, a Sylvia ainda existia.
E como existia!
Algumas horas em companhia da Ruth fizeram-me esquecer completa mente a existência da Sylvia. Fiquei olhando fixo para meu prato.
E aí? perguntou Ruth.
Aí? disse eu Katherine Porter deu a entrevista no LE
MONDE. Sempre nos hospedamos ali quando ficamos em Paris. A sra. Moran na época trabalhava num filme naquela cidade e já conhecia a escritora, que nos permitiu assistirmos à sua entrevista. Eu é que queria; a sra. Moran apenas conseguiu a permissão.
É mesmo, foi uma entrevista que se tornou famosa. A sra. Moran
também gosta do livro?
Gosta respondi eu sem hesitar, pois não queria me lembrar da
Sylvia. Na verdade ela apenas conhecia o livro pelo que eu lhe havia contado. Sempre o achou muito grosso e complicado com personagens demais, conforme dissera certa vez quando lhe sugeri representar o papel de Condessa.
Isto não é papel de destaque, você ficou maluco, Lobinho?) Continuei rápido:
Em sua entrevista, Katherine Porter disse que a viagem do navio narrada
em seu livro, deve ser interpretada simbolicamente. É uma viagem para o caos, pois a vida humana é, em si, um só caos. Cada um afirma seu lugar, faz questão de seus direitos, seus sentimentos; interpreta mal os motivos alheios e os seus próprios também. “Ninguém sabe como irá acabar a vida que leva mos, nem eu mesma” dizia ela “pois não se esqueçam que também eu sou uma passageira daquele navio.
280“ Não são apenas os outros que fazem papel de tolos. A falta de compreensão e o isolamento são as exigências atuais da vida do homem. Apenas nos encontramos dentro destes limites bem definidos; somos todos passageiros do navio, porém quando ele aportar, cada
um segue só... Enquanto eu falava, a Ruth não tirava os olhos de mim.
Não agüentei o seu olhar e desviei o meu até o prato. Essa carpa está
realmente deliciosa disse eu e minha voz de repente estava rouca.
Por que está mudando de assunto, sr. Norton?
Não estou mudando de assunto, apenas acho que o peixe está
delicioso...
Está sim e aceitando logo minha mudança de humor (uma boa
médica): É um prato especial que escolhi para o senhor.
Ah!
- Este é o melhor de todos os restaurantes de peixe da Cidade Velha. Queria lhe oferecer uma especialidade, já que nunca esteve em Nurenberg.
Obrigado.
Não tem de quê. Seus olhos escrutinadores não deixavam os
meus.
Os segredos dessas carpas é que elas não são assadas diretamente
na manteiga, mas preparadas com a gordura obtida da manteiga derretida. É uma antiga receita, de 1600 ainda. O senhor está sentindo alguma coisa, sr. Norton?
Não.
Nada mesmo?
Por que estaria eu sentindo alguma coisa? Estou feliz por ter a
Babs melhorado.
- Isto eu sei disse a Ruth. Ergui rapidamente os olhos. Seu rosto
estava impassível. Que mulher, pensei eu, e de repente me senti tonto. Na tentativa de engrenar numa conversa banal acrescentei:
Além disto sua companhia é tão agradável.
A sua também, sr. Norton.
Ergui meu copo.
Isto é apenas uma parcela mínima de verdade disse eu. À
sua saúde, sua fingida!
Também ela ergueu o copo, olhou para mim e disse: À sua, seu fingido!
281Nós os fingidos disse eu descansando o copo em cima da mesa.
Acho que sempre fui.
Há anos atrás não observou a Ruth.
Era sim. A senhora é que não. A senhora é diferente, é...
O senhor não pode se esquecer de ligar todos o dias para a sra.
Moran, para lhe dar notícias sobre o estado de Babs, sr. Norton.
Pois não, titia disse eu. A senhora nunca foi fingida...
deixe eu acabar de falar, não é nenhum elogio que vou lhe fazer... nunca foi fingida nem mentirosa, a não ser quando fala num determinado assunto.
E qual é este?
Quando lhe perguntam por que deixou de estudar história da arte e
se tornou médica. Lembra que eu lhe perguntei durante o vôo de Paris para
cá? Ruth aquiesceu. Contou-me uma porção de coisas, de que a
maneira de sentir a beleza é um problema psicológico, e que por ter reconhecimento deste fato, decidiu recomeçar tudo, estudando medicina.
Sim, e daí?
Tenho a impressão de que não é bem esta a verdade, que a mudança teve causas bem diferentes.
Uma velhinha com um cesto cheio de pequeninos ramos de flores aproximou-se de nossa mesa. Escolhi o mais bonito para a Ruth e dei uma boa gorjeta à velhinha. Sempre dava demais, agora tinha que pôr um paradeiro nisto, pois toda minha fortuna se constituía de 45.000 francos em dinheiro e
9.600 marcos. Na verdade a cotação do franco estava alta, mas eu não tinha a menor idéia de quando receberia algum dinheiro da Sylvia. O velho e cansado garçom de nome Arnold, que arquejava um pouco, trouxe um copo com água para as flores.
Obrigada, sr. Norton disse ela colocando a mão sobre a minha.
Sua voz foi ficando mais baixa. - O senhor tem razão. Eu não disse a
verdade.
Vou lhe contar agora. Não sei por que, mas sinto que devo contar a
verdade.
Obrigado.
Tive um irmão - disse aquela mulher dos cabelos castanhos
brilhantes, dos olhos sérios que tudo sabiam Chamava-se Peter. Era doze
anos mais velho do que eu.
- Era?
Sim. Suicidou-se disse Ruth.
282Muito cedo ainda o dr. Peter Reinhardt foi para os Estados Unidos a fim de estudar medicina. Passou por todos os exames com distinção e trabalhou durante longos anos no Hospital Bellevue na cidade de Oklahoma,
no Estado do mesmo nome me contou Ruth na “Sala das Carpas”
daquele restaurante de Nurenberg. Era especialista no tratamento de
crianças doentes mentais. Tinha um amigo, um médico de sua idade que se chamava George Radley.
Um dia uma ambulância trouxe para o Hospital Bellevue um menino de onze anos, de nome Joe. Joe entrara correndo debaixo de um carro. Apenas a cabeça estava seriamente machucada. Alguns centros nervosos tinham sido gravemente afetados e ele ficou em estado de coma por três anos. Todos os médicos que tratavam do menino, especialmente o dr. Reinhardt e o dr. Radley, estavam certos de que Joe tinha uma chance de sair do estado de coma, para levar depois, talvez no fim de bastante tempo, uma vida de perfeita lucidez, embora um tanto difícil por causa de sua paralisia. Por esta razão durante três anos os dois médicos não pouparam esforços noite e dia. Outros médicos e enfermeiras também ajudaram. Gastou-se muito dinheiro. Os pais de Joe nã o tinham meios, e o Estado assumiu o encargo. Em três anos, gastou em honorários médicos, pagamento de enfermeiras, despesas do quarto e hospital, para o tratamento em suma, respiração artificial e sobretudo remédios, a quantia de 120.000 dólares. Joe continuava em estado de coma.
Isto evidentemente só foi possível graças a um medicamento especial fabricado na Suíça. Conseguiram assim uma melhora ínfima no funcionamento de seu cérebro, de progresso extremamente lento. Pelos eletroencefalogramas que registraram a atividade do córtice cerebral, e mostravam resultados cada vez melhores, era praticamente certo que Joe sairia do estado de coma, embora não se pudesse ainda prever a data com exatidão.
Enquanto o irmão de Ruth, animado pelas pequenas mas constantes melhoras no estado da criança, se aferrou à idéia de conservar a vida do menino, chegando quase a se auto-sugestionar, o dr. Radley ia visivelmente perdendo a paciência, o controle. Os amigos entravam em longas discussões, se era ou não justo esperar tanto tempo por uma melhora, à custa de gastos tão imensos.
Certa manhã estavam sentados na cantina do hospital, o irmão de Ruth esgotado pelo plantão da noite. O dr. Radley que ia substituí-lo, estava de mau humor, pois dias antes tivera que justificar um tratamento tão dispendioso e demorado, diante de uma comissão administrativa do hospital. Muitas pessoas, entre as quais também médicos, haviam-no censurado severamente e também ao dr. Reinhardt. Tratava-se aí de uma questão de relação entre continuar a dispender tanto dinheiro e a decisão tomada mediante juramento de conservar a vida por mais miserável que fosse.
283O dr. Radley acabara vencendo, porém os contra-argumentos não deixaram de ter seu efeito sobre o médico, principalmente porque no íntimo há muito ele vinha se fazendo as mesmas perguntas.
Enquanto tomavam seu café quentinho, o dr. Radley disse naquela manhã para o irmão da Ruth:
- São cento e vinte mil dólares, Peter! Cento e vinte mil! E o tempo, o tratamento, os remédios, o esforço, o trabalho de tanta gente!
Mas os EEGs estão se normalizando; todos sabem disso. Há duas
semanas Joe vem tendo curtos períodos de respiração normal. É por isso que temos permissão para continuar. Teríamos o direito de deixá-lo morrer, se não houvesse a menor esperança, e o cérebro estivesse morto, não havendo portanto mais nenhuma possibilidade de vida. Mas o cérebro não está morto! Joe tem possibilidade de viver!
É, uma grande possibilidade... observou o dr. Radley.
Vai ficar paralítico, sei disso; mas poderá raciocinar, falar, ver,
sentir e trabalhar. Poderá cuidar de si, George.
Certo. Mas quando, Peter? Quando? Já estamos lutando há três
anos. Nós estávamos decididos a ajudar ao menino. Ninguém no mundo poderia ter feito mais por ele do que nós.
E ele já melhorou muito, George disse o dr. Reinhardt, os olhos
ardendo de cansaço, os membros pesados como chumbo, quase dormindo em sua cadeira.
Melhorou sim retrucou o dr. Radley. Mas eu não agüento
mais. Simplesmente não agüento. E mesmo que seja contra nosso juramento, não consigo mais olhar para o garoto.
Você tem que descansar disse o irmão da Ruth. Tire uma
semana de férias. Vá pescar. Você gosta tanto! Depois vai ver que conseguirá de novo olhar para Joe, tratar dele.
Não vou conseguir nunca mais. Nunca mais! Ouviu? Não agüento
mais essa loucura!
Que loucura?
Todo esse dinheiro! O trabalho, o desgaste! Às vezes fico pensando
nos outros doentes com os quais relaxamos nesses três anos, a quem poderíamos ter dado um tratamento melhor, se não estivéssemos obcecados com a idéia de salvar Joe!
Mas...
Escute disse o dr. Radley , o que estamos fazendo com Joe
há três anos, não passa de uma imensa loucura! Se logo no início, algum de nós tivesse desligado o aparelho de respiração artificial... em algumas horas ele teria morrido, sem sentir a menor dor.
Na noite seguinte o dr. Radley estava de plantão. De repente Joe teve um descontrole nas batidas cardíacas, mas foi logo superado.
284No dia seguinte o hospital inteiro não falava de outra coisa a não ser do fato que depois de três anos Joe tivera uma complicação, apesar de ter sido logo superada. Na outra noite era o plantão do dr. Reinhardt. Joe não apresentou o menor índice de respiração normal, e o médico desligou o aparelho de respiração artificial. Joe amanheceu morto.
Imediatamente se levantaram censuras contra o dr. Reinhardt no Hospital Bellevue. A imprensa local explorou o caso. Acabou numa controvérsia política sobre o problema da eutanásia. Todo mundo foi se afastando de Peter.
Ele continuou a trabalhar ainda meio ano no hospital. Depois teve que ser demitido pois se transformara num alcoólatra. Relaxava o serviço, tomava decisões erradas, faltava ou comparecia bêbedo. Ficou ainda um ano em Oklahoma. Vagava sem destino, em total decadência, arruinado. Foi então acometido de uma séria psicose alcoólica. Ao ser curado, manifestou o desejo ardente de voltar para a Alemanha. Veio de navio, na mais pobre classe turista. Os pais já tinham morrido. Ruth foi esperar o irmão na estação. Quando este chegou não conseguiu esconder seu horror: um velho alquebrado e decadente saltou do trem; uma ruína humana (Ruth naquela época concluíra seu doutorado). Levou o irmão para sua casa (a dos pais há muito tinha sido vendida), cuidou dele o melhor que pôde. Algumas semanas depois ele
lhe contou o que havia acontecido. Depois teve uma melhora; tinha desabafado, chegou até a manifestar o desejo de recomeçar a trabalhar como médico. As noites no entanto continuavam a constituir problema. Contou-me a Ruth que ele tinha pesadelos horríveis. Toda vez que despertava com gritos do irmão, ia acordá-lo banhado em suor, tremendo. A sua boa disposição tinha
sido enganadora; numa crise de medo, certa noite cortou o pescoço. Foi
enterrado no mesmo cemitério para onde hoje tinha acompanhado a Ruth.
Antes de ser preso, sr. Juiz, tive contato com muitos médicos; com muitos discuti o caso do irmão da Ruth, sem evidentemente citar nome. A maioria era de opinião que o dr. Reinhardt desde o início não tinha estrutura para poder resistir aos graves encargos psíquicos que a profissão de médico exigia, e que mais tarde, em virtude do consumo de álcool, ele se tornara um irresponsável. Não encontrei praticamente ninguém que não tivesse pena dele, e que em sua situação não teria agido da mesma forma.
O choque sofrido pela Ruth foi tão violento, levando-a a largar seus estudos de história da arte. Tornou-se médica, especializando-se em crianças excepcionais. Amava seu irmão acima de tudo e o admirava muitíssimo.
285Depois daquela noite em que ela me contou tudo, passei a compreender sua seriedade constante, a paixão quase exagerada com que lutava pela vida até dos casos mais agudos de hidrocefalia. Entendia a sua atitude inexorável quando se tratava de preservar a vida humana. Entendia seu ódio. Ódio contra todos que eram relaxados ou em favor da eutanásia, qualquer que fosse o tipo.
Nunca discuti o tema com a Ruth; muitas vezes, porém, fiquei pensando qual seria a relação entre aquela sua incapacidade de tomar a direção certa e aquele acontecimento trágico. Teria o suicídio do irmão a abalado tanto a ponto de alguma coisa dentro dela não funcionar mais direito? Estaria sofrendo de sentimento de culpa por ter se refugiado no estudo da história da arte, meditando sobre o belo, num mundo de tanto sofrimento e miséria? Ou estaria se incriminando de não ter dado apoio moral bastante ao irmão? Mas como poderia ter dado?
Enquanto escrevo estas linhas, cheguei à conclusão, sr. Juiz, de que a Ruth é uma mulher de autocontrole acima do normal. Mesmo assim aquela sua total ausência de senso de orientação, entrando a toda hora pelo caminho errado, deve estar inter-relacionada com tudo isso. Creio que até ela pensa assim.
O dr. Radley, amigo de Peter, acabou se tornando o líder mais
entusiasta da “Euthanasia Society” dos Estados Unidos dizia a Ruth
ainda na “Sala das Carpas”, olhando por cima do meu ombro enquanto falava. Há muito o garçom tinha trazido a sobremesa: “Apfelstrudel”. Eu ainda não tocara no meu pedaço, Ruth desmanchava o dela com o garfo.
Que sociedade é esta? perguntei.
É uma sociedade muito poderosa. Foi fundada dois anos após a da
Inglaterra. Luta e intercede a favor da eutanásia em velhos muito doentes. A palavra é grega, significa “morte bonita”. Os nazistas a chamavam de “morte por misericórdia”. Existem projetos de lei fantásticos... Olha, lá está ele novamente!
Quem?
Há algum tempo a Ruth vinha olhando por cima do meu ombro como eu já disse.
O homem de hoje à tarde. Está sentado na outra ponta da sala,
talvez há muito tempo até; eu só percebi agora porque esvaziou uma mesa entre nós. Quem será ele, sr. Norton?
Virei-me.
Lá estava realmente o espantalho pálido que estivera de capote no cemitério, e que nos havia fotografado, a mim, a Ruth e a todos, com sua Minox, fugindo depois como escorraçado, pela parte abandonada do cemitério, onde não havia mais alamedas nem campas, apenas capim alto e mata escura. Desaparecera no meio da mata...
Levantei-me.
Fique aí! disse Ruth a meia voz.
286Mas eu não fiquei.
Atravessei a sala, fui direto para a mesa daquele sujeito de quarenta e cinco anos talvez, cheguei bem perto, e vi novamente a expressão de louco em seus olhos.
O que há? perguntei. Diante dele estava um jarro de pedra e um
copo de vinho. É a senhora que está comigo que o fascina tanto? Ou sou
eu? Quer tirar mais algumas fotografias?
dont’t speak German - respondeu o homem com um misto de
audácia e medo; atrevimento e covardia. Nunca tinha visto tal mistura de sentimentos. Usava o mesmo terno azul de meia-confecção, a camisa meio suja da tarde, a mesma gravata azul. O cabelo, cortado à escovinha, era preto e cerrado.
- All right - retruquei eu e repeti tudo em inglês.
Como ousa falar assim comigo? perguntou ele, e em seus olhos
escuros via-se novamente o medo do rato, a expressão de infinita ganância. i Não quero nenhuma fotografia sua!
Por que tirou então?
Quando?
Ora, não se finja de idiota! Hoje à tarde no cemitério, tirou fotografias na hora do enterro.
Sim, e daí? É proibido? O senhor por acaso vai me proibir?
- Talvez. Talvez também vou lhe largar a mão na cara. Fui me
aproximando ainda mais. Ergueu-se apavorado, recuou, derrubou a cadeira, colocou um dinheiro em cima da mesa e disse:
O senhor vai se arrepender!
Suma daqui! E já!
À medida que eu ia me aproximando ele ia recuando de costas. Depois virou-se e saiu. Um garçom jovem apareceu.
Algum problema, cavalheiro?
Não, tudo em ordem disse eu. É amigo meu, infelizmente
estava com muita pressa.
- Ah - fez o garçom, embolsou o dinheiro e começou a tirar a mesa. Onde posso telefonar?
Eu lhe mostro. Levou-me a uma cabina perto do vestiário.
Liguei para a polícia e convencido de que não iria encontrá-lo, perguntei por Sondersen, o comissário-chefe. Queria contar à polícia a história daquele desconhecido, de preferência a alguém que eu conhecesse. Como previ, Sondersen não estava. Quando me identifiquei, deram-me logo seu número de casa.
O pessoal da mesa de telefone parecia me conhecer. Disquei para Sondersen, e logo consegui ligação. Ele mesmo atendeu. Ao longe ouvi música. Greshwin.
Sinto muito incomodá-lo...
O senhor não incomoda, sr. Norton. O que houve?
287Mas a música... O senhor não estava vendo televisão? Não é um
concerto de Gershwin?
Não estou vendo televisão, não. É disco. Eu e minha mulher
gostamos muito de Gershwin disse o especialista em homicídios. Mas
principalmente Gershwin, Estávamos ouvindo Porgy and Bess. Mas o que houve?
Contei-lhe tudo.
Hum fez ele no fim. Olha, eu vou avisar imediatamente aos
americanos já que o senhor tem certeza que ele é americano. Talvez com sua descrição, consigam fazer alguma coisa. E se ele aparecer de novo e o senhor tiver jeito de telefonar, ligue para cá.
Obrigado, sr. Sondersen.
Não tem de quê. Venha nos ver qualquer dia, Sr. Norton.
Com muito prazer. Agora vem Bess, you is my woman, não é?
É. Mais alguma coisa, sr. Norton?
Agradeci, pendurei o fone, saí da cabina e voltei à “Sala das Carpas”, para junto da Ruth que me olhava assustada.
O que houve? Por que demorou tanto?
Enquanto me sentava, contei o que tinha feito.
A coisa não está me cheirando bem disse ela. E ainda por
cima um americano, e o senhor e a sra. Moran vêm de Beverly Hills.
O velho garçom veio se arrastando. Pedimos café e conhaque.
Agora mesmo disse ele.
O que queria dizer quando afirmou que eu e a sra. Moran somos
de Beverly Hills?
Bem eu... eu realmente não quero ser indiscreta, sr. Norton, mas
o senhor mesmo me disse que a sra. Moran nem sempre se chamou assim, e que também não nasceu na América. Pelas revistas, sei que ela se nega a revelar o nome do pai de Babs. Pensei que talvez...
Não vejo nenhuma relação disse eu, pensando que havia relação
sim. A sra. Moran na verdade se chama Suzanne Mankow. Nasceu em
Berlim em 1935. Há dez anos representava grandes papéis no Teatro Schiller,
mas era conhecida apenas em Berlim. O garçom trouxe o café, cálices e
uma garrafa de conhaque Martell. Sorrindo amavelmente e arquejando um pouco, arrumou tudo e saiu.
Ruth ergueu seu cálice e fez um brinde.
Bebemos.
E depois? perguntou ela.
Depois uma companhia americana de cinema veio para Berlim, a
SEVEN STARS, para a qual a sra. Moran trabalha até hoje. Estavam rodando um filme passado quase todo em Berlim, e procuravam uma artista alemã para um dos papéis principais. O protagonista era um astro da sociedade, de nome Romero Rettland.
- Ele, é?
288Exatamente.
Um grande artista. Ruth tomava seu café. Uma figura
deslumbrante.
- É.
Devo ter visto no mínimo uma dúzia de filmes seus, alguns até
mais de uma vez. Era um grande astro! Por que não se ouve mais falar nele?
É uma história muito triste disse eu. Naquela época ele
trabalhava em Berlim. Fizeram uma propaganda imensa à procura de uma artista alemã. A Sylvia, que então ainda se ohamava Suzanne Mankow, teve sorte. Foi escolhida. Em seu primeiro filme ainda trabalhou com o nome de Suzanne Mankow. O filme foi um sucesso! Todos estavam encantados com a artista alemã, principalmente Joe Gintzburger. Ele já fizera a fama de muitos artistas. Romero Rettland ficou entusiasmadíssimo. Conseguiram convencer a Suzanne de seguir imediatamente para Hollywood. Ela foi. Nos primeiros meses trabalhou muito, estudou inglês, tomou aulas de arte dramática e tudo mais.’.. Nove meses depois nascia Babs.
Desde então ela se nega a dizer quem é o pai?
Um truque do departamento de publicidade.
Será? Não poderia Rettland ser o pai?
Muitos já levantaram esta hipótese disse eu Mas não é. Não
pode ser.
v Por que não?
A sra. Moran (Suzanne já tinha mudado de nome) apresentou
provas..
Que provas?
O atestado de um médico de Berlim, declarando que Suzanne
Mankow o havia procurado antes da chegada da SEVEN STARS a Berlim, e que na época ela jà estava grávida.
E ela pediu esses atestatos numa época em que ainda ignorava que
uma companhia de cinema americano viria a Berlim e que...
Claro que não! Pediu-os depois, quando a criança já tinha nascido
e Rettland afirmava ser o pai.
Eu entendo.
- São atestados que excluíam inteiramente a paternidade de Rettland.
Por que fazia ela tanta questão disso?
Não sei ao certo. Me parece que logo depois de chegar a Hollywood houve qualquer desavença séria com Rettland... nem a mim ela contou direito o que. Sei apenas que se recusou terminantemente a fazer qualquer outro filme com ele.
E a SEVEN STARS atendeu ao pedido de uma alemã inteiramente
desconhecida?
Naquela época ela já não era mais desconhecida. Além disso,
Romero Rettland, que havia rodado tantos filmes importantes com a SEVEN STARS, foi perdendo o prestígio. Começou com um escândalo duplo, trapaça em jogo e sedução de menor.
289A não ser as poderosas sociedades femininas, todas as pessoas que se prezam têm a obrigação de apoiar grupos minoritários, não é?
De quem o senhor está falando? perguntou a Ruth meio irritada.
Dos grupos minoritários dos milionários. Os milionários da SEVEN STARS. Ruth deu uma curta gargalhada. Os protestos contra
Romero Rettland foram se tornando cada vez mais veementes, assim como as demonstrações de solidariedade para com a injustiçada SEVEN STARS. Joe Gintzburger não teve outra saída senão despedir seu maior sucesso de bilheteria.
E o que foi feito dele?
Arruinou-se. Neste ramo isso é muito rápido. Tóxico. Mulheres.
Bebida. Coisa pior ainda. Devia ouvir uma vez Joe Gintzburger falar sobre esse tema! Foi à custa de tanto esforço e dinheiro que ele conseguira fazer um astro de Rettland e este acabou escarrando na mão que lhe deu de comer. Rettland fez mais um ou dois filmes sem importância para companhias pequenas, depois conseguiu aparecer na televisão, algumas vezes, mas logo submergiu. Foi o que me contaram. Naquela época ainda não conhecia a sra. Moran; ainda não tinha ido para os Estados Unidos. Depois apareceu várias vezes em casa da Sylvia, pedindo dinheiro.
E ela dava? perguntou a Ruth muito interessada.
Sempre. Mais tarde, no entanto, ele começou a dar entrevistas
escandalosas, insistindo sobre sua paternidade. Quando apareceu mais uma vez, a sra. Moran o botou para fora. Na verdade nem sei se ainda está vivo. É um ramo inclemente, Hollywood, uma cidade impiedosa. Talvez ele até esteja morto e ninguém se importa.
Que idade teria se fosse vivo?
Uns sessenta.
E o médico?
Que médico?
O que forneceu os atestados em Berlim?
Aquele! Já morreu; há muito tempo.
Há quanto?
A sra. Moran me contou que faleceu uns seis meses depois de dar
aqueles atestados disse eu, e ficamos olhando um para o outro. Tenho
certeza que ambos pensávamos a mesma coisa. E uma idéia estranha (não importa partindo de quem), insistirem que a Babs seja o fruto do amor e a mãe sempre se negando a revelar o nome do pai, não acha, sr. Juiz?
290Levei a Ruth para casa de táxi. Tinha começado a garoar; o motorista andava com muito cuidado pois a chuva que caía, logo se transformava em gelo. Fazia muito frio naquela noite. Ruth estava sentada a meu lado segurando o raminho de flores. Numa curva ela foi jogada contra mim.
Desculpe - disse, e logo se ajeitou em seu canto.
Tínhamos conversado sobre tanta coisa naquela noite, com tanta intimidade... Agora estávamos mudos e pelo que dizia respeito à Ruth, éramos inteiramente estranhos. À luz das lâmpadas por onde passávamos, pude ver seu rosto. Estava sombrio. Talvez ela esteja achando que se excedeu esta noite, abrindo-se comigo.
O chofer ligara o rádio.
Devia ser AFN, a emissora do soldado americano. Negros cantavam spirituals. Ouvi Nobody Knows the trouble I see, nobody knows but Jesus...
Ouvia também os pingos da chuva que batiam no teto do carro como se fossem pedras de gelo. Depois de algum tempo eu disse:
Posso ir à clínica amanhã às oito?
Claro, sr. Norton. Pode ir quando quiser...
Foi só o que falamos. O carro parou diante da entrada de um enorme bloco de apartamentos, perto da Casa de Saúde Sofia. Ajudei a Ruth a saltar, acompanhei-a até a porta, pois o chão estava muito escorregadio.
“Ninguém conhece a dor...” disse ela.
Como?
Tirou uma chave da bolsa e abriu o portão.
Aquilo que os negros cantaram: “Ninguém conhece a dor que eu
vejo, ninguém a conhece, a não ser Jesus.”
Conheço a canção.
É muita dor disse ela distraída. Virou-se e foi andando.
Hei! fui correndo atrás dela. Para onde vai?
Ora, eu ia passando da minha casa...
Ri, mas ela continuou séria.
Disse que lhe agradecia a noite agradável, quis beijar-lhe a mão, mas ela a retirou bruscamente.
Não. Deixe disto, sr. Norton! Boa noite Abriu a porta de vidro
opaco estriado e entrou rápido; fechou-a novamente sem olhar para mim. Fiquei em pé imóvel. A luz acendeu no corredor; ouvi seus passos. Uma porta bateu; provavelmente a do elevador... Depois de alguns minutos a luz do corredor apagou.
Voltei para o táxi, me instalei no fundo do carro e dei o endereço do hotel ao motorista. Os negros ainda cantavam quando saltei na porta do BRISTOL. Paguei, o táxi partiu. Tive que tocar a campanhia, pois a porta já
291estava trancada. Um porteiro da noite, com cara de sono, abriu. Eu lhe dei uma gorjeta, já não mais exagerada e ele me deu boa noite... Fui andando até o elevador, subi ao terceiro andar onde ficava meu quarto, o 311. Desci o corredor pensando por que motivo Ruth no fim estivera tão mudada, mas não encontrei explicação.
Abri a porta, tranquei-a novamente por dentro, acendi a luz na entrada, entrei no quarto onde também acendi a luz. Numa poltrona ao lado da televisão estava aquele sujeito pálido de olhar desvairado, que vinha me seguindo o dia inteiro. Segurava uma enorme pistola na mão. Ela apresentava um brilho preto-azulado e estava apontada diretamente para minha barriga.
Que besteira é essa?
Cale a boca! Ele levantou e veio se encaminhando para mim.
Mãos para o alto! Vire para a parede, a cabeça baixa!
Você deve estar é maluco, seu idiota.. comecei eu. O cano da
pistola se enfiou no meu abdome. Vi a expressão em seu olhos e fui me virando obediente, fazendo tudo que ele pedia. Tudo se passou exatamente como naqueles filmes em série da televisão. Deve ter visto muitos deles, pensei eu, quando ele começou a me apalpar à procura de uma arma. Não encontrou nada. Nunca na vida tive arma.
Okay. Você está em ordem disse ele. Até o tom era de filme
de mocinho. Deu alguns passos para trás. Vire-se! - fez sinal com o
trabuco. Ali! Sente ali onde eu estava. Nada de truques, percebeu?
Nenhum pio. Do contrário acabou-se!
Fui até a poltrona e me sentei. Ao lado da poltrona havia uma porta de vidro que dava para um pequeno balcão.
O sujeito veio andando na minha direção. Com a mão livre se coçava, apertando os negócios dele. Pelo jeito deve é estar com carangos. E eu sentado aqui onde ele estava há pouco. De repente, não é que ele mete o dedo na alça da pistola e começa a rodar?
Pare com isto! disse eu. Daqui a pouco este troço dispara!
- Yeah?
Este sem dúvida está saturado de filmes de Humphrey Bogart, pensei eu. Imitava-o principalmente na fala. Mal abriu a boca; mas era uma imitação muito grotesca.
A mim é que você vem, dizer uma coisa dessas! Uso isso desde
criança, seu filho da mãe.
Isto mesmo, Humphrey Bogart.
292Só falávamos inglês. Pelo tom e pelo que dizia, ele devia estar me tratando de você, embora em inglês não haja distinção entre o tratamento você e senhor, é tudo you. Continuarei pois a usar os dois tratamentos, dependendo do conteúdo de nosso diálogo.
Vê se tira este trabuco da minha frente! - disse eu.
Nervosinho, hein? Ali no restaurante você era aquele valentão e
agora está de calças cheias. Dizendo isso, a pistola lhe escorregou do dedo
como era de esperar, e caiu no chão. O suor me brotava da testa. O sujeito se sentou na cama, lívido de susto. Seus joelhos batiam.
Se isto tivesse disparado...
Tentou levantar, mas as pernas estavam bambas e ele caiu novamente na cama. Não agüentava de pé. Começou a tremer como um velho beberrão às vésperas de um ataque de delirium tremens. Me lembrei do técnico de som lá no pequeno estúdio de Monte-Carlo, que realmente havia morrido de delirium tremens, mas cujas mãos naquela noite estavam firmes e calmas.
Eu... eu sinto muito, sr. Norton.
Sr. Norton!
Aparentemente ele pensava que aquele era meu nome. Tomara. Neste caso minha suspeita tinha sido falsa.
Estou me sentindo tão mal. O senhor não tem um gole de uísque?
Não.
Nem nada parecido?
Nada. Abaixei-me para levantar a pistola.
Obrigado disse ele, até quando viu sua pistola na minha mão,
meio virada para ele. Examinei. Santo Deus, ela estava destravada! Travei-a rapidamente.
Tenho que vomitar disse ele. Ergueu-se e foi cambaleando até o
banheiro... A porta se fechou. Ouvi os ruídos característicos.
Agi rapidamente.
Fui até o telefone que estava na mesinha ao lado da cama, disquei para Sondersen, o comissário-chefe. O número estava num pedaço de papel no bolso do meu paletó. Tocou algum tempo. Tomara que ele ainda vomite bastante, pensei eu. Sondersen atendeu. Quase se desculpando, disse que tinha acabado de se deitar.
O sujeito voltou?
Voltou.
Onde está?
No meu quarto. Trezentos e trinta e um. HOTEL BRISTOL.
Dessa vez não está de máquina, mas de canhão.
E como está conseguindo falar comigo?
- Ele agora está vomitando.
Está o quê... Não importa. Segure-o enquanto puder. Converse
com ele. Ele deve estar querendo alguma coisa. Vou ligar já para os americanos, e para o pessoal também. Vamos até aí.
293Depressa, por favor.
Desliguei. Os ruídos no banheiro continuavam. Já estava começando a me sentir mal. Finalmente ele reapareceu, o rosto cinzento, olheiras verdes. Caiu em cima da cama arquejando. Sujeito mais estranho aquele!
Levantei-me, fui até o banheiro, para ver se tudo estava limpo. Ele até queimara um pedaço de papel higiênico para tirar o cheiro. Lavou a boca no chuveiro por cima da banheira; ainda pingava. Deve ter sido a boca, pensei eu. Os dois copos de escovar dentes ainda estavam fechados com papel estanho.
Apertei o registro do chuveiro. Voltei para o quarto. Ele estava deitado na cama se coçando e beliscando embaixo da barriga.
O que é?
Cinta de hérnia.
O quê? fiquei olhando perplexo para ele. Afinal tudo tem seus
limites!
Porcaria de cinta! Me disseram que era a melhor. Ainda acabo
enlouquecendo. O senhor tem idéia como uma cinta dessas aperta, coça e machuca?
Não chora!
Isto, vá se divertindo às minhas custas. Vá, aproveite. O senhor
não sofre de hérnia?
Não. E se sofresse mandaria operar. Hoje em dia não é nada.
Que conversa!
Não é nada! disse ele se lastimando Sabe quantos por cento
morrem de uma operação destas?
Ninguém.
- É porque o senhor não sabe. Mas eu sei. É uma das operações mais perigosas! Tenho um amigo que entende disso. Não opere, diz ele. E não
opero mesmo. Prefiro agüentar a vida inteira essa porcaria de cinta.
Deixei-o tagarelar. Quanto mais, melhor. Os americanos e a polícia precisavam de tempo para chegarem até aqui.
E no verão, no calor! é de ficar maluco.
Que idade o senhor tem?
Quarenta e seis.
Há quanto tempo já sofre de hérnia? Tempo... Tempo era
tudo que eu precisava.
Há vinte e seis anos.
.:: - Hà.....;. :,’;
...Beisebol.
A conversa tinha que continuar. Portanto...
O senhor jogava beisebol?
Não acredita? Começou então a chorar, sr. Juiz. Juro que
chorou. Ninguém acredita. Nenhum filho da mãe acredita! E eu era o
melhor goleiro, o melhor extrema da equipe.
294Que equipe?
Da universidade.
De qual?
Não digo.
Por que não?
Não lhe interessa. De qualquer maneira o senhor pode acreditar
que fui um dos melhores jogadores. A hérnia vem daí. Sempre quis fazer parte dos New York Yankees. Era meu sonho. Teria conseguido.
E por que não dos Giants’] Tempo... Tempo!
Os Yankees são mil vezes melhores. Joe Di Maggio fez parte dos
Yankees. Meu idolo. O marido da Marilyn Monroe. Meu Deus, aquela mulher! Mas eu com minha hérnia...
O que foi que o senhor estudou?
Direito.
Não me diga que é advogado?
Não. Tive que interromper os estudos. Faltou dinheiro. ’-
Lamento, Como é, melhorou?
Aquiesceu.
Posso ficar deitado mais um pouco? Puxou a gravata, abriu o
botão do colarinho. Minha cabeça está limpa. Lavei ontem. ’”’
Como foi que entrou aqui?
Pela janela. Por cima do balcão.
A janela está fechada.
Agora está. Quando cheguei estava entreaberta. Deve ter sido a
arrumadeira. Entrei pelo saguão, subi pelo elevador. Seu quarto é o último, depois só tem o cômodo onde fica o garçom do andar. Entrei por lá e fui de balcão em balcão, por fora da parede divisória.
O senhor está... no terceiro andar.
Não tem nada. Não tenho vertigem de altura. Já fiz coisa muito
mais arriscada.
Como sabia o número do meu quarto?
Sei um monte de coisas a seu respeito, Philip Kaven - respondeu
ele.
Não gostei.
Não me chamo Kaven. Meu nome é Norton.
É uma merda! Você é Philip Kaven o sujeito que anda com a
Sylvia Moran. Lá em Paris você teve uma briga com o fotógrafo no pátio de uma Casa de Saúde.
295Li aquela noticia. Não entendo grande coisa de francês. Mas deu para pegar.
Você deve estar de miolo mole disse eu, mas não me sentia nada
bem. Quem era aquele sujeito? De onde ele sabia aquilo tudo?
Li também a retratação. Toda aquela besteira da governanta doente, que foi levada de avião para Madrid. E por que você estava em Nurenberg naquela merda de cemitério, no enterro daquele garoto, e saiu para comer à noite com aquela doutora, se a governanta está em Madrid? Por que você está
lá com ela? O que faz você em Nurenberg? Me olhava novamente com
aquele olhar desvairado. Via-se que ele estava se sentindo melhor. Como teria ele encontrado minha pista? Quem era ele afinal?
E você, o que fazia em Paris? perguntei eu.
Em Paris? Em Paris por quê? perguntou ele como um idiota.
Um idiota muito perigoso.
Você não diz que leu o jornal com a estória do amante de Sylvia
Moran?
Com a sua estória. A estória de Philip Kaven.
Eu não sou Kaven. Eu me chamo Norton. Pare com essa besteira!
Besteira disse ele de repente refletindo. Você acredita então
que só porque mete uns óculos em cima do nariz ninguém mais o reconhece? Pode ser que ninguém o reconheça... mas eu, eu sei que você é Philip Kaven. Foi um amigo que me disse. Disse também que você agora usava óculos, para não ser reconhecido em Nurenberg.
Onde foi que seu amigo lhe disse isto, em Paris?
Eu não estive em Paris.
Aonde é que... Quem é você afinal?
- Por acaso acha que vou lhe dizer? Também não foi em Nurenberg. Foi... foi numa outra cidade; meu amigo ligou para mim.
De Paris insisti eu, porque estava quebrando a cabeça para
descobrir através de quem esse sujeito sabia de tudo aquilo. Logo me lembrei daquele canalha, o advogado espertalhão, o pançudo Lejeune. Daquele eu não duvidava nada. Mas por outro lado também, foi ele quem praticamente me obrigou a vir para Nurenberg, para que não transparecesse o que estava acontecendo com a Babs. Onde estava a lógica? Ou então Joe, aquele velho cretino. Ou Marone. Ou o dr. Wolken, ou Clarissa, ou Rod, ou...
Meus pensamentos voavam. Era tudo loucura. Nenhum deles lucrava alguma coisa se a verdade viesse à tona. Todos estavam combinados e eu era obrigado a fazer o máximo para impedir que a estória da Babs fosse descoberta. Dr. Wolken não podia ser, era muito idiota para isso. Clarissa? Talvez. Por que eu não a derrubara quando ela me declarou seu amor? Ciúme é um motivo muito forte. Com a Clarissa aquilo já devia ter se transformado em ódio. É, pensei eu, a Clarissa é a única pessoa que veria alegremente isto se transformar num escândalo universal, a Sylvia ficar liquidada e eu também. E o amor à Babs? É mesmo. Falou nisso tantas vezes. Foram bons tempos
296aqueles em que acreditava em tudo que me diziam. Digamos então que foi a Clarissa. Vejo que já enchi mais de uma página, em considerações. Todas me vieram na fração de um segundo, enquanto eu pronunciei as palavras: Em Paris.
Em Paris, sim disse o sujeito esticado na cama. Se foi a Clarissa
que denunciou tudo, ela pode ter ligado de Paris. Foi meu amigo quem
também me enviou o segundo jornal daquela cidade.
Então pode esquecer a Clarissa, pensei eu. O primeiro jornal ela poderia ter mandado, pois ainda esttava em Paris. Quando saiu o segundo, ela já estava em Madrid na clínica do dr. Arias Salmerón. Portanto, não pode ter enviado o segundo. Aquele jornaleco não circula em Madrid. E se ela tivesse um cúmplice em Paris? Ou uma cúmplice? De repente me lembrei da Suzy. Estava com tanto ódio de mim, por tê-la largado assim sem mais nem menos. Quem sabe se em vez da Clarissa era Suzy? Mas será que ela realmente me odiava? Difícil; muito difícil. No fundo eu achava a Clarissa mais capaz de uma sujeira dessas. Quem sabe, podia ser uma das duas. E daí?
Não sou Philip Kaven repeti eu mais uma vez. Sou Philip
Norton.
Claro disse o sujeito. Você é Philip Norton, meu amigo me
tapeou, ou se enganou, e eu vim para Nurenberg à toa; foi à toa que tirei as fotografias lá no cemitério. Certamente todas as redações de jornais e editoras de revistas vão me escorraçar se eu lhes mostrar as fotos do sr. Norton, e lhes garantir que são fotografias do sr. Kaven. Sem dúvida vão morrer de rir. Eu realmente não tenho sorte. Pensei que pudesse lhe vender as fotos, porque você, afinal, é Philip Kaven e não deve fazer questão de escândalo... de mais um escândalo! Aos poucos as pessoas vão ficando confusas quando lerem... e agora também, virem... tudo que você faz, os lugares todos em que se mete. Eu pensei então que finalmente conseguiria alguns trocados, pois não lhe resta outra saída a não ser colaborar comigo.
Não faço muita fé em colaboração disse eu.
Como não?
Vou lhe dizer o que é colaboração falei, pensando comigo que
já devia estar na hora dos americanos e da polícia americana chegarem. Como eles já deviam estar informados por Sondersen a respeito da verdade, ou iriam ser informados, dificilmente haveria o perigo de que o sujeito, depois de preso, ainda pudesse fazer alguma coisa com as fotos tiradas com a Minox. Seriam confiscadas sem dúvida. Falar ele podia, mas aí era só eu
imaginar o que responder na hora. Colaboração é isso: eu lhe dou meu
relógio, e você me diz que horas tem.
Muito engraçado disse ele. Quer dizer então que você não
vai comprar as minhas fotos?
Claro que não. Pode ir procurar suas redações e editoras, seu
idiota!
Ficou logo tão inseguro que se pôs a pensar. Finalmente disse:
297Evidente que a máquina e os filmes não estão aqui comigo.
Pouco me importa onde eles estão disse eu tirando a carga da
pistola e também a bala do cano. Joguei a arma na cama. E agora some!
Não quero mais ver a sua cara! Pode fazer o que quiser, seu cretino.
Estação Central disse ele. Nos escaninhos trancados. É ali
que a máquina está.
- Se você não desaparecer nesse instante, chamo a policia disse
eu olhando para a rua, pela cortina entreaberta das portas de vidro que davam para o balcão. Lá embaixo estavam alguns carros estacionados. Peguei o fone.
O sujeito levantou-se de um salto e pegou na arma.
Muito bem disse ele mas eu posso jurar que ele estava
completamente perdido, sem saber se eu blefava ou não. Como você
quiser. Então eu vou sair por aí arriscando a ser posto para fora com as minhas fotos. Uma máquina dessas tira grandes fotografias! É uma pena eu ter me enganado. amigo ter se enganado retruquei eu.
É disse ele. Então eu vou. Mas não deu nenhum passo.
Ande logo!
Vou mesmo. E nada de se mexer.
Embora ficassem ainda alguns problemas por solucionar, como por exemplo, quem era o responsável por essa droga toda, achei que podia arriscar. Tirei o fone do gancho e disse em voz alta:
Polícia... urgente: um um zero. Disquei o um. O
sujeito pegou o capote que havia caído no chão e foi correndo até a porta. Abriu a porta precipitadamente, bateu-a com um estrondo, e ouvi-o descer o corredor, em direção ao elevador. Saí depressa para o balcão, acendi um fósforo e fiz sinal com ele. Um dos carros estacionados debaixo das árvores piscou imediatamente com o farol.
Fiquei parado no balcão para apreciar o final do capítulo... não do último, isso eu tinha certeza. Logo depois o sujeito apareceu. Assim que saiu, os faróis de quatro carros se acenderam de repente. Tudo foi ultra-rápido. Os carros se aproximaram de todos os lados da entrada do hotel. O sujeito ficou no meio dos focos de luz. Por um instante permaneceu como que paralisado, depois tentou fugir se esgueirando pela parede. Homens saltaram dos carros, à paisana e de uniformes. Ele correu direto para os braços de dois deles. Nem conseguiu se defender (a hérnia). Foi levado para um dos carros. Vi alguns homens acenando, e acenei de volta. Entre eles reconheci Sondersen, o comissário-chefe. Embora o caso não fosse de seu setor, tinha levantado da cama e vindo pessoalmente ajudar.
298Ligo para o senhor daqui a pouco! gritou ele.
Está certo! gritei de volta, vendo-o entrar no carro.
Os carros partiram em fila. Em um minuto voltou o silêncio da rua deserta, e só aí eu reparei que continuava a garoar e que fazia muito frio. Àluz das lâmpadas, vi a rua coberta por fina camada de gelo. Ia voltar para o quarto pois sentia frio, minha cabeça estava confusa. Quem seria aquele sujeito? O que ia acontecer agora? A quem eu devia comunicar o ocorrido? Tinha que comunicar a alguém. Quem sabe se o sujeito já passara as fotos adiante? Neste caso ele não teria vindo aqui...
A cantoria foi aumentando. Vi um velhinho inteiramente bêbedo cambaleando por entre as árvores, de uma a outra, do outro lado da rua. O velho cantava com voz forte mas trêmula de ancião. Distínguia suas palavras perfeitamente, pois já era uma e meia da manhã (tinha acabado de ver no meu relógio) e não se ouvia mais nenhum outro ruído na cidade. Ele cantava uma velha canção de cerveja: “Oh Suzanna, como é bela esta vida, oh Suzanna, quão bela a vida é!
Sinto muito se estou incomodando, mas eu disse que ia ligar por
causa daquele sujeito falou a voz do comissário-chefe ao meu ouvido,
depois de ter pego o fone com algum esforço.
Ora, sr. Sondersen, eu lhe agradeço. Olhei para o relógio; vi que
eram 5h07min da manhã. Lá fora ouvia a chuva cair violenta, e a voz do comissário:
Foi tudo muito rápido, sr. Norton, pois graças a Deus o sujeito
é
velho conhecido dos americanos.
- Conhecido?
E muito!
encontrei o botão da lâmpada da mesinha de cabeceira e apertei-o.; A luz acendeu. Me focou os olhos. A cabeça doia. Talvez eu fique doente, pensei eu, gripe ou qualquer coisa parecida. Gostaria de ficar doente. Só um pouquinho de febre; nada de grave. Apenas o bastante para poder ficar deitado, sem ter que me preocupar com nada...
O nome do homem é Roger Marne.
Que homem?... Ah, já sei. Aquela idéia de doença não ia dar em nada mesmo. Me recostei. Teria que continuar cambaleando por dentro deste túnel sem fim, na esperança de a cada passo me aproximar mais da saída, e poder emergir dele novamente. No entanto eu sabia que o túnel não tinha saída. Era um túnel fechado, circular, sabia disso. Sabia também que ia acabar morrendo dentro dele. Estava me sentindo muito mal naquela manhã. Roger Marne repeti eu, e a chuva tamborilava no balcão lá fora.
Ah, se eu não precisasse levantar mais!
Pegamos também a máquina. E os filmes. Fomos até a Estação Central, eu e os americanos.
299Deram-me as fotografias e a máquina.
As fotos estão à sua disposição.
Obrigado, sr. Sondersen disse eu. É muito gentil de sua
parte, eu lhe agradeço milhões...
Ora, deixe disso, sr. Norton disse com a voz calma. O
senhor sabe, eu... Nós faremos tudo que for possível para lhe ajudar.
Eu sei. É exatamente por isso, que eu lhes agradeço Estava me
sentindo um pouco melhor. Quem é Roger Marne? Algum louco?
Quando quer.
Como?
Quando não quer, não é.
Não entendo.
Na minha profissão conhecemos o tipo de simulador que em inglês
é chamado de clown (palhaço). É o homem que de acordo com a situação em que se encontra, se faz de maluco, ferido, “bicha”, pobre coitado, chorão, mas também de super-homem, berrador histérico... existem centenas de tipos. Marne é um sujeito destes. A hérnia e a cinta são autênticas. Muito bom da cabeça ele também não é! Os psiquiatras que o examinaram nunca chegaram a uma conclusão.
Ele já foi submetido a exame alguma vez?
Dez vezes, no mínimo. Por diversos psiquiatras. Já teve que se
apresentar diante do tribunal quatro vezes.
Por que motivo? Eu me sentei na cama.
Chantagem, trapaça em jogo, receptador, chefe de um grupo de
call-girls.
Call-girls! Aquele sujeito?
Eu também não quis acreditar. Mas soube pelos americanos. Parece impossível? Mas por que um sujeito destes esta atrás do senhor”]
É o que eu gostaria de saber disse eu. Como veio Marne parar
em Nurenberg?
Isto é o que os americanos gostariam de saber. Toda vez, sr.
Norton, que Marne é pego, seus advogados pedem um parecer psiquiátrico. Nunca chegaram a uma conclusão se ele é totalmente irresponsável ou apenas um simulador meio “pancada”. Em dois dos três pareceres ele foi sempre classificado como irresponsável; por isso, apesar de tudo que ele tem feito, nunca foi para a cadeia, sempre para um manicômio. Sempre conseguiu fugir.
Aonde isto?
Na Califórnia. Marne é de Los Angeles. Seu campo de ação, com
exceção de uma caso ocorrido em Bonn, sempre foi Los Angeles e suas redondezas, Beverly Hills, Hollywodd, e assim por diante. Os manicômios é que ficam mais afastados. Da última vez que conseguiu fugir, há uns três anos e meio, veio para a Europa. Deve ter documentos falsos (como eu, me passou pela cabeça) Não sabemos o que ele vem fazendo na Europa; os americanos também não. Só o caso de Bonn.
300Que caso foi este?
Não sei ao certo. Não me disseram, mas acho que foi qualquer
chantagem com homossexuais. Tinha gente graúda metida no meio, pois tudo foi encoberto, e Marne escapou mais uma vez. Agora os americanos estão querendo descobrir por onde ele andou depois. Mas querem manter tudo no maior sigilo por causa do caso de Bonn. Depois vão conseguir sua extradição, e ele volta para um manicômio. Os americanos não são muito a favor de uma denúncia, justamente por causa de Bonn, pois se o caso fosse julgado aqui na Alemanha, tudo viria à tona e...
Eu não posso apresentar queixa alguma disse eu. Só posso
dar graças a Deus se os americanos o trancafiarem direitinho.
Exatamente concordou Sondersen. De qualquer maneira os
filmes estão à sua disposição. Mesmo para o senhor é de grande importância descobrir como Marne achou sua pista... ou quem a indicou.
Exato.
Marne nunca dirá. Eu já tentei. Ele não diz uma única palavra...
de medo.
- Medo?
Ele tem medo de falar. Um medo incrível.
De quem?
Aí está disse Sondersen. De quem?
- Raios, que idéia é esta de me acordar agora? São cinco e vinte!
Rod quase perdeu a fala de raiva.
Eu estava de robe sentado na minha cama. A luz da mesinha de cabeceira, via minha imagem e parte do quarto, refletidos no vidro da porta do balcão, atrás do qual ainda pairava a escuridão da noite. A chuva aumentava cada vez mais.
A Babs morreu?
Não.
- Que foi então?
Contei o que tinha acontecido. Ouviu-me calado. Estava ansioso por sentir a reação de Rod, para descobrir se ele tinha qualquer ligação com o simulador. (Naquela época eu desconfiava de todo mundo, e achava tudo possível.) Não houve reação nenhuma. Rod apenas disse:
- Está tudo saindo errado.
Tudo o quê?
- Aqui também houve confusão.
301- O quê?...
O dr. Wolken se mandou.
- Wolken?
- Não foi o que eu disse, seu idiota? Você está surdo?
Quando foi isso?
Esta noite. Não há jeito de eu conseguir dormir. Há duas horas seu
amigo Lucien me acordou. O porteiro da noite. Achava que era importante e até que era mesmo.
Por que?
Queria me comunicar que o dr. Wolken tinha pago umas contas, e
que estava saindo com toda a bagagem. Na moita. Quando Lucien ligou, o dr. Wolken ainda se encontrava no saguão. O porteiro pensou que eu pudesse pegá-lo, mas Wolken foi mais esperto. E mais rápido. Quando cheguei embaixo, ele já tinha partido... afinal Lucien não podia segurá-lo. Saiu e pegou logo um táxi.
Foi embora por quê?
É o que nós gostaríamos de saber. Acordei todo mundo. Fizemos
uma reunião... Eu tinha acabado de voltar para a cama, estava começando a dormir, pronto... você liga. De repente ele riu.
O que foi agora?
Agora eu vou acordar Joe e todos os outros de novo para contar o que aconteceu a você. Coisa de louco!
O dr. Wolken não disse a ninguém para onde ia?
Dizer diretamente, não.
Como?
Ele não disse; perguntou pelo nome de um aeroporto.
Para onde vai então?
Ora, seu idiota, eu lá sei! Lucien também não sabe. Ele deu a Wolken o horário da IBÉRIA e depois...
Horário da onde?
- Da IBÉRIA.
As linhas aéreas espanholas?
É, por isso eu e os advogados vamos para o aeroporto daqui a uma
hora. Daqui a duas e meia, parte o primeiro avião para a Espanha. Talvez a gente pegue aquele desgraçado.
Para onde vai o avião?
Barcelona.
A que horas sai o primeiro vôo para Madrid?
Ao meio-dia e quinze. De Orly. Eu vou ficar esperando com
Lejeune.
De repente senti um calor subir dentro de mim.
Eu também vou.
Como?
302Vou para Paris com o primeiro avião que tiver.
Mas por quê?
Depois explico.
Por que não agora?
É muito complicado.
Clarissa está em Madrid disse Rod.
Exatamente.
Exatamente, por quê? De repente ouvi Rod respirar rápido.
Merda!
Merda, o quê?
Tinha esquecido completamente. Ainda vou acabar ficando maluco com essa história toda! Lucien contou que uma das telefonistas, disse a ele que à noite o dr. Wolken tinha ligado para a Espanha. Uma hora antes de partir.
Falou com quem?
Ele não sabe. Foi muito rápido. A ligação para a Espanha costuma levar uma eternidade. O dr. Wolken procurou a telefonista e pediu para falar da cabina. A telefonista fez a ligação.
Então ela deve ter anotado o número.
Anotou sim. Lucien me deu. Onde foi que eu meti? Ah, ra... um momento. Ouvia o zumbido da ligação. Pronto. ’Wolken falou para...
Madrid completei eu.
Isso mesmo. Como é que você sabe?
Para a clínica do dr. Salmerón, onde está a Clarissa.
Mas... por que, para Clarissa?... Eu não entendo.. gaguejou Rod.
Eu entendo. “
Então explica.
Depois. Em Paris. Clarissa e Wolken. Eles conseguiram. Juntos.
Escuta, por que você não se porta como uma pessoa normal, e conta logo o que está acontecendo?
Está acontecendo o diabo. Temos que pegar Wolken. Conseguir que ele não abra a boca. De qualquer jeito. A Clarissa também. Traga Joe para o aeroporto. Precisamos de tudo que é ajuda.
48
De seis horas diante servia-se o café da manhã no hotel BRISTOL. Antes de encomendá-lo tomei meu banho, fiz a barba, engraxei os sapatos.
303Era a única coisa que ainda me mantinha moralmente em pé. os sapatos limpos e brilhosos. Sou um esnobe, o que fazer, sr. Juiz?
Quando fui para a Casa de Saúde Sofia, já tinha parado de chover, mesmo assim o motorista xingava o tempo todo. pois as ruas estavam cobertas de gelo. Disse ao porteiro da noite (que àquela hora ainda estava de serviço) que voltaria em breve; que reservasse meu quarto. Levei apenas uma mala de fibra. Usava a roupa de meia-confecção que Lejeune havia comprado para mim na Gallerie Lafayette. O pior de tudo era a camisa. Coçava da gente ficar maluco. Não agüentava mais! Por isso, antes de sair. liguei para Rod pedindo que levasse minha mala de couro de porco com algumas roupas para o aeroporto. Não conseguia me acostumar a esta vida de privações. Antes de ir para a Casa de Saúde, do hotel ainda, dei uma olhada nos horários de vôo. Havia um avião para Paris às 10h15min. O porteiro reser vou um lugar para mim. Dava folgado!
Antes das oito cheguei à Casa de Saúde. Esperei pela Ruth, que Chegou muito amável, mas séria... não estava tão esquisita, fechada como na noite anterior. Foi ver a Babs, ouviu o relatório do médico da noite, examinou a criança, e só depois eu pude entrar.
Está bem melhor que ontem disse a Ruth feliz. Temperatura,
trinta e oito e sete. Dormiu bem; não vomitou.
Olhei para a criança deitada ali de olhos fechados, e disse:
E as contrações nervosas do rosto, do corpo todo?
O senhor acha que isso pode passar em dois dias, sr. Norton? Ainda vai continuar por algum tempo. Mas está melhorando.
Tenho que pegar um avião agora mesmo.
Pegar um avião?
É. Contei tudo a respeito de Roger Marne, que eu precisava ir a
Madrid, porque a Clarissa e Marne... desconfiava que houvesse qualquer ligação.
- E o dr. Wolken?
É o terceiro do grupo.
Olá, Phil disse a Babs de repente. Olhei para ela. Estava de
olhos abertos, o rosto retorcido numa expressão que devia exprimir um sorriso. Era horrível, mas não havia a menor dúvida que sorria. No mesmo instante a Ruth sorriu também.
Olá, Babs disse eu me inclinando por cima dela. A coisa vai
melhorando, hein?
Madrid não disse ela. Falava muito indistintamente. Será que
ouviu o que contei a Ruth? Ou só ouviu a palavra Madrid?
Você vai ficar bonitinha na cama, que eu volto logo. Quer que traga alguma coisa?
Nounours.
Há anos, para todo lugar que ia, carregava um ursinho. O pêlo já estava todo surrado, mas a Babs gostava dele. Devia estar no HOTEL LE MONDE.
304Tinha sido presente de Jean Gabin. Nounours, em francês, é diminutivo de urso e era assim que a Babs chamava o ursinho.
Claro que eu trago nounours. Será que você não preferia um urso
novo, bonito?
Não. Nounours. Só gosto de nounours.
Muito bem disse eu. Muito bem. Babs falava alemão.
Porque, porque, porque o nounours... gaguejou ela. De repente,
de um instante a outro adormeceu. Respirava profundamente.
O urso disse eu para Ruth. Ela sonha com este urso. Na
França... Me calei porque reparei que a Ruth não tirava os olhos de
mim. O que houve?
Sr. Norton, precisa ligar para a sra. Moran, contar a ela que a Babs
melhorou. Só não lhe diga nada de que pode haver uma recaída. Ainda não podemos saber como a doença vai se desenrolar.
Pode deixar. Sorri, mas ela já estava novamente séria. Me
despedi logo em seguida, pois a médica disse que ia ver outras crianças. Saímos para o corredor. A Ruth evitava meu olhar. Pela janela, fitava o céu lá fora.
Mais alguns dias e vai começar a nevar. •
49
Vá procurar aquela porcaria de urso.
Por que? perguntou Bracken.
Porque preciso dele!
- Compro outro! Tenho coisa mais importante a fazer.
Não; tem que ser aquela porcaria velha e suja disse eu Deve
estar jogado em qualquer canto do quarto da Babs.
Ora homem, vá à...
Você também. De repente gritei, sei lá por que: Se você não trouxer o nounours, eu vou ai procurá-lo. Mesmo que com isso estrague tudo e percamos a pista do Wolken.
- Mais um que ficou maluco! disse Rod. Também não precisa
se cagar logo, seu histérico! Pode deixar que vou procurar aquela droga de
urso, e levo junto.
Penduramos os fones sem nos despedir. Eu estava no aeroporto de Nurenberg. Enquanto falava, os passageiros da LUFTHANSA, estavam sendo chamados pela última vez para o vôo 482 a Paris. Paguei o telefonema e peguei um daqueles carros para me levar até o avião. Iam justamente retirar a escada. As aeromoças e o comissário de bordo ficaram tão por conta, que não me dirigiram a palavra uma única vez durante o vôo.
305Só havia a classe turista; o avião estava com a lotação pela metade. Com os óculos sem grau, li um jornal de Nurenberg, e soube que no Vietnan, perto da velha cidade imperial de Hue, estavam se travando as lutas mais encarniçadas do ano... com um número incrível de vítimas de ambos os lados. Há trinta anos este país vive em guerra, pensei eu. Trinta anos! Depois me passou pela cabeça que dai a trinta anos a Babs ainda poderia continuar doente, precisando de cuidados médicos. Eu àquela altura estaria com sessenta anos. A Sylvia com sessenta e seis. E Ruth...
Em Orly encontrei Rod, Lejeune e Gintzburger. Fomos até o restaurante do aeroporto, tomar alguma coisa. Lejeune evidentemente fez grandes discursos, se gabando de sua eficiência. Uma nojeira! Ele fora eficiente, não havia dúvida, mas não deixava de ser nojento.
O dr. Wolken havia realmente reservado uma passagem no avião da IBÉRIA de 12h15min com destino a Madrid. Seu nome constava da lista; sua bagagem já havia sido despachada, mas ninguém sabia onde ele se encontrava. Lejeune tinha mandado seu pessoal procurá-lo, mas não o encontraram. Enquanto fazia seu relatório, Lejeune evidentemente devorava um almoço antecipado.
Quando não houver mais dúvida de que Wolken segue no avião
das 12h15min, o senhor, Bracken e maître Lejeune partem no jato da Sylvia disse Joe.
Ele está em Nurenberg.
Está lá fora em Orly. Mandei que viesse para cá, ainda essa noite,
quando soube da confusão toda disse Lejeune, a boca cheia de carne de
carneiro. Tinha pedido costeletas de carneiro com vagem, e uma montanha de batata frita.
- Onde está minha mala com o guarda-roupa Philip Kaven?
Debaixo da mesa disse Rod. Trouxe só porque você pediu.
E o urso também?
O urso também.
Levei a mala até o toalete, vesti minha roupa de missa, guardei a da GALLERIE LAFAYETTE, na mala de fibra... Estava feliz, sr. Juiz. feliz por ter me livrado daquela camisa áspera!
Guardei a mala num escaninho trancado, e voltei para o restaurante. Lejeune já estava na torta de chocolate com licor de ovo. Eu sabia que precisava ligar para a Sylvia, mas não conseguia. Mais tarde ligo, pensei, mais tarde um pouco...
Às 11h15min, começaram a chamar os passageiros para o vôo 871 da IBÉRIA para Madrid. Logo depois um rapaz se aproximou de nossa mesa dizendo:
Wolken já está indo para o avião. Está sendo revistado agora.
Rod, eu e Lejeune nos levantamos. Partimos.
306O vôo sobre os Pirineus foi agitado como sempre. Há muito isto não me afetava mais. O comandante Callaghan disse que daria um jeito para aterrissarmos em Barajas um quarto de hora antes do avião da IBÉRIA. Seria mais fácil para ficar de olho em Wolken e segui-lo.
Como está a Babs? perguntou o comandante.
Bem melhor.
Ótimo! Radiante voltou para a cabina. Ao aterrissarmos, notei
que durante a viagem toda vinha segurando o pequeno urso, sujo e surrado.
50
Estávamos em Madrid; era 8 de dezembro, dia que é feriado na Espanha. Tinha me esquecido completamente. É dia da Imaculada Conceição; todas as lojas e escritórios estavam fechados. Na época de abastado playboy, tinha estado aí umas vinte vezes; conhecia a cidade. Em Madrid fica a maior arena de touros da Espanha. Nunca assisti a nenhuma; a coisa me repugna, embora tanta gente diga que fica fascinada, hipnotizada, esquecendo inteiramente o lado bestial. Tourada? Não é coisa para mim! Estive aí muitas vezes por causa do turfe. Havia corridas todos os domingos de maio e junho, de meados de setembro até o início de novembro no hipódromo de Zarzuela, a oito quilômetros da cidade, no parque Casa de Campo. Ganhei vultosas quantias nestas corridas; perdi quantias mais vultosas ainda.
Estava contando isto a Rod e ao gordo Lejeune, quando acompanhávamos o táxi de Wolken, de Barajas para o centro da cidade. Nosso jato havia entrado numa tempestade e apesar de todos os esforços da tripulação, aterrissamos depois do avião da IBÉRIA. Pouco depois, com uma diferença muito pequena. Não podíamos perder o dr. Wolken de vista. Felizmente o aparelho viera lotado, e as formalidades na alfândega tinham demorado muito. De nossa parte não. Rod descobriu o dr. Wolken na alfândega; vimos de longe que ele trazia três malões. O funcionário da alfândega examinou todos três. Foi muito gentil. Aliás sempre são. O senhor pode não acreditar, sr. Juiz, mas o pessoal da alfândega em Barajas usa luvas brancas para tocar em sua bagagem! Deve ser para mostrar ao recém-chegado a dignidade e cortesia que caracterizam o povo espanhol. Apesar de toda dignidade e cortesia, no entanto, demorou algum tempo até revistarem os três malões entulhados de Wolken... Assim tivemos tempo para arrumar um táxi e segui-lo. Estávamos todos convencidos de que ele ia direto para a clínica do dr. Salmerón encontrar-se com a Clarissa, mas só queríamos pegá-lo ali. Era feriado; tinha pouco trânsito, sendo fácil portanto seguir o táxi. O que era difícil, é não ser notado por ele.
307Seguimos o tempo todo a uma certa distância, e no carro contei sobre a minha aversão a touradas. Rod disse que gostava delas. Ao chegarmos ao amplo Paseo de Ia Castellana, contei quantas vezes já jogara golfe e tênis em Madrid.
Sou membro do Clube Real de Puerto Hierro e do Clube de
Campo. Vinha também pescar aqui. Salmão, atum e trutas.
Salmão gordo? perguntou Lejeune.
Nunca vi tão gordo.
O advogado lambeu os beiços.
Em Moraleja, caçam-se pombos continuei eu Fica ao norte,
cerca de quinze quilômetros da cidade. Cacei muito. Também estive nas montanhas atrás de cabrito montes, veados e javalis.
Você’levou uma boa vida, hein? observou Rod.
É, também acho. Falava sem parar, sempre observando as
reações de Rod, pois ainda não tinha certeza se ele não era o amigo de Paris em quem falara Roger Marne que me havia fotografado em Nurenberg.
Aos poucos fui me convencendo de que ele nada tinha a ver com o caso. Então era Clarissa! Exatamente como eu imaginara. Por motivos óbvios. Clarissa, com a ajuda do dr. Wolken! O que pretendiam eles agora? Lejeune era astuto, finório, mas será que agora ele ainda podia nos tirar desta situação?
Atravessando a Avenida de José Antonio, chegamos ao Palácio National que tem atrás o imenso parque Campo del Mora, e ao sul a Celle de Segocia. Aí, segundo Rod, ficava a clinica do dr. Salmerón. Ele já estivera ai uma vez com Lejeune e quando trouxeram a Clarissa. O táxi do dr. Wolken tomou exatamente a direção da clinica.
Madrid teria um clima agradável se não ficasse perto das montanhas de Guadarrama. Por causa delas, o sol no verão é de um calor insuportável, e nos meses de inverno faz um frio de rachar. Tremia de frio apesar do capote.
Lá estava a clínica do dr. Salmerón.
Todos três falávamos espanhol regularmente bem. Rod pediu ao motorista que parasse. Parou a uns duzentos metros do táxi de Wolken. Este acabara de saltar; o motorista carregava as três pesadas malas para dentro da clínica. O dr. Wolken agia como se não desconfiasse de nada, como se fosse inocente. Nem olhou para trás.
Vou lá agora mesmo e quebro a cara daquele patife disse Rod.
Nada disso falou Lejeune. Por acaso está se sentindo tão corajoso por estarmos a três?
Sozinho também tenho coragem bastante resmungou Rod.
Coragem não se demonstra só com os punhos disse Lejeune.
Precisa de cabeça também.
Naquele momento fiquei satisfeito por Lejeune, aquele porco gorducho, ter vindo conosco. Esperamos até o motorista de Wolken partir...
308Esperamos mais dez minutos pois queríamos pegar Wolken em companhia de Clarissa. O tempo todo ouvia-se o repicar de sinos na igreja; dos poucos transeuntes, a maioria eram padres ou freiras. É coisa comum em Madrid.
Finalmente achamos que já era tempo de entrar. No hall, atrás de uma mesa branca, estava instalada uma beldade espanhola, de cabelos negros e olhar ardente. Cumprimentamos. Respondeu nosso cumprimento.
Somos... comecei eu.
Senor Kaven, Senor Bracken e Senor Lejeune disse ela.
Como sabe?
Acaba de chegar um Senor Wolken que avisou que os senhores
viriam logo depois; disse os nomes.
Eu e o Senor Bracken trouxemos um paciente para cá há alguns
dias disse Lejeune sem mostrar o menor espanto com o que tínhamos
acabado de ouvir.
Eu sei, Senor Lejeune, a senorita Geiringer. Está em quarto particular.
Precisamos falar com ela. É urgente.
O dr. Salmerón também precisa falar urgente com os senhores
disse a bonita moça (e por estranho que pareça, sr. Juiz, pela primeira vez na vida não pensei no que sempre pensava quando via uma mulher bonita. Havia muita coisa errada comigo!)
Como é que ele sabia que estávamos para chegar?
Isto eu não sei dizer. Ele apenas deixou instruções para que assim
que os senhores chegassem, fossem levados para sua sala.
A menininha continuava a falar na morte. Muitas vezes pedia o espelho, e olhando para ele dizia:
Não, eu não posso mais viver, tenho que morrer. Por favor, quero
morrer.
Que idade tinha ela?
- Nove anos, sr. Kaven disse o dr. Alfons Wolken de Winterthur,
impecavelmente vestido como sempre, com aqueles olhos azuis, rosto estreito, a barba grisalha.
O que tinha mesmo a menina?
Metástase nos ossos do crânio disse o dr. Wolken, se balançando nos calcanhares, destacando as palavras, erguendo e baixando a cabeça em ritmo certo.
- E?
- Os médicos da clínica de Zurique trataram dela durante três anos, cumpriram conscientemente sua obrigação e seu juramento, o que para mim já é em si uma contradição.
309No juramento de Hipócrates os médicos prometem manter a vida e diminuir o sofrimento, mas para mim, em tais casos, uma destas promessas exclui obviamente a outra, sr. Bracken. Depois sobreveio ! uma pneumonia. Esta... como aliás acontece em milhares de clinicas, em
casos semelhantes... não foi tratada, e a pobre criança acabou morrendo
disse o dr. Wolken de Winterthur.
Ele estava em pé na sala do dr. Salmerón. Se o senhor acha, sr. Juiz, que aquele professor particular da Babs mostrou qualquer sinal de sobressalto ou embaraço ao nos ver, sou obrigado a desiludi-lo. Nunca vi ninguém mais seguro, mais calmo e decidido.
Ora, besteira disse eu. A Babs não sofre de metástase nos
ossos do crânio. Ela está com meningoencefalite. Qual é a relação?
Aquela menina foi decaindo tanto, que no fim a gente se sentia mal
só de olhar para ela. Eu vi, sr. Kaven. Tinha sido aluna minha.
E o senhor se sentiu mal observou Rod.
Senti, sr. Bracken respondeu o dr. Wolken.
Sabe de uma coisa, se eu ficar olhando para o senhor muito tempo,
vou acabar me sentindo mal também, seu cretino desgraçado disse em
espanhol, Rod, o filho do Bronx, sr. Juiz. Onde quer que estivesse, até na Espanha ele conseguia se expressar perfeitamente mantendo-se sempre dentro do seu linguajar.
Meus senhores, por favor disse o dr. Salmerón. Era o único de
nós todos que estava sentado (atrás de uma mesa enorme sobre a qual estava uma santa que eu bem gostaria de possuir). O dr. Salmerón devia andar lá pelos cinqüenta, era alto e magro, o nariz muito curvo, um rosto muito simpático, cabelos grisalhos. Havia nos cumprimentado cordialmente ao entrarmos. O dr. Wolken também. Apressara-se até em nos afirmar sua grande satisfação em poder resolver o caso em solo neutro, conforme suas palavras. Com a mesma prontidão e amabilidade declarou que havia ligado quatro vezes do HOTEL LE MONDE, a fim de pedir conselho e ajuda ao dr. Salmerón. e que este lhe havia sugerido vir para Madrid no dia 8 de dezembro, pois num feriado teria mais tempo e discutiriam o assunto com calma.
E por que não avisou a ninguém em Paris de seus planos?
Mas era tão óbvio, sr. Bracken. Disse ele se balançando e
inclinando. Os senhores viram que levei toda a minha bagagem.
Queria dar no pé, hein?
Eu o expressaria de maneira mais delicada, sr. Bracken, mas no
fim dá no mesmo. Vim embora, é verdade. E vim por razões muito especiais.
Como por exemplo?...
Chegaremos lá daqui a pouco disse o dr. Salmerón.
E por acaso qualquer um de seu grupo teria me deixado “dar no
pé” como diz o senhor?
Deste jeito, certamente não.
- Está vendo. Daí em diante fiquei admirado com sua atitude.
310Não balançou mais. não se inclinou mais, não abaixou mais a cabeça envergonhado. Falava com voz decidida, quase agressiva; olhava firme para nós... e acabou sentando. Achei uma situação meio idiota continuar de pé, e sentei também. Rod olhou para mim e fez o mesmo. Lejeune já sentara há muito tempo.
Não entendo absolutamente disse eu qual a relação daquela
sua aluna doente de câncer com o motivo que o levou a dar no pé, sim senhor dar no pé. e vir exatamente para cá. O caso da sua menininha que implora para morrer, nada tem a ver com a Babs. Absolutamente nada. A Babs não é uma criança cancerosa, sentindo dores horríveis, mas apenas alguém que sofre de meningoencefalite em vias de cura... pois a de Babs está melhorando! Ela não sofre dor nenhuma que pudesse ter suscitado a sua pena. e ela está melhorando progressivamente, chegará talvez até numa cura quase total.
Não retrucou o dr. Wolken. Não é este o caso; e o senhor
sabe perfeitamente. O senhor e todos os outros estão tentando se enganar. Por motivos inteiramente mercenários os senhores ergueram uma torre de logro e ilusão em torno dessa pobre criança a quem tenho afeição. Ergueram e continuarão a erguer, disso estou certo por todas as conversas de que fui testemunha. Na melhor das hipóteses... a Babs ficará completamente débil
e...
Não ficará não! exclamei eu. erguendo-me de um salto.
Sente-se, por favor, sr. Kaven disse Salmerón. Sentei e continuei
a gritar: A Babs está recebendo o melhor tratamento possível! Esteve
também sob seus cuidados, doutor, e eu me interessaria muito por saber os verdadeiros motivos de um procedimento como o seu.
É muito simples respondeu o dr. Wolken. Não quero ser
cúmplice de tamanho logro.
Seu... começou Rod, continuando sem o menor nexo: E
quanto quer para ficar? Todos sabemos que pode exigir o que quiser, e nós pagaremos.
Se o senhor não se desculpar imediatamente por tamanha infâmia,
sr. Bracken, disse o dr. Wolken com toda calma serei obrigado a pedir
ao dr. Salmerón para mandar expulsá-lo desta sala.
No silêncio que se seguiu a estas palavras, ouvi os sinos de alguma igreja. Vi Rod lamber os lábios.
Então como é sr. Bracken? perguntou Salmerón tranqüilamente,
mas sentia-se que ele estava realmente disposto a expulsar Rod. Da parte do dr. Wolken também não havia a menor dúvida.
Desculpe; sinto muito disse Rod quase sufocando com as próprias palavras.
- Muito bem foi tudo que o dr. Wolken disse e continuou meio
agitado: - Minha mãe morreu de câncer na garganta. Eu era muito pequeno ainda. Ela teve a infelicidade do meu pai ser médico e católico fanático... não acho outra palavra. Outra desgraça foi ter ele tratado dela. Numa clínica
311em Basel. Como católico fanático exigia que minha mãe (também católica) morresse conscientemente.
Quando as dores foram se tornando insuportáveis, ela pediu e implorou, mas ele não permitiu que lhe dessem morfina. Todos os médicos da Casa de Saúde e eu também, o odiávamos mortalmente. Ninguém no entanto
ousava dar morfina a minha mãe, pois ele era o chefe. Manchas vermelhas
tinham surgido nas faces do dr. Wolken; ele falava exaltado, as mãos em punhos: E assim meu pai deixou minha pobre mãe morrer, conscientemente t...
Morrer conscientemente, o que pretendia seu pai dizer com isso?
Meu piedoso pai me esclareceu, e eu nunca o esquecerei disse o
dr. Wolken com um esforço imenso. Dizia ele: “Não se pode privar
ninguém de sua própria morte, desta experiência mais sublime a que temos direito e que nos dá a resposta mais clara e mais precisa”. Esta era a sua opinião, sr. Kaven, diante de dores cuja intensidade ninguém pode imaginar, conforme afirma o próprio dr. Salmerón. Os senhores não fazem a menor idéia das dores que meu pai fez minha mãe suportar conscientemente. Não tenho razão, doutor?
Certo. Se as pessoas tivessem ao menos uma idéia relativa das
torturas que sofrem os doentes incuráveis, dariam imediatamente instruções bem conscientes para não permitir tais torturas.
Estou entendendo cada vez menos disse eu. Aonde estão
estas torturas inimagináveis, onde o doente incurável de câncer, ou o católico fanático? O que o leva a fazer tais declarações, dr. Salmerón, e principalmente o que leva o dr. Wolken a vir procurar o senhor?
Naquela época eu era médico na clínica de Basel, e trabalhava sob
a chefia do velho dr. Wolken respondeu Salmerón. Fui obrigado a assistir
aos sofrimentos de sua esposa sem nada poder fazer. Dois anos mais tarde, quando o velho dr. Wolken aDocceu com câncer de estômago, e quando ele me pediu para aliviá-lo de suas dores eu lhe injetei uma dose avantajada do referido medicamento. Wolken era menino naquela época, e durante muito tempo ainda, até sair de Basel, eu o amparei e consolei, se me é permitido dizê-lo.
É sua obrigação dizê-lo, doutor! E eu tenho que acrescentar mais
uma coisa ainda: não fossem suas inúmeras tentativas para me ajudar a
esquecer.a morte horrível de minha mãe, eu teria me suicidado. Wolken
virou-se para mim e para Rod: Entenderam? O mundo é pequeno, não é?
Parece um romance, mas é a verdade. Antes em Basel, agora em Madrid. Será que agora entendem porque no meu dilema, diante do sofrimento da pobre Babs, eu apelei para aquele que me salvou a vida?
Não respondemos.
Sinos de igreja repicavam.
- O senhor especialmente, sr. Kaven, até agora só teve contato com uma exasperada inimiga da eutanásia, a dra. Reinhardt a quem muito prezo e respeito, e que certamente terá seus motivos para isso.
312No entanto o problema de ajudar a morrer, da eutanásia passiva ou ativa, não apresenta apenas um aspecto, mas dois como o senhor está vendo.
Lejeune olhava para fora da janela. Eu, para Rod.
Este sacudiu a cabeça, depois deu de ombros. Eu também me sentia assim. O dr. Wolken me parecia ter agido por motivos estritamente pessoais, e bem compreensíveis. Nada tinha a ver com o simulador Roger Marne; não era seu cúmplice absolutamente. Por outro lado, no entanto, havia muita coisa a favor de sua cumplicidade: seu trauma de infância do qual nunca conseguira se livrar (que explicava sua mania de estar sempre se inclinando, se balançando, sempre acanhado), seu ódio a todos os médicos do tipo da Ruth (perfeitamente compreensível diante de sua-experiência) a afirmativa de Salmerón. certa ou não, eu já nem sabia mais. de que o problema da eutanásia apresentava dois aspectos, que deviam ser ambos tomados em consideração.
Dr. Salmerón representava a concepção exatamente oposta a de Ruth; e com suas próximas palavras, confirmou o que eu acabava de pensar.
Pedi ao dr. Wolken que me descrevesse em detalhes a doença da
Babs, sua gravidade, toda a situação geral, meus senhores, e devo-lhes dizer que evidentemente não sou a favor de pôr fim à vida desta infeliz criança, ao menos por enquanto. Mas o senhor, sr. Kaven, sabe talvez melhor do que ninguém, que ela nunca, nunca mesmo, irá se recuperar razoavelmente, que continuará incapacitada para o resto da vida. Isso, se tudo der certo...
E vai dar...
Deixe eu terminar. Por um lado eu compreendo sua maneira de
agir em Paris, especialmente diante do pessoal do cinema. O que não quer dizer que aprove este seu modo frio de fazer tudo, sem pensar absolutamente no lado humano; tudo só para que uma estrela continue a ser estrela, para que os negócios continuem, e os milhões não parem de entrar. Poderá chegar um momento, e o senhor sabe disso, em que a menina voJte a ficar em perigo de vida, e isso a qualquer hora, se é que ela já está fora de perigo, como o senhor afirma.
Está sim disse eu. Meu Deus, aqueles sinos de igreja ainda vão
acabar me enlouquecendo! Bém-bom! Bém-bom!
Neste caso, pela situação toda e pelo que me dizem da posição da
dra., Reinhardt, estou convencido de que não medirão esforços para prolongar a vida da Babs. Estou certo?
Está sim disse eu.
Prolongar uma vida, no estágio atual da medicina, é na maioria
dos casos, uma insignificância afirmou Salmerón. Só não sabemos
quais as vantagens para o paciente.
313Afinal o que está acontecendo aqui? interrompeu Rod. Que
culpa temos nós do pai do dr. Wolken ter procedido como um canalha e não
como uma criatura humana?
Quer dizer que o senhor teria ministrado à mãe do dr. Wolken uma
dose letal de morfina? perguntou Salmerón.
Claro.
Tão claro as coisas infelizmente não são, sr. Bracken retrucou
Salmerón. O dr. Werner Frossmann de Duesseldorf, que recebeu o Prêmio
Nobel em 1956. previu que nesse caso passaria a haver o “médico especialista em morte sob encomendas”, e comparava-o ao “carrasco assalariado”.
Olhou para mim. Eu ainda estou impressionado com a última
reportagem da capa da revista SPIEGEL, o senhor leu, sr. Kaven?
Não.
É uma pena. Seu título era “Eutanásia, a morte serena,... compaixão ou homicídio”. Um trabalho excepcional. Passarei a citá-lo sempre nesta nossa conversa, pois ele não me sai da cabeça.
Fazia um frio horrível em Madrid, mas eu sabia que não era por causa dele que estava tremendo. Esse problema tão sério, tinha realmente dois aspectos.
Já há três anos, o neurocirurgião de Bonn, dr. Peter Roettger
profetizou que se a neurocirurgia pretendesse se identificar em suas metas com os limites técnicos da medicina, chegaríamos a um inferno de proporções
dantescas continuou o dr. Salmerón. Isto não é verdade apenas em
relação ao campo da neurocirurgia. Uma recusa intransigente de qualquer tipo de eutanásia poderá trazer as conseqüências mais nefastas, sr. Kaven. Digo isto ao senhor que deve ter discutido detalhadamente seu aspecto negativo. Um paciente que está à morte por exemplo, e cujo corpo se encontra quase inteiramente destruído por células cancerosas, cuja vida terá que ser prolongada diante da recusa mesmo da eutanásia passiva, poderia ser facilmente salvo: era só separar a cabeça do corpo canceroso, e deixá-la continuar a viver isoladamente.
Pare com isso! disse Rod.
- Não; não vou parar. Gostaria que os senhores entendessem a atitude do dr. Wolken diante das suas experiências de vida, e a respeitassem. No Japão uma destas separações da cabeça do corpo já foi feita com êxito em cachorros, e ela é igualmente possível no homem. Presa numa armação, ligada por meio de tubos a máquinas que passam a exercer as funções do coração, do pulmão e dos rins, uma cabeça destas poderia até falar!
A medicina nunca chegará a semelhante loucura disse eu. O
dr. Wolken pode contar com a minha compaixão... só que ele devia ter nos contado isso tudo em Paris, em vez de fugir para cá.
Eu não fugi! exclamou o dr. Wolken.
Não, não fugiu não! disse Rod. o senhor se despediu devidamente de todos, e depois, tendo recebido nossa bênção, pegou o avião e partiu por não poder suportar nossa atitude em relação a Babs. por considerá-la
314como um comportamento de capitalistas inescrupulosos... o que aliás reconhecemos perfeitamente.
Não me despedi de medo disse o dr. Wolken.
Medo de quem?
Do senhor por exemplo, seu vil e brutal fabricante de dinheiro!
Rod ia se erguer.
Senta! ordenei eu em voz alta. Caiu de volta na poltrona. E os
sinos repicavam...
O senhor diz que a medicina nunca chegará a semelhante loucura,
sr. Kaven observou Salmerón. Chegará, e nem há dúvida. Há duzentos
anos já Kant respondeu a esta pergunta: “Quando visamos os fins, visamos também os meios.”
O senhor então está decidido a aplicar a eutanásia... o senhor já
o fez há anos no caso do pai do dr. Wolken disse eu.
Certamente respondeu Salmerón. E como naquela ocasião
na Suíça, porém ainda mais drástico, eu aplicaria em qualquer ocasião, pois no caso de muitos doentes incuráveis o assim chamado “serviço prestado ao homem” conforme o formulou o teólogo alemão Helmut Thielicke, se transforma em, “terror à humanidade”. Isto para voltar ao artigo da revista SPIEGEL, que não me sai da cabeça.
O senhor é católico?
Sou.
Num país muito católico disse eu. E qual é a posição do
Vaticano?
Em 1957, o Papa Pio XII declarou: “Sempre que os narcóticos
forem ministrados visando dois efeitos certos, qual seja suprimir as dores encurtando a vida, ela é permitida...
Vejam só, o Santo Padre! observou Rod.
... mas apenas continuou Salmerón quando não houver
entre o narcótico e o encurtamento da vida, relação de causa com a vontade das partes interessadas”.
Para que se possa entender, em outros termos portanto disse eu
apenas o médico farmacologicamente ignorante poderá aplicar esta injeção que poderá ser letal.
Isso mesmo.
Médico nenhum então disse eu.
Exatamente.
E? perguntei eu.
Há um mês o OSSERVATORE ROMANO declarou que a legalização da eutanásia seria “o último passo de afastamento do evangelho”, pois só a Deus é reservado decidir sobre a vida e a morte.
Bem então chegaram mais uma vez ao pai do dr. Wolken, que
deixou sua pobre mulher viver a morte “conscientemente”.
Isto mesmo confirmou Salmerón. E foi por este motivo que
o neurocirurgião Rudolf Kautzky, católico praticante como eu, achou que a declaração do OSSERVATORE ROMANO era uma frase sem sentido.
315Pois. dizia ele, se ninguém deve interferir na obra de Deus, então também não cabe a nós prolongar a vida.
Rod de repente deu um suspiro, apoiou os cotovelos nos joelhos, segurando a cabeça.
Realmente isto tudo é bem complicado disse Salrnerón. O
professor de direito penal de Munique, Paul Bockelmann, declara que todo médico deverá se esforçar ao máximo para prolongar a vida, mesmo que seja apenas por dias, horas ou minutos e mesmo que esta vida no pequeno espaço de tempo que ela ainda poderá ser mantida, seja apenas uma triste, mísera vida.
Eu estou ficando maluco disse Rod.
Se todo médico seguisse a teoria deste jurista disse Salmerón
não poderia deixar nenhum paciente morrer, sem antes levá-lo para o Centro de Tratamento Intensivo e ligar todos os aparelhos possíveis. Conseqüência inevitável: todos os hospitais ficariam incapacitados de funcionar! Por outro lado, seguindo o raciocínio do colega Kautzky, meus senhores, qual é a objeção que se tem a fazer? Se o homem tem por missão controlar sua vida, porque não pode ele também controlar sua morte, por que não pode o médico ajudá-lo? Por quê?
Loucura completa reclamou Lejeune erguendo-se e dirigindo-se
para uma das enormes janelas. De costas para nós disse: Loucura! Para
que toda essa discussão? Vivemos numa época louca em que meia dúzia de guerrilheiros mutilam um país, impondo-lhe sua vontade. Numa época em que três quartos da humanidade morre de fome enquanto o outro quarto vai se matando por excesso de comida como eu, ou se tornou completamente irresponsável em termos políticos e humanos. Vivemos na época da bomba de hidrogênio, dos foguetes interplanetários, do ódio racial. Numa época destas. eu sou a favor é de uma lei, que sob as mais severas penas, proibisse virem mais crianças a este mundo abjeto! Esta é para mim a única solução: os velhos morrem e não existe mais descendência. Esta, meus senhores, é a minha opinião.
Em toda Madrid, os sinos recomeçaram a repicar.
Virando-me para o dr. Wolken eu disse:
- Entendo perfeitamente a atitude que, baseada em sua horrível experiência, o obriga a ser a favor da eutanásia ativa ou passiva, não importa; a favor de qualquer tipo de eutanásia, em qualquer que seja a condição. O que eu não entendo no entanto, é o que o levou a nos deixar assim de repente;
316com a Babs, isto francamente nem é o caso.
Por enquanto disse o dr. Wolken.
Nunca retruquei eu, sem saber quão breve viria a hora em que
eu estaria decidido não a aplicar a eutanásia, sr. Juiz, mas pior ainda, a deixar a Babs morrer propositalmente.
A Babs é diferente das outras crianças disse o dr. Wolken. Ela é
filha da maior artista. Desde seu nascimento está presa na malha desta textura, desta indústria que só visa ao dinheiro e mais dinheiro; onde especialmente neste caso, não se medirão esforços para não passar por cima de cadáveres... de um pequenino cadáver especialmente. Eu teria ficado, sr. Kaven, se não fosse esta confusão tão grande e asquerosa entre dinheiro e doença...
Agora chega... começou Rod.
Fique quieto disse eu. Continue, dr. Wolken. E eu fiquei
pensando na estranha força que o infortúnio dá aos homens; o infortúnio, e não a felicidade. Como ele os transforma! Enquanto o dr. Wolken ia falando, ele ia se enchendo de um ódio cada vez maior: - O que aconteceria se a Babs não fosse filha da sra. Moran, mas sim de um operário, de uma lavadeira ou mãe solteira?
’Por favor, não comece agora a examinar os aspectos sociais
disse Rod porque então...
Os aspectos sociais observou Salmerón muito devagar são
até bem interessantes para aqueles que são contrários a um tratamento caríssimo quando se trata de uma criança excepcional. Acredite, não são argumentos desprezíveis, absolutamente. Um tratamento intensivo custa hoje, por dia... um momento... em moeda alemã, mil e oitocentos marcos! Por dia! E vai aumentando cada vez mais. O neurocirurgião Kautzky que eu menciono sempre de novo, porque a revista SPIEGEL o menciona, fez o seguinte cálculo: “Pela mesma quantia poderíamos numa região de fome manter a vida de cem a duzentas pessoas pelo mesmo espaço de tempo!” Uma que quase já não é mais gente, ou cem a duzentas que deixariam de morrer de fome. Quem terá mais direito à ajuda, sr. Kaven?
A Babs ainda é criança disse eu sem grande convicção.
Além disso eu acho absurdo comparar as custas de um tratamento intensivo com os que passam fome.
Bem, então vamos falar das crianças. Esqueçamos o tratamento
intensivo. Mas não os que morrem de fome, não acha, sr. Kaven? Salmerón passou a mão nas costas da santa em cima de sua mesa. Entramos aí
num dilema moral, e que dilema! O filósofo polonês Leszek Kolakowski, articulou o dilema da seguinte maneira: “Por que razão crianças aleijadas ou retardadas de um meio abastado, economicamente favorecidas devem ser mantidas com vida à custa de despesas enormes, quando milhões de crianças normais são vítimas da subnutrição e da escassez de cuidados médicos?”
317Eu e Rod respondemos ao mesmo tempo:
Agora eu estou farto disse Rod.
Já não agüento mais disse eu.
- O senhor então não volta, sob condição alguma? perguntou
Lejeune ao dr. Wolken.
Sob condição alguma respondeu esse.. Já sei o que o senhor
receia: que eu me apresente em público e conte tudo o que sei. Nunca faria uma coisa destas!
Quando entrei no quarto, ela estava instalada na janela, numa cadeira de braços. Era um quarto grande, alto. Lá fora na porta, via-se o número 17. Por baixo, uma tabuleta com o seguinte aviso:
SILÊNCIO ABSOLUTO!
ENTRADA PROIBIDA!
PACIENTE TRATADO EXCLUSIVAMENTE
PELO DR. SALMERÓN.
Sr. Kaven! a pele alva da Clarissa ruboreceu. Ela se ergueu.
Que bom, o senhor veio me ver!
Dr. Salmerón se comunicou com a irmã que fica na entrada desta
seção, ela disse que eu poderia entrar. Que organização! Nenhum repórter tem acesso aí!
Nenhum, sr. Kaven. Clarissa Geiringer de vinte e sete anos,
muito loura e bonita, usava um robe de lã. Estava de chinelos. Ainda segurava na mão o livro que estivera lendo. Colocou-o em cima da mesa. O quarto era modernamente decorado. Da janela via-se todo o Campo dei Moro, parte do palácio e uma igreja enorme, a Nuestra Senora de Ia Almudena. Na parede, dois quadros de artistas modernos.
Sente-se, sr. Kaven disse Clarissa sentando também. O livro
estava na mesa entre nós. Vi que a cama de Clarissa estava pronta para ser usada, mas ela ainda não se deitara. Como está a Babs?
Bem melhor disse eu. Realmente. Está fora de perigo. A
médica está muito satisfeita.
Não tanto quanto eu, o senhor e a sra. Moran, evidentemente.
Claro que não. Nunca poderemos lhe agradecer bastante o serviço
que nos prestou, Clarissa.
Ora, sr. Kaven ficou mais vermelha ainda. O senhor sabe
quanto eu... que eu faria tudo pelo senhor e pela Babs, e... pela sra. Moran evidentemente também... tudo!
318Talvez ainda leve algum tempo. disse eu. Talvez tenha que
ficar aqui mais um pouco.
Quanto tempo?
Não sei ainda... olhava fixo para mim. Não agüentei seu
olhar. Peguei o livro aberto e dei uma olhada...
“KENT Parta, coração, por favor parta...”
Levantei os olhos.
Temos uma biblioteca muito grande, sr. Kaven Clarissa sorriu
Leio muito. Tem livro em tudo que é língua. Quase todos os clássicos alemães. Não fique sempre desviando o ollhar, sr. Kaven. Juro, que nunca mais vou tocar no assunto, nem vou molestá-lo!
Ora deixe de bobagem, Clarissa disse eu. Sei que você é
formidável. Em outras circunstâncias... Assim é a vida, pensei eu.
Daquela vez... há dias apenas... quando ela de repente declarou que me amava, eu estava decidido a arranjar um jeito de fazê-la sumir o mais depressa possível. Depois daquela cena com a Sylvia na clínica do dr. Delamare então, nem se fala. Tive até vontade de ir até ao apartamento dela e esganá-la. Ela botara em movimento esta brincadeira de roda, e agora a roda girava cada vez mais depressa. Apesar disto tudo, sr. Juiz, veja só como as coisas são, eu agora só tinha um desejo ardente: que ela nos fosse fiel, que fosse valente, esperta e discreta; que ficasse conosco!
Escute, Clarissa disse eu A Babs está passando bem. Dentro
do possível, é claro. Eu ia ligar para você ainda hoje (Nunca!). Mas aí aconteceu uma coisa, e eu tive que vir a Madrid com Bracken e aquele advogado, Lejeune.
O que aconteceu?
- O dr. Wolken...
E eu lhe contei tudo, sem omitir o menor detalhe, pois ela precisava estar a par. Tínhamos combinado antes de eu entrar ali. Lejeune havia dito que a Clarissa precisava saber o que ocorria; Rod e Lejeune foram da mesma opinião.
- A pessoa mais indicada para contar tudo dissera Lejeune
para descobrir se ela vai ficar do nosso lado ou se também vai nos causar problemas, é o senhor, sr. Kaven.
No momento Lejeune estava instalado em qualquer sala desta imensa clínica, zelando pela nossa segurança. Rod devia estar conversando com Salmerón. E eu, contando tudo a Clarissa.
Quando acabei, ela se ergueu, foi até a janela e ficou durante muito tempo olhando para fora. Finalmente disse:
- É preciso entender a atitude do dr. Wolken, depois de tudo que sabemos a seu respeito.
- Mas nós a entendemos disse eu. Nós não o seguramos. Nem
poderíamos. Ele daqui vai pegar um avião diretamente para a Suíça.
319E o senhor tem certeza de que ele nunca vai nos denunciar?
Tenho. Lejeune se encarrega disso.
A área ocupada pelos ESTÚDIOS SEVILLA FILMS é imensa. Começa na entrada da Avenida Pio XII, bem distante do centro da cidade. A ala dos ateliês ficava perto da rua, assim como os prédios da administração com suas altas janelas de grade, em estilo andaluz.
Lá fora soprava um vento gelado. Rod estava em pé a meu lado diante dos estúdios. Tremia de frio como eu. Nosso táxi nos esperava um pouco adiante. Depois de saírmos da Casa de Saúde, viemos até aqui, pois o Rod queria me mostrar o lugar onde ia ser rodada grande parte do filme mais caro que a SEVEN STARS jamais ousara fazer, e no qual a Sylvia desempenharia o papel de seus sonhos. Refiro-me ao CÍRCULO DE GIZ, e à companhia criada especialmente para este fim, a SYRAN PRODUCTIONS. Custaria 25 milhões de dólares e eu era o chefe de produção. Os preparativos já vinham sendo feitos há tempos. O esboço do roteiro também já existia. Técnicos e artistas, arquitetos e fotógrafos já haviam sido contratados.
Era 8 de dezembro de 1971. Já estava escurecendo, e aí fora tudo estava vazio, deserto morto; impressionantemente morto. O portão de entrada, trancado. O porteiro devia estar sentado em sua guarita atrás da grade, ao lado do fogão se aquecendo. Da chaminé saía uma fumaça que o vento arrancava logo.
Olhei através das grades, contemplando a imensa área. Não havia uma árvore, um arbusto, nada. A terra era vermelha, e quanto mais eu contemplava o terreno, mais ele parecia se estender... por fim já se alargava até o infinito, infinitamente vazio.
Em breve, pensei eu, daí a meses não permanecerá mais tão vazio. Estará ocupado por obras suntuosas, por humildes casas de camponeses, estrebarias, acomodações para os soldados da guarda, arcos de triunfo e pelourinhos. Uma capital inteira! Eu tinha visto os primeiros desenhos, os projetos dos arquitetos. As imensas colunas que cercavam o amplo pátio de entrada do suntuoso palácio, iam se erguer em 1972 para os céus de Madrid. Era a sede do Governador Georgi Abashwilli, que dominava toda a província da Grusínia no Cáucaso, e que ali reinou há muitas centenas de anos.
Arquitetos espanhóis e americanos, operários espanhóis iam criar este mundo ilusório do cinema. Nos escritórios dos prédios da administração ficariam instalados os diretores de filmagem e os decoradores. A equipe americana de montagem ia se aninhar em suas salas.
320Iam preparar as salas de maquilagem para os comparsas, assim como os camarins dos artistas principais. De repente me pareceu estar vendo novamente aquelas listas no LE MONDE, no apartamento da Sylvia em Paris, com todos aqueles títulos e números...
Equipe de produção. Diretores. Construtores e decoradores. Números. Construções. Números e mais números. Material para o filme. Copiadoras. Seguro. Despesas de viagem. Gratificações. Custas de financiamento. Números... Números... Números...
Segurei-me num dos ferros da grade e olhei para o fundo do terreno, para o vazio crepusculejante. Para o infinito já envolto na penumbra. A terra era vermelha. Criança doente. Criança excepcional. Condenada para o resto da vida? Como? Onde? Ruth. Sylvia. Vinte e cinco milhões de dólares. Chefe de Produção: Philip Kaven. SEVEN STARS. Advogados. Médicos. Joe Gintzburger. Eu sou Malechamawitz, o “Anjo da Morte”. Tantas mochilas! Tantos aviões! Tantas obrigações! Tão poucas forças. Tão pouco ânimo...
O que é que você está sentindo? Perguntou Rod. Até ai não tinha dito uma palavra. Será que ele me trouxe aqui de propósito para me mos trar a nulidade que sou, mostrar tudo que me espera?
Nada.
Então está bem Está ótimo, meu velho. Queria que você visse
isto tudo aí. Vamos trabalhar também em Saragoça e em Barcelona, os assistentes de Da Cava já escolheram os locais, mas ainda não está nada decidido, temos que subir também os Pirineus, filmar na neve. Mas é aqui que vai começar, vamos passar muitas semanas aqui. É aqui também que você... o que houve?
Canalha desgraçado, então era este o bumerangue.
Eu não posso passar semanas aqui. Rod. Você sabe muito bem.
Tenho que ficar junto da Babs.
Você vai ter que ficar aqui e com a Babs, alternadamente. Sei que é
cansativo. O tempo previsto para a rodagem do filme é de seis meses. Certamente será ultrapassado. Vão ser uns meses duros para você. Mas não há jeito, você vai ter que estar aqui e lá. Você sabe disso.
Sei, mas não posso. E você também sabe. Sabe muito bem que não
posso.
O quê? Ficar aqui e com a Babs?
Ora não se faça de idiota! Você sabe que não posso ser o chefe de
produção de um filme gigantesco destes! Não tenho a menor idéia de como...
Mas é claro que não tem! Na hora de registrarem a firma, a
SYRAN PRODUCTIONS, a Sylvia insistiu que você, idiota, aparecesse como chefe de produção.
Escuta, Rod...
Escuta você primeiro disse ele, e o vento gelado nos soprava a
terra vermelha na cara; fomos obrigados a nos virar. Você é quem vai escutar, está bem?
321Eu não disse a você que ia lhe ajudar? Já ajudei até. É evidente que você não pode ser o chefe de produção, afinal não tem a menor idéia disto tudo e além disso tem que ficar voando de um lado para outro. Bob Cummings...
O que tem ele?
É o melhor homem de Hollywood. Você o conhece!
Claro que conheço, sua besta disse eu irritado. Não havia jeito.
Éramos inimigos e íamos continuar a ser. Nada nos unia, nem a necessidade, nem o fato de que tínhamos que trabalhar com um traidor entre nós e não sabíamos quem era. Uma coisa estava certa, nem Rod, nem Clarissa, nem o dr. Wolken tinham qualquer ligação com o perigoso simulador Roger Marne. Quem era, não sabíamos, e em vez de tentarmos juntos achar o traidor, lá estávamos nós mais uma vez, um atacando o outro.
Falei com Bob por telefone disse Rod. Já há algum tempo.
Na época em que a Babs ainda estava boa, e ele entendeu a situação tão bem quanto eu ou você. Está disposto a trabalhar como subalterno seu, você o chefe de produção, ele o diretor de produção, fazendo todo o trabalho, e você, continuando a receber sua bolada. Satisfeito?
Ficamos olhando um para o outro. A poeira vermelha nos envolvia
literalmente. Os olhos lacrimejavam. Aquiesci.
Tudo vai dar certo disse Rod. E questão de cada um saber
qual a sua posição e obrigação.
Isso mesmo, exatamente como eu tinha previsto.
Agora vamos disse ele. É melhor irmos para o aeroporto.
Quem sabe o que já aconteceu de novo em Paris ou Nurenberg? Vamos apanhar Lejeune, lá com o dr. Salmerón.
Falando em Salmerón me lembrei novamente. Rei Lear disse eu.
- Ele se chama Juan Carlos disse Rod. Não é rei, é pretendente ao trono e o que tem ele a ver conosco?
- Sua besta, o Rei Lear é o nome de uma peça de Shakespeare. Ah, sei.
- Confessa logo, você não tem a menor idéia quem é. Eu também reconheci que não entendia nada daquilo tudo.
Muito bem, não tenho idéia. O que há com aquela merda de rei?
Me lembrei dele. Aquela história toda de eutanásia e não-eutanásia,
não me sai da cabeça. Se é melhor gastar dinheiro para crianças excepcionais ou para os que morrem de fome... toda esta confusão que ninguém entende direito, para a qual ninguém acha solução, muito menos os entendidos. Tudo isto eu fico remoendo dentro da minha cabeça; ainda acabo ficando maluco.
Ora, você precisa é se controlar. Mas o que tem isso a ver com
Lia?
- Que Lia! Na peça, aparece um ancião, o Rei Lear. Ele tem três filhas.
322Desgraças e mais desgraças caem sobre ele, ele adoece, perde a razão, e só lhe resta um único amigo, Kent.
Igual à marca de cigarro?
Exatamente. A Clarissa estava lendo o livro quando fui vê-la. Ele
estava aberto, e eu li o que no fim Kent diz para o velho rei, doente e infeliz, carcomido de dor. As palavras não me saem da cabeça. Parece obra do diabo, mas se adaptam a tudo que é argumento que ouvi, tanto da dra. Ruth Reinhardt como do dr. Salmerón, contra e a favor do prolongamento e do encurtamento da vida de um doente... enquanto eu...
Reaja, ora! gritou Rod. Se você agora ainda por cima vai
começar com essas besteiras, nós vamos pra puta que nos pariu! O que foi que o rei disse?
Ele disse: “Deixem-no ir. Aquele que quiser prendê-lo às torturas
deste áspero mundo, odeia-o...”
Você quer dizer então que aqueles que são a favor da eutanásia
estão com a razão, porque amam os doentes, enquanto os que são contra ela, não têm razão e os odeiam?
Não sei disse eu. Não sei mais nada.
Caleidoscópio.
Enciclopédia Brockhaus, vol. 3, J NEU, página 53, primeira coluna, embaixo, à esquerda, sr. Juiz.
“Caleidoscópio (Do grego) Brinquedo ótico: pedaços pequenos de
vidro colorido (ou coisa semelhante) que refletido em espelhos angulares se ordenam, formando uma estrela regular, geralmente de seis pontas. Descoberto em 1817. Fig. Sucessão rápida e cambiante de impressões.”
Era isto exatamente o que eu procurava, uma imagem para impressões rápidas e cambiantes. Há pouco pedira emprestado o volume da enciclopédia na biblioteca do presídio.
Caleidoscópio, isso mesmo. Quando agora me lembro daqueles tempos que se seguiram ao primeiro vôo a Madrid, vejo que era uma época em que as impressões, os incidentes e acontecimentos foram se acumulando cada vez mais rápido e em maior quantidade. Entrei num sonho louco.
Em meio àquilo tudo que então começara a se precipitar, houve situações que me ficaram presas na memória, fielmente, ótica e foneticamente... por sua gravidade, doçura, cordialidade e beleza. Por seu horror, sua infâmia, sua periculosidade. Estas eu descreverei com toda a minúcia. Para o resto, sr. Juiz, utilizarei agora por algum tempo o meu diário e suas anotações...
323Na noite de 8 de dezembro de 1971 eu, Rod e Lejeune voltamos a Paris para prestar contas a Joe e seus advogados. A Sylvia já havia ligado três vezes da clínica do dr. Delamare. Por que não estava eu em Nurenberg? Como estava a Babs? Liguei portanto para ela.
- Minha Bruxinha, está tudo em ordem com a Babs. Os médicos estão muito satisfeitos. Pode ficar descansada.
Aonde é que você está?
Em Paris, no LE MONDE.
Mas...
Não fique nervosa! A Babs queria aquele ursinho velho, o nounours que Jean Gabin lhe deu.
Meu Deus...
Você está vendo! Ela está lúcida; ela se lembra das coisas. Eu tinha
que contar isto para todo mundo em Paris. Também preciso de roupa de inverno. Fez um frio horrível em Nurenberg. Por isso vim para cá. Amanhã de manhã volto, e assim que tiver visto a Babs, ligo para você.
Quinta-feira, 9 de dezembro. Como Philip Norton (os óculos!), volto para Nurenberg com o avião da manhã. Direto clínica. Conto tudo à Ruth. Ela diz:
Entendo o dr. Wolken. Conheço todos os argumentos pro-eutanásia, o das crianças sadias e doentes, das condenadas a morrerem de fome. O pior disto tudo é que há muita verdade no meio. Só que eu, sr. Norton, não posso aceitar estes argumentos nunca, e continuarei, enquanto tiver forças, a defender as crianças doentes e indefesas.
Fomos ver a Babs. Acariciou o ursinho. Nenhuma palavra a respeito de Sylvia. Babs quer saber se vou ficar com ela para sempre. Claro que digo que sim. Com o surrado urso nos braços, adormece logo. Vi a Ruth sorrir mais uma vez.
Sexta-feira, 10 de dezembro, até quinta-feira, dia 16: Permaneço em Nurenberg. Diariamente com a Babs. Melhora lenta, contínua. Outros medicamentos. Temperatura baixa. Fotofobia desaparece. Paralisia do braço esquerdo e do pé direito cedem. Contato constante por telefone com Joe (resolveu ficar em Paris até o Natal com toda sua equipe, caso aconteça qualquer coisa). Falo com a Sylvia cuja voz está cada vez mais mudada; deixou de ser a artista na vida particular. Está feliz. Muito só, no entanto. Diz que não há nada que não estaria pronta a fazer ou suportar para que sua filha fique boa novamente. Claro que lhe deixo a ilusão da cura total.
Já me acostumei aos óculos sem grau ao ponto de ter a impressão de não ver direito quando os esqueço. Loucura mansa! Comentário de Ruth: -
Os óculos lhe ficam muito bem; verdade! Dão um ar de intelectual Estou
surpreso. As mulheres já me classificaram praticamente de tudo que se possa classificar um homem. Mas de “intelectual” nunca ninguém me chamou. Ruth é a primeira. Eu, um intelectual...
324Terça-feira, 14 de dezembro: à noite telefonema para o HOTEL BRISTOL: Suzy Sylvestre de Paris. Como ela sabe de tudo. Rod lhe deu meu telefone. Bastante embriagada, ela diz que Francois estava de volta.
Quem?... Ah, o conde!
- É.
Mas ele não ia ficar em Acapulco até...
Não agüentou. Saudades. Deixa de rir feito idiota!
Eu não estou rindo.
- Phil?
- Hein?
Posso casar com ele agora?
Que pergunta é esta, meu amor? Você tem que casar com ele. Que
história é esta de vir me pedir permissão?
Era porque...
Você está de pileque, Suzy?
Estou e vou entornar mais ainda. Porque eu... eu sempre pensei
que... que você fosse voltar... Mas não dá, não é?
Não Suzy, infelizmente, não dá.
Por causa da menina?
- É.
Como está ela?
Um pouco melhor. De qualquer maneira, fora de perigo. Sinto
muito, meu amor, mas não dá. Trate de me esquecer. Você vai ser condessa!
Não me chame de “meu amor”, seu porcaria! grita ela de
repente, entre soluços Então está bem, eu vou ser condessa! O fone lhe
cai no gancho, a conversa está terminada.
Babs se alimenta normalmente.
A febre passou.
Quinta-feira, 16 de dezembro: Joe me chama a Paris. Aconteceu qualquer coisa. Pego o avião como Philip Norton. Em Orly apanho a Maserati Ghibli na garagem do subsolo, e sigo na toda, como um idiota, para o LE MONDE. Me transformo em Philip Kaven. O problema de Joe: ele tinha chegado a um acordo com Carlo Marone (Marone, milionário italiano distribuidor de todos os filmes da SEVEN STARS, com seu palácio ostentador na colina de Píncio em Roma). Marone quer apresentar o último filme da Sylvia com Alfredo Bianchi (já à beira da morte), TÃO POUCO TEMPO, em pré-estréia em Roma, conforme ele mesmo me contou. Sabia de fonte certa que sob hipótese alguma Alfredo poderá estar presente a essa estréia marcada para maio. Está internado numa clínica em Roma. Será realmente aquela sensação se ele vier a falecer antes. Será unr grande espetáculo! Os italianos são loucos por Alfredo Bianchi. Por ocasião da minha primeira conversa com Marone a respeito do assunto, eu lhe dissera que deveria dar alguma vantagem econômica a Joe, e ele acabou reconhecendo. Nesse meio tempo ele estivera em Paris e chegou a um acordo com Joe.
325Agora estou sentado com Joe no bar do LE MONDE.
Aquele maldito comedor de espaguete nos enganou diz Joe.
Acabo de receber uma ficha da doença de Alfredo, que meu pessoal conseguiu em Roma por meios não muito lícitos.
- E dai?
É o relatório do médico para o chefe da clínica. Os termos médicos
são chinês para mim. Pedi que me esclarecessem. Caímos mais uma vez na esparrela. O estado de Alfredo vem melhorando dia a dia.
Canalha desgraçado!
Terá que ir comigo a Roma, imediatamente disse Joe. Hoje
não dá mais. Amanhã cedo. Com Lejeune.
Está certo disse eu. Assim posso ligar com calma para a
Sylvia, dizer-lhe o quanto a Babs melhorou, e dormir mais uma vez na minha cama no LE MONDE.
Sexta-feira, 17 de dezembro; Roma.
O senhor nos enganou deliberadamente. É um canalha, um impostor. O senhor se garantiu criminosamente com as vantagens de um contrato
que a outra parte aceitou, confiando na sua decência e moralidade disse
Lejeune para Marone.
Não sou nenhum canalha, nem impostor. Não usei de meios fraudulentos para gaFantir meu contrato com Joe Gintzburger. Quando o sr. Kaven esteve aqui pela última vez, na noite de... já não me lembro mais da data...
- Dois de dezembro. Lejeune sabe. Lejeune sabe tudo; consegue
tudo. Por isso também o deixamos falar. Eu e Joe nem nos manifestamos.
... dois de dezembro, então, eu lhe disse...
O senhor lhe disse que Alfredo Bianchi não tinha mais do que três
meses de vida; que estava batendo as botas. Hoje dezessete de dezembro
eu lhe digo: Sabemos de primeira mão, que Alfredo Bianchi está melhorando dia a dia.
Os senhores estão mal informados. Alfredo está mal. Já está
meio...
Cale a boca! disse Lejeune, falando mais depressa do que de
costume. Marone mal tem chance de dizer uma palavra: Onde estão as
cópias do contrato?
Nossa situação não é das mais animadoras. O contrato entre Joe e Marone evidentemente não menciona que as condições para a realização da pré-estréia de TÃO POUCO TEMPO em Roma, pressupõe a morte de Alfredo Bianchi. Estas coisas não podem ser colocadas em contrato. Por isso também não existe nenhuma penalidade ou outra medida qualquer contra Marone, caso a condição não seja satisfeita. Se Marone exigir que a pré-estréia seja em Roma, ela será em Roma de qualquer maneira. Não há o que fazer. O contrato existe. Por isso viemos para cá. Por isso Joe está tão nervoso. Nota-se que ele está nervoso, pois começa a respirar fundo, fungando baixinho.
326Está mesmo. Não é para menos. Uma pré-estréia de um filme da Sylvia em Roma e não em Hollywood, é coisa que nunca aconteceu. Marone coloca duas cópias em cima da mesa.
Onde ests a terceira?
Que terceira?
Sr. Kaven, o senhor é o mais moço de nós três aqui, por favor...
Pois não digo eu, dando a volta na mesa.
Não! grita Marone. E de repente a terceira cópia do contrato
aparece em cima da mesa.
Está vendo diz Joe.
Um momento diz Lèjeune. Este canalha pode ter mandado tirar
fotocópias para apresentar nos jornais e assim provocar um escândalo. Um escândalo é coisa que agora não podemos precisar.
Não é verdade! Não tenho fotocópia nenhuma! grita Marone.
Sr. Kaven diz Lejeune posso pedir mais uma vez.
Há muito venho querendo dar um polimento na cara do Marone. Agora me é permitido. Não, ainda não é dessa vez. Marone levanta ambas as mãos para proteger o rosto e diz:
No cofre atrás do Gobelin.
Abra! ordena Lejeune.
Marone vai até a tapeçaria, levanta-a, abre um cofre grande com segredo. Nele se encontram cinco fotocópias do contrato, (examinamos tudo cuidadosamente), vários rolos de microfilmes, cartas amarradas, pilhas de fotografias de homens e mulheres em situações comprometedoras, chaves, duas pistolas e jóias.
Marone entrega as fotocópias a Lejeune.
Não temos tempo diz o gordo advogado. Certamente o
canalha também tem microfilmes. Na certa não é o único cofre. Portanto vamos lá!
A situação é gravíssima para Joe, pois os departamentos de publicidade da SEVEN STARS, espalhados pelo mundo inteiro, todas as agências e redações de jornal já estão preparadas para uma pré-estréia em Roma. Muita gente já sabe que o filme TÃO POUCO TEMPO terá sua pré-estréia em Roma... O primeiro filme da Sylvia Moran com pré-estréia na Europa! É evidente que tudo ainda poderá ser modificado. As pessoas que tomaram conhecimento receberão informações novas, mas o cérebro continuará a ser o velho. Idiotas eles não são. Um ou outro acaba atinando que tudo foi modificado só porque Bianchi não está a fim de morrer, estará restabelecido quando maio chegar. Esses poucos vão acabar somando dois mais dois e compreenderão o verdadeiro motivo para a escolha de Roma... ou seja, o falecimento de Bianchi antes da estréia. Vai ser aquele escândalo! Joe fungou.
Lejeune tira uma porção de papéis do bolso, joga-os com força na mesa de Marone e ordena:
- Assina!
327- Mas eu não posso, assim sem mais nem menos...
Claro que pode.
Não geme Marone.
Sr. Kaven, por favor.
Marone arranca uma caneta de ouro do bolso interno do paletó, e começa a assinar como louco. São contratos novos que ele assina. Neles consta que Marone terá o direito a realizar a pré-estréia de TÃO POUCO TEMPO se até primeiro de março de 1972 houver entre ele e Joe Gintzburger, Presidente da SEVEN STARS, um acordo perfeito em relação a certos pontos que ainda estão em discussão. (Um deles é que Alfredo Bianchi deve estar morto e enterrado até 1º de março de 1972. O segundo: Caso a pré-estréia venha a se realizar, isto é, se a primeira condição for satisfeita, Marone terá que pagar o dobro da quantia combinada com Joe em Paris. Castigo tem que haver.)
Os contratos estão assinados por Joe. Marone fica com três cópias.
Juro pela Virgem Maria que me disseram que Bianchi está muito
mal, que ele não tem salvação. Juro, eu disse a verdade, sr. Kaven!
Agora essa verdade virou mentira disse Lejeune fechando a
enorme pasta. Agora Bianchi está melhorando. Os médicos fazem o que podem. O senhor não tem idéia dos recursos que a medicina tem hoje em dia para salvar a vida de alguém que já se encontra à beira da morte... ou ao menos prolongá-la.
Prolongá-la! exclamou Marone. E que culpa tenho eu, Santa
Mãe de Deus! Quer que eu vá até o hospital e peça aos médicos para acabarem com a vida de Bianchi?
Sr. Marone disse Lejeune será que entendemos certo? Não
me diga que o senhor aprova a eutanásia em sua forma pervensiva como os nazistas a usaram? O senhor concordaria que os médicos pusessem fim à vida deste grande artista Alfredo Bianchi, que praticassem um homicídio friamente, se fosse de seu interesse econômico? O senhor estaria pronto, se necessário, sozinho ou através de terceiros, a praticar a eutanásia em sua forma criminosa neste pobre doente, só para que ele não esteja mais vivo dentro de determinado prazo a fim de que a pré-estréia possa se realizar em Roma? Nem quero ouvir o que o senhor vai gaguejar! O senhor me repugna. Senhores, está tudo resolvido, podemos partir.
Partimos pois, mas não diretamente para o aeroporto.
Lejeune conhecia um restaurante...
Não podemos ir embora sem comer lá... além disso estou morrendo de fome... Naquele restaurante servem um ravioli com legumes, e um molho picante de carne!... O legume fica à escolha do freguês, vagem, brócolis, repolho de bruxelas, alho-poró... eu lhes recomendo o brócolis, não existe nada mais gostoso...
Caleidoscópio!
Meu diário...
328Sexta-feira, 17 de dezembro de 1971: No fim da tarde chegada a Paris no jato da Sylvia. LE MONDE. Ligo para Nurenberg. Falo com Ruth. O estado da Babs continua melhorando.
Telefono para a Sylvia. Dou notícias da Babs, acrescento mais alguma coisa de positivo. Sylvia fica feliz e ao mesmo tempo um pouco oprimida. Terá que passar o Natal só. Tudo que ela diz é sempre relacionado a ela. Há pouco tinha acabado de ouvir a voz da Ruth...
A muito custo consigo consolar a Sylvia. Ela chora. Pura autocompaixão. Sozinha no Natal! Garanto-lhe que não vou deixar de ligar. Ligar sempre. Digo tudo que me passa pela cabeça. Quanto gosto dela, evidentemente também, claro. Não adianta grande coisa. Joe diz que ele, os advogados, o médico e o relações-públicas partem para Los Angeles amanhã. Para juntos de suas famílias. Joe tem filhos e netos. O Natal todo ano é aquele acontecimento! Faz muito frio em Paris. Chove sem parar. Encomendo um enorme arranjo de orquídeas para a Sylvia, para o dia 24. Compro mais alguma coisa para Nurenberg. Levo muito tempo procurando. Chego encharcado ao hotel. Banho quente. Mudo a roupa. A roupa de Nurenberg, sem esquecer os óculos. Levo a mala de fibra e sigo na Maserati até Orly. Guardo o carro na garagem. Vôo LH às 21:30 de Orly. Muito cansado. Do aeroporto de Nurenberg diretamente para o hotel. Caio na cama.
Sábado, 18 de dezembro de 1971: Neva. Frio diminui. Direto para a clínica. Babs dorme o dia inteiro. Neve; mudança de tempo. Ruth diz que vai nevar mais ainda. Ruth! Estou junto dela de novo. Passo o dia na clínica. Também aqui preparativos para o Natal. Me assustam. Haverá uma grande festa no auditório para todas as crianças que não podem ir para casa na noite de 24.
À noite, do hotel, falo com Sylvia e Clarissa. Conto como a Babs está bem; exagero. Também em Madrid neva. Clarissa sente frio. Sylvia se lamenta por causa da solidão no dia de Natal. Falo com Rod: Joe e sua comitiva partiram.
Domingo, 19 de dezembro de 1971 até quinta-feira 13 de janeiro de
1972. Resumo das anotações do diário: O tempo todo em Nurenberg. O dia inteiro na clínica. Sempre junto de Ruth. À noite, do hotel ligo sempre para Sylvia e Rod. Falar com a Sylvia vai se tornando um sacrifício cada vez maior. Procuro as palavras. Pausas embaraçosas. Começo a ter receio destes telefonemas diários. Estaria Sylvia notando qualquer coisa?
24 de dezembro à tarde, festa de Natal no grande auditório da Clínica. Pior do que eu imaginava. Todas as crianças que não estão presas à cama, vêm sozinhas ou carregadas, empurradas em carrinhos. Médicos, irmãs e enfermeiros presentes. As crianças ficam sentadas nas arquibancadas, muitas apoiadas por médicas e enfermeiras. Vejo a Ruth com um garoto inteiramente paralítico no braço. Lá embaixo, na frente, umas vinte crianças em cadeiras de roda. A Babs evidentemente teve que ficar na cama; mais tarde iremos
329visitá-la. Todos os quartos estão enfeitados com pinheiros, fios prateados e bolas coloridas. O auditório também.
Samy Molcho, o famoso mímico israelense, compareceu. Em roupas fantásticas, dança e pula para as crianças, imita animais, dá cambalhotas. Preparou um programa inteiro. Apenas números engraçados. Os adultos riem. Algumas crianças também. Muito poucas. Nenhuma das que estão nas cadeiras de roda. Vejo o suor brotar na testa de Samy; ele se esforça cada vez mais. Todas as crianças recebem sacos enormes com frutas, nozes e chocolate. Os adultos seguram os sacos; muitos caem, e pelas escadas das arquibancadas, rolam laranjas, nozes e maçãs. Muitas crianças têm crises e são levadas pelos médicos. Outras passam mal. Garanto que Samy nunca se esforçou tanto na vida para fazer’ uma platéia rir. Cada vez riem menos crianças. Por fim tudo é silêncio. Um disco toca “Noite Feliz”. Até isso! Mais crianças têm que ser levadas para fora. Algumas começam a gritar e a bater nos médicos ou enfermeiras que as seguram. Quando finalmente termina este pesadelo e todas as crianças são levadas de volta, minha camisa está ensopada. De repente estou só, pois a Ruth foi levar o menino paralitico. Vou procurá-la e encontro-a no corredor.
Esta festa de Natal é todo ano a mesma coisa diz ela.
Por que insistem em fazê-la, pelo amor de Deus?
Instruções da administração e do Departamento de Saúde. Todos
nossos pedidos para não realizar a festa são em vão.
Passamos por uma sala de espera cuja porta está aberta. Sentado num banco está Samy Molcho, ainda com sua roupa de grande gola de pierrô. A maquilagem lhe escorre pelo rosto. Samy chora. Chora tanto que nem nota nossa presença. Passamos na ponta dos pés.
A clínica tem diversas seções diz a Ruth. Numa as crianças podem ser tratadas como se fossem adultos doentes. Temos a divisão para crianças psicóticas, aquelas que sofrem de sérios distúrbios psíquicos. É para elas que o dr. Bettelheim procura uma possibilidade de cura. Finalmente temos a seção das doentes mentais, não importa se já nasceram doentes ou se ficaram mais tarde, por uma só causa ou várias juntas-. É a seção de Babs. A direção da casa deseja que todos os médicos daqui entendam o máximo de tudo que é tipo de doença. Isso é um tanto difícil, pois os métodos de tratamento são inteiramente diversos. Eu, por exemplo, a princípio trabalhava nesta seção, mas fui depois enviada para os Estados Unidos, para a clínica do dr. Bettelheim que trata apenas de crianças psicóticas, para que pudesse ter alguma experiência também neste campo. Procuramos criar uma clínica que se chama em inglês de allround, o senhor entende?
Eu e a Ruth passamos naquela tarde pelas três seções. Havia muito poucos quartos individuais como o da Babs. A maioria eram para cinco, dez ou até doze crianças. O espaço era pouco. Na noite de Natal então, menor ainda, pois muitos pais vinham visitar os filhos que não podiam ir para casa. Quando olho para estes pais, me lembro do Inferno de Dante, pois trouxeram presentes para os filhos e choram e se desesperam quando estes reagem com apatia, como é muitas vezes o caso.
330Há crianças que não tomam conhecimento nem dos pais nem dos presentes, que se tornam até agressivas, rasgam os embrulhos, pisam neles, quebram tudo. Por isso tem médicos, enfermeiros e enfermeiras a postos, pois volta e meia uma criança sofre uma crise.
Ouvem-se também risos e a alegria de outras crianças. Elas anseiam por carinho, querem dar carinho também, explica Ruth. Apenas nas salas das mais gravemente enfermas reina um silêncio quase total. Os espásticos, os autistas, os horríveis hidrocéfalos dormem ou simplesmente não tomam conhecimento de nada que os cerca. Sentados nas camas, os pais choram.
O pastor Hirtmann também está presente. Sabe que pais e crianças hoje precisam dele. Andando ao lado da Ruth pela enorme clinica, vejo o pastor ora numa sala de espera, ora junto à cama de uma criança solitária, ou conversando com pais. Entre eles há de tudo, pobres e ricos, operários, gente da classe média, artífices, camponeses, intelectuais e industriais. O pastor deve estar falando com cada grupo de pais de um modo especial, compreensivo a eles, e que talvez lhes possa trazer algum consolo.
Na sala do pequeno Samy, que afirma ser Malechamawitz, o “Anjo da Morte”, vejo uma porção de camas sem pais ao lado. Ruth conta que muitos deixaram de vir há tempos; dão graças a Deus por se verem livres dos filhos e os saberem em boas mãos. Nas camas ao lado de Samy vejo alguns adultos e crianças que abrem embrulhos nervosas, para verem o que ganharam.
Vem cá - chama Samy ao nos ver. Não tem ninguém junto de sua
cama.
Samy é órfão diz a Ruth baixinho.
Nos aproximamos de sua cama e o cumprimentamos. Ele está deitado, vestido ainda. Nos sacode a mão com força, e diz com olhos brilhando dirigindo-se à Ruth:
Tenho um presente para você!
Para mim?
- É, Samy se enfia quase todo debaixo da cama. Todo mundo
não ganha presente hoje?
As crianças; dos pais!
- E quando a criança não tem mais pais? Samy reaparece. Suas
faces estão vermelhas Não tem que ser sempre pai e mãe, não é? Cinqüenta por cento também basta, não é? Pai ou mãe. Eu escolhi você como mãe.
Por que a mim? Vejo você tão pouco, você fica em outra...
- Gostaria que fosse você diz Samy.
Que eu fosse o quê?
- Ora, minha mãe diz ele estendendo-lhe muito sem jeito um
presente amarrado. Ruth abre. Samy dança à nossa volta de nervoso. Do papel surge uma caixinha. Ruth abre. Dentro estão dez bonequinhos feitos de trapos pretos, pedaços de barbante, papel e tinta.
Dez bonequinhos com dez chapeuzinhos na cabeça.
331Apesar da minha surpresa, mostro-me entusiasmado. Ruth evidentemente se animou logo.
Gostou?
Lindo Samy!
Sabe o que é?
Dez homens que dizem Kaddisch, não é? Tem que ser sempre dez,
não é?
Isto mesmo! Isto mesmo! Fiz para você!
Lágrimas de alegria aparecem nos olhos de Samy; pula de um lado a outro, abraça e beija alternadamente a mim e a Ruth. Abraçando-se a Ruth, exclama louco de alegria:
Muito obrigado, muito obrigado! Fiz para você! Muito obrigado!
Samy agradece por ele ter feito o presente.
O que significa “dizer Kaddisch’”} pergunto oaixinho.
É um hábito israelita. “Dizer Kaddisch” significa rezar por um
morto. Só os homens podem fazê-lo. Tem que ser sempre dez no mínimo.
Para um morto?
Ora, ele não é Malechamawitz, o “Anjo da Morte”?
Dizer Kaddisch! Dizer Kaddisch! :
É um presente maravilhoso, Samy!
Muito obrigado, muito obrigado! exclama o garoto abraçando e
beijando a Ruth, apertando-a contra si. Ela o beija e acaricia. Muito
obrigado, fiz para você!
Depois fomos ver a Babs. Ela dorme profundamente, segurando com ambas as mãos o velho e sujo urso que Jean Gabin dera-lhe há muito tempo, seu nounours. Parece tão calma! Ja são oito horas; os adultos partiram. Os corredores estão em silêncio.
Feliz Natal, sr. Norton diz a Ruth.
Feliz Natal, doutora respondo. - O que vai fazer agora?
Estou de plantão. Não sou casada. Não tenho família. Por isso me
apresentei para ficar de plantão.
Posso... posso ficar aqui também? Eu... eu também não tenho
ninguém.
Claro, sr. Norton. Ruth toma o pulso da Babs.
Quase normal de novo. A febre passou também.
Gostaria de beijá-la; não há nada que eu gostaria de fazer mais do que beijá-la. Sejam quais forem as circunstâncias eu quero ficar junto a esta mulher, tenho queficar, não há outro jeito. Aconteça o que acontecer à Babs, tenho que ficar junto da Ruth para sempre. Minha mãe me disse certa vez que havia dois tipos de mulher, mães e prostitutas. Eu agora sinto que cada vez a Ruth que irradia tanto amor materno, me atrai mais. Sou bastante inteligente para me observar a mim mesmo, e verificar que cheguei à posição de um paciente tratado com êxito por um bom psiquiatra. Ser inteligente, no entanto, não protege ninguém do amor.
332Será que ela sabia o que estava se passando dentro dela? Continuo a olhar para a Ruth. Por fim ergue os olhos e diz:
Tenho que ir a minha sala, para que possam me encontrar quando
precisarem de mim. Depois de toda esta excitação de uma festa de Natal, sempre acontece qualquer coisa.
É fiz eu, e acrescentei: Tenho um presente para a senhora,
doutora. E pensei: Para a Babs não.
Na sala de Ruth há muitos embrulhinhos, muitas garrafas em papel de presente, muitas cartas. Ruth conta que todos os médicos ganham uma porção destas coisas no Natal. Mais tarde vai abrir... amanhã talvez. Um só ela ia abrir logo. O de Tim. Mas Tim está morto.
Fez para mim pouco antes de morrer disse Ruth Deu para
os pais, que trouxeram essa tarde e me entregaram. Tira um envelope do
bolso de seu jaleco branco. Nos instalamos na mesa, um em frente ao outro. Lá fora está nevando há dias; ouve-se o zumbido do aquecimento central. Ruth abre o envelope, tira uma folha de papel dobrado.
Tim fez uma poesia para mim. Quer ouvir?
Quero.
Em cima da mesa vê-se um arranjo de pinheiro com uma vela vermelha. A vela está acesa. É a única na sala. À luz amarela desta vela, Ruth lê a poesia do garoto já falecido. Ele escreve:
Tentei explicar a você Tentei de verdade, Tentei explicar a você, Que a vida não vale a dor Você não acreditou.
Disse apenas: Incurável.
Mas quando o fim chegar,
Você será como eu...
Alquebrada, despojada de tudo,
E você terá que viver
A vida da morte viva.
Estou preso a minha cadeira,
O que importa?
Não tenho mais orgulho,
Já não tenho mais.
O mesmo lhe acontecerá,
E você tentará lutar,
Mas logo reconhecerá
Que é uma luta de vencidos,
E que os homens esperam ansiosos
Para ver você ruir a seus pés.
333Oh, como detesto dizê-lo... Tentei tanto lhe explicar!
Ruth baixou a folha.
Pobre Tim disse eu.
Ele é que é feliz disse ela. Está livre. De todas as pessoas, sr.
Norton, foi este garoto paralitico que me entendeu mais profundamente, mais certo... melhor até do que eu a mim mesma.
Pobre Ruth disse eu Agora ele está feliz, e a senhora ficou
só.
Todo ser humano vive só. Desde o momento que nasce até morrer.
Existem momentos na vida de cada um, na minha evidentemente também, em que nos sentimos especialmente sós. São muito freqüentes até, embora estejamos sempre esperando que a vida mude. Mas temos que nos conformar. Acredito que só aquele que sabe viver em solidão é capaz de viver também com os outros. Se alguém não sabe viver só, também não conseguirá se
entender com os outros. Mas isto é uma história muito comprida...
Calou-se. Depois de algum tempo perguntou baixinho:
Por que me olha assim, sr. Norton?
Porque a amo.
Pare com isto, agora mesmo.
Não respondi eu. Não vou parar nunca de amá-la com todo
meu coração. Levanto, vou apanhar um embrulho chato dentro do meu
casaco. Prometo só voltar a falar do meu amor, quando me permitir...
ou quando pedir. Posso agora lhe dar meu presente de Natal?
Ela apenas balançou a cabeça.
Vou até o toca-disco que fica na sala, pois meu presente é um disco que desembrulho e coloco em cima do prato do aparelho. Este começa a girar. Comprei o disco em Paris. Abaixo a agulha. Ouve-se a voz de John William:
“O Dieu, merci, pour ce paradis, qui s’ouvre aujourd’hui à un de tes fils...”
O disco predileto de Suzy Sylvestre. Da minha pequena prostituta com seu salão de beleza. O disco que quebrei naquela noite cortando meu dedo, quando a Babs estava passando tão mal e eu saí da casa de Suzy para o Hospital Sainte-Bernadette. Agora comprei outro... para Ruth. Sentada imóvel ela escuta:
“... obrigado Deus, por este paraíso, que se abre hoje para um de
Teus filhos, para o menor, o mais pobre de Teus filhos...”
Não olho mais para a Ruth, olho pela janela para a noite branca de
neve...
“... no monte de Gólgota erguia-se uma cruz, uma cruz. e lá
estavas Tu, oh! Senhor, na cruz estavas Tu; e talvez, talvez Tu já estendas Teus braços para mim...”
Quanta neve! penso eu. Nunca vi cair tanta neve.
334“... sim, lá estavas Tu, que me estendias os braços, a mim, o mais
pobre de Teus filhos...”
A neve é tão branca, e tão negros os dez bonequinhos de trapos que Samy fez para a Ruth. Aqueles dez homenzinhos de chapéus pretos, dizendo Kaddisch para um morto...
“... e eu sinto a chama da alegria se erguer em mim, e exclamo:
Obrigado meu Deus, por este paraíso que hoje se abre para o menor, o mais pobre de Teus filhos...
Sentado no chão eu me viro; a Ruth olha para mim fixamente. A luz da vela treme. Ouvimos a canção até o fim. Levanto e vou até a mesa. Também a Ruth se ergue.
Obrigado, sr. Norton diz ela.
Eu lhe agradeço também.
Por quê?
A senhora sabe por que. Ela desvia o olhar e diz:
Vamos dar uma olhada na Babs?
Vamos.
Os corredores que atravessamos estão desertos.
A Babs dorme.
Eu e Ruth estamos sentados um em frente ao outro, cada um de um lado da cama. Depois de um longo silêncio Ruth afinal começou a falar...
O dr. Bettelheim vivia obcecado pela idéia que um grande número
de clínicas psiquiátricas só pioravam o estado do doente pela atmosfera que apresentavam. Sempre tentou organizar sua Orthogenic School com mais conforto, mais aconchego... como se fosse um lar. Lar é para ele uma palavra muito especial. Escreveu um livro em inglês, cujo título traduzido é: Um Lar para um Coração.
- Ele deve fazer isto para que as crianças se sintam em casa, e assim tenham a esperança de voltarem a ser crianças normais. A senhora não me disse que ele trata de crianças psicóticas, crianças cujos centros nervosos não estão destruídos, mas que apenas sofreram perturbações... não é?
- Quando se tem sorte, sim.
- Estas crianças quando conseguem, pensam; e quando não, sentem que alguém gosta delas, que são tratadas como gente, enquanto que em outras clínicas talvez não liguem para isso, não é?
- Não sei lhe responder isto assim em poucas palavras; posso é dar-lhe um exemplo. Quando estava trabalhando com o dr. Bettelheim, vi na clínica um berço lindo de camponês que datava do século dezessete.
Babs deu um suspiro profundo no meio do sono.
- O dr. Bettelheim há tempos precisava de um berço em que coubesse confortavelmente uma criança de oito ou dez anos. Não encontrou nenhum que fosse bastante grande e resistente.
- Podia ter mandado fazer.
335Claro. Mas isto significaria mandar fazer um berço para um doente
mental. E era exatamente o que ele não queria! Estaria assim de saída marcando a diferença entre uma criança normal e uma excepcional.
Entendo.
Resolveu por isso encontrar um já pronto, que já viesse dando
abrigo e aconchego a muita criança normal. Procurou durante muito tempo. Finalmente encontrou um em casa de camponês... datava do século dezessete.
Passamos toda a noite de Natal sentados junto à cama de Babs. Quase não conversamos mais. Não houve nenhum caso especial em que precisassem chamar o médico. Pelas quatro da manhã, a Ruth adormeceu em sua cadeira. Durante muito tempo fiquei olhando para as duas, para ela e a Babs, que dormiam. Passei a noite acordado.
E a neve não parava de cair...
Caleidoscópio! Caleidoscópio!
Folheio meu diário. Fiquei em Nurenberg junto da Babs e da Ruth, até 13 de janeiro de 1972. Ainda tenho tanta coisa para contar que o senhor precisa saber, sr. Juiz, e temos tão pouco tempo... TÃO POUCO TEMPO, como o nome daquele filme da Sylvia. Procuro pois, resumir.
Reparo que no dia de Natal esqueci de telefonar para a Sylvia. Depois da noite passada em claro, fui direto para o hotel dormir. O telefone me acordou. Era de tarde; era a Sylvia. Medo e reclamações. O que estava acontecendo? Repeti o que vinha dizendo há tanto tempo, que a Babs vinha melhorando dia a dia. Sylvia ficou satisfeita. Mas por que não ligara antes? Porque tinha passado a noite inteira na cama da Babs. Sou o Lobinho mais adorado de todos os Lobinhos do mundo...
Tenho que confessar que me é cada vez mais difícil ligar para a Sylvia. Aquele tom de bebê! Aquelas palavras de carinho! A sensação cada vez mais forte de estar ligado à Ruth. O hábito da Sylvia de logo depois de receber as boas notícias passar a falar de seus próprios problemas. Vive entediada. Tem tempo para ficar pensando. Pede que eu fale com o Rod para dar uma olhada
na sua situação financeira (São uma merda todos eles). Como vai o
CÍRCULO DE GIZ? Por que ainda não começaram as obras? Felizmente os projetos e os desenhos do figurinista já estavam prontos. Mas estavam com Rod, e ele não os mandava. Devia ligar para ele, exigir que enviasse imediatamente tudo para ela. Meu Deus, como estou bonita agora, Lobinho! Você
vai se apaixonar de novo por mim assim que me ver. Acredito Bruxinha.
E continua assim, sem parar...
Pelo que leio no meu diário, sr. Juiz, vou ficando realmente com medo destes telefonemas. Com Rod só falo para dar informações.
Conheço novos auxiliares na clínica; mais pessoas que vivem no escuro. Mantenho longas conversas com o pastor Hirtmann. Passo meus dias na clínica, quase sempre junto à Babs. Ela não teve mais febre. A paralisia cedeu quase totalmente. Continua vesga, porém bem menos.
336Estranho, nunca pergunta pela Sylvia, embora esteja agora inteiramente lúcida. Pergunto à Ruth porque aquilo. Ela diz que ainda não conseguiu entender muito bem. Acho que ela já entendeu, e muito bem até, mas não digo nada.
Quando a Ruth dá plantão à noite, também eu permaneço na clínica até de manhã. Muitas vezes ela toca o disco que lhe dei de presente.
Notícias ruins de Hollywood: o duble da Sylvia de longos anos adoeceu seriamente e não poderá trabalhar no CÍRCULO DE GIZ. Será preciso procurar outro, de preferência na Espanha mesmo. Achar é que são elas!
O restabelecimento da Sylvia vem sendo tão rápido que deverá receber alta em 19 de fevereiro de 1972. Está feliz! Nós não. Uma vez livre, ela vai querer ver a Babs. Como impedi-lo? Será possível? Rod fala de telefonemas com Joe que está muito deprimido e espera “ter uma idéia”. Tomara.
Desde a noite de Natal, vejo em cima da mesa da Ruth os dez bonequinhos que dizem Kaddisch. A pequena ovelha ela carrega sempre consigo. Também a Ruth me preocupa. O que acontecerá à Babs quando a Sylvia tornar a aparecer em público? Será que dava para conversar com aquela mulher? Não; responde Ruth à sua própria pergunta. Com nenhuma mãe que ama o filho doente pode-se conversar direito. Tínhamos ido fazer um longo passeio de carro até Steinbuhl, um bairro ao sul de Nurenberg; fomos além mais, até a Gartenstadt (Cidade Jardim) toda coberta de neve.
Como sempre, a Ruth errou o caminho uma porção de vezes (É realmente um problema sério). Tomava a direção errada, mas sempre chegávamos ao destino certo.
Gartenstadt é um bairro com um edifício só e uma porção de casas com jardim. No verão deve ser muito bonito: pátios ensolarados, alamedas de bétulas, lugares para descansar. Ruth conta que vem aqui muitas vezes em seu VW branco, respirar um pouco de ar puro. Naquele dia o carro teve um defeito e voltamos de bonde. Nele havia um garoto de seus quatorze anos. O bonde estava lotado. O garoto sentado. Uma mulher gorda em sua frente se irrita:
Um galalau forte destes sentado, hein? O coitadinho tem que
descansar, não é? Eu ia dizer alguma coisa mas a Ruth me reteve. O
trocador que conhecia o garoto se manifestou em meu lugar:
- Para alguém que não consegue se equilibrar, ficar em pé não dá muito jeito.
A gorda fica indignada:
- E o senhor ainda o defende? Diz uma coisa destas?
Todos se viraram. Uma outra mulher reconheceu o garoto doente e disse:
- Ora, é o filho mais velho dos Lens. Ele não é muito... e ela
bate com o dedo na testa. A essa altura todo mundo olhava para ele, murmurava entre si... Algumas vozes se levantaram a favor do garoto. De repente a gorda grita:
337E como é que vocês querem que eu saiba disso? Por que estes
idiotas não usam distintivo... uma faixa no braço, por exemplo... ao menos aí a gente sabia logo...
A Ruth enterrou as unhas na minha mão, pois sentiu que eu ia me manifestar.
Calma, sr. Norton diz ela. Milhares de pessoas pensam
assim. O senhor agora viu.
Mas é preciso que se tome alguma medida!
Seria preciso, sr. Norton diz a Ruth apenas.
No dia seguinte a médica acha que está na hora de aplicar uma bateria de testes em Babs. Para me consolar, diz que não é nada mais do que uma primeira avaliação do estado da criança. Precisa saber em que pé a Babs está. Consigo permissão para assistir. Trata-se de um método desenvolvido entre
1963 e 68 por especialistas, sob a direção do dr. Curt Bondy do Instituto de Psicologia da Universidade de Hamburgo. Levando em conta a idade, sexo, estado geral do doente e outros fatores, avalia o grau de inteligência, a capacidade motora de comunicação oral e percepção. Muitos testes são tirados de trabalhos americanos.
Teste de inteligência: entre diversos objetos de cor que aparecem num quadro, a criança deve apontar aquele que não tem relação com os outros, que é “diferente”. São cem quadros, porém o teste não demora mais que quarenta minutos. Não existe na verdade limite de tempo. As tarefas vão se tornando cada vez mais difíceis. Por exemplo: Casas coloridas e objetos que aparecem dentro de uma casa; de repente uma mão e logo outro objeto de casa. Babs liquida todos eles sem um erro, em vinte e dois minutos, observando:
Isto é para bebê. Sua voz no entanto ainda é bastante insegura.
No dia seguinte continuam os testes de inteligência pelo método Raven. São ao todo quarenta e seis tarefas. Babs deverá completar as lacunas nas diferentes figuras geométricas com a peça adequada. Tem triângulos, círculos, semicírculos, segmentos de círculos e outras peças de formatos mais complicados. Os testes são baseados na série americana Coloured Progressive Matrices. A Babs não tem a menor dificuldade em encaixar corretamente todas as pecinhas.
Como sempre, quando em presença de crianças, a Ruth sorri. Ao ver a facilidade com que a Babs se desincumbe da tarefa, ambas se entreolham radiantes; a Babs ainda um pouco vesga.
No dia seguinte.
Verificação de vocabulário. Para esta bateria de testes foram escolhidas setenta questões do Peabody Picture Vocabulary Test, de Duann. Baseado no princípio de múltipla escolha, a Babs terá que apontar a figura certa depois da Ruth citar o nome de uma delas. Um quadro apresenta por exemplo as figuras de uma meia, um lápis, uma borboleta e uma maçã.
338Digamos que a Ruth diga: Lápis! Babs deverá então apontar para o desenho do lápis.
Ela acerta. Acerta muitas vezes. Também erra uma boa quantidade.
No dia seguinte.
Capacidade de percepção. Ruth agora trabalha com “Cumprimento de Ordens”. Nounours aí representa um papel importante...
“Pegue nounours no braço... meta nounours debaixo das cobertas... Tire nounours debaixo das cobertas e entregue a mim, Babs...”
As ordens são a princípio bem simples, mas vão se tornando mais complicadas. Babs não comete um único erro, embora o teste leve bastante tempo. Mesmo quando a Ruth passa a usar como material seu relógio de pulso, a ovelhinha, uma maleta de brinquedos dentro da qual Babs deverá colocar a ovelha e depois tirar de novo, e com outros objetos diferentes. Todos estamos radiantes. Gotas de suor aparecem na testa da Babs.
No dia seguinte.
Coordenação motora. Pará isto usa uma folha com cem círculos impressos. Em um minuto a Babs deverá marcar com um ponto o maior número possível de círculos. Os pontos deverão ficar bem no meio do círculo.
A Babs consegue marcar oitenta e nove círculos. Quase todos os pontos estão próximos do centro, muitos poucos na linha; nenhum do lado de fora.
Sua fala no entanto continua confusa, suas frases se compõem de poucas palavras apenas.
Isto também vai melhorar afirma a Ruth.
Será que vai?
Quinta-feira, 13 de janeiro de 1971. Rod telefona para o hotel. Devo estar em Madrid no dia seguinte. Presença indispensável. Nos escritórios da ESTÚDIOS SEVILLA FILMS, os trabalhos já começaram. Arquitetos, técnicos, contadores, diretores. Sendo eu o chefe de produção da SYRAN PRODUCTIONS, devo estar presente também; Bob Cummings, o diretor de produção que Rod escolheu para mim, chega amanhã. É evidente que a minha presença seja necessária... especialmente se Bob for me substituir depois. É bom evitar falatório. Despedida da Babs. Ela está até contente. Não vou demorar. Nunca disse uma palavra a respeito da mãe. Ainda tenho algumas formalidades para liquidar. A administração apresenta a conta. Na hora da entrada já havia feito um depósito. Rod acertara tudo com o Hospital Sainte-Bernadette. A conta da clínica de Nurenberg não me preocupa. Não dependo mais exclusivamente de acertar nos cavalos; hoje recebo meus honorários como chefe de produção.
A Ruth me leva para o aeroporto em seu VW (já novamente consertado). Toma a direção errada, como sempre. Chego em cima da hora. Despacho minha mala ordinária de fibra e ia me despedir da Ruth, mas esta faz um rápido sinal com a cabeça e sai correndo. Não se vira uma única vez.
Paris. LE MONDE. Rod já seguiu para Madrid. Mudo de roupa e de mala; sou Philip Kaven mais uma vez. Para Madrid no jato da Sylvia.
339No aeroporto de Barajas, Rod e Bob Cummings me esperam. Sei que Bob já foi por diversas vezes o diretor de produção de muitas superproduções de grandes sociedades cinematográficas de Hollywood. Tenho a certeza que é a melhor pessoa que Rod podia conseguir. Deve andar pelos cinqüenta. Alto. Espigado. Rosto estreito. Membros compridos. Cabelo grisalho cortado curto. Amável e objetivo. De toda confiança; Rod já me dissera antes. Bob está a par de toda a verdade, inclusive do papel que eu e ele devemos desempenhar. Sacode a minha mão longamente e diz:
Pode confiar em mim, sr. Kaven. Em qualquer situação. Sempre.
Sexta-feira, 14 de janeiro até sexta-feira, 28 de janeiro de 1971. Resumo das anotações do diário. Madrid. Hospedados no CASTELLANA HILTON. Muito serviço nestes dias. Passo-os quase todos no ESTÚDIOS SEVILLA FILMS. O frio em Madrid aumentou. O vento espalha constantemente nuvens de poeira vermelha por toda a área. Operários fincam os primeiros postes e mourões. Caminhões com material de obra chegam, um atrás do outro. Pilhas imensas de madeira, montanhas de sacos de cimento e de gesso. Chegam máquinas, guindastes e dragas. Arquitetos americanos e espanhóis trabalham em conjunto. Inicia-se a construção daquele conjunto imenso. Nos prédios de escritórios com suas altas janelas de grade em estilo andaluz, funciona o aquecimento. Não adianta. Todos trememos de frio. Muitos estão resfriados. O roteirista americano está presente a fim de fazer alguma correção de acordo com as realidades físicas do local e os desejos do diretor Da Cava. O pessoal da montagem chega e começa a preparar suas salas. A equipe de produção técnica e financeira ocupa seus respectivos lugares. Tomadas de telefone são pedidas e instaladas. Joe e Rod não confiam no trabalho das copiadoras européias. Todas as tomadas de cena, no fim do dia serão enviadas de avião para Hollywood. Ali serão tiradas as cópias, e as revelações devolvidas para Madrid.
Comparsas espanhóis são contratados como figurantes; não são poucos. Um escritório de distribuição está em funcionamento. Escolho os figurantes juntamente com Da Cava. Não tenho a menor idéia de nada disso, mas não posso sempre concordar logo com Da Cava, Contradigo pois de vez em quando, mas acabo dando razão a ele. Da Cava é um diretor mundialmente famoso. Sabe perfeitamente do que precisa.
Negociações acirradas dos técnicos com camponeses e criadores de cavalos. Precisamos de muitos animais, sobretudo de cavalos para os guardas. Três intérpretes trabalham no local. Tenho que estar por toda a parte, dando minha opinião. Bob Cummings me orienta sobre o que devo dizer. Ele é formidável. Mantém-se sempre retraído. Afinal o chefe de produção sou eu, não é? Começam as negociações com as autoridades espanholas. Problemas de divisas. Não entendo nada disso. Bob explica. Em seguida dou minha palavra decisiva. O mesmo ocorre na hora do seguro. Para este fim uma das maiores companhias americanas de seguros de filmes, enviou sua equipe experimentada.
340Nunca trabalhei na vida. Agora fico sentado até muito depois da meia-noite, no meu apartamento com Rod e Bob. discutindo planos financei ros. obras e filmagem.
O tempo voa. Telefono para a Ruth... Está satisfeita com a Babs.
Em 19 de fevereiro a Sylvia sairá da clínica do dr. Delamare e aparecerá novamente em público.
Quando ela aparecer... o que será então?
O que?
Colocamos um anúncio enorme no jornal de Madrid, o ABC, procurando um double para Sylvia Moran. Deverá se apresentar diariamente entre 15 e 18 horas no escritório do chefe de produção da SYRAN PRODUCTIONS, nos ESTÚDIOS SEVILLA FILMS. Deram-me um escritório imenso. Sei perfeitamente que vou usá-lo muito pouco, no entanto está todo decorado, cheio de pastas e projetos. Obra de Bob Cummings, pois afinal ninguém deverá ter a menor suspeita de que tudo não está em perfeita ordem.
O anúncio foi publicado no dia 28 de janeiro, na parte da manhã. É uma sexta-feira. Não posso deixar de ficar no escritório nesse dia. Rod, Bob e o diretor Da Cava estão também presentes, além do Cameraman-chefe Roy Hadlley Ching, um dos mais famosos de Hollywood (já esteve com sua equipe em Saragoça, Barcelona e nos Pirineus à procura de motivos), e o casal Katie e Joe Patterson, os maquiladores da Sylvia.
Verificamos mais tarde que 114 moças e senhoras se apresentaram como doubles. Num frio de gelar, num vento cortante, ficaram esperando pacientemente durante horas, primeiro do lado de fora, mais tarde na fila, nos corredores cheios de correnteza do prédio da administração. A apresentação não durou só até as 18 horas; estendeu-se até as 2h14min da madrugada. A essa altura meu escritório estava empestado de fumaça; pelas mesas viam-se copos e garrafas de uísque e cerveja. É difícil entender quanta mulher realmente acredita ser parecida com artistas famosas. Pouquíssimas imaginam a vida árdua que leva um double de uma grande artista. Nos infindáveis preparativos que precedem a cada tomada de cena, são elas que substituem a artista, para que esta não se canse inutilmente. O double substitui o artista quando preparam a iluminação, o que pode durar horas. Experimenta as roupas, e por isso deverá ter exatamente as mesmas medidas do artista. É usado nas provas de maquilagem e penteados; por ocasião de todas as reuniões das equipes de técnicos e artistas, em que planejam e estudam, procurando dar à aparência do artista, o máximo de efeito e fidelidade histórica. Estas experiências por vezes duram semanas.
A medida que as horas iam passando eu ia me sentindo pior... Os outros tinham mais paciência, para eles aquilo era rotina. Acostumaram-se a atender toneladas de espantalhos e sirigaitas histéricas, convencidas de se parecerem com a Sylvia Moran. Minha cabeça começou a doer. Os olhos a lacrimejar. O coração doía. Às 2h14min da madrugada apertei meus olhos doloridos e vermelhos, e me inclinei para frente.
341Como eu, todos olharam perplexos para a jovem que acabava de entrar na sala.
A senhora é... é... começo eu, mas não consigo continuar.
A moça olha para mim assustada.
A senhora não é o double de Sylvia Moran, a senhora é sua sósia!
diz Rod. Não acha, Phil?
Apenas consigo balançar a cabeça.
Na minha frente está Sylvia Moran! Evidente que não é ela. Mas é exatamente como se fosse.
Falando espanhol, Da Cava, o diretor, pergunta-lhe:
Como é seu nome?
Carmen Cruzeiro.
A senhora mora aonde? pergunta Bob.
Em Madrid.
- Trabalha aonde?
SPANEX responde ela.
Que é isto?
Uma firma de exportação e importação. Sou secretária da seção de
línguas. Falo inglês, francês e alemão.
Bob Cummings olha para mim e faz um sinal quase imperceptível com a cabeça.
A senhora está contratada digo eu.
Carmen Cruzeiro começa a chorar. Rod lhe dá um copo de uísque. Ela quase sufoca. Finalmente acaba se acalmando. Seus dados pessoais são anotados. Eu me levanto e lhe cedo meu lugar. Depois de tudo resolvido, a Carmen se despede me estendendo a mão. Um cartãozinho passa de sua palma da mão para a minha. Todos vão para casa. Alugaram uma série de carros, pois o Rolls Royce da Sylvia e a minha Maserati só seriam trazidos pouco antes da chegada da Sylvia. Alguém acompanha a Carmen. Volto com Rod para o CASTELLANA HILTON. Cada um vai para seu quarto. Só então dou uma olhada no cartão que a Carmen deixou na minha mão. Está escrito à mão.
Moro no Hotel CERVANTES, Plaza de las Descalzares Reales,
apt°. 12. Espero-o amanhã às 21 horas. Cordialmente, Carmen Cruzeiro.
Tengo siete munequitas muy chiquitas, muy bonitas...
Debaixo do apartamento da Carmen ouvem-se vozes de crianças. Este hotel confortável onde também se alugam apartamentos mínimos, e que fica perto da Puerta del Sol, eu só conhecia de vista, nunca tinha entrado. São 21h
30min da noite de 29 de janeiro de 1972. Estou sentado em frente à Carmen Cruzeiro na mesa da pequenina sala, bebendo Chatos, o barato e bom vinho tinto. Devo ter bebido muito, pois minha boca arde. A Carmen preparou uma travessa com espetinhos de carne fortemente codimentados, azeitonas, lingüiça vermelha de tanta pimenta, tortillas. O prato está em cima da mesa; já comi uma boa porção, ouvindo-a contar de maneira interessante, coisas na maioria sem a menor importância.
342Conta por exemplo, que comprou as seis garrafas de vinho e a travessa de salgados numa Tasca próxima. Tasca são bares estreitos, com balcões compridos onde se come em pé. Existem centenas deles em Madrid.
... que se llamam: Mia, Pia...
É aniversário de uma criança; uma festa enorme! Falávamos
espanhol. As crianças aqui vão dormir tarde.
... Una, Pepa, Rosalia, Pilarin e Montserrat... cantam as
crianças lá embaixo.
Neste hotel sempre moram algumas famílias. Eu já moro aqui há
bastante tempo.
Pego mais um espetinho de carne e uma azeitona. Como devagar e bebo meu vinho. Já estou bastante “alto”.
“Sete bonequinhas tenho eu” - é o que as crianças cantam em
espanhol lá embaixo. “Sete, pequeninas, bonitinhas. São a Mia, Pia, Lina,
Pepa, Rosalia, Pilarin e Montserrat...”
Uma mulher dificilmente há de ler esta página. Ela nunca poderá enten der por que vim ver a Carmen. Os homens sim. Eles entendem que se possa gostar de uma mulher como eu gostava da Ruth, mas ter a necessidade de, de vez em quando, ir dormir com outra. Não existe relação pessoal nenhuma com a mulher com quem se dorme. Quando se tem a escolha entre uma que parece razoavelmente decente e uma prostituta declarada, e quando esta ainda se nos oferece, dorme-se com ela, e fica-se satisfeito por algum tempo: evita o enlouquecimento. Existem mulheres que conseguem pensar como homens, e chegam até a dormir com um homem sem que aquilo as afete moralmente. Conheço algumas. Não muitas.
“... Ninguém tem mais bonitas, não é exagero não. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete...”
Uma coisa no entanto é estranha: a idéia de ter que dormir novamente com a Sylvia, me incomoda. A perspectiva de dormir com uma mulher quase idêntica a ela, no entanto, me excita mais ainda do que já estou.
Carmen usa um vestido vermelho berrante com decote profundo. É a Sylvia quem está sentada lá conversando comigo... no entanto é uma mulher diferente por completo, e todo meu amor pertence à outra que está lá longe em Nurenberg. É de enlouquecer!
“... É taõ bonito sair com ela, com ela desfilar. Com os vestidinhos de seda colorida, são um deleite pro olhar...”
Se a Carmen for muito escandalosa, tão escandalosa quanto a Sylvia, a criançada là embaixo vai se deliciar. Depois penso em tudo que a Carmen me contou. Na rotina maçante de seu trabalho na firma de exportação e importação; como todo mundo sempre lhe disse que era incrivelmente parecida com a Sylvia Moran; o quanto ela venera a Sylvia. Também já leu e ouviu falar tanto sobre mim e a Babs. Não lhe incomoda absolutamente ir para a cama comigo. A mim também não.
343Carmen contou que sabia que era obrigação sua dormir com a pessoa que a contratasse, por isso tinha escrito aquele cartãozinho ainda antes de se apresentar. Não sabia a quem ia entregá-lo. Eu tinha sido a pessoa.
Parecia ser um grande acontecimento para ela, dormir com Philip Kaven. Não há o menor perigo, pois ela nunca dirá absolutamente nada a ninguém.
Como todas as beldades tolas a Carmen acredita que vai escalar os degraus da fama. Ao primeiro ela já chegou. Se ela der com a língua nos dentes, sabe perfeitamente que o terá descido outra vez. Me contou que sempre desejou ser artista. Agora está convencida de que será. Qualquer um daqueles graúdos irá reparar no double da Sylvia, enquanto o filme for rodado e... quanto a isso não há a menor dúvida, seu caminho para Hollywood estará aberto! Claro.
“... E como nenhuma delas sabe andar eu as carrego nos braços”
cantam as crianças. A algazarra é grande. Ouvem-se estalos e apitos...
Carmen leu o anúncio no jornal e sabia na mesma hora: Chegou o momento pelo qual já esperava há tantos anos! Tomou primeiro um bonde, depois um ônibus, e veio para o estúdio. Sabia perfeitamente: Este era o início de uma nova vida! Está tão excitada, tão feliz, tão agradecida.
O senhor não quer tomar mais alguma coisa? perguntou ela,
sempre me tratando por “senhor”. Tenho a certeza de que também vai me tratar assim na cama. Levanta.
Volto já diz ela desaparecendo no quarto. Continuo a beber
meu vinho, escutando a gritaria da criançada. Do HILTON tentei ligar para Ruth, porém não conseguiram localizá-la. Fiz outra coisa estranha que talvez nem os homens possam entender (eu de qualquer maneira não sei explicar); dei à telefonista da Casa de Saúde de Nurenberg, o número do telefone do hotel onde me encontrava agora com a Carmen, dizendo que poderia ser encontrado até bem tarde, pois estava numa conferência, e que em caso urgente, a dra. Reinhardt poderia ligar para aí. Pura rotina. Liguei também para a Sylvia em Paris e disse que a Babs estava passando tão bem, que dentro de duas ou três semanas ela poderia levantar. A Sylvia ficou toda satisfeita. Esforcei-me para não prolongar muito o assunto, mas não consegui, pois a Sylvia primeiro teve que falar de todo seu amor pela Babs, e por mim, e das idéias que ela tivera em relação ao filme CÍRCULO DE GIZ. Nesta
altura eu fingi não estar mais ouvindo. Disse alô! alô! umas dez vezes, e
ela acabou desligando. Rumei para o apartamento da Carmen que tanto se parece com a Sylvia, como se fosse irmã gêmea.
Bebendo meu vinho, penso em tudo isto. De repente ouço um ruído, e virando-me vejo a Carmen no meio da porta do quarto. Está nua. Nuazinha! Sorri. Sinto subitamente o sangue subir dentro de mim, levanto e vou caminhando em direção àquela mulher, que estende os braços para mim. Neste instante o telefone toca.
Quem será... começa Carmen.
344Apesar de seus protestos pego logo o fone e sinto minhas costas se cobrirem de um suor frio, pois sei quem está do outro lado do aparelho. Só pode ser uma pessoa. O porteiro pergunta se eu sou o senor Kaven. Sim? Ligação de Nurenberg, pode falar, por...
Alô, alô... sim?
Sr. Norton?
Sou eu, doutora.
Por favor venha o mais rápido possível.
Como? Aconteceu alguma coisa?
- Sim.
A Babs morreu?
Não. Mas ela... Por favor, venha o mais rápido possível!
É alguma coisa de grave?
É, sr. Norton.
Deixo cair o fone, saio correndo para o corredor, derrubando uma garrafa de vinho. Pego meu casaco e deixo o apartamento às pressas. A Carmen vem correndo atrás de mim, nua. Grita algo, por muito tempo. Não entendi nada.
Sábado, 29 de janeiro de 1972. Nurenberg.
Babs!
Nada.
Babs! Estou de joelhos ao lado de sua cama.
Nada. Ela continua deitada, imóvel. Quando eu a vi pela última
vez...
Noto que está muito mais vesga.
Babs! Sou eu, Phil!
De repente ela se ergue na cama; se põe na ponta dos pés como uma bailarina e agita os braços. Ao tentar me pisar no rosto, cai.
Olho horrorizado para Ruth. Está séria como nunca.
O que houve?
- Há alguns dias está assim diz ela baixinho Pensei que fosse
um síndrome passageiro, por isso não lhe disse a verdade ao telefone... Me desculpe. Mas agora me vi obrigada a ligar para Madrid, para lhe pedir que voltasse imediatamente. Já começamos a dar um medicamento específico. Está tomando Alepson.
- Mas ela se havia recuperado tão bem!
- Foi disse Ruth. Cinco dias atrás, de repente me bateu. Caiu
da cama, entrou num estado de agitação tremendo. Tentou voltar para a cama. Nisto eu reparei que os membros esquerdos estavam de novo quase totalmente paralisados. Nos dias seguintes fez tudo na cama.
- Mas como é possível?
- É, sr. Norton, grandes melhoras, fortes recaídas... Quantas vezes isto acontece!
Não consigo ficar olhando para Babs, tão vesga está!
345Vai precisar de óculos, se não melhorar diz a Ruth. Óculos de
estrábica, Santo Deus!
Olhe só a Ruth aponta para a poltrona, onde está o nounours
que Jean Gabin lhe dera e do qual gostava tanto.
Pernas e braços do urso tinham sido arrancados; a cabeça também. Estava tudo espalhado.
Isto ela fez hoje. Durante um novo acesso de raiva. Hoje de manhã.
Eu vim correndo, ela gritava como louca. Chegamos a lutar uma com a outra. Depois de um momento para outro, emudeceu.
Emudeceu?
É. Não disse mais nem uma única palavra.
Isto também acontece?
Acontece, sr. Norton. Sei que no dia 19 de fevereiro a sra. Moran
irá reaparecer em público. Temos que imaginar um plano. Foi por isso também que mandei chamá-lo. O senhor deve ter tido um sexto sentido quando me deixou o número do hotel em que estava em reunião. Quando o senhor ligou, eu me encontrava no quarto da Babs.
Sexto sentido, penso eu, e vejo a Carmen nua diante de mim.
Ainda temos três dias diz a Ruth Vamos fazer uma série de
exames minuciosos para saber o que houve, embora no seu estado atual, seja bem difícil. O senhor vai poder ficar aqui até 19 de fevereiro?
Claro. Só tenho que ligar agora mesmo para Rod. Posso usar sua
sala?
Mas é evidente!
Dou uma olhada na Babs. Tenho a impressão que de segundo em segundo seus olhos vão se revirando mais. Olho para o lado. Vejo o adorado nounours que ela estraçalhou. Abro a porta e deixo a Ruth passar. Corro atrás dela chamando:
Doutora!
- Sim!
Está indo para o lado errado... sua sala fica na outra ponta do
corredor.
Isto nunca me aconteceu aqui dentro diz ela assustada. Pela voz
nota-se que está muito perturbada. Eu também estou. E agora?
Sábado, 29 de janeiro de 1972. Dou a notícia a Rod. Pragueja horrivelmente. Diz que vai ligar para Joe, para ele vir a Paris quando a Sylvia voltar ao LE MONDE e souber a verdade. Agora chegou a hora de tomar decisões para um prazo maior.
Apesar de nos dias seguintes quase não sair da Casa de Saúde, só vejo a Ruth por algumas horas. Toda uma equipe está examinando a Babs, para fazer um diagnóstico decisivo. Fico sentado horas na sala da Ruth, instalado em sua mesa, diante dos dez bonequinhos de trapos.
Tenho que esperar.
Rod telefona constantemente.
346O que está acontecendo?
Ainda não sei.
Joe e sua turma já estão a caminho de Paris.
Leio e espero.
Leio que em 1968 a Liga Internacional de Jerusalém aceitou com
unanimidade de votos uma Declaração dos Direitos para as Crianças Excepcionais. Há pouco tempo, 20 de dezembro de 1971... Babs a esta altura já
estava doente... a Assembléia das Nações Unidas apoiou-a também por
unanimidade, redigindo logo uma introdução para ela. No final do artigo VII
desta introdução, na versão alemã e inglesa que tenho diante de mim, aparece
em maiúsculas:
O EXCEPCIONAL TEM ACIMA DE TUDO O DIREITO A SER RESPEITADO COMO SER HUMANO
Leio também:
PESQUISA DE OPINIÃO: A posição da população da República Federal Alemã diante da criança excepcional. Levantamento especial de julho e agosto de 1969.
90% dos 2.000 cidadãos interrogados na idade de 16 a 90 anos. não sabem como se portar diante de um excepcional.
70% acham-nos repugnantes. 56% não gostariam de ser obrigados a morar com um deles. 70% são contrários a manter excepcionais em casa; acham que tais crianças devem ser colocadas em institutos apropriados. 60% são contra o fato de crianças excepcionais e deformadas serem mantidas vivas através de esforços da medicina.
Na noite de 31 de janeiro de 1972 a Ruth está sentada à sua mesa e eu em frente. Todos os exames estão encerrados.
Sr. Norton diz ela Os resultados são bem ruins.
Como é possível? A Babs estava indo tão bem... eu mesmo estive
presente aos testes, a senhora se lembra?
Lembro. A situação infelizmente se modificou por completo. É o
mal desta doença. Não quero, nem posso enganá-lo, sr. Norton. A doença deixou graves lesões na Babs, que só agora estão se manifestando na íntegra. Houve uma modificação total em seu estado, o que até para nós é incompreensível. Nossos exames no entando estão perfeitos.
- Que lesões graves?
- Lesões cerebrais, sr. Norton.
Durante algum tempo a Ruth continua a falar em termos técnicos que me escapam. Fala também em dificuldade de movimentos e coordenação motora... ânsia de destruição... agressividade... irascibilidade... em toda a falta de sensibilidade dos cerebralmente traumatizados...
Cerebralmente traumatizados!
Uma débil portanto. Uma imbecil! O que eu mais temia. O tema abordado tão comovedoramente pela Sylvia na televisão sobre o qual mais tarde se manifestou tão catastroficamente no camarim.
347Liquidem estes cretinos! gritara ela. Liquidem-nos imediatamente!
E o que fazemos agora? Liquidamos a Babs?
Ruth ergue-se e retira do armário uma garrafa de conhaque, enche um copo e me estende.
Por favor.
Obrigado digo eu emborcando de uma só vez.
; Sei o que o senhor está pensando agora diz a Ruth.
Não creio. Estava pensando que sou culpado de tudo isto.
O senhor?
Sim.
...; Mas por quê? O senhor fez tudo que...
Não deixei que ela terminasse.
Permiti em Paris que usassem aquele antibiótico de largo espectro
mas que ainda não foi suficientemente testado. Eu... eu sou culpado pelo que aconteceu agora! Foi aquele medicamento! Ele é o culpado de tudo!
Sr. Norton, por favor. Mão foi o medicamento, eu juro! Ele foi
usado para salvar a vida da Babs! E salvou. Esta doença horrível sempre apresenta estas melhoras aparentes para depois tudo voltar atrás. Os pais nestes casos sempre ficam com um sentimento de culpa, ou se acusam reciprocamente...
A Babs não é minha filha! Eu não sou o pai!
Sei disso. Mesmo assim está com sentimento de culpa; por causa
do antibiótico.
Só conseguia balançar a cabeça.
Seria criminoso, sr. Norton, se eu agora não lhe dissesse a verdade.
A Babs está com todas as deficiências físicas e psíquicas que acabei de citar... além disto tem outras ainda... os olhos por exemplo... a repentina mudez; mais coisas ainda poderão sobre vir.
E ficar para sempre?
Muita coisa ficará por muito tempo respondeu ela. Talvez
para sempre. Mas é pouco provável. É mais possível que as lesões retrocedam gradativamente... mas só com tratamento adequado, com cuidados em ambiente especial.
Em... em que... ambiente?
No quadro de uma instituição para crianças excepcionais disse
a Ruth. Em sua mesa vejo os dez bonequinhos de trapos dizendo Kaddisch para um morto.
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CONTINUA
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Terça-feira, 1? de fevereiro de 1972. Os olhos da Sylvia estão enormes. Seus cabelos negros brilham, sua pele está tão impecável e esticada que nem dá para descrever. O dr. Delamare é um gênio, um mágico! Sylvia Moran, THE BEAUTY, a madona, A BELDADE, fala em voz baixa e sonora, no inglês, mais castiço digno de um rei:
- Joe, seu velho desgraçado, filho da mãe, se você não calar já esta boca imunda, e me deixar falar até o fim, eu juro por Deus que lhe quebro a cara!
Até Lejeune, o gordo advogado, ficou impressionado. É natural que ele também esteja presente. Todos nós estamos; toda aquela imensa família feliz, reunida no salão do apartamento 419, no nosso salão. Também o velho dr. Lévy lá estava. Vim de Nurenberg em um avião de linha comercial, e chegando a Paris, tirei a Maserati da garagem, fui até o LE MONDE a fim de me transformar rapidamente em Philip Kaven.
Joe e seus advogados, Charley o relações-públicas, o médico americano e Rod já estavam esperando; Lejeune e o dr. Levy também. Eu lhes disse que ainda precisaria me deitar um instante para dar uma dormida, antes da chegada da Sylvia com todas as suas cenas.
Eles entenderam.
Tomei banho e mudei de roupa. Nem cheguei a me deitar. Liguei para Nurenberg pedindo para falar com a dra. Reinhardt. Atendeu imediatamente.
Qualquer novidade?
Nenhuma, sr. Norton. Também não houve piora.
Piorar? Mais ainda?
A sra. Moran chega quando?
Agora às quatro horas. Ligaram da clínica. Dois enfermeiros a acompanham até o LE MONDE. Dentro de meia hora pode começar a rezar por mim. A senhora reza de vez em quando, não é?
Uma pausa comprida. Depois:
- Sr. Norton?
- Sim?
Lembra-se da noite de Natal?
E como!
O senhor na ocasião disse que me amava.
E a senhora me proibiu de dizer mais uma palavra que fosse a
respeito.
- Foi.
- E?
Nos últimos dias respondeu a Ruth, aconteceu tanta coisa horrível. O senhor está tão desesperado por causa da Babs, e eu também. Ontem à noite quando tive que lhe contar a verdade é que foi pior. Simplesmente não consegui falar, minha garganta estava como que fechada. Mas agora...
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