Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
NO LIMIAR DA LOUCURA
Primeira Parte
A mulher de cabelo grisalho ficou de pé no promontório rochoso a ver afastar-se o que restava da sua família. Os motores do Rainha das Orcas aceleraram quando o barco saiu da baía e virou em direcção à civilização.
Vão, disse-lhes ela silenciosamente. Não abrandem, nem sequer olhem para trás, vão-se embora.
Nesse momento, porém, o braço de Petra surgiu da cabina do barco, informe na velha manga do casaco, acenando um vigoroso adeus de adolescente. A mão de Rae ergueu-se numa resposta involuntária, para acenar o seu adeus mas no ar o aceno mudou, com a mão estendida para a frente, num protesto e grito de ajuda, como se os dedos esticados pudessem puxá-los de novo para si, como se estivesse prestes a descer para a praia, ultrapassando desesperadamente rochas e água para gritar: Não me deixem aqui, tenho tanto medo e... Interrompeu o gesto antes que alguma das três pessoas no barco pudesse vê-lo, baixou o braço indiscreto e ficou imóvel e rígida. O barco deu a volta à extremidade da ilha e desapareceu.
Graças a Deus que não viram, pensou Rae. A última coisa que eu quero é que a Tâmara pense que não sei o que estou a fazer.
Então, por que razão me sinto como uma avozinha duma daquelas severas tribos nómadas, deixada para trás nas estepes geladas para bem do grupo? Fui eu que escolhi isto, que quis isto.
O ruído do motor diminuiu, até se misturar com os sons da ilha. Nada do murmúrio de trânsito longínquo ou cães e crianças de vizinhos, nem sequer o bater das ondas naquele mar resguardado. Um pequeno avião a norte; o grasnido de roda enferrujada duma ave; o som de ondas minúsculas; e silêncio.
Sozinha, por fim. Para o que der e vier.
Solidão e silêncio.
O silêncio não era uma ausência de ruídos, era uma coisa real, uma criatura com peso e volume. A tranquilidade sentia a sua presença e envolveu-a, lenta mas inexoravelmente, até que Rae teve de firmar os joelhos e se sentiu cambalear sob o seu peso. Parecia uma mortalha, ou os lençóis molhados com que era costume envolver doentes mentais descontrolados. Ficou ali em pé no litoral, de cabeça baixa, como se o céu cinzento se tivesse aberto e deixado sair um jorro viscoso de quietude. Percorreu-lhe o couro cabeludo e escorreu-lhe pela pele, formando um charco em volta dos pés, espalhando-se pelas rochas e pelos pedaços de madeira esbranquiçada trazida pelo mar, escoado até à vegetação mirrada pelo sal e aos arbustos com vestígios de verde primaveril, e alcançando finalmente os velhos troncos de aromáticos cedros e as fundações em ruínas sobre as quais Rae Newborn edificaria, aos cinquenta e dois anos, a sua casa, num esqueleto de pedra quadrado com duas torres idênticas coberto de musgo que sobrevivera a tempestades e fogo e à devastação do tempo, esperando setenta anos para que aquela mulher lhe levantasse de novo as paredes.
Ou não. Aquilo podia perfeitamente vir a ser uma farsa, uma trágica loucura exigindo o esforço e a despesa dum lançamento de foguete lunar sem se erguer uma tábua sequer. O berrante oleado azul que cobria a cara madeira podia vir a ser o seu memorial, e Loucura teria outro capítulo acrescentado à sua já pitoresca história.
Rae descobriu que a sua mão direita envolvia o pulso esquerdo e o polegar acariciava as cicatrizes na pele macia e vulnerável. Voltou as palmas para cima, deixando as mangas descair, e observou minuciosamente as linhas salientes, como se fosse possível ler nelas uma mensagem.
Um par de cicatrizes vivia nos seus pulsos havia trinta anos, mas ainda recordava o jorrar do sangue, a incrível sensação de alívio e a assombrosa ausência de dor. O par ligeiramente mais longo por cima delas tinha menos dez anos, mas não era muito mais vivo e estava mais esfumado na sua memória. Mas as últimas, as mais recentes de todas, ainda estavam brilhantes e salientes. Essas tinham quase exactamente um ano.
As cicatrizes exerciam um fascínio macabro, mesmo durante os períodos da sua vida, abençoadamente longos, em que Rae não tinha vontade de lhes aumentar o número. A intrigante dicotomia da resistência da pele humana e da sua abertura indefesa, a determinação do corpo de se curar a si próprio, a prova física de quanto podia tornar-se doloroso, tudo isso lhe atraía o olhar. Acima de tudo, no entanto, sentia-se constantemente assombrada e, mais ainda, grata por, em toda aquela automutilação, nunca ter conseguido cortar qualquer coisa essencial ao funcionamento da mão.
Talvez houvesse realmente uma mensagem a ler na pele: "Para a próxima, usa a pistola, estúpida."
Rae deixou cair as mãos e levantou os olhos para o acampamento, à procura da mochila verde que continha, entre os seus outros bens mais secretos e preciosos, o revólver de coronha de madeira que fora o motivo da sua recente longa viagem de carro pela costa. Conforme Tâmara dissera mais do que uma vez, o avião teria sido mais agradável para todas as outras pessoas mas não permitiam armas nos aviões.
Avistou o volume de náilon verde em cima do monte de coisas que trouxera consigo no Rainha das Orcas do Friday Harbor, empilhadas por Petra, Tâmara e Ed De la Torre, para ela depois escolher e arrumar. Naquelas caixas cheias de qualquer maneira, havia ferramentas e papel higiénico, latas de conservas e meias, tudo aquilo que um marinheiro ou carpinteiro encalhado podia desejar. Pelo menos, o oleado que protegia a bagagem da chuva miudinha, preso à tenda e às árvores como uma sala exterior improvisada, era dum castanho discreto e inofensivo.
O olhar de Rae continuou em frente, desviando-se do brilhante e novo equipamento de campismo colocado num dos lados da clareira para as duas torres de pedra que saíam da vegetação a duzentos metros dali, as únicas partes visíveis do que fora em tempos uma casa. Pareciam puxar-lhe pela mente e pelas mãos, obrigando-a a aproximar-se.
Uma casa é um exercício de tensão controlada, pensou. Quem teria dito aquilo? Fosse quem fosse, tinha-se enganado ligeiramente. Uma casa, reflectiu, é mais um exercício de utilizar a tensão para controlar a compressão. Não é a tensão que precisa de ser controlada, a não ser que destrua uma casa, mas sim a gravidade que ameaça fazê-la cair com a sua compressão a curvar paredes e a rachar alicerces. Sem a tensão dos principais elementos duma estrutura astragalos para manter as vigas do telhado, traves de sustentação nos soalhos para transferir a compressão de sofás, pianos de cauda, crianças a correr e pares a fazer amor para a tensão ao longo da sua extremidade inferior a casa desmorona-se e morre.
Aquela ideia da casa como símbolo de tensão controlada tinha vindo da médica, decidiu Rae. A frase sucinta mas incorrecta era típica dum aforismo psiquiátrico da mulher, aplicando a gravidade duma afirmação reflectida para contrariar as tensões que ameaçavam destruir uma doente. Rae teria dito de preferência: Uma casa é uma ilustração do poder da tensão. Serrando a parte inferior da trave de sustentação do soalho e retirando a tensão das fibras inferiores deixando apenas a compressão da gravidade superior, o piano, o sofá ou o par amoroso cai para a cave.
A utilização da tensão, afinal, era precisamente o que ela, Rae, ia fazer ali, naquela última ilha antes duma fronteira internacional, uma mulher de meia-idade com demasiadas cicatrizes e uma história de fragilidade psiquiátrica demasiado longa, uma louca com uma tenda de lona, mantimentos, um saco de comprimidos capaz de estupidificar meia Seattle, uma enorme pilha de material de construção debaixo dum oleado e uma pequena colecção de simples ferramentas manuais para a dominar. Sem ajuda, vizinhos, electricidade ou telefone para pedir socorro.
E um pesado e ensopado cobertor de solidão em cima dos ombros, ameaçando esmagá-la, se se atrevesse a mover-se.
A médica chamava-lhe depressão e receitava-lhe comprimidos e conversa.
Mas era compressão. O seu enorme peso tinha esmagado um casamento, rompido a relação com uma filha e acompanhado Rae até às portas da morte três vezes. Ela sabia, por intuição e pelos quarenta anos de intimidade com a depressão, que no seu caso a única maneira de a contrariar era utilizando a tensão astrágalos psíquicos para evitar que o peso da sua vida a fizesse ruir por completo. O medo era a única tensão suficientemente poderosa para contrabalançar o peso da doença: não a felicidade, nem o trabalho ou mesmo o amor, mas o medo real e imaginado. Fora o medo que a levara para ali, para os confins do mundo, onde ia ser fácil, tão fácil, abandonar tudo.
Ali nos confins do mundo, à beira dum estreito precipício acima do abismo final, Rae Newborn preparava-se para uma tentativa sem grande convicção. Sem rede, sem outra pessoa para tomar a responsabilidade, apenas ela e os seus fantasmas e demónios. Fora para ali porque estava cansada, não da vida em si, mas de viver daquela maneira. Fora para um sítio a que chamavam ilha da Loucura, como meio de forçar a questão.
Rae fora para ali para enfrentar o seu medo, para o receber e, se possível, utilizá-lo. Se a sua enorme tensão não conseguisse equilibrar o peso da vida, se acabasse desfeita ou esmagada, bom, pelo menos teria chegado a uma conclusão. O alívio da incerteza seria considerável.
Não contara aquilo à Dra. Hunt, evidentemente. Ela tinha problemas suficientes sem os autodiagnósticos enviesados dela e desaprovava inteiramente o auto-receitado plano de tratamento da sua doente, que se resumia a cura por trabalhos pesados. Afinal, Rae chegara ao hospital num estado tal que tivera realmente de melhorar para poder tentar o suicídio. E, embora a médica visse o símbolo de construir uma casa (que surgiu nas sessões de terapia de Rae a meio do ano da sua hospitalização) como sinal de grande esperança, quando a boa da médica percebeu que a doente tencionava empreender a construção física, autêntica, ficou, profissionalmente falando, boquiaberta. Não seria aquilo apenas mais uma tentativa de suicídio, a substituição de lâminas afiadas no banho por madeira serrada numa colina isolada?
Rae não discutia com ela. Como é que podia? Ao mesmo tempo, assim que o pessoal do hospital achou que ela já não constituía um perigo para si própria ou para os outros, também não desistiu da sua decisão. Planeando e recuperando as forças, passou o resto do Inverno em casa do seu misto de enfermeira e vigilante. Depois, quando começou a Primavera, fez a mala, encomendou a madeira, pediu à vigilante que a levasse para o Norte e preparou-se para retomar o processo de renovação que uma muito diferente Rae Newborn começara vários anos antes.
No entanto, o processo tinha presentemente duas diferenças enormes: estava sozinha, em vez de fazer parte duma família de três pessoas; e transportava uma arma na mochila.
Uma bela arma, com uma gasta coronha de pau-rosa, que se adaptava perfeitamente à mão dela, velha como as colinas mas impecavelmente conservada, sólida e eficiente como as suas seis balas. Não que precisasse de mais que uma. As lâminas, decidira, esses incrivelmente afiados e sofisticados pedaços de metal que dominavam a sua vida profissional, não tinham ali cabimento. Além disso, com uma bala não haveria aquela coisa da vida a escoar-se lentamente. Era final, como a sólida batida duma porta. A arma velha e elegante estava no fundo da gasta mochila que pertencera a Alan (e donde ainda saía um ou outro grão de areia dos seus passeios pela praia quando rapaz), embrulhada numa das camisas de flanela dele, aninhada debaixo dum leitor de cassetes portátil (desencantado por Petra, então com onze anos, ao descobrir que a avó ouvia vozes) e dois livros de bolso que Rae não sabia se alguma vez chegaria a ler, debaixo do diário de capa de cabedal destinado a substituir a honestidade psiquiátrica, do saco de papel de substâncias destinadas a substituir o equilíbrio psiquiátrico e do saco de plástico com terra e cinzas os restos da sua vida na Califórnia. Por cima de todo o conteúdo da mochila, estava o seu muito usado avental de carpinteiro, o cinto de ferramentas de cabedal que Alan lhe dera, meio a brincar, no primeiro aniversário de casamento, nove anos antes.
Durante uns minutos, Rae, parada sob a chuva miudinha, voltou a cara para o local da construção, embora com os olhos e o espírito longe dali. Uma distante sereia dum barco soou, fazendo-a estremecer. Inspirando com força, como quem acorda ou se prepara para mergulhar, voltou a cabeça para olhar para o monte dos seus pertences, decidindo-se finalmente a fazer qualquer coisa. Seguiu pelas rochas, passando pela madeira coberta com oleado, atravessou o acampamento e baixou a cabeça para entrar na tenda castanha. Diante da sua pilha de caixas e embalagens de cartão, estendeu a mão e apoiou os dedos frios na mochila verde.
LIMPEZA DO TERRENO
Irritação era pouco para descrever o que ele sentia. Raiva, talvez. Ou fúria, como um mar enraivecido a bater-lhe de encontro aos ossos. Surgira e abalava-o, uma indignação por ver o que era seu, seu! roubado por outra pessoa. Por fora, parecia calmo com esporádicas explosões, mas não mais do que habitualmente. Tinha a mente perfeitamente dominada, planeando vingança e recuperação do que lhe pertencia. O Ladrão teria de fugir para muito mais longe do que qualquer ilha obscura nos confins do país para encontrar um verdadeiro refúgio.
A vingança será minha, disse o Senhor.
Na realidade, Petra não fora o único ocupante do Rainha das Orcas a observar a solitária ocupante da ilha da Loucura, enquanto o barco se afastava.
Petra Collins, o último bastião da outrora ilustre família Newborn, olhou realmente durante mais tempo e acenou com maior entusiasmo para a sua adorada e infeliz avó isolada na margem, cada vez mais longe. O gel que endurecia os caracóis de Petra gelara sob o barrete de malha, e o casaco almofadado que lhe envolvia o corpo esguio não era o agasalho adequado. Pobre, pobre avó, pensou a criança; parece tão só, bolas, quem me dera ter a coragem dela, ali sozinha na ilha sem alguém com quem falar a não ser as gaivotas, nem sequer um cão, quer dizer, eu talvez pensasse no assunto se pudesse levar o Saltitão comigo como naquele livro que li há uns tempos sobre o rapaz que foge e vai viver numa árvore oca num bosque e fica amigo dum guaxinim e dum falcão. A ilha da avó terá guaxinins? Um falcão era porreiro, ai, pobre avó, quem me dera poder ficar uns dias com ela, bolas, está frio, quem me dera ter-lhe comprado o outro chapéu, mais cinco dólares, mas era mais quente e ela parece tão velha e com tanto frio, adeus, avó, adeus, adeus.
Os pensamentos que se atropelavam na mente de Tâmara Collins eram ainda menos coerentes do que os da sua filha de treze anos. Lutava irritadamente por acender um cigarro contra o vento que fazia dançar a chama do isqueiro. Na viagem para a ilha, o vento enchera-lhe os olhos de lágrimas de tal maneira que o rímel desaparecera, e sabia que devia estar horrível não que houvesse alguém para a ver naquele pavoroso fim do mundo. Conseguiu finalmente acender o cigarro e, um instante antes de o barco dar a volta ao extremo sueste da ilha, deitou uma olhadela involuntária por cima do ombro à mãe, muito direita no promontório. Sentiu pena, mesmo piedade, antes de se recompor e pensar: Bolas, daqui a quanto tempo é que vou começar a receber chamadas da Polícia ou dum hospital a perguntar se conheço uma tal Rae Newborn que encontrámos à escolha a) a invectivar quem passava, b) a morrer à fome, c) a esvair-se em sangue. Ai, meu Deus, se calhar o Don é que tem razão e devíamos realmente tomar uma atitude, mas a psiquiatra disse que ela tem o direito de fazer coisas que parecem disparatadas desde que não a ponham em perigo ou a outra pessoa qualquer,.. mas como é que isto não pode ser considerado perigoso? Quer dizer, nos dias de hoje, o que é que impede um tarado um tarado mesmo, um tarado violento de chegar à ilha e... ai, isto não me leva a lado algum, tenho de falar outra vez com a tal psiquiatra e dizer-lhe exactamente qual é a situação, porque ela não deve fazer ideia e o Don tem razão, isto é grave e eu nunca devia ter deixado a Petra faltar um dia ao colégio para alinhar nesta viagem inútil, ela é demasiado nova para compreender e uma mãe tem obrigação de proteger a filha... lá porque a minha nunca o fez não quer dizer, ora, sejamos justos, ela não era capaz, nunca fez tenções de te abandonar. Mas se não é responsável pelas suas acções e não era responsável há trinta anos e também não era o ano passado, então porque havemos de deixá-la fazer esta coisa completamente irracional, quer dizer... não se deixava uma pessoa perturbada partir para a China num barco a remos... e em que é que isto é diferente, mas não, a mãe não está doida só porque já esteve perturbada noutras alturas, mas isto é realmente uma loucura, bom, não uma loucura de doidos mas de pírulas com certeza, sobretudo quando o risco é tão grande e o Don tinha razão e seria realmente tão mau se tomássemos conta de tudo e lhe déssemos uma mesada e a vigiássemos de perto... quer dizer, e se ela decide dar tudo ou coisa do género, como é que fica a Petra? E lá está ela toda direita, toda orgulho e teimosia e bolas, porque hei-de ser sempre eu a apanhar os cacos se ela é que é a mãe, por amor de Deus isto põe-me... Não, não me põe doida, faz-me é ficar tão furiosa que tenho de fazer alguma coisa, isto é de mais, é de mais... E então a ilha coberta de árvores surgiu e engoliu-lhe a mãe, deixando Tâmara a olhar para nada mais exasperante do que uma ilha e o mar. Não chegou a perceber se sentiu alívio ou pena.
A terceira pessoa a bordo do Rainha das Orcas era o seu proprietário, Ed De la Torre, taxista marítimo, filósofo amador, pau para toda a colher, sobretudo as que a lei não via com bons olhos. Ed era mais ou menos imune ao frio e tinha a pele tão curtida pelo sol e pelo vento que mais parecia cabedal. Até o comprido bigode branco, em contraste com o bronzeado da cara, mal parecia mover-se ao vento. Imune, era como Ed se via a si próprio. E, com esse pensamento, também ele deitou um último olhar ao estranho vulto que acabava de depositar naquele rochedo desabitado, um vulto tão esguio e encasacado para se proteger do frio que uma pessoa nem podia ter a certeza do seu sexo. Sozinha sem um barco e com aquela água agitada a toda a volta, e como seria viver apenas com os pássaros e com o céu como único telhado? O velho Henry David teria compreendido, mas esse podia ir até à cidade, falar com os vizinhos, e até tinha família praticamente à distância dum grito. Que diabo, já vivi no Rainha semanas a fio, mas não me recordo de alguma vez passar mais de dois ou três dias sem parar para ir a um bar ou a uma marina ou coisa assim. O Thomas Merton é que talvez seja homem para explicar o fascínio. Há muito tempo que não leio um livro dele, talvez desencante qualquer coisa, para ver o que o maluco do monge tem a dizer sobre a solidão.
Claro que nem mesmo o Merton se deu lá muito bem com a solidão, distraiu-se e esqueceu-se da possibilidade de más ligações em aparelhos eléctricos no Terceiro Mundo e morreu electrocutado.
Pode dizer-se que a solidão o matou. Deus sabe que a mim matava.
Por fim, só.
De pé sob o telhado de oleado abaulado para baixo, com a mochila aberta diante de si, Rae levantou a cabeça e sentiu-se subitamente consciente do tamanho de toda aquela solidão que a rodeava no seu frágil abrigo. Pela primeira vez a primeira de muitas, sabia perfeitamente sentiu o medo gelar-lhe o coração. Que diabo estou eu a fazer aqui? Quer dizer, já fiz uma data de coisas chanfradas, mas esta bate todas as outras. Deviam ter-me fechado à chave e deitado fora a chave, como é que eu posso...
Interrompeu de repente aquela linha de pensamento. Não era maneira de começar. Sempre soubera que ia ser difícil, mas difícil era a única solução.
Distracção, Rae. Mantém-te em movimento. Como dizia a velha canção do tempo da Primeira Guerra Mundial, cheia do humor negro das trincheiras: Baixem as cabeças, rapazes, e cantem. Uma paragem para descansar ou para endireitar as costas, e um atirador emboscado apanha-te. Por isso, trata de manter a cabeça baixa, Rae, e trabalha.
Vamos ao que interessa. Meteu a mão na mochila e tirou de lá o objecto mais importante, o cinto das ferramentas, rígido por não ser utilizado durante muito tempo. Distraída, colocou-o automaticamente à volta da cintura e apertou a fivela, pela primeira vez em ano e meio, só depois reparando no que tinha feito. Parou então para reflectir que, embora os seus primeiros pensamentos na ilha tivessem sido de autodestruição, o primeiro acto parecia ser de construção. A Dra. Hunt teria aprovado.
Contudo, a psiquiatra talvez não aprovasse da mesma maneira o segundo acto de Rae, que foi tirar da mochila o saco de plástico cheio de terra escura que tinha apanhado no centro da catedral de sequoias onde haviam sido espalhadas as cinzas de Alan e Bella. A cinza já não se distinguia da terra; nem conseguia ver qualquer fragmento de osso cremado, que sabia estar ali, mas isso pouco importava. Aproximou-se da frente da tenda, ponderou as possibilidades um momento e depois atravessou a erva ensopada da clareira até à frondosa árvore que marcava o extremo do terreno livre. Com o salto da bota, escavou o solo húmido e aí despejou o conteúdo do saco. Quando acabou, empurrou a mistura de areia da ilha e folhas podres para cima da terra estranha, baixando-se então para a alisar e ajeitar com as mãos. Ter ido para ali sem qualquer coisa deles seria impensável. Mas agora já ali estavam; era uma responsabilidade de que estava livre.
Rae sentia que devia dizer qualquer coisa, nem que fosse para lhes dar as boas-vindas, mas depois de todas as palavras ditas sobre eles parecia desnecessário e, de momento, mais esforço do que era capaz de fazer. Tinha sido uma longa viagem de dois dias com a sua enfermeira-guarda, e umas ainda mais longas sete horas em companhia da filha. Rae ainda não sabia porque teria Tâmara feito o esforço, com um voo de madrugada para Seattle, uma viagem de duas horas até Anacortes num carro alugado, a travessia no ferry e depois no barco de Ed, uma hora para descarregar à chuva, e agora a mesma coisa ao contrário, para quê, afinal? Porque Tâmara sentia que estava a dizer um adeus final à mãe? E, se fosse esse o caso, porque não tinha pelo menos retribuído o abraço dela, ali no cais? Rígida e contraída, era a atitude da filha para com Rae, sempre fora desde que Tâmara era criança. Rae sabia que a culpa era sua, por abandonar a filha a uma avó rígida e contraída e... E porque teria surgido Tâmara num serviço fúnebre para Bella e Alan? Porque estava cansada, certamente. Pouco tinha feito para isso, limitando-se a ficar sentada a olhar para a paisagem, mas sentia-se absolutamente exausta.
Sentia-se também vagamente consciente de nada ter comido nesse dia além duma torrada no ferry. Comida, por pouco que a perspectiva lhe agradasse, talvez fosse um bom segundo passo. A comida era um hábito sem sabor e não merecendo mais consideração do que calçar sapatos ou lavar os dentes uma vez por dia mas era também uma necessidade reconhecida, qualquer coisa a meter no estômago para adiar a sepultura por mais umas horas. Morrer de fome nunca a atraíra.
Voltou para debaixo do oleado e tirou da mochila a caixa de fósforos que a filha lhe dera (voltara a fumar, mas não a criticara) e o jornal de Seattle que trouxera do ferry, e foi combater o silêncio com o fogo. Primeiro construção e depois calor, pensou; com certeza que eram ambos símbolos positivos. E, quando os olhos se lhe detiveram nas notícias, primeiro um artigo sobre um acidente mortal e depois outro a respeito duma rapariga desaparecida em Spokane, arrepiou caminho antes que ficasse obcecada pelo doentio fascínio das catástrofes de outras pessoas. Amarrotou rapidamente as folhas no centro das antigas pedras escurecidas pelo fogo, que Petra tinha reagrupado para ela, e colocou um montinho de ramos secos por cima. Um fósforo a um canto, e as notícias começaram a arder.
Assim que o fogo pegou, Rae colocou a pesada grelha de ferro sobre as pedras. Procurou na caixa marcada "Comida" e encontrou uma lata de chili. A dos "Utensílios" deu-lhe uma caçarola, um abre-latas e uma colher. Tirou os feijões para a caçarola e colocou-a na grelha, que imediatamente se inclinou, entornando metade do seu conteúdo no lume. Salvou o que pôde, apoiou a grelha com mais firmeza nas pedras, voltou a poisar a caçarola em cima do lume e depois levou a chaleira até ao jarro da água para a encher. Quando estava a colocá-la sobre a parte mais quente das chamas, um gaio soltou um grito mesmo por cima dela. Deu um salto e uma gota de água espirrou para os feijões carbonizados, quase apagando a fogueira. Rae reprimiu a enorme frustração que sentia formar-se na garganta, e retomou a tarefa de apanhar ramos secos.
Enquanto a refeição pouco apetitosa aquecia, pegou num saco de plástico dos do lixo e começou a limpar a clareira de restos de piqueniques deixados por campistas ilícitos ao longo de anos. Calçou uma luva de cozinha para apanhar as latas de cerveja e as embalagens de comida, mas perante uma lata de Coca-Cola Light, viu-se subitamente de novo sentada no ferry, defronte de Tâmara. Nenhuma das duas notava o ruído do motor do barco ou o aparecimento e desaparecimento das ilhas de San Juan envoltas em neblina, porque Tâmara tirou um enorme envelope da carteira e despejou-o num movimento brusco em cima da mesa a que estavam sentadas.
Estes devem ser os últimos recibos disse ela à mãe. Tudo o mais que aparecer, mando à sua advogada. E já lhe escrevemos a dizer que deixamos de ser responsáveis pelas suas contas. Tem aqui o seu livro de cheques. Tem a certeza de que não quer que fique com ele mais um tempo?
Tâmara não podia ter imaginado a seca e cínica pergunta que ocorrera à mãe quando recebera o livro de cheques das suas mãos: como se arranjaria agora Don para deitar as mãos ao dinheiro da família? Depois corrigiu-se: Don era um tipo cheio de recursos, um ladrão requintado que não faria desaparecer o dinheiro de um só golpe. Seria preciso mais do que uma cuidadosa soma de parcelas para revelar os seus desfalques.
O teu nome continua na minha conta, mas acho que não precisas de te preocupar. Agradeço muito o que tens feito, Tâmara. Sei que tem sido uma maçada.
Fizemo-lo de boa vontade. Com ela, era sempre "nós". Começou a meter os papéis de novo no envelope e perguntou: A viagem de carro correu bem?
Foi comprida, mas boa. A paisagem é linda.
Devia ter vindo de avião.
Tinha muita tralha disse Rae, dando a desculpa pronta. Demasiada tralha, demasiadas fobias, uma enorme necessidade duma arma de fogo... Como está o Don? perguntou delicadamente.
Está bem. Abriu um novo ginásio perto de nós e ele inscreveu-se, porque diz que está a ficar em baixo de forma. Pegou na sua Coca-Cola Light e bebeu um gole.
Rae pouco se importava se Don tivesse uma trombose, mas teve novamente o cuidado de não mostrar o que pensava. Antes de poder arranjar outro tópico de conversa, contudo, Tâmara continuou, olhando por cima da lata para o vulto que tremia apoiado à amurada, do lado de fora da janela.
Quanto a mim, é a Petra que lhe faz aumentar a tensão.
Estão com problemas?
Ora, sabe como é. Adolescentes. Ele outro dia começou a falar num colégio especial, num desses ambientes altamente estruturados. Mas eu disse que isto era uma coisa temporária... A melhor amiga mudou-se recentemente e ela está aborrecida. Vai passar.
Rae escolheu cuidadosamente as palavras:
O meu pai foi para um colégio militar aos oito anos. Para alguns garotos, talvez tenha dado óptimo resultado, mas ele nunca se recompôs. Esse tipo de colégio parece que torna tudo pior. Podes vir a perdê-la por completo. Depois, antes que a filha reagisse ao conselho não pedido, continuou: E que tal mais umas sessões de psicanálise? Ela pode precisar só de alguém de fora para conversar.
Estava a pensar nisso retorquiu Tâmara, numa considerável admissão, dado o seu ódio por tudo o que dissesse respeito à mancha duma doença mental. O problema é que estamos com algumas dificuldades e o seguro não...
Deixa-me tratar disso disse imediatamente Rae, sacando o livro de cheques e uma caneta, e escrevendo zeros suficientes para calar a boca de Don a respeito de colégios particulares (que, de qualquer maneira, e pela conversa da filha, não podiam pagar). Colocou o cheque diante da filha, pensando: Bom, isto responde à minha pergunta sobre como é que ele vai conseguir, sem o meu livro de cheques. Nesse instante, Petra bateu na janela manchada de sal do ferry, gesticulando para Rae a respeito da paisagem, e Rae enfiou o envelope no bolso do casaco e saiu para se juntar à neta no tombadilho varrido pelo vento.
No entanto, lembrava-se da cara da filha no momento em que estendera a mão para o cheque, com a mesma expressão de desafio por cima dum vestígio de vergonha que ela, Rae, devia exibir quando o barco deu a volta à ilha e se dirigiu para o mar aberto. A mesma expressão que Rae vira pela primeira vez seis meses antes do nascimento de Petra, ao visitar os recém-casados e provocar uma discussão.
Já não se lembrava do motivo do desentendimento, nem das palavras entre si e a filha. Mas lembrava-se vividamente de duas coisas. A primeira era uma emoção, o desespero de perceber que a tinha perdido por completo, que qualquer esperança no regresso de alguma abertura entre mãe e filha desaparecera. A segunda lembrança era visual: Don à porta do decrépito apartamento com um braço por cima dos ombros de Tâmara, apertando a esposa recente de encontro a si. Tâmara tinha um aspecto terrível, com o cabelo escorrido e por lavar, com manchas na cara a acentuar o corado da discussão e uma magreza que demonstrava estar a alimentar-se de bolachas e chás de ervas. Don, por seu lado, parecia estoirar de saúde, e enfrentava Rae com um olhar cheio de desafio, como se dissesse: Ela agora é minha, e você só a tem se eu deixar!
E assim fora durante anos, com Tâmara e, mais ainda, com Petra. Tâmara nunca lhe proporcionara uma abertura: a relação estava aparentemente irrecuperável. Petra, contudo... Semanas depois do seu nascimento, a criança tornara-se um campo de batalha numa luta terrível mas totalmente não reconhecida entre um divertido Don e uma desesperada Rae. Tâmara, verdade seja dita, manteve-se de fora, mas Don aperfeiçoara a arte de utilizar o amor de Rae pela criança para manter a sogra no seu lugar.
A pose rígida de Tâmara e o braço de Petra a acenar do barco diziam tudo. E Rae teria dado qualquer coisa por aquele aceno.
A nova residente da ilha olhou para baixo e reparou que continuava a apanhar lixo sem dar por isso e que a mão enluvada segurava naquele momento um preservativo usado, flácido e coberto de lama. Soltando uma exclamação de nojo, deitou-o para o saco, despiu a luva e atirou-a também lá para dentro. Com todo o cuidado, atou o saco e colocou-o junto da pilha de madeira, voltando para junto da fogueira para lavar as mãos com sabão. A seguir, retomou a refeição interrompida.
A comida tinha-se pegado ao fundo do tacho. Enquanto tirava para o prato o que se podia comer, foi tendo cada vez mais consciência de como estava só. Começava a sentir-se como uma ervilha num prato grande. Ao voltar-se para se dirigir para a cadeira, apercebeu-se dum movimento pelo canto do olho e deu um salto mas eram apenas as pequenas ondas na praia, sem motivo para o bater acelerado do coração. Sentou-se, com as costas perto da parede da tenda e depenicou a comida estorricada, sentindo olhos invisíveis a percorrerem-lhe a nuca como um animalzinho com muitas pernas. Ou os dedos dum homem. Baixou a cabeça, obrigou a mão a levantar o garfo e a atenção a manter-se na comida, exigiu que a boca a comesse e o estômago a aceitasse. A maior parte dela. Estava a deitar os restos para o lume quando o prato lhe escorregou dos dedos. Tentando apanhá-lo, encostou a mão à grelha de metal e queimou-se.
Com um soluço de raiva, atirou com o prato pelos ares e apertou a mão de encontro ao peito, de olhos fechados. Os medicamentos na mochila atraíram-na, mas tinha outros planos para eles. Procurou furiosamente nas caixas de equipamento empilhadas junto à tenda, até encontrar as grossas luvas de cabedal. Com o polegar queimado na boca e as luvas na mão ilesa, Rae começou a subir a colina, dirigindo-se aos seus alicerces.
Diário de Desmond Newborn
27 de Junho de 1921
Há alturas, raras e preciosas alturas, em que nós criaturas inferiores conseguimos avistar a providência em acção, verificando que existe uma engrenagem que liga os fragmentos díspares das nossas vidas, unindo o feio ao belo, o desespero à exaltação.
De que outra maneira se explica os acontecimentos que me trouxeram aqui? Uma conversa ouvida por acaso numa estação de caminhos-de-ferro, a minha presença aí resultante de acontecimentos de Boston e, mais para trás, o inferno da frente Ocidental e, anteriormente, do estranho desejo que me levou a envergar uma farda: tudo interligado, todas as decisões, disparatadas, bem-intencionadas e maldosas, todos os acidentes, agradáveis e desagradáveis, conduzindo-me por um caminho indirecto até este lugar.
Parei hoje com os pés bem -plantados na estrada rochosa dum terreno que se ergue dum mar sereno, e comecei a ter uma estranhíssima sensação, como se acordasse dum longo e terrível sonho. Ou pode ser que esteja realmente a mergulhar num sonho duma noite de Verão numa ilha encantada.
Se é assim, peço a Deus que nunca venha a acordar.
A casa que se erguera sobre aquelas pedras tinha sido construída pelo tio-avô de Rae nos anos vinte. Desmond Newborn, o filho mais novo duma rica família de Boston, lera a poesia de Wilfred Owen e Rupert Brooke, adoptando o seu idealismo romântico de proteger a Inglaterra do Kaiser, e partira para Londres de barco no Verão de 1915 para se alistar no Exército britânico. Fora como soldado, sem a patente de oficial a que teria direito pela educação e posição social. Sobrevivera a quase três anos de terríveis combates, para ser evacuado, vivo mas profundamente afectado, com a idade de vinte e sete anos. Era, nessa altura, muitíssimo mais velho de espírito.
Rae tinha nove anos quando descobriu que o avô William tinha tido um irmão mais novo.
Se alguém se tivesse limitado a dizer-lho, ela teria soltado uma gargalhada como se alguém sugerisse que Deus tinha uma tiazinha. Mas não, Rae tinha compilado as provas inevitáveis por si própria, começando uma manhã enquanto andava, como dizia a cozinheira, a assombrar a casa. Como acontecia tantas vezes quando a deixavam sozinha, a garota magrinha com problemas para dormir e o hábito do silêncio sentiu-se atraída pelo escritório do avô. A calorosa vida da casa, sobretudo para uma criança solitária, talvez se centrasse na cozinha, mas o verdadeiro centro do poder estava no escritório do avô. Se a apanhassem lá dentro, sabia que o castigo seria severo, mas valia a pena o risco, para ter o quarto só para si, com o seu cheiro de charutos e bebidas fortes e do próprio avô.
Não que houvesse grande coisa para fazer ou ver no escritório. Os livros nas prateleiras eram demasiado grossos para serem interessantes, os papéis em cima da grande secretária incompreensíveis, os dois quadros aborrecidos. Mas trepar para a cadeira de cabedal do avô era uma ousadia tão grande que lhe obrigava o coração a bater com toda a força, e olhar o mundo do lado dele da secretária fazia com que ela se visse de modo diferente.
Geralmente, limitava-se a tocar na caneta dele (com o cuidado de nunca a mudar de posição), abanava os pés um momento, puxava automaticamente as gavetas fechadas à chave, sem esperar que se abrissem, e afastava-se discretamente.
Nesse dia, porém, uma das gavetas estava aberta. Não muito, apenas o suficiente para a fechadura central da secretária não a ter apanhado. Rae deitou uma olhadela à porta e depois ajoelhou-se para a puxar para fora.
Mais papéis. Que desilusão... Mas, espera! Debaixo das pastas com documentos, havia um alto. Levantou uma das pastas e viu um revólver com coronha de madeira e uma caixa de cabedal baixa. Não mexeu na arma, mas a caixa era demasiado intrigante para ignorar. Tirou-a da gaveta e poisou-a no tapete, mexeu no fecho e acabou por conseguir levantar-lhe a tampa.
A caixa continha um pedaço de metal com uma fita desbotada, o género de coisa que já vira os amigos do avô usar no peito das fardas no desfile do Dia dos Veteranos. E, muito dobradinho, um papel, uma espécie de documento oficial com uma escrita fininha e a palavra "Alistamento" em cima. Nenhuma das palavras lhe dizia grande coisa, para além de "Boston, Massachusetts", mas ficou intrigadíssima com o nome Desmond Newborn.
Não existia qualquer pessoa com aquele nome na família Newborn.
Por mais que estudasse o documento, não encontrou outra pista, de maneira que um minuto depois decidiu dobrá-lo de novo e fechar a gaveta, saindo do escritório.
Através de judiciosas perguntas, descobriu pela cozinheira o que significava "alistamento", mas só havia uma maneira de saber quem era Desmond Newborn. Anos mais tarde, ocorreu a Rae que, com uma vida familiar mais normal, teria feito a pergunta ao pai; mas, na altura, nem sequer se lembrou de ir ter com alguém sem ser o avô. William Newborn era, afinal de contas, a fonte de todo o poder, toda a decisão e toda a autoridade. E, se a pergunta era tão importante como ela pensava, todos os outros consultariam William antes de lhe responder.
Conhecia os riscos, ou julgava conhecê-los. Nunca era fácil ir ter com o avô, não se sabia se ele reagia com o paternalismo habitual ou com alguma coisa mais sinistra ou violenta.
Naquele caso, a reacção foi francamente violenta; na realidade, nunca o vira reagir como fez perante a sua pergunta inocente. Assim que pronunciou o nome desconhecido, o avô ergueu-se em toda a sua terrível estatura e deu a volta à secretária rapidamente, para rugir na cara dela, atacando-a com uma fúria verbal mais aterradora do que qualquer sopapo.
Desmond, não é? Quem diabo é que andou a falar consigo sobre esse inútil? Quem? Fale, menina!
Ela comprimiu-se contra as costas da cadeira, como se quisesse diminuir o alvo da fúria do avô, com o corpo rígido de choque, mas ele continuou a gritar:
Meu Deus, não me respeitam na minha própria casa. Foram os criados, com certeza, a dar à língua sobre uma coisa que não é da conta deles! Nem da sua, menina! O Desmond Newborn era meu irmão, um desgraçado dum inútil que resolveu oferecer-se como voluntário para uma guerra doutras pessoas, apanhou um tiro como paga, e voltou para aqui a fim de viver à minha custa até poder andar de novo. Depois, para mostrar a sua gratidão, foi para a estrada como qualquer estuporado vadio. Sempre a entrar e a sair da cadeia, sem emprego. A última vez que tive notícias dele foi dois meses antes da queda da bolsa, e não quero ter mais notícias! ESTÁ A COMPREENDER o QUE LHE DIGO?
Rae interpretou o aumento do tom de voz como uma ordem para sair dali. Caminhou rapidamente para fora da sala com toda a dignidade que os seus nove anos lhe permitiram, envolvendo-se no orgulho como numa armadura até alcançar a segurança do seu quarto, onde se aninhou aos pés da cama a chorar até ficar com soluços, perante o terror, a fúria, o ultraje e a injustiça da reacção do avô. Eu só fiz uma pergunta, murmurou para si própria, numa ladainha. Eu só queria saber. Quando a cozinheira apareceu à procura dela, a mente da garota tinha-se decidido por uma indignação justificada. Não falou ao avô durante dois dias (o que ele, aliás, pareceu não notar) e nunca mais se atreveu a fazer-lhe perguntas sobre o irmão, mas a mera violência da reacção dele garantiu a residência permanente de Desmond Newborn no espírito de Rae. Assim que se recompôs do choque, passou a encontrar Desmond sempre por perto, uma curiosidade e um enigma. Ele tornou-se uma espécie de amigo imaginário, confidente dos seus segredos e problemas, protector invisível e protecção contra a ira de Deus. Ajudou Rae a manter o queixo erguido sempre que o avô se zangava com ela, ajudou-a a olhá-lo de frente mesmo quando lhe apetecia rastejar para longe e tremer. Quando fez dez anos, o que Rae mais desejava era ser ela própria uma inútil.
Nunca mais se dirigiu ao avô sobre o assunto nem voltou a ver a caixa de cabedal até a herdar, mas no decorrer dos anos foi juntando alguns factos sobre o seu companheiro secreto. Escolheu os informadores cuidadosamente, entre parentes e empregados da família que não transmitissem imediatamente o seu interesse ao avô, e descobriu que houvera uma guerra anterior àquela em que o filho da cozinheira tinha morrido e o járdineiro combatera em rapaz: a guerra de Desmond. Aos doze anos, encontrou um livro na biblioteca pública sobre as terríveis condições dos soldados na Primeira Guerra Mundial, mas isso só a deixou ainda mais confusa. Perante o que sabia, teria pensado que a nobreza do alistamento voluntário de Desmond, seguida de ferimentos no cumprimento do dever, o transformassem numa brilhante lenda para as gerações futuras. Em vez disso, já antes de ela ter nascido a memória colectiva da família se afastara de Desmond, refugiando-se numa falta de clareza sinónimo de grande desconforto. A sua Croix de Guerre ficou fechada na gaveta do irmão, e os ferimentos haviam sido mencionados tão vagamente que, em criança, Rae ficara convencida de que ele tinha a cara horrivelmente desfigurada; na adolescência, concluiu que devia ter perdido os órgãos genitais. Só já adulta é que, depois de ter o diário da mulher de William, Lacy infelizmente pouco mais do que um lacónico registo de acontecimentos familiares e despesas caseiras teve um lampejo da verdade; o que Desmond deixara no campo de batalha fora uma porção da sua mente essa era a vergonha imperdoável para a família.
Quando Desmond se recompôs dos ferimentos físicos, convalescendo na gelada mansão familiar perto de Boston onde Rae passara a maior parte da sua infância, o ex-combatente fizera-se à estrada, como o avô tinha dito. Desmond Newborn aparecia à porta dum ou doutro parente, acolhendo-se durante algumas semanas, geralmente nos meses frios em que a pneumonia ou apenas a bronquite lhe apanhava os pulmões enfraquecidos (herança das trincheiras). Depois, pegava na mochila e voltava a desaparecer, percorrendo o país e dirigindo-se gradualmente para oeste. No meio dos registos de Lacy do tempo e da saúde, das datas significativas do bebé e das despesas com vestidos e presentes, a mulher de William anotara de vez em quando uma quantia enviada ao cunhado para Louisville, Chicago ou Boise. Uma vez, sem comentários, a sua cuidadosa caligrafia registara o pagamento duma fiança por vadiagem perto de Houston. Mais tarde, no princípio de 1921, haviam sido pagas mais quantias a uma cadeia, mas não como fiança. Rae nunca descobriu o motivo dos seis meses que Desmond passou atrás das grades, mas sabia que Lacy tinha enviado dinheiro e um embrulho de roupas quentes, sem qualquer informação no diário para além da morada da cadeia em Yakima.
Depois, no Verão seguinte, o viajante tinha dado à costa nas ilhas de San Juan no estado de Washington, praticamente o mais longe que uma pessoa podia alcançar sem atravessar um oceano ou uma fronteira, e aí encontrara finalmente um lar. Comprou uma ilha (transacção não registada no diário de Lacy, pelo que devia ser da jurisdição de William) e construiu o seu capricho, uma elegante casinha de madeira aninhada entre duas estranhíssimas torres de pedra, ali naquela fileira de ilhas frias, remotas e, na altura, pouco habitadas, à beira dum continente. E aí viveu, com as aves marinhas e as orcas como companhia, até que o desejo de vaguear cresceu novamente e o levou de lá uns anos mais tarde. A certa altura ninguém parecia saber ao certo quando tinha havido um incêndio e a casa ardera até às pedras, e tanto a ilha como a obscura lenda de Desmond Newborn foram novamente absorvidas pela família. Desde essa altura, a ilha havia permanecido desabitada, temporariamente entregue ao estado como santuário da vida selvagem, com a propriedade e as medalhas de Desmond a pertencerem a Rae por herança do pai cinco anos antes.
Foram aqueles estranhos restos duma casa, mais do que outra coisa qualquer, que sustentaram a saída de Rae da loucura. Em Maio, cinco meses depois do acidente e quatro após o ataque, a mente de Rae tinha começado com grande relutância a emergir do seu esconderijo. Contra vontade, começou a reparar no que a rodeava os ruídos e confusão do hospital, a tirania dos medicamentos, a opressão das pessoas, paredes e fumo de cigarro: um torvelinho tão grande como o que tinha dentro da cabeça. Começou a procurar os cantos mais calmos do hospital, ansiando pela solidão como um viajante do deserto anseia por água. E, como esse viajante, Rae acabou por avistar a solidão e, mais indistintamente, um objectivo uma ferramenta nas mãos e a capacidade de se concentrar na sua utilização a tremeluzir ao longe, tão etérea como uma miragem e igualmente atraente. Mas a ideia de voltar para casa, de entrar na sua fragrante oficina ligada a uma casa completamente vazia, fazia-a tremer com uma mistura de desejo e terror.
No meio dessa teia de anseios e medos, surgira um livro, um daqueles livros de bolso muito gastos abandonados por doentes ou oferecidos às caixas a sítios como hospitais psiquiátricos. Já não tinha capa nem as primeiras doze páginas, mas o resto caiu na mente de Rae, confusa e cheia de medicamentos para acalmar, como uma semente.
Um homem construíra uma casa. Um homem incrivelmente incompetente (que teria lembrado a Rae o primeiro marido, David, se não fosse tão descontraído a admitir a sua incompetência) tinha construído um abrigo: um telhado, quatro paredes, um soalho. À maneira incestuosa dos escritores, o seu objectivo parecia ser não tanto a criação dum abrigo como as oportunidades de auto-reflexão do processo de construção e, claro, a publicação dum livro sobre essa construção e auto-reflexão. Mas, ao lê-lo, Rae viu apenas o sonho a tomar forma, a criação da "Casa" proveniente do "Pensamento". Leu e releu o livro, até ele se desfazer. Ainda era capaz de recitar passagens inteiras de memória.
Como uma semente... ou uma tábua de salvação.
O esqueleto da casa do tio-avô Desmond surgiu-lhe como num sonho. Na verdade, durante aqueles meses, a maior parte das coisas surgia-lhe como num sonho, mas aquela não desapareceu. Em vez disso, desabrochou rapidamente até ao seu potencial máximo. Tinha de reagir, e depois reconstruiria a casa de Desmond, ergueria de novo as suas paredes e moraria dentro delas, sossegada durante todo o resto da sua vida. Tudo o que uma "casa" era estava lá à espera dela: casa sinónimo de abrigo, de permanência, de continuidade e herança, conforto e desafio, segurança e beleza, símbolo e realidade. Enquanto o corpo medicado de Rae deambulava pelos corredores e jardins do hospital, o seu espírito percorria os quartos que conhecera: a sala de jantar, friamente formal, da casa da sua infância e o calor da cozinha, o sótão de forma estranha da "cama e pequeno-almoço" que ocupara perto de Oxford, e os tectos doirados do Palácio de Versalhes, as esculturas em pedra da Sagrada Família de Gaudí em Barcelona e as entradas apertadas da oficina de Wright em Scottsdale. Imaginou-se em cada um desses sítios, viu-se a colocar ela própria o horrível papel de parede na sala de jantar, a estender o reboco do sótão, a construir todas aquelas divisões e, eventualmente, como final lógico, as lembranças e as imaginações fundiram-se: Desmond, o misterioso parente perdido que lhe intrigara a juventude, ficou a seu lado enquanto ela colocava tábua sobre tábua, reconstruindo a casa da ilha. Desmond, a outra ovelha negra da família e obscuro companheiro da sua infância, voltara para matutar com ela: Como instalar aquele telhado sozinha? Como erguer aquelas paredes, colocar as janelas e as telhas? Desmond, que o avô desaprovara quase com tanta ferocidade como a ela própria, caminhava junto a si pela ilha, até que ela conseguiu prever cada passo do processo de reconstrução, um a seguir ao outro, sem falhas. Desmond, guardião e companheiro fantástico, estaria com ela. Parecera tão simples na altura.
Agora, ali de pé à beira daquela selva, com o doloroso latejar dum dedo queimado para a distrair, só o abrir caminho até às ruínas dos degraus de entrada da loucura parecia um desafio. Rae não fazia tenções de começar a desbravar o terreno àquela hora, com os primeiros vestígios de escuridão a aproximarem-se, mas também não queria ir para a cama sem ao menos ter avistado os alicerces. Desajeitadamente, com esforço, fez avançar as botas pela vegetação molhada a maior parte da qual parecia cheia de espinhos subindo a custo a encosta, até que um pé encontrou qualquer coisa mais sólida do que ramos. Mergulhou a mão enluvada no meio da vegetação e puxou, puxou, até os ver, com o aspecto duma escada que subisse pela selva como um templo maia: os degraus da entrada de Desmond Newborn.
Rae ficou a olhar para as quatro pedras de granito, grandes e imóveis. A pedra era um material estranho para ela, que passara a maior parte da sua vida adulta em diálogo com as subtilezas orgânicas da madeira e o sempre presente perigo do aço aguçado, mas não havia dúvida de que pedra como aquela falava dum mundo completamente diferente, um mundo de eternidade, imprevisto e de total solidez.
Colocou um pé cuidadosamente sobre o degrau inferior, balançando-se para trás e para a frente, mas o degrau não se moveu. Afastando algumas gerações de folhas podres para o lado, revelou uma superfície cinzenta, de textura fina. O degrau seguinte, como o terceiro, era igualmente sólido.
Afastando um monte de terra do último degrau, a bota de Rae encontrou qualquer coisa dura entre os ramos secos. Procurou entre canas grossas como o seu polegar e ramos cobertos de espinhos, e deu consigo a olhar para uma tábua com quase cinco centímetros de espessura, escurecida pelo tempo mas bem conservada. Puxou com toda a força, hesitando em sair de cima dos degraus, mas curiosa em ver o que poderia ser aquilo. Daí a uns minutos, conseguira libertar um canto da tábua, da largura duma mão em duas direcções. O resto continuava escondido pela vegetação. Agarrou o objecto e abanou-o dum lado para o outro, obrigando a cobertura vegetal a soltar-se. Sem um esforço à luz do dia, era impossível adivinhar as dimensões daquilo, mas Rae olhou dos degraus para a madeira e concluiu que, apesar da sua espessura invulgar, aquilo devia ser a porta da entrada de Desmond, ali caída desde o incêndio. Ajoelhou-se no granito e estendeu-se para empurrar a vegetação do topo da peça de madeira; a cerca de trinta centímetros duma extremidade, encontrou uma enorme dobradiça de ferro.
Sorria, ao retirar o braço. A porta de Desmond; quem podia esperar que um canto sequer tivesse sobrevivido? Arrancou as luvas e tirou a faca do cinto das ferramentas, abriu-a e esticou-se para raspar uma fina camada da ponta da porta. As mãos pareciam seguras da direcção dos veios da madeira e, realmente, a lâmina deslizou em direcção ao polegar e a madeira curvou-se obedientemente por cima dela. Examinou a apara à fraca luz, reparando no seu interior avermelhado, e aproximou-a do nariz. Sob o cheiro a terra, sentiu um vago aroma: cedro-vermelho. Estudou a superfície, acariciando a fina textura da madeira, e acabou por guardar a apara no bolso da camisa, com um último olhar especulativo para o canto exposto da porta.
Depois, afastou-se. De novo junto da cova da fogueira, colocou alguns ramos em cima das brasas para aquecer água para os pratos, pegou no que utilizara e lavou-o cuidadosamente. Ainda estava hiperconsciente dos ruídos estranhos à sua volta, do tremer dos músculos e de todos os movimentos das ondas, mas já não era tão mau como anteriormente. Talvez a descoberta das pedras tivesse ajudado. Nada como uma tonelada ou coisa parecida de granito para dar alguma realidade a uma tarefa. Talvez a inesperada descoberta da porta de Desmond a tivesse acalmado. Ou também podia ser o facto de ter ingerido algum alimento a fazê-la voltar à terra. Fosse qual fosse a razão, sentia-se com força suficiente para dar o passo seguinte.
Pegou na mochila verde e tirou de lá um saco de papel com o nome duma farmácia. O céu estava ligeiramente mais claro, sobretudo para os lados do horizonte, e a parte inferior das nuvens tinha um tom rosado, devido à posição do Sol. Prendendo a lanterna no cinto das ferramentas, levou o saco de papel pela praia até ao promontório rochoso e quase tombou numa gruta à sua esquerda quando dois objectos pesados caíram na água à sua direita. Espreitou, a tremer, e um momento depois desatava a rir, nervosa, ao ver duas cabeças a escorrer: focas, perturbadas pela sua chegada, a olharem para ela com uma expressão de censura nos olhos líquidos.
Desculpem! pediu-lhes. As duas cabeças reluzentes mergulharam de novo, e Rae continuou a descer pelo promontório até ao fim, sem outra peripécia. Escolheu uma rocha e sentou-se para ver o pôr do Sol pintar o céu.
Desmond Newborn, pensou, podia ter-se sentado na mesma rocha admirando o mesmo Sol a desaparecer numa explosão de laranja e azul Bom, talvez não precisamente aquela rocha acrescentar pedras ao promontório fora uma das poucas acções empreendidas pelo pai de Ra? durante a sua posse de vinte anos da propriedade, para evitar o desgaste da ponta da ilha e a abertura da sua única gruta ao mar. E Rae tinha a certeza de que o tio-avô Desmond não se sentara ali para abrir um saco de papel e tirar de lá seis frascos gigantes de comprimidos. Comprimi dos para dormir, tranquilizantes, reguladores da disposição, megavitaminas (para o caso de a teoria não ser uma treta completa), que alinhou numa rocha a seus pés. Primeiro os comprimidos para dormir Tirou a tampa à prova de crianças, meteu um dedo dentro do frasco e puxou o primeiro comprimido para fora. Pegou-lhe um momento com dois dedos e depois atirou-o para a água com um piparote, vendo-o desaparecer com um ligeiro ruído e uma série de círculos concêntricos, tal como o segundo e o terceiro.
Ocorreu-lhe tardiamente que os tranquilizantes fortíssimos talvez não fossem adequados à vida marinha. Bom, talvez se dissolvessem antes de os peixes os encontrarem. Fosse como fosse, naquela noite, a sua preocupação principal não era a sorte da vida selvagem local.
Quando o último comprimido para dormir foi engolido pelo mar, tornou a fechar o frasco e enfiou-o novamente no saco (podia ser uma envenenadora de peixes, mas não seria acusada de espalhar lixo), antes de pegar no Prozac. Esses fizeram um ruído ligeiramente diferente, mais um plinque. E as megavitaminas gigantes fizeram plonque, mas também desapareceram sob uma suave ondulação, e tudo acabou antes de a última risca laranja desaparecer do horizonte.
Agora não possuía qualquer coisa mais letal do que cem aspirinas e uma garrafa de uísque muito velho, duas coisas que qualquer mulher normal podia ter. Fingir normalidade era o credo actual de Rae. Estava farta de comprimidos, de exercícios de controlo, de análise dos sonhos e da lupa da psiquiatria. Tinha acabado por pensar na psicoterapia como numa parente próxima dos horrores dos tratamentos nas enfermarias de queimados, controlando o processo de cura com o arrancar das tentativas do corpo para cicatrizar, por mais doloroso que isso fosse. Os demónios precisavam de ser enfrentados, sim, mas a todo o momento. Evitar era, afinal, uma maneira de lidar com as coisas. Portanto, agora, trataria os seus problemas com uma saudável dose de escape, apesar de a Verdade Psiquiátrica declarar: Não podes esconder-te, não podes ignorar.
Tretas. As pessoas normais faziam-no todos os dias.
O pensamento rebelde tornou-a um bocadinho mais feliz. A ausência dos comprimidos assustava-a ligeiramente, mas isso era de esperar. O medo também era normal.
Sob um céu azul-escuro, com a lua cheia a aparecer e os seus barcos farmacológicos afundados atrás de si, Rae pegou na lanterna e dirigiu-se de novo para a tenda, caminhando ao longo da costa desconhecida.
Diário de Ra
31 de Março
Quem sabe se alguém antes de mim terá percebido o significado desta data. Não só a noite de lua cheia, em que os aluados reinam, mas também a véspera do Dia das Mentiras. A médica atirava-se a mim num ápice, mas julga que eu saí da Califórnia nos meados de Março, o que tem um conteúdo simbólico muito diferente. A verdade é que até podia sentir-se encorajada se eu lhe tivesse dito que tinha pensado nesta data para começar o meu capricho o sentido de humor indica uma saudável dose de perspectiva. Mas eu nada lhe disse de importante nas últimas semanas. Pobre mulher cheia de boas intenções, tenho de lhe mandar um postal. A data é uma piada particular. O Alan havia de achar graça; se estivesse aqui, mas, se ele fosse vivo, a piada perdia o sentido.
Vi a ilha pela primeira vez há cinco anos, uns meses depois de o meu pai morrer. Quando os bens foram divididos entre vários parentes afastados e eu, por um motivo qualquer, a ilha coube-me a mim. Eu sabia vagamente que tinha cá existido uma casa, construída pelo meu misterioso tio-avô Desmond, mas ninguém meu conhecido a vira alguma vez. Por isso, nesse Verão, o Alan e eu decidimos vir ver o que eu tinha herdado, antes de a pormos à venda. Na realidade, foi mais uma desculpa para umas férias do que outra coisa qualquer. A Bela veio connosco. Tinha quatro anos e meio na altura, e eu acabava de chegar de Londres, triunfante e exausta. Sei que devia parecer tão cansada como me sentia, porque enquanto estivemos aqui três pessoas diferentes se referiram à Bela como minha neta. O Alan ficou danado, mas a verdade é que poucas mulheres têm filhos aos quarenta e dois anos.
fosse como fosse, alugámos um barco em "Rocharbor para nos trazer até cá. Nos mapas e nos documentos oficiais, figura ilha do Santuário, mas, quando eu disse ao velhote que alugava os Barcos onde queríamos ir, ele coçou a cabeça durante um minuto e depois exclamou:
Ah! quer dizer... à Loucura!
O Alan ficou encantado, passara uma vez as férias com um amigo da faculdade cuja família tinha um -pavilhão na propriedade de Verão, uma falsa ruína bastante ridícula, mas atraente. A alcunha da ilha provinha da casa que em tempos lá se erguera, embora eu não saiba se por ela ter alguma característica disparatada, invisível na única fotografia que possuo, ou porque em ruínas tivesse o aspecto duma dessas construções disparatadas como a do jardim do amigo do Alan. Possivelmente por este motivo. Seja como for, é como as pessoas daqui lhe chamam e, a partir dessa altura, nós também.
A casa a loucura que eu tenciono reconstruir, as pedras que pretendo recobrir de madeira e argamassa, foi construída e ardeu nos anos vinte, e estava havia muito absorvida pelo matagal quando a vimos, viemos cá os três, o Alan, a Bella, e eu, vimo-la e ficámos encantados. A nossa planeada rápida inspecção da ilha estendeu-se pelo dia fora e só foi interrompida pela fome da Bella. Percorremos toda a ilha surpreendentemente grande, e encontrámos uma praia, uma nascente de água cristalina, ninhos de águias, árvores e até uma espécie de clareira no cimo dum monte bom, mais uma colina}, onde o mundo parecia estender-se até ao infinito.
Não, tínhamos decidido, não íamos vender aquela parte da minha herança. Quando a Bella fosse um bocadinho mais velha, quando o Alan e eu estivéssemos menos ocupados com trabalho, seria o nosso refúgio, não só um magnífico sítio para passar o Verão mas também uma construção com personalidade, uma loucura no verdadeiro sentido de extravagância e irracionalidade (uma loucura numa das suas mais divertidas manifestações}. Demos início aos demorados preliminares trapalhadas legais, inspecções de engenheiros, licenças de restauro.
Três anos e meio mais tarde, antes de podermos voltar à ilha, estavam ambos mortos.
Quem está cá sou eu.
A loucura dos Neuburn.
Só o Alan seria capaz de apreciar a piada.
Com relutância, Rae fechou o diário de capa de cabedal e pô-lo de lado, junto ao velho revólver e às suas seis balas dispostas cuidadosamente num canto da improvisada secretária, para lhe fazerem companhia enquanto escrevia. Recostou-se contra os conhecidos altos do cinto das ferramentas, tirado ao sentar-se, e esfregou mecanicamente a cicatriz por cima da placa metálica que lhe fazia doer o braço quando estava cansada, com frio e nas outras vezes em que lhe dava na gana. Depois, com a mesma mão, pegou nas balas. Cabiam as seis na mão fechada, seis balas que faziam um simpático barulho metálico umas de encontro às outras, como uma boca cheia de pedrinhas molhadas. Deitou-as para a outra mão e pegou numa. Macia, morna, de chumbo cinzento numa ponta, com um invólucro fresco de latão na outra. Uma coisa simples, na realidade, só à espera duma pancada no sítio certo. Pensou se não seria melhor numerá-las, riscar algarismos romanos na ponta macia para as distinguir, mas isso pareceu-lhe demasiado semelhante às listas que marcavam o seu período pior, de maneira que as aqueceu um pouco mais e voltou a dispô-las em triângulo, três de cada lado, como bons soldados.
A tenda à sua volta era nova, encomendada dum catálogo juntamente com metade do equipamento de cozinha, à sua espera em Friday Harbor. Petra tinha-a ajudado a pegar nas coisas, absolutamente encantada, enquanto Tâmara as observava, custando-lhe a crer que alguém pudesse considerar aquilo um abrigo. O ar dentro dela cheirava a substâncias químicas para analisar água, e os vincos na lona e nas redes das janelas ainda se notavam perfeitamente. Rae tinha ficado contente
por encontrar os varões todos dentro da embalagem.
A família de Rae Newborn não era do género de passar férias a acampar. O mais perto que ela alguma vez estivera disso tinha sido durante uma semana com Alan numa cabana com telhado de lona no Parque Yosemite. Com frio, como agora. As paredes agitavam-se sozinhas, tremendo quando o ar lhes tocava. Todos os batentes estavam bem esticados nas janelas, mas a porta ainda tinha alguns vincos e não vedava bem. De fora, era possível espreitá-la sentada à secretária, se alguém se aproximasse cuidadosamente e se pusesse de joelhos.
Rae tirou o martelo do coldre do cinto e colocou-o bem à sua frente. Não há gente lá fora.
A lona tornou a tremer e um ramo ou uma pinha caiu no telhado com um ligeiro ruído. O corpo de Rae contraiu-se imediatamente. Começou a fazer os exercícios de respiração e visualização que ajudavam os músculos a relaxar, pensando: Porque terá o ramo atingido a tenda? E seria um ramo ou alguém a atirar alguma coisa, e o novo passo será um ramo a raspar na parede embora não haja ramos até à distância de dois metros em qualquer direcção e depois disso uma batida ou um barulho como uma chave num vidro apesar de uma tenda não ter janelas de vidro, ou talvez o vigilante se encoste à lona e empurre de encontro ao meu espaço até que os varões de alumínio da tenda se dobrem e as paredes...
Levantou-se tão abruptamente que a cadeira caiu, e estendeu a mão para o regulador do candeeiro de petróleo. O seu vivo clarão diminuiu e as sombras aumentaram, até que a luz desapareceu com um ligeiro estalido.
Aquilo tinha sempre resultado em casa, a sensação protegida de ficar sozinha no escuro para que os vigilantes na zona iluminada não pudessem ver para dentro. O que não levara em conta fora que não existiam luzes no acampamento, qualquer maneira de criar uma barricada de luz à volta da tenda. Só a Lua.
Isto foi uma estupidez, Rae, ralhou consigo mesma. Agora, vais ter de esperar até o Ed chegar para arranjar luzes suficientes para pendurar lá fora, meia dúzia deve ser suficiente, mas não de petróleo, que não seriam seguras. Gás é melhor, apesar de fazerem barulho, e depois quanto tempo é que dura uma bilha pequena de gás? Não servem, se eu tiver de ir lá fora mudá-las, talvez os candeeiros possam ser ligados a uma das bilhas grandes como a do fogão, embora sejam mais difíceis de instalar...
Não vais fazer isso proferiu em voz alta. A tenda pareceu concordar, aliviada por não estar prestes a ficar debaixo de holofotes. Ridículo árvores engalanadas com bilhas de gás a balançar. Todos os habitantes das ilhas viriam ali ver e os aviões desviariam o rumo para passar por cima dela.
Está escuro. Habitua-te a ele.
Rae foi até à cama e de lá até à mesinha improvisada com dois caixotes de livros de consulta para construtores, onde tinha o relógio e a lanterna. Pegou no pesado tubo de metal mas, em vez de accionar o botão, ficou parada à escuta e à espreita. A Lua ainda estava demasiado baixa para iluminar a tenda, o que significava que também não servia de protecção contra qualquer vigilante que tentasse surpreendê-la. Acendeu a lanterna para verificar a porta, e desligou-a imediatamente. Ligada ou desligada, qual era pior? A única coisa que desejava era ficar sentada à secretária a escrever o diário o resto da noite, concentrando-se na tinta e no papel dentro do abrigo das paredes de lona, até acabar a escuridão e o amanhecer lhe permitir voltar a usar o cinto das ferramentas. Mas escrever não era solução. Ligou novamente a lanterna, tirou os fósforos de Tâmara do bolso e voltou a acender o candeeiro. Deitou uma olhadela para o pequeno relógio a pilhas ao lado da cama bem feita e viu com desespero que pouco passava das nove. O acampamento estava organizado, o jantar despachado, todo o conteúdo da tenda arrumado e tornado a arrumar, o chá feito e bebido tão lentamente que ao fim ficara gelado, o diário escrito, mas ainda pouco passava das nove.
Mantém-te ocupada, mas com quê?
Parada debaixo do sopro do candeeiro de petróleo, sentiu qualquer coisa no bolso da camisa. Meteu a mão por debaixo do colete grosso e tirou a apara de cedro-vermelho que obtivera da porta principal da casa. Era uma madeira linda, com o grão apertado duma árvore selvagem e de certeza abatida ali perto. Manuseou-a, acabando por poisá-la na mesa, no canto oposto ao da arma de coronha de madeira. Depois, com um profundo suspiro, voltou o olhar para a protecção da porta. O coração ficou imediatamente acelerado, os pulmões pareceram contrair-se e, mesmo sentada, começou a sentir-se tonta. O ar pareceu ficar cheio duma premonição, duma sensação de desastre iminente que sentia nos próprios ossos, o que a teria levado a pensar que se aproximava um ataque de coração, se não tivesse passado por aquilo umas centenas de vezes.
Lá fora não. Não à noite. Lá fora sim. Não posso, vou...
Tens de ir. Foi por isso que vieste para aqui. Mas se está alguém lá fora...
Estúpida, estúpida. Uma tenda de lona não é refúgio, disse Rae para consigo, furiosa e dando um passo decidido, de maneira que a sua sombra apareceu na parede da tenda estranhamente imóvel apesar da tempestade que aumentava. A escuridão do lado de fora pulsava com uma multidão de vigilantes, a sussurrar e à espera para a agarrar assim que ela saísse, apanhando-a e apertando-se de encontro a ela, com obscenidades arfadas nas suas orelhas; já sentia as caras com barba por fazer a arranharem-lhe o pescoço, já ouvia o alegre monólogo duma criança morta a brincar nos arbustos... Agarrou o cabelo com as duas mãos.
Tenho cinquenta e dois anos de idade, gritou ela silenciosamente contra o ruído que lhe enchia os ouvidos. Sou mãe de duas filhas, sobrevivente de mais do que a minha conta de inferno; a terra não está prestes a abrir-se, não há dois homens a arfar junto ao meu pescoço, o meu coração não vai parar e não vou ficar reduzida a uma imbecilidade cobarde por um ataque de pânico. Não vou!
Tirou o casaco do gancho improvisado, lutou com o fecho da porta com os dedos gelados e saiu para o tumulto inexistente com o esforço dum explorador acctivo a enfrentar uma tempestade de neve. Abandonando o círculo de luz, Rae Newborn avançou para a escuridão.
Tropeçou duas vezes e quase se espalhou por causa de obstáculos no terreno irregular, até encontrar o macio tronco do cedro caído que marcava uma divisão entre o local onde se instalara e a floresta da ilha. Encolheu-se, com a cabeça baixa, lutando para envolver o ataque com a fraca respiração e os exercícios de visualização, à espera que a grande onda rebentasse em cima dela e recuasse.
O que acabou por acontecer. A sensação de ser uma pequena vela ao vento deu lentamente lugar à sensatez, o sangue deixou de lhe correr tão furiosamente pelas veias, a vertigem cessou o seu rodopiar e Rae não desmaiou. Os gemidos na garganta ficaram por detrás dos dentes. Daí a algum tempo, conseguiu sentar-se, arrasada, e deitou as mãos aos olhos. A vontade de correr às cegas para a floresta (ou para o mar ou para o trânsito), de abandonar o peso do pensamento racional por um pânico puro e inconsciente era por vezes praticamente incontrolável, quanto mais não fosse pela oportunidade que lhe daria de ficar finalmente inconsciente. Fora para evitar a tentação do olvido que deixara de conduzir. Sabia perfeitamente que a sensação de pânico humilhante, imprevisível e completamente sem sentido tirara o nome de Pan, o tentador tocador de flauta dos bosques e dos prados.
Quando o ataque passava, era até à vez seguinte, deixando a vítima lânguida, aliviada e pronta a dormir. Como uma febre recorrente, pensou; como uma imagem reflectida de sexo. E, assim, tinha Alan a seu lado.
Rae chorava Bella e ansiava por Alan todos os dias. Perdê-los deixara-a com dois buracos abertos, um com os contornos do vigoroso corpi nho da filha e o outro da sólida silhueta do marido, buracos dum vazio silvante com o frio do vácuo total. O alegre grito de Bella "Mãezinha!" fazia de tal maneira parte de si que ainda o ouvia, com a mesma convicção que faz com que uma pessoa que acorda fique à espera do eco do que a despertou, certa de que o som fora real e não um sonho. Mãezinha!, com os seus matizes de excitação, alarme ou êxtase, chegava-lhe aos ouvidos enquanto estendia a mão para um jornal, deitava café numa chávena, voltava uma página ou adormecia.
E, evidentemente, ouvir o autêntico grito duma criança viva para a mãe percorria-lhe o corpo como um choque eléctrico.
Com Alan, a perda era ao mesmo tempo mais penetrante e menos imediata. Surgia-lhe como o impulso de se voltar para lhe dizer qualquer coisa ou como a necessidade de ser apertada pelos seus braços ou animada pelo seu riso comunicativo, quando a pele da mão recordava os caracóis que lhe cobriam a cabeça e o frescor dos seus longos dedos. Todos os dias dos últimos quinze meses e meio, a perda daquelas duas pessoas lhe estendia emboscadas, fazendo-a fraquejar com uma incredulidade sempre nova e, embora a agudez e a duração dessas emboscadas fosse diminuindo, isso era afinal quase pior. O marido e a filha já não se moviam com facilidade no seu espírito. Tempo houvera em que tinha conversas com Alan e brincava com Bella, mais ou menos quando queria (ou com a vontade possível numa doente mental). Agora, quando lhe apareciam no pensamento, mostravam-se estranhamente estáticos, gelados em atitudes que ela amara, e até os seus contornos eram esbatidos. Estava a perdê-los para sempre, e não sabia se poderia suportá-lo.
Mais um motivo para a arma dentro da mochila. Duas pessoas cautelosas, Rae Newborn e Alan Beauchamp, ambos divorciados havia muito tempo ao conhecerem-se, ambos com filhos crescidos que achavam ter desapontado, e no entanto, apesar das suas cautelas, o laço entre eles fora instantâneo e permanente, como se uma faísca tivesse saltado dum para o outro quando os olhares se cruzaram numa exposição dum pintor amigo de Rae. Saíram da galeria juntos e, quatro dias depois, Alan pediu-a em casamento e mergulharam inexoravelmente na "Conversa". Rae sentira-se gelada de apreensão, mas não tinha escolha: Alan precisava de saber o que o esperava.
Depressão monopolar dissera-lhe ela. Não é bipolar... Isso é esquizofrenia. A minha é só desânimo. Antigamente, chamava-se-lhe melancolia. O Churchill chamava-lhe o seu "Cão Preto". É assustador, Alan.
Calculo.
Quer dizer, para as pessoas à minha volta. Para mim, é como estar a sufocar e ter de fingir que está tudo óptimo. Vista pelos outros, começo a parecer uma morta-viva. Simulação superficial, é como lhe chamam. Tudo morre: comida, sexo, beleza, raiva, vida, trabalho. Por dentro, é pura angústia constante. A dor física não se lhe compara. Por isso é que tantas pessoas com depressão se suicidam, porque o sofrimento é mais do que podem suportar. Eu... Aclarou a garganta e acabou por confessar: Tentei suicidar-me duas vezes.
Credo, Rae, e não há remédios para isso? perguntara ele, desolado. O Prozac ou qualquer coisa do género?
Claro. E alguns até conseguem resultados. Mas todos precisam de muito tempo para fazer efeito, semanas às vezes, e nessa altura fico um alegre e simpático vegetal. Até os medicamentos relativamente fracos como o Prozac funcionam no cérebro pela supressão da dopamina, que está ligada à criatividade. Toda uma faceta minha fica adormecida.
Estou a ver. Rae ouvira aquelas palavras e soube, com uma terrível convicção, que estava a contar demasiado, que ele queria acabar com a conversa, sair da breve, mágica e condenada relação. Esforçou-se por continuar num tom calmo, embora lhe apetecesse gritar e chorar.
Mas a parte pior, para mim e para as pessoas à minha volta, são as fases de transição. Tenho alucinações. Imaginando que a depressão é uma parte do corpo a ficar adormecida... a mão, por exemplo... O que eu sinto nessas alturas é como as picadas antes da sensação de dormência. Parece que a mente formiga. Oiço vozes, vejo movimentos inexistentes, sinto cheiros e consistências estranhas.
E que é... Alan parecia desorientado, à procura da reacção adequada. E, sendo como era, recuara para ideias. Rae viu a estratégia dele como uma sentença de morte. Desculpa, mas não sei grande coisa sobre a doença. Que é que acham que a provoca?
Uma mistura de química com a vida. É uma tendência muitas vezes herdada. Os acontecimentos ao princípio da vida têm influência, como perder a mãe em criança, muito vulgar entre os depressivos. E crescer num ambiente em que ninguém aprova o que a pessoa faz também não ajuda. Mas, no fundo, ninguém sabe.
Alan fora para casa pouco tempo depois da "Conversa". Rae ouviu a porta fechar-se, estendeu a mão para o copo e bebeu até ficar inconsciente, absolutamente segura de nunca mais o ver. Na manhã seguinte, saiu da cama com esforço, tomou duche e comeu, comportando-se como se ainda tivesse uma vida. Estava sentada a olhar desconsoladamente para uma prancha de teca quando ele bateu à porta.
Trazia um papel na mão. Estendeu-lho e perguntou:
É a isto que te referes?
Confusa, pegou no papel e leu o que tinha escrito:
No meio da jornada, da vida, dei comigo num bosque escuro, onde o caminho certo tinha desaparecido...... como quem fugiu, ofegante, das profundezas para a margem, se volta para as águas perigosas e olha para trás...
Que é isto? perguntou-lhe.
Dante. A Divina Comédia. Achei que soava como o que dizes que sentes.
Um bosque escuro, onde o caminho certo desapareceu.
É mesmo.
Bom, se o Dante conseguiu sobreviver, nós também conseguimos. Uma loucura a dois!
Casaram duas semanas depois e, nos nove anos e doze dias da ssua vida como marido e mulher, nenhuma discussão se prolongara para o dia seguinte, nenhuma separação passara sem um telefonema e nenhum dos dois se aborrecera na cama. Até a gravidez de Rae, descoberta uns meros três meses depois do casamento, os levou rapidamente do choque para uma aceitação hesitante até à profunda sensação de que a filha era uma dádiva tão preciosa como inesperada. Tâmara, a filha de Rae, podia ter sido doutra espécie para a mãe, e o filho de Alan, Rory, era tão incompreensível para o pai que os dois se viam talvez uma vez por ano (e sempre em Los Angeles, em terreno de Rory), mas com Bella, o destino acertara. Era uma família pequena, mas completa.
E Rae continuava a acordar de noite com a mão à procura no lado de Alan, continuava a ouvir a voz dele a segredar-lhe ao ouvido, a sentir-lhe as pontas dos dedos no cabelo, apesar de ele e Bella serem cinza fria e espalhada havia quatrocentos e setenta dias.
Enquanto estava ali sentada na árvore de casca macia, de mãos dadas com a recordação de Alan, os olhos tinham-se-lhe ajustado à escuridão. Esquecera como o luar era claro, longe da cidade, de tal maneira que era possível ler um jornal àquela luz, ou coser ou trabalhar um embutido presumindo que as mãos ainda se lembravam de como se pegava nas ferramentas. Os ramos mais baixos das árvores perto da tenda estavam iluminados pela quente luz difusa do candeeiro, mas mais para cima formavam intrincadas silhuetas escuras contra o céu pálido.
A noite estava calma, e a brisa não abanava os ramos das árvores. Rae agitou-se no seu poleiro, vagamente inquieta. Algures do outro lado da água, numa longínqua ilha, um cão ladrou quatro ou cinco vezes e depois calou-se. Um minúsculo morcego atravessou a clareira. Um ruidoso pássaro nocturno gritou (fazendo-a estremecer), as brasas na cova da fogueira transformaram-se em cinza e um coro de relas algures no bosque atrás dela deu sinal da sua presença. Um casal de mochos piou um para o outro com notas agudas e graves. Tudo ruídos calmantes. Então porque estaria o coração de Rae a bater daquela maneira? De repente, o coro das relas interrompeu-se abruptamente. Rae levantou a cabeça de súbito, mas o leve e constante sussurro da água nas rochas e das minúsculas ondas a tocar na praia eram os sons mais altos de toda a criação.
O coiro cabeludo cobriu-se-lhe de suor e a respiração pelas narinas soou na noite, uma respiração pesada que parecia vir de trás de si, acompanhada por mãos que num instante iam agarrá-la, e o pesadelo em câmara lenta recomeçaria e...
Não! pensou, desesperada. Isto não é medo. O medo tem um motivo, o medo faz sentido. Isto é ansiedade, a ansiedade significa sufocação, alimenta-se de si própria, e tu sabes isso; a ansiedade não tem pés nem cabeça. Nada há que recear aqui, ninguém está atrás de ti, não há motivo para sufocares de ansiedade. A solidão não é apenas o que eu quero, é o meu estado natural. A ansiedade não interessa, e o medo é...
A ladainha parou quando a ruidosa respiração de Rae lhe ficou presa na garganta. Um som chegava-lhe através do ar da noite, umas batidas lentas e distantes, que subiam e desciam, demasiado indistintas para serem um ruído. Deus do céu, pensou, desesperada, será isto uma nova espécie de alucinação? Vozes nas paredes e o toque de mãos imaginárias não são suficientes, agora tenho de descobrir o som de tambores ao longe na floresta!
Travou a ideia antes que ela se alimentasse mais da sua ansiedade, esmagando-a com força. Isto é uma terra nova para ti, admoestou-se. E o som pode perfeitamente ser verdadeiro, real, audível para ouvidos sãos. Não: pode, não; é. O som demonstraria, sem dúvida, ser qualquer estranha característica do arquipélago. Chamados de baleias a acasalar ou uma coisa semelhante aos ruídos a norte de São Francisco que costumavam pôr as pessoas doidas até serem identificados como provenientes de camarões ou mexilhões. Embora, admitia, se assemelhassem às vozes dos últimos meses, os sons que agora lhe atingiam os tímpanos, sem palavras nem emoções.
Então, um pequeno ramo estalou perto dela, e todo o corpo de Rae se voltou dum salto para enfrentar o atacante. O coração deu-lhe um salto como um animal selvagem apanhado dentro do peito, e ela ficou à espera, com a cabeça erguida e a boca ligeiramente aberta, de que o ruído se repetisse. Quando isso não aconteceu, o próprio silêncio pareceu instalar-se sobre ela, puxando-lhe a pele. Sentiu a garganta apertada sob o céu e os altos topos das árvores, da estranha enormidade da tenda, da massa de todas as coisas do mundo. Num minuto, seria um ratinho assustado ao lado duma gigantesca cabeçorra. Num minuto, tudo à sua volta adquiriria a inexactidão das mulheres de membros grossos de Picasso a caminhar pela praia, a sufocante expansão dos objectos de uso diário que desde a infância a fazia esconder-se, tapando-se com os braços.
Nada tens a recear aqui, disse a si própria; é um guaxinim e não vai atacar-te; está tudo normal.
Aqui não há atacantes disse em voz alta. E não há vigilantes na floresta.
Repetiu as palavras incessantemente, e talvez tivesse conseguido convencer-se, indo para a cama nervosa mas, antes que o pulso ficasse normal, ouviu um terceiro ruído, o som que mais receava em todo o mundo, que vinha para a mergulhar num terror abjecto: uma alegre voz masculina a gritar acima do barulho dum motor. Um barco, surgindo doutra ilha, com dois vizinhos a dirigirem-se para casa, mas Rae só ouvia a do jovem. O nariz encheu-se-lhe de repente do cheiro do suor juvenil, uma mão fantasmagórica meteu-se-lhe dentro da camisa e ela deixou de pensar, desatando a correr para os braços de Pa.
Ou seja, de encontro a uma das árvores do deus do pânico. A dor atingiu-a quando um ramo lhe bateu nas cicatrizes do lado esquerdo do corpo, percorrendo-a da cabeça aos pés, fazendo-a dobrar-se e deitar-se enrolada na terra fria e húmida debaixo da árvore, até que a dor desaparecesse e os sons que emitia se transformassem de rápidas arfadas em profundos e desesperados gemidos.
Ai, que estaria ela a fazer ali, que diabo estaria a fazer, quando dois garotos num barco que passava a endoideciam porque um gritava qualquer coisa? Pega no raio da arma e acaba com isto, Rae. Ai, meu Deus, gemeu ela, ai, merda, ai, com um raio.
O problema da loucura residia no facto de obrigar a despender tanta energia e, entretanto, ser tão incrivelmente aborrecido.
Talvez pudesse deixar-se ficar ali deitada, no agradável e calmo abrigo debaixo dos ramos perfumados. Ficaria deitadinha, escondida, a sentir o musgo cobri-la, uma folhinha de cada vez, até parecer um cobertor, transformando-a num monte macio e verde com a forma do seu corpo. Que ideia maravilhosa!
A ideia era encantadora, mas a terra era dura sob as folhas mortas, e os seus ossos de meia-idade demasiado perros para aguentar a posição. Relutante, pôs-se de pé e afastou os ramos mais baixos, reconhecida por verificar que os únicos estragos da sua brincadeira com Pa consistiam numa porção de nódoas negras e numa pancada na cara que quase lhe tirara um olho.
Abalada e dolorida, avançou no seu andar geriático pelo terreno irregular em direcção ao calmo e desinteressado clarão da tenda. Nem sequer parou para verificar se as vozes masculinas se tinham calado.
Rastejou para dentro do saco-cama e ficou enrolada, aquecendo lentamente e sentindo-se, se não segura, pelo menos não activamente ameaçada pela primeira vez desde que desembarcara do Rainha das Orcas. Observou o luar no telhado da tenda e mergulhou imperceptivelmente no sono.
A manhã ainda não chegara quando acordou, mas não estava longe. O tecto da tenda era uma presença cinzenta por cima da sua cabeça, e o tiquetique do pequeno despertador na mesa-de-cabeceira improvisada a única coisa a quebrar o silêncio. O olhar caiu-lhe sobre o mostrador, com os ponteiros luminosos vagamente visíveis na claridade crescente, e depois franziu a testa e tirou uma mão do quente casulo do saco-cama (fazendo uma careta devido às dores despertadas), para aproximar o relógio dos olhos. Sete horas? Havia anos que não dormia sete horas seguidas, nem com medicamentos.
Poisou o relógio e meteu novamente o braço para dentro, ficando quieta no calor do saco enquanto os objectos na tenda iam tomando forma à sua volta. Uma mancha escura indicava o candeeiro de petróleo pendurado dum varão, um quadrado monolítico representava a pilha de caixas de plástico que funcionava como armário, quarto de ferramentas e copa, com as formas mais pequenas ao lado da mala fechada, a grande caixa metálica das ferramentas e a caixa de madeira com os seus preciosos utensílios de trabalhar madeira. O tampo da secretária parecia flutuar acima do chão, com as ripas da cadeira visíveis de encontro a ela. Depressa conseguiu distinguir o cinto de carpinteiro pendurado nas costas da cadeira como se tivesse sido ali deixado por um pistoleiro. A cabeça do martelo começou a brilhar e a bexiga de Rae decidiu que eram horas de sair da cama.
A face interior da lona estava cheia de gotas de condensação e as botas geladas e rígidas como cubos de gelo; sentiu-se satisfeita por se ter deitado mais ou menos vestida. Enfiou um colete grosso por cima das camadas de algodão e tecido impermeável que já trazia e o barrete de malha que Petra lhe oferecera. Os dedos sem luvas metidos nos bolsos do grosso casaco estavam mais ou menos protegidos do frio, mas calçou-as antes de pegar no seu velho amigo, o cinto de carpinteiro, solitário companheiro daquele louco empreendimento.
Com toda a roupa que tinha vestida, apertar o cinto necessitou de alguma habilidade, e ele ficou-lhe quase na cintura em vez de nas ancas. Apesar disso, o peso familiar e os barulhos das ferramentas e do cabedal, as pancadas do martelo de encontro à coxa direita e a pressão da fita métrica contra os rins fizeram-na sentir-se melhor do que qualquer outra coisa.
O martelo à sua direita era uma das poucas coisas que ligavam a Rae ali da ilha com a Rae que ela fora em tempos, trinta e dois anos antes, quando descobrira dentro de si um gosto inesperado pelo acto físico de construir. Uma grávida de vinte anos, casada com um homem que escondia a sua incompetência manual troçando daqueles a quem se referia como "mecânicos grosseiros" (Shakespeare nunca mudara o óleo dum carro) e confrontada com umas prateleiras que precisavam de ser colocadas, Rae tinha marchado (ou melhor, tinha-se bamboleado) pela rua abaixo até à loja de ferragens e pedido ao empregado que lhe explicasse o que era preciso. O berbequim e a chave de fendas baratos que tinha comprado nesse dia já não existiam, mas, um mês mais tarde, olhando para um projecto ligeiramente mais ambicioso de um móvel para o quarto do bebé, e com um marido ainda mais vociferante contra as pessoas que fazem as coisas em vez de as deixar para os profissionais (que pareciam estar todos com trabalhos demorados ou de férias), Rae deu consigo a comprar ousadamente o martelo mais caro da loja. Era um martelo especial, com as orelhas curtas e fortes quase direitas, em comparação com as longas curvas do martelo vulgar, mais de meio quilo de aço, "martelo de mais para uma mulher", segundo o dono da loja. Mas Rae era uma mulher grande, alta e de ombros largos. Além disso, gostara da maneira como o cabo lhe encaixava na mão e como os movimentos exploratórios com a ferramenta lhe despertaram os músculos do lado direito, da ponta dos dedos ao maxilar e pela anca abaixo. Desde então, o martelo, bem como a sua possuidora, já tinham tido bastante uso. Dez mil pregos haviam gasto a superfície e deixado uma fina rede de riscos na cabeça, mas ainda lhe dava força, aquela ferramenta que ficara com ela mais tempo do que outra coisa ou pessoa qualquer. Os maridos iam-se embora ou morriam, as filhas casavam com idiotas avarentos ou morriam, a própria mente estava controlada ou não, mas aqueles anos todos depois o martelo continuava a caber-lhe bem na mão e a descansar ao longo da linha da pelve. Acariciou-o com o polegar na cabeça fria, enfiou o casaco e saiu da tenda.
Espreguiçou-se e bocejou, esfregando a cara, para acordar e observar o que a rodeava. Aquele seria o panorama que a receberia todas as manhãs em que vivesse na tenda: perto, a cozinha (cova para a fogueira, caixas para armazenagem e fogão de campismo) e a sala (cadeira de lona e dois pedaços de tronco de árvore que serviriam de mesa, bancos ou blocos para cortar madeira), com o cedro caído mantendo a vida selvagem afastada e marcando uma linha até ao promontório; a clareira à esquerda, uma espécie de rectângulo demasiado selvagem para ser um prado, com os limites definidos pela enseada em frente, a velha árvore a uns quarenta metros do lado esquerdo e os alicerces da casa destruída pelo fogo no cimo da colina. Atrás da parede traseira da tenda, uma íngreme encosta rochosa, com a água à volta de tudo aquilo.
Naquela manhã, o céu era uma extensão sem profundidade, nevoeiro ou nuvens. Os pássaros não cantavam e o vento não existia. O estreito para lá do promontório era o cinzento ondulante dum vidro antigo das janelas. A respiração de Rae era ruidosa e, quando se mexia, a roupa fazia barulho. Como que em resposta, ouviu-se um rápido ruído de agitação na parte de trás da tenda. Rae deitou a mão ao martelo no coldre, mas deteve-se, obrigando-se a escutar o som em vez da reacção do seu corpo. Uma agitação. Não passos. Um pássaro? Foi até à parte da frente da tenda para espreitar para os arbustos, e uma explosão de asas castanhas subiu do cedro caído, instantaneamente seguida de qualquer coisa com pêlo vermelho a trepar para a árvore mais próxima até à segurança da altura, onde o esquilo ficou a ralhar com ela, furioso. Rae fechou os olhos e respirou fundo, para se acalmar. A tal vida solitária ia levar tempo a tornar-se um hábito.
O esquilo zangado continuou a invectivá-la, e Rae tinha consciência dos olhos do animal sobre ela enquanto pegava na chaleira e a enchia com o jarro de água antes de a colocar no fogareiro de gás. Depois pensou no café para suportar o frio brutal duma viagem até à latrina, e ficou aliviada ao verificar que o zaragateiro do cimo da árvore desaparecera quando voltou. Quando ficou de novo vestida, abotoada e com todos os fechos corridos, de cinto posto, o bico da chaleira deixava escapar um jacto de vapor para o ar frio. O fogão era um luxo ali; realmente, o volume do reservatório e a necessidade de o substituir frequentemente aproximava-se do dos velhos fogareiros de petróleo de bomba da sua infância, mas era rápido e muito melhor do que acender uma fogueira só para fazer uma chávena de café.
Rae pegou no brilhante saco de café moído e deitou uma porção na máquina francesa de fazer café, ridiculamente frágil, outro luxo, que ia lamentar quando se partisse, mas que justificara mentalmente ao pensar na aborrecida alternativa de todos os filtros de papel que teria de enterrar ou fazer apodrecer. O factor decisivo, no entanto, tinha sido a visão daquele esguio e brilhante símbolo de sofisticação moderna empoleirado inconsequentemente num cepo diante duma poeirenta tenda de lona. O humor era um artigo raro na sua vida actual, a ser apanhado e guardado sempre que lhe ficasse ao alcance.
Deitou a água por cima do café, colocou o êmbolo no seu lugar e levou o objecto escultural até ao tronco do cedro caído, onde o equilibrou cuidadosamente antes de dar uns passos para trás, com os olhos semicerrados como um crítico numa exposição de arte: um vidro delicado suspenso numa armação metálica, a casca macia e escura gasta pelo tempo e pelos pica-paus; três pequenas tsugas, dois cedros, um abeto e um grupo de arbustos cujos nomes desconhecia e constituíam o pano de fundo; uma feia mesa de alumínio dobrável com um jarro de plástico em cima e a grande tenda a um lado evocando um acampamento familiar dos anos cinquenta.
Sim, decidiu, aprovando e acenando com a cabeça para o arranjo. Vale a pena preocuparmo-nos com algumas coisas.
Naquela manhã até tinha leite, já meio gelado, na geleira. Mais tarde, teria sorte se o arranjasse uma vez por semana, com as visitas do barqueiro Ed, visto que a ilha não possuía electricidade e ela ainda não decidira se queria tanto refrigeração e luz ao ponto de aguentar a maçada interminável de placas solares ou dum gerador. A ideia de viver numa dependência primitiva do Sol era, pelo menos temporariamente, atraente. Ou isso ou lá no fundo reconhecera a futilidade de tomar essas decisões quando estava longe de ter a certeza de ainda ali estar para fazer a instalação.
Naquele dia, contudo, ia gozar o café com leite. Serviu-se e beberricou, estirando a coluna e olhando para a neblina sobre a água espelhada da enseada, um estudo em cinzento matinal.
Sentia-se incrivelmente bem, como acontecia muitas vezes depois dum ataque como o da noite anterior. O espírito parecia-lhe entrar e sair do pânico com maior limpeza, quase como se tivesse um curto-circuito algures no cérebro. Quando a ligação estava normal, tudo trabalhava perfeitamente; quando a ligação se desfazia, por carga a mais ou devido aos caprichos biológicos, apagava-se.
Em parte, era o simples facto de as noites serem más e as coisas parecerem invariavelmente melhores de manhã. Sob aquela suave luz cor de pérola, a textura do silêncio da ilha era benevolente e viva com promessas, em vez de cheia de latentes ameaças. Estava ansiosa por dar início ao trabalho, mas adiou-o para dar uma volta pelo promontório e receber o dia. Preparou-se para se aproximar do sítio em que vira as focas, mas não ouviu qualquer chapinhar; já tinham acordado e saído dali. Em vez disso, assustou-se com uma garça cinzenta que caminhava na água pouco funda da enseada. O ruído das asas rompeu o ar quando a ave levantou voo, reflectindo perfeitamente a parte inferior do corpo na lisa superfície debaixo de si.
Rae continuou a andar até à doca e sentou-se com cuidado nas tábuas falhadas, onde começou a beber o café quente. Quando a ondulação provocada pela sua passagem acalmou, curvou-se para a frente para espreitar para a água. Uma mulher devolveu-lhe o olhar, com um rosto magro, olhos castanhos e uma franja de cabelo sal e pimenta (mais sal do que pimenta) a espreitar do garrido gorro de malha, com uma mascarra na têmpora esquerda. Franziu a testa e tirou o barrete para ver a marca, molhou as pontas dos dedos na água e esfregou o sangue seco. Quando a ligeira ondulação desapareceu, viu uma cara muito mais segura de si do que tinha direito a estar. Parecia forte, competente e nada frágil, com olhos calmos e nenhum vestígio de preocupação ou pesadelo à vista. Tenho de agradecer ao avô a construção desta fachada, pensou ela amargamente: impávida mas frágil como renda. Meu Deus, como o aspecto pode ser enganador...
Uma mão fantasmagórica passou-lhe pelo cabelo e fê-la virar-se repentinamente, mas era apenas a brisa a agitar os ramos. O toque despertou o pensamento dos vigilantes invisíveis entre as árvores, e começou à procura deles entre os arbustos quando avistou pelo canto do olho um movimento muito alto. Esperou e, daí a pouco, viu-o novamente, um ponto de beleza brilhante: um maçarico. A minúscula ave com a sua plumagem colorida empoleirava-se num raminho, espreitando não Rae, mas sim a água. Num instante, baixou e cortou a superfície da água, elevando-se em seguida com um lampejo prateado no seu bico forte. Voou por toda a enseada, baixou em direcção à margem oposta e desapareceu.
Rae nunca vira um maçarico. Eram criaturas mágicas, segundo ouvira dizer, e agora percebia porque diziam isso. Endireitou-se, esfregando o pescoço tenso, e concentrou-se numa série de longas e deliberadas inspirações do perfumado ar do mar.
Os pássaros iam acordando e começava a ouvir um fraco trinar invisível vindo da margem. Um pouco mais longe, avistou uma ave preta e magra que pensou poder ser um corvo-marinho. Pede ao Ed que te traga um livro sobre pássaros, sugeriu a si própria. Sempre tens alguma coisa que fazer em vez de imaginar fantasmas. Virou-se e foi até ao fim do promontório.
Do lado de fora da sua protecção rochosa, pequenas ondas lambiam as pedras. Ao longe, o nevoeiro que se levantava revelou-lhe uma forma baixa e escura na água, um cargueiro a subir o estreito de Haro em direcção a Vancouver ou Juneau. Um motor gemeu e calou-se, soando perto, como que a lembrar-lhe a facilidade com que os ruídos viajavam pela água. Do lado das rochas à direita de Rae, focas invisíveis tossiram e resmungaram umas com as outras, enquanto o ar parecia preparar-se para o dia. O Sol subiu através do vapor dum lado, enquanto a Lua desaparecia do outro. O nevoeiro solidificou-se por um instante e Rae sentiu qualquer coisa a desabrochar dentro de si: possivelmente esperança ou até vida.
Então, a neblina matinal rendeu-se e os primeiros raios de sol directos atingiram a água, transformando-a numa brilhante expansão de luz, num hino visual de júbilo, um cântico à magnificência do arquipélago.
Era a primeira manhã de Rae Newborn na ilha da Loucura.
Carta de Rae à neta
5 de Abril
Minha querida Petra,
Bom, como vês, consegui passar os meus primeiros dias na ilha da Loucura sem morrer de frio ou cair ao mar e ser comida por uma orca ou ser raptada por um resgate ou qualquer outro dos cenários tétricos da tua mãe. A única coisa que me aconteceu foi chocar com uma árvore e arranjar uma bela nódoa negra e um golpe que só vi no dia seguinte. Graças a Deus que não tenho visitas viam as minhas mãos imundas, o cabelo desgrenhado (por causa do superbarrete que me deste quente, mas que despenteia um bocadinho o cabelo) e uma grande mancha de sangue coagulado na cara, e mandavam-me internar outra vez antes do sol-posto.
O dia-a-dia aqui é desconfortável mas não impossível. Nunca chego a ficar quente, visto que não existe maneira segura de aquecer uma tenda e a fogueira num acampamento só nos aquece dum lado de cada vez, mas, quando me mantenho suficientemente activa, nem reparo que estou com frio. Muito. Uma coisa boa é poder comer refeições enormes e saber que não aumento um grama entre trabalho e manter-me quente, gasto as calorias todas.
Quanto à casa, ainda estou na fase de limpeza do terreno, o que vai levar mais uma semana até ter os alicerces completamente a descoberto e começar a fazer uma ideia da coisa. Ficou muito pouco das paredes, e o que ficou está enterrado em urtigas e silvas. (Parece-me que não cheguei a mostrar-te as minhas luvas para apanhar amoras chamam-se manoplas, porque chegam ao cotovelo, e são tão grossas que acho que era capaz de pôr pregos com elas!) Há árvores a crescer nos alicerces, claro, algumas já grandinhas, como o carvalho-silvestre mesmo no meio do sítio onde vou fazer a sala e, embora ache que dava um belo centro de mesa, seria difícil evitar que a chuva entrasse. Tenho de o cortar!
Uma coisa te digo já, mesmo com uma data de silvas e amoras: o Desmond era muito habilidoso com a pedra. As duas torres não têm uma única pedra solta, tanto quanto vejo com as plantas à volta, e os alicerces são quase tão seguros como há setenta e cinco anos quando tinham uma casa em cima deles. Isto é um grande alívio para mim, como podes imaginar porque não estava a gostar da ideia de ter de cavar e fazer novos alicerces para a minha casa. (Significa também que podia ter-te conduzido numa verdadeira visita guiada quando estiveste cá, mas a tua mãe tinha razão em dizer que as pedras podiam ser perigosas. E, a propósito, espero que a viagem de regresso tenha corrido bem.)
Bom, queres saber como vai ser a casa? Não sei se estás interessada nos pormenores, por isso avisa se não estiveres e eu passo a contar-te coisas sobre a ilha e a sua vida selvagem.
Talvez, devesse começar pelo próprio nome. Talvez já saibas isto, mas a palavra "loucura" aplicada a objectos ou actos marcados pela extravagância e pela irracionalidade é utilizada em troça mas também em admiração pela incrível exuberância de qualquer coisa. (O nome da "inútil" e vasta parcela de terra a que agora chamamos Alasca teve o nome, ao princípio de "Loucura de Seward".) Loucura indica o oposto de sobriedade e, em termos de arquitectura, refere-se a um edifício inútil enfiado na paisagem só porque alguém achou que ele ficava ali bem. Disparatado, mas engraçado. Talvez consiga descobrir por que razão deram este nome à ilha, quando o meu trabalho avançar. No entanto, a ilha também se chama Santuário, e parece-me que lhe deram esse nome antes de haver um refúgio de aves no extremo norte.
Viste onde costumava estar a casa e onde vai voltar a estar, se Deus quiser. É mais ou menos do feitio duma caixa, numa encosta íngreme, como se estivesse de costas para uma parede, com uma torre de pedra no canto direito da parede traseira (para quem olha da frente) e outra no canto esquerdo da frente. As duas torres, com uma chaminé escura atrás delas (que ficará escondida pelo telhado) são unidas visualmente pela altura dos alicerces de pedra. Deve ficar esquisita fica, com certeza, se não, porque haviam as pessoas de lhe chamar "loucura? mas, a avaliar pela fotografia, não fica tão desequilibrada como parece. A casa em si, mesmo sem as torres que não são muito mais altas do que o telhado, na realidade, e infelizmente não são suficientemente grandes para terem quartos lá em cima, mas apenas janelas), está bastante alta na colina e colocada de maneira que vai ter uma vista, não exactamente de cortar a respiração mas satisfatória. A clareira onde me ajudaste a armar a tenda e a ponta rochosa que forma a enseada parecem maiores quando as vemos de cima, abrindo-se para o estreito e as outras ilhas (e, quando o nevoeiro desaparece, o que acontece de vez em quando, para a costa da península Olímpica). Por outras palavras: quem passar pode não reparar na casa, mas da casa sentimos que podemos ver o mundo. É uma ideia que me agrada muito.
Por falar em tirar a respiração, não sei se te disse (e estava demasiado nevoeiro para veres), mas tenho a minha própria montanha. Bom, na realidade, não passa duma colina alta, no canto nordeste da ilha, mas o topo é quase completamente careca e, de lá, podemos ver o mundo. Quando estive aqui antes, com o teu meio avô e tia, fomos até lá ao cimo. Provavelmente, sabes que o estado de Washington tem uns poucos de vulcões adormecidos (esperamos), para além do não tão adormecido monte de Santa Helena. Bom, do cimo da minha colina, vê-se Baker e Rainier, bem como os picos cobertos de neve da cordilheira Olímpica. Mais os estreitos de Haro e Juan de Fuca e a ilha de Vancouver a oeste e uma data de ilhas a norte. Alguém construiu uma vez uma casinha no cimo careca da colina, para ver a vista. Até pode ter sido o governo, porque durante a Segunda Guerra Mundial o exército (ou a marinha ou a força aérea) tinha postos de observação escondidos em toda a costa do Pacífico, à espera da invasão japonesa que nunca chegou.
No próximo dia limpo, vou até lá com a máquina fotográfica e dou uma espreitadela. Não será um feriado, porque preciso realmente de verificar o abastecimento de água. Portanto, faço as duas coisas, não achas?
Bom, minha querida Petra, vou acabar, porque tenho as mãos cansadas e frias e preciso de dormir. O Ed barqueiro vem cá amanhã para me trazer leite e pão e para levar a roupa para lavar e uma amostra da água para análise, de maneira que lhe dou a carta para meter no correio.
Dá saudades aos teus pais e diz-lhes que estou bem.
Beijinhos da avó.
Rae olhou para o envelope, já selado e dirigido a Petra Collins, e coçou a cabeça com força com as duas mãos, como se o gesto pudesse aliviar a sensação de cansaço que a invadia ao fim do dia. A carta era demasiado alegre para ser credível. Se tivesse escrito as mesmas palavras por exemplo à Dra. Hunt, teria feito soar toda a espécie de alarmes. Mas a verdade era que uma pessoa não podia escrever o género de carta brutalmente honesta que lhe apetecia e mandá-la a uma adorada neta de treze anos, por muito madura, inteligente e sensata que fosse. Rae queria queixar-se de dores nas costas e no braço e ombro esquerdos, e de como lhe doíam os dedos ao ponto de até lhe custar a pegar na caneta, da pouquíssima força mental e física que tinha e do assustador que era o espectro da velhice. Ansiava pelo alívio da confissão do sobressalto em que vivia em todos os minutos que passava acordada e em muitos dos adormecidos também, de como gastava metade do tempo a olhar por cima do ombro à procura de vigilantes não existentes, abandonando o trabalho para ver se se aproximava algum estranho do promontório ou das árvores. De como na noite anterior tinha acordado dum sonho em que era levada para o mar, salva apenas por uma rocha do promontório, e vira que estava agarrada à almofada, a cara da neta a desvanecer-se ao longe. E de como o silêncio tão ansiado da ilha era afinal demasiado opressivo, ao ponto de a fazer desencantar o gravador da neta e de ouvir as músicas antigas (rindo histericamente até às lágrimas com a primeira música que, por casualidade, era o Conjunto Martha e os Vandellas a cantar Sem Ter para onde Fugir). Parecia chorar todo o tempo, por uma reacção nervosa ou de solidão e de medo medo de desconhecidos, de vozes, de fraqueza ou doença ou ferimentos, medo do próprio medo. Naquela tarde, desatara a soluçar de raiva infantil por não ser capaz de deslocar uma pedra caída, e dera pontapés no bloco coberto de musgo, como se tivesse três anos, gritando para os céus até que os joelhos se lhe dobraram e ficou sentada, a chorar de autopiedade até lhe doer a cabeça.
Não podia escrever aquelas coisas, não só por causa da idade de Petra, mas também porque a mãe da garota podia encontrar a carta (e conhecendo Tâmara, ela nunca permitiria que a filha mantivesse uma privacidade tão perigosa como uma correspondência pessoal com a avó) e ver imediatamente o que estava na base duma honestidade tão grande: um afecto profundo e franco como nunca dera à própria filha, uma fome de companhia que Tâmara não podia satisfazer nem Rae permitiria que satisfizesse.
A relação de Rae com a filha mais velha ficara condenada desde o princípio. Depois do nascimento de Tâmara, tivera uma depressão, que começara lentamente mas se encaminhara inexoravelmente para um esgotamento total, o primeiro de Rae. Quando saíra do hospital, três meses mais tarde, já não tinha marido nem filha. Precisou de quatro anos para readquirir o acesso a Tâmara, quatro anos para provar que não ia cortar os pulsos um dia com a filha a brincar no quarto ao lado (vívida sugestão feita no tribunal pelo advogado do marido). Nessa altura, Tâmara já estava realmente ensinada contra ela. A criança começou a gritar quando o pai saiu do apartamento de Rae, deixando a ex-mulher e a filha para passarem o primeiro fim-de-semana sozinhas. E gritou todo o fim-de-semana.
Durante os cinco anos seguintes, Rae e David compartilharam a custódia ou seja, a mãe dele partilhou-a de má vontade com Rae, visto que o pai levou a criança para casa dos avós. Depois, um mês antes do décimo aniversário de Tâmara, Rae tivera o segundo ataque. Grande parte desse Inverno estava esquecida, mas lembrava-se de algumas imagens, gravadas na sua memória pelo mesmo mecanismo que lhe deixara o grito alegre de Mãezinha! de Bella nos ouvidos: Tâmara petrificada à porta da sala, com o cabelo loiro escorrido e por lavar, durante a semana que passara com a mãe, a olhar para ela de boca aberta enquanto Rae se despia, explicando à filha o motivo embora este, com a lógica dos sonhos e da loucura, se tivesse perdido no nevoeiro; a imagem de Tâmara a ser levada pela enfurecida mãe de David no seu Cadillac branco, com os pneus a chiar; o sangue a espalhar-se na água da banheira em delicados arabescos vermelhos contra o esmalte branco. Disso lembrava-se, embora não recordasse o barulho e a agitação da entrada do ex-marido ou dos paramédicos. E nada de qualquer dos hospitais. Nada, a não ser uma escuridão cheia de murmúrios, onde aparecia aqui e ali a cara do pai com uma expressão simultaneamente perdida e zangada, a dizer-lhe que o avô William tinha morrido aos noventa e quatro anos, raivoso até ao fim. Rae ainda estava convencida de que o seu segundo esgotamento tinha provocado a trombose fatal do avô. O pai tentara tranquilizá-la, mas ela achava que o facto de saber que a sua única neta estava num hospital de doidos tinha morto William Newborn.
Depois disso, Rae tinha deixado de lutar com David pela custódia de Tâmara.
Só durante os anos do seu casamento com Alan é que Rae começara a sentir-se capaz de olhar a filha nos olhos sem se contrair e, mesmo então, a maior parte das vezes sentia uma terrível recordação duma coisa que nunca revelara nos trinta anos de psiquiatras. Uma coisa que só contara a uma pessoa em toda a vida: Alan.
A recordação era visual, de Tâmara como criança minúscula, suficientemente grande para já não ter o cordão umbilical mas demasiado pequena para ter força no pescoço talvez com um mês de idade Deitada na cama dos pais a gritar com alguma dor de barriga ou fome ou por ter a fralda molhada ou porque lhe apetecia, com Rae a tentar tudo. Dera-lhe de comer, pegara-lhe ao colo, mudara-lhe a fralda, lavara-a, dera-lhe palmadinhas, cantara-lhe, e nada resultara. Tinha-a deitado na cama suavemente, com imenso cuidado e ficara a olhar aqueles quatro quilos de fúria, de cara vermelha aos gritos. Sentira-se prestes a berrar também, e o olhar fora atraído para a prateleira onde poisara o grande martelo. O seu olhar passara da ferramenta para as mãos e depois para o bebé inconsolável. Custava-lhe respirar e os gritos pareciam desaparecer.
Voltou as costas e saiu de casa.
E David chegou a casa antes dela. Quando Rae entrou, Tâmara dormia calmamente no ombro dele.
Nunca dissera a David que, em vez de se enfurecer com ela por mais uma extrema irresponsabilidade, devia era pôr-se de joelhos e agradecer-lhe o autocontrole. Nunca contara a ninguém do impulso, nem mesmo depois de descobrir que muitas outras mulheres passavam pela mesma coisa, sobretudo as mais novas (e ela tinha feito vinte anos um mês antes do nascimento), as que tinham partos difíceis (o dela durara trinta horas) e um marido que não participava no processo (David trabalhava muitas horas), e as que não tinham qualquer apoio (toda a sua família e amigos tinham ficado na costa leste). O que Rae sabia era que não podiam confiar-lhe a filha, que aliás a odiava, uma sensação de que nunca conseguira libertar-se.
Passara os últimos trinta e dois anos, os lúcidos e os loucos, sabendo que a filha tinha medo dela.
Alan era a única pessoa que sabia a história toda por detrás da fria relação. Alan, que vira o medo a aumentar com a sua segunda gravidez e continuara a insistir até que ela lhe contara até ao último vergonhoso pormenor. Alan, que tirara uma licença para estar em casa quando ela precisasse de alguém por causa de Bella, não fosse...
Mas não houve qualquer "não fosse". Bella era um bebé fácil, tal como Rae era uma pessoa diferente da rapariga de vinte anos que tivera Tâmara, e a estranha química da mente depressiva não se manifestou. Com uma sensação de culpa, procurava ver em Tâmara sinais de ressentimento pela facilidade com que lidava com a sua meia-irmã mas, por qualquer razão, eles nunca apareceram. Tâmara gostava... não, Tâmara amava Bella, apesar dos ressentimentos passados e do embaraço da idade de Rae como mãe recente. Começou mesmo a confiar Petra à mãe, até ao acidente.
Até um mês depois do acidente, quando Tâmara e a filha tinham parado à porta da sala a olhar para Rae horrorizadas.
Quando Rae saiu do hospital psiquiátrico em Dezembro, estava à espera que Tâmara nunca mais a deixasse aproximar-se da neta, e desfez-se em lágrimas de gratidão quando a filha lhe levou Petra até à casa de recuperação onde estava a viver. Tâmara tinha-lhe vigiado todos os movimentos, mas tinha aparecido, e não fizera qualquer coisa para manter as duas separadas. Não concordava com a decisão da ida para a ilha mas, apesar disso, oferecera-se para a levar até lá, com Petra. E, no barco, até permitira que a mãe ficasse sozinha com Petra, sem as seguir quando Petra começou a passear pelo barco. Rae sentira-se grata, embora não percebesse.
E não tinha qualquer desejo de insistir no assunto. As cartas seriam leves, agradáveis e sãs, ao ponto de se tornarem aborrecidas. Não se referiria às vozes que segredavam sob a chuva nem às lágrimas imparáveis ou aos pontapés nos pedregulhos, gritando obscenidades quando eles não se moviam.
Lembrando-se do espectáculo das suas fúrias com as pedras, Rae ficou admirada ao sentir um meio sorriso puxar-lhe os cantos da boca. Credo, Rae, devias parecer... Interrompeu o pensamento e depois soltou uma gargalhada: uma louca.
Ainda a sorrir, atirou a carta dirigida à neta para cima da mesa e enfiou-se no saco-cama. Um mocho piou no cimo da colina, um som reconfortante na sua evocação dos montes da Califórnia. Até Bella não considerara os mochos uma ameaça.
Só passaram cinco dias, disse ela aos seus medos. Os músculos formam-se devagar na meia-idade, tanto nos braços como no espírito. Olha: tu levantaste-te e apagaste o candeeiro sem pensar na sombra na parede, não foi? Isso é um progresso. Pronto, a vida aqui não é só divertimento. Na realidade, é bastante difícil, sobretudo quando tentas deslocar pedregulhos à chuva.
Mas olha para as vantagens, continuou, com as pálpebras a fecharem-se. Não tens dificuldade em adormecer. Dormir descansada talvez fosse pedir de mais, mas decerto que um dia de trabalho árduo era pouco em troca do delicioso luxo da inconsciência.
O dia seguinte era terça-feira, dia de Ed. Ed De la Torre vivia em Friday Harbor, a cidade mais perto, e fazia de carteiro não oficial, taxista marítimo, serviço noticioso, consultor de reparações e distribuidor para a meia dúzia de residentes das ilhas dispostos a pagar. Eventualmente, calculava Rae, também ela acabaria por comprar um barco, mas nunca mais mexera em qualquer máquina pesada, muito menos um carro e, por enquanto, até um barquito com um motor fora-de-borda lhe parecia demasiado... extrovertido. E um barquito com uma pessoa inexperiente seria arriscado nas águas agitadas que rodeavam a sua ilha, o que significaria um barco maior e mais potente, o que necessitaria de lições e manutenção complicada, o que por sua vez significaria uma dependência maior do mundo exterior. Rae queria que a deixassem só, mas não estava disposta a prescindir de leite e ovos, pasta de dentes e meias lavadas. Por isso, Ed ia lá uma vez por semana e, verdade fosse dita, embora se encolhesse com a ideia de visitas, o saber que não estava completamente só no mundo era reconfortante. Lá muito no fundo do seu espírito, escondia-se a ideia de que, se Ed um dia chegasse à ilha e encontrasse um bilhete dela na tenda a dizer: "Ed, não entre e chame a Polícia", a descoberta não lhe daria um desgosto muito grande.
Segundo julgava saber, a maior parte dos seus colegas eremitas das ilhas que utilizavam os serviços de Ed possuía telemóveis ou rádios de ondas curtas para ligar para ele e pedir um bife ou papel higiénico ou a peça que se tinham esquecido de encomendar para a bomba da fossa. Rae recusava-se a pensar sequer num telemóvel, declarando que seria uma intrusão insuportável, mas admitindo para si própria que detestava o instrumento devido ao seu papel na morte da família. A recusa tinha enfurecido a filha ("E se adoece?", perguntara ela. "Ou dá uma queda?"), mas Ed limitara-se a comentar que um telemóvel não devia funcionar ali e dera-lhe instruções para pendurar uma camisa branca ou coisa parecida na ponta do promontório, se visse que precisava dele noutro dia. Passava por lá muitas vezes, ou algum dos vizinhos dela lhe mandaria recado.
Portanto, as terças-feiras eram dias de Ed, um pouco antes do meio-dia, tinha ele dito, dependendo da maré. Às oito da manhã, Rae já estava levantada, com banho tomado e cabeça lavada com água trabalhosamente aquecida, as meias-luas de sujidade tiradas das unhas, um pequeno saco de roupa suja pronto e uma cuidadosa lista de provisões para a semana seguinte escrita num papel.
E agora?, pensou para consigo. À espera da sua primeira visita, não ia meter-se na porca tarefa de demolição que a aguardava. Se Ed ia ser a sua única ligação com o mundo exterior, queria começar com uma boa impressão e, embora ele a tivesse levado para a ilha com um ar tão fleumático que parecia meio adormecido, não queria arriscar. O melhor era fazer qualquer coisa não demasiado física enquanto esperava... e não muito longe. Se se desencontrassem, apenas lhe restariam feijões de lata, arroz e leite em pó lá para o fim da semana.
Tirou o saco da roupa suja e a lista da tenda, correu o fecho da porta para não deixar entrar animais rastejantes e o seu vizinho esquilo, e poisou tudo na cadeira de lona. A clareira estava tão arrumada quanto era possível, embora dominada por pilhas de material de construção tapadas por oleados, visto que as tarefas que a esperavam eram de grande envergadura. Uma delas, contudo, não levaria mais do que duas horas e não a sujaria.
Uma coisa de que Rae precisava com certa urgência era uma bancada de trabalho. Já decidira onde a colocaria: encostada ao tronco da grande árvore no extremo da clareira, onde tinha enterrado as cinzas. O terreno era plano e ficava à sombra, mas queria-a ali principalmente porque dum lado veria a casa e do outro a enseada. Além disso, teria Alan e Bella perto de si.
Rae pegou no cinto de carpinteiro e apertou-o em volta das ancas. A manhã estava mais quente do que as anteriores, prometendo sol, e ela tinha trocado o casaco por um colete fino que pertencera ao marido. O cinto servia perfeitamente por cima dele, e o cabo do martelo batia-lhe no ponto habitual da perna, ao encaminhar-se para a árvore.
Pensara construir a bancada com ripas de dois por quatro, das quais tinha grande quantidade mas, perante a clareira com as pilhas de material atrás de si e as únicas interferências humanas decididamente temporárias tenda, fogueira, cadeira de lona e cozinha de campanha percebeu que uma mesa tosca e funcional seria, muito simplesmente, um aborto.
É claro que construções em andamento eram sempre desagradáveis à vista, mas qualquer coisa dentro de si fê-la afastar a ideia.
Voltou-se para observar a costa, e lembrou-se de repente duma coisa... de ter feito uma viagem de duas horas para ver uma escada, uma larga curva descendente de mogno e bétula, elegante, simples e muito cara, com um belo corrimão muito polido, totalmente apoiado em ramos toscos descascados. O proprietário tivera o bom senso de não tocar na escada, não a encher de passadeira e quadros nas paredes, e as altas janelas na parede curva realçavam-na como se fosse uma escultura. Rae sempre invejara essa escada, pensando muitas vezes em maneiras de utilizar a bela incongruência de madeira trabalhada e em bruto. Talvez tivesse chegado a altura. Não que estivesse prestes a meter-se no bosque para cortar árvores novas. Primeiro, a madeira verde não servia para a construção; segundo, já estava a imaginar a furiosa discussão que teria com as pessoas que haviam feito da ilha uma reserva. Mas as árvores vivas não eram o seu único fornecimento de madeira.
Alguma da madeira trazida pelo mar devia estar demasiado podre, mas se conseguisse encontrar na praia alguma que tivesse ficado dentro de água apenas o tempo suficiente para se gastar e não tanto que já não servisse...
Precisou duma hora e duma canela esfolada, além duma perna molhada até ao joelho, mas apanhou uma porção razoável de madeira prateada, grossa como os seus pulsos e algumas peças interessantemente torcidas. Levou a madeira pela colina acima e deixou-a cair junto da árvore, decidida a ignorar a dor no braço esquerdo. Depois, enfiou as mãos nos bolsos de trás das calças e ficou a imaginar a estrutura. Todavia, a segurança e o conforto do trabalho tinham sido interrompidos. Mais do que isso, estar ali parada naquela posição fazia-a sentir-se mal, com o suor frio a escorrer-lhe por entre as omoplatas. Tinha uma enorme vontade de atirar a madeira prateada ao mar e de começar a construir a bancada com a madeira que tinha trazido.
O problema era que isso implicava mais do que fazer uma coisa funcional, e não sabia se seria capaz dum esforço semelhante. Em tempos, numa vida anterior, Rae trabalhara a madeira, fora uma mulher cujas mãos e coração transformavam árvores mortas em gloriosas peças de mobiliário, transformando o material em armários espantosos e únicos, mesas e cadeiras. Em tempos, Rae parara de mãos nos bolsos diante duma prancha de nogueira, carvalho ou ébano, observando o excitante potencial, planeando, pensando e modificando os cortes na mente. Em tempos, Rae teria aproveitado a oportunidade de rodear o tronco da árvore com uma mesa de trabalho feita da madeira trazida pelo mar, brincando com as formas estilo arte nouveau da madeira cinzenta de encontro à casca cor de canela que se desprendia da camada interior dum verde aveludado da árvore viva. Em tempos, dezoito meses antes, noutra vida...
Antes de as palavras "condutor embriagado" terem rasgado a vida de Rae Newborn.
Entre as inúmeras razões para estar ali na ilha, encontrava-se a sensação de que a construção da casa lhe ocuparia as mãos com um trabalho que não necessitava de grande participação do coração. Trabalhar a madeira era uma relação íntima; construir uma casa era apenas uma tarefa. -E Rae não estava pronta para outra relação íntima.
Pelo menos, assim julgava, até dar consigo de mãos nos bolsos e com uma pilha de madeira trazida pelo mar a seus pés.
Mas, bolas, precisava duma bancada.
Que importância tinha ser com aquela ou com outra madeira qualquer?
Empurrou um ramo para o lado com a bota e reparou no desenho interessante dos nós. Depois viu outro, na base da pilha, que parecia reflectir os ângulos do primeiro, e ajoelhou-se para o puxar. Colocou os dois juntos, acariciando-os com as mãos, como a filha fazia na perna dum cavalo. Agarrou noutro ramo, e noutro ainda, começando a dispor a colecção desta e daquela maneira, vendo como a força dum ramo combinava com o intrincado doutro, equilibrando curva com recta, brincando com a madeira até que teve a certeza de que a bancada suportaria um motor e seria agradável à vista com apenas uma caneca de flores silvestres.
Então, dirigiu-se à tenda e, pela primeira vez em dezoito meses, abriu a sua grande e esmurrada caixa metálica de ferramentas. Tirou um serrote, um conjunto de cinzéis e respectivo malho, a sua antiquada broca manual, a sua caixa de pontas e o esguio nível de bolha de ar em alumínio. Poisou as ferramentas junto dos ramos trazidos pelo mar, tirou a fita métrica das costas do cinto e deitou mãos à obra.
Cruzar uma selecção de ramos para formar a forte base de que precisava não era tarefa fácil. Cada peça tinha de encaixar e resistir à tensão e à compressão que podia fazer com que a bancada se desfizesse. Furando e trabalhando um buraco para encaixar cada ramo e desbastando e entalando outros atravessados, podia ligar tudo até formar um todo leve mas sólido. A serradura cheirava a maresia, a madeira era peganhenta ao toque e muito diferente da árvore que tinha sido, e Rae estava completamente distraída com a sua floresta prateada em miniatura quando a voz soou atrás de si. Bom dia, miss...
As palavras calaram-se na garganta do barqueiro quando Rae gritou e pulou para trás, com o martelo a parecer saltar-lhe para a mão. O homem teve uma reacção semelhante, preparando-se para a luta, e ficaram os dois a olhar um para o outro por cima da base parcialmente construída de madeira flutuante, a mulher de olhos desvairados e o homem que lhe surgira pelas costas igualmente assustado. Ed foi o primeiro a recompor-se. Com um esforço visível, desfez a expressão contraída e endireitou-se, tirando o boné de basebol da cabeça e passando a mão pelo cabelo escuro. Quando levantou o braço, Rae avistou uma tatuagem geométrica à volta do pulso, em tons de laranja e azul.
Desculpe tê-la assustado desta maneira disse ele. Pensei que me tivesse ouvido, com o barulho do motor e tudo.
Rae engoliu em seco. O humor desarma era uma das lições vitais que aprendera nas suas laboriosas escaladas para fora da loucura, logo a seguir a finge seres normal, e serás. Endireitou-se também, deitou uma olhadela espantada ao martelo e enfiou-o no cinto, esfregando depois as mãos para esconder o seu tremor. Aclarou a garganta.
Estava ocupada, e não o ouvi aproximar-se disse ela, tentando sorrir.
Eu vi. Para a próxima, toco a buzina para a avisar. Desculpe disse ele de novo. Olhava para ela com uma expressão receosa, como se soubesse que estava diante duma mulher que ouvia vozes atrás das orelhas. Perante a reacção dela, Rae achou que a atitude era compreensível. O medo era contagioso.
Não tem de que pedir desculpa comentou ela, esforçando-se por aliviar a tensão do ambiente. Eu... hum... não recebo muitas visitas.
Ed parecia pensar em qualquer coisa. E assim era, mas não nas palavras dela. Reflectia: Então é realmente uma mulher que vim cá deixar na ilha Rae e não Ray e até não é desengraçada, mas está a fingir que não apanhou um susto de morte quando se virou de repente e deu comigo. Tal e qual como todas as outras mulheres sós das ilhas por muito que pareçam valentes, estão realmente acagaçadas e precisam dum homem perto delas. O pensamento colocou-lhe um sorriso sob o atrevido bigode branco.
Pois é, as ilhas são assim no Inverno. Quando chegar o Verão, pode ir a pé até Roche Harbor por cima dos barcos, mas no resto do ano isto é calmo. É claro que não vai ter muito trânsito aqui, por causa das correntes e dos baixios e também por esta ilha ser uma reserva.
Espero bem que não afirmou ela com fervor, percebendo depois que aquilo soava antipático. Olhe, ia mesmo fazer café mentiu. Quer um?
Não se incomode.
O único incómodo é pôr quatro colheres e não duas. Ed descontraiu-se um pouco mais: o humor desarma.
Nesse caso, obrigado. Quero, sim.
Seria demasiado esforço para Rae atravessar a clareira com um completo desconhecido atrás dela, principalmente um que lhe deitara olhares apreciadores, de maneira que estendeu a mão num gesto de cortesia e avançaram ao lado um do outro, embora bem afastados. No acampamento, encheu a chaleira e pô-la ao lume, tirando depois a cadeira de madeira do interior da tenda. Colocou-a a alguma distância da sua prima de lona, mas depois aproximou-a um pouco mais. Num movimento experiente, desapertou o cinto e pendurou-o nas costas de ripas, antes de passar o bule por água.
Ed colocara dois enormes sacos de papel da mercearia de Friday Harbor em cima da mesa de alumínio, e Rae vasculhou-os até encontrar o leite. Abriu o saco do café e mediu umas colheres, verificou se a caneca destinada ao visitante estava mais ou menos limpa e depois voltou-se para lhe perguntar se queria açúcar. Ed estava sentado na beira da cadeira de lona com o martelo na mão, passando os dedos grossos pelo cabo acetinado. Rae estremeceu, como se o homem estivesse a acariciar-lhe a nuca, e sentiu uma enorme vontade de lhe arrancar a ferramenta das mãos.
Açúcar? perguntou por entre os dentes.
Não, obrigado. Que madeira é esta?
Com aquilo, sentiu-se à vontade para se aproximar e tirar-lhe suavemente o martelo, passando ela o polegar pelo cabo escuro que lhe encaixava na mão como uma luva feita por medida.
É mogno das Honduras. Tinha um resto e precisava dum cabo, por isso pensei: "Porque não?" Acho que não é suficientemente forte, mas o tempo dirá.
Um resto... De remodelar a cozinha ou coisa parecida?
Rae teve uma visão fugaz duma cozinha naquela rica madeira como que envolta em chocolate derretido. Não, um resto duma oferta de paz que não resultou, esteve prestes a responder. Em vez disso, afirmou:
Fiz uma mesinha para a minha filha.
Para aquela que conheci outro dia? perguntou Ed, ligeiramente mais sisudo.
Exactamente, é a única disse ela. Agora. Reparou na expressão dele e sorriu, dessa vez com mais naturalidade, embora com alguma tristeza. É uma encomenda, não é?
O homem levantou os olhos, admirado pelas palavras ou pelo facto de terem sido pronunciadas pela própria mãe.
B... bem, talvez.
Aposto que não parou de lhe dar ordens até Friday Harbor.
Lá nisso tem razão. E o bigode tremeu num sorriso de ironia
E depois disse-lhe que me vigiasse. Estava a deitar-se a adivi nhar, mas não era a primeira vez. Tâmara já tinha pago a vizinhos para o fazerem.
Ed calou-se, e Rae tentou tranquilizá-lo:
Não se preocupe. Calculava que ela ia encontrar alguém que pudesse ver se eu não estava caída por aí ou tivesse endoidecido e andasse a falar com os pássaros.
Observou-o atentamente e reparou que os olhos da cor do mar se desviavam. Com uma praga entre dentes, continuou:
Aposto que lhe contou que estive internada num hospital psiquiátrico. O homem pareceu muito interessado nos velhos sapatos de lona que trazia, o que foi resposta suficiente. Merda, Tâmara, porque é que fazes estas coisas? Bom, se o velho Ed sabia, provavelmente devia saber o resto... ou a parte do resto que Rae estava disposta a contar. Não podia ter toda a gente em Friday Harbor a pensar nela como a louca da Loucura do Newborn. Apesar de ela ser isso precisamente E também lhe contou que fiquei gravemente ferida num acidente em que morreu o meu marido? Não percebia porque não mencionava a filha. Não, dar-lhe a filha teria sido demasiado. Pena por uma perda era uma coisa, mas a extrema piedade pela perda duma criança era outra. Não, não me parece que tenha falado do acidente. É natural uma pessoa ficar um tanto deprimida depois duma coisa dessas. Estendeu-lhe o martelo, colocando-lhe o cabo na mão calejada e virou-lhe as costas para fazer o café.
Bebe com leite? Não, simples. Olhe, eu... Não tem importância, Ed. A minha filha é uma criatura manipuladora. Só lamento que tenha de lidar com ela. Ora, não, não vou lidar com ela! garantiu o homem, embora Rae achasse que a sua indignação não soava cem por cento verdadeira.
Porque não? Diga-lhe como estou, aceite o dinheiro, e ficamos todos contentes. Se não for você, ela arranja outra pessoa qualquer. Não se preocupe.
Tem a certeza?
Claro que tenho a certeza. Prefiro-o a si do que um estranho a espreitar-me de binóculo.
Normal, tudo muito normal. Quem não ficaria ligeiramente deprimido depois daquilo a que os jornais chamavam um "trágico acidente", hein, Ed? E assim, como talvez não tenhas gostado muito da Tâmara Collins, pode ser que dês desconto ao que ela te disse e a mandes para o diabo, a ela e à conversa de a mãe precisar de comprimidos para acalmar e de a mãe imaginar vozes e gente a espiá-la, e decidas que a mãe não passa duma simpática excêntrica que decidiu vir viver para um rochedo deserto e reconstruir uma casota esquisita, para se divertir. Aceitas o dinheiro da Tâmara (não, o meu dinheiro, calculava Rae) e não te preocupas em me vigiar tão de perto como isso, e ficamos todos contentes.
Além disso, uma pessoa suficientemente rica para possuir uma ilha inteira no arquipélago de San Juan deve ser também um bocadinho chanfrada.
Para já, o desconforto de falar de Tâmara distraíra Ed da possibilidade doutro ataque e, quando acabou de admirar o invulgar cabo do martelo, enfiou-o no cinto colocando mesmo a cabeça virada para o lado certo, de propósito ou sem querer.
Então, costuma fazer muita coisa? perguntou ele com um olhar duvidoso para o objecto de aspecto estranho (escultura moderna? secador de roupa? antena de extraterrestres?) que a mantivera tão ocupada que nem tinha ouvido o barco aproximar-se. Rae pensou conhecer o motivo do desconforto do homem; era uma coisa com que lidara durante toda a sua vida adulta, desde que o primeiro dono duma loja de ferragens tinha tentado convencê-la a comprar um martelo mais leve.
Eu faço móveis. Mesas e secretárias, arcas e cadeiras, às vezes armários de cozinha, quando as pessoas querem coisas por medida. Sou especialista em embutidos.
Aquele era o suplemento deliberado para afastar as pessoas da imagem mental de mesinhas mal-amanhadas com pernas desiguais e trazê-las para o reino do verdadeiro artífice. Quem sabia umas coisas, perguntava-lhe o nome e reconhecia-o. Os do género de Ed não a distinguiam da Joana dArc, mas passavam a considerá-la uma "artista". Ed acenou com a cabeça.
Temos por aqui uma data de gente que pinta, trabalha com barro e coisas assim. Há um tipo na Lopez que vende jarras em Seattle por trezentos e quatrocentos dólares cada.
Rae não lhe disse que os seus móveis mais pequenos se vendiam! por quantias de cinco algarismos em Nova Iorque e em Los Angeles, e calculou que não ficaria demasiado impressionado se lhe dissesse que um museu tinha comprado um dos seus armários mais experimentais, mas ele parecia satisfeito por poder pensar nela como um dos tais tipos artísticos. As tendências artísticas explicavam muito até, segundo parecia, ameaçar com um martelo o homem que lhe trazia as compras
Quer mais café, Ed?
Não, Mistress Newborn.
Mister De la Torre, uma pessoa que quase apanha com o martelo duma mulher e continua disposta a levar-lhe a roupa para a lavandaria deve ser capaz de a tratar pelo nome próprio. Eu chamo-me Rae
Ed baixou a cabeça, envergonhado: não só, segundo parecia, pelo indelicado assunto de roupa interior suja.
Pois é, tem graça que a primeira vez que ouvi o nome... e com o cabelo curto e o casacão e tudo... Fiquei muito admirado quando a sua filha lhe chamou mãe. Só quando a senhora se assustou por eu aparecer atrás de si é que tive a certeza de que não era uma espécie de trans... uma coisa dessas. Sabe, daquelas coisas que a gente lê? Sempre pensei que devia ser muito confuso para as famílias dessas pessoas, e... Bom, seja como for, para a próxima vez, toco a buzina disse ele, mudando de assunto bruscamente. Ainda bem que não tinha uma espingarda encostada ao tronco da árvore. Então é que eu apanhava um susto, não era?
Rae tivera a impressão de que um movimento dela, junto à árvore, faria com que ele se lhe atirasse ao pescoço, mas garantiu-lhe que raramente disparava sobre as pessoas que lhe entregavam as compras, e foi ajudá-lo a descarregar o resto das provisões do Rainha das Orcas e depois desprendeu o cabo da sua doca. Quando o motor pegou numa nuvem de fumo azul e ele se dirigiu para o largo, ficou a pensar nas palavras do homem, reparando com algum espanto que não pensara uma única vez no velho revólver de coronha de madeira como numa arma de defesa.
Carta de Rae Newborn para a Dra. Roberta Hunt
6 de Abril
Cara dra. Hunter Dra. H.,
Sei que deve estar a pensar como a sua doente na ilha se está â aguentar a dar, e queria assegurar-lhe dizer-lhe que está tudo bem que estou bem que a experiência está a ser
7 de Abril
Cara Dra. H.,
Bom, continuo viva aqui na
Cara Dra. H.,
O barqueiro vem daqui a dois dias e
8 de Abril
10 de Abril
Cara Roberta,
Como boa e cuidadosa psicanalista que é, não tenho dúvida de que o seu espírito me seguiu diversas vezes durante este mês, curioso, curioso. Ao fim de dez dias na ilha, posso dizer que acredito que a decisão vai acabar por provar ter sido acertada.
Admito que os primeiros dias foram difíceis. Muito difíceis, em parte por deixar os medicamentos de repente e, sim, ouvi vozes e, sim, vi fantasmas pelo canto do olho. E quando o Ed De la torre o homem que me traz o correio e me abastece de pão e gás, apareceu pela primeira vez a semana passada, apanhei um grande susto. Felizmente, falou em vez de me tocar no ombro ou bom, não houve novidade, e ele agora já sabe que deve avisar-me a tempo.
Na realidade, vai gostar de saber (julgo eu) que não o ouvi chegar por estar completamente absorvida com a construção dum móvel. Exactamente, embora não consiga imaginar a opinião da Gloriana, a dona da galeria de Nova Iorque com quem trabalho, se o visse. Para o pôr nos seus termos mais pedestres, trata-se duma bancada de trabalho com uma base de madeira flutuante, mas é mais intrigante do que julgava possível com a madeira clara a erguer-se da terra (está numa clareira sob uma árvore e que diria ela a isso! O Museu de Arte Moderna é que talvez gostasse do conceito de ar livre). Seja como for, os ramos erguem-se como uma sebe de braços a acenar, interligados para se suportarem uns aos outros e ao pesado tampo. E sabe de que é feito o tampo? Da porta principal da casa do tio-avô Desmond, que apareceu enquanto fazia a limpeza do terreno. A porta é de cedro maciço, o que explica a sua longevidade, e está muito queimada e cheia de cabeças de pregos no que era a face interior, mas virei-a para baixo, aplainei o lado bom (retirando primeiro o fecho, claro porque se trata duma bancada de trabalho e não de arte conceptual), e é realmente uma peça de escultura utilizável.
A primeira coisa que fiz com ela foi desembrulhar um dos copos que me deu e colocá-lo no meio da bancada, cheio do primeiro vinho que tomei na ilha. Magnífico. Até tirei umas fotografias, que vou pedir à minha neta que mande revelar e mando-lhe cópias, assim que acabar o rolo.
Gastei quase uma semana, um terrível desperdício de tempo para quem vive numa tenda e com o Inverno a seis meses de distância, mas foi útil para me recordar quem eu era (uma pessoa que você nunca conheceu, mas talvez tenha vislumbrado) e ajudar-me a concentrar no que estou exactamente a fazer aqui: restaurar esta casa em ruínas.
(A propósito, já reparou que esta carta está cheia daquilo a que a minha professora do ciclo chamaria desaprovadoramente frases sem fim? Pense nisto como uma corrente da consciência, uma continuação das nossas sessões. É melhor pensar assim mande-me a conta pela leitura! do que achar que a minha gramática é terrível.)
Agora, um assunto profissional. Pode vir a ser ou já ter sido contactada pelo xerife local, que mandou cá um agente a roncar (o barco, não ele toda a gente anda aqui à volta na mais espantosa variedade de embarcações, a maioria com potentes motores. Uma espécie de Veneza selvagem. Na realidade, a minha ilha fica numa corrente e quando não se, mas quando finalmente condescender em comprar um barco, vou ter de arranjar um motor forte. O seu secreto lado freudiano que faça o que quiser desta afirmação). Onde diabo ia eu? Ah, já sei, no agente do xerife. Bobby Gustafsen, um amorzinho de homem (Ai, ai, diz a doutora Hunt; Ai, não, diz a Rae Newborn: um amorzinho dum homem muito casado, pai de gémeos, com pouco mais de trinta anos) que olhou para mim com desconfiança, como se eu estivesse prestes a saltar sobre ele. O agente Gustafsen apareceu por cá principalmente para tomar contacto com uma nova residente (é este género de sítio, apesar da distância líquida entre vizinhos), mas também para me trazer uma fotografia para ver se eu podia identificar o homem como um dos meus atacantes. Não se parecia muito com algum deles, mas é simpático saber que a Polícia não pôs o caso completamente de lado. Seja como for, dei-lhe o seu número de telefone, mais como referência quanto ao meu carácter do que por outro motivo. Se ele telefonar, diga-lhe que, embora eu veja ocasionalmente uns homenzinhos verdes, neste caso eram apenas dois estupores humanos (?). Vermes, como lhes chamou o xerife Escobar, e só agradeço a Deus mais uma vez o meu vizinho Joseph, não só por aparecer na altura e estar disposto a intervir, mas também por poder corroborar que, apesar de todos os meus alarmes falsos e fantasias, naquela ocasião não tive uma alucinação e não me espanquei a mim própria. Se ele não tivesse aparecido, você e eu ainda continuávamos com as nossas sessões três vezes por semana e eu teria acabado por acreditar que aqueles dois filhos da mãe eram tão incorpóreos como os olhos nas minhas janelas e os passos na minha varanda.
Em vez disso, aqui estou, a trabalhar, a respirar uma data de ar puro e a comer grandes quantidades de comida bastante monótona mas incrivelmente saudável, e ao fim do dia estou demasiado cansada para tentar ouvir vozes nas ondinhas que batem nas rochas da praia ou procurar olhos nos arbustos em volta da tenda.
Portanto, cara doutora Roberta e terapeuta minha, descanse o espírito quanto a esta doente fugitiva e pouco razoável pelo menos, de momento. Caminha tudo na direcção certa e, se eu escorregar, se as vozes reaparecerem na noite, prometo que volto a tomar os medicamentos. Por muito que goste de si, estou a começar a apegar-me ao meu rochedo e não me apetece trocá-lo pelo recinto verde-claro do hospital. A não ser, talvez, pelo conforto das camas.
Com esperança de que esteja bem de saúde física e espiritual (porque não tenho dúvidas quanto à mental), e com muito afecto.
A sua Rae Newborn.
Não havia muitas mentiras naquela carta, pensou Rae nessa noite, enquanto escrevia o endereço no volumoso envelope (para além da impossibilidade de voltar a tomar os medicamentos que estavam no fundo do mar). Não havia necessidade de mentir, na realidade, e era melhor não o fazer, se pudesse evitar.
Pegou no copo de vinho, o copo tão delicado que era quase etéreo, e bebeu o último gole de Merlot da Califórnia. O presente de despedida da médica uma oferta que só podia ter sido duma amiga para outra e não de médico para doente fora duas daquelas belas coisas de pé alto; um par, explicara a psiquiatra firmemente, não para que as guardasse para quando tivesse uma visita, mas sim para que Rae não se sentisse tentada a deixá-las na prateleira na categoria de "Coisas Demasiado Preciosas para Usar". Se partisse um copo, tinha com que o substituir, e se partisse esse, bom, não passava do membro sobrevivente dum par.
Como grande parte do que a médica lhe dizia, parecia haver vários níveis na explicação, mas Rae suspeitava que, lá no fundo, a pequena e urbana mulher vestida de Armani não suportava imaginar a sua doente a beber vinho por uma caneca, agachada à fogueira, como qualquer trabalhadora calejada. A vida selvagem podia ser inevitável naquela altura da vida de Rae, mas a civilização não devia ser completamente abandonada.
Além de que ambas tinham a certeza de que o vinho sabia melhor bebido por um bom copo de cristal.
Rae sentia-se satisfeita com o dia de trabalho, que vira o fim da simples tarefa de fazer uma bancada de trabalho, tarefa que rapidamente se transformara numa coisa muito mais importante. Por um lado, gastar tantos dias na minuciosa feitura da coisa, até ao embutido que percorria uma perna prateada, fazendo sobressair o brilho pálido do tampo de cedro e ligando com o castanho-avermelhado da árvore por cima, era, como tinha dito à Dra. Hunt, uma ridícula perda de tempo. Tinha demasiadas coisas para fazer, como a limpeza do terreno e a construção propriamente dita, já para não falar da verificação do abastecimento de água e a instalação duma fossa, para passar quatro dias e meio com uma estrutura frívola como aquela.
No entanto, por outro lado, a própria concentração na frivolidade era o que a marcava como artista e pessoa. Gavetas feitas com perfeitas e minúsculas juntas, armários com embutidos no interior, por amor de Deus, dobradiças de latão forjadas à mão a repetir as linhas dum móvel, e camada sobre camada de polimento ridículo. Desnecessário. Tão louco como decidir aos quarenta e dois anos ficar com o inesperado bebé que significaria desistir de dois anos de trabalho com metade das colas, velaturas e acabamentos de que dependia, e numa altura em que estava prestes a tornar-se "grande". Mas esse género de decisões era o verdadeiro âmago de Rae Newborn. Pela primeira vez, tinha começado a lembrar-se disso.
Saiu da tenda (acto que, ao fim de dez dias, ainda lhe aumentava as pulsações, mas se tornava mais fácil) para lavar o copo à torneira do seu depósito de plástico de vinte litros. Perguntou a si própria se Ed traria os resultados da amostra de água que mandara para analisar seria bem agradável poder utilizar água da nascente em vez daquele líquido sem graça e com o gosto do recipiente. Colocou o copo ao contrário na toalha que servia de escorredor e atravessou a clareira às escuras para dizer boa noite à sua bancada terminada.
A Lua nessa noite não iluminava mais do que uma vela, mas descobriu que, se se afastasse para o lado, a luz que vinha da tenda era suficiente para iluminar o pálido emaranhado de pernas debaixo da placa de cedro com oitenta anos. Tinha ficado espantada, ao descobrir a porta no meio da vegetação, em tão bom estado de conservação. A aresta encostada ao solo precisara de ser raspada, e a das dobradiças e parte da superfície interna estavam, como disse à psiquiatra, queimadas pelo fogo mas, para além de dois buracos do lado de dentro (cabides? buracos feitos para outra coisa qualquer?), o resto era sólido. Pesado, mesmo. Por qualquer razão, as dobradiças tinham sido colocadas para a porta abrir para fora, o que lhe parecia incómodo ao cimo duma escada, mas Desmond provavelmente colocara o espaço interior acima do que era conveniente. Rae vacilara entre tentar devolver a porta ao seu lugar e utilizá-la como tampo da bancada, mas decidiu que tinha feito a escolha certa. O passado era para se construir sobre ele e ser utilizado, não para governar as pessoas. Faria a sua porta, não exactamente uma gémea daquela, construindo-a em cima da antiga transformada. Talvez até pudesse utilizar a fechadura original, ou mandá-la copiar.
Passou a mão pela superfície indistinta. A madeira estava macia, apesar das ligeiras variações deixadas pela plaina com certeza mais macia do que a pele da sua mão, que readquiria rapidamente o seu estado endurecido com bolhas e cortes. Rae raramente lixava uma superfície plana, preferindo o simples acabamento proporcionado pela plaina à macia lanugem deixada até pela lixa mais fina embora algumas madeiras e muitas formas a exigissem. Até preferia o acto de aplainar, aquela completa dança de movimento, as longas passagens, sentindo sob as mãos a textura da árvore em tempos viva. Era um bocadinho como fazer uma massagem, com todos os músculos a trabalhar, o peso do corpo equilibrado nos pés e toda ela a trabalhar ao serviço da mente. Apreciava o lento cortar da lâmina de aço através das fibras da madeira, e gostava da chuva de perfumadas lascas encaracoladas. Até se divertia com os preliminares afinar a plaina, colocar a lâmina e afiá-la até ficar como uma navalha. Tudo bem considerado, era altamente preferível a nuvens de serradura.
Se a vida pudesse ser alisada com a mesma facilidade, pensou ela.
Agora, contudo, vinha a questão do acabamento da bancada. O Óleo escureceria a madeira e deixá-la-ia menos brilhante do que um verniz impermeável. Por outro lado, um acabamento impermeável parecia sempre artificial, colocado em cima da madeira como a camada de plástico que era, para não falar da necessidade de ser retirado de tempos a tempos e mais vezes num clima húmido como aquele. E se ela...
Um forte estalido soou na colina atrás da tenda, e todos os músculos do corpo de Rae reagiram instantaneamente para se proteger. Num momento estava a pensar na bancada, e uma fracção de segundo depois encolhia-se do outro lado da árvore, com a cara encostada à casca, pondo árvore, bancada, clareira, tenda e cedro caído entre ela e a origem daquele ramo partido.
Não se repetiu. Um gosto a vinho azedo subiu-lhe à garganta, sentiu a cabeça andar à roda e o velho rugido familiar nos ouvidos. Voltou-se e deixou-se cair na terra, com o tronco da árvore atrás dela, baixou a cabeça até aos joelhos e lutou contra o desespero.
Como podia uma pessoa viver daquela maneira?, pensou. Um animalzinho pisa um ramo seco e esse ruído inocente funciona como um aguilhão eléctrico? Já passara mais de um ano desde que aqueles dois filhos da mãe tinham surgido de carro atrás dela na estrada, e em todo esse tempo, em todos aqueles meses na enfermaria fechada e sob cuidados da médica, a racionalidade ainda não conseguira introduzir-se entre a percepção duma ameaça e a reacção do corpo.
O seu predecessor ali, o construtor de Loucura, devia conhecer tu do sobre os duradoiros efeitos da tensão, mesmo sobre uma mente nor mal. O homem que tinha laboriosamente construído aquela porta de cedro podia ter-lhe dito quanto tempo fora necessário para os efeitos dos bombardeamentos durante a guerra começarem a desaparecer, para o ruído dum motor de automóvel deixar de atingir o cérebro como fogo de artilharia e fazer com que o ex-combatente procurasse abrigo.
E daí, talvez Desmond não pudesse dizer-lhe o tempo que levava; talvez para ele a reacção visceral nunca tivesse diminuído. Talvez fosse por isso que ali ficara., longe dos fortes ruídos da civilização.
Ou não seriam apenas os motores ruidosos e a maquinaria em movimento? Teria ele também entrado em pânico com um mero estalido nos arbustos? Teria a sua pobre mente igualmente interpretado o barulho como uma ameaça os soldados do kaiser a avançar pelo terreno, talvez? Teria sido por isso que construíra uma porta suficientemente forte para resistir a fogo de morteiro?
Rae perguntou a si própria se Desmond também traria uma arma na mochila, para o caso de os nervos ficarem demasiado desfeitos.
Fosse o que fosse, estava cansada de carregar a odiosa carga consigo. Não era depressão, não era alucinação, era apenas a esgotante sensação da futilidade de viver. Quem diabo se ralava que Loucura fosse reconstruída? Quem se importava se ela se recompunha ou se nadava até ao horizonte? Muita gente ficaria aliviada, na realidade. A Dra. Hunt sentiria alguma culpa e, para ser honesta, Tâmara também. Mas quem choraria de verdade Rae seria Petra.
Petra, por quem ansiava, Petra, que não lhe permitiam apertar nos braços com medo que a loucura da avó fosse perigosa ou contagiosa.
Petra.
Rae estava farta do fardo. Mais do que farta do passado, a meter-se constantemente no caminho do futuro que pudesse construir, fartíssima de rastejar e sobressaltar-se a cada barulhinho, cheia até acima de revulsão pela sua própria timidez.
Estava farta, por Deus.
Antes de poder reconsiderar, pôs-se de pé, deu rapidamente a volta à bancada, alcançando a área iluminada junto à tenda e, de pé sob o feixe de luz que saía da aba da entrada aberta, ergueu os braços e gritou para a parede escura das árvores:
Pronto! Cá estou eu! Olhem bem, raios os partam! Eu. Não. Vou. Esconder-me. Nunca. Mais! E, para dar ênfase à promessa, baixou-se para pegar num ramo seco e atirou-o para as árvores com toda a força. Num anticlimax, o ramo bateu num tronco a três metros dela e caiu no chão com um ruído seguido dum guincho e duma breve agitação nas folhas caídas, e finalmente dum silêncio aterrorizado.
Rae ficou ali parada, ofegante, relembrando o guincho. Que pobre criaturinha teria ela assustado? Seguira inocentemente o seu caminho nocturno, até que um monstro ruidoso saltara do nada e o céu lhe caíra em cima.
E, se realmente a estava observando da sombra, que teria ele (ela não, com certeza) pensado da sua atitude? Se o Alan, por exemplo...?
Começou a rir, com relutância ao princípio. Alan sabia que a mulher era chanfrada, mesmo de maneiras não incluídas numa doença mental; mais do que uma vez tinha dito que fora por isso que casara com ela. Mas aquilo teria espantado mesmo um homem tão condescendente como ele. Imaginando a sua expressão, a curiosa sobrancelha erguida por cima dos belos olhos castanho-amarelados, riu com mais força, até que se atirou para a cadeira de lona e soltou enormes gargalhadas assustando ainda mais a vida selvagem, sem dúvida. A raiva, o desespero, o sofrimento e o humor maníaco juntaram-se e fizeram-na erguer a cara para a Lua, origem de tanta loucura, rindo e chorando até ficar sem lágrimas.
Então, levantou-se novamente, respirou fundo e gritou com toda a força:
Alan, tenho saudades tuas como o diabo, meu estupor, Alan! Por que merda é que não tiveste mais cuidado, seu assassino filho da mãe? Ai, Alan, ai, meu Deus, raios partam tudo!
A voz extinguiu-se-lhe num murmúrio, e ela fechou os olhos e cambaleou levemente, sentindo-se vazia, completamente vazia. Mesmo assim, quando o estalido se repetiu do lado da colina, dessa vez mais acima, contraiu-se um ligeiro estremecimento, mas ainda uma reacção.
Mas mesmo isso era demasiado.
Ai, meu Deus... gemeu alto, embora sem saber se em prece ou praga. Fosse como fosse, a reacção foi a mesma. Arrancou a camisola pela cabeça e baixou-se para tirar as botas, descendo depois a colina, para longe da luz, magoando os pés e um tornozelo a caminho da água.
Um passo, dois, na água de gelar os ossos, e depois até aos joelhos. Quando a água lhe chegou às coxas, começou a respirar com dificuldade, e metida até à cintura seria com certeza obrigada a sair. A água estava preta contra a terra preta assustadora para que se entrasse nela sem roupa e sendo impossível saber onde ficavam as zonas arenosas e os pés entorpecidos atingiram rochas escorregadias de algas e decerto uma variedade de criaturas rastejantes, mas Rae debateu-se até a água gelada lhe atingir o peito. Permaneceu de pé mais um instante, recuou e acabou por cair, rendendo-se à gelada bênção do mar nocturno...... Para se erguer uns momentos depois com um grito, cuspindo e tossindo, gritando pragas incrédulas contra a temperatura da água e o vivo e divertido medo de que o peso da roupa encharcada a arrastasse para o fundo. Chapinhou que nem uma doida na direcção da margem e correu desajeitadamente até ao calor, por comparação, da tenda, onde se despiu e limpou com uma toalha, com os dentes a bater descontroladamente. Vestiu muitas camadas de roupa quente, meteu-se na cama e puxou o saco-cama para cima da cabeça molhada.
Nessa noite, Rae sonhou. Num episódio, qualquer coisa enorme e amorfa mas não hostil saiu da enseada para falar com ela sobre cozinha chinesa. Noutro, um belo brilho verde que sabia ser um duende flutuou por cima do topo rochoso da ilha, dizendo a Rae que pertencia à Guarda Costeira dos Estados Unidos e queria que ela o autorizasse a instalar uma torre-satélite para espiar submarinos japoneses. Noutro ainda, Rae baixou-se para tirar o martelo do cinto e levantou-se com um dos copos da Dra. Hunt na mão, para seu aborrecimento. E, finalmente, sonhou, mesmo antes de acordar, com uma coisa que lembrava melhor do que tudo o resto, embora sem a compreender muito bem: A casa chamada "Loucura" estava pronta sobre os seus alicerces, enfeitada com as duas torres, engraçada e encantadora, perfeita nas suas proporções e localização entre rochas e água. Era noite e a casa brilhava de luzes, uma quente iluminação amarela que saia das suas janelas e formava uma faixa pela colina abaixo, a partir da porta aberta e das altas janelas estreitas no cimo das torres, o que as transformava em faróis, feixes gémeos de luz que guiavam e confortavam, a brilhar na escuridão. Ao aproximar-se, Rae viu e ouviu que havia uma festa lá dentro, um elegante baile formal com um quarteto de cordas e mil velas a arder num salão de baile muito maior do que qualquer cabana de quatro metros e meio por oito podia ser. Belas jovens com vestidos cintilantes rodopiavam acompanhadas de altos rapazes na pura dignidade do preto e branco, taças de champanhe saciavam gargantas sequiosas, e a festa parecia um sucesso. Então, a imagem começou a tremer, e as damas de vestidos coloridos foram erguendo os braços acima das cabeças uma a uma vacilando, até se transformarem em chamas. O salão de baile incendiou-se alegremente e começou a arder.
Rae acordou na claridade fresca e cinzenta da madrugada, com aquelas vivas chamas amarelas na mente.
O que não admirava, pensou, enquanto tomava o primeiro café. (Com o esquilo empoleirado mesmo por cima dela, a invectivá-la, o que a deixou impávida.) O incêndio de Loucura estava muito nos seus pensamentos ultimamente.
Antes da distracção da construção da bancada durante quatro dias, tinha inspeccionado a selva em redor dos alicerces. Aquilo parecia-se um pouco com o castelo da Bela Adormecida presumindo que ele tivesse sido destruído pelo fogo enquanto os seus habitantes dormiam.
Rae não se lembrava da primeira vez em que ouvira contar que a casa do tio-avô tinha ardido. Claro que já o sabia antes de terem visitado o local, ela, o marido e a filha, porque as paredes nuas e chamuscadas das torres e da chaminé não a tinham surpreendido. Assim que chegara à escada de pedra e vira o estado de tudo aquilo, percebera que o incêndio tinha sido total. O que não consumira com o primeiro calor havia enfraquecido, até cair e transformar-se gradualmente em cinzas à excepção da porta, que caíra fora da zona ardida.
Portanto, o sonho continha vestígios de história embora só vestígios, reflectiu ela enquanto lavava a tigela dos cereais e ia buscar as ferramentas. Não esperava encontrar candelabros de prata nem dúzias de garrafas de champanhe enquanto limpava o local.
Durante sete décadas, a saudável vegetação do Noroeste do Pacífico fizera o possível por destruir a obra de Desmond Newborn. Toda a espécie de plantas trepadoras se tinha enraizado no rico húmus resultante do regresso à natureza dos componentes duma construção de madeira, enquanto urtigas, silvas e roseiras-bravas se enrolavam afectuosamente nas torres e rasgavam a pele e a roupa de Rae. Meia dúzia de espécies de fetos nascia também entre as pedras e um autêntico jardim de flores silvestres brotava entre as plantas mais lenhosas florinhas delicadas brancas e amarelas, entremeadas de esporas azuis e trevo cor de púrpura. Rae trouxera uma faca de mato curva para a ilha, pensando que podia vir a ser útil, mas nunca imaginara ter de a brandir dias a fio.
Foi implacável, destruindo beleza e pragas igualmente com poucas excepções, como uma delicada planta com flores em forma de estrela que encontrou entre os restos dumas tábuas de soalho. Essa e mais umas quantas parecidas foram cuidadosamente retiradas e replantadas um pouco mais longe. A maior parte ia morrer, sabia perfeitamente, mas sempre tinham um pouco mais de hipóteses do que se ficassem nos sítios onde tinham nascido.
Portanto, naquele dia, com a bancada terminada, ia voltar primeiro para a limpeza do terreno e depois para a escavação dos alicerces. As cidades antigas, segundo os arqueólogos tinham descoberto, eram muitas vezes instaladas em cima dos restos de anteriores gerações de edifícios, mas Rae tencionava começar no leito rochoso. Determinada, enfiou os mitenes à prova de espinhos e retomou a tarefa.
Era um trabalho lento e que fazia suar, perigoso para os pés porque não tinha maneira de saber o que a vegetação escondia, se era solo duro ou um pedaço de parede apodrecida finamente disfarçado. Ia avançando cuidadosamente com as botas até estar em terreno firme, puxando e desenrolando arbustos e trepadeiras, gastando a maior parte do tempo a arrastar grandes volumes de plantas mortas para o local do seu futuro jardim. Sentia-se sozinha enquanto trabalhava, mas ter uma coisa em que se concentrar ajudava. De vez em quando, o corpo esquecia-se de se encolher a um ruído súbito; e chegava a passar uma hora sem a repentina convicção de que alguém a espreitava.
Precisou de mais dois dias para limpar a terra, longas horas brutais de espinhos aguçados e urtigas que picavam, um jeito num joelho provocado por o que lhe parecera terreno sólido e não era, e um aterrador momento em que a pesada lâmina, a ficar romba sem ela dar por isso devido ao cansaço, saltara num ramo lenhoso e cortara o ar a um centímetro da mão dela.
Mais dois dias para remover a vegetação e pôr a descoberto a grossa camada apodrecida de tábuas de soalho, tabiques, ripas, móveis e tudo o mais que Desmond tinha em casa quando ela ardera.
Dois dias a cortar, e agora poderia começar o seu verdadeiro trabalho.
Diário de Desmond Newborn
11 de Novembro de 1918
Disseram-me hoje que a Grande guerra terminou.
Os sinos das igrejas tocaram, as ruas encheram-se de caras brilhantes viradas para cima, e fartei-me de andar para encontrar um sítio onde pudesse parar debaixo duma árvore e gritar, gritar, gritar.
Estaria a rir? "Estaria a chorar? Não sei.
Mas sei que a guerra nunca estará terminada. Nunca.
28 de Novenbro de 1918
Dia de Acção de Graças, porquê?
Saí de casa e encontrei novamente a minha árvore de gritar, mas pareceu-me que o regato junto dela era pouco profundo para afogar um homem.
3 de Dezembro de 1918
Cheguei a casa precisamente há um dia, e continuo a sentir-me menos de meio homem, com o braço fraco como o dum bebé. E o espírito também.
ÍA gripe chegou à cidade. A mulher do meu irmão sai para tratar dos doentes e pede-me constantemente que fique em casa e não me molhe, para que todos os cuidados com um soldado destruído não tenham sido em vão.
Calculo que o jornal de amanhã diga que foi avistado o Monstro da Babilónia, ou pelo menos uma chuva de rãs.
11 de -Dezembro de 1918
O William, justamente ele, apanhou a gripe. Como é que ela se atreve? Curiosamente, descobri que me preocupo e preferia que o meu irmão não morresse. Quem dera que uma dose de mortalidade o tornasse mais humilde, pelo menos na maneira como trata a mulher. Lacy está à cabeceira dele a toda a hora. Receio que adoeça também, embora verdade se diga que não é tão delicada como aparenta.
25 de Dezembro de 1918
Aniversário do nascimento do nosso Salvador, embora eu não saiba o que esse filho de carpinteiro fez para merecer o título. Não me parece que haja grande prova de salvação no mundo hoje em dia.
O William dobrou o cabo e vai ficar bem. A. Lacy está estafada e com má cor, mas ainda não adoeceu.
Passei o último dia de Natal numa trincheira inundada, debaixo dum atirador que se entretinha a disparar pelas frestas para todos os periscópios erguidos acima dos nossos sacos. Como quem atira numa barraca de feira, mas o resultado foi que dois de nós não voltaram para casa. A senhora Banner recebeu um bom embora atrasado presente de Natal: o marido sargento com a sua medalhinha. Na verdade, devolvemo-lo com um olho a menos, mas até o Exército de Sua Majestade tem de admitir que um sargento só com um olho deve ser dispensado do resto do combate. Os restantes de nós podíamos perfeitamente ter trocado um olho pela hipótese de perder o resto do combate. Ou mesmo pela oportunidade de perder o resto do dia, com chuva gelada a escorrer-nos pelo pescoço e lama até aos joelhos, tudo isso piorado pelo facto de sabermos que os Alemães estavam seguros e secos a menos de duzentos metros de nós numas trincheiras brevemente ocupadas por nós umas semanas antes, magníficas, fortes e profundas. Mesmo antes do anoitecer, senti o cheiro de ganso assado. O capitão jurou que eu estava a imaginar coisas, e devia ter razão, mas foi uma crueldade, aquele bafo de temperos e pele gorda a tostar a aparecer por entre o fedor de corpos por enterrar e a eterna lama e latrinas a deitar por fora. faz hoje um ano.
Mas fiz um juramento de que não voltava a escrever sobre a guerra, quando deitei ao mar o diário daqueles meses, porque escrevo hoje? Por causa da chuva, acho eu.
Feliz Natal, sargento Banner.
27 de Dezembro de 1918
Tíve de sair de casa - o cheiro de ganso assado revolveume as tripas. Passei a noite num celeiro algures, Os pulmões não gostam disto.
2 de Fevereiro de 1919
Estive bastante tempo mal dos pulmões. Não percebo porque não deixam simplesmente defuncionar. Devia tratar do assunto duma vez por todas, não percebo porque não o faço, a não ser por parecer ingratidão terem-me trazido até aqui para desistir. Talvez seja por isso que saio mesmo com mau tempo, para tentar a sorte. Está gente a morrer por toda a cidade; porque há-de o meu corpo ser tão saudável?
A vida aqui, apesar das alegrías está a parecer-me cada vez mais desconfortável. Quando a Primavera chegar, tenho de me fazer à estrada.
COLOCAÇÃO DOS ALICERCES
Construir uma vingança bem construída, reflectiu ele, é como construir outra coisa qualquer: os alicerces suportam-na e também lhe dão forma.
Tinha assuntos a tratar em Seattle daí a dois meses, por isso agiria nessa altura. Ele próprio, pois seria demasiado perigoso depender de subordinados fará uma coisa tão delicada como aquela.
A única fotografia existente de Desmond Newborn era também a única fotografia da sua casa: um enrugado instantâneo dum homem com um fato poeirento e um panamá na cabeça, diante duma construção de madeira de aspecto sólido com duas torres de pedra, uma janela com seis vidraças e quatro degraus até à porta. Devia ter havido outras fotografias, desde o invariável retrato de estúdio duma criança com gola de renda e caracóis, até um confiante jovem num teso uniforme novo, mas tinham desaparecido todas, com o tempo ou com alguma arrumação intempestiva ou ainda na cheia que assolara a casa paterna nos anos quarenta.
Encontrara a sobrevivente no fundo da caixa forrada de veludo com as medalhas e o documento do alistamento dele, e levara-a a um laboratório de fotografia para lha ampliarem o mais possível sem desfocar os pormenores, o que resultou numa cópia de vinte centímetros de lado. Aliás, fizeram-lhe duas: uma que emoldurou e pendurou na casa da Califórnia e outra que mandou plastificar. Foi essa que tirou duma das caixas de plástico da tenda.
Rae observou-a, como já fizera uma quantidade de vezes. No passado, interessaram-lhe mais os pormenores da casa, para calcular as suas dimensões, imaginar o ângulo do telhado e o estilo da janela. Com os olhos fechados, seria capaz de desenhar a parede da frente, a posição da janela e da porta no andar de baixo e da janela mais pequena de quatro vidraças no triângulo do andar de cima. Outro homem qualquer, com a aproximação do Inverno (mas porque teria pensado nisso? Ah, sim, por causa das folhas caídas nos degraus junto às botas de Desmond) e precisando duma porta, teria decidido construí-la simplesmente de tábuas unidas umas às outras com um Z de fasquias de cada lado. Desmond, a trabalhar em condições bastante primitivas, tinha produzido uma porta construída com pouco mais do que autêntica ha- bilidade. Os dois buracos que descobrira na superfície interior da porta; possuíam um metal qualquer lá dentro, possivelmente pregos derretidos ao lume e fundidos em meros caroços. Deixara-os onde estavam, agora voltados para o chão acima dum mar de pernas de madeira vinda do mar. )
Rae planeava prender a fotografia plastificada no tronco da árvore por cima da bancada, sem saber muito bem se como decoração, evocação do espírito-guia da ilha ou inspiração. Mas, nesse momento, reparou que aquilo que sempre presumira ser o puxador da porta não condizia com o mecanismo que retirara dela uns dias antes. Olhou melhor e viu pela primeira vez que, embora Desmond estivesse em pleno sol e se visse perfeitamente a sua sombra, o puxador não fazia sombra. Não era um puxador, mas sim um buraco. Além disso, embora sempre tivesse achado que ele parecia à vontade, com as mãos soltas aos lados do corpo, sem se mexer, viu que a mão direita, à sombra da perna, segurava qualquer coisa escura, possivelmente a fechadura que estava agora metida num saco de plástico com óleo em cima da bancada. O que Rae tomara por uma fotografia que mostrava um homem calmo e pouco exigente era na realidade dum homem interrompido numa tarefa, permitindo um breve atraso antes de se ajoelhar na entrada da sua casa para a tornar segura. Rae percebeu lentamente que aquela imagem a preto e branco que tinha na mão não era uma fotografia do tio-avô Desmond diante da casa em que vivia, mas sim um retrato de Desmond Newborn e da casa que estava exactamente prestes a terminar.
Baixou a fotografia para olhar por cima dela, comparando o passado monocromático com a realidade actual. Faltavam algumas das árvores, verificou ela, como o carvalho-silvestre e um cedro demasiado perto da casa, e até os cepos queimados tinham apodrecido. O jovem abeto-do-canadá protegido por detrás da torre da esquerda era agora um poderoso avô, e os espessos arbustos verdes da actual encosta tinham sido cortados sessenta anos antes, deixando visíveis rochas e troncos de árvores.
De Desmond, a fotografia pouco dizia, apesar de nítida e certinha como as antigas fotografias pareciam sempre ser. Posição, vestuário e rosto meio na sombra, uma imagem da qual as futuras gerações tirariam as suas conclusões. A atitude dos ombros largos e da cara barbeada, a expressão reservada dos olhos escuros, a boca generosa que parecia ter provado o sofrimento ou seria por conhecer o seu passado? mesmo uma projecção com base na sua própria história? tudo junto podia indicar teimosia ou falta de sentimentos numa mente defeituosa, ou mesmo o rígido controlo dum homem num sofrimento crónico. Podia até ser um paciente desinteresse pelo processo de fotografar ou pela pessoa que o fazia. Fosse quem fosse.
Já agora, quem teria sido? Tudo indicava que Desmond Newborn não era homem para receber visitas ocasionais; contudo, o vestuário, apesar do ferrolho na mão (e tinha praticamente a certeza de que era isso mesmo), indicava a formalidade de receber visitas. Mesmo nos anos vinte, não imaginava os homens a vestir fatos e colarinhos engomados para trabalhar em carpintaria. A não ser que a fotografia tivesse sido tirada para comemorar uma ocasião simbólica, a instalação da fechadura da porta principal e nesse caso, porque não fazer mais estardalhaço, colocando o construtor no acto ou pelo menos apresentando a peça metálica à máquina fotográfica? Desmond parecia simplesmente à espera que o visitante vagamente indesejado tirasse a fotografia e se fosse embora, para poder livrar-se do colarinho engomado e voltar ao trabalho.
Tio Desmond, o senhor é um enigma disse Rae para a fotografia.
Meteu os dedos da mão esquerda na bolsa dos pregos na parte da frente do cinto, como já fizera mil vezes, esquecendo que ainda não tinha aberto qualquer caixa de pregos, pequenos ou grandes. No entanto, encontrou uma coisa bicuda num canto e tirou-a para fora.
Um prego de telhado. Três centímetros de comprimento, galvanizado, com a cabeça chata como uma tacha gigante. Tornou a procurar na bolsa e encontrou, ironicamente, mais dois iguais. Sabia perfeitamente por que motivo metera aqueles pregos no cinto, dezassete meses antes.
Fora numa manhã de domingo a meio de Novembro, num fresco fim-de-semana do Norte da Califórnia, entre as chuvas. Rae acabava de voltar de duas acidentadas semanas no Japão, onde dirigira um curso que coincidira com a inauguração duma exposição colectiva em que apresentara três peças. Não querendo separar-se tão pouco tempo depois do seu regresso, ela, Alan e Bella tinham-se metido no carro para visitar Tâmara e Petra (e Don, se ele não tivesse arranjado uma desculpa para estar longe), para afinal descobrir que Tâmara se tinha esquecido ou não quisera pensar na visita, porque quando chegaram estava a enfiar a família na enorme carrinha presa a um reboque de cavalos carregado. Petra, na altura prestes a fazer doze anos e ainda não ostentando roupa de pedinte e ataques de grosseria adolescente, tinha um concurso hípico a uma hora de distância da quinta. Rae avaliou imediatamente a disposição de Tâmara e disse que, por muito que gostassem de ver Petra competir, achava que era melhor ela, Alan e Bella ficarem por ali à espera que a família voltasse para casa. Até fazia um tacho de esparguete ou coisa parecida, para terem o jantar pronto.
Tâmara não tentou sequer esconder o seu alívio, limitando-se a entregar as chaves à mãe e enfiar-se na carrinha. Don acelerou numa nuvem de poeira que fez abanar o cavalo de Petra furiosamente dentro do reboque.
Alan e Bella vestiram os fatos de banho e foram para a pequena piscina atrás da casa, mas Rae, cansada da viagem e enervada como de costume depois dum encontro com a filha mais velha, colocou o reconfortante cinto das ferramentas (que metia sempre no carro para aquelas visitas, porque Tâmara tinha invariavelmente algum trabalho urgente por fazer e estava pronta a não se incomodar com o comportamento pouco feminino da mãe se isso significasse que as cordas da roupa deixassem de quase tocar no chão ou o portão fechasse como devia ser).
Imediatamente antes da partida de Rae para o Japão, durante o esquecido telefonema em que tinham combinado aquela visita, Tâmara mencionara a amarga descoberta de que o marido não havia consertado o telhado dos estábulos onde guardavam uma quantidade de equipamento, o que significava que metade das coisas não funcionava devido à ferrugem. Por isso, no dia anterior, Rae passara pela serração e comprara telhas de madeira e uma caixa de pregos de telhado. Abriu a caixa com as orelhas do martelo, meteu duas mãos-cheias no cinto e deitou mãos ao trabalho. A meio da calmante tarefa, os caracóis molhados de Bella apareceram por cima da beira do telhado, com Alan logo atrás na escada, de martelos nas mãos, prontos a ajudá-la. Três escaldões e duas horas mais tarde, a família de assentadores amadores de telhados desceu para tomar um merecido banho na piscina.
O calmo intervalo durou até depois do jantar. Rae lembrava-se perfeitamente de estarem em cima daquele telhado baixo, do forte cheiro da madeira e de pedrinhas a cravarem-se-lhes nos joelhos e nas mãos. Da habitual enorme paciência de Alan, segurando a mão de Bella para o pequeno martelo acabar de colocar os pregos apontados por Rae. Do cuidado de Alan, sempre a proteger Bella do beirado, mas tão naturalmente que a criança não notara. Dos três sentados no alto do telhado depois de acabarem o trabalho, abraçados uns aos outros, a apreciar a bucólica paisagem de verdes pastagens e os cavalos, e da discussão de "Quando é que posso ter um pónei como o da Petra, mãezinha?".
Doce, doce lembrança.
Nadaram, fizeram o jantar na enfeitada cozinha de Tâmara, serviram-se de vinho tinto. Bella descobriu uma cassete de vídeo e adormeceu no chão com o caniche de Tâmara dum lado e o labmdor preto de Petra em cima das pernas. Alan pegou nuns pontos que precisava de corrigir, e Rae num livro. A cozinha cheirava bem e estava completamente escuro lá fora quando os faróis da carrinha iluminaram as janelas.
Don entrou primeiro, acenou à sogra e ao marido e foi direito ao frigorífico e à garrafa de vodca de quarenta dólares. Trazia calças escuras, camisa aberta e um casaco de lã leve, vestimenta um tanto formal para a poeira dum concurso hípico infantil.
Que tal esteve a Petra? perguntou Rae.
Ele levantou os olhos, continuando a servir-se, semicerrando-os como se a pergunta tivesse alguma armadilha.
Óptima, a Petra esteve óptima.
Ficaram até ao fim?
Eu não. Tinha uma reunião ali perto, com um grupo de investidores.
Como Rae tinha pensado. Don não compartilhava o interesse da mulher por cavalos. Nem ela, já agora Tâmara fora contagiada pela mãe de David, que mais ou menos criara a neta nas ausências forçadas de Rae. Quando Don assistia às participações da filha, ou às da mulher, era geralmente para fazer contactos e apertar mãos.
Bella acordou com as vozes, quis saber onde estava Petra e saiu porta fora para os estábulos, com os cães atrás dela. Alan guardara o trabalho na pasta e estava de pé junto da lareira, com ar descontraído mas de olhos postos em Don.
Porque Alan detestava o genro da mulher, reacção que Rae testemunhara no momento em que se tinham conhecido, numa festa logo a seguir ao casamento deles, embora na altura ainda não conhecesse suficientemente o marido para compreender o significado do seu comportamento. Só mais tarde é que soube que era a sua maneira de demonstrar a inexplicável aversão que algumas pessoas provocam noutras: uma delicadeza exagerada, atenção constante, um sorriso que não enrugava os olhos e uma incapacidade de se descontrair quando Don estava na mesma sala. Naquele momento, por exemplo, Alan perguntava delicadamente coisas sobre a reunião de Don, a viagem de carro e um jogo de futebol qualquer que Rae apostaria que o marido ignorava, até Alan o mencionar.
Rae nunca falara ao marido naquela reacção visceral, visto que Don era demasiado egoísta para reparar e Tâmara estava sempre demasiado ocupada a vigiar a mãe à procura de sinais de instabilidade, e porque Alan nunca dera a menor indicação de querer evitar a família da mulher. Com os anos, acabara por aceitar aquilo como um problema químico, o exacto oposto do igualmente inexplicável anseio que a unira a Alan. Fosse como fosse, não era coisa que acontecesse mais do que uma ou duas vezes por ano, visto que a presença dos dois numa reunião era uma raridade.
A conversa soava como uma peça mal escrita, formal e sem interesse para qualquer das partes. Rae fez a salada, Alan ficou de pé atrás dela como um soldado e Don sentou-se com a segunda bebida, respondendo às suas observações e perguntas com monossílabos. Alan estava a começar a desanimar quando por fim as garotas entraram de rompante, depois de tratar do cavalo de Petra, mais do que prontas para serem elas próprias alimentadas.
Tinham explicado pouco tempo antes a Bella que era na realidade tia de Petra, apesar de ter menos três anos, descoberta que a encantou e, ao entrar pela porta da cozinha com os cães e restos de feno agarrados a elas, Petra chamava "titi" a Bella. Depois, descobriu Rae junto do fogão e, em três passos gigantes das suas botas de montar, os bracinhos da criança estavam à volta das costelas da avó. Se não fosse o cinzento do cabelo de Rae, as duas podiam ser mãe e filha o mesmo colorido, a mesma estrutura óssea e a promessa de ser alta da criança. Rae retribuiu o abraço, dizendo que ela devia ter crescido mais uns centímetros desde o Verão. E já exibia, viu Rae dando um passo atrás, os primeiros sinais de maturidade no rosto, a perda duma camada de infantilidade.
Estás linda disse ela a Petra, cujo rosto se torceu numa trocista negação do absurdo da afirmação da avó.
Mas cheira mal! exclamou Bella, com um risinho.
Um bocadinho concordou Rae. Mas é um mau cheiro agradável.
Vai mudar de roupa antes de começarmos a jantar, querida, disse Don à jovem cavaleira.
Sim, paizinho respondeu Petra, sisuda por momentos diante da desaprovação velada. A mãezinha disse que começássemos sem ela. Está a guardar tudo. Anda, titi Bella, vamos lavar as mãos!
O risinho de Bella ficou a pairar na cozinha.
Rae não olhou para Don. Receava, se o fizesse, ter de o agarrar pelo colarinho bem engomado e gritar-lhe na cara: "Toda a gente neste raio desta família foi criada por adultos de aguçado espírito crítico. Por amor de Deus, não faça isso à sua filha também!" Mordeu o lábio para não deixar sair as palavras, sabendo por amarga experiência quais seriam as repercussões, nessa noite e nas semanas seguintes. Não seria ela a provocar uma violenta discussão dessa vez e, fosse como fosse, Don, o alvo real, conseguiria esgueirar-se, deixando o campo de batalha à sua mulher.
Mas o coração de Rae sofria por Petra, recordando demasiado bem as cruéis alfinetadas da autoridade: o avô supondo que um "Bom" seria de esperar com Rae colocada numa classe de alunas de quadro de honra; que o filho do dono duma loja seria provavelmente o melhor que Rae podia esperar, considerando a sua história; que...
Para ser justa, a maior parte do tempo Petra dava-se consideravelmente melhor com Don Collins do que Rae com William Newborn. Parecia aceitar que não podia contar com ele para grande coisa além de uma saudação amigável e distraída excepto quando ele era abertamente contrariado e ficava numa posição de ter de ceder ou atacar. Nessas alturas, era capaz de ser violento não fisicamente, pelo menos que Rae tivesse visto, mas capaz de vinganças arrasadoras. Nas raras ocasiões em que Don estava realmente zangado, era preciso andar em bicos de pés à volta dele.
No entanto, Petra parecia saber isso, porque até ao momento a necessidade de retorquir só fora dirigida à mãe. Rae enfurecera-se com a moleza do próprio pai perante a autoridade do avô, enquanto Petra parecia dar palmadinhas na cabeça bem penteada do pai e seguir o seu caminho.
Petra era uma pessoa diferente da avó, recordou Rae para consigo. O que a alegrava. Tanto ela como Tâmara estavam sempre à procura na criança de indícios de instabilidade herdada, e o simples facto de não os terem avistado não as tranquilizava. A adolescência seria o teste decisivo.
Rae nunca perguntara a Tâmara porque chamara Petra à filha, porque não era preciso. Consciente ou não, a escolha daquele nome era um investimento na solidez duma rocha na geração seguinte, uma súplica de que a casa dos Collins fosse construída de material mais duro do que o dos Newborn.
Quando as garotas voltaram, brilhantes e a cheirar a sabonete, Era pôs a comida na mesa (na mesa de pinho lavado da cozinha e não na horrível mesa da sala de jantar demasiado polida). Serviu toda a gente e começaram a comer, impulsionados pelo entusiasmo de Petra pelo dia e pelos prémios que ganhara, até que a porta das traseiras se abriu. Tâmara entrou e um sopro gelado caiu sobre o grupo.
Uma olhadela e o estômago de Rae contraiu-se. Que teria ela feito dessa vez para provocar aquela expressão na cara da filha? Não tinha dúvida de ser ela a causa, porque nem as transgressões de Don provocavam aquele semblante.
Tâmara atravessou a cozinha sem palavra. Quando voltou de se lavar e mudar de roupa, Petra deitou-lhe um vivo olhar de esguelha e perguntou imediatamente se ela e Bella podiam levantar-se, por favor, para poder acabar a história que começara a contar a Bella. Tâmara concordou com um aceno de cabeça, e as garotas levantaram os pratos e desapareceram escada acima. Rae desejou poder fazer o mesmo, mas em vez disso chegou a salada ao alcance de Tâmara e, já que não valia a pena evitá-lo, perguntou:
Aconteceu alguma coisa?
O apertar dos lábios era tão semelhante ao do avô que arrepiava, o fantasma do velho naquela mulher de trinta anos. Desaprovação total, num esgar.
A Bella disse-me que esteve hoje consigo no telhado do alpendre disse finalmente Tâmara, sem desviar os olhos da segura transferência de massa para o prato. Rae sentiu o olhar do marido sobre ela.
Pois esteve. Quis ajudar. Porquê? retorquiu calmamente.
E isso é das coisas mais seguras?
O Alan esteve sempre atrás dela. Não podia cair, se é com isso que estás preocupada.
O Alan esteve com ela repetiu Tâmara, concentrando-se no pão, escolhendo um pedaço com toda a atenção.
Estávamos os dois com ela, Tâmara. Ela não caía, nem que houvesse um tremor de terra de grau sete enquanto estávamos lá em cima.
Duvido da sua opinião.
A quem o dizes!, pensou Rae. E, se fosse apenas uma questão da segurança de Bella, tê-lo-ia dito em voz alta, deixando que Tâmara explodisse de raiva. Mas não se tratava realmente da meia-irmã de Tâmara.
Estás a referir-te à Petra, não estás? À visita dela para o mês que vem. Se ela for visitá-la (agora era apesar da visita ter ficado decidida semanas antes), não quero ficar preocupada o tempo todo.
Mas tu ficas preocupada de qualquer maneira. Em todo o caso, prometo que não deixo a Petra trepar ao telhado. Foi um esforço fazer sair as palavras da garganta apertada, mas imprescindível. As mães loucas não podiam perder a paciência como as outras mães. A loucura era uma caixa de Pandora, cuja tampa tinha de estar bem fechada. Rae sentiu Alan remexer-se, mas ele não falou. Em vez disso, foi Don quem resolveu deixar cair uma pequena bomba no meio deles.
Na realidade, Tam, não sei se podemos fazer a despesa dessa tua coisa. Típico dele utilizar o termo "coisa" para se referir a um curso de uma semana duma variedade enigmática de ensinar cavalos que ela desejava e a ajudaria nas suas aulas de equitação de Verão, uma boa ajuda para as finanças familiares. Tâmara voltou-se para olhar para ele de boca aberta, com o garfo parado no ar. Eu sei que já mandaste um depósito e tudo continuou ele, mas parece-me que o dinheiro vai estar um bocado apertado nessa altura.
A "coisa" de Tâmara era exactamente o motivo da sua concordância em entregar Petra aos cuidados da avó, já que não podia esperar que o marido se ocupasse das funções de pai a tempo inteiro durante sete dias. As duas mulheres começaram a falar em simultâneo, mas as primeiras palavras foram engolidas pelo arrastar da cadeira de Alan e pela sua ruidosa e atarefada recolha do prato, com o rosto sem qualquer expressão.
Rae olhou para Tâmara, viu a raiva que ela tentava esconder, e recomeçou, tentando não soar desesperada:
Tenho estado a pensar no que hei-de dar-te no Natal. Deixa-me oferecer-te o curso, se faz favor. Eu sei que tens muito interesse nele.
Foi a vez de Don se levantar de repente não para ajudar Alan, mas para ir de novo ao frigorífico encher o copo, como que a demonstrar o pouco interesse que tinha em qualquer decisão. Tâmara hesitou. Estava ansiosa por ir, e tinha mesmo organizado a Primavera e o Verão em volta do curso, mas ficara tão furiosa com o marido, sem poder demonstrá-lo diante da mãe, que aceitar o dinheiro dela sempre uma das atribuições de Don e não dela, nunca dela lhe parecia... Mas queria muito ir...
Rae tentou incitá-la a aceitar, sem parecer demasiado ansiosa.
Pode ser também presente dos anos. Há imenso tempo que não te dou uma coisa divertida.
A palavra "divertida" resolveu o assunto, decidiu Rae mais tarde. Divertimento era coisa para que Tâmara tinha pouco tempo. Cedeu e agradeceu-lhe com toda a elegância que conseguiu arranjar. Don sorriu para dentro do copo, Alan meteu ruidosamente os pratos na máquina, e Rae foi ao carro buscar o livro de cheques.
Alan interceptou-a fora da porta da rua quando ela vinha de novo para dentro. A voz de Petra chegava-lhes num monólogo do quarto do primeiro andar, onde pelo som devia estar a relatar os acontecimentos do dia a Bella ou, mais provavelmente, a inventar uma história para divertir a "titi".
Sabes que ele te manipulou para fazeres isso, não sabes? perguntou Alan.
Claro que sei, querido. É o que ele faz sempre. E, se isso o faz sentir-se muito esperto, quem sou eu para reclamar? Para Don, a esperteza era tão importante como o dinheiro. Todos sabiam que, se tivessem pedido directamente o dinheiro a Rae, ela o teria dado. Mas isso deixaria um amargo de boca tanto em Tâmara como em Don, por motivos ligeiramente diferentes. Deixa lá disse Rae, beijando-o na cara e entrando em casa para ocupar novamente o seu lugar à mesa da cozinha.
Quanto é? perguntou ela a Tâmara.
Nove mil.
Nove...
E um depósito de mil acrescentou amavelmente Don, observando o candeeiro do tecto. Tâmara abriu a boca para falar. E a passagem de avião acrescentou ele. Tâmara continuou de boca aberta um momento, e depois fechou-a.
Perante as palavras casuais de Don, Alan, no lava-loiça, emitiu um ruído que podia passar por tosse mas Rae sabia que era uma risada disfarçada. Boa, estava a ver o humor daquilo tudo.
Então, quinze mil devem chegar, não? perguntou Rae suavemente, olhando para Don.
Mais uma vez, Tâmara pareceu querer protestar, mas o marido não o permitiu:
Com isso ela fica com algum dinheiro para comprar equipamento especial. É muito amável da sua parte, Rae.
Rae não duvidava, pela reacção da filha, que a quantia mencionada por ela incluía tudo, e sabia que devia sentir-se indignada com a ganância de Don. Noutra altura, talvez, mas naquele dia sentia-se divertida com a transparência da sua avidez. O homem não tinha vergonha. É claro que, se ele fosse forreta com a mulher e a filha, ela talvez lhe batesse o pé, mas sabia que o seu orgulho incluía a manutenção da família com todo o conforto que o dinheiro podia comprar. Nada que ela, Rae, pudesse dizer ia melhorar a situação, de maneira que foi isso que fez: ficou calada. Limitou-se a preencher um cheque de quinze mil dólares e estendê-lo a Tâmara por cima da mesa, evitando cruzar o olhar com o dela para não provocar uma confissão.
Foram-se embora pouco tempo depois, porque Alan tinha aulas na manhã seguinte. Quando ouviram o ressonar de Bella no banco de trás, ele perguntou:
Sentes-te bem, querida?
As lágrimas correram-lhe pela cara nos quatro quilómetros, e ele sabia, apesar de não ter desviado os olhos da estrada e de ela não ter fungado ou enxugado os olhos. Ele sabia sempre.
É tão triste, a situação da Tâmara! Mete-se em tantos joguinhos que precisa de todas as forças para se convencer de que não é como a mãe: "Não preciso de conselhos; o meu casamento não corre perigo; não tenho problemas com a minha filha." Aprendeu mais do que equitação com a mãe do David... Afirmar tudo sempre pela negativa... E estou preocupada com a Petra daqui a uns anos, quando começar a exigir a sua independência. Já não falta muito... Ela já tem aquela expressão quando a mãe fala com ela.
A Petra parece uma criança incrivelmente equilibrada protestou Alan suavemente.
Como eu na idade dela retorquiu Rae.
"Proferiu ela... em tom agoirento" acrescentou Alan daí a um momento.
Rae foi obrigada a rir. Assoou-se e poisou-lhe a mão na coxa, onde ele a tapou por um instante com a dele, antes de voltar a segurar o volante. Seguiram viagem em harmonia através da noite. Quinze quilómetros depois, Alan falou novamente.
Às vezes, penso se todos os estudos sobre a genealogia vão levar à verdadeira compreensão do ser humano, para além da simples mecânica. Donde vêm as características, coisas como teimosia ou desprezo pelas convenções?
Estás a falar da Tâmara e do Don ou do Rory? O filho de Alan, um enigma para o pai: inteligente, incrivelmente enérgico quando se tratava de evitar o trabalho, com um brilho encantador a mascarar a sua natureza completamente amoral. Nascido para ser bandido, comentara Alan uma vez com um misto de pena e admiração, após ter dito ao filho que já não era bem-vindo em casa deles. Bella tinha dois anos, e Rae apanhara-o a meter no bolso uma roca de prata antiga que pertencera à avó Lacy, um objecto valioso tanto em dinheiro como em recordações. Alan ainda o via de tempos a tempos, mas Rae nunca mais lhe tinha posto a vista em cima desde essa tarde.
De todos, acho eu. Quer dizer, digamos que os cientistas conseguem isolar o pedacinho de proteína que faz dum homem um patife, Que acontece se for eliminado? Acabam-se os patifes, mas será que também se elimina o rigor nos matemáticos, inventores e artistas.,
Era o género de conversa de Alan, a procura académica do significado em todos os campos.
Esta noite, estava a pensar na enorme parecença da Tâmara com o meu avô William. Fisicamente, é parecida com a minha avó, mas na personalidade... por falar em rigor! respondeu Rae.
E contudo a Petra não mostra sinais dele.
Não, pois não? Petra, a Rocha. Talvez seja como uma negativa dupla... quando vem dos dois lados, as duas doses anulam-se uma à outra.
E ela tem realmente o amor honesto de ambos os pais, sejam quais forem os problemas deles. Quem sabe como foi a infância do teu avô, para o formar dessa maneira.
Rae sabia perfeitamente como fora a infância de Tâmara, o que apoiava a tese de Alan sobre a importância dos cuidados na educação,
A mãe dele parece que era realmente uma tirana. Nenhum deles mencionou o verdadeiro assunto dos seus pensamentos, serenamente dormitando no banco de trás.
Continuaram a viagem até à sua casa no cimo da colina, bem dentro das árvores. Na manhã seguinte, com Alan atrasado (como habitualmente) para a primeira aula, ela pegaria no cinto das ferramentas juntamente com os fatos de banho húmidos e os restos do material de consertar o telhado e pendurá-lo-ia no seu gancho à entrada da oficina, Aí ficaria, a encher-se de pó, com três pregos galvanizados esquecidos numa divisória durante dezassete meses, enquanto o mundo de Rae acabava e lentamente se refazia.
Três pregos esquecidos, os últimos restos da felicidade duma família.
Rae olhou dos pregos que tinha na palma da sua mão para a fotografia plastificada dum homem com uma fechadura de porta na dele, e depois para o tronco da árvore onde tencionava pendurá-la. Em vez disso, pousou-a na bancada e ajoelhou-se na terra para cravar os três pregos em linha recta na bancada, no centro do que fora a beira superior da porta. A sua cor cinzenta era estranhamente semelhante à da madeira flutuante em baixo, três círculos metálicos rodeados de rica madeira escura. Pareciam uma mensagem em braille, ali colocada para ser decifrada pelos que conhecessem a linguagem, como os pontos no painel de controlo dum elevador. Passou o polegar por cima deles, para confirmar se estavam rente à madeira, sentindo a superfície áspera de encontro à madeira recém-aplainada. Depois, foi buscar outro prego para pendurar a fotografia do tio-avô Desmond e da sua casa.
Diário de Desmond Newborn
22 de Outubro de 1923
Curiosamente, descobri que sou muito mais adequado a uma vida de empregado do que de supervisor e que as minhas mãos, em tempos macias, ião melhores com uma picareta do que uma caneta. Sou um universitário, o filho mais novo dum ricaço, que devia estar a deixar crescer a barriga atrás duma secretária e a lidar com Cabois e Lodges, e aqui estou eu com ferramentas de pedreiro na mão, a falar apenas com Deus.
Neste momento não é bem o caso, e se falei com o Todo-Poderoso hoje foi em termos tão pouco lisonjeiros que "Ele tem de ser mesmo Todo-perdão para me responder com alguma coisa que não fosse um raio.
Parti um pé esta manhã. Não é grave, graças à tão caluniada Providência, mas quando o inchaço diminuir um dos ossos vai com certeza ranger e vou ver-me obrigado a coxear por algum tempo.
A primeira coisa que fiz, depois de retirar a pedra da minha extremidade, amaldiçoar Deus e todas as suas criações líticas e conseguir tirar a bota ao membro ferido, foi cortar um ramo forte com uma curva adequada da ponta da árvore grande e aperfeiçoá-lo para encaixar debaixo do braço,
Apesar deste revés, quando peguei no diário para escrever as primeiras palavras em meses, descobri que estou bastante ridiculamente satisfeito com a vida.
Parte do meu feliz delírio, admito, pode ter mais a ver com o alívio para as dores em forma líquida que tomei do que com o contentamento com a minha vida actual, parte pode até ser devida ao espectacular pôr do Sol que o Todo-poderoso me colocou aos pés feridos, que admiro sentado na minha língua de rocha sobre o mar, e à embriaguez das cores que nenhum pintor captou. Mas, debaixo dessas alegrias passageiras, está a mais profunda dum homem que descobriu o seu verdadeiro objectivo neste desgraçado globo.
Sou um construtor.
Não um construtor de grandes casas e fábricas como o meu irmão William, mas o construtor duma casa, desta casa, por enquanto pouco mais do que um esboço a lápis de cera numa rocha nua. A sua configuração estava impressa em mim, como que de nascença, tão claramente cresceu diante dos meus olhos: torres erguendo-se para o céu, uns fundos alicerces firmemente implantados no solo, e uma morada forte mas leve, como as árvores das quais será feita, como os nativos que pisavam suave mas firmemente esta terra antes de mim, deitando para trás alguns subtis artefactos e imagens.
E aqui sentado sob o céu esta noite, com a faixa escura da ilha a separar os profundos laranjas e azuis do céu lá em cima dos brilhantes laranjas e azuis espelhados na água cá em baixo, começo a ver que as minhas torres vão fazer mais do que estender-se para o céu.
Se eu não tivesse sido obrigado a fugir de Boston pelos meus pecados, se não tivesse sido soldado, nunca teria descoberto esta habilidade das minhas mãos. Ter-me-ia tornado como o meu irmão, a resmungar atrás da sua secretária, a morrer ali.
Por isso agora falo com Deus, não para censurar e blasfemar, mas para agradecer.
Isto é um sítio abençoado, apesar do pé partido.
Com a vegetação dizimada e a área entre as pedras reduzida a um lamaçal, Rae já podia começar a cavar, retirando sete décadas de pedras caídas, folhas podres e os restos do soalho e dos móveis, divisórias e telhas. Tudo aquilo formara um solo rico mas obrigava a um esforço brutal para retirar o entulho molhado com o pesado carrinho de mão de lados altos e transportá-lo para a futura horta. Bastaram-lhe duas viagens para perceber que só conseguiria trabalhar três ou quatro horas de cada vez antes que as costas começassem a protestar e de ficar com dores no braço esquerdo. De tarde, teria de se dedicar a outros trabalhos.
Nessa manhã, já com a fotografia de Desmond na árvore, levou o carrinho de mão para o sítio onde ficaria o espaço sob as tábuas do chão e daí para a rampa que improvisara na véspera com tábuas de cinco por vinte e cinco. Quando chegou ao cimo das pedras dos alicerces, calçou as luvas de trabalho e pegou na pá, que meteu bem fundo numa pilha ainda intacta de pedras caídas e matéria menos rija por baixo.
Uma das questões que Rae mais desejava solucionar era a descoberta do que o tio-avô deixara na casa: se tinha abandonado um invólucro vazio (a porta da rua, afinal, parecia não ter fechadura) ou se iria descobrir alguns vestígios da sua vida na ilha. Não podia esperar fotografias ou documentos, e era duvidoso que encontrasse mesmo restos de móveis, mas uma ou outra moeda ou tigela rachada ou um daqueles pedaços de ferro enferrujado que apareciam nos jardins e eram exibidos em pequenos museus esse género de coisa decerto não estava fora de questão.
Com essa ideia, Rae incluíra nas suas intermináveis listas (compulsórias, chamara-lhes reprovadoramente a Dra. Hunt mas ela nunca tinha construído uma casa) uma quantidade de rede de arame para peneirar o solo antes de o deitar no futuro jardim o que pouparia também os dedos do futuro jardineiro, visto que certamente continha muito vidro e pregos. Colocou a moldura da peneira sobre o carrinho de mão e começou a utilizar a pá.
A primeira pazada deu-lhe apenas folhas podres, a segunda dois pregos, mas à terceira vez que a lâmina da pá entrou na terra ouviu uma pancada oca e encontrou uma jarra de latão de quinze centímetros de altura. A incongruência do achado fê-la dar uma gargalhada. Que diabo faria um pioneiro solteiro com uma jarra de flores em latão? Nunca mais poderia conter água, mas, bem limpa e com um ramo de ervas secas lá dentro, podia usá-la em sua casa. Colocou-a em cima do muro do alicerce e voltou à arqueologia doméstica.
Nos três dias seguintes, encontrou moedas e tigelas, bem como diversos pedaços de ferro enferrujado. Descobriu também a localização da cozinha de Desmond (no canto nordeste, entre a lareira e a torre das traseiras, marcada pela asa dum bule de café de esmalte sarapintado, uma caçarola, um torrão de talheres fundidos, uma quantidade de pratos partidos e uma frigideira de ferro vermelha de ferrugem) e a despensa atrás dela (vários potes para conservas, todos partidos, e os restos desfeitos de latas de comida). Descobriu que a biblioteca estivera instalada ao longo da parede noroeste, embora nada restasse a não ser algumas capas de cabedal chamuscadas. Tivera um cadeirão confortável diante da lareira, cujos pés de latão e molas de ferro encontrou; o cabo do cachimbo de marfim enterrado perto evocava uma imagem caseira de Desmond em descanso, a ler um livro com o cachimbo na mão e um copo de uísque da Lei Seca ao lado. Na mesma área, encontrou uma caneta de tinta permanente com a tampa fundida numa ponta e um incongruente aparo de ouro brilhante na outra, bem como uma amolgada palmatória de latão com uma argola para pegar, um copo partido e uma intacta (mas destapada) garrafa de uísque, uma mão-cheia de cacos de porcelana muito semelhantes a uma chávena herdada do serviço da avó, e bocados de cabedal dum par de botas. Começou a anotar o que encontrava e onde e, uma noite, enquanto o fazia, decidiu que o primeiro andar contivera a cama dele (uma completa estrutura de ferro, embaraçada nas raízes da árvore que arrancara, em cima da qual tinha estado um colchão de qualquer coisa demasiado compacta para arder e agora totalmente podre) e o roupeiro (mais duas solas de botas de cabedal, um botão de punho de ouro e alguns botões de osso). Por fim, para seu prazer, descobriu as ferramentas, caídas da parede norte do primeiro andar. Uma pazada deu-lhe uma lâmina de serrote toda dentada e a seguinte um martelo só a cabeça, gasta e de forma antiquada, mas fazendo-a sentir-se como se o próprio Desmond estivesse a cumprimentá-la. Decidiu montar tanto o serrote como o martelo (dando-lhes cabos novos) por cima da lareira, assim que a casa ficasse restaurada.
O trabalho, em si, para além das exigências físicas, parecia-lhe agradavelmente satisfatório, uma questão de músculos aptos entregues ao seu labor, com o ocasional regresso a toda a atenção quando a peneira revelava alguma coisa mais interessante do que o vidro das janelas, grosso e cruelmente afiado, ou os milhares de pregos enferrujados, feitos à mão, que coleccionava em baldes. Pá, peneira; pá, peneira; e quando o carrinho de mão ficava cheio, pousava a pá e puxava-o para trás, tirava a peneira e levava-o pela rampa para o cimo da parede de alicerce e deixava que o seu peso a levasse pelo outro lado da rampa e pelo carreiro que ia rapidamente abrindo em direcção ao futuro jardim. Entre cada três ou quatro cargas, parava para aliviar as costas e bebia um copo de água ou chá frio. Observava os seus domínios e a desordem crescente de pilhas de terra e sacos de lixo e as pedras dos alicerces que emergiam onde a natureza em tempos reinara, soberana. Quando acabava de beber e sentia as vértebras mais ou menos alinhadas, voltava para o seu recinto rectangular e para o ruído da pá de encontro às pedras, do solo a cair sobre solo, da brisa, das ondas, dos pássaros nas árvores e de um ocasional avião lá em cima.
O trabalho era longo, automático, aparentemente infindável e, começava a compreender, absolutamente vital para a sua contínua presença ali. A exaustão do dia tirava importância aos ruídos nocturnos (e porque teria julgado que a ilha estava vazia ou mesmo que era sossegada? A Loucura era um organismo de sessenta hectares, constantemente agitado, com as suas partes a soprar por entre folhas e ramos a todas as horas do dia e da noite), mas o trabalho dava-lhe em que se concentrar, distraindo-a da sensação de vigilantes e do medo do regresso das vozes. A concentração no trabalho, com toda a sua imunda monotonia, permitia-lhe habituar-se ao que a rodeava, identificando e aceitando as corridas nocturnas de guaxinins e ratos, os barulhos diurnos dos pica-paus ou dos corvos, tomando consciência de tudo isso sem ser hipersensível às ameaças. O surdo zumbido das abelhas nas primeiras flores da grande árvore, o silvo do colibri, e até o distante gemido de serras de cadeia passaram a ser sons familiares, que a embalavam numa espécie de complacência. As criaturas iam-se também habituando a ela: o esquilo-vermelho já não lhe ralhava constantemente e as focas deixaram de se atirar para a água quando ela se aproximava.
Na véspera, como prova da sua insensibilidade a intrusos, fizera três viagens para lá e para cá da tenda antes de reparar que havia um vigilante nas redondezas, que sentira olhos na nuca durante dez minutos. Era uma sensação experimentada diversas vezes nos últimos dias, embora brevemente, visto que nenhum esquilo ou gaio era capaz de olhar em silêncio durante muito tempo. Começou a sentir um arrepio entre as omoplatas e levou a mão ao martelo preso no cinto, mas não entrou em pânico. Procurou nos arbustos, na verdura mais perto da terra e na delicada folhagem das árvores, mas não descobriu coisa alguma. Só depois de três rotações completas, ao procurar mais alto, é que viu o seu vigilante: uma águia-careca, a mais gloriosa ave de rapina do nundo, empoleirada no ramo mais alto dum cedro, a observá-la atentamente. Rae soltou uma gargalhada de alívio e voltou-lhe as costas sem hesitar.
Distraída dos seus medos e com o piloto automático do trabalho físico ligado, o espírito de Rae estava livre para vaguear à vontade, enquanto trabalhava e matutava em coisas que até ali estivera demasiado ocupada ou drogada para enfrentar. Era um tomar de consciência sem as interrupções dum psicanalista, sem limites de cinquenta minutos, sem forças externas e interferir.
Tirou da sua peneira de arqueóloga o que fora uma colher de prata um pedaço de prata escura e retorcida que em tempos tivera a forma duma colher e tentou imaginar o género de história que Petra inventaria sobre ela. Daí, o pensamento foi para a carta da neta que Ed lhe trouxera dois dias antes.
Percebera que a garota se tinha esforçado a sério, com a sua inteligente mente de treze anos, a formar os argumentos como se assim desse forma ao seu mundo. Três quartos da comprida carta (escrita no computador, como qualquer proposta de negócios) diziam respeito a um trabalho de História que tinha de fazer e que pensara escrever sobre a história da ilha da Loucura.
Rae não duvidava de que a professora de Petra ficaria encantada com a iniciativa da aluna. No entanto, na cauda da descrição um tanto dispersa das necessidades do trabalho e de como pensava poder satisfazê-las, a garota acabara por dar a ferroada: precisava mesmo de passar algum tempo na ilha e, embora fosse demasiado tarde para as férias da Páscoa, o projecto podia, se a aluna quisesse, ser a base dum trabalho para o ano seguinte. Por isso, uma visita durante o Verão também servia.
Portanto, podia a avó, por favor, escrever à mãe a convencê-la?
Rae atirou o objecto do feitio duma colher para o balde de "guardar", deitou duzentos gramas de fragmentos de vidraças no balde marcado "aguçado" e pensou se os registos militares se guardariam por tanto tempo e, se assim fosse, a quem poderia recorrer para os encontrar. Nenhuma carta da família sobrevivera, de ou para Desmond e, tanto quanto sabia, as escassas menções no diário de Lacy eram as únicas referências a Desmond na mão-cheia de diários escritos pela geração dele ou dos pais.
Se Desmond se tivesse instalado em Seattle, pensou, talvez houvesse alguma menção num jornal, por pertencer a uma família relativamente conhecida, mas nem sequer sabia se existia algum jornal em San Juan nos anos vinte. Talvez Ed soubesse ou pudesse investigar.
Pergunta zen: A cabana dum eremita arde na floresta; alguém ouve sem ser as árvores?
Com certeza, reflectiu Rae raspando a lâmina da pá nas pedras, Desmond não devia ter ficado ali depois do incêndio, a não ser vivendo na floresta. Não havia sinal de tentativa para limpar o terreno dos restos calcinados e começar de novo.
Aparentemente, o tio-avô tinha resolvido vaguear mais uma vez, acabando por morrer, só e sem amigos, algures no Oeste. Fora essa a resposta dada a Rae, muito tempo antes, quando a sua infindável curiosidade pela ovelha negra da família a fizera desviar-se do avô William e dirigir-se ao pai. Embora, ao princípio, ele afirmasse nada saber, ela insistira até ele admitir que lhe parecia que tinha havido uma última carta de Desmond pouco tempo antes da queda da bolsa, mas não tinha a certeza porque estava no colégio na altura. Depois, é claro que tinha ficado toda a gente demasiado ocupada em resolver os problemas provocados pelo desastre económico para se incomodar com um familiar instável, certamente enterrado na vala comum dum cemitério no Novo México.
Rae encostou-se à pá, parecendo-lhe ouvir de novo as palavras "vala comum". Fora uma das poucas conversas que se recordava de ter tido com o pai, e deixara-a com a imagem vívida dum monte de terra sem marca num cemitério seco e poeirento rodeado por muros de adobe a cair e cheio de cactos. Era uma visão que parecera à adolescente terrivelmente trágica e solitária. Pensando bem, devia ter na altura a idade actual de Petra e ali estava ela prestes a contagiar outra geração com a tragédia. Talvez devesse encorajar a neta a empreender outro projecto para o colégio, pensou. Como se ela pudesse ser desviada duma coisa decidida!
Não, ia fazer a sua pesquisa sobre o construtor da Loucura Newborn, e ia esforçar-se como o raio por instalar-se ali em Junho. Alguns factos do universo eram indiscutíveis. Rae só esperava que a teimosia da garota não tivesse o resultado contrário e fizesse com que os pais proibissem qualquer visita. Ou, pior ainda, qualquer contacto.
No caso improvável de Petra conseguir convencer, chantagear ou manipular os pais a deixarem-na visitar a ilha, isso afectaria não só os planos de Rae durante a estada da neta mas também durante os meses até lá. A não ser que a espantosa nova imagem de Petra que incluía verniz quase preto e pintura carregada nos olhos superasse o gosto pela limpeza de todas as adolescentes que Rae conhecera, em menos de dois meses a dona da ilha ia precisar dum fornecimento de água muito mais adequado do que recipientes de plástico. O telhado que se tramasse; precisava era dum duche.
Por isso, entre a futura possibilidade duma visita de Petra e o actual facto duma coluna vertebral que se rebelava depois de três horas a cavar, Rae decidiu dedicar as tardes a um conjunto diferente de ferramentas e a um grupo diferente de músculos, trabalhando na instalação da água.
No sábado, parou de cavar bem antes do meio-dia, dizendo para consigo com satisfação que com mais uma manhã acabava. Despejou a última carga do dia do carrinho de mão, limpou a pá num balde de areia oleada, levou os baldes de "aguçado" e "guardar" para os seus respectivos depósitos e, finalmente, foi lavar as mãos e fazer alguma coisa para almoçar. Depois de comer, estendeu-se ao comprido na cama de campanha durante dez minutos, relendo a carta da neta e pensando na resposta a dar-lhe.
Ia ter de lhe responder antes da chegada do Rainha das Orcas na terça-feira, e também ia ter de ser muito cuidadosa com o que escrevesse.
Durante o ano da hospitalização de Rae, o equilíbrio do casamento de Tâmara parecia ter-se alterado um pouco. Os negócios de propriedades de Don tinham-se tornado ainda mais estranhos, as despesas da casa e estábulos e o grandioso entretenimento de possíveis clientes crescera ao ponto de mesmo Tâmara parecer preocupada e, embora ainda se aguentassem, Rae não se admiraria se tudo aquilo estivesse apoiado em alicerces pouco seguros. O divórcio sempre fora uma desgraça infligida por mães irresponsáveis às suas inocentes famílias e, portanto, impensável para Tâmara, mas Rae francamente não via como a filha ia conseguir manter aquela vida. Um tremor mais por exemplo Tâmara adoecer, ou um inoportuno inquérito a um dos negócios de propriedades mais duvidosos de Don podia perfeitamente fazer ruir a empresa, arrastando consigo o casamento.
Todavia, no fim de contas, Rae achava que o centro de futuros problemas podia muito bem ser Petra. A avaliar pelas atitudes durante a viagem para a ilha e por apartes nas cartas da garota, Petra e a mãe pareciam caminhar em direcção a um período difícil, a inevitável fase do crescente desejo de liberdade da criança, imanes de polaridade oposta. No breve tempo que tinham estado juntas, desde o encontro em Seattle até à partida da ilha no barco de Ed, houvera muito rolar de olhos, vários silêncios pesados e duas breves mas violentas discussões. Os problemas de Petra pareciam concentrar-se em Tâmara e não em Don o confronto aberto nunca fora o seu estilo mas até ele fora afectado e parecia pouco disposto a aturar muito mais. Tâmara admitira que ele andava à procura de colégios especiais para a filha, do género de sítios que anunciavam em revistas dedicarem-se a "juventude problemática". Rae não achava que Petra se pudesse classificar como problemática, para além dos problemas normais da sua idade e do estado das suas hormonas. Na realidade, em face dos pais que tinha e de tudo o que acontecera durante o último ano e meio, até achava que estava a portar-se muitíssimo bem. A sua curiosidade e inteligência, a sua capacidade de considerar racionalmente todas as opções, tomar uma decisão e mantê-la e, acima de tudo, a sua faculdade de conservar alguma lealdade perante as exigências cada vez mais duras, discordantes e incompreensíveis, tornavam-na um cuco naquele ninho. É claro que pintava as unhas com cores com nomes de funções corporais e o estilo do vestuário era algures entre pedinte e cabeça rapada, mas nunca desaparecia sem deixar um número de telefone, raramente recebia uma nota abaixo de "Bom" e, tanto quanto Rae sabia, nunca fizera mais do que uma leve objecção à vida de jovem cavaleira, por mais quadrada que pudesse ser considerada pelas suas camaradas futuristas. Tâmara e Don pareciam incapazes de olhar para lá da superfície, mas Rae pensava que havia muito que a neta era uma das pessoas mais sensatas que conhecia. Durante o dia que passara com Petra e Tâmara na viagem para a ilha, dera consigo a pensar em Petra como na filha que devia ter tido.
A garota era, muito simplesmente, o centro da vida de Rae. Era tudo o que lhe restava e a mera sugestão de ter de passar sem ela parecia-lhe insuportável. Perdera Alan e Bella, afastara a maioria dos amigos, podia nunca mais fazer um trabalho a valer; acrescentar a isso a perda de Petra seria o golpe final.
Afinal de contas, a pequena Petra era o ponto de encontro de inúmeras situações desagradáveis. Já antes do último esgotamento de Rae, Tâmara tomara muito cuidado em evitar que a mãe tivesse demasiada influência na filha. Mais de uma vez, mesmo com Alan presente, Rae se sentira como uma namorada indigna de confiança perante uma família desconfiada e protectora. Aquela história de ter de pagar umas férias dispendiosas a Tâmara (e Don) para poder ter a neta consigo durante uns dias era típica. Agora, além disso, Petra parecia estar a notar instintivamente o que se passava; no ferry, junto da mãe, escondera algum do afecto que sentia pela avó, como se soubesse que um interesse nessa direcção seria considerado pouco saudável. Rae desencorajava com um sentimento de culpa a duplicidade da neta e recusava-se a tomar abertamente partido contra Tâmara e Don. Nunca daria à criança um conflito para com o amor e a lealdade aos pais. Apesar disso, o afecto de Petra o sólido facto de poder contar com esse afecto provocava-lhe uma sensação de calor interior. Sim, Petra era realmente tudo o que lhe restava.
E por isso Rae teria de ser muito cuidadosa com o que dissesse na carta.
Levantou-se e poisou a carta da neta na mesa, mudou a camisola suada por uma de mangas compridas que lhe protegesse a pele dos ramos das árvores, pegou no outro conjunto de ferramentas e partiu em direcção à colina a que começara a chamar monte Desmond.
A nascente que Desmond Newborn habilidosamente desviara para seu fornecimento de água ficava na encosta, a um terço do caminho em volta da ilha. Os troncos de cedro que ele escavara, ligara e cobrira eram uma maravilha e tinham provavelmente levado a água para o tanque em cima da casa, agora defunto, durante trinta ou quarenta anos, mas, após quase oitenta, só restava o suficiente da canalização para indicar a habilidade do seu construtor.
Rae teria adorado repetir a sua laboriosa e exigente técnica de carpinteiro tal como adoraria construir a casa cortando as suas próprias árvores, preparando a sua própria madeira e talhando as suas próprias aduelas. O seu sonho, uma luz a brilhar numa mente profundamente perturbada, fora de facto exactamente isso: uma cabana de madeira num sítio despovoado, verdadeira e despojada, calafetada com musgo e lama, construída com ferramentas com nomes antigos como enxó. Imaginara uma casa americana nativa tradicional, baixa e sem janelas, construída de grossas tábuas de cedro, com um totem diante dela.
Mais tarde, semanas depois, quando a terapia de choques fora substituída por longas sessões com a Dra. Hunt e o árido terreno da profunda depressão por uma paisagem interior pelo menos com laivos de verde, Rae acabara por decidir que uma tão extrema pureza era desnecessária. Afinal, os seres humanos não são largados numa planície escura sem ferramentas, companhia ou ajuda; na realidade, trabalhar com materiais e sobre alicerces feitos por outros era uma descrição mais exacta do progresso humano, individual ou colectivo do que creatio ex nihilo. Como carpinteira, Rae utilizava serras mecânicas, madeira compensada e modernas colas e acabamentos. Utilizar o presente para reconstruir o passado não negaria o seu objectivo, se ela usasse o local e os alicerces de Desmond como base para a sua própria criação ou mesmo se cobrisse as pedras cheias de musgos de Desmond com paredes construídas de madeira cortada por métodos modernos.
E, no caso do fornecimento de água, canos feitos de material sintético.
Rae trepou para o local onde estivera a trabalhar na véspera, seguindo os restos enegrecidos da obra de Desmond. Ele fora minucioso na preparação do terreno e na escolha do percurso e, após dois dias de verificações com o nível de bolha de ar, Rae decidira confiar na sua engenharia para o melhor traçado de A a B nascente até à casa porque acarretar o nível de um metro e meio de comprimento por entre as árvores era um frete. Decidiu fazer uma lista do que necessitava, para encomendar através de Ed o cano de plástico e as junções de que precisava. As do tio-avô, trabalhadas para satisfazer as necessidades do momento, raramente encaixavam nos ângulos das peças de plástico à disposição de Rae na loja de ferragens de Friday Harbor (ou noutro sítio qualquer, aliás, no actual mundo de tamanhos uniformes), e a parte mais complicada do seu trabalho seria compensar as diferenças quando, por exemplo, uma peça feita por ele à mão obrigava o cano a dar a volta a uma rocha praticamente impossível de mover, enquanto a moderna junção normal obrigaria a ignorar esse caminho e a passar por terreno irregular até poder voltar a ele.
No entanto, não era um trabalho aborrecido, apesar da frustração e do constante anseio de imitar as técnicas de Desmond, passando os seis meses seguintes a construir a canalização de troncos de cedro. Afastou a tentação, lembrando a si própria como seria delicioso tomar duche ao fim de cada dia de trabalho, e continuou com a sua fita métrica e o seu bloco de notas.
Duas horas mais tarde, deparou-se-lhe o contratempo que previra desde o princípio. Tinha de escolher entre arrancar (ou rebentar) uma enorme rocha ou construir um longo troço elevado sobre uma fossa profunda e traiçoeira. Mesmo a flexibilidade natural do cano não permitia dobrá-lo em volta da rocha sem o partir. Por fim, sentou-se e observou o traçado por onde corria impávida a canalização apodrecida de Desmond, troçando das suas tentativas de adaptar a uniformidade a um fenómeno natural.
Inferno! exclamou, poisando a fita métrica. Uma coisa a sua vida de artista lhe ensinara: às vezes, era preciso afastar-se dum problema para o ver como devia ser. Ia tentar, literalmente, vê-lo doutro ângulo.
Começou a trepar a encosta do monte Desmond, por entre os arbustos, procurando cuidadosamente evitar os pontos inseguros do solo rochoso. Depois de tanto tempo, não se lembrava de como ela e Alan tinham encontrado o caminho para o cimo, mas calculava que existisse um carreiro aberto pelos pequenos veados-de-cauda-preta da ilha. Não era difícil avançar, e chegou lá acima despenteada e encharcada em suor mas sem se arranhar muito pelo caminho.
O cimo do monte era, ao contrário da maior parte das coisas vistas do presente para o passado, ainda maior do que recordava, uma clareira varrida pelo vento apenas com algumas árvores retorcidas e tufos de erva. Trepou a última parte, e os olhos foram imediatamente atraídos para a ligeira irregularidade na rocha, uma bossa. Não se lembrava; como podia ter-se esquecido? O Pico, declarara Alan anos antes. O Cúmulo da Loucura. Tinha feito uma bandeira para colocar ali, com um pau e um lenço da filha, prendendo-a com uma mão-cheia de pedras: Reivindicamos esta ilha em nome do rei Desmond I, Senhor da Confusão. As pedras ainda estavam lá, espalhadas em volta da bossa. Alan. ((Bella, alguma vez jogaste ao Rei do Castelo?", perguntara ele, e a bandeira caiu e as pedras espalharam-se e cada um de nós, à vez, empurrou os outros do Pico, reivindicando aquilo a que o Alan chamara a elevação moral da ilha...
A elevação era uma bossa de um metro quadrado, com uma altura de cerca de quarenta centímetros acima do resto do cimo. Rae manteve-se de cabeça baixa, olhando apenas para a pedra a seus pés, e subiu para a elevação. Só nessa altura levantou a cabeça para olhar em volta. Ao longe, elevando-se mesmo por cima do monte Moran da ilha das Orcas, ficava o monte Baker, como uma nuvem branca sobre o continente. Mais para sul, viu o vulto pálido do monte Rainier, muito superior em tudo e consciente do facto. Rae voltou-se lentamente e avistou as outras ilhas, com o esteiro de Puget sobre o topo de San Juan e o muro com o cimo coberto de neve da cordilheira Olímpica a erguer-se à distância, qual maxilar de tubarão. Depois, os estreitos de Juan de Fuca e Haro, seguidos da longa e escura ilha de Vancouver, com as suas vizinhas mais pequenas dispostas como pedras num lago japonês, ao acaso. Mais perto, Stuart e Speiden e, finalmente, o círculo fechava-se com o monte Baker de novo diante de si.
Não se encontrava nem pouco mais ou menos no ponto mais alto da cadeia de San Juan, mas no mais alto daquele lado. Num dia limpo como aquele, os vultos escuros dos navios de carga pareciam suficientemente perto para se chegar a eles num passo. Rae sentiu que, se não fosse por causa da brisa, podia ouvir o ruído do barco a motor que ia deixando um rasto branco na plácida superfície azul da água. Uma grande ave águia? abutre? pairava nas correntes de ar abaixo dela, deslizando em direcção ao vulto azul-acinzentado de San Juan. Algumas embarcações à vela tinham-se aventurado fora do Roche Harbor para passar o dia, anunciadoras das multidões de veraneantes.
Rae foi absorvendo o que a rodeava, encantada com a glória do dia, a maravilhosa beleza daquele sítio e a simples e rara alegria, apesar de tudo, de estar viva. Uma terrível alegria, doce como o calor do sol e cruel como um túmulo, estar ali com a brisa a tocar-lhe a face, sozinha, para sempre. O panorama a seus pés era tão belo que lhe fazia doer o coração, e a escuridão na periferia da sua visão só tornava a neve e o mar mais claros. Sorriu, tristemente, pensando na loucura duma família, e um momento depois atirou a pedra que tinha na mão para junto das outras. Em seguida, desceu da sua posição de superioridade e foi à procura dos restos da pequena construção que Alan tinha descoberto e achara que devia ser uma torre de vigia da Segunda Guerra Mundial. Só encontrou uns pedaços de madeira, o que a surpreendeu ligeiramente, até que se lembrou dos fortes ventos que deviam assolar o topo do monte. Provavelmente, encontraria a madeira espalhada pela encosta do monte Desmond abaixo. Que pena; Petra podia incluir uma fotografia da ruína no trabalho da escola. Teria de se contentar com a ilha apenas.
Com uma última olhadela para o Cúmulo da Loucura, Rae atravessou a clareira até ao extremo oeste, com o vento nos cabelos e o sol na cara, para observar a encosta desse lado. A Primavera não estava longe dum alto abeto que fora atingido e rachado por um raio, crescendo de novo bifurcado. Devia ser capaz de o ver dali e lá estava ele, erguendo-se bem acima do resto a umas centenas de metros dela em linha recta.
Essas centenas de metros em linha recta transformaram-se em bastante mais no caminho às curvas que Rae foi obrigada a seguir, mas nunca perdeu completamente a árvore, e acabou por parar junto dela para beber um gole da garrafa que levara consigo e tentar ouvir água a correr. Quando distinguiu o som, abriu caminho por entre os arbustos em direcção à nascente.
A água que tornava a Loucura de Newborn habitável era uma irmã mais nova e menos salina das águas quentes da ilha das Nascentes Salgadas, a nordeste. A nascente de Rae brotava realmente da colina suficientemente tépida para um banho confortável, e a primeira poça era suficientemente grande para um corpo a flutuar se estivesse disposta a percorrer metade do perímetro da ilha pelo privilégio de se lavar na água que tencionava beber. Se a temperatura da nascente fosse realmente quente, talvez se tivesse tentado, mas já se sentia satisfeita com o seu fluxo constante, frio ou quente.
A água surgia duma camada de arenito que se erguia do mar num ângulo de setenta graus, entalada entre rocha vulcânica, um corte transversal na dura história geológica da terra. A rocha mais porosa purificava a água, e a primeira poça que parecia alargada pela mão do homem muito antes do aparecimento de Desmond Newborn era uma taça tépida e transparente sob ramos de árvores. Na primeira vez que Rae ali estivera, o fundo era lamacento, mas ela retirara parte para ver se a poça ficava limpa e assim acontecera.
Não havia um orifício nítido na pedra da nascente, apenas uma série de gotejamentos que constituíam uma corrente razoável, que se dirigia para o mar no antigo percurso natural que sempre seguira até Desmond o desviar. Rae tencionava utilizar apenas uma parte da água, visto que ficar outra vez com toda podia matar a faixa de vegetação que dependia dela. Ia precisar de muito improviso, mas isso era uma das suas especialidades.
Arregaçou as mangas da camisa e ajoelhou-se junto à poça para lavar a cara e as mãos. Depois, sentou-se nos calcanhares, de olhos fechados, a respirar o cheiro a terra molhada e a ouvir o ritmo suave da água a cair. Parecia a respiração da filha, o meio ressonar infantil no fundo da garganta, mais uma textura do que um ruído.
Rae conhecera um escultor uns anos antes, muito antes de as fontes em miniatura se tornarem moda para secretárias de executivos e mesas de sala da classe média, que utilizava a água como material para combinar o escultural e o orgânico. Três das suas obras experiências estéticas, chamava-lhes ele incluíam o lento aparecimento de água numa taça de contornos perfeitos. O nível subia gradualmente, até cima, e transbordava, com a tensão da superfície a mantê-la, tremente e viva, como se fosse uma substância muito mais complexa do que água, até que finalmente a tensão se tornava demasiado grande e o líquido escorria pelos lados da taça, dando início a novo ciclo.
A nascente não tinha um funcionamento tão espectacular, mas a água parecia exactamente tão viva como a das poças artificiais do escultor, e infinitamente mais misteriosa. A humidade surgia, transformava-se em gotas, juntava-se em pequenas correntes ao longo da superfície coberta de musgo das pedras e, na extremidade da segunda e mais pequena poça, caía pela encosta por entre fetos, raízes e rebentos primaveris.
Era um local escondido, como devem ser as nascentes, calmo e secreto, um local de força maternal. A sua única violação até àquele momento tinha sido a canalização de Desmond, e mesmo isso fora formado por mãos cuidadosas a partir de madeira que crescia no mesmo pedaço de terra que a nascente. O seu dissonante plástico teria de ser enterrado, percebeu de repente. Doutra maneira, nunca mais suportaria voltar ali. Só pensar na nascente fá-la-ia sentir-se culpada.
E, agora que pensava nisso, enterrar o feio cano branco nos primeiros cem metros talvez resolvesse também o problema da incompatibilidade das suas junções em ângulo com o percurso de Desmond, porque, mesmo que o cano ficasse apenas a trinta centímetros de profundidade, teria de desviar o percurso pelo menos um metro para cima para manter o nível da água. O cano de Desmond saía do fundo da poça; se ela fizesse a saída mais acima, podia compensar. Isso, se o terreno entre a saída da água e a junção problemática fosse suficientemente mole para cavar.
Planeando o percurso mentalmente, Rae pensou que talvez desse resultado. Havia uma zona rochosa, mas era arenito e, embora lhe doessem os ombros só de pensar na tarefa, achava que era possível.
Era também irónico pensar naquele sítio em termos de pás, picaretas e canos de plástico, um dos locais mais calmos e virgens que alguma vez encontrara, como se a pureza básica da terra emanasse juntamente com a água. Maciços de fetos nasciam de um bocado de solo, e as salamandras e as rãs deviam estar a hibernar debaixo das pedras. Petra de certeza que ia adorar aquele sítio; Rae imaginava a neta debruçada a observar o voo duma libélula, sentindo a magia percorrer-lhe os ossos e provocando rasgos de imaginação. Sorriu para consigo e encheu a mão com a água não analisada da poça. Dessa vez, bebeu-a, saboreando o líquido como se fosse alimento. Sabia ao que sabe normalmente a água, cheia de minerais e da essência da terra. Só esperava que o sabor sobrevivesse à viagem pela colina abaixo.
Com uma última olhadela ao canteiro de musgo, Rae apoiou uma mão no chão para se levantar. Foi nesse momento que a viu; uma marca profunda pouco maior do que o seu polegar, mesmo junto aos dedos, iluminada pelo sol da tarde, uma marca que não devia estar ali, feita na terra mole ao lado da nascente.
A marca da bota dum desconhecido.
Diário de Rae
Mal.
Muito mal.
Torazina, lítio, Prozac, nada comigo. Procurei por todo o lado, mas nada, nem sequer pó no fundo de algum frasco, e o álcool faz diminuir os tremores, mas tenho o pulso a, credo, cento e vinte? cento e quarenta? Tenho o coração quase a explodir, ou a cabeça, meu "Deus, tomava lítio mesmo que ficasse com o coração feito em lama fria, e eu toda mole e desajeitada e indefesa, fraca í exposta, velha e inútil, obtusa e
Ai, mal, mal. íAs vozes arranham-me os ouvidos, não o vento, não as ondas, não a terra que cai pela encosta e ameaça cobrir os alicerces de novo, não as minhocas na terra ou os veados no bosque, mas vozes, irritando-me e arreliando-me, troçando e dizendo-me o que vão fazer mal, desta vez, e com frio.
mal
gelada
a tremer
com a boca seca e o coração acelerado
não consigo estar quieta
comichão na pele
insectos debaixo da pele, a rastejar
Ai, meu Deus, ai, doutora Hunt, desculpe, isto foi um disparate, fiz mal. Trouxe uma arma comigo, doutora Hunt, macia e perfeita
arma de mão pistola
revólver
com uma coronha de madeira que é deliciosa macia gasta
e está em cima da mesa ao pé de mim neste momento, poisada
dura
forte
pesada
junto ao meu diário, com a ponta do cano a segurar o canto esquerdo do diário (vê a marca?), com a minha mão
por cima
a segurá-la
a aquecê-la
enquanto a mão direita escreve estas palavras, faz estas colunas, eu inclino-me para a esquerda e inclino-me para a direita e para bombordo e para estibordo e se tivesse vinho do Porto bebia-o com a mão direita e à esquerda está a arma e entre as duas num triângulo o vértice superior do triângulo formado pela direita e pela esquerda e por palavras e a arma fica uma pequena floresta de seis baías fálicas, belas peças de latão e chumbo e lamento
Doutora Munt
Roberta
sempre à procura da verdade
lamento muito mas vi uma pegada ao pé da nascente e estou cansada e
cansada
solitária
sozinha
assustada
pequena
fraca
cansada
cansada
cansada
assustada
Foi Petra, inocentemente adormecida numa cama a quase dois mil quilómetros de distância, quem sem o saber estendeu a mão e impediu a avó de meter as balas nas respectivas câmaras.
Desculpe, escrevera Rae, sabendo que a médica ia ler o diário, mas ao escrever a palavra pareceu-lhe ouvir a sua própria voz a pronunciá-la, e de repente recordou o Inverno anterior, a primeira semana de Fevereiro, quando olhara para os olhos aterrorizados da neta e para a sua cara manchada de lágrimas e lhe dissera: "Desculpa, desculpa."
As datas pareciam luminosas no calendário da sua memória, uma contagem decrescente de dias.
1 de Novembro: conserto do telhado da Tâmara com o Alan e a Bella.
25 de Novembro: jantar de Acção de Graças na casa da praia duma amiga, com as crianças a correr, o aromático peru a assar, o frio ar do mar e o gosto do vinho na boca do Alan e o cheiro do fumo da lareira no cabelo dele.
3 de Dezembro: acabamento do presente da Bella, uma caixa cheia de embutidos e muitas gavetas secretas.
12 de Dezembro: o fim do mundo.
Um vendedor de propriedades de meia-idade com um telemóvel numa mão e os restos duma festa de Natal bem lubrificada a cantar-lhe no sangue. O Alan morreu imediatamente, a Bella vinte e quatro horas depois, e ela só o soube dois dias mais tarde. Passara cinco horas numa sala de operações para lhe reconstruírem o braço esquerdo esmagado, a carne rasgada do seio esquerdo e do ombro, reduzirem a fractura do maxilar esquerdo, todos os ferimentos provocados a mais cruel das ironias por Alan, devido ao efeito combinado de air bags, cintos de segurança e impacte que atirou o adorado corpo do marido para cima do dela. Os óculos dele tinham-se partido no peito dela e o crânio dele esmagara-lhe o braço esquerdo erguido. Um cirurgião encontrou um pedaço de dente enterrado no ombro de Rae.
Se Bella tinha gritado um último Mãezinha! aterrorizado, ele varrera-se da memória de Rae. Ou talvez não completamente, talvez fosse o eco desse grito que lhe chegava por entre a chuva e sempre que acordava.
Cinco dias no estranho mundo dos cuidados intensivos, um sítio que até a mente de Rae registara como bizarro (os símbolos natalícios, sinistramente alegres, nos monitores ainda lhe apareciam nos pesadelos), seguidos de duas semanas num quarto particular e depois nove dias mais ao cuidado da série de enfermeiras a tempo inteiro de Tâmara, até Rae arranjar energia suficiente para as pôr na rua. Todos esses profissionais de saúde viam apenas a tragédia duma pessoa enlutada; nenhum deles olhou com atenção suficiente para reparar na maciça dose de melancolia que se instalava. Sentada numa casa silenciosa numa muda neblina. Rae percebia o que estava a acontecer. Parte de si observava, a parte da sua mente que por vezes se separava em ocasiões como aquela, para ver como ficava sentada numa cadeira sem se mexer durante seis horas, para observar a chegada dos amigos para a levarem ao adiado enterro, encontrando-a por lavar, por alimentar, com umas velhas calças de ganga e uma camisa de quadrados do marido, tendo de lhe escovar o cabelo e de a vestir apesar do gesso no braço. Sardonicamente, ia reparando nas pessoas, um mar de rostos: colegas, alunos, amigos, a tocarem-lhe no braço bom, com lágrimas nas faces; ela própria só via o nada. De volta a casa, a uma casa onde vivia o silêncio, o silêncio e Rae e a parte que observava e que a observara na sua depressão em todas as ocasiões anteriores, cuja sinistra tarefa parecia ser tomar cuidadosa e desinteressada nota do número de facas afiadas na cozinha, do comprimento do fio do rádio junto à banheira, da ventilação da instalação de gás, da proximidade das rodas dos camiões que passavam. Rae tivera apenas o bom senso de deixar de conduzir nessa altura, por não querer levar alguém consigo quando partisse.
Foi no meio de Fevereiro, cinco semanas depois do acidente, que Rae começou a notar a presença dos "vigilantes". Vinham à noite e puxavam-lhe pelo cobertor que lhe envolvia o espírito, com pequenos puxões que podiam ser a vida a voltar a membros adormecidos, mas mais pareciam a ameaça duma mais profunda descida para o olvido. Um som vindo da varanda que, umas meras semanas antes, não a faria levantar os olhos dum livro nem a empurraria para o primeiro interruptor. Nada, apenas as árvores a tocar nas grades, os ramos a abanar na brisa. Nada, mas Rae continuava a refugiar-se cada vez mais nas divisões do andar superior ou nas arrecadações sem janelas. Após alguns dias, armou-se duma pistola de agrafos e pregou lençóis em todas as janelas sem cortinas, ou seja, quase todas, visto que não havia vizinhos. Assim, transformou a casa num local simultaneamente de refúgio e de reclusão, um esconderijo e uma prisão.
Rae começou a andar. Saía de casa todas as manhãs, percorrendo o quilómetro e meio do caminho da casa e mais alguns da estrada pouco usada até ao pequeno mercado, para comprar o jornal e várias coisas desinteressantes para comer. Algumas vezes, quando se sentia demasiado doente, sentava-se no banco da paragem de autocarro durante a maior parte do dia; outras, vagueava pelo campo, quilómetros e quilómetros de andar sem pensar, vendo a aproximação de cada carro e pensando calmamente se seria para debaixo das suas rodas que se atiraria.
Mais tarde, era incapaz de dizer por onde andara, mas regressava sempre a casa antes de escurecer, depenicava a comida sem gosto e recortava do jornal que comprara os artigos sobre desastres. Uma morte relacionada com drogas. Uma batida múltipla de carros no nevoeiro. Uma mulher presa por manter a filha fechada num armário durante dois anos. Um enorme tremor de terra num país seco e distante. Desastres, catástrofes, morte, desordem. Começou a fazer listas: locais atingidos, nomes e idades das vítimas, carros procurados nos atropelamentos com fuga. Listas de palavras que surgiam nos artigos, nas descrições das vítimas e dos seus atacantes, e até em artigos adjacentes, como se as palavras tivessem algum significado oculto que ela pudesse entender se se preocupasse o suficiente, como se o mundo pudesse revelar o significado se ela prestasse atenção suficiente.
Durante todo esse tempo, o vigilante interno de Rae tinha plena consciência de que ela estava com um aspecto lamentável. Desmazelada e muitas vezes mal vestida, não conseguia arranjar energia suficiente para se ralar. Os amigos apareciam e azucrinavam-lhe os ouvidos com preocupadas ofertas de boleia para o supermercado ou para o médico; o advogado aparecia com documentos, como se ela se ralasse com a transferência dos bens do marido para si; a filha aparecia para arrumar a casa (embora Rae a tivesse posto fora com um raro ataque de fúria quando ela tentara esvaziar o roupeiro de Alan). Enfermeiras, médicos, advogados, colegas de Alan todos apareciam ou deixavam recados no telefone, até que Rae parou de responder.
À noite, por detrás das suas barreiras, sentava-se à secretária do marido ou no gasto cadeirão de cabedal que conservava nas costas a nítida marca dos ombros dele. O último livro que ele estivera a ler continuava no braço da cadeira, e ela lia e relia as páginas onde vivia o marcador, preocupada por não saber em que ponto ele parara de ler. Na página antes do marcador, para retomar aí a leitura? Ou a meio da página da esquerda onde havia uma nova secção? Ou mesmo até ao fim da página da direita? Ai, porque não teria ele colocado o marcador no princípio dum capítulo?, enfurecia-se Rae. E porque não o conhecia ela suficientemente bem para adivinhar? Se examinasse cuidadosamente as palavras, talvez conseguisse distinguir aquelas por onde os olhos dele tinham passado e as que continuavam por ler...
À noite, enroscava-se na cama da filha, onde a almofada ainda tinha um leve cheiro a manteiga de amendoim e a lápis de cera e limonada, ou pelo menos assim lhe parecia, se enterrasse bem a cara nela. De manhã, enfiava umas roupas (grandes camisolas que serviam por cima do aparelho de gesso e meias desemparceiradas) e remexia uma tigela de cereais com uma colher, a olhar para os desenhos dos cortinados e a tentar convencer-se de que não havia coisa alguma do outro lado, de que podia abri-los sem ver uma cara desconhecida a olhar para si. A ansiedade chegava geralmente antes de acabar os cereais, contraindo-lhe o estômago e fazendo-a andar dum lado para o outro, com as mãos apertadas ou a torcerem-se uma na outra, até não conseguir aguentar mais e sair porta fora e descer rapidamente o caminho em direcção à estrada.
Assim que os pés tocavam no alcatrão, a sensação dos vigilantes começava a desaparecer e ela voltava a cair num estado insensível, apático, sem se ralar muito fosse com o que fosse ou com quem fosse, desde que pudesse continuar a andar.
E continuava. Devia ter andado uns trinta quilómetros por dia no fim de Janeiro, chovesse ou fizesse sol, para um lado e para o outro nas estradas, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, os olhos no chão adiante dos pés e uma garrafa de leite e o jornal na mochila. Felizmente, estava um tempo agradável para Inverno, mesmo para a Califórnia, e só ficou encharcada duas vezes. Mas a chuva parecia interferir com os vigilantes, porque, ao dirigir-se para casa nesses dias molhados, não sentia tanto as picadas na nuca e a pele dos braços ficava apenas fria e peganhenta, sem a sensação de coisas a rastejar que aparecia geralmente à primeira curva da estrada. Valia bem a pena o desconforto de ficar ensopada e o aparelho de gesso esponjoso durante dias.
Tinha sido pouca sorte ficar sem gás menos duma hora depois de chegar ao santuário da casa, na segunda dessas molhas. Esquecera-se de encomendar e de deixar o portão aberto para o camião. Assim, o seu único calor era a lareira aberta. Gastou os últimos toros de madeira antes da meia-noite, restando-lhe apenas sair para buscar mais lenha ou ir para a cama. Chegara a olhar para os móveis de madeira, mas acabara por se enfiar entre os cobertores.
Acordou com o sol alto, a garganta irritada e o som de passos na varanda. Não ouviu bater à porta, nenhuma voz, e o som não se repetiu. Um terror gelado invadiu-lhe as veias. Longos minutos depois, gemendo por dentro, conseguiu deitar a mão ao telefone e murmurar à telefonista das emergências que tinha um intruso em casa.
O delegado do xerife levou toda a vida a chegar. Vermelho da subida desde o portão fechado, não tirou os olhos dela enquanto passava revista à casa à procura de intrusos; se mais espantado com o aspecto dela ou com o estado da casa, seria difícil dizer.
Não encontrou coisa alguma e acabou por descer a colina a abanar a cabeça.
Na semana seguinte, Rae telefonou mais duas vezes, de cada uma com o mesmo resultado ou falta dele. À terceira vez, o próprio xerife, Sam Escobar, apareceu em grandes passadas, revistou-lhe rapidamente o caos da casa, fê-la sentar-se para uma longa conversa e saiu de lá com uma chave do portão no bolso. Ela não voltou a ligar, nem mesmo quando os vigilantes começaram a arranhar-lhe as janelas com ramos de árvores e a abanar os puxadores das portas.
Ficou enroscada no sofá diante da lareira, ferozmente concentrada nos desastres do jornal e nas suas listas de palavras e acontecimentos relacionados, até não poder suportar mais os ruídos. Então, puxava uma almofada para cima da cabeça a fim de abafar o raspar e o abanar, e passava a noite a ouvir os murmúrios que aumentavam e diminuíam.
O vigilante interior de Rae tinha consciência de que o seu comportamento era irracional. Como se estivesse a observar uma estranha, uma mulher enroscada na escuridão a passar as longas horas da noite de volta de listas sem fim, o seu olho interior sabia que não havia conversas segredadas nem vigilantes de andar pesado fora da cabeça dela, como também tinha uma vaga consciência de que alguma coisa teria de ser feita dentro de pouco tempo. Contudo, a verdade era que Rae achava os terrores injustificados estranhamente reconfortantes. Concentrando-se neles, ficava sem energia para pensar na impossibilidade da vida sem o marido e a filha. Os inimigos imaginários eram infinitamente mais fáceis de enfrentar do que os reais.
Olhando para trás, parecia que aquele período da sua vida tinha durado anos, quando na realidade a espiral descendente durara apenas menos de três semanas, desde o enterro até à sua readmissão nos cuidados intensivos do hospital, com pneumonia, o braço partido de novo, uma data de cortes e ferimentos superficiais e uma grande infecção no ombro esquerdo, possivelmente devido a uma esquírola de osso.
O fim da espiral descendente chegou abruptamente, vindo de duas direcções mais ou menos simultâneas.
Só muitos meses depois lhe ocorrera que era uma candidata pouco provável a uma violação. A reacção do xerife Escobar a essa sua hesitante observação, de que havia animais dispostos a violar qualquer coisa que se mexesse, só serviu para confirmar que estava muito pouco atraente na altura: escanzelada, mal lavada, com os olhos brilhantes de febre, cheia de tosse, vestida com as roupas largas do marido e com uma mochila às costas a escorrer restos duma dúzia de ovos partidos.
No fim da tarde da primeira terça-feira de Fevereiro, ao sair da estrada para entrar no portão, um enorme camião preto com grandes pneus travou atrás dela fazendo saltar a gravilha. Dois homens atarracados saltaram com facilidade da cabina, deixando ambas as portas abertas para trás e encaminharam-se confiantes para ela, a brincar um com o outro e parecendo cada vez maiores; só começaram a correr quando ela desatou a fugir pelo caminho da casa em câmara lenta.
Gatos com um ratinho, leões com um coelho. Apanharam-na em duas passadas, com a respiração ofegante atrás dela como num pesadelo, os gritos alegres aterrorizantes, e o cheiro de suor e cigarros a encher-lhe as narinas, os dedos de ferro a levantarem-na em peso, deixando uma fila de círculos negros nos ombros e no braço, a primeira de muitas. Tresandavam a agressão e riam-se dos débeis esforços de Rae.
Ela lutou ferozmente, retorcendo-se e batendo em todas as direcções, num desesperado e fútil silêncio. O único som que saiu dela foi um grito curto quando o atacante de cabelo escuro lhe partiu o aparelho de gesso ao arrancar-lhe a mochila. Sentia as mãos deles por todo o corpo, puxando e apertando, brutais. Bater-lhes era como dar palmadas nos troncos das árvores que se erguiam silenciosas ali ao pé. Só uma das suas pancadas teve algum efeito: o loiro cambaleou para trás, agarrado ao nariz mas, por mais que esbracejasse, o braço do de cabelo escuro não a largava. E depois o loiro tinha voltado à carga, furioso, com o riso ordinário transformado em pragas. Dedos fortes rasgaram-lhe a camisa, dois braços envolveram-na por detrás, uma mão, incrivelmente fria, enfiou-se-lhe no cós das calças de ganga. Deu pontapés com força e a mão afastou-se, mas só por um instante, para voltar com uma brutal bofetada que lhe atirou a cabeça para o lado. Meio atordoada, com o queixo do homem loiro enterrado no pescoço e a voz dele a murmurar obscenidades monótonas enquanto o outro a levava quase ao colo em direcção à curva da estrada, sentiu a mão enfiar-se entre a pele da barriga e a roupa.
E depois um grito, que Rae só ouviu mais tarde, na memória ou numa construção da sua imaginação. Na altura, só soube que as mãos pararam de lhe rasgar a roupa e depois voou pelo ar, com os braços abertos, para ir cair nos arbustos.
Joseph Ayala, a caminho de casa de volta do trabalho, caiu no meio da agressão e Rae como um anjo num carro doirado, com um gemido de borracha e um furioso toque de buzina da sua velha carrinha Chevrolet. Trinta segundos mais tarde, Rae e os seus perseguidores estariam fora da vista, mas Joseph olhou para o caminho de casa dela ao passar e viu a sua vizinha recentemente enlutada, a lutar com dois rapazes, e abriu a janela do carro para gritar: "Vou chamar a Polícia neste instante!" Encostou uma coisa escura à orelha, para ilustrar a ameaça. Os rapazes hesitaram, mas decidiram que não valia a pena. O mais alto dos dois atirou-a em peso para fora da estrada, e correram pela colina abaixo até ao camião. Ayala meteu rapidamente a mudança e recuou, mas os atacantes de Rae não o perseguiram, limitando-se a acelerar na direcção oposta.
Rae, libertando-se dos arbustos, levantou os olhos e viu um homem a subir a estrada a custo, com uma carteira de cabedal preto estranhamente na mão. Ela apertou a roupa rasgada e ensanguentada, agarrou na mochila a escorrer e desatou a correr. O espantado vizinho parou e ficou a vê-la desaparecer. Depois, correu para a carrinha e dirigiu-se rapidamente para casa e para um verdadeiro telefone para marcar o 112 e relatar o crime que testemunhara.
Entretanto, nesse mesmo dia, a médica de Rae tinha telefonado a Tâmara para comunicar que ela faltara a duas consultas e perguntar se estava bem. Como não conseguiu apanhar a mãe pelo telefone, Tâmara, preocupada e cumpridora à superfície mas aborrecida por dentro com uma vida inteira de experiência, foi buscar a filha ao colégio e seguiu até à casa da mãe, onde chegou uns escassos dez minutos depois do xerife e dos paramédicos. Ao sair das últimas árvores, deparou com três carros oficiais no estacionamento normalmente deserto de casa da mãe, e uma porção de gente de uniforme.
Em pânico, entrou a correr, com Petra atrás de si. Pararam ambas, atónitas com o espectáculo.
O xerife Sam Escobar, um metro e oitenta de largos músculos e farda cor de café com leite, estava agachado junto ao sofá coberto de pedaços de papel, com a mão cuidadosamente estendida como para sossegar um animal assustado. Que era precisamente o que Rae Newborn parecia nesse momento, uma criatura espancada, ensanguentada, malcheirosa e meio despida a sofrer, demasiado receosa de assaltantes reais e imaginados para fazer outra coisa senão encolher-se no canto escuro entre o sofá e a parede, rodeada das suas listas escrevinhadas, escondida do mundo exterior pelos lençóis da cama bizarramente coloridos, a gemer baixinho. Os paramédicos olhavam para os relógios, o delegado mexia nervosamente no coldre, e Rae encolhia-se o mais possível, de olho no homem fardado como que a calcular quando devia morder-lhe a mão.
Mãe? exclamou Tâmara, ofegante. Ai, meu Deus, mãe, outra vez não!
Rae emitiu um único soluço, um som de desamparo e alívio, e tentou endireitar os membros tolhidos da sua posição fetal.
Desculpa murmurou ela, mas não para o xerife nem mesmo para a filha. Desculpa repetiu, dirigindo-se à neta, vezes sem conta. A cara assustada da criança penetrou através de tudo: febre, terror, loucura, dores, tudo... E Rae só conseguia pensar que a neta nunca devia tê-la visto naquele estado. Por isso, repetia: Desculpa, desculpa.
"Psicose situacional" era um termo cuja origem Rae já não recordava, mas que achava infinitamente reconfortante, um reconhecimento de que mesmo a mente mais forte podia ceder a seguir a uma série de golpes, golpes cuidadosamente calibrados e desferidos pelo destino. Mesmo que ela não fosse a mulher mais equilibrada deste mundo antes, mesmo que tivesse atravessado períodos de terrível depressão, comportamento compulsivo e tentativas de suicídio, isso não significava que fosse sempre e irrevogavelmente louca. Significava apenas que tinha uma fraqueza, uma falha moral não maior do que o joelho defeituoso da mãe ou as costas avariadas do tio.
Psicose situacional. Depressão clínica. Esgotamento nervoso. Neurose de guerra tudo nomes para a falha que cede sob pressão, um terrível e devastador tremor de terra interno que deixa cicatrizes abertas nas vidas de todas as pessoas que estão por perto. Daquela vez, quando Rae foi levada para o hospital, não se ignorou o problema mais profundo da doente. Nessa segunda passagem pelos cuidados intensivos, as enfermeiras ficaram vigilantes, omnipresentes e meticulosas em nunca deixarem objectos aguçados perto da cama. Nessa vez, quando os antibióticos fizeram o seu trabalho nos pulmões dela, quando o braço foi operado com uma placa no osso e o aparelho de gesso refeito, quando o fragmento do dente do marido foi retirado do ombro ferido e a maior parte da gravilha das mãos e dos joelhos, transferiram-na, não para uma enfermaria aberta, mas sim para uma fechada à chave. Foi aí que, ironicamente, umas semanas mais tarde, Rae conseguiu raciocinar o suficiente para fazer a sua terceira tentativa de suicídio. Ao contrário das outras duas, dessa vez não foi hesitante. Queria mesmo morrer, e tratou do assunto com uma determinação tão severa e concentrada como o seu mundo pessoal se tornara. Só por uma mera revista é que foi apanhada antes de a perda de sangue ser demasiada.
Isso foi o fim. A partir daí, desistiu. A calmante e impessoal rotina do hospital apoderou-se dela e, gradualmente, começou a produzir efeito. O que a rodeava transformou-se num local de asilo e não apenas uma casa de loucos. Bem envolvida na segurança de não ter qualquer escolha, embalada pelos medicamentos e queimada pela terapia de choques, descobriu que o alcance da sua visão começava a alargar-se. A inescapável e triste falta de esperança do universo diminuiu um pouco, a consciência de Rae passou a incluir coisas exteriores à sua desconfortável pele; e depois um dia ficou subitamente consciente do cheiro das pipocas que alguém fazia na sala das enfermeiras. Nem sequer gostava muito de pipocas, mas o aroma atravessou os corredores como um coro de anjos. Depois, apareceu a Dra. Roberta Hunt, trazendo o primeiro raio de luz no fim do túnel, iluminando o longo caminho para casa.
Todavia, a casa era na altura um sítio fechado e silencioso, com os móveis envoltos em lençóis por causa do pó (os mesmos lençóis que ela usara para tapar as janelas). Ou seria a casa dela aquela ilha, duas torres de pedra em ruínas na base duma colina que tentava enterrá-las?
Era um pormenor que só interessava se as seis balas continuassem cuidadosamente dispostas em pirâmide a um canto da mesa. A definição de lar pouco interessava a uma mulher morta.
Rae passou a maior parte da noite sentada à mesa, a mexer nas balas e a brincar com elas, acariciando a coronha de pau-rosa do revólver com o polegar, a carregar e descarregar a arma. Ouvia a lenta respiração do candeeiro de petróleo e a conversa dos dois mochos, hesitando entre o sereno olvido e a expressão que aquilo poria na cara da neta. Perto da manhã, ainda indecisa, Rae encostou a cabeça ao diário. Como parecia diferente a disposição das balas vistas dali, pensou. Daí a pouco, as pálpebras fecharam-se-lhe. Quase de manhã, o candeeiro piscou e morreu.
Estava claro lá fora quando um ruído a acordou. Tentou endireitar-se, resmungou quando o pescoço tolhido e as costas doridas reclamaram e, por fim, conseguiu levantar-se.
Ouviu de novo o ruído. Uma voz de mulher, dessa vez, a chamar o seu nome. Era um sonho, sabia perfeitamente. No sonho, dirigiu-se para fora da tenda, onde deparou com a visão de conto de fadas duma família de náufragos depositada na sua costa, uma família de três, imersa no nevoeiro que rodopiava e brilhava em volta dos seus vultos. Que sonho estranho! O pai era parecido com o xerife Escobar no seu uniforme (embora mais alto e de pele mais clara), a mãe com uma fada sem asas e o garoto não era a neta de cabelo frisado nem a filhinha de caracóis loiros, mas branco e ruivo como a mãe.
A reacção da família do sonho foi ainda mais bizarra do que a sua presença: a mulher ruiva, assim que viu Rae, agarrou o filho e pareceu querer protegê-lo com o próprio corpo. Mas o que o homem fez foi ainda mais alucinante: agachou-se, sacou uma arma e apontou-a a Rae.
Carta de Rae à neta
12 de Abril Querida Petra,
Antes de deixar a Califórnia, encomendei uns livros sobre a história do arquipélago de San Juan, porque pensei que devia saber alguma coisa sobre o meu novo lar. Calculo que estejas afazer também a tua pesquisa gostava de saber o que descobriste.
Agora que tive oportunidade de os ler, estou espantada por verificar que num sítio lindo e calmo (até a água aqui é ridiculamente calma comparada com o Pacífico já vi lagos com ondas maiores), houve uma data de acontecimentos violentos. Durante a Lei Seca (já estudaste isso no colégio? o período em que primeiro o Estado e depois os E. U. em conjunto proibiram as bebidas alcoólicas, agradando à União da Temperança e enriquecendo uma data de criminosos), o arquipélago foi um viveiro de contrabandistas de rum, seguido de haxixe nos anos sessenta e certamente outras substâncias hoje em dia. A ilha McConnell, a oeste daqui, foi o lar dum antigo escroque. A norte, um homem que usava o nome de Irmão XII depenou uma congregação de gente rica na ilha Valdes, organizando uma espécie de igreja da Nova Era chamada Fundação do Aquário imagina isto nos anos vinte.
A ilha do Crânio, a ilha da Vítima e a baía do Massacre (onde vive um deputado local) comemoram ataques a americanos nativos. Mais perto da minha ilha e por volta da altura em que tu nasceste, um passador de droga instalou-se numa ílhota numa baía deserta, para descobrir seis meses depois que ela se enchia de turistas. Que, naturalmente, repararam no seu negócio. A ilha foi confiscada e é actualmente um santuário de vida selvagem chamado apropriadamente ilha da justiça. Até tivemos um incidente ínternacional
em San Juan: a chamada "guerra do porco", começada por causa do porco inglês que entrou no batatal dum agricultor americano e apanhou um tiro. Isso foi em 1859, quando os E. U. e a Inglaterra ainda discutiam as fronteiras e ambos os países queriam a ilha. Quase entrámos em guerra por causa dum porco, imagina tu!
Então, que tal achas a vizinhança agradável e pacata da avó?
Beijinhos da vovó.
A arma, tal como o homem por trás dela, era enorme e firme e absolutamente aterradora a fase de pesadelo do sonho.
Largue isso! gritou o homem.
Quê? exclamou Rae, olhando para a mão esquerda e vendo que saíra da tenda com o revólver na mão. Não está carregado disse ela ao homem fardado, estendendo o braço com a arma segura com as pontas dos dedos, como que a repudiar a sua existência.
Ponha-a no chão, Mistress Newborn. Já!, Rae ia obedecer, mas depois hesitou. Não se importa que a ponha em cima da mesa? A areia é péssima para uma arma.
O homem devia ter-lhe dado um berro para ela obedecer instantaneamente, mas limitou-se a acenar com a cabeça, o que pareceu a Rae ainda mais assustador do que gritos.
Na mesa, então. Devagar. Agora, afaste-se daí e afaste as mãos do corpo. Pronto, agora volte-se.
Rae ouviu passos atrás de si e contraiu-se, mas as mãos do homem revistaram-na com surpreendente suavidade.
Pronto disse ele, o que Rae tomou como autorização para se voltar de novo. Viu o homem recuar até à mesa de cozinhar, ainda com a arma à vista mas apontada para o chão. Pegou no revólver de coronha de madeira, rodou o tambor para verificar se estava vazio, examinou-o de perto, e acabou por poisá-lo no mesmo sítio.
Bela arma comentou ele, sem demonstrar o que pensava. Tanto podia estar prestes a prendê-la como a convidá-la a tomar chá. Parece antiga.
Era do meu avô disse Rae, sentindo que estava acordada, apesar da conversa nada contribuir para isso. Eu... ia limpá-la ontem à noite, mas adormeci. Desculpe ter saído com ela na mão, mas nem dei por isso. No mundo real, o homem fardado perguntaria nesse momento se ela tinha licença para a arma e, vendo que não, confiscá-la-ia. Mas ele não perguntou pela licença. Em vez disso, observou-a durante um minuto e depois apontou para a clareira.
Aquela mesa é nova. Foi a senhora que a fez?
Fui, a semana passada. Precisava dum sítio para trabalhar. Teria violado alguma misteriosa lei do arquipélago? Precisaria de licença para apanhar madeira flutuante, como para o marisco?
É uma bancada muito extravagante. Mas fica bem ali. A senhora é realmente Rae Newborn?
O xerife olhou para a mulher alta e de forte constituição, um pouco mais velha do que ele, com rugas de profunda tensão dos lados da boca generosa, e uma marca vermelha numa das faces do tamanho do botão do punho da camisa. Viu inteligência e bravura naquela cara, apesar das circunstâncias e do que sabia do passado dela. Encarava-o decidida.
Sou, sou a Rae Newborn.
O homem alto pareceu tomar uma decisão. Meteu a arma no coldre e fechou a mola.
Chamo-me Jerry Carmichael e sou o xerife de San Juan. Seja bem-vinda.
Obrigada conseguiu Rae dizer.
Esta é a Nicola Walls continuou Carmichael, dando um passo atrás para a deixar ver melhor a mulher e o garoto, que se tinham separado e estavam lado a lado, mais pálidos do que nunca e ainda um pouco abalados por terem sido recebidos com uma arma. A criança encostava a cara à cintura da mãe, que tinha o braço em volta dos ombros dela. A Nikki trabalha no Departamento de Parques informou o xerife.
Não era a mulher dele. Possivelmente a namorada, apesar da diferença de idades ela com trinta e poucos e ele quarenta e muitos.
Bom dia disse Rae a Nikki Walls. A criança espreitou-a com um olho. A mãe baixou-se para lhe dizer qualquer coisa, até que o garoto acenou com a cabeça e condescendeu em avançar um pouco, de mão dada. Parecia ter uns cinco anos, embora pequeno para a idade, e Rae começou a preparar-se para a primeira vez em que ele chamasse "mãezinha" à mulher. Quando chegaram ao acampamento, Nikki soltou a mão da do filho e estendeu-a a Rae. Estava quente e ligeiramente peganhenta, não era muito maior do que a duma criança, e Rae teve de lutar contra a vontade de limpar a pele daquela recordação táctil da infância. Desistiu de tentar sugerir que aquilo era uma elaborada alucinação. O toque da mão aquecida pela da criança era real.
Rae Newborn disse ela com esforço.
Eu sei respondeu a mulher, surpreendendo-a. Quando o Jerry me disse que vinha cá, eu pedi-lhe se podia vir também para a conhecer.
Santo Deus, quem é que podia estar à espera duma admiradora num sítio destes?, pensou Rae.
Este é o meu filho Caleb continuou a mulher. Diz olá à senhora, Caleb!
O garoto, agarrado ao casaco da mãe, voltou a cara para o lado.
Gosto muito de te conhecer, Caleb disse Rae para o lado da cabeça do garoto.
Mãe e filho eram extraordinariamente belos, mas não duma forma convencional. Tinham a beleza duma girafa a atravessar uma planície ou dum flamingo a passear num pântano ou até dum extraterrestre num terreno doutro mundo. No caso deles, as medidas humanas da beleza pareciam inadequadas. As calças de ganga que ambos usavam e as botas altas encarnadas do garoto pareciam tão inverosímeis como chapéus num par de gatinhos. Eram demasiado etéreos para serem mortais, com caracóis dum ruivo-claro e a pele branca e sardenta, como se tivessem saído dum conto de fadas irlandês, por exemplo, um conto sobre ninfas e duendes. A espessa cabeleira encarapinhada da criança espetava-se como dedos vermelhos; a da mãe fora apanhada em dois apertados rolos dos lados da cabeça, terminando num carrapito, provavelmente a única maneira de controlar um cabelo daqueles. Apesar da impressão que sentira com o aperto de mão, Rae tinha um vago desejo de tocar nos dois, para ter a certeza de que eram corpóreos e não algum resto do seu sono inquieto. Controlou-se, travando o impulso.
Café? sugeriu, afastando-se para o fazer.
Devia pedir desculpa por a incomodar tão cedo disse o xerife. Mas o Ed De la torre disse à Nikki que a senhora se levanta geralmente com o Sol, de maneira que achámos que não fazia mal. Apesar de o Sol ainda não se ter levantado propriamente...
Está óptimo. Eu levanto-me normalmente de madrugada, mas tive uma noite um bocado agitada, e acabei por adormecer tarde. De qualquer maneira, acordava com o barulho dos gaios, por isso não se preocupem.
A sensação desligada e irreal persistia; o café ia ajudar, disse Rae para consigo. Café forte. Deitou mais uma colher cheia. E comida. Teriam alguma coisa para comerem? Ao domingo, os alimentos frescos já tinham geralmente desaparecido, mas ainda havia cinco ovos e bastante manteiga.
Já tomaram o pequeno-almoço? perguntou às visitas ainda por explicar.
Trouxemos um piquenique respondeu o xerife Carmichael, o que foi simultaneamente um alívio e mais um motivo de confusão. As pessoas em San Juan costumariam aparecer umas às outras de comida na mão? Aprender os hábitos duma nova comunidade nunca estivera incluído nos seus planos.
Caleb, lembras-te onde puseste o saco grande? perguntou o xerife. O garoto acenou com a cabeça. Achas que és capaz de entrar e sair do barco sozinho e de o ires buscar?
Antes que Nikki pudesse protestar, o garoto desatou a correr colina abaixo em direcção ao promontório. Os três adultos ficaram a ver o pequeno vulto atravessar a doca flutuante e trepar para a lancha do xerife. Um pouco de nevoeiro ameaçou esconder a criança, o barco e tudo, levando-os para o mundo etéreo, mas, daí a um minuto, a cabecita luminosa reapareceu no tombadilho por cima dum saco tão grande que os bracitos mal podiam segurá-lo, e Rae percebeu o motivo da preocupação da mãe. Caleb aproximou-se da amurada e olhou para baixo. O barco balançava e a doca parecia pouco segura; o saco era grande e o garoto pequeno. Nikki preparou-se para lhe gritar instruções, mas o xerife disse calmamente:
Espera, para ver se ele descobre o que há-de fazer.
Rae pensou se haveria algum significado oculto naquela frase, com a marca duma longa e íntima relação. Não eram bem as palavras dum irmão mais velho a dar ordens, nem as dum marido. O mais perto que conseguiu chegar foi a um casal divorciado que se mantinha íntimo, ou a um tio que tivesse ajudado a educar uma sobrinha e agora fizesse o mesmo com o filho dela.
Vai deixar cair o saco à água protestou Nikki, embora não parecesse a Rae que a sua preocupação fosse com o saco.
E então? Comemos croissants molhados!
Foi a vez de Rae abafar um protesto. Croissants franceses na água?
Mas a criança estava a conseguir. Apoiou o saco no cimo da amurada, esticou-se, agarrada a ele, e deixou-o deslizar. O equilíbrio era precário e Rae ficou à espera do chapão, mas o garoto viu o perigo e, inclinando-se um pouco mais para fora do barco, afastou o saco do intervalo e soltou-o. Depois, endireitou-se e saltou, pegando de novo no pequeno-almoço e dirigindo-se orgulhosamente para os adultos que o esperavam.
Rae empurrou o êmbolo da máquina de café, consciente de que, dois anos antes, se se visse confrontada com uma criança tímida, teria sugerido que fosse ela a empurrar o êmbolo para a ajudar. Agora, era incapaz dum esforço para fazer aquele garoto abrir-se. Depois de distribuir pratos, perguntou a Nikki o que queria ele beber em vez de café, não se dirigindo directamente a Caleb. Na realidade, falava mais para o xerife, evitando o mais possível as duas cabeças brilhantes.
Está a instalar-se sem problemas? perguntou ele.
Acho que sim. "Instalar-se" não seria o termo para as últimas dezoito horas, mas uma explicação pormenorizada era impensável. Em vez disso, dirigiu-lhe um sorriso artificial. Precisei de algum tempo para me habituar aos ruídos da noite, mas gradualmente fui distinguindo os guaxinins dos veados e dos ratos, e já não fico acordada por causa deles. O que era uma mentira descarada, mas isso ele não sabia. Ou saberia? Aqueles firmes olhos castanhos num rosto bronzeado pareciam ver muita coisa. Café?
Os croissants eram uma maravilha, estaladiços por fora e fofos por dentro. Havia ainda três espécies de bolinhos secos, uma grande caixa de plástico com salada de fruta, algumas embalagens de iogurte e outra caixa de plástico com salsichas frescas ainda mornas. Quando chegou o momento de atirar os invólucros para a fogueira e lavar as chávenas, Rae percebeu que tinha comido três croissants, meia dúzia de salsichas e um bolo seco do tamanho duma bola. Com a parte que lhe coube de dois bules de café, tinha os olhos tão abertos que as pestanas lhe tocavam nas sobrancelhas.
Descobriu também que, enquanto devorava aquela comida toda, fora submetida a um subtil questionário por parte do xerife, que agora sabia mais sobre ela e a família do que achava necessário, sobretudo com a funcionária florestal e o filho à escuta. Despejou água a ferver sobre as canecas e as facas dentro da panela, tornou a poisar a cafeteira sobre o lume e sentou-se para enfrentar o xerife.
Diga-me uma coisa, é costume vir comer com toda a gente que chega à ilha?
Nikki, talvez tu e o Caleb... disse ele, voltando-se ligeiramente na cadeira.
Nikki levantou-se relutantemente e disse ao filho:
Vamos até lá abaixo ver quantos caranguejos contamos na praia de Mistress Newborn!
Os olhos do xerife não se despregaram das costas deles, e só quando não podiam ouvi-los é que se virou para Rae, tirando um papel do bolso da camisa. Desdobrou-o e levantou-se para lho entregar.
Este homem parece-lhe familiar?
Era um fax com uma fotografia dum homem de queixo quadrado e pescoço grosso, com o cabelo loiro muito curto e o lábio superior revirado, a olhar para a câmara com ar superior.
Parece um nazi comentou ela.
Foi o que eu achei. Mas conhece-o?
Não reconheço a cara. É mais uma fotografia dum criminoso do xerife Escobar? Esta ainda é mais diferente da descrição do que a que o seu agente me trouxe na primeira semana que passei aqui.
O Escobar acha que não é, mas pediu-me que lha mostrasse à mesma, para ver se lhe lembrava alguma coisa.
Estou a ver. Mas não, não era este homem. Ele disse-lhe que eu fui...
Atacada, sim. Fez-me uma descrição geral, sem pormenores.
Bom, esse não foi. Um deles era loiro, mas tinha o cabelo mais escuro do que este. E não tinha um pescoço tão grosso. Este parece um tipo dos pesos. Se tivesse sido atacada por aquele musculoso nazi, pensou Rae, talvez não estivesse ali agora a olhar para a fotografia. Devolveu-a, e Carmichael deitou-a para a fogueira.
Foi uma tentativa. Apanharam o tipo por uma agressão semelhante, e o Escobar achou que valia a pena.
Lamento.
Ele pediu-me que lhe dissesse que continuam a trabalhar no caso.
Estou a ver que sim. Provavelmente o motivo principal da viagem do Carmichael até aqui é dizer-me que o outro está a trabalhar a sério.
Quer dizer-me o que está a acontecer por aqui? perguntou ele, sem modificar a expressão ou o tom de voz. Rae pensou que se referia à fotografia.
O senhor disse que ele lhe contou...
Refiro-me à ilha. É óbvio que passou uma noite má, adormeceu com uma arma na mão e está nervosíssima. Afinal de contas, sempre sou o xerife. Se tem um problema, gostava de saber qual é. E se ela estava prestes a ficar chanfrada de todo e ia começar aos tiros aos barulhos da noite, também precisava de saber, pensou Rae. Contudo, era simpático da sua parte dizer que se preocupava por ela e não com ela. Quem sabe se não seria até verdade. Mas por onde havia de começar?
Antes de começar, precisa de saber que o seu xerife me pôs a par de algumas coisas. Sei que teve um grande acidente e perdeu a sua família, que passou algum tempo no hospital e que, mal tinha saído, foi atacada por dois homens. Depois, passou mais onze meses num hospital psiquiátrico. O Escobar contou-me, porque eu tinha de saber, mas talvez seja melhor esclarecer que, para ele, essa hospitalização não foi uma coisa extraordinária, com tudo o que lhe aconteceu. E ele está mesmo contente por a senhora estar melhor.
"Digo-lhe isto para que a senhora perceba que nenhum de nós tem seja o que for contra si. Eu fui criado com um primo que ficou esquizofrénico no fim da adolescência, por isso conheço em primeira mão o estigma ligado às doenças mentais. Isso não faz parte do caso. Agora, por favor, diga-me o que se passa aqui que a incomoda.
Rae precisou de se levantar e afastar-se. Se não o fizesse, teria desatado a chorar. Mesmo assim, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e os arbustos pareceram dançar no seu campo de visão, mas conseguiu manter a voz firme.
De vez em quando, tenho... bom, alucinações. Oiço murmúrios, cheiro coisas que não estão aqui. Se tomar um remédio, isso desaparece, mas o remédio faz-me sentir tão mal que prefiro realmente uma ou outra voz do que ficar drogada. Mas, às vezes... Parou, respirou fundo e depois continuou: Ontem, estava lá em cima na nascente, do outro lado da ilha, e pareceu-me ver uma pegada. Na lama junto à poça. Não era minha.
Como o Robinson Crusoe, não? Mas preferia que o Sexta-Feira ficasse lá na sua ilha e a deixasse em paz.
Eu sei que provavelmente nem era uma pegada. Na altura, pensei que parecia duma daquelas solas de botas de caminhante, mas era só um cantinho e, pensando melhor, a marca também podia ter sido feita pelos veados. Mas eu... descontrolei-me, foi o que foi.
Ouviu-se o rangido da cadeira de madeira.
Vamos lá ver propôs ele.
Rae ficou tão espantada que ergueu o rosto, sem se lembrar das lágrimas.
Porquê?
Porquê? repetiu ele. Porque eu sou o xerife de San Juan e, se alguém anda por aí num santuário de vida selvagem, tenho de saber o que se passa.
Olhe... e também fica à espreita à beira da estrada para apanhar as pessoas que deitam lixo para o chão? perguntou Rae, com os olhos semicerrados.
A expressão ligeiramente ameaçadora descontraiu-se por um momento.
Só no Inverno, quando estou realmente aborrecido respondeu Carmichael, exclamando depois por cima do ombro: Ficam aí mais um bocado, Nikki? Mistress Newborn tem de me mostrar uma coisa.
Claro! respondeu Nikki. As calças de ganga de Caleb estavam dobradas num tronco trazido pelo mar e ele caminhava dentro de água, com o topo das botas a um centímetro de ficarem molhadas, o pequeno corpo curvado e o nariz quase a tocar na água.
Vá à frente sugeriu o xerife.
Rae hesitou, mas depois começou a subir a encosta à frente dele. No entanto, o som das botas atrás de si foi mais do que pôde suportar. Deu um passo para o lado e fez um gesto em direcção à colina.
Vá o senhor à frente. Vê-se bem o caminho.
Foi a vez de o xerife hesitar, mas só por momentos. Rae seguiu-o, e acabou por pensar que o pessoal policial devia ter bons motivos para não querer voltar as costas a estranhos.
O caminho era estreito e Carmichael começou a percorrê-lo em passo acelerado, pelo que pouco falaram até lá acima. A meio da encosta, o sol começou a ficar mais forte e Rae tirou o casaco, pendurando-o num ramo. Mais adiante, desejou ter deixado para trás também as mangas compridas. Quando chegaram à poça inferior, ajoelhou-se para salpicar a cara com água e passar os dedos pelo cabelo. O xerife observou a vista durante algum tempo, uma vista enquadrada por ramos de árvores, mas bastante dramática. As rochas na água ao largo da ilha provocavam imensa turbulência à superfície, e havia bóias a marcar mais perigos escondidos. Aquilo parecia a Rae mais as águas revoltas ao largo de Big Sur do que a calma e acolhedora costa do arquipélago de San Juan.
Foi pena o seu antepassado não ter construído a casa aqui disse o xerife. Grande vista!
Mas uma grande subida para transportar a comida, também retorquiu Rae, dirigindo-se à poça superior. Foi aqui.
Os fetos tinham-se desenrolado um pouco mais, o musgo continuava verde, a intromissão de dois grandes seres humanos parecia perturbar o ar calmo, e a marca da bota continuava lá.
Se era uma marca de bota. A terra estava ainda mais mole e, se assim estivesse na véspera, Rae talvez nem tivesse reparado. Disse isso mesmo ao xerife.
Ele curvou-se sobre a marca, tão atento como o garoto com as suas criaturas marinhas. Daí a um par de minutos, durante os quais fez tudo excepto pôr-se de cabeça para baixo e cheirar o solo, ergueu-se, sacudiu as mãos e colocou a própria bota a uns trinta centímetros da marca. Saltou para cima e para baixo e depois deu um passo atrás. Em seguida, puseram-se os dois a examinar o solo.
Podia ser uma sola da marca das minhas disse ele finalmente, mas, tem razão, também pode ser uma data de outras coisas. A marca da bota dele era desagradavelmente parecida com a que Rae descobrira na véspera. Mas uma martelada parecia igual, bem como um casco de animal ou alguma coisa caída do alto ou...
Acho que não vamos ter a certeza hoje observou Carmichael, resignado. Se fosse Verão, diria que anda por aí alguém, mas nesta época do ano não é provável. E choveu desde a Páscoa, quando esteve aí o maior grupo de turistas. Além disso, a senhora já cá estava durante as férias da Páscoa e teria reparado se andasse alguém por aqui.
Não, se viessem do outro lado da ilha contrapôs Rae.
Só se fosse uma pessoa muito determinada.
Porque diz isso? Nunca reparou na linha da costa? perguntou Carmichael, com uma expressão admirada.
Partes, entre a enseada e aqui, e do outro lado de longe, quando estive cá há cinco anos. O Ed disse-me que as correntes tornam a navegação difícil.
É típico do Ed diminuir a importância das coisas! A enseada onde instalou o seu acampamento é a única praia de toda a ilha, e só há um ponto onde é seguro ancorar uma embarcação. O resto é tudo penhascos até ao mar ou rochas como dentes de tubarão. Além disso, está mesmo no meio das piores correntes do arquipélago, no ponto onde o canal de Speiden se cruza com o estreito de Haro. Rápidos, remoinhos, tem de tudo. Só alguém que fosse um cruzamento entre o capitão Jonas e uma cabra-montês é que conseguia trepar para a ilha sem ser pelo seu pátio da frente. Eu sei... Tenho navegado por estas ilhas toda a vida, e só conheço dois idiotas capazes de o tentar numa aposta. Um deles perdeu o barco com a gracinha.
Não sabia. É bom saber que não preciso de mandar as pessoas sair da minha propriedade.
Se puser um aviso com um desenho duma arma, não vai ter grandes problemas. Na realidade, devia falar com a Nikki sobre isso. Uma das tarefas dela é lidar com os intrusos numa reserva de aves. Deitou mais uma olhadela para a água e começou a dirigir-se de novo para o acampamento. Rae ia segui-lo, mas depois voltou-se para deitar água em cima das marcas no musgo. Não sabia bem se estava a tentar acelerar a recuperação do musgo ou a disfarçar a marca da bota de Jerry Carmichael.
O xerife desceu a encosta mais devagar, parando para observar o trabalho de Rae na canalização e fazendo perguntas inteligentes sobre a construção primitiva. Quando chegaram a uma curva, Rae pegou num pedaço do antigo cano de cedro e estendeu-lho. Jerry revirou-o nas suas grandes mãos e examinou-lhe os contornos, ouvindo a explicação sobre as modificações a fazer.
É um projecto e pêras, não é? comentou ele.
Não vai dizer que é de mais para uma mulher, pois não?
Nunca na vida, nem que tudo o indicasse, e não acho que seja assim. Segundo tenho visto, as mulheres que se metem a fazer uma coisa deste género encontram menos problemas do que os homens, porque são mais realistas. E é evidente que a senhora tem experiência. Atirou o pedaço de madeira para os arbustos e retomou a descida da encosta.
O seu último comentário fora mais uma pergunta, de maneira que Rae decidiu responder-lhe.
Há anos que construo coisas... tudo, excepto a parte eléctrica. A electricidade põe-me nervosa. Cheguei a passar dois Verões com uma equipa de construção quando era mais nova. Mas a minha profissão é carpinteiro.
Eu sei. Um dos meus delegados reconheceu o seu nome. Era pedir de mais que o "grande chefe" soubesse da sua reputação. O xerife, sem reparar, continuou: Talvez seja melhor pôr o aviso depressa, sabe, a não ser que queira a vizinhança aqui na enseada. Só me admira não terem ainda começado a aparecer.
- Ora não me parece que seja assim tão famosa - protestou Rae.
Aqui? Deve estar a brincar. É uma celebridade local! disse
ele.
Espantada, Rae devolveu-lhe o olhar mas, antes que pudesse começar a envaidecer-se por ter vindo parar no meio duma comunidade de gente que sabia de carpintaria, ele continuou:
Toda a gente nas ilhas sabe que alguém está a restaurar a Loucura.
Rae perdeu rapidamente a vaidade, e depois, tanto para sua surpresa como para dele, desatou a rir.
Foi por isso que a Nikki quis conhecer-me?
Claro. Embora ela também conheça o seu trabalho. Isso já era alguma coisa, afinal.
Quem é ela? perguntou.
A Nikki? Guarda-florestal, eu não lhe disse? Ah, refere-se à nossa relação? Voltou-se novamente para o caminho e falou por cima do ombro: É minha amiga, embora seja também prima afastada pelo casamento. A maior parte das pessoas das ilhas que não são recém-chegadas estão mais ou menos relacionadas. Ela é a irmã mais nova da ex-mulher do meu irmão mais velho. É mãe solteira... Casou com um tipo que afinal a maltratava, aguentou-o até que ele bateu no Caleb, e depois voltou para cá. Agora estão bem, mas é difícil para uma mulher criar um filho sozinha, de maneira que eu de vez em quando saio com eles. Um rapaz precisa dum homem na sua vida, parece-me a mim. A Nikki... Bom, viu aquilo com o barco, tem tendência para ser superprotectora.
Rae não achava que a jovem tivesse sido demasiado protectora para com o filho. Nem estava convencida de que o interesse do xerife pelo par de ruivos fosse tão estritamente o dum tio.
A propósito, eu estava a brincar com aquela coisa da arma disse ele. Não a respeito do desenho... Bolas, uma ameaçazita nunca fez mal... mas detestava que se servisse dela. Mesmo que fosse o seu lindo revólver. Já pensou em arranjar um telemóvel?
Não me parece que funcionem aqui, pelo menos na enseada.
Se for tipo satélite, funcionam. Custam uma data de massa, mas...
Não.
Pronto. E que tal um rádio?
Pensei em viver sem esse género de coisas durante uns tempos disse Rae.
Pelo menos, arranje uma pistola de foguetes luminosos. Assim, se tiver algum problema, dispara-a e, se um de nós não vir, um vizinho vê de certeza, sobretudo se estiver escuro. Não é tão bom como o rádio, claro, mas é melhor do que nada. O Ed pode comprar-lhe uma em Friday Harbor. Só precisa de a disparar para a água, para não pegar fogo à ilha. E... hum... tente não a utilizar se não tiver realmente a certeza. De que existe mesmo uma ameaça, percebe?
Que não chame a tropa por causa dos barulhos na noite, quer você dizer? perguntou Rae, com um sorriso irónico, ouvindo nas palavras dele o eco duma conversa com o xerife Escobar.
Qualquer coisa na voz dela fez Carmichael voltar-se completamente a observá-la.
A senhora estava numa grande tensão quando fez aquelas chamadas de falso alarme. Detestava pensar que não pedia auxílio aqui por ter medo de ficar envergonhada. Devia saber melhor do que as outras pessoas que, lá porque às vezes ouve coisas que não existem, isso não significa que nunca exista qualquer coisa. Aliás, imagino que seja esse um dos motivos da sua vinda para aqui, para provar que sabe distinguir. Pelo menos, prove-o a si própria.
Manteve os olhos fixos nos dela durante um longo momento, depois voltou-se e continuou a descer o caminho com segurança, deixando Rae mais ou menos de boca aberta a olhar para as costas fardadas. Jerry Carmichael teria dado um psiquiatra ferozmente eficaz, se tivesse escolhido policiar as mentes humanas em vez de as suas acções.
Seguiram em silêncio. Na clareira, o xerife parou para admirar as torres que emergiam, enquanto Rae continuava até ao local da cozinha. Caleb estava sentado na cadeira de lona, com as pernitas penduradas sem tocar com os pés no chão, à procura de alguma coisa dentro do saco da padaria. Nikki, debruçada sobre a mesa de cozinhar, tinha as costas voltadas para eles.
Está à procura de alguma coisa? perguntou Rae.
A rapariga deu um salto como se a tivessem picado, deixou cair a caixa de plástico dos utensílios de cozinha com estrondo e virou-se imediatamente, com a mão no peito.
Bolas, que me assustou!
Precisava de alguma coisa?
Bom, pensei que podia guardar aquelas facas e coisas que usámos, mas não as vejo aqui.
Pois não, os talheres estão naquela outra caixa.
Ah, já estou a ver...
Mas não vale a pena guardá-los fechados, porque são de aço inoxidável. Só guardo os abre-latas e coisas parecidas na caixa.
Pronto. Se tem a certeza.
Nikki abandonou o projecto com uma vivacidade suspeita, e foi ajudar o filho a procurar comestíveis que lhe agradassem dentro do grande saco branco. Sem a luz difusa do nevoeiro matinal, ambos pareciam mais substanciais, com as asas de fadas substituídas por camisas de ganga. Nikki ergueu os olhos quando o xerife apareceu e fez-lhe um rasgado sorriso.
Já passou uma hora e um quarto desde o pequeno-almoço! explicou ela. O Caleb acha que são horas de comer qualquer coisita. Encontrou um rim de chocolate bastante achatado e estendeu-o ao garoto.
Os três adultos viram como o garoto dava uma enorme dentada no bolo cheio de creme e a sua boca desaparecia numa mancha escura.
Gostas de bolos de chocolate? perguntou-lhe Rae. Aceitando melhor a presença dela, Caleb acenou vigorosamente com a cabeça. A minha... Calou-se de repente. A minha filha também gostava. Bom continuou com vivacidade, tenho uma tonelada de coisas para fazer. Obrigada pelo pequeno-almoço. Foi muito bom.
Nikki, eu disse a Mistress Newborn que vocês talvez pudessem arranjar um grande aviso contra intrusos antes do Verão. Para as pessoas com barcos não terem desculpa disse o xerife à ex-cunhada do irmão.
Boa ideia. Vou tratar disso já esta semana.
E se por acaso vieres para estes lados, podias levá-la a dar uma volta à ilha, porque ela ainda não tem barco.
Rae começou a protestar, mas a cara de Nikki iluminou-se.
Adorava! exclamou ela, praticamente a torcer-se de entusiasmo. E, de facto, vou estar por aqui amanhã. Seria boa altura?
Rae hesitou. Desanimá-la ou ver-se livre daquilo duma vez por todas? O interesse em ver toda a extensão da ilha sobrepôs-se à sua reticência de eremita.
Amanhã é perfeito. Obrigada, gostava muito. Gostava era exagero, mas a boa educação não fazia mal. E depois lembrou-se de outra coisa que podia perguntar a um guarda-florestal. Olhe, Nikki, se tiver um livro sobre aves que pudesse emprestar-me, agradecia-lhe. Gostava de saber quem são todos estes pássaros com que estou a viver.
Nikki disse que tinha mesmo o que ela queria, e combinaram o encontro para o fim da manhã, para dar ao nevoeiro a oportunidade de desaparecer e também para evitar a maré baixa da tarde. Depois, Rae acompanhou o trio até ao cais, onde esperou até Nikki desamarrar a lancha. A embarcação deslizou para a baía iluminada pelo sol, que fez brilhar as duas cabeleiras ruivas, afinal diferentes, como viu: a de Nikki era da cor dum alperce maduro, enquanto a do garoto tinha exactamente o tom do cobre. A carita pálida ficou voltada para ela, e finalmente uma mãozinha suja de chocolate ergueu-se e acenou-lhe, enérgica.
A mão de Rae levantou-se involuntariamente, com os dedos estendidos, e depois fechou-se lentamente, quando o motor acelerou deixando atrás do barco uma esteira de água revolta.
Depois de o barco desaparecer, Rae foi ver o que Nikki podia ter estado a procurar, mas a caixa continha apenas tesouros como saca-rolhas, descascador de batatas e espetos. O fecho da tenda estava mais ou menos onde lhe parecia tê-lo deixado, e as coisas lá dentro não pareciam ter sido mexidas.
Era pouco provável que a guarda-florestal tivesse efectuado uma busca ilegal de drogas ou armas de fogo com o filho sentado diante dela, concluiu Rae. A jovem ninfa estava apenas curiosa acerca da dona da ilha. Era tudo.
Cartas de Rae
para a neta e
para a filha
18 de Abril Querida Petra,
Obrigada pela tua carta, que o Ed De la torre me trouxe a semana passada com as compras da mercearia, uma lata de óleo de linhaça para a minha bancada e um relatório do laboratório dizendo que a água da minha nascente está "dentro dos limites aceitáveis" em cerca de oitenta coisas diferentes (graças a Deus). Vinha também uma severa carta do Departamento dos Parques a dizer que sim, supunham que eu tinha o direito de arranjar esta "residência em ruínas", apesar de a ilha ser um santuário de vida selvagem, mas que tenho de concordar com umas quantas limitações. É claro que não tenho. Sei eu e sabem eles. O teu bisavô William fez um acordo legal tão sólido como as fábricas dele, e era absolutamente feroz quanto à preservação do direito da família a fazer o que quisesse com o que lhe pertencesse. Eles estão só a tentar convencer-me a concordar. (Já te ensinaram a jogar póquer, querida? Se não, lembra-mo da próxima vez que nos virmos.) Na realidade, eu até nem estou presa ao acordo original, visto que os cinquenta anos da concessão já acabaram há imenso tempo. Mas, para dizer a verdade, até agradeço que continuem a utilizar a ilha como santuário de vida selvagem. Sou sempre a favor de santuários (o verdadeiro nome da ilha, como deves lembrar-te). Além disso, assim os turistas de Verão não podem pôr cá os pés, e é o governo que tem de manter a proibição e não eu. Mas, seja como for, essa foi a minha batalha da semana.
Suponho que a mensagem era: Assegura-te sempre de que tens um bom advogado ao lado.
E isto acaba por ser a resposta à tua carta, que passo a dividir em duas secções: o teu projecto para o colégio e a proposta de visita. O projecto parece muito interessante, muito mais do que os aborrecidos trabalhos de História que tínhamos de fazer "no meu tempo" (dito com a voz tremida duma velhota). Claro que a história deste rochedo cobre tudo desde os nativos americanos, passando pelos exploradores ingleses (Cook passou ao largo, e Vancouver e os outros todos), o período da guerra civil (uma das primeiras ilhas do arquipélago colonizadas sem ser pelos variados nativos americanos que na realidade não viviam aqui durante todo o ano, só pescavam e colhiam alimentos foi ocupada por um grupo de ex-escravos que comprou a liberdade na década de 1850 e se instalou aqui, bem longe do Sul) e o fim do século xix (quando as pessoas das ilhas faziam contrabando de tudo, desde trabalhadores chineses a uísque), até ao princípio do século xx (Desmond Newborn, por exemplo) e à Segunda Guerra Mundial (aquelas fortificações do feitio de caixas de comprimidos, à espreita de submarinos inimigos) e o começo dum novo século (a abaixo-assinado).
Parece-me que podias divertir-te imenso com esse projecto. Se achas que ajuda, posso tirar fotografias ou fazer um mapa, seja o que for de que precises. Entre as tuas investigações, a Internet, bibliotecas e a minha presença aqui, tudo isso junto, podíamos escrever um pequeno livro. Olha que não era má ideia. Se depois o escreveres muito bem no teu computador, posso pedir a um amigo meu que o encaderne com cabedal e talvez com o teu nome em doirado, que é que achas?
Por uma curiosa coincidência, quando o Ed me trouxe a tua carta, eu estava a escavar os alicerces, após dias de desbastar a vegetação como um explorador num filme sobre a selva, e comecei a encontrar coisas quase imediatamente um boião, uns quantos garfos de prata, as capas quase todas podres de alguns livros e vários bocados de metal, tudo do teu tio-bisavô, o que me fez sentir como uma arqueóloga. Limpei e pus tudo de parte para tu examinares.
E isso traz-me à segunda parte da tua carta. É claro que adorava que viesses cá passar duas semanas em Junho ou Julho, mas não é tão fácil como o que ambas queremos. Que pensam os teus pais sobre o assunto? Quando falares com eles (na carta, não dizes se já falaste), deixa a tua mãe ler esta carta, para ela saber qual é a minha reacção. E também mando uma carta para tu lhe entregares.
Mas, para dizer a verdade, minha querida, será melhor pensares bem se queres realmente fazer uma viagem até à ilha neste momento. Isto não é um acampamento de Verão, percebes? Eu durmo numa cama de campanha dura, como comida sem graça, trabalho longas horas em tarefas pesadas e sujas. Viste a minha latrina continuo sem autoclismo e sem um duche como deve ser. Tenho de aquecer água no fogão e nem sequer tento manter-me limpa. Há ratos e insectos por todo o lado (e mais haverá a partir de Junho). Não tenho barco, de maneira que estou aqui presa. Gostava de dizer que posso tirar uma semana para dar passeios contigo, fazer piqueniques e nadar, mas sei que isso não vai ser possível e, considerando o estado selvagem da ilha, nem sequer posso dizer que serias livre de andar por onde quisesses. Além de tudo, não podias trazer o Saltitão porque as autoridades não querem cães a correr por aí e a incomodar as aves nos ninhos.
Talvez fosse melhor pensarmos no próximo Verão, quando a casa estiver pronta e o meu trabalho for apenas tratar dos tomateiros. Nessa altura, até já tenho um barco, com certeza. Ou nas férias do Natal, o que te permitia utilizar a viagem para a parte do oitavo ano do projecto. Mas a decisão é tua. Pensa em tudo o que te digo, fala com os teus pais, eles que leiam as cartas, e depois diz-me qualquer coisa.
Muitos beijinhos da vovó.
P.S.: Mando também dois rolos de fotografias que tirei aqui na ilha, para veres se podes usar algumas no projecto. Manda fazer duas cópias de cada e fica com uma para ti.
18 de Abril
Querida Tâmara,
Pedi à Petra que te mostrasse a carta que lhe escrevi, para não ter de a copiar. Como vês, tentei desencorajá-la com realismo a vida aqui não é de férias, e ela não está habituada a viver com tantas dificuldades. Não que não adorasse tê-la cá, mas não me parece que a ideia te agrade muito.
Se o factor decisivo for a comunicação numa emergência, posso descobrir se os telemóveis funcionam na ilha e, se assim for, deixá-la trazer um se ela concordar que é só para uma emergência. Se tens outras objecções específicas que possamos resolver, diz-me. Se as objecções forem mais gerais, bom, acho que consigo entender. Talvez no futuro seja possível tornar a discutir o assunto.
Tenho passado muitas horas calmas aqui, a pensar em ti e em tudo aquilo em que falhei como mãe contigo. Espero que não seja demasiado tarde para recomeçarmos. Uma vez mais.
Gosto muito de ti, Tâmara. Mãe.
Rae dobrou as duas cartas, deixando o grosso envelope por selar. Não tinha bem a certeza do que tinha escrito, mas estava demasiado cansada para pensar mais nisso nessa noite. No dia seguinte lia-as de novo, antes de entregar tudo a Ed na terça-feira.
Tinha sido um dia inquietante. A sensação de estar com um pé dentro das águas do sono persistira, bem como a recordação de olhar lá para baixo para a praia e ver o homem, a mulher e a criança a materializarem-se do nevoeiro. Não conseguira terminar a escavação, porque primeiro a roda do carrinho tinha saltado e levara um bom bocado a encontrar uma porca para substituir a velha, e depois a rampa desfizera-se e fora preciso fazer outra. Mas sobretudo sentira-se letárgica e sobressaltada, uma sensação que tinha uma preocupante semelhança com o começo dum dos seus ciclos depressivos, embora não fosse igual. Não havia vozes, por exemplo.
Por enquanto.
Contudo, mesmo estando certa de estar a começar a afundar-se, pouco podia fazer, a não ser esperar e, entretanto, trabalhar.
No dia seguinte, devia chegar à parede do fundo.
Então, porque teria ela concordado em passar o meio do dia a ser levada dum lado para outro por aquela rapariga?
Rae encostou-se na cadeira de madeira e tirou as mãos da cara, poisando os olhos no diário. Puxou-o para diante de si e abriu-o relutantemente na última coisa que escrevera, palavras loucas rabiscadas como as listas que costumava espalhar por toda a casa e com que enchera a mente nas semanas a seguir ao enterro. Centenas delas. Tâmara encarregara-se de limpar a casa enquanto a mãe estava no hospital, e ficara sem saber o que fazer com elas. Por fim, acabara por metê-las em dois sacos de supermercado, a fim de deitar fora ou guardar, conforme Rae decidisse.
Aquelas folhas de papel escrevinhadas, aos montes por toda a casa quando o xerife Escobar a fora procurar, eram um evidente sinal de problema, como as folhas caídas eram de tempestade, uma última tentativa para impor ordem no seu processo mental em decomposição, como se as definições de palavras e a relação entre objectos e acontecimentos pudessem devolver o significado aos acontecimentos da sua vida.
Podia ter pensado que a estabilidade estava a voltar, ali na tranquilidade da ilha, mas na verdade encontrava-se apenas a um passo de se encolher a um canto a tremer. O que escrevera na véspera no diário provava-o claramente. Estendeu a mão para arrancar as páginas, mas parou. Honestidade psiquiátrica, dissera ela, era o objectivo do diário, e a honestidade não se alcançava através da censura. Olhou para a lista de palavras, e arrancou as duas folhas.
Depois, dobrou-as ao meio e escondeu-as no fim do diário.
Uma boa hora antes da madrugada, Rae já se levantara e fazia café, impaciente para acabar a limpeza dos alicerces. Tinha dormido um sono agitado, mas sentia-se descansada ou, pelo menos, pronta a começar.
No entanto, não valia a pena cavar e escolher entulho que não conseguia ver. Quando o café ficou pronto, levou-o para o promontório, como se quisesse apressar o erguer do Sol.
Fizera aquilo tantas vezes que estava a tornar-se um ritual, com os diversos elementos a saírem da claridade crepuscular como os instrumentos duma orquestra a afinar-se.
Primeiro, as ondas. Rae passara horas suficientes com elas para dizer, só pelo ouvido, em que direcção se movia a maré. Nessa manhã, a água ia avançando para as rochas secas, de maneira que a maré estava a subir. Depois, as sereias de nevoeiro embora nessa manhã o céu estivesse limpo, sem neblina que obscurecesse os faróis ou as estrelas, que se iam apagando, até que só ficassem as mais persistentes. O ar parecia mudar, preparando-se para saudar o dia; as primeiras aves agitavam-se nos ramos, e os humanos que se levantavam cedo também. Começava a reconhecer os diversos motores da vizinhança: o ruidoso motor que levava o seu dono em direcção a Roche Harbor e de volta a casa; um pequeno e tímido fora-de-borda que só se ouvia na maré baixa; um hidroplano que passava regularmente; o grande ferry para Sidney. Ouvia o Rainha das Orcas nas águas próximas de vez em quando, geralmente à distância e, embora não fosse capaz de dizer o que o distinguia, ficava de orelha à coca sempre que o espião pago pela filha, embora simpático, passava pela ilha.
Não ouviu motores nessa manhã, contudo, apenas uma gradual e agradável confusão de cheiros e sons que a animaram, até que surgiu o crescendo com a aparição do Sol.
O nascer do Sol era um pouco depois das seis. Às nove, Rae alcançou a parede das traseiras dos alicerces, onde fez um par de interessantes descobertas que não teve tempo de investigar, ao ouvir um novo motor penetrar-lhe a consciência. Ergueu-se e viu uma lancha dos Serviços Florestais a entrar na enseada, com um vulto pequeno de cabeleira flamejante ao leme. Rae olhou para si própria, com a roupa encharcada em suor toda suja de lama seca, e suspirou. Depois, olhou para o objecto que tinha na mão e decidiu que, já que a primeira vez que vira a mulher empunhava uma arma, talvez dessa vez fosse melhor aparecer de mãos vazias. Deixou cair o pedaço de metal corroído que fora a pistola do tio-avô Desmond, tapou-o com terra e saiu dos alicerces.
Na tenda, lavou as mãos e observou a chegada de Nikki Walls. Vinha fardada e parecia um duende com arma e cinturão, fazendo-a pensar como teria aquela criatura encantadora conseguido continuar mãe solteira por mais de duas semanas. Era talvez demasiado extravagante para uma beleza convencional e o seu extraordinário aspecto talvez a prejudicasse, sendo os homens uns animais conservadores mas também era impecável, inteligente e cheia de energia. Rae sentiu-se de repente velha e desajeitada, como uma coisa que deveria esconder-se debaixo duma pedra.
Bom dia! exclamou Nikki, estendendo-lhe um saco de papel. Trouxe-lhe o livro das aves que prometi, e também umas maçãs. São do ano passado, claro, mas têm estado guardadas no frigorífico e ainda são boas. Espero que goste da qualidade. Conhecendo o Ed, desconfio que não lhe traz muita fruta. Poisou o saco na mesa de Rae, observando rapidamente todos os cantos do acampamento. Eu sei que vim um bocadinho cedo, mas comecei a pensar que não sabia bem a profundidade da sua enseada e achei melhor aproveitar a maré. Detestava ficar presa. Não parece bem uma guarda-florestal dar barraca. A cara de Nikki, em forma de coração, acabava num queixo pontiagudo sob uma boca ligeiramente secreta que irradiava uma inocente malandrice quando sorria, como fez nesse momento.
Provavelmente fez bem concordou Rae. Tenho tempo para mudar de roupa? Queria tirar a roupa de trabalho, mas Deus a livrasse de se demorar tanto que a curiosa ruiva ficasse presa na ilha até que a maré seguinte lhe libertasse a lancha.
Tem, claro. A volta à ilha não leva mais duma hora.
Rae entrou na tenda para atirar a roupa imunda para um canto e trocá-la por alguma coisa uns quantos graus menos nojenta. Quando saiu, encontrou Nikki a esfregar cuidadosamente as maçãs à torneira, com uma das caixas de plástico de Rae pronta a recebê-las, e não um livro, mas três (aves, árvores e vida selvagem do arquipélago de San Juan) empilhados ao lado. Não conseguia perceber se a rapariga era cronicamente amiga de ajudar ou se estava a expressar a sua admiração pela dona da ilha. Fosse o que fosse, começava a enervá-la. Talvez tivesse sido melhor pedir a Ed que lhe comprasse um livro sobre pássaros.
Contudo, tinha de admitir que as maçãs tinham bom aspecto na caixa azul; mais do que isso, pareciam apetitosas, lisas e verdes, a brilhar como gotas de água. Pegou numa antes de se dirigir ao barco, e enterrou-lhe os dentes. Era quase demasiado azeda e rija, como se tivesse sido acabada de apanhar, e fez-lhe sentir a boca viva. Há quanto tempo não provava uma coisa de sabor tão intenso? Há quanto tempo, já agora, é que provava fosse o que fosse?
Trepou para a lancha atrás de Nikki, com a atenção quase toda na maçã. Assim que saíram da enseada propriamente dita, a rapariga acelerou e partiram rapidamente em direcção ao mar. Rae chupou o resto do sumo do caroço e deitou-o à água.
Obrigada. Era muito boa agradeceu.
Nikki limitou-se a fazer um rasgado sorriso, equilibrando-se de pé, convidando abertamente a sua passageira a fazer troça do orgulho que sentia nas qualidades de marinheira. E eram consideráveis Rae sentia-o, mesmo que se limitassem a avançar velozmente em linha recta para longe da ilha. A rapariga estava perfeitamente à vontade, como se fosse uma extensão do barco, e parecia francamente destemida.
Porque é que se tornou guarda-florestal? perguntou Rae, gritando para se sobrepor ao barulho do motor.
Nikki abrandou ligeiramente e colocou o barco de modo a avançarem paralelamente à costa da ilha antes de responder:
Basicamente, pelo ar puro. Fico doida se não estou ao ar livre durante muito tempo. Nasci aqui, fui para Los Angeles estudar, depois voltei quando o Caleb era pequenino e jurei que nunca mais vivia numa cidade. Já fui colocada em vários sítios, mas consegui este posto há um ano e meio. Com o Caleb pequeno e a precisar da minha família, aleguei dificuldades. E agora tento não os deixar perceber como me sinto feliz aqui, para não me mandarem para Yakima ou Olympia, ou me porem a trabalhar com computadores num lado qualquer. Que é que aconteceu ao seu braço?
Rae baixou os olhos para o braço, protegido dos movimentos da lancha, com a manga a deixar o pulso à mostra. Não tinham sido as três cicatrizes do lado de dentro do pulso que ela vira, mas a grande cicatriz cirúrgica no braço. Um dos cirurgiões tinha sugerido uma operação plástica para a disfarçar, a essa e às outras, mas na altura uma pele imaculada não era uma das prioridades de Rae.
Parti-o há um ano e meio, e tiveram de me pôr uma placa. Não que isso fosse da conta dela. Mas depois lembrou-se de que o xerife lhe contara que a rapariga casara com um homem violento. Talvez aquilo fosse a sua maneira de perguntar se Rae também pertencia à confraria. Não, pensou Rae, vamos mas é cortar o mal pela raiz. Onde é que me leva?
É só um círculo. O Jerry disse que você não sabia o que torna a sua ilha tão difícil de aproximar. Está a ver aquela ondulação? E apontou para uma mancha de água agitada entre muitas, aquela defronte dum grupo de árvores nuas.
São rochas?
Um recife perigoso. Fantástico para os mergulhadores, mas não para quem queira aproximar-se da ilha. Dá a volta à ponta e depois continua. Os mergulhadores fundeiam ao largo e nunca tentam atravessá-lo a nado. Pelo menos, não mais que uma vez. E, geralmente, ficam aí uma ou duas horas. A corrente torna-se forte quando a maré começa a mudar... e é capaz de arrancar uma âncora leve do fundo.
Para alívio da sua passageira, Nikki nunca se aproximou do recife, e depressa avistaram a outra barreira que o xerife mencionara, uma parede de rocha que caía no mar como um muro de retenção duma auto-estrada. O poderoso motor do barco trabalhava a baixa potência e fazia-o avançar contra a força da água, que recuava. Nikki ia apontando vários pontos como se fosse dona daquilo tudo. Viram uma águia-careca empoleirada numa árvore quase sem folhas por cima do penhasco, avistada primeiro por Nikki assim que deram a volta, embora Rae precisasse de algum tempo para distinguir a cabeça branca da ave de encontro à folhagem, mesmo com os enormes binóculos da rapariga. Por seu lado, Rae descobriu a árvore atingida por um raio por cima da nascente, e mostrou-a a Nikki, como sua contribuição para o passeio.
A face nua do penhasco acabara abruptamente numa ponta arborizada que entrava na água como um braço dobrado, uma versão em miniatura do promontório do acampamento, mas aquele estava coberto por enormes cedros de ramos baixos que tocavam na água. À direita, uma delicada queda-da-água marcava a entrada da água da nascente no mar. Diante do braço arborizado, Nikki apontou outro recife submerso à espera de incautos mergulhadores e cascos de embarcações, passando bem ao largo. Quando voltaram para seguir a costa norte da ilha, o sol passou das costas delas para o lado direito, e Rae fechou os olhos e ergueu o rosto para o calor.
Eu vi a exposição disse Nikki de repente, fazendo-a abrir os olhos com relutância e voltar a cabeça. A exposição itinerante há dois anos? Mulheres a trabalhar madeira, ou qualquer coisa assim.
Mulheres em Madeira. No Verão, antes do fim de tudo.
É isso. A sua peça grande pôs-me doida. A pequena também, mas sobretudo a figura. A Corredora, não era?
Rae teve de sorrir, pela maneira como ela dizia aquilo. A peça levara-lhe quase um ano a fazer e, no fim, tornara-se muito mais do que a figura de madeira com sapatos de corrida que imaginara originalmente. A sua apresentação na exposição tinha provocado acesas discussões e protestos das pessoas que a viam como demasiado perto da arte conceptual, mesmo com elementos da chamada performance art para uma exposição digna de técnicas de carpintaria.
A figura era duma mulher ligeiramente maior do que a realidade, de calções de corredora e um corpete elástico. Era o retrato da avó de Rae, mulher do tirano William, que morrera quando ela tinha seis anos, menos de um ano depois de Rae e o pai viúvo terem regressado à mansão da família em Boston, onde ela crescera. Rae fizera a avó em madeira tão leve como ela fora em vida, bétula e pinho branco-amarelado, com olhos de madrepérola.
O verdadeiro nome da peça Corredora de Renda tanto quanto a maioria das pessoas julgava, vinha do arco por cima da cabeça da corredora, uma intrincada fita de mesa de renda que pertencera à avó. Só a família e os amigos íntimos sabiam que a renda e o modelo estavam relacionados e aquilo não tinha sido ali colocado por acaso, porque o facto não fora mencionado no material de promoção da exposição. Rae endurecera a renda até à rigidez com uma resina plástica e curvara-a sobre uma armação, de maneira que ficara a parecer um arco de jardim ou uma meta. O elemento-chave da peça residia no facto de a mulher ser composta totalmente de gavetas, grandes e pequenas, de inúmeros feitios e ângulos. Com todos os compartimentos no seu lugar, era simplesmente a figura duma corredora com um largo arco de renda sobre a parte superior do corpo. Com as gavetas todas tiradas, ela continuava a mesma vista de lado, um perfil a correr sob um arco de renda, mas de frente ficava vazia, uma presença fantasmagórica de delicada renda de madeira. Algumas das gavetas tinham objectos dentro, embutidos ou presos ou soltos mais uma vez, vários com significado só para Rae, por terem pertencido à própria avó ou à mãe. Todos os dias a galeria transformava a mulher de madeira pelo menos uma vez, retirando e repondo as gavetas e mudando os objectos que continham. Uma pessoa podia ver a Corredora de Renda uma dúzia de vezes e nunca encontrar a mesma figura duas vezes.
Fui vê-la quatro vezes disse Nikki. Fui de carro até Seattle duas vezes, e até comprei o catálogo. Eu... bem, eu estou mesmo contente por ter vindo para cá. E, se puder fazer alguma coisa para a ajudar, é só dizer. Se faz favor.
Deus do céu, a mulher é mesmo uma admiradora, pensou Rae. E agradeceu-lhe.
O canto norte da ilha tinha uma face rochosa menos abrupta do que o lado ocidental, com grandes manchas de guano a testemunhar a sua longa história como local de nidificação para uma dúzia de variedades de aves. Nikki passou-lhe de novo os binóculos e foi descrevendo cada tipo de ninho, ocupante e respectivos hábitos. Os Serviços Florestais tinham participado numa colocação de anilhas na Primavera anterior, e Nikki fora a primeira a oferecer-se como voluntária.
Espero que possamos continuar disse ela abruptamente a Rae. Quero dizer, a ilha é sua, por mais que os meus patrões digam. Eu vi o acordo legal, e a senhora tem todo o direito de nos expulsar. Mas espero que não o faça, porque precisamos de todas as reservas naturais, todos os santuários que pudermos arranjar. Para as aves, quer dizer. A guarda-florestal teve a delicadeza de se mostrar pouco à vontade, consciente de que a mão amigável que estendia podia perfeitamente ser vista como um aperto de mão dum negócio.
Não faço tenções de expulsar seja quem for, Nikki, embora o meu advogado tivesse um ataque se me ouvisse dizer uma coisa destas. Claro que não há santuários suficientes neste mundo e eu detestava tirar um deles às aves.
Isso é fantástico, sobretudo porque há imensa vida selvagem interessante aqui na ilha: uma grande colónia de urias em Junho, lontras de rio e coisas assim. Já viu o ninho das águias?
Vi um, quando estive cá há uns anos. Mas não sei se podia ser o mesmo.
Claro que é. As águias usam o mesmo ninho durante anos e anos. O seu estava cá quando eu era uma miúda, e devia ser dos pais da águia de agora. Lá está ele, vê?
Estavam a aproximar-se da encosta ocidental do monte Desmond, que se elevava uns trezentos metros quase a pique do mar. Aqui e ali, as árvores tinham tentado agarrar-se, e num dos troncos mortos via-se um grande emaranhado de paus. Nikki observou-o, esperançada, embora não se avistasse qualquer actividade. Um pouco mais adiante, o cimo careca permitiu a Rae oferecer informação, porque Nikki nunca ouvira dizer que lá existia uma cabana, em ruínas ou não. A rapariga achou que devia ter sido uma tocaia de passarinheiro e não uma vigia das forças armadas, e Rae não discutiu, apesar de se lembrar de que a construção era demasiado sólida para ser trabalho dum observador de pássaros ocasional.
A três quartos do perímetro da ilha, os rochedos eram substituídos por floresta. Mesmo antes das árvores, outra nascente deitava a sua água para o mar, escurecendo a rocha e dando origem a uma vigorosa vegetação. Rae pediu a Nikki que parasse para ela observar aquilo com os binóculos, mas acabou por decidir que a quantidade de água que manchava a rocha era muito menor do que a da sua nascente.
É pena comentou Nikki. Era mais perto para vir buscar a água.
Era o que eu estava a pensar concordou Rae. E a água até começou a escavar uma gruta aqui.
Provavelmente amoleceu o arenito o suficiente para depois a água da chuva continuar o trabalho. Aquela camada de rocha aparece aqui e ali e traz muitas vezes consigo água e pequenas grutas. Arenito mole entre pedra mais dura, está a ver? É para onde vai a água. Acelerou de novo e, daí a uns minutos, avistaram a tenda de Rae.
A maré ainda estava a descer, mas Nikki conduziu a lancha cuidadosamente até à tosca doca e manteve-a com a perícia casual duma vida inteira na água, enquanto acabavam a conversa.
Encomendei esta manhã um aviso oficial do governo: "Pirem-se. Os intrusos serão lançados às águias", ou coisa do género disse Nikki a Rae.
Agradeço.
Vai agradecer, vai, assim que chegar o Verão retorquiu a rapariga, olhando para as torres de pedra. Depois, acrescentou de repente: Nem sei explicar como é fantástico ver a casa reconstruída! Sabe, quando eu era criança, costumávamos pensar que ela era assombrada. E os miúdos agora ainda pensam o mesmo. Mas é difícil imaginar como as torres se unem...
Tenho um guia, uma fotografia, quero dizer explicou Rae, enfrentando os olhos verdes da rapariga.
Palavra? Uma fotografia da Loucura? Ai, adorava vê-la!
Está na árvore onde fiz a bancada. Tem tempo agora, ou prefere ir-se embora antes que a maré baixe mais?
Nikki saltou praticamente para a doca flutuante. Rae só a apanhou junto do banco, onde a rapariga espreitava para a fotografia pregada no tronco. Rae tirou-a de lá e entregou-lha.
Quando falou em "guia", pensei que se referia a alguém que se lembrasse da casa comentou Nikki.
Não, é só uma fotografia. Se não a tivesse, não fazia ideia de como começar admitiu Rae, embora achasse que o tio-avô Desmond podia ser considerado um guia, afinal de contas.
Sabe, eu pensava que tinha visto todas as fotografias existentes das ilhas, mas esta nunca.
É um instantâneo de família, que eu mandei ampliar. Este é o Desmond Newborn.
Seu tio.
Tio-avô corrigiu Rae. O irmão mais novo do meu avô.
Ah, claro. Deve ter sido tirada quando? Nos anos trinta?
Vinte e tal, por aí. Pouco tempo antes de ele desaparecer, calculo eu.
Pensava que tinha morrido.
Acabou por morrer, certamente, mas não por estes lados. A última vez que se soube alguma coisa dele foi no fim da década de vinte. A partir daí, ninguém sabe o que lhe aconteceu.
Mas houve qualquer coisa de estranho no desaparecimento dele, não houve? Não consigo lembrar-me, mas acho que as pessoas costumavam falar de que assim que ele acabou de construir a casa, ela foi destruída por um incêndio e ele morreu. O que aumentou o mistério deste sítio. Segundo o que tenho encontrado, concordo que deve ter ardido pouco tempo depois de ele a acabar. E, considerando o tempo que levou, não admira que vê-la arder o tenha feito afastar-se. Sei que me desolava, se me acontecesse. O que era dizer pouco. Como seria ver o trabalho de anos desaparecer em chamas? Mais ou menos o mesmo que ver um marido e uma filha serem consumidos pelas chamas dum crematório?
O espírito curioso de Nikki matutava ainda com o problema.
Mas ele deve ter morrido. A ilha é um santuário desde mil novecentos e vinte e oito, e sempre ouvi dizer que tinha vindo parar aos Serviços Florestais num testamento.
Foi o meu avô que a entregou ao Estado, primeiro informalmente e depois, quando pensou que o irmão tinha provavelmente morrido, permanentemente. A última coisa que alguém sabe é que o Desmond escreveu ao irmão, pai do meu pai, mesmo antes da queda da bolsa em mil novecentos e vinte e nove, do Arizona ou do Novo México, não me lembro bem.
Um enigma comentou Nikki, devolvendo relutantemente a fotografia e vendo como Rae tornava a pendurá-la na árvore, antes de se voltar para a doca, com a cabeça ruiva mal chegando ao ombro de Rae. Mas é uma casa espantosa. A Sociedade de História havia de gostar de ter uma cópia dessa fotografia.
O negativo ficou na Califórnia. Vou ver o que posso fazer.
Quanto tempo acha que vai levar a reconstruí-la?
Não tanto como ele a construí-la. A maior parte do trabalho foi na pedra, o que ainda está em muito bom estado. A casa propriamente dita é bastante fácil. Vai estar em bruto, claro, sem os acabamentos, mas não vou ter problema em vê-la fechada antes do Inverno.
Então está a pensar em ficar aqui?
Estou, sim.
O tempo em Janeiro não é tão ameno como agora, nem pouco mais ou menos comentou Nikki.
Bom, veremos disse Rae, e depois agradeceu-lhe a volta de barco.
O prazer foi meu declarou a rapariga, apertando a mão estendida de Rae e afastando-se em passo ligeiro. Vendo-a desviar-se habilmente da doca, Rae perguntou a si própria se, na escola, não lhe chamariam "Abelhuda".
Carta de Rae para a neta
23 de Abril
Minha querida Petra,
Encontrei uma coisa muito interessante para incluíres no teu relatório, enterrada junto dos alicerces da casa do tio Desmond.
Contei-te que tenho encontrado objectos dele no lixo debaixo da casa tudo material não inflamável, claro (e inquebrável, impossível de derreter e que não enferruja). Nada de tijolos de ouro ou sacos de dobrões, infelizmente, embora tenha encontrado uma mão-cheia de moedas, umas panelas e pratos, uma faca de caça com o cabo de osso enegrecido, algumas peças de xadrez (também de osso, julgo eu, embora agora não se distingam as pretas das brancas), uma corrente com medalhões de prata (também completamente pretos!) que pode ser uma daquelas coisas decorativas que os homens usam nos chapéus de vaqueiro, um carreto de pesca (e todos os anzóis, felizmente metidos no que parece uma antiga caixa de rebuçados para a tosse), uma pistola completamente derretida e enferrujada (sem balas, felizmente pois julgo que ficam muito instáveis com os anos) e uma data de outras tralhas que não consigo identificar.
E lá estava eu, a retirar a última terra do chão de pedra dos alicerces, quando reparei num buraco mais ou menos do tamanho da minha mão fechada, junto à parede de trás. Foi a primeira brecha que encontrei no trabalho do tio Desmond, e tem o tamanho certo para deixar entrar ratos e outras criaturas indesejáveis para debaixo da casa, de maneira que dobrei os meus joelhos enferrujados para ver melhor. E descobri que não é um buraco donde caiu uma pedra, mas sim uma abertura no meio duma pedra do tamanho duma bola de futebol.
O tio-avô Desmond encontrou um almofariz de pedra, do tipo do que os nativos americanos usavam para esmagar nozes e coisas assim, e incorporou-o nos alicerces da casa. Diria que, para ele, não passava de mais uma pedra de tamanho conveniente, se não fosse pela sua colocação mesmo no meio da parede traseira, onde fica a lareira. Ninguém a não ser ele e agora eu a veria, mas acho que deve tê-la encontrado aqui na ilha uma descoberta arqueológica, como eu tenho feito com as coisas dele e a colocou ali deliberadamente. Um pedaço de simbolismo pessoal, ligar a casa ao povo que aqui esteve antes.
Lindo, não achas?
Infelizmente, estará de novo debaixo das tábuas do chão quando cá voltares, mas vou tirar umas fotografias para ti. Já tenho outro rolo quase no fim, e mando-o pelo Ed nesta terça-feira ou na próxima. Também já quase acabei o chão e espero que o inspector possa vir cá brevemente para aprovar os alicerces. Faz figas!
Espero que a pata da Mandy esteja melhor. Os cavalos estão sempre a meter pedras nos cascos, não estão?
Beijinhos da vovó.
Porque não teria ela contado a Petra (e, através dela, a Tâmara e Don) toda a história daquele almofariz prestes a ficar novamente escondido nos alicerces? Afinal de contas, tinha-lhe contado da pistola, sabendo que isso podia criar um infeliz elo subconsciente entre a ilha e violência no espírito dos pais da garota apesar de ter tido o cuidado de não descrever o seu aspecto ainda sinistro, cheia de cicatrizes como um velho soldado e absolutamente mortífera. Mas o conteúdo do almofariz era uma coisa completamente diferente. Rae não sabia explicar porque o achava perturbador, mas sabia que não queria Petra a mexer naquilo. Se ela viesse, teria de a desencorajar de explorar o espaço debaixo do soalho, pregando a porta de acesso enquanto ela lá estivesse, por exemplo, ou pelo menos cobrindo-a com uma manta.
Dentro do buraco do almofariz, protegidos do fogo e do entulho e também da poeira e das cinzas, Rae encontrara dois objectos, lado a lado: uma ponta de lança de pedra, tão afiada como no dia em que fora talhada, e uma figurinha de madeira de um homem do tamanho dum polegar.
Era apenas um homem sem pormenores faciais, infelizmente, já que a habilidade manual de Desmond não incluía a representação artística da forma humana. Ou talvez a sua intenção fosse a simplicidade ou mesmo a crueza. Fosse como fosse, um homem completamente vestido até ao chapéu. A imaginação podia identificar a aba do chapéu da figura com o que Desmond usava na fotografia, mas a cara podia ser a dum homem barbeado qualquer. Ou duma mulher, já agora.
A ponta de lança é que a perturbava. Que significaria? Tê-la-ia Desmond encontrado um dia e colocado depois nos alicerces da casa como lembrança dos anteriores habitantes da ilha? Ou haveria um significado mais sinistro, mais de totem, um talismã mortal de guerreiro enterrado debaixo da casa para proteger o seu habitante? As lanças pareciam mais armas de guerra do que de caça, e um rápido olhar ao mapa do condado bastava para revelar um passado sangrento, com nomes de locais como ilha da Vítima e baía do Massacre. Teria um homem matado outro com aquela pedra afiada que nem uma navalha, ali, na pacífica ilha da Loucura?
De momento, a ponta de lança ia ficar onde a tinha encontrado. Nessa noite, sentada junto da fogueira, revirou a pequena figura nas mãos, aprendendo a conhecê-la com os seus dedos hábeis. O primeiro impulso fora talhar a sua própria figura e colocá-la ao lado da do homenzinho de chapéu, nas profundezas dos alicerces. Contudo, a ideia das duas figuras deitadas pertinho uma da outra através dos anos, mesmo sem a mortífera lâmina de pedra a vigiá-las, provocou-lhe um estremecimento mais identificável de desconforto: incesto. Desmond Newborn podia ser tio do pai, mas toda a vida tinha pensado nele como no irmão que nunca tivera, um gémeo fantasma, a sussurrar debaixo da roupa da cama, os dois contra o mundo. Meses, anos mais tarde, sentada no conforto da sua sala diante da lareira de Desmond e rodeada pelo subtil labor das suas próprias mãos, sabendo que tinha debaixo dos pés um macho de madeira deitado junto da sua companheira de madeira... Parecia-se demasiado com um ritual de fertilidade. Se a figura fosse barbuda, sem chapéu e com óculos, talvez pudesse pensar nela como o seu marido, mas não, tratava-se inequivocamente de Desmond Newborn.
Sentou-se, com a figurinha nas mãos e os dedos entrelaçados de modo que o chapéu encaixava no ponto de encontro dos polegares e as botas na extremidade dos dedos mínimos. Bem, Desmond, disse ela, tenho de fazer com que pareçamos irmãos ou sócios. Com certeza que a criadora da Corredora de Renda tinha habilidade suficiente para isso.
Assim, nas noites seguintes, depois de passar as manhãs a limpar as pedras dos alicerces com uma escova de arame e de remendar os poucos sítios em que o cimento de Desmond falhara, e depois as tardes a cavar na colina para a instalação do cano de plástico, Rae sentou-se junto à fogueira e foi fazendo o seu auto-retrato em madeira. Decidiu-se pela madeira da árvore da clareira em vez do cedro de Desmond, por ser mais dura e mais fácil para talhar os pormenores, mas seguiu o esquema, fazendo a figurinha do mesmo tamanho, com os ombros da mesma largura e a mesma curva nas pernas com calças. Quando ficou satisfeita com a companheira de Desmond, esculpiu uma base de cedro, para que os dois guardiões da sua lareira pudessem ficar de pé, ombro com ombro, camaradas irmãos gémeos, mesmo sem vestígio de romance nos seus corações de madeira.
Acabou o trabalho sexta-feira já tarde, colocando minúsculos parafusos de latão através da base nos pés dos dois Newborns. Observou as feições, perguntando a si própria qual teria sido a ideia, primeiro de Desmond e depois dela, com aquele capricho. Antes de se deitar, levou as duas figuras interligadas para a bancada e deixou-as lá durante a noite, ao ar livre sob as estrelas, num sítio onde apanhariam o primeiro sol da manhã quando ele surgisse por entre os ramos da árvore, perfumados por imensas florezinhas brancas. De manhã, levantou-se e bebeu café, à espera de que as sombras se desviassem do par e, quando o sol deixou de o iluminar, soprou as pétalas que o cobriam e levou-o para os alicerces onde aparou a base até que ela encaixou perfeitamente no buraco do almofariz de pedra dos índios. Dum lado, um homem esculpido descuidadamente, e do outro a figura meticulosamente formada duma mulher com um martelo na anca e botas nos pés, e a camisa, reparou ela, subtilmente menos saliente do lado esquerdo do peito do tamanho duma unha exagerando os seus ferimentos mas psicologicamente verdadeira. E que pensaria o perspicaz arqueólogo do milénio seguinte desse pequeno pormenor, perguntou a si própria. Amazonas no arquipélago de San Juan?
Depois hesitou. Deixar a ponta de lança, com toda a sua ambiguidade curiosidade divertida ou ameaça de dois bicos ou retirá-la, substituindo-a pela sua imagem? Tirou-a cuidadosamente do almofariz. Era uma beleza, sem dúvida, cinzento-escura com esbatidos fios mais claros. E maravilhosamente talhada, por um artista e artífice, com os dois lados perfeitamente simétricos, e as ondulações do gume a pedir a passagem dum polegar, apesar do seu aspecto ameaçador. Ergueu-a pelo lado rombo, meio tentada a fazer sair umas gotas de sangue, com um obscuro instinto de sacrifício. Encostou-a ao pulso e viu que cobria as três cicatrizes. Carregou e sentiu a frescura da pedra na pele quente. Se a inclinasse ligeiramente, saía sangue. Se a inclinasse e depois a fizesse correr...
Rae afastou a lâmina antes que ela pudesse cortá-la. Daí a um momento, estendeu a mão e colocou-a dentro do almofariz. Por cima, introduziu as duas figurinhas de madeira, que assim ficavam entre ela e a lâmina afiada. Simbolismo exagerado, troçou, mas por vezes melhor do que demasiado subtil.
Sacudiu as mãos e endireitou-se. Com os espíritos protectores no seu lugar, finalmente chegara o momento de atacar a pilha de tábuas tapada com um oleado azul.
Uma coisa que Rae sabia desde o princípio era que ia construir a casa com madeira semelhante à que Desmond utilizara. A madeira cortada actualmente nunca tinha as medidas indicadas: "cinco por dez" era realmente quatro e meio por nove e meio; tudo bem, sobretudo quando era folheada, mas bastante menos sólida do que a medida total.
Rae construiria a casa com madeira com medida total. Custara-lhe uma pequena fortuna mandar cortar especialmente a madeira, mas o aspecto daquelas tábuas impressionantes era profundamente tranquilizador. A sua casa aguentaria os piores temporais.
Em parte, a decisão fora-lhe imposta desde que decidira utilizar os alicerces existentes, visto que uma madeira mais estreita exigiria um sem-fim de encaixes e aparadelas. Mas no fim, o que a decidira fora a satisfação sensual da madeira pesada.
Com a pedra dos alicerces limpa e forte, Rae colocou o cinto das ferramentas e retirou o oleado azul de cima da primeira pilha de material de construção, começando a acarretar a madeira para as vigas de sustentação das paredes.
Se estivesse a construir uma estrutura moderna, estudada por engenheiros e cheia de licenças, teria começado por fazer furos nas rochas para cavilhas destinadas a prender a parte de cima à de baixo. Se calhar, teria mesmo começado por arrasar completamente os alicerces ou escolhido outra localização, porque os furos seriam uma tarefa brutal, impossível sem ferramentas pesadas. Como aquilo ia ser o restauro dum edifício histórico, podia permitir-se o escrúpulo de fazer como Desmond. Ele tinha colocado as vigas de sustentação das paredes directamente nas pedras dos alicerces, criando um rebordo de pedra que não era contínuo mas amparava as vigas e as mantinha no sítio. Tendo passado a maior parte da sua vida adulta numa região de tremores de terra, Rae não se sentia totalmente satisfeita com aquilo, mas outros edifícios antigos continuavam de pé, portanto, também naquele aspecto iria confiar em Desmond.
Aplainou as vigas de cedro, como as do tio-avô, visto o cedro ser a madeira resistente ao apodrecimento oriunda da região. Precisaram de muito pouca afinação o comprimento, evidentemente, e uma ou outra aparadela em pontos que tocavam no rebordo de pedra mas Rae ficou absolutamente encantada quando a última encaixou com tanta facilidade como a primeira. Os alicerces estavam finalmente tapados com cedro, à excepção dos sítios em que as torres e a lareira interrompiam, tudo perfeitamente encaixado excepto na frente da casa. Ao contrário dos outros três lados, onde o rebordo de pedra que segurava a madeira era suficientemente estreito para ficar coberto pelo futuro revestimento exterior, à frente, as pedras saíam uns bons cinco centímetros das vigas de cedro. Não sabia se aquilo ia ou não ser um problema, embora lhe parecesse que iria deixar entrar água para debaixo da madeira, e nem o cedro devia ficar metido em água durante muito tempo. Ia ter de estudar melhor a fotografia, para ver qual tinha sido a ideia de Desmond. O cuidado dele com os pormenores não devia ter falhado num ponto tão crucial. Esperava ela.
Para além dessa ligeira dúvida, as vigas ali estavam limpas e reais ao sol da Primavera e Rae cantarolava ao descer a colina para ir buscar os barrotes para o chão.
A moderna construção de madeira era conhecida por "construção de balão", não só por causa da abertura do seu espaço interior, mas também pela velocidade com que a estrutura se levantava. Quem observa uma casa em construção e vê pouco mais do que uns alicerces de cimento, passa lá uma semana depois e já vê a casa de pé ou pelo menos o seu esqueleto. Um bom sopro forte, e o sonho dum arquitecto desfaz-se.
Uma mulher solitária de meia-idade talvez não erga uma casa de estrutura em madeira com a rapidez duma equipa de profissionais sindicalizados, mas, também, o projecto de Rae era bastante menos ambicioso. Encontrava-se na ilha havia três semanas e meia e ainda não tinha espetado um prego em madeira cortada, o que estava prestes a mudar espectacularmente.
Assim que levasse os malditos barrotes para cima.
Para além de Desmond ter trabalhado com a madeira de medida total habitual (para a época), o que estava registado no relatório original que ela mandara fazer pouco tempo depois da primeira visita à ilha com o marido e a filha, só ao chegar à parede traseira durante a demolição soubera exactamente qual a dimensão utilizada pelo seu predecessor a fotografia que tinha mostrava apenas o revestimento exterior. Rae elaborara o seu próprio projecto, baseada nos códigos de construção modernos, sabendo que a sua construção e a dele só iam concordar em alguns sítios.
Tinha sobrevivido o suficiente da parede traseira, do lado esquerdo da lareira de quem entrava pela porta da frente, para Rae ver que Desmond utilizara o mesmo tipo de barrotes do seu projecto, embora os deles fossem de cedro e os dela de abeto. Parecia haver qualquer coisa estranha na estrutura perto da lareira, marcas de tábuas extras, junto das vigas sob a parede, que Rae ainda não entendia, mas, como podia ser qualquer coisa desde um remendo até à necessidade de maior suporte debaixo dum piano, decidiu não se preocupar.
Umas poucas de tábuas de cada vez, acarretou a madeira até ao cimo da colina. A certa altura, resolveu verificar se precisaria de alguma alteração para unir o chão aos alicerces. Utilizando cuidadosamente o nível de bolha de ar, teve a confirmação: depois daqueles anos todos, os alicerces de pedra de Desmond estavam perfeitos. Poucas afinações havia a fazer e teria também mais altura dentro da casa terminada. A assobiar, mediu, marcou e colocou o primeiro barrote sobre o suporte de serrar, encostou-lhe a mão esquerda, passou os dentes do serrote suavemente pela marca de lápis e depois empurrou-os firmemente para dentro da madeira.
O aroma esquecido da serradura fresca fê-la trepidar, inesperado como uma súbita bofetada, tão evocativo como o cheiro do cabelo da filha ou da camisa do marido. Era um aroma que não evocava apenas a construção, a criatividade, um passo em direcção ao futuro: o que lhe veio à ideia foi sexo. O cedro que cortara antes não tivera tal efeito, mas as madeiras macias mais familiares, como a sequoia-do-Canada ou o abeto sempre lhe tinham parecido bastante eróticas, provocando-lhe um arrepio na espinha mesmo antes da tarde memorável, embora cheia de falhas de madeira, em que Alan descobrira a mania da nova esposa. Tinham emergido da oficina dela com o aspecto de dois moleiros ou bonecos de neve, com a serradura clara colada à pele suada e ao cabelo, e...
E se não prestasse mais atenção ao que estava a fazer, os barrotes não iam servir. Corrigiu o ângulo do serrote e concentrou-se na linha de corte, afastando as recordações.
As recordações, porém, uma vez despertas e reforçadas durante todo aquele dia pelo perturbador perfume da madeira serrada, não desapareceram. Tinha esquecido como o acto de construir era francamente sensual, sobretudo logo ao princípio. Alan acabara por desejar os dias em que um dos seus projectos passava finalmente do desenho para a colocação das mãos sobre a madeira. O alegre e perigoso momento da concepção transformava-a invariavelmente, tornando-a inquieta, perturbada e sensual.
Rae não tinha Alan. Até Ed só apareceria daí a quatro dias, altura em que felizmente o primeiro acesso já teria passado. Precisava de sublimar o desejo, aplicando-o à construção. Os duches frios pareciam ser bons, e Deus sabia que podia tomar os que quisesse.
Colocou um barrote e encaixou-o bem, tirou três pregos da bolsa à cintura e, pela primeira vez em sete décadas, soou na ilha da Loucura, por sobre as águas, um alegre martelar.
Com um intervalo para o almoço, Rae acabou de colocar os barrotes a meio da tarde, e a maior parte das pontes para os ligar estavam no seu lugar antes de o Sol se esconder por detrás das árvores e forçá-la a parar de trabalhar. Com os músculos a tremer e as costas a doer, mas imensamente satisfeita consigo própria, Rae arrastou-se para a tenda a fim de tirar o cinto das ferramentas e arrumar o serrote, caindo em seguida na cama. Daí a um bocado, conseguiu levantar-se, lavou as mãos e a cara, pôs arroz e feijão ao lume e serviu-se de vinho num dos elegantes copos da Dra. Hunt, para celebrar. Enquanto o jantar cozinhava, voltou lá acima para admirar o seu trabalho, como costumava fazer com móveis em construção na sua oficina.
O dia seguinte era o Primeiro de Maio, recordou, e ainda por cima noite de lua cheia. Os trabalhadores marchariam sob bandeiras vermelhas, as crianças apanhariam flores para pendurar nas portas dos vizinhos (alguém ainda faria isso?) e os Celtas acenderiam as suas fogueiras. Estava na ilha havia um ciclo lunar, desde o primeiro dia de Abril até ao primeiro de Maio, e podia exibir uma perfeita e aromática grelha de barrotes. As pedras chamuscadas da lareira e das torres pareciam mais do que nunca deslocadas, irregulares e escuras contra a madeira clara, como velhotes mirrados que tivessem aparecido acidentalmente num jardim-infantil. Num local de construção mais especializado, Rae teria alugado uma lavadora eléctrica para as pedras, mas ali tinha de esperar pela colocação do subsoalho, para poder tratar das pedras sem se empoleirar num escadote mal apoiado.
Não se preocupem disse ela dirigindo-se às pedras. Eu limpo-as daqui a uns dias.
A Lua surgiu, cheia de luz, erguendo-se com grande dignidade do mar, e com ela veio o barulho que ouvira na primeira noite na ilha e nunca mais desde então: tambores. Dessa vez, estava mais segura de si e do que a rodeava, e não pensou imediatamente tratar-se duma alucinação, embora continuasse aberta à possibilidade. Levou a tigela com o jantar para a extremidade do promontório a fim de ouvir, comendo sem saborear até ter a certeza de que algures ali perto os seus vizinhos tocavam tambores à lua cheia.
Estava fresco junto à água. Quando esvaziou a tigela, Rae voltou para o calor da fogueira, serviu-se de outro copo de vinho e apagou o candeeiro de petróleo, que atraía insectos. Sentou-se e bebeu, com os músculos cansados mas o sangue irrequieto e os olhos a percorrerem constantemente a paisagem irreal, enquanto a luz azul da Lua ia ficando mais forte. O batuque tão depressa soava como desaparecia. Tudo à sua volta era preto ou branco, as folhas brilhantes da grande árvore a contrastar com as escuras sombras por baixo delas. Morcegos voaram e um mocho piou. As ondas vinham e afastavam-se ritmicamente das pedras, brilhando ao luar, ao erguer-se de encontro à costa.
Rae pensou o que sentiria se levantasse a cara para a Lua e uivasse. Perguntou a si própria se quem tocava tambor na ilha vizinha a ouviria e, se assim fosse, que pensaria. Tentou imaginar o que diria a médica, mas não conseguiu. Poisou o copo e levantou-se para caminhar lentamente entre a tenda e a casa e de novo para o outro lado, sentindo crescer um anseio desconhecido, um desejo que dava a impressão de pêlos e cheirava a serradura. Sofria com ele, os ossos e a carne ansiavam por qualquer coisa, por contacto físico e quente. Queria ter ali Nikki para a levar a passear de barco ao luar, o xerife, Carmichael ou Ed De la torre para encher o ar com o som das suas vozes masculinas. Queria Bella para a abraçar, Alan para lhe agarrar o cabelo e a deitar ao chão. Não era um desejo de sexo ou não apenas um desejo de sexo mas uma coisa ainda mais poderosa, o desejo de ser envolvida por um par de braços fortes, de se enroscar nesse abraço, encostar a cabeça e ficar assim, aninhada num ombro, envolvida no calor do afecto, protecção e camaradagem doutro corpo e doutra alma humanos.
Queria Alan, e Alan desaparecera.
Era estranho, mas no hospital psiquiátrico era sempre pela filha que ela mais ansiava. O instinto maternal de envolver nos braços a filha perdida e de a confortar fora avassalador nessa altura, mas esse anseio parecia ter mirrado até se tornar insignificante por ser negado durante tanto tempo. Desde que chegara à ilha, a filha tinha-se apagado e o marido reavivado.
Bom, não podia ter qualquer dos dois. Considerando a sua idade e o seu estado, era possível que nunca mais viesse a conhecer essa espécie de amplexos, sexuais ou maternais, que apenas o breve contacto por dever da cara duma filha ou o furtivo abraço duma neta fossem os únicos a esperar para sempre.
Cada vez sentia mais vontade de uivar à Lua. Por um instante, pensou em tirar a arma ainda descarregada da caixa fechada para sentir a macieza e o poder do seu contacto na palma calejada da mão, acariciar a cara com o seu frio metal, segurá-la entre os seios. Em vez disso, desceu até à pequena enseada rochosa, despiu-se meticulosamente, da camisa até aos sapatos e ficou parada, vestida apenas com a fresca luz da Lua.
Atirou a cabeça para trás, afastou os braços do corpo e fechou os olhos, sentindo a energia reflectida que corria sobre o mar e a terra, a praia e o vulto ali de pé. O ar da noite tremia à sua volta, banhando-lhe a cara e o corpo, acariciando-lhe a pele exposta. A noite estava perfumada com algas e suor, as rochas debaixo dos pés duras e redondas, os ramos acima da cabeça imóveis e vigilantes. Os pêlos húmidos debaixo dos braços e entre as pernas de Rae pareciam encolher-se com o toque anormal do ar, e ela tremeu, encaminhando-se então pela segunda vez para a água que ondulava suavemente na enseada da ilha.
Quando a água gelada lhe chegou às coxas, Rae parou. Com os olhos ainda fechados com força, levou as mãos à cara, e a pele dura e sensível das pontas dos dedos começou a explorar. Como um cego que pretende conhecer alguém desconhecido, apalpou-se: o cabelo emaranhado e áspero (estou a precisar de cortar o cabelo) e a larga testa, as sobrancelhas arqueadas por cima das macias covas dos olhos, com as pálpebras a tremer como se estivesse a sonhar. A respiração quente do nariz, a seca elasticidade dos lábios, os fortes maxilares e o pescoço vulnerável, um redondo seio na mão direita e o pobre objecto atravessado por cicatrizes na esquerda, e para baixo.
Oh, Alan, murmurou sem som. Oh, oh, Alan...
Diário de Rae
2 de Maio
Não me lembro de ter sonhos tão estranhos antes. O facto de estar um ano inteiro sem sonhos de qualquer espécie por causa de tantos remédios talvez tenha alguma coisa a ver com isto como uma quimioterapia mental, a psico terapia química é capaz de fazer cair os sonhos duma pessoa. O meu subconsciente vai ter de crescer de novo e empurrar as fantasias para a superfície, umas engraçadas, outras assustadoras e outras ainda apenas estranhas.
Há uns tempos, tive um sonho muito real, mesmo antes de acordar, de que estava grávida, com uma barriga enorme e uns seios descomunais, e que um médico (incrivelmente parecido com a Nikki Walls disfarçada de homem, a propósito} me dizia que era um saudável bebé golfinho. Ao acordar, a primeira coisa em que pensei foi como ia adaptar o Berço que fiz para a Bella para poder conter água.
Depois, sonhei com homens a partir para a guerra, sombrios, cinzentos, enlameados, com polainas e capotes, de arma ao ombro, a marchar através duma paisagem desolada, passando por troncos de árvores fumegantes com abutres empoleirados, avançando às cegas pelo caminho numa precisão mecânica até à beira dum alto penhasco, donde caiam.! uma fila de cada vez, sem emitir um som. No fundo, os corpos empilhavam-se, como nas fotografias das sepulturas comuns, seres humanos transformados num monte de lenha. Depois desse, pouco consegui dormir.
Mas o sonho mais complicado até hoje foi o da noite passada, que nunca mais acabava, com milhares de figurantes, ou dúzias, pelo menos toda a gente que conheço ou encontrei parecia entrar nele numa altura ou noutra.
Muito antes de acordar já tinha esquecido a maior parte do sonho, mas uma cena ficou gravada.
Estava numa casa de toros de cedro, escura e cheia de fumo, mas fria mesmo com a lareira acesa. Toda a gente lá dentro excepto eu era homem, todos os homens da minha vida menos o avô. Nunca sonhei directamente com ele, embora o distinga confusamente junto aos limites da minha visão. Mas estava lá o meu pai e o meu tio Gavin (ainda mais parecido com a minha mãe do que era na realidade} e o meu primeiro marido e uns primos. O Vivian estava ao fundo, com o Alan ao lado.
"Estavam todos vestidos de índios, alguns até com capas para a chuva feitas de casca de árvore, e todos tinham máscaras de madeira, a maior parte das máscaras era parecida com as pessoas que as usavam o Alan parecia ele próprio, até aos óculos de aros de madeira excepto no caso de duas figuras no meio da enorme sala.
Estavam de costas para mim. Avancei para ver o que observavam e descobri que se inclinavam sobre o berço de cerejeira que fiz para a Bella. Estava lá deitado um bebé, uma menina acordada que olhava para eles. Não percebi quem era. Podia ser a Bella, a Petra ou mesmo a Tâmara, apesar de não serem parecidas umas com as outras quando eram pequeninas. A. única coisa que pude ver foi que era uma menina.
fui até ao outro lado do berço e olhei para os dois homens, mas as máscaras deles eram diferentes. Não se percebia quem eram, porque a madeira tinha sido esculpida como máscaras tradicionais, um corvo e um urso. Quando olharam para mim por cima do berço, assustaram-me com o brilho dos olhos. Tive vontade de pegar no bebé e protegê-lo, mas depois pensei que isso ainda podia fazer piorar a situação, que precisava era de desviar a atenção deles.
Por isso, pus uma máscara também e comecei a provocá-los, perguntando-lhes que raio queriam e quem diabo eram.
Eles ficaram ali a olhar para mim, até que um deles levantou a mão direita com a roca de prata antiga da Bella, e o outro levantou a mão esquerda com a cabeça do martelo enferrujado do Desmond que encontrei debaixo da casa. Percebi imediatamente que tinha de afastar o martelo do bebé.
Quem são vocês? gritei eu outra vez. "Então, eles tiraram as máscaras com as mãos livres e vi, em madeira, as feições do meu genro Don e do meu enteado Rory. Depois, eles tiraram as máscaras, e o Rory passou a ser o Don, e o Don o Rory. E repetiram a manobra, uma e outra vez.
Comecei a ficar aflita, sem perceber qual das figuras era o "Don. Se era o que tinha a roca na mão, não devia ter muito com que me preocupar, mas o Don com um martelo na mão era uma coisa muito diferente.
Continuaram a tirar máscaras e eu a tentar localizar o Don por baixo delas, e depois de repente o bebé desatou a chorar, e eu olhei para baixo e vi que a pilha de máscaras tiradas tinha enchido o berço de cerejeira até acima, e a criança estava completamente enterrada.
Acordei nesse momento, tão aterrada como se tivesse sonhado com um monstro.
Os sonhos contam-nos verdades, mas muitas vezes apenas um pequeno fragmento de verdade sob uma quantidade de disparates. O Don é a chave deste, mas que fragmento do Don? Ameaça ou Ladrão? £, se é uma ameaça, quem é que ele ameaça? A filha? A mulher? A Bela está fora do alcance dele ou será o meu pobre lado infantil feminino que está deitado naquele Berço, a ultima pessoa da família à sua mercê-
É irónico, pensando em todos os homens que dominaram a minha vida, que só tenha tido filhas, assim como uma neta. E, que as duas que estão vivas estejam de facto ali deitadas comigo dum lado e o Don Colins do outro.
A instalação dos canos para a água e do esgoto para o duche e o lava-loiça levou quase um dia. Tinha aprovada a construção duma pequena divisão ao lado da cabana para uma latrina fertilizante, um complicado mecanismo que no entanto simplificava consideravelmente as outras exigências sépticas.
A moldura e a porta para o espaço sob a casa levou uma manhã Depois, ficou pronta para a primeira inspecção, e a seguir podia começar a colocar o subsoalho.
O inspector apareceu na segunda-feira de manhã, como ela pedira na carta que tinha enviado por Ed na semana anterior. Havia qualquer coisa de infinitamente reconfortante num homem com um bloco de molas, a ameaça inerente ao mesmo tempo tangível e universal, portanto bem-vinda. Rae estava perfeitamente disposta a discutir com ele, e ficou desconcertada quando lhe apareceu um homem jovial a ficar careca, à beira da reforma, terrivelmente interessado em tudo mas demasiado apressado para fazer mais do que uma rápida passagem, e café talvez para a próxima, Mistress Newborn". Até o bloco era pouco ameaçador, a placa rígida de plástico azul-vivo com uma borboleta estampada atrás (um efeite da sua filha pequena, disse ele a Rae, envergonhado). Vagamente desapontada, aceitou a licença assinada e ficou a ver o barco do homem afastar-se. Depois, voltou para os alicerces oficialmente aprovados e desceu para verificar as duas figuras esculpidas dela própria e do tio-avô Desmond. Soprou de leve para as libertar duma ligeira camada de serradura, e afastou-se um pouco para agrafar lã de fibra de vidro por cima das cabeças delas.
Mais tábuas para transportar, dessa vez de vinte por dois centímetros e meio para o subsoalho. A maior parte era irregular e com muitos nós, o que ofendia a perfeição de Rae, apesar de ela saber perfeitamente que utilizar tábuas limpas e que encaixassem bem por terem sido secas num forno seria um desperdício tanto de dinheiro como de material.
No entanto, as suas tábuas ficariam bem, quer começassem por ser tortas ou não. Custava-lhe servir-se duma chave de fendas embora barata como força bruta para obrigar as tábuas a ficarem alinhadas antes de as martelar, mas fê-lo, até que as viu suficientemente apertadas para servirem mesmo para um soalho pronto, apesar de irregulares e presas com pregos vulgares.
Rae pregou-lhes o último prego na terça-feira de manhã, e estava a aparar o excedente de cima quando ouviu a cadência familiar do motor do barco de Ed. Serrou os últimos centímetros quando ele pisou a doca, e atravessou o novo soalho da sua casa, parando onde ficaria a porta da rua e, apreciando a mudança da perspectiva.
Era um belo panorama.
Ed prendeu a embarcação e olhou em volta à procura dela. Rae acenou para lhe chamar a atenção, e ficou divertida com a energia do aceno dele em resposta. Desceu os degraus e atravessou a clareira para o ajudar.
Olá! Já tem o soalho! exclamou ele.
Pois tenho, Ed. Quer ver?
O homem quase correu pela colina acima, parecendo um pino de boliche, com o grande bigode a esvoaçar. Rae meteu a cadeira de lona debaixo do braço e foi atrás dele. Quando chegou ao pé dele na plataforma, colocou a cadeira diante da lareira e apontou para ela com um gesto floreado.
Faz favor de se sentar, Mister De la torre. É a minha primeira visita.
Sinto-me honrado, Mistress Newborn! Baixou o traseiro com ar de cerimónia, e puxou o bigode, todo satisfeito.
Trate-me por Rae pediu ela, como já fizera em todas as outras visitas dele. O homem limitou-se a apreciar o panorama, com um ar orgulhoso como se tivesse sido ele o autor da obra.
Rae estava contente por tê-lo ali, uma verdadeira visita sem pasta e documentos, alguém com quem podia partilhar a sua obra. Estava a habituar-se a ele, ao barqueiro hippie velhote que cheirava a haxixe e a óleo de motor e agia como residente de Margaritaville, mas em quem ela desconfiava existirem alguns segredos obscuros. Não tinha bem a certeza de como se sentiria se ele aparecesse na ilha à noitinha, mas, durante o dia, era uma visita bem-vinda embora intrigante.
Devia ter um alpendre aí à frente sugeriu ele. Com uma cadeira de baloiço.
A avozinha Newborn comentou ela. Ed esboçou um sorriso, mas garantiu-lhe que não era isso o que queria dizer, que nunca pensaria nela como... Rae soltou uma gargalhada. Deixe lá, Ed. Afinal de contas, sou mesmo avó. E tem razão, faz falta um sítio para apreciar a visita. O problema é que a casa original não tinha alpendre, e supostamente estou a restaurar... Olhe espere aí! Rae agachou-se diante dos degraus para ver melhor o difícil rebordo. Como estava, ficava esquisito e ia desfear a casa depois de pronta, mas, com as palavras de Ed em mente, começou a sorrir e a abanar a cabeça com admiração. O Desmond ia fazer um alpendre; só nunca chegou a começá-lo disse ela. O rebordo que ameaçava provocar inundações seria a plataforma perfeita para apoiar um alpendre. E... bolas! Isso explicava a porta a abrir como abrira. Com alpendre, a porta a abrir para fora fazia sentido.
Percebeu que Ed tinha dito qualquer coisa.
Perdão?
Quem é o Desmond? repetiu ele.
Ah! Foi o meu tio-avô, Desmond Newborn, que construiu a casa nos anos vinte. Ninguém da família sabe grande coisa sobre ele, mas eu tenho descoberto um pouco, como isto agora. A única razão para construir uns alicerces como estes seria realmente para acrescentar um alpendre à casa. De repente, pensou noutra coisa e voltou-se para olhar para o espaço vazio à esquerda da lareira, e o seu sorriso aumentou. Por algum motivo, Desmond tinha colocado uma porta estreita mesmo junto às pedras da lareira. Ou uma janela, mas para quê fazer uma janela voltada directamente para um muro de rocha? Estava ansiosa por contar à neta, a sua sócia em... em quê? Antropologia forense? Arquitectura analítica?
Quer café, Ed? perguntou Rae por cima do ombro, mas já sabia qual ia ser a resposta, de maneira que começou a descer a escada.
Pôs a cafeteira ao lume e ajudou Ed a descarregar a habitual remessa de mercearias básicas, as bilhas de gás, os garrafões de água, o saco de roupa lavada e mais alguns materiais de construção que tinha encomendado. As junções de plástico para a canalização ali estavam, dentro dum forte saco de plástico. Sete semanas, e Petra (presumindo que vinha) teria o seu duche. Lá fora nas árvores, mas teriam água e seria água quente.
Entregou o saco de roupa suja e a lista de compras a Ed, e depois uma chávena de café. Olhou para ele, divertida, vendo-o instalar-se na cadeira de lona para a sessão semanal de coscuvilhice como se o tivesse feito toda a vida. Rae não desejava realmente saber o que se passava no mundo exterior, e achava aquilo uma interrupção, mas ele só se demorava geralmente uma meia hora, e parecia ficar feliz. Se trinta minutos por semana lhe compravam um satisfeito moço de recados, então o investimento valia a pena, para o caso de precisar de alguma coisa para além do habitual.
Pelo menos, foi o que disse a si própria. Mas a verdade era que, apesar de solitária, começava a descobrir que, por natureza, não era um eremita completo. Parte de si apreciava o contacto humano com o rude tratante Ed De la torre e a metediça Nikki Walls. Talvez não quisesse ver muito os vizinhos, mas era agradável saber que os tinha.
E, para além do contacto humano, Rae começava a interessar-se intrinsecamente por Ed.
Na segunda entrega de compras, tivera a primeira indicação de que o homem era mais do que um pau para toda a obra com um barco, e ficara aliviada por ver a desconfiança desaparecer-lhe dos olhos quando o recebeu com um sorriso normal e o martelo poisado na bancada. Descarregaram o barco, o café foi oferecido e aceite, e ele puxou as mangas da camisa de bombazina para tapar as tatuagens nos pulsos, perguntando-lhe:
Sabe alguma coisa sobre o Kant?
Kant, o filósofo? perguntou Rae, engasgando-se com o café.
Pois, o Immanuel Kant. Tenho andado a ler a obra dele e encontrei umas coisas que não percebo. Sempre que isso acontece, pergunto por aí, até encontrar alguém que saiba a resposta. Ficava espantada com a quantidade de coisas que as pessoas das ilhas sabem.
Não me diga! exclamou Rae.
Digo, pois. Há um tipo em Deer Harbor que escreveu um livro sobre Tomás de Aquino. Veio mesmo a calhar, digo-lhe eu quando encalhei na Suma Teológica. Mas não é grande ajuda com o Kant.
Bom, lamento imenso, Ed, mas a última vez que li alguma coisa de filosofia foi quando tinha dezoito anos e fiquei com dores de cabeça.
É verdade que ficamos!
As feições curtidas pelo tempo dum filósofo barqueiro de sessenta anos enrugaram-se num sorriso, e Rae ficou ofuscada pela súbita descoberta de que o marido teria adorado conhecer aquele homem, ter-se-ia debruçado da cadeira para lhe sacar mais tiradas incongruentes, deliciado com a descoberta dum diamante em bruto. Teve de se levantar e fingir-se muito ocupada com a máquina do café para esconder a cara.
Agora, três semanas mais tarde, entregou-lhe a caneca e perguntou-lhe que tal ia o Kant.
Acabei-o na sexta-feira.
E resolveu os problemas que tinha encontrado?
Não completamente, mas escrevi o que me preocupava, para pensar. Um dia encontro alguém que mo explique. Agora, estou a estudar Confucio.
Isso é uma boa empreitada!
Não gosto de ficar preso a uma coisa. Mas o Confucio... não sei. Fico com a ideia de que uma pessoa devia saber realmente mandarim para perceber aonde ele quer chegar. Sei um bocadinho de cantonês... o suficiente para ir a um restaurante ou para dar indicações a um motorista de táxi, mas não sei lê-lo.
Você é uma surpresa constante, Ed! Onde é que aprendeu a falar chinês?
Vivi uns tempos em Hong Kong. Quer ver?
Antes de Rae poder perguntar o significado da críptica oferta, ele levantou-se e começou a desabotoar a camisa de bombazina. A camisola de algodão de mangas curtas que trazia por baixo escondia-lhe o tronco, mas, quando as mangas compridas desapareceram, Rae pôde finalmente ver o que vislumbrara ao princípio: a pele de Ed era uma sólida tapeçaria de cor, começando nos pulsos com um par de pulseiras semelhantes mas não idênticas, num desenho género africano e estendendo-se para cima. Arregaçou a manga direita e mostrou-lhe um dragão, com a ponta da cauda mesmo abaixo do cotovelo, o corpo numa curva sinuosa em direcção ao ombro e a cabeça voltada de maneira a soprar fogo na parte posterior do braço.
Hong Kong informou ele.
Quer dizer que fez isso em Hong Kong?
Esta, mas a maior parte foi em Vancouver. Há lá um tipo que trabalha em mim há trinta e cinco anos. Dou-lhe o desenho, e ele vê como é que há-de incluí-lo. É a minha vida, todas as coisas importantes, a começar por estas. Apertou o pulso esquerdo com a mão direita e depois o direito com a esquerda. Dois anos com as forças de Segurança no Quénia... Quando voltei para casa, quis ter a certeza de que nunca ia esquecer aquilo. Então, começámos com eles, e fomos acrescentando. Calculamos que, a não ser que fique muito ocupado, só chegamos aos tornozelos quando eu tiver noventa e cinco anos ou coisa assim.
Tinha uma epiderme Verdadeiramente magnífica, estranhamente sensual, um plano contínuo de imagens móveis, entrelaçadas e ricamente coloridas de azul-indigo, verde-esmeralda e castanho-avermelhado, sem um pedaço de tom de pele à vista. Era difícil resistir à tentação de a acariciar, de tão aveludada que parecia. Ed apontou-lhe um salmão a saltar no bíceps esquerdo (comemorando duas épocas num barco de pesca) e um urso-pardo de pé no direito (um encontro enquanto trabalhava no oleoduto do Alasca), um remoinho de púrpuras e azuis (um furacão nas Caraíbas por que passara) e um balão de riscas coloridas (emprego de Verão no vale de Napa). As formas encaixavam como as dum quebra-cabeças, e houve uma que a intrigou especialmente.
Que é isso? perguntou. Parecia uma garrafa com riscas por cima.
Ah, estive preso seis meses por embriaguez e conduta desordeira. Esmurrei um tipo num bar, e afinal era um chui, explicou Ed, com ar envergonhado.
Era uma garrafa, com grades por cima.
Rae recostou-se na cadeira, certa de que se expressasse interesse ele despia a camisa e lhe mostrava até onde tinha chegado. E talvez mais do que a camisa. Para um dia, contudo, já chegava de revelações.
Então, Ed, que há de novo por esse mundo? perguntou. O que havia de novo era um manancial de interesse para ele, tão instrutivo como Kant ou Tomás de Aquino. O que havia de novo era também, para Ed, quase exclusivamente local, pois o seu mundo ia do extremo norte da ilha de Vancouver até à ponta sul do estreito de Puget, e só ocasionalmente abrangia o resto do estado de Washington. Os legisladores em Washington D. C. bem podiam estar noutro planeta irónico, pensou ela, para um homem tão viajado. As notícias do dia eram típicas, começando com o recente quase escândalo dum boato de compra do mercado local por uma enorme cadeia do continente, uma catástrofe evitada por pouco que colocaria a arugula das ilhas e o mozzarella fresco ao preço duma instituição local, continuando com um escândalo dum professor do liceu de San Juan, uma orca encontrada morta perto de Shaw (conhecida por uma letra e um número e não por um nome, o que significava que não era uma das mais proeminentes residentes, mas chorada apesar disso), e finalmente um complicado acontecimento numa praia particular em Lopez que obrigara o xerife Carmichael a meter-se na água todo vestido para salvar uma rapariga bêbeda. Rae foi ouvindo mais ou menos, distraída com as tatuagens. Entre uma bola de futebol americano com um rabisco preto (um autógrafo, semiapagado pelo tempo?) e um objecto quadrado que parecia uma sanduíche, distinguiu uma fina cascavel. Como seria ir para a cama com aquela pele?, especulou. Não tinha o mais pequeno interesse em Ed, mas a pele era uma coisa muito diferente.
Reparou que a visita se inclinara para a frente, como se não quisesse ser ouvida pelos gaios. Rae desviou a atenção da pele dele para ouvir, e acabou por se inclinar também para diante.
Ouviu falar das raparigas que desapareceram no continente? repetiu ele.
Hum, vinha qualquer coisa sobre uma rapariga nos jornais, mas isso foi há semanas. Rugeley, acho eu; Joanna Rugeley. Quando vim para cá. Uma história num jornal que utilizara para acender a fogueira, mas que lhe deixara o nome na memória. Em Spokane, não foi? Houve mais alguma?
A irmã disse Ed, encantado com o seu papel de relator de notícias sinistras, apesar de serem dum sítio bem na periferia do seu mundo reconhecido.
No jornal pareciam pensar que a rapariga tinha fugido recordou Rae. O pai ia mandá-la para um colégio qualquer, não era?
Era, pois. Uma espécie de reformatório no Taiti ou coisa parecida. Quem me dera que alguém me mandasse para o Pacífico Sul para a escola!
E agora desapareceu também a irmã?
Foi. Chama-se Ellie e tem catorze anos. Saiu para o autocarro do colégio e evaporou-se. Acham que anda por aí algum tarado ou então que a outra veio buscar a irmã.
Seja como for, é duro para os pais.
A mãe morreu, é só o pai. E ele apareceu realmente nos noticiários a chorar e isso. Entrevistaram um amigo dele, que disse que era um homem temente a Deus.
As únicas pessoas tementes a Deus que Rae conhecera eram, na sua opinião, preconceituosas e tinham bons motivos para temer a desaprovação divina. Mas também não esquecera a cena com a filha no ferry, o relato do antagonismo crescente entre Petra e Don e da investigação sobre colégios para jovens perturbados. A narrativa, típica de Tâmara, fora desarticulada, deixando-a a tentar adivinhar o que havia entre as linhas. Na altura, presumira que a filha estava a exagerar e que aquilo era apenas o último duma longa série de recados de Don, pedindo mais uma vez à sogra que contribuísse para as finanças da família Collins certamente que ele não estava a pensar em despachar a filha só para lhe sacar uns dinheiros. Contudo, nunca fora capaz de o desmascarar, e talvez nunca fosse. Em vez disso, fez o que fazia havia anos, mais vezes do que conseguia recordar ou seja, sentou-se e preencheu um cheque, naquele caso ostensivamente para a terapia da garota. Mas a recordação perturbava-a e provocou-lhe uma resposta brusca:
Já ouvi falar desses colégios, Ed. Campos militarizados tropicais, com imenso exercício e bastantes maus tratos verbais. Há bons motivos para eles não existirem no nosso país, porque as leis nunca aceitariam algumas das coisas que fazem para manter os miúdos na ordem. Se eu fosse uma adolescente, provavelmente também teria vontade de fugir.
A veemência de Rae fez Ed erguer uma sobrancelha por cima da caneca do café, mas era uma questão que a punha muito nervosa. Quanto tempo ficara Don satisfeito com o último cheque? Com ele, nunca se sabia. Deveria ela ter prestado mais atenção ao que Tâmara dissera a respeito dos colégios? Só esperava que Petra desistisse do confronto directo com o pai.
Bolas! Quase me esquecia de que recebi um telefonema duma advogada da Califórnia! Diz que lhe escreveu e pediu-me que esperasse por uma assinatura sua num papel qualquer, para ela não ter de esperar até à semana que vem. Está aí nesse envelope todo pinoca disse Ed, apontando para o saco de lona onde costumava levar-lhe o correio, mais pesado do que habitualmente, devido em parte a uma embalagem da neta: as fotografias, sem dúvida. Poisou-a na mesa e tirou o envelope da advogada. Era um grande molho de papelada e, assim que leu a carta explicativa, ficou desolada.
Ai, merda! exclamou, aborrecida.
Problemas? perguntou Ed, tentando não parecer demasiado coscuvilheiro.
Problemas legais respondeu Rae vagamente.
As coisas legais são uma praga concordou ele, em tom sinistro, claramente por experiência própria. É como aquela história do Dickens... Um caso que se arrasta pelos tribunais, com as pessoas a morrer mas o caso a continuar. Alguma vez leu?
Tempos Difíceis? Há muitos anos. Espero que isto não seja tão mau.
A advogada de Rae, em geral imperturbável, estava praticamente incoerente de indignação ao escrever aquela carta e, ao lê-la, Rae percebeu porquê: Don e Tâmara, embora Rae soubesse perfeitamente quem estava por detrás de tudo tinha posto uma acção em tribunal para provar que a sogra era mentalmente incapaz. Não às claras: as palavras eram todas em linguagem polissilábica legal e portanto pouco compreensível. Mas havia um disparate nelas: Petição para Nomeação de procurador Legítimo, Declaração de Capacidade e Procuração Abrangente foram alguns dos termos que saltaram das páginas directamente para o seu cérebro quando folheou o imenso documento. Depois, uma terrível palavra prendeu-lhe a atenção, e sentiu-se gelar: demência, DIRECTIVAS ESPECIAIS RESPEITANTES A DEMêNCIA, era O título do impreSSO oficial. O seguinte intitulava-se DECLARAÇÃO DE CAPACIDADE e a seguir a frase INCAPAZ DE PROVER às NECESSIDADES PESSOAIS. Esse impresso incluía meia dúzia de categorias de perturbações mentais, todas previamente aplicadas a ela numa ocasião ou outra. Voltou a página e deu com o seu processo médico.
Eram páginas e páginas, um catálogo da longa experiência de Rae Newborn com a doença mental, desde a primeira tentativa de suicídio até ao recente ano de hospitalização, com pesada ênfase no mês anterior à chegada do xerife Escobar para a levar. A única contribuição da Dra. Hunt era uma admissão hospitalar assinada, viu Rae com alívio, mas havia também cópias dos relatórios policiais (Como raio é que o Don conseguiu isto? Estariam com a Tâmara ou algures na minha casa?), descrições do seu comportamento bizarro que tinham levado a uma declarada psicose durante as semanas a seguir ao acidente. Delírio, dizia a admissão. Alucinações. Um perigo para si própria. "Gravemente incapacitada", escrevera alguém à máquina (Ai, a Tâmara não, por favor â Tâmara não...) e o seu estado físico quando fora readmitida no hospital.
A conclusão era a que seria de esperar: a contínua e perigosa instabilidade de Rae Newborn, como demonstrava a sua mudança para a ilha, longe de supervisão psiquiátrica e médica e para um estado de "extremo isolamento e condições primitivas impróprias para uma mulher da sua idade e condição física, equivalentes a uma ameaça de suicídio ou a um pedido de ajuda".
A última prova era uma fotografia, dramaticamente ampliada e sem qualquer título, do local onde se encontrava presentemente. Rae precisou dum momento para perceber que devia ter vindo dos rolos que ela própria enviara à neta umas meras duas semanas antes, as fotografias dentro daquele envelope com a letra da garota. Era um instantâneo da tenda num dia particularmente chuvoso e escuro, quando as suas instalações pareciam tão precárias como as dum acampamento de ciganos. Só uma doida quereria viver assim.
Raios partissem o homem afinal. Mandava-lhe dinheiro para as horas de cinquenta minutos da filha havia anos, sabendo que ele chuparia a maior parte. Porque não conseguia comprar o filho da mãe? E não podia enfrentá-lo, a não ser que quisesse cortar todos os laços com a criança, o que Don sabia perfeitamente não ser o caso. A única coisa que podia e tinha vindo a fazer era dar-lhe dinheiro, fingindo mais ou menos não perceber o jogo dele.
Pegou numa caneta e rabiscou a sua assinatura no impresso preso ao documento, que em muitas sílabas longas reiterava o desejo de Rae de que Pamela Church continuasse a agir como sua representante legal naquele e noutros assuntos legais, e depois fechou o envelope de devolução irritadíssima.
Eu ponho-o no correio assim que voltar garantiu-lhe Ed, esvaziando a caneca e pegando no saco da roupa suja, na sua camisa de mangas compridas e no envelope. Na doca, Rae entregou-lhe a bilha de gás vazia que lá deixara anteriormente e agradeceu-lhe.
O Sol já ia alto e o ar parado estava muito quente. Ed desamarrou o barco e aceitou o empurrão dela. O motor pegou e ele acenou, virando em seguida a embarcação para o mar. Com o Rainha das Orcas firme, Ed tirou as duas mãos da roda do leme e despiu a camisola de mangas curtas pela cabeça.
Era provavelmente, decidiu Rae, divertida, um gesto tanto de narcisismo (ou até provocação) como de conforto a tela humana exibindo orgulhosamente as suas cores. E era realmente uma visão extraordinária, um musculoso homem de rabo-de-cavalo grisalho pintado dos pulsos à cintura, resplandecente ao sol. A maior parte dos desenhos não se distinguia ao longe, excepto um: todo o lado esquerdo abaixo da omoplata estava coberto por uma mancha vermelha dividida por riscos escuros e, embora ela não fizesse ideia do que era a mancha vermelha, os riscos pareciam muito semelhantes às grades por cima da garrafa no braço dele, embora maiores.
O que deixou Rae a pensar se o seu moço de recados teria alguma vez trabalhado como guarda de jardim zoológico.
Ou se teria cumprido uma longa pena de prisão.
Sacudiu-se para afastar as sinistras especulações e descobriu que ainda tinha a carta da advogada na mão. De pé nas tábuas ondulantes, leu-a de novo reparando pela primeira vez na preocupação por detrás da indignação.
Ela estava preocupada.
Bolas, pensou. Don Collins já fazia parte da sua vida havia catorze anos, e a única coisa boa que ela recebera desse relacionamento era Petra.
Don conhecera Tâmara no liceu, dois anos mais adiantado do que ela. Tinham saído juntos umas vezes, e depois ele acabou o liceu e foi para a faculdade, deixando os velhos amigos para trás, incluindo Tâmara. Dois anos depois, quando ela estava no último ano e ele foi a casa nas férias da Páscoa, tornaram a encontrar-se numa festa. Tâmara foi à festa de fim de curso grávida, embora nenhum dos dois o soubesse na altura e com certeza não Rae, que só vira a filha uma meia dúzia de vezes nessa Primavera. Tinha conhecido Don pela primeira vez na festa de fim de curso e viu-o pela segunda no casamento, dois meses depois, um acontecimento formal embora apressado em casa do ex-marido de Rae, David, a casa onde a noiva tinha vivido ao cuidado da avó durante a maior parte da vida, a casa onde Rae era vigiada como uma bomba prestes a explodir. E Petra nascera em Janeiro.
Muito antes do nascimento talvez, suspeitava ela, mesmo antes de ele concordar em casar com Tâmara já Don tinha descoberto a alavanca para abrir um fornecimento contínuo de dinheiro da sua abastada sogra: culpa ligada à família. Semanas depois do casamento, com Tâmara ainda mal a precisar de roupa de grávida, Rae tinha ficado fora da porta do apartamento, a olhar para os recém-casados, Don com o braço possessivamente sobre os ombros de Tâmara e uma expressão descarada de extorsão nos olhos; nesse instante, ficou decidida a sua relação económica com a filha e o genro. Queria que os recém-casados se mudassem para um bairro decente? Óptimo, disse Don, mas ia ter de ajudar com a renda. Queria que Tâmara continuasse a planear ir para a faculdade? Tudo bem, mas ele não tinha posses para duas propinas mais as despesas com uma criança. Uma mesada, e uma quantia extra para seguro de saúde e coisas para o bebé, e as contas dos consertos do carro sempre que avariasse, e precisavam realmente dum computador. Depois, mais tarde bom, claro que Petra podia ir para um infantário barato com outros quinze bebés, mas por um pouco mais...
Tinha sido a origem de discussões com Alan, que se sentia profundamente ofendido, não tanto por causa do dinheiro como pela manipulação. Porém, quando ele apareceu, já Petra tinha dois anos e ninguém podia fazer grande coisa para modificar a maneira como as coisas funcionavam. A mesada estabelecida desapareceu quando Don se formou e começou a ganhar um ordenado na imobiliária do pai, passando a contribuição de Rae a ser depositada numa conta para a neta (embora duvidasse que lá ficasse uma boa parte), a ser completada por cheques para cobrir as catástrofes regulares que assolavam a família. A exageradíssima soma para o curso de treino de cavalos de Tâmara era típica. Rae não se lembrava de quantos electrodomésticos defeituosos substituíra nem de quantas emergências de estudos havia coberto. Quando Don tentara uma variação sobre um tema, pedindo-lhe que investisse num dos seus esquemas, fora a única vez que ela se recusara terminantemente a última coisa que desejava era ficar metida nos negócios do genro. E mesmo nessa altura tinha-lhe passado um cheque, para o manter bem-disposto.
Rae esperava que a proposta visita da neta seguisse o mesmo padrão, davam-lhe licença e depois aparecia um bilhete escrito pelo pai a lamentar que as despesas extras não permitissem... E Rae enviava um cheque, e toda a gente ficava satisfeita.
Mas a ameaça de acção em tribunal era uma coisa completamente diferente. Agora, segundo parecia, Don queria tudo. A ideia surgira-lhe provavelmente durante a hospitalização de Rae, quando Tâmara tinha ficado com uma procuração temporária para pagar as contas da mãe. Essa espreitadela ao panorama financeiro de Rae devia ter-lhe criado água na boca, dando-lhe ideias.
Porque não podia ele esperar uns anos para fazer aquilo? Rae enfurecia-se, mas sabia muito bem porquê por causa de Petra. A criança tinha treze anos, portanto era menor, com cinco anos à sua frente para servir de isco e ameaça perante a avó. Ele compreendia perfeitamente o que a criança significava para Rae, sabia-o melhor do que a mulher. Se Rae contestasse, Tâmara punha-se ao lado dele, e Petra desaparecia da vida da avó até aos dezoito anos. Os direitos legais duma avó estavam longe de ser uma certeza.
Bolas, pensou. Bolas e bolas! Quanto iria custar-lhe comprar duas semanas de companhia de Petra no mês seguinte? Não sabia se aquilo podia considerar-se extorsão ou chantagem, mas duma coisa tinha a certeza: por um motivo qualquer, o preço aumentara de súbito e a pressão não ia diminuir até a garota ser legalmente livre de tomar as suas decisões, ou até Don deitar as mãos a mais uma porção do dinheiro da doida da sogra.
Talvez tivesse sido melhor pedir a Ed que a levasse a San Juan para telefonar, pensou. Pamela não lho pedira, mas era evidente que queria falar com ela, quase tanto como Rae queria ser tranquilizada.
Esta semana não, decidiu. Talvez na terça-feira seguinte alugasse duas horas do ilustrado barqueiro e telefonasse à advogada, para lhe dizer que o que queria era manter a situação, para evitar um confronto aberto, continuar a comprar o acesso à sua própria família. Se lhe deixava amargos de boca, paciência. Já engolira coisas piores do que bílis, e já só faltavam uns anitos.
Mas bolas e bolas!
Para tirar o mau gosto da boca, Rae examinou as outras cartas à espera em cima da mesa. O grosso envelope da neta continha realmente os dois rolos de fotografias revelados, e ela abriu-o, passando revista aos instantâneos e fazendo uma careta para o do acampamento que Don roubara. A nova paisagem, vista pela objectiva, tinha-lhe parecido exótica.
Dois rolos de trinta e seis, e a maioria, inevitavelmente, uma porcaria: um pássaro num ramo, que só se via se fosse marcado com uma seta; as subtis cores dum nascer do Sol que tinham ficado cinzentas no papel. Algumas fotografias, no entanto, não estavam más e duas ou três eram mesmo muito boas. Uma da frondosa árvore abrigando da chuva a bancada apanhara uma interessante justaposição dos elementos naturais e dos feitos pelo homem que parecia envolver as qualidades dum no outro. A bancada parecia uma coisa viva, emergindo duma árvore que, por sua vez, parecia demasiado perfeita para ser outra coisa senão a criação dum pintor. E uma das fotografias do local da casa antes de ela lhe ter tocado era... fantasmagórica. Tirada do promontório à luz inclinada do princípio da manhã, as torres pareciam gritar de dentro da folhagem como um par de mãos a afogar-se. Tennyson, pensou; a Abadia de Tintem ou Glastonbury.
Sim, uma mão-cheia entre setenta e duas era bom. Mesmo profissional.
E porque lhe teria surgido aquela palavra?
Tornou a guardar as fotografias e olhou para o resto do correio, a maior parte reenviado e de pouco interesse. Mas a letra dum dos envelopes fê-la sorrir involuntariamente e depois franzir a testa. Vivian Masters, o seu homem da madeira, mais do que isso, um bom amigo. Pelo menos, fora, antes de Rae decidir que não podia permitir-se amizades, recusando visitas no hospital e entregando-se ao sair nas mãos duma enfermeira diplomada, misto de ama, em vez de se submeter aos amigos, contratando a mulher para a acompanhar em vez dum amigo voluntário. Os estranhos e os profissionais exigiam apenas pagamento em dinheiro e não irritavam os nervos. Que quereria Vivian?
Querida Rae,
Espero que isto te chegue às mãos, porque ninguém parece saber onde raio estás.
Não quero incomodar-te, mas há dois anos disseste-me que querias uma grande raiz de nogueira, e no ano passado encontrei uma autêntica beleza. Mesmo o teu género, escura e torcida e completamente impossível de ser usada por outra pessoa, mas que nas tuas mãos vai arrumar os críticos. Eu guardo-ta para sempre, tu bem sabes, querida, mas gostava que soubesses que está à tua espera, quando te sentires pronta.
Não há pressa, pequena. A árvore esperou trezentos anos por ti, pode esperar mais uns quantos.
Oxalá estejas melhor, Rae... Na última vez que te vi, parecias ter vindo da guerra. E acho que vinhas. Trata de ti, pequena, e escreve cá ao rapaz, hein? Para sabermos que ainda andas por este mundo.
Vivian.
Quando te sentires pronta...
Escura e torcida e impossível de ser usada... Sim, parecia interessante, mesmo o seu género. Como costumava ser o meu género, em tempos. Antes de ter estado na guerra.
Rae amarrotou a carta de Vivian e atirou-a para a fogueira. Daí a um minuto, atirou também o documento legal.
Perturbada por acções em tribunal e dolorosas recordações de tempos idos, Rae resolveu continuar a instalar a canalização, e passou esse dia e o seguinte nesse trabalho. Era uma tarefa quente e suja, envolvendo escavar o solo para fazer uma vala e verificar continuamente o nível, e ficou radiante quando no final de quarta-feira acabou a secção subterrânea, meteu a última ligação dentro da água morna da poça superior e, uns minutos depois, viu a primeira água sair do tubo de plástico a trinta metros da nascente. O resto do cano, à superfície e seguindo o caminho de Desmond, ia ser colocado muito mais depressa.
Na quinta-feira à tarde, a mais de metade da descida entre a nascente e a casa, com a lama até aos joelhos e nos cotovelos, as costas doridas de se curvar, toda arranhada dos arbustos e urtigas por entre os quais tinha de trabalhar, e com metade dos dedos pegados uns aos outros com a cola de canalizador que utilizava, Rae ouviu um motor. Com um gemido, endireitou-se e cambaleou até uma árvore para se apoiar e ver de que se tratava. Qualquer interrupção era bem-vinda, mesmo que fosse apenas alguém a passar.
Mas não era, era Nikki Walls, que saiu do barco rápida como uma adolescente, na sua farda impecável. Já tinha aparecido duas vezes desde o dia da volta de barco duas semanas antes, trazendo sempre comida, imensa boa disposição, a curiosidade dum cachorrinho labrador e (Rae tinha de admitir) o bom senso de se ir embora antes de a cansar. Afastou-se do tronco da árvore, descobrindo que tinha estado encostada a uma grande mancha de resina que passara a fazer parte da sua camisa para sempre, e começou a descer a colina para ver o que ela queria.
Nikki deitou uma olhadela à criatura que saiu do bosque e deixou a mão firmemente dentro do bolso. Rae acenou-lhe com dois dedos colados numa saudação e foi direita à beira-mar, onde a água salgada e a areia lavaram a camada superior de suj idade e lhe fizeram arder os inúmeros arranhões. A cola de canalizador obviamente não fora feita para ser solúvel na água, e seria perder tempo e desperdiçar solvente lavar-se como devia ser duas vezes na mesma tarde. Além disso, Rae estava muito habituada a trabalhar com as mãos coladas a mitenes por uma ou outra cola de madeira. Era um dos motivos pelo qual não usava supercola não queria ficar sem pele.
Voltou da praia e descobriu que Nikki já tinha tirado a segunda cadeira da tenda e se instalara, vendo as fotografias deixadas em cima da mesa.
Estão boas comentou a rapariga, olhando para Rae. Espero que não se importe; estavam aqui.
Rae acabara por pensar em Nikki não tanto como uma fada, mas sim como um pequeno mamífero curioso e amigo de ajudar. Possivelmente um esquilo da Beatrix Potter, de cauda a tremer e pequenas mãos habilidosas resolvendo as vidas das pessoas. À terceira visita, chegara com uma garrafa de leite e um rolo de papel higiénico. Leite era um presente natural para levar a uma pessoa sem frigorífico, mas o outro mostrava que ela tinha reparado na ausência dum rolo extra na latrina por altura da sua primeira visita cinco dias antes e que Ed se esquecera de trazer mais na sua passagem entre uma visita e outra. Podia ser opressivo, ou mesmo estranho, mas a sua boa disposição ultrapassava a situação, como se o seu aspecto irreal trouxesse consigo uma incapacidade natural de seguir os costumes humanos normais. Daquela vez, trazia sumo de maçã fresco e um grande objecto tubular de plástico laranja-vivo, que poisara junto à perna da cadeira.
Com certeza que pode ver as fotografias disse Rae. A minha neta está a fazer um trabalho para o colégio e queria fotografias da ilha. Eu pedi-lhe que fizesse umas cópias para mim.
Sabe, esta da bancada devia estar num livro.
Rae desejou não ter mostrado o que sentiu por dentro. Naquela manhã mesmo, sentada naquela cadeira com o seu primeiro café, examinara a fotografia e pensara exactamente o mesmo.
Deitou o sumo de maçã em duas canecas e procurou uma embalagem de biscoitos de figo na caixa dos mantimentos, colocando-a depois num tronco de árvore. Afastados os deveres formais de anfitriã, sentou-se na cadeira de lona e encostou-se cuidadosamente. Até Nikki se contraiu com os rangidos audíveis da sua coluna.
Obrigado pela interrupção disse Rae.
Pelo barulho, parece estar a precisar de fisioterapia. E parece que esteve a lutar na lama!
Estive mesmo. Estou decidida a fazer a água chegar aqui antes de o Ed voltar na terça-feira. Estou farta dos garrafões.
E que tal vai o trabalho?
Estou a meio da descida, com a parte mais difícil meio terminada.
Isso é óptimo. Já tem um depósito?
Durante uma semana ou duas, vou ter de me contentar com garrafões de vinte litros. Mas, pelo menos, não vamos ter de os acarretar do barco do Ed.
Se precisar de ajuda, diga... Com o depósito, quero dizer. Posso trazer cá meia dúzia de tipos com força para lhe porem aqui um onde você quiser pelo preço duma grade de cervejas.
Vou precisar de três depósitos mais pequenos interligados, em vez dum grande, de maneira que acho que posso com eles. Mas agradeço e não me esqueço do seu harém masculino.
São quase todos família: tenho dúzias de primos. A maior parte homens e todos muito protectores. E três cunhados, o mais pequeno com um metro e oitenta.
Olhe exclamou Rae, com a memória desperta pela imagem duma multidão. Sabe se há aqui por perto algum grupo que toque tambor?
Para espanto de Rae, a rapariga ficou corada e murmurou que sim, havia umas pessoas, segundo ouvira dizer, que se juntavam com uns tambores que tinham feito...
Estava intrigada. Já os ouvi duas vezes, sempre em noites de lua cheia. Da primeira vez, até julguei que estava a imaginar coisas.
Nikki pareceu aliviada.
Ah, não, é mesmo um grupo. Juntam-se em Roche Harbor, e é provavelmente por isso que os ouve daqui.
Deve ser divertido. Podia levar lá a minha neta, se ela estiver cá numa noite de lua cheia.
Nikki exibiu um pequeno sorriso secreto, cheio de malandrice, que lhe deu mais do que nunca o aspecto dum duende irlandês, o que fez Rae pensar se algum pintor já a teria usado como modelo.
É possível que ela goste da primeira parte da noite disse a rapariga.
Rae perguntou a si própria que se passaria na outra metade e se a actividade seria o motivo do súbito rubor de Nikki. Imaginando a minúscula guarda-florestal a despir o bem engomado uniforme para participar num ritual de fertilidade pagão na areia, vestida apenas de sardas, Rae disfarçou por sua vez um sorriso. Nikki apressou-se a continuar:
Hoje não a atrapalho mais. Volto daqui a uns dias com o seu aviso para os intrusos, mas hoje vinha apenas trazer-lhe um recado do Jerry Carmichael. Ele queria vir, mas está com falta de pessoal, com um de férias e outro com uma alergia qualquer. Pronto, então é assim: o Jerry falou com o seu xerife da Califórnia... Espinosa, não é? Ah, sim, Escobar. E queria que você soubesse que ele tinha ouvido um rumor em segunda ou terceira mão sobre dois asquerosos num bar em Bakersfield a gabarem-se de terem sido pagos para bater numa velhota em Santa Cruz.
O quê?
Isto é muito vago. Superinconsistente, percebe? Eu disse ao Jerry que não devíamos incomodá-la com a história, porque só serve para a fazer ficar preocupada sem necessidade. Não mora em Santa Cruz, não é velha, e é uma ligação demasiado fraca. Mas ele prometeu ao outro xerife que lhe dava o recado, e eu vinha cá de qualquer maneira, por isso disse que lhe contava. A parte de que eu gosto é que o Escobar queria recomendar-lhe que... e passo a citar: "evitasse estradas desertas"!
As duas mulheres olharam em volta: clareira, tenda, árvores, barco a balançar na vetusta doca. Começaram a rir ao mesmo tempo Nikki com mais facilidade do que Rae, mas até ela conseguia ver o humor do aviso.
Está bem disse ela. Escondo-me no meio da multidão.
Daqui a dois meses, isso não era problema, e mesmo a partir de agora vai começar a ver barcos a aparecer a toda a hora. Seja como for, o Jerry mandou-lhe isto, queira você ou não. E estendeu-lhe o objecto tubular de plástico laranja.
Era uma arma de sinais luminosos, feia e cor de laranja, com um aspecto muito funcional. Rae pegou nela; era mais pesada do que parecia. Nikki tirou-lha da mão, abriu-a e mostrou-lhe como se carregava, com cartuchos parecidos com os de matar elefantes. E explicou:
Aponta-se para cima, mas convém ver se há alguma coisa inflamável por baixo. Ou alguém. E é melhor disparar dois ou três sinais, se quiser ter resposta. Ardem três ou quatro minutos e são vistos a quilómetros de distância, mesmo durante o dia.
Obrigada, Nikki. E agradeça ao xerife. Tenho a certeza de que não vou precisar, mas agradeço a ideia. Não consigo acreditar que alguém tenha dado dinheiro aos tais fulanos para me atacarem. E, se deram, também não vão aparecer aqui para me atacarem outra vez. Nem mesmo o genro seria capaz de tal coisa. Perseguição legal sim, mas criminosa? E isso, presumindo que fosse capaz de arranjar o dinheiro suficiente para contratar alguém. Deviam ser dois oportunistas, como o xerife Escobar disse sempre.
A falar verdade, você não me parece muito segura do que diz comentou Nikki.
Acha que não? É que eu... bom, não consigo imaginar outra hipótese. E depois continuou, relutante: A única coisa que lhe dá alguma credibilidade é que os dois que me atacaram não cheiravam a álcool. É engraçado o que nos fica na memória, mas foi sempre uma coisa que me intrigou, eles só cheirarem a suor e cigarros. Nada de cerveja ou droga. Achei estranho, percebe?
Bom respondeu Nikki um momento depois. Não sei o que podemos fazer, a não ser que, se aparecer aí um barco cheio de estranhos, você não deve ir à doca tentar correr com eles sozinha. Dispare um sinal luminoso e esconda-se entre as árvores.
O sinal do morcego por cima de Gotham City, como no Batman disse Rae, com mais veemência do que tencionava. Porque teria contado a Nikki do cheiro? Miss Inocência podia muito bem ser a maior coscuvilheira da região...
O xerife Carmichael no seu barco-morcego! Embora seja mais provável o Ed vê-lo primeiro respondeu Nikki, à gargalhada.
Dessa vez, quando a rapariga se foi embora, Rae não ficou à beira-mar. Voltou as costas à guarda-florestal fardada e a tudo o que ela trouxera consigo, e subiu a colina para continuar o seu trabalho.
Durante o resto da tarde, manteve-se de cabeça baixa sobre recalcitrantes canos de plástico branco, agradecendo a dor nas costas e recusando levantar a cabeça sempre que ouvia alguma restolhada entre as árvores, afastando qualquer sugestão de vigilantes e o mero pensamento duma conspiração contra si.
Ridículo.
Sentia a pele arrepiada e os músculos a tremer, mas cerrou os dentes e lutou contra a sensação. Mediu os canos cuidadosamente, serrou-os com precisão, encaixou e colou as juntas, trabalhando com aquele material escorregadio e morto tão diferente da sua habitual madeira.
Ideia ridícula. Absurda.
Impensável.
Vinte e Quatro
Carta de Rae Para a advogada
9 de Maio Querida Pam,
Julgo que deve ter recebido os impressos assinados. Ed De la torre, o barqueiro, prometeu metê-los no correio na terça-feira assim que chegasse a Friday Harbor.
Entretanto, aconteceu uma coisa que eu acho muito preocupante. Na quinta-feira, disseram-me que a Polícia ouviu um boato (completamente inconsistente) de que alguém pagou aos dois homens para me atacarem. Sem provas nem indicação de quem ou do porquê. É de loucos.
No entanto, acho que, vendo isso em conjunto com a atitude do Don, tenho de aceitar a sua recomendação de alterar o meu testamento. Mas, para já, sei que não vai gostar do que tenciono fazer.
O que eu quero espere até ler a minha explicação antes de começar a gritar comigo... Quero que entre em contacto com o Hoskins e o mande vender um quarto dos meus bens. Ele que escolha, estou-me nas tintas desde que não sejam propriedades, mas um quarto do que ele calcule que seja o total. E que divida isso por três, com uma parte para o Don, outra para a Tâmara e outra para a Petra. A parte da Petra tem de ficar num fideicomisso, julgo eu, até aos dezoito anos, mas quero que seja você a administrá-lo e não os pais e que ela saiba particularmente que você lhe adianta dinheiro se precisar realmente dele antes. De maneira que o Don não possa deitar-lhe a mão.
Vamos deixar os outros três quartos como estão, divididos entre os meus variados parentes e a família do Alan, com percentagens e
quantias estabelecidas para diversas obras de caridade, mas com a seguinte adição: gostava de acrescentar um fundo para a doutora Hunter utilizar na compra de equipamento ou para financiar o tratamento de algum tolinho necessitado, artista louco ou coisa do género redija a coisa como entender, de modo que ela tenha a maior liberdade possível. E que seja uma quantia substancial sem causar um grande rombo no total. Aí uns cem mil dólares? Talvez duzentos mil seja melhor com isso ela já pode fazer qualquer coisa que se veja.
E agora a minha explicação.
A questão aqui é, basicamente, extorsão. O Don tem poderes sobre uma coisa que para mim é valiosa, ou seja, a minha neta e a mãe dela, e diz-me que, se eu não lhe dou dinheiro, para pôr a coisa com elegância, nunca mais as vejo. Ou talvez seja um resgate, não sei. Seja como for, não acredito que ele esteja realmente convencido de conseguir declarar-me incapaz. Acho que isso é a maneira de ele me dizer que está disposto a dificultar-me a vida e a impedir-me o acesso à mulher e à filha, a não ser que lhe facilite alguns fundos. O pau que acompanha a cenoura é a Petra.
Porque lhe conto isto tudo? Você conhece a história a minha prontidão crónica, como você lhe chamou uma vez, em sucumbir às manipulações do Don. É a maneira de ele negociar. Vê uma coisa à qual pensa que tem direito, convence-se de que o seu dono está deliberadamente a privá-lo dela, e manipula a situação até que a coisa lhe vai parar às mãos. Fê-lo com a Tâmara quando ela ainda andava no liceu, roubando-a de debaixo do nariz do namorado; fê-lo com a quinta que possuem, comprando-a a uma mulher que não fazia tenções de a vender, fê-lo com a sociedade na sua imobiliária, conseguindo que o sócio maioritário se reformasse; e já o fez comigo uma dúzia de vezes ao longo dos anos. Para sua contínua desaprovação, eu sei.
Estou-me nas tintas para o dinheiro, Pam. Sei que é das suas atribuições fazer com que me preocupe, mas o único motivo para se ter dinheiro é comprar o que se quer, e no caso o que eu quero é a Petra. Nada mais me interessa. E, raios o partam, ele sabe.
Chame-o, fale com ele, faça algumas daquelas delicadas ameaças que você faz tão bem, para ele ver que sabemos exactamente qual é a ideia dele e só estamos dispostas a ir até certo ponto. Obrigue-o a assinar um acordo para desistir, se for possível. Mas nunca, sejam quais forem as circunstâncias, meta a Tâmara no assunto.
Ela esforça-se muito para ignorar as manipulações do marido mas, se for obrigada a encarar o que se passa, põe-se do lado dele, garanto-lhe, e a Petra fica fora do meu alcance durante os próximos cinco anos.
Conforme você já disse, estou a deixar-me dominar pelos meus sentimentos de culpa. Tem razão, excepto no facto de a minha culpa não ser um sentimento mas sim um facto. Desiludi a minha filha, muito, em dois pontos fundamentais da sua vida. O facto de isso se dever a uma doença para além do meu controlo a depressão não anula os efeitos sobre ela nem sobre o meu relacionamento com ela.
E esta é a minha explicação para lhe pedir que aja contra os seus princípios de advogada.
Pense bem nisto e fale com o Hoskins. Mande-me um plano, se quiser. Arranjar uma assinatura minha reconhecida é capaz de ser problema aqui. Não podemos resolver o assunto com uma testemunha., um funcionário do Estado? A guarda-florestal da região é um pouco excêntrica, mas terrivelmente honesta e responsável.
O que é mais do que pode dizer-se de alguns dos seus clientes, bem sei.
Estou lindamente aqui a vida de eremita parece ser boa para mim.
Saudades da Rae Newborn.
P.S.: Reparei agora que deixei de fora a questão do possível envolvimento do Don no ataque de que fui vítima, mas na realidade que posso eu dizer? A Polícia está a investigar, embora eu duvide que consiga provar alguma coisa. Se foi realmente ele o instigador, talvez estas disposições financeiras o comprem. Se foi, pode ter sido apenas (!) um susto que correu mal. Admito que consigo imaginá-lo sentado num bar com uns amigalhaços e uma data de cervejas, a lamentar-se sobre a sua falta de dinheiro enquanto a sogra nada em dinheiro que não gasta, e depois a dizer a um deles: Olha, aqui tens cinquenta dele e vê lá se lhe pregas um susto para a minha mulher e eu podermos intervir e deitar mão às coisas dela. E também consigo imaginar o tipo a aceitar o dinheiro e a avançar com o amigo, e os dois a entusiasmarem-se e a irem mais longe do que a intenção do Don. O que não consigo imaginar é ele, por mais que desconfie do seu carácter, contratar dois tipos para espancar e violar a sogra. É manipulativo e ganancioso, mas não é estúpido e parece (não tenho provas, percebe?) ter bastante sucesso em esconder os seus negócios mais escuros. Se a tal cena do bar for realmente verdade e se (um grande "se") a Polícia encontrar provas, então isso pode perfeitamente vir a ser o fim dele porque decerto nem a Tâmara fica do lado dele depois disso. E talvez você possa incluir alguma subtil frase legal no nosso acordo para me dar maneira de lhe retirar o dinheiro se ele for condenado por um crime.
Seja como for, quero que seja você a lidar com o assunto, Pam. Francamente, não quero saber, desde que me deixem em paz. Há um ano e meio, talvez eu tivesse feito finca-pé. Agora, sei que a vida é demasiado curta para o luxo do orgulho. Deixe o Don enterrar-se sozinho eu não vou ajudá-lo.
Rae.
Rae ainda não tinha terminado completamente a canalização quando Ed voltou, mas estava tão perto do fim que pôde continuar a trabalhar sem correr o risco de não se aperceber da sua chegada. Ele deu um breve toque de buzina ao entrar na enseada, assustando as aves e os esquilos-vermelhos, mas ela ouvira o ruído do motor quase a um quilómetro de distância e chegou ao promontório antes de ele ter podido tirar os mantimentos da cabina.
Ed entregou-lhe os sacos e depois, com um garrafão de vinte litros de água ao ombro, saiu do barco e foi atrás dela até à tenda, observando em volta.
Esta semana não trabalhou muito comentou ele, em tom interrogativo. Pensava que já ia encontrar umas paredes levantadas.
Rae deu uma gargalhada e mostrou-lhe as mãos com terra entranhada e camadas de cola que o solvente não conseguira tirar completamente.
Esta semana fiz de canalizadora, Ed. Este é o último garrafão de água que preciso que me traga. Se não conseguir acabar a canalização, vou buscá-la à nascente com baldes.
Ainda fica longe, não?
Ali onde você vê aquele abeto partido em dois. Ed assobiou.
Porque é que o seu tio não construiu a casa um bocadinho mais perto da nascente?
Acho que preferiu o sítio às vantagens práticas.
É bonito admitiu ele.
Tomaram café, enquanto ele a punha a par das notícias, quer lhe interessassem quer não: as irmãs desaparecidas em Spokane afinal eram fugitivas e, embora ainda não se soubesse onde estavam, a mais nova tinha escrito uma carta a uma amiga com carimbo de Nova Orleães dez dias depois do desaparecimento; alguém tinha pegado fogo a um celeiro em Lopez e estava na cadeia, com os pais a protestar que era uma prisão sem motivo; as autoridades do condado tinham pensado em racionar a água durante o Verão, decidindo em vez disso distribuir brochuras dizendo aos turistas que não deviam lavar os barcos com água doce e que esperassem pelo regresso ao continente para tomar duches de meia hora.
Tudo aquilo entrou por um ouvido de Rae e saiu pelo outro, e ela seria incapaz de recordar uma palavra da narrativa (para além da situação das raparigas desaparecidas) à hora do almoço. Entregou-lhe as cartas, as listas e a roupa suja, ele voltou para o barco, e ela ficou de novo sozinha.
Ao acenar ao ilustre filósofo, Rae pensou que, para eremita, ela até estava prestes a tornar-se membro duma comunidade. Nenhum homem é uma ilha e, segundo parecia, nenhuma mulher.
O resto da sua pequena comunidade apareceu-lhe à porta, ou na sua doca, no dia seguinte. Passara o que faltava da terça-feira a tentar acabar a instalação da canalização e, já tarde, à luz duma lanterna, colara a junção final, e a água da nascente saíra finalmente da serpente de tubos de plástico. Rae comemorou a ocasião com uma cautelosa dança da vitória na encosta rochosa e um copo de água, que sabia a lodo da poça e a subprodutos do petróleo do cano, coisas que ela rezava para que desaparecessem em dois ou três dias. Ajoelhou-se para lavar a cara suada, colocou um garrafão de vinte litros debaixo da extremidade do cano e foi para a cama ao som dum dueto de mochos.
Na quarta-feira de manhã, o garrafão estava cheio a deitar por fora, e a água pingava límpida. Deitou fora o conteúdo turvo do garrafão, que colocou de novo debaixo da ponta do cano, e preparou uma série de outros três ligados por finos tubos que permitiriam à água de cada um assentar antes de passar para o seguinte. O último tinha uma torneira no fundo, à qual Rae atarraxou uma vulgar mangueira de trinta metros, que chegaria pelo menos à torre inferior da casa. Ed traria os verdadeiros depósitos na semana seguinte, e a civilização ficaria instalada na ilha.
Estava parada, encantada com o pingar musical e a pensar no simbolismo da água, da vida e das nascentes da ilha, quando foi interrompida por um motor meio familiar ali perto. Voltou-se e viu a lancha do xerife, a lancha que tinha ancorado na sua doca na manhã em que a "família" saíra do nevoeiro. Lá estavam eles outra vez sem Caleb, para alívio e desilusão de Rae.
O xerife Carmichael não diminuíra em três semanas e meia, nem Nikki se tornara menos etérea embora umas calças de ganga e uma camisola de algodão de mangas curtas, bem como o peso dum grande objecto plano que segurava por uma ponta, a aproximassem um tanto da terra. Rae avançou rapidamente ao encontro deles e acabou por pegar na outra ponta dum enorme cartaz que dizia:
PROIBIDOS os INTRUSOS! A Reserva Natural Inclui a Enseada
Os postes do antigo cartaz eram suficientemente fortes para aguentar aquele mais uns anitos, de maneira que a sua instalação foi questão de minutos. Como para o admirar teriam de ser capazes de andar sobre a água, contentaram-se em empoleirar-se com os calcanhares de fora e olhar para cima, para o cartaz de encontro ao céu.
Como entrada para uma casa, não era estética nem hospitaleira. No ano seguinte, pensou Rae, havia de fazer uma que fosse as duas coisas. Uma série de postes, uns em bruto e outros esculpidos, género interpretação moderna dos tótemes locais. Como uma instalação de estacas de Brassil. Não conscientemente artificial como as obras de Nils-Udo ou Goldsworthy, nem tão retocada como as coisas de Murray, mas... Parou e soltou uma gargalhada. Primeiro, acaba a casa e depois pensa na entrada...
Obrigada agradeceu.
O xerife juntou os restos do antigo cartaz e transportou-os até ao acampamento, onde atirou as tábuas para cima da pilha de madeira para a fogueira. Endireitou-se, sacudiu as mãos e ergueu o queixo para a construção na encosta.
Isto está muito adiantado desde a última vez que eu cá vim!
Já acabei o subsoalho e a canalização.
Importa-se que eu veja?
À vontade. Ia agora mesmo fazer uns ovos mexidos. O mínimo que posso fazer é dar-lhes o pequeno-almoço. Ou o almoço.
Porque não me deixa tratar eu disso? Já vi o subsoalho quando vim cá outro dia disse Nikki.
Bom, está bem concordou Rae. Os ovos estão na geleira e há bacon, se quiserem. O pão está na caixa. Mas a rapariga já sabia os lugares de tudo. Até conseguiu acender o fogareiro sem a pequena explosão, o que Rae só conseguia de vez em quando. Desistiu e voltou-se para ir atrás do xerife Carmichael.
Ao chegarem à pilha de tábuas junto aos degraus de pedra, Carmichael parou.
Estas tábuas não têm a medida habitual.
Têm a medida total. Chamamos-lhes de dez por vinte e é precisamente o que têm.
Porquê?
Porque o Desmond as usava, e porque são fortes.
Ele não fez qualquer comentário, mas, quando pisou a plataforma, saltou, vendo que o seu considerável peso não produzia a mais pequena ondulação. Então, acenou com a cabeça e concordou:
São mesmo fortes. Eu ajudei uns amigos a construir uma casa de madeira há uns anos e a sensação era esta.
Adorava fazer a minha toda assente em madeira, mas era impossível.
É preciso uma data de gente para levantar os postes.
Isso, e também porque, se quero fazer o mesmo que o meu tio-avô, tenho de seguir o seu estilo de construção. Não só porque estou a restaurar a casa, mas também porque tem de ser como ele fez.
Ouvi dizer que é marceneiro. Que faz móveis e essa coisa toda.
Costumava fazer.
Então diga lá: é costume os marceneiros lutarem contra tábuas destas nas horas livres?
Como um artista que nas férias pinta a casa em vez de quadros? Não, nada disso. Actualmente, só sirvo para isto. Calou-se, ao ouvir o que acabava de dizer, e o xerife deteve-se a seu lado, olhando para ela com ar interrogador. Rae deu uma gargalhada amarga. Quando a minha filha era pequena, disse a mesma coisa ao meu marido, porque não conseguia arranjar energia para um trabalho criativo. E ele deu-me um cinto de ferramentas de carpinteiro, como piada. E dois cinzéis de trezentos dólares, como resposta séria.
Carmichael olhou para ela, mas não comentou. Em vez disso, foi até cada uma das torres de pedra, inclinou-se para espreitar para o círculo de céu aberto, e depois desceu da plataforma para ver de perto a canalização debaixo da casa. Ela seguiu-o um minuto mais tarde.
As coisas vão melhor agora? perguntou ele, quando regressavam pela encosta rochosa. Não encontrou mais pegadas estranhas?
Está tudo bem, xerife...
Trate-me por Jerry, por favor!
Jerry. E a mim por Rae, com "e". Mas isso já você sabe. Sim, agora está tudo bem.
E estava, compreendeu. As suas noites eram invariavelmente interrompidas e os dias cheios de mil ruídos súbitos, mas não tinha um verdadeiro ataque de pânico havia duas semanas. Demasiado cansada, provavelmente, mas deu consigo a sorrir.
Muito bem mesmo.
Fico contente por ouvir isso. Falei com o Sam Escobar esta manhã, antes de virmos para cá, mas ele não tem novidades. Nem conseguiram encontrar o tipo que disse ao informador dele que tinha ouvido duas pessoas a falar de terem sido contratadas para a atacar.
Ou alguém que podia não ser eu.
Tem razão. Foi um boato dum boato. Ainda bem que não está preocupada.
De novo no acampamento, Nikki dividiu o conteúdo da frigideira pelos três pratos e estendeu um a Rae, que se empoleirou no cedro, deixando as duas cadeiras para as visitas, e meteu o garfo na comida macia. O duende irlandês sabia fazer ovos.
Estão bons? perguntou Nikki.
Rae ergueu os olhos, percebendo que a boa educação era uma boa ideia.
Óptimos! Estava a pensar que há meses que não como uma coisa que não seja cozinhada por mim. Na realidade, desde que saíra do hospital. Os pratos de forno que Tâmara lhe levara por dever ainda deviam estar no congelador, e a enfermeira e ama tinha sido firme apologista da política do amor com severidade, exigindo que Rae se alimentasse e limpasse a casa sem ajuda. Tudo o resto, à excepção de várias chávenas de café compradas durante a viagem da Califórnia, tinha sido comido directamente duma embalagem ou feito pelas suas mãos. O inesperado do estilo simples mas completamente diferente doutra pessoa tornava a improvisada omeleta um festim. Sentia que devia agradecer a Deus.
Ah, já me esquecia, o Caleb mandou-lhe uma coisa! exclamou Nikki, tirando um papel do bolso da camisa e entregando-o a Rae. Poisou o prato num tronco da árvore, desdobrou o papel e viu que o garoto tinha desenhado o retrato dela de pé diante da tenda. Pelo menos, pensou que era ela: uma figura alta feita com paus, de castanho, com uma cabeleira frisada e grisalha. O retrato mais lisonjeiro que uma criança de cinco anos podia fazer, calculou. Que é isto à volta dos meus pés? Pedras?
Caranguejos. No dia em que estivemos cá, contámos vinte e três, e ele pôs aí todos.
Estou a ver. Agradeça-lhe por mim disse Rae, dobrando e guardando o desenho. Retomou a refeição com um nó na garganta.
Quando acabaram os ovos (o fornecimento todo da semana, infelizmente) e metade do pão, Nikki fez menção de ir lavar a loiça, mas Rae tirou-lhe os pratos da mão e meteu-os no alguidar de plástico.
Vai ser engraçado lavar mais do que um prato, para variar disse ela às visitas, conduzindo-as para o barco.
Quando passaram pela pilha de madeira (pouco menos volumosa, apesar das inúmeras viagens que fizera), lembrou-se duma coisa.
Um de vocês é capaz de me fazer um favor? Esqueci-me de dizer ao Ed que preciso de dois plásticos grossos... Não precisam de ser grandes, trinta por quarenta serve, mas têm de ser grossos. Talvez seis milímetros.
O melhor é pedir à Nikki sugeriu o xerife. O Ed e eu não nos damos muito bem.
Ele apanhou-o a fazer contrabando de Fréon há uns anos, e o Ed nunca esqueceu explicou Nikki, divertida.
Fréon? perguntou Rae, pensando não ter ouvido bem.
Fréon confirmou Jerry. Sabe, aquilo que se usa para os frigoríficos e o ar condicionado. Uma bilha que custa talvez trinta dólares no México vende-se cá por mil e cem ou mil e duzentos. Por isso, o amigo Ed achou que a melhor maneira de ir passar o Inverno em Baja era trazer um carregamento da coisa para Seattle. Na realidade, era um problema de alfândega, mas dei de caras com ele e. tive de o prender. Tinha o barco atulhado de bilhas, mas achava que eu devia olhar para o outro lado.
Estou a ver.
O que o chateou mais foi eu sugerir que diminuísse a sentença entregando o tipo a quem ia vender. A prisão não o preocupou muito, mas eu pedi-lhe que "bufasse", nas palavras dele, e olha para mim como se eu fosse uma barata.
Foi para a cadeia?
Claro. Era uma data de Fréon e não exactamente o seu primeiro crime.
Isso explica a tatuagem grande das costas disse Rae, mais ou menos para si própria.
O Ed mostrou-lhe as tatuagens? perguntou Nikki, parando e ficando a olhar para ela com os olhos muito abertos.
Essa vi por acaso, mais ou menos. Mas mostrou-me os braços. São espantosos.
Nikki e Jerry Carmichael olharam um para o outro, mas Nikki limitou-se a comentar:
O Ed é um bocado como os gatos. Não gosta de muita gente.
Olhem, acham que devo preocupar-me com ele? Sei que é um tratante, mas posso confiar nele? perguntou Rae abruptamente.
Claro! respondeu Nikki de imediato, como se a ideia de o Ed De la torre preocupar alguém fosse divertida.
Mas o xerife levou algum tempo a reagir.
Eu diria que ele tem olho para um lucro rápido, mas possui um sentido de moralidade muito próprio. É capaz de vender um bocadinho de marijuana aos amigos, ou talvez uns cogumelos alucinogéneos, mas nunca drogas mais fortes. E nunca roubaria um amigo, embora nem sempre seja fácil perceber se ele é amigo verdadeiro de alguém ou se se prepara para o enrolar. "Tratante" é uma boa palavra para o definir. Mas se se refere a violência, tanto quanto sei ele só é agressivo quando bebe. E há anos que não toca em álcool. A única coisa que talvez a preocupe é a reputação de se meter com mulheres sozinhas, sobretudo de mais de quarenta anos.
Mas só de comum acordo apressou-se Nikki a acrescentar.
Isso é verdade. Nunca ouvi nada sobre o Ed forçar alguém. Sedução é com ele! disse o xerife.
O sorriso que Jerry Carmichael fez a Rae tinha mais do que vestígios de sedução, o que a espantou, até ele o dirigir também a Nikki. A guarda-florestal e o xerife treparam para a lancha e partiram. Quando Jerry virou a embarcação para o mar alto, Nikki inclinou-se para ele para lhe dizer qualquer coisa acima do ruído do motor. Rae observou-os atentamente, mas não ficou a saber mais sobre a natureza da sua relação por aquela linguagem corporal do que pelo que soubera por vê-los juntos. Havia ali qualquer coisa de profundo, mas em que direcção era impossível dizer.
Sacudiu-se. Não era da sua conta e nada tinha a ver com Jerry Carmichael.
E assim, mais duma semana depois de aparar as tábuas para o subsoalho, interrompida pela canalização, pelo cartaz contra os intrusos e pelas visitas da sua comunidade, Rae ficou livre para regressar à real empreitada de erguer a casa. Primeiro, no entanto, lavou a loiça do pequeno-almoço e enfiou o fato de banho para um rápido (muito rápido) mergulho na enseada gelada. Por fim, pôs o cinto das ferramentas e retomou o seu verdadeiro trabalho.
Com o chão colocado, podia agora chegar à primeira secção de pedra sem arriscar o pescoço num escadote em terreno irregular. Encheu um balde no cano atrás da casa, estendeu uma folha de plástico para evitar encharcar as tábuas e atacou a pedra com escova e sabão.
A lareira e as torres de Desmond tinham sido construídas de pedras arredondadas pela água de tamanhos entre as de uma mão fechada na lareira até às de melancias nas torres. Ela esforçara-se duma maneira incrível e, à medida que o dia ia passando e as pedras apareciam livres da espessa camada de musgo e fuligem, via-se que as escolhera por outro motivo para além do tamanho.
Ao princípio, Rae pensou que não ia ser capaz de libertar as pedras da sua patina, que nem todos os detergentes do mundo e força de braços conseguiriam pô-las doutra cor a não ser preto. Mas depois, afastando-se um pouco para avaliar o seu progresso, verificou que, embora as pedras continuassem realmente escuras, a argamassa dos intervalos já não estava. Como experiência, levou o balde e a escova até à torre mais perto, e descobriu rapidamente que as pedras aí eram consideravelmente mais claras. Desmond escolhera-as na praia (e, muito provavelmente, em muitas outras praias) pela cor. A lareira era preta, com as pedras molhadas tão brilhantes como se tivessem uma camada de tinta húmida, mas a torre era, à falta de termo melhor, cor de laranja. Ágatas translúcidas do tamanho dum bule de chá, seixos metamórficos ricos em ferro, arenito com conchas infinitesimais embutidas, tudo em tons do amarelo ao tijolo claro, dando a impressão geral dum quente laranja. Quando novas, e à luz do Sol, deviam ter sido um espectáculo extraordinário.
Incapaz de resistir, atravessou a plataforma até à outra torre, esfregou durante uns minutos, e encontrou não laranja mas verde e até azul. Nunca tinha visto uma coisa assim.
Tio Desmond, o senhor é uma maravilha! exclamou ela.
Retomou o trabalho com renovado vigor, esfregando as pedras e a argamassa enegrecidas, começando no chão e avançando para cima.
Nessa noite, já tarde, acabou de limpar os primeiros três metros de lareira. Ficou parada na plataforma nua, no sítio da futura porta, tentando imaginar-se a entrar numa sala com aquilo ao fundo. Erguia-se como uma coisa primitiva e enorme, ao mesmo tempo sofisticada, com vagos vestígios de fios dum cinzento-pálido aqui e ali na escuridão da pedra a repetir a teia de argamassa. Decidiu que ia substituir toda a argamassa visível, numa cor cinzento-escura muito semelhante à actualmente manchada. E à esquerda construiria uma parede de arrumos, de inspiração mais japonesa do que shaker na sua elegância simples, duma madeira fresca, talvez vidoeiro ou bordo, para repetir as linhas escuras, formal junto da torre de pedra, com toques de ébano embutido para ligar as duas formas.
Era isso mesmo!
No dia seguinte, encontrou as balas.
Estava no escadote, a esfregar pacientemente um bocado de argamassa especialmente irregular, quando um pedaço do tamanho do seu polegar lhe ficou na mão. Agarrou-o e voltou-o, curiosa, para ver por que motivo aquele bocadinho saíra com mais facilidade do que o resto, e encontrou um estranho objecto cinzento embebido na base.
Primeiro, pensou que seria uma pedrita que tivesse escapado ao tio ao preparar a areia. Tirou as grossas luvas de borracha e raspou com a unha, franzindo a testa perante o pequeno objecto ligeiramente achatado. Não se parecia com qualquer pedra que tivesse encontrado; era mais como um pedaço de metal. Teria Desmond pregado um prego entre as pedras para pendurar alguma coisa, e teria esse prego ficado derretido com o calor do fogo? Que quente teria um fogo de ser para fazer aquilo? E porque teria um trabalhador cuidadoso como ele enfiado um prego numa obra tão perfeita a cerca de sessenta centímetros do tecto? Era tão estranho como o par de buracos que descobrira na lisa superfície da porta da rua.
Guardou aquilo no bolso da camisa e continuou o trabalho, pensativa.
Interrompeu-o à tarde, enquanto ainda havia luz, e tornou a vestir o fato de banho ainda húmido. A água não aquecera grande coisa com o tempo, mas parecia que uma pessoa podia habituar-se a tudo, porque, após meia dúzia de mergulhos, já não sentia o coração prestes a parar de cada vez que entrava na água. Afinal, considerava um desperdício ser a proprietária duma bela enseada límpida e não a utilizar. E os livros de Nikki revelaram-se mais interessantes do que esperara. Já sabia os nomes de todas as plantas e criaturas marinhas mais vulgares da enseada, desde as cracas às vespas, seus hábitos e características. Não sabia por que razão achava importante saber aquelas coisas, mas achava. Era como se estivesse a aprender os nomes dos vizinhos e o que faziam na vida.
Saiu da água e dirigiu-se descalça até junto do fogareiro, onde colocou a grande panela cheia de água para tomar um duche como devia ser. Depois, tirou um cinzel de lâmina estreita da caixa das ferramentas e a grande lanterna que tinha junto da cama, e foi até à bancada.
Chegar à parte inferior do banco através da floresta de pernas não era coisa simples, mas Rae conseguiu encontrar uma abertura, por onde pôde meter a cabeça. Era muito desconfortável e só conseguiu fazer incidir a luz sobre um dos buracos, mas foi o suficiente para confirmar que, a cerca dum centímetro da superfície do que fora em tempos a face interior da porta principal de Desmond Newborn, não longe do sítio onde estivera o ferrolho, havia um pedaço de metal cinzento semelhante ao que tinha encontrado na lareira. Recuou e, principalmente pelo tacto, escavou a madeira junto aos buracos, cortando os dedos só duas ou três vezes.
A coisa parecia ter entrado enviesada, pensava Rae, quando sentiu um pedaço cair na areia. Apanhou-o: uma massa informe, cinzenta, um pouco maior do que a borracha dum lápis. Poisou aquilo na bancada acima da cabeça, e começou a escavar o outro buraco. Ficava mais acima na porta, enterrado num ângulo ainda mais oblíquo, mas estava mais intacto, com uma ponta arredondada e a outra plana.
Balas, todas elas.
Não havia dúvida: três balas tinham voado pelo ar da Loucura de Desmond para se cravar nas suas paredes. Pelo menos três, corrigiu-se Rae, e em direcções opostas.
Colocou os três pedaços de metal em cima da bancada, enquanto foi pôr pensos nos dedos cortados e fazer o jantar, mas quando lançou um olhar aos três objectos cinzentos e reparou como se assemelhavam aos três pregos que espetara na madeira, a duplicação incomodou-a. Atravessou a clareira para os ir buscar e guardou-os no bolso da camisa.
Depois do jantar, enquanto tomava café, alinhou os três objectos em cima dum tronco de árvore cortado e ficou a olhar para eles.
Balas não significavam necessariamente que alguém tivesse apanhado um tiro. Talvez Desmond gostasse apenas de disparar a arma. Se Sherlock Holmes gostara de dar tiros dentro da sua própria sala até marcar as iniciais da rainha na parede, porque não Desmond Newborn? Talvez se tivesse embebedado ou tivesse um ataque de nervoso miudinho numa véspera de Natal e visse soldados alemães a descer pela chaminé.
Por outro lado, perguntou a si própria se haveria maneira de descobrir se os três pedaços de chumbo tinham vindo todos da mesma arma. Seria qualquer coisa confirmar que não se tratara de duas armas a disparar uma contra a outra. Talvez o xerife Carmichael pudesse mandá-las para um laboratório da Polícia mas devia achar isso um desperdício frívolo do dinheiro dos contribuintes.
Pensou também se iria encontrar mais pedaços de chumbo como aqueles, procurando bem na grande pilha de objectos não identificados que separara com a peneira.
Ora, Rae, repreendeu-se. A vida é tão aborrecida que tens de fabricar um melodrama, um furioso tiroteio numa pequena sala forrada de madeira? No entanto... Quanto tempo depois de aqueles balas atingirem a parede é que a casa ardera? E daí a quanto tempo desaparecera o tio-avô Desmond, trocando o arquipélago de San Juan pela zona selvagem do Arizona?
Durante uma semana, pensou naquelas coisas, enquanto acabava de limpar as pedras da lareira preta, substituindo a argamassa, depois levando os plásticos para a torre laranja a fim de a limpar e finalmente atacando a torre azul. Foi matutando nas implicações das três balas. A Lua escureceu e renasceu. Barcos de recreio passavam pela ilha. Nikki apareceu para dizer "olá", Ed veio e foi-se embora, deixando-lhe uns oleados fortes e três tanques de plástico para a água, e Rae não falou sobre tiroteios a qualquer dos dois. Ainda estava a pensar nas três balas quando acabou de limpar a parte mais alta das torres, tirou os plásticos que protegiam a madeira do soalho e transportou os últimos postes das paredes para a casa.
Na quinta-feira, levantou a estrutura da parede à esquerda da lareira, lembrando-se vagamente dos estranhos suportes duplos do tio nesse sítio. Colocou uma braçadeira temporária e, nessa noite, foi buscar os restos da parede antiga à lixeira e levou-a para a luz ao pé da fogueira.
Embora queimada e apodrecida, ainda se percebia como Desmond a tinha construído. Passara duas semanas convencida de que devia haver um motivo para os suportes duplos, provavelmente uma porta ou uma janela, mas aqueles restos da construção primitiva não lho indicavam claramente.
Deu voltas ao problema, deitada a ouvir os ruídos da noite, os mochos e os morcegos, o seu vizinho guaxinim, um avião e um ferry e a maré a baixar. Na sua fase mais baixa, um motor silencioso fez-se ouvir de passagem e, olhando para a parede de lona cada vez mais clara, Rae achou que era quase madrugada e podia levantar-se. Fez café, pôs o cinto e, à luz suave duma madrugada enevoada, percorreu o carreiro até à casa. Poisou a caneca no chão diante da lareira e foi até à secção de parede onde haviam estado os suportes duplos de Desmond. Aí, inclinou-se para fora por entre os seus suportes novos, a fim de olhar para a escarpada face da rocha onde a casa se aninhava.
Havia muitas pedras e entulho debaixo da vegetação, como seria de esperar, porque, em consequência do incêndio e do desmoronamento da casa, grande parte caíra para fora dos alicerces. No entanto, devia haver pouca madeira daquele lado, para além da parte saída do telhado, visto que a chaminé e uma torre formavam mais de metade da parede e, no entanto, não era isso que lhe parecia, olhando lá para baixo. Durante a noite, ocorrera-lhe que talvez tivesse existido alguma extensão da casa apoiada nas pedras por detrás da lareira. Se isso se confirmasse, a abertura podia ser o acesso a uma caixa de madeira, um sítio para guardar lenha perto da lareira que evitaria o lixo inevitável de transportar lenha através duma sala. E, embora alcançar esse depósito de madeira do lado de fora carregando lenha fosse difícil possivelmente implicando trepar com a ajuda de cordas talvez ela pudesse adaptar a ideia com uma escada exterior.
Com muito cuidado, Rae saiu de entre os seus suportes novos e passou para a traiçoeira superfície da rocha. Não tinha tirado o entulho dali, porque preferira arranjar uma plataforma segura primeiro. Em toda a sua estada na ilha, era a primeira vez que se aproximava do perigo e sabia perfeitamente que, se caísse, Ed só a encontraria quatro dias depois.
Puxou cautelosamente os antigos fragmentos de madeira queimada, que se lhe desfizeram nas mãos, e as vigorosas silvas que cobriam a parte traseira da lareira. A muito custo, suando e tentando não cair, mergulhou na zona inexplorada do outro lado da parede da torre, praguejando e pensando em voltar para trás.
Num instante, encontrou Desmond Newborn.
Diário de Desmond Newborn
30 de Abril de 1925
A dezasseis mil quilómetros das trincheiras, os fantasmas ainda me visitam, passam-me ao canto dos olhos, gemem sob o som do vento, saem do fedor duma carcaça de foca apodrecida na costa. Ontem, levantei os olhos do trabalho na torre das traseiras e lá estava o Harper entre as árvores, "abandonaste-me para morrer na lama", disse-me ele. E é verdade. Ele ainda estava vivo quando o meu grupo rastejou por ele, enterrado até acima da cintura, e morto, caído para a frente só com a parte posterior da cabeça à vista, quando voltámos catorze horas depois. Tínhamos passado o dia numa cratera só um pouco mais seca do que a dele, debaixo do peso duma metralhadora. "Tínhamos ordens", disse eu ao fantasma dele. Não parar para socorrer feridos. Tentámos puxar por ti, e cinco não conseguimos vencer a lama. Cavar significaria não cumprirmos a nossa missão. Ir buscar reforços uma bala do sargento. Sabes isso. É terrível morrer só e afogado na lama gelada." ""Desculpa", disse-lhe eu. "Desculpa.
Acabou por desaparecer, deixando-me com um balde de argamassa meio seca aos pés, coisa a que os pedreiros, por acaso, dão o nome de lama.
Vimos todos doidos, acho eu, os que saem das trincheiras. Um turno de vinte e três horas de inferno, com a terra a tremer, os ossos a chocalhar í o céu riscado por explosões, e até os nervos mais sólidos se dissolviam. £ isso era só um bombardeamento. O Georgie Abbot, um criador de gado, um homem que saiu para ir buscar um amigo à terra de ninguém sob um tiroteio mortífero, um homem que costumava apostar no número de ratazanas que conseguia impalar num dia com a baioneta, um homem que era sempre um dos primeiros a subir a escada, a cantarolar baixinho uma versão ordinária dum hino chamado em frente, soldados cristãos esse mesmo impassívelagricultor foi-se abaixo sob um prolongado bombardeamento. Começou a rir, às gargalhadinhas como uma criança com cócegas, depois tirou o capacete, atirou a arma para a lama e, antes que alguém pudesse impedi-lo, lá estava ele a sair da trincheira. Encaminhou-se para a terra de ninguém, com os braços estendidos como se pretendesse saudar uma pessoa querida, com um passo tão seguro quanto possível naquele terreno esburacado. Chegou quase até ao arame antes de os incrédulos alemães o despacharem.
Também vi o Georgie, o mês passado, entre os arbustos lá em baixo, ao pé da água.
Os fantasmas não são assustadores, agora que aceitei a sua presença à minha volta, até são uma espécie de companheiros. (Dou comigo a conversar com o apropriadamente chamado Mason, o melhor construtor de trincheiras que alguma vez vi, que vivia de fazer muros de pedra solta no Yorkshire e que me ajuda com a minha torre tal como ajudava em terras francesas com os sacos de areia. À noite evoco muitas vezes o Jimmy Jíurlstone, o soldado mais velho da companhia mas com uma cara de homem mais novo que o fez ser aceite pelo sargento quando se alistou. O Jimmy era um espantoso contador de histórias deliciosamente ridículas, que nos entretinha nas noites mais miseráveis. Nunca contaria isto, mas a verdade é que algumas das histórias que ele me conta aqui na ilha, eu ia jurar que nunca tinha ouvido.
fazem-me companhia, os meus fantasmas. E acho que talvez precisem também de mim, para os ajudar a passar os dias. Não me importo de partilhar a minha vida com eles; para cada lamento fantasmagórico que me chega duma tempestade, transportando-me subitamente para a noite a seguir a uma batalha com terríveis gritos roucos dos moribundos na escuridão, há dez homens amigáveis, rudes, alegres e corajosos que me emprestam as suas recordações.
Uma coisa pode dizer-se de uma experiência como a frente Ocidental: pouco há que recear da morte depois dela. Não receio a morte, embora lamente se ela chegar estando eu sozinho, e rezo para que não seja um fim intranquilo, para que a minha sombra não tenha de viajar pela terra à procura de um invólucro que a ajude a cumprir o seu tempo.
Só peço a continuação da paz que encontrei aqui.
Pedreiro. (N do T)
CONSTRUÇÃO DAS PAREDES
Havia um inesperado e intenso prazer no adiamento da vingança, na antevisão da cara do Ladrão, reflectiu ele ao aperceber-se de que o momento do ajuste de contas se aproximava. Completamente sós no meio do profundo mar azul, o Ladrão louco e a Vítima calma encontram-se, e o equilíbrio fica restabelecido.
Tanto quanto Rae podia imaginar, o monte de madeira apodrecida e cinzas atrás da casa significava que Desmond tivera um abrigo bem fornecido de lenha naquele sítio, na estrutura em forma de L no espaço entre a parede traseira e a face rochosa, da lareira até à torre. O material apodrecido teria de ser retirado com ancinho e balde, e ela planeava tratar do assunto assim que tivesse outro andar para poder instalar uma roldana coisa que lhe pouparia horas de trabalho, para não falar em tornozelos torcidos e ossos em perigo.
De momento, no entanto, estava preocupada apenas em descobrir a estrutura da estranha construção, para ver se percebia o motivo de tal esforço, quando um telheiro teria servido perfeitamente. Desceu da superfície rochosa para terra mole, esperando evitar ao máximo os pregos enterrados, e viu que afinal a superfície era suficientemente firme para as botas se enterrarem apenas uns dez centímetros. Foi afastando as silvas com o martelo e achatando-as com os pés sistematicamente, avançando devagar.
O estreito espaço terminava num canto húmido onde as pedras cor de laranja cobertas de musgo da torre traseira tocavam na parede rochosa, à esquerda, com a lareira à direita. Rodeada por paredes de pedra, naturais e feitas pelo homem, Rae sentiu-se como quem entra no fundo dum poço.
Embora o solo lhe tivesse parecido uniforme, descobriu que quanto mais avançava, mais fina era a camada de matéria orgânica. A pouca luz e a rocha nas raízes faziam as plantas crescer débeis e pouco viçosas. A caixa de madeira em forma de L devia ter estado mais cheia mesmo atrás da porta de acesso, o que fazia sentido quem é que precisava dum depósito cheio de lenha da mesma largura que a casa? Talvez Desmond tivesse imaginado uma tempestade, pensou Rae, irritada, desprendendo as calças das garras duma roseira. Um nevão árctico que o enterrasse durante semanas, obrigando-o a gatinhar pela porta de acesso até às profundezas...
Espera aí. O que é aquilo?
Os puxões que acabava de dar no tronco espinhoso tinham provocado uma pequena derrocada da colina, perto do canto da chaminé com a torre, mas as pedras caídas não lhe taparam as botas. Em vez disso, desapareceram. Raspou a superfície rochosa com o lado da cabeça do martelo e depois enfiou as fortes orelhas no chão e puxou.
Havia um buraco.
O martelo não era suficiente e Rae, impaciente por descobrir o que Desmond escondera atrás do depósito da lenha, recuou por cima da vegetação esmagada, das pedras partidas e do húmus escuro. Tirou o cinto das ferramentas e foi buscar uma pá, dois baldes e a lanterna grande.
Atacou o sítio onde as pedras tinham desaparecido e acabou por não se servir dos baldes, limitando-se a retirar terra e vegetação de junto da torre e concentrando-se no buraco. Era mais do que isso, uma pequena gruta ou, pelo menos, uma gruta com uma entrada pequena.
Depois de limpar a entrada, viu um buraco regular na rocha com um pouco mais de sessenta centímetros de altura e menos de largura. A toda a volta, viu marcas de cinzel muito maior do que qualquer ferramenta utilizada por ela, mas que deixara marcas perfeitamente reconhecíveis. Pegou na lanterna e ajoelhou-se.
A luz iluminou o interior da colina, até uma distância tão grande que a parede do fundo ficou pouco visível. Rae hesitou, mas não encontrou motivo para não entrar. Se aquilo não tinha desabado até àquele momento, o mais certo era aguentar mais um dia se tivesse o cuidado de não dar um encontrão em alguma coisa ou fazer barulho.
Respirou fundo e gatinhou para dentro do ventre da ilha.
Era o mesmo estrato de arenito que serpenteava pela pedra mais dura da ilha, percebeu. Noutros sítios, transportava água; ali transportava... o quê?
Ar, talvez, embora viciado e completamente imóvel, mesmo logo à entrada. E água algures, porque sentia humidade e ouvia pingar a intervalos de alguns segundos. O chão e as paredes estavam secos, e ela foi avançando pelo túnel irregular, à procura da origem do ruído.
Mas não a encontrou, pelo menos nesse dia. O que a luz da lanterna descobriu, num monte no fim dum curto corredor lateral à sua esquerda, foi roupa poeirenta em cima duma ossada completa: longas pernas, caixa torácica, braços e caveira sorridente.
Os vinte segundos seguintes decidiram a questão da estabilidade da gruta quanto a barulhos fortes e encontrões. Durante três desses segundos, Rae ficou imóvel, de gatas, olhando de boca aberta para a caveira, mas depois sentiu todos os pêlos do corpo porem-se em pé e desatou a gritar, deixando cair a lanterna e fugindo descontroladamente para trás, batendo na entrada e subindo por entre os barrotes como se fossem uma porta. Entornou a caneca de café e correu pelas tábuas do soalho, descendo a correr os degraus e parando finalmente junto da segurança da sua bancada. Deu uma palmada na madeira, o gesto duma personagem medieval que pedisse asilo num altar, e correu para o outro lado, donde olhou para a casa, como se esperasse ser perseguida. Respirou fundo três vezes e depois tapou a boca com a mão e desatou a rir, quase histérica.
A tempestade emocional passou, deixando-a tonta e a tremer, até que decidiu sentar-se na cadeira de lona antes que as pernas lhe falhassem. Primeiro, no entanto, voltou a cadeira de maneira a ficar com a vista da encosta totalmente desimpedida.
Baixou a cabeça quase até aos joelhos e ficou à espera que o mundo deixasse de rodopiar, deitando uma olhadela de dois em dois segundos para as duas torres. Nada se movia. A adrenalina baixou e, daí a pouco, tentou levantar-se para fazer uma chávena de chá (sem leite, por ser sexta-feira), com umas pernas que nem pareciam suas. Conseguiu, bebeu-o e começou a sentir-se menos trémula.
Bom, disse para consigo, pelo menos já não precisava de se sentir preocupada com a ideia do pobre tio-avô Desmond jazendo numa campa não identificada e coberta de cactos algures no Arizona.
Mas que diabo lhe teria acontecido?
Pela primeira vez desde a sua chegada à ilha, Rae desejou ter um telefone. Um esqueleto de setenta anos não lhe parecia justificação para disparar sinais luminosos para o ar, embora soubesse que mesmo um esqueleto há muito seco e sem carne precisava dum tratamento oficial qualquer. Talvez não de paramédicos nem dum daqueles sacos com fecho tão queridos dos programas da televisão, mas com certeza de alguém com autoridade e possivelmente uma câmara de vídeo, para enfiar os ossos numa caixa e mandá-los para algum laboratório onde seriam examinados e remexidos durante certo tempo.
Olhou para a casa e pensou que talvez fosse boa altura para fazer um intervalo e almoçar. Descobriu uma lata de atum e fez duas sanduíches, dirigindo-se para junto da água a fim de pensar.
O que pensou foi: Cá por mim, detestava acabar num laboratório.
Daí a pouco, voltou para casa, para continuar a trabalhar nas paredes. Não lhe custou tanto como esperava. Cortou e pregou madeira, emoldurou a porta e a janela, sempre à espera de se sentir pior, dos sintomas habituais sobressaltos, dificuldade em respirar, ver e ouvir coisas que não existiam e a chegada brutal dum ataque de pânico mas nada disso aconteceu. Sentia-se nervosa, sim, e não deixou de olhar frequentemente para a parede ao lado da lareira, mas a respiração normalizada assim se manteve, a brisa perfumada era apenas o bafo do céu, e o movimento constante das pequenas ondas continuou tranquilo e não uma ameaça adivinhada pelo canto do olho.
Aguentou o resto do dia, comeu a refeição da noite não uma grande quantidade e a chuva ligeira que começou por volta da meia-noite trouxe consigo perturbadoras possibilidades de inquietos esqueletos fora da parede de lona, mas na realidade a insónia devia-se mais à intensidade da sua meditação do que a um medo real. Quanto mais pensava no assunto, menos gostava da ideia de entregar os restos mortais de Desmond Newborn às mãos descuidadas da lei, para serem enfiados numa caixa. Tinha praticamente a certeza de que não lhe permitiriam deixá-lo onde estava, e também não sabia se o desejava, quanto mais não fosse porque não seria capaz de parar de pensar no assunto, uma morte não reconhecida. Mesmo a imaginária sepultura sem lápide num cemitério árido seria reconhecimento de que alguém, por mais anónimo que fosse, tinha morrido. Talvez pudesse pedir que lhe devolvessem os ossos para um enterro adequado ali na ilha ou haveria alguma lei quanto a terreno consagrado? Se assim fosse, mandaria cremar o que restava dele e traria as cinzas para junto das de Alan e Bella. Em qualquer dos casos, não conseguia deixar de pensar que era uma maneira desagradável de tratar o velho senhor, arrancá-lo do seu descanso.
Não, não o deixaria na sua sepultura natural; ia avisar o xerife Carmichael e permitiria que a lei fizesse o que entendesse com Desmond. Primeiro, no entanto, ia ter com ele e dava-lhe a notícia com meiguice.
Afinal, não seria a primeira conversa que tinha com os mortos.
A chuva parou a meio da manhã. Quando o Sol estava praticamente a pique e as sombras atrás da casa no seu mínimo, Rae pegou no candeeiro de petróleo mais pequeno, em pilhas e numa lâmpada para a lanterna, e voltou à gruta. O monte de terra removida atrás da casa transformara-se em lama, as plantas estavam murchas, mas o buraco continuava lá.
Com a parte superior do corpo já dentro da gruta, Rae sentiu uma enorme vontade de aclarar a garganta, como que para avisar alguém da sua chegada. Chegou-se para a frente até conseguir apanhar a lanterna, que rolara de encontro à parede; e desmanchou-se para substituir as pilhas. A lâmpada, felizmente, não se tinha partido. Verificou que as mãos estavam incrivelmente seguras. Meteu a lanterna no bolso de trás das calças e acendeu o candeeiro, mudando o escudo para iluminar em frente, e depois desceu o túnel até chegar à pequena gruta lateral onde se encontravam os restos de Desmond Newborn. Aí, fez incidir a luz em volta.
E deitou fora o ar que nem se apercebera de estar a reter. Ele ainda lá estava. Só Deus sabia qual seria a sua reacção se não o encontrasse, reflectiu Rae, encostando-se à parede para enfrentar os ossos do homem que construíra o seu lar na ilha.
Eu adoro a sua casa, tio Desmond! disse-lhe ela.
A voz soou monocórdica na gruta, e ela sentiu-se de repente ridícula ali sentada a falar com uma pilha de ossos e trapos. Respeito pelos mortos era uma coisa, mas, se o tio-avô Desmond era mais ou menos parecido com o homem que ela imaginara, desatava a rir ou afastava-se aborrecido.
Que podia dizer-lhe? Desde os nove anos que imagino como seria conhecê-lo, Desmond, desde o dia em que encontrei a sua medalha na gaveta do avô? Desmond, meu camarada ovelha negra, ajudou-me a sobreviver à minha infância, foi o meu guia através de tempos muito difíceis? Que podia ela dizer-lhe que ele não soubesse?
Por isso, em vez de falar para as sombras, Rae limitou-se a ficar ali um bocadinho sentada com ele.
Depois, ajoelhou-se de novo e, empurrando o candeeiro à sua frente, examinou o resto do túmulo.
A abertura estreita da gruta alargava-se e ficava mais alta, até que finalmente pôde permanecer de pé, embora com cuidado. Não sabia o que esperar da caverna de Desmond, embora não tivesse ficado admirada se encontrasse caixas de mercadoria de contrabando rum, ou genebra feita em casa, por exemplo, visto ele ter morrido em plena Lei Seca. Na realidade, quase pensava que podia encontrar algum tesouro escondido, e ficou desapontada quando a gruta lhe revelou apenas duas prateleiras quase vazias.
A gruta principal era do feitio dum ovo talvez com quatro metros e meio de comprimento e três de largura, com água a pingar pela parede do fundo duma ponta calcificada para uma poça pouco maior do que um prato de sopa. Essa parede estragara-se com o decorrer dos anos e Rae não percebeu se o que ruíra escondia outra passagem baixa para as profundezas da colina. Pelo aspecto da rocha, duvidava que existisse...
O melhor da literatura para todos os gostos e idades