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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NUNCA VENCEDORA, NUNCA DERROTADA / Caldwell
NUNCA VENCEDORA, NUNCA DERROTADA / Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Cornélia DeWitt já foi uma mulher bela e inescrupulosa. Agora, apesar de devastada pelo tempo, ainda usa sua imaginação diabólica para controlar os negócios multimilionários da família. Aos poucos, ela consegue desmontar todas as armadilhas à sua frente e vai passando o controle do império ferroviário ao neto Rufus — em tudo igual à avó. Com este romance de tom épico, cuja ação dramática e emocionante se confunde com a própria história americana, Taylor Caldwell já encantou milhões de leitores em todo o mundo.

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Na opinião de todos, e para indignação de alguns, o caso havia sido um grande escândalo. Cornélia DeWitt Marshall não apenas se afrontara, mas também a todos os amigos e à companhia fundada pelo avô.
0 banquete em homenagem a ela e ao centésimo aniversário da poderosa Interstate Railroad Company foi realizado no salão principal do clube particular mais antigo e aristocrático de Filadélfia. Compareceram dezenas dos maiores acionistas, inclusive Jay Regan, o mais moço, de Nova Iorque, e um ou dois Vanderbilts, sem contar todos os diretores e altos funcionários da companhia.
À cabeceira, tendo a mãe à direita, estava DeWitt Marshall, com o filho Rufus ao lado. (Rufus tinha apenas vinte e um anos, mas, como um dia também ele seria presidente, considerava-se justo que se sentasse ao lado do pai). Sabia-se que Cornélia DeWitt Marshall fora, e ainda era, o “espírito orientador da companhia”. Os cavalheiros presentes (e só havia cavalheiros, em virtude da antipatia de Cornélia pelas mulheres) olhavam com carinho para aquela mulher de setenta anos, sentada ali à mesa imensa, sob a luz dos lustres de cristal.
Algumas das expressões de carinho podiam ser falsas, mas o respeito era bem sincero. Confidencialmente, ela era chamada de “velha peste ruiva endiabrada”. No entanto, ninguém subestimava Cornélia, mulher dominadora e poderosa, inimiga vingativa e excêntrica.
Lá estava ela, figura imponente, sentada em sua poltrona dourada, como um trono. Mesmo sentada, destacava-se. Alguns dos homens mais velhos, dentre eles Jay Regan, lembraram-se de uma frase antiga: “Um belo corpo de mulher”.
Cornélia media um metro e setenta e três e o corpo parecia o de uma mulher quarenta anos mais jovem. A cintura era fina, o busto cheio e alvo, embora o pescoço estivesse avermelhado. Seu andar era jovem e seus gestos eram rápidos e dominadores. Montava como um rapaz e muitas vezes ela mesma dirigia o carro. De vez em quando jogava excelentes partidas de tênis e golfe. Quando velejava em seu enorme iate, Rufus, muitas vezes ela tomava o leme, para assombro e respeito do comandante. Nadava feito uma criança vigorosa, dizia palavrões como um policial de Nova Iorque, gritava mais que qualquer um numa partida de futebol e dançava como uma adolescente. Cornélia também possuía um repertório original e muito vasto de anedotas indecentes e sabia beber melhor do que qualquer homem.
Aos setenta anos, Cornélia ainda era cheia de vitalidade. Era assombroso, pensavam os amigos mais velhos, alguns já trôpegos, de olhos remelentos. Cornélia também nunca se esquecia de nada, sua memória era uma biblioteca completa sobre a indústria ferroviária.
0 banquete estava muito bom mesmo. O chefe seus auxiliares tinham se esmerado para a ocasião. Cornélia comera o dobro do que consumiram os outros convidados. Apesar disso, não parecia saturada nem lerda, embora tivesse bebido uma quantidade de bourbon, sua bebida favorita, antes e durante o banquete.
Lá estava ela: sorridente, alta e imponente em sua poltrona, emanando vida e energia. Usava um vestido prateado, bem justo, destacando o corpo jovem e os lindos ombros brancos. Uma cascata de pequenas orquídeas brancas enfeitava seu busto. Um colar de brilhantes reluzia em sua garganta, brilhantes fulguravam nas orelhas, cabelo, dedos e nos braços compridos e alvos. Era uma ostentação vulgar e os convidados de bom gosto comentaram isso, discretamente. Mas
Cornélia nunca tivera pretensões ao bom gosto. Era vulgar, áspera e rude e se gabava de tudo isso. Exibia a vulgaridade como exibia os brilhantes: com orgulho e humor perverso.
DeWitt e seu filho Rufus olhavam para Cornélia naquela noite com expressões polidas e murmuravam em resposta aos seus comentários gritados, que podiam ser ouvidos em todo o salão do banquete. Olhavam para o rosto dela, que, em contraste com o corpo, mostrava a idade, até certo ponto. Não era o rosto de uma mulher de setenta anos, mas um rosto abatido, pintado demais, os lábios vermelhos apertados e finos, o nariz grande e curvo muito saliente, os olhos castanhos borrados com um tom lilás luminoso, as pestanas pintadas e duras. Ela ficava melhor quando dava um sorriso ou ria, pois os dentes naturais eram grandes, alvos e perfeitos e brilhavam como porcelana. Aí seus olhos dançavam, as rugas quase desapareciam e seu humor, vigor e vitalidade animais realizavam o milagre de fazê-la parecer pelo menos trinta anos mais jovem.
Acima daquele rosto espantoso havia uma cabeleira ainda mais sensacional. Cabelo ruivo, lustroso e ondeado, entrelaçado com brilhantes. Não era um ruivo castanho, nem claro ou dourado. Era simplesmente ruivo violento, vermelho. Era da cor da juventude dela. Tinha fotografias para prová-lo. No entanto, fazia trinta anos que seu cabelo na verdade já estava branco. Ela não se importava que soubessem que esse ruivo não passava de tintura. Era uma obra de arte de abundância e pujança.
Era quase impossível escapar do som daquela voz retumbante. Os garçons sorriam discretamente, dando risadas íntimas quando ouviam alguma de suas brincadeiras favoritas e menos delicadas. Havia um magnetismo em Cornélia ao qual só seu filho DeWitt era imune. Às vezes, ele se dava ao trabalho de explicar isso, pensativo:
—    Acho que é porque ela nunca se interessou por um único ser vivo, a não ser por ela mesma. Se você se amar bastante, todo mundo o amará também. Acreditarão que você deve ter um motivo bom para isso.
Naquela noite, pai e filho estavam examinando Cornélia, vendo os rostos absortos ao seu redor, observando seus gestos alegres, o sorriso rápido e brilhante, ouvindo sua gargalhada e as que se juntavam à dela. Rufus se mexeu no assento, inquieto, e, depois de alguma hesitação, murmurou:
—    Já notou, pai? Hoje há alguma coisa diabólica na vovó...
—    Tolice — disse DeWitt, num tom de reprovação. O filho, que ele considerava uma versão masculina agigantada de sua mãe — sem a inteligência de Cornélia, claro — sossegou e uma expressão emburrada apareceu na boca grande, tão parecida com a da avó. Sentindo o ressentimento do filho, DeWitt agitou-se na cadeira e brincou com a bengala. Rufus o aborrecia. Todos o aborreciam, menos Tony, que não estava ali. Por um instante, consternado, ele sentiu a antiga desolação.
0 velho George Hill, um dos diretores da companhia, estava acendendo o cigarro de ponta dourada de Cornélia. A mão dele tremia, de velhice. Ele riu ao ouvir uma piada de Cornélia. Depois ficou sério. Logo ele faria o discurso e entregaria a medalha.
0 velho gordo com olhos vidrados e uma grossa papada levantou-se devagar e se apoiou sobre a mesa. Os garçons saíram do salão, fechando as portas. Fez-se um silêncio e todos ficaram à espera. Cornélia deu duas baforadas. A noite de fevereiro estava anormalmente amena e o ar-condicionado roncava no silêncio
repentino.
O sr. Hill olhou em volta, imponente.
—    Caros amigos — disse —, estamos reunidos para esta ocasião muito especial. Uma ocasião dessas poderia exigir discursos prolongados. Mas Cornélia... a sra. Marshall... pediu que não se fizesse qualquer discurso! Não é isso, meu bem? — perguntou ele, virandose para Cornélia e olhando para ela com carinho.
Cornélia soprou a fumaça, meneou a cabeça e deu uma risada exuberante.
—    Até mesmo uma estrada de ferro deve ficar constrangida por completar cem anos — disse ela. Seus olhos brilharam sobre todos os rostos e neles havia um quê de reflexão. Por fim, ela pousou o olhar no filho e no neto e seu sorriso alargou-se. DeWitt cerrou as sobrancelhas pretas e enrijeceu sem querer. Rufus sentiu um estranho calafrio de alarme. Não gostava da avó. Sempre a achara extremamente feia e, por vezes, detestava ser tão parecido com ela. Ele mexeu a mão, sem querer, como que para tocar no braço magro do pai, e depois a largou sobre a mesa.
Ele pensou: “Não há como negar que a diaba velha tem uma cabeça, talvez melhor do que de todos nós juntos. Mas também não há como negar que ela é uma bruxa”. Distraído, ele pegou um cigarro numa caixa de cristal, e começou a fumar, como amador. Havia alguma coisa pairando no ar, centralizada “naquela velha”, que o deixava apreensivo e irritado. Os olhos de Cornélia tinham adquirido um brilho fixo e estranho ao olhar para o filho. Seu sorriso para Rufus parecia o mais feio do mundo. A luz ofuscante dos lustres brilhava sobre a calva rosada do sr. Hill e os brilhantes de Cornélia ofuscavam os olhos. Ela era uma cintilação só, como eletricidade. A Rufus dava a impressão de nova malignidade, dirigida a DeWitt, pai dele.
Então, enquanto o velho sr. Hill continuava as loas, o olhar dela passou ao neto, Rufus. Ele a observava. Ela estava rindo, silenciosamente. No entanto, agora havia em seus olhos um estranho triunfo. Rufus ficou intrigado. Não era o preferido de Cornélia, mas lá estava o triunfo, a garantia, nos olhos dela. “Que diabo ela está tramando e o que tem a ver comigo?”, perguntou-se Rufus.
—    Nós todos sabemos — dizia o sr. Hill, com voz trêmula de emoção — que foi Rufus DeWitt, pai da sra. Marshall, com seu espírito de empreendimento, visão e coragem resoluta... herdados do pai dele, sr. Aaron... quem colocou a Interstate Railroad Company no seu caminho para o imenso sucesso. Mas sabemos também que foram o gênio e a ambição da sra. Marshall que levaram nossa companhia a assumir importância e proporções tão gigantescas. Ela sempre foi o braço direito do pai. Foi a luz que nunca se apagou. As idéias, o entusiasmo e o planejamento da sra. Marshall são únicos na história das ferrovias americanas.
Rufus de repente pensou no avô falecido, Allan Marshall. Conhecera pouca coisa sobre Allan. A família não falava mais dele, desde sua morte. Era um homem a ser esquecido assim que possível. Mas ninguém pode esquecê-lo, comentou Rufus para si. Está aqui, como um espectro, possante, apaixonado, escutando. Ninguém pode fugir dele.
—    Eu me pergunto: o que vovô acharia de tudo isso? — disse Rufus ao pai. Mas DeWitt ergueu os ombros para o filho, com desdém. Rufus acendeu outro cigarro, cerrou as sobrancelhas ruivas e baixou a cabeça.
0 sr. Hill chegara ao fim de seu discurso. Todos ficaram esperando. O sr. Hill estava segurando uma caixa de cetim branco, em atitude de veneração, como um sacerdote seguraria um cálice. Alguma coisa brilhou dentro dela: uma grande medalha de ouro. O sr. Hill fez uma mesura e colocou a caixa diante de Cornélia, que olhou para ela com uma tolerância sorridente. Depois, ela levantou os olhos e dessa vez não dirigiu o olhar para o filho ou o neto. Estava olhando para um dos filhos de sua prima Laura, Miles Peale, vicepresidente executivo da companhia. Miles retribuiu o olhar com seriedade e com o rosto inexpressivo. Cornélia sorriu e deu uma risada. Pegou a medalha e a examinou, com olhar crítico.
— Muito bem — disse ela, levantando a medalha. — Olhem! É linda. De um lado a nossa velha máquina movida a lenha, de outro a mais nova locomotiva, com os vagões fazendo uma curva magnífica nas montanhas. Maravilhoso. 1835 a 1935. Cem anos!
O salão de banquete trovejou com aplausos e risadas afetuosas. Cornélia entregou a medalha a seu vizinho, que a passou adiante. Passou de mão em mão, com o maior respeito, e Cornélia observou essa passagem. Estava fumando depressa e, através da fumaça, seus olhos brilhantes estavam cheios de alegria maldosa.
A medalha chegou ao jovem Rufus. A coisa parecia fria, grande e pesada em sua mão. Representava o poder extraordinário. Ele a passou ao pai, que a examinou atentamente e pareceu relutar em passá-la adiante. A medalha voltou para Cornélia que estava com um sorriso imenso, como se tivesse notado o desejo do filho de conservar a medalha.
Foi aí que começou o incidente escandaloso Cornélia começou a jogar a medalha para cima, lançando-a cada vez mais alto. Começou a rir, de maneira mais irreverente, mais áspera, mais forte, a cada jogada. Ninguém se mexeu, ninguém falou. Os sorrisos desapareceram. Todos olhavam a moeda reluzindo no ar, vendo-a cair e subir de novo. Não conseguiram se mexer nem quando Cornélia empurrou de repente a cadeira para trás e se levantou, jogando a medalha e rindo alto, com escárnio. Alguns começaram a se levantar, depois se congelaram numa pose meio sentada, hipnotizados pelos atos inusitados daquela mulher extraordinária.
Agora a medalha girava mais alto no ar e parecia uma mancha amarela de luz sob os lustres. 0 sr. Hill estava paralisado em seu lugar, a boca aberta. Alguns dos homens agarraram a beira da mesa florida, debruçando-se para a frente. As mãos de DeWitt, sobre a mesa, pareciam ossos cerrados e sem carne.
Nada poderia ser mais diabólico e assustador do que o rosto duro e espalhafatoso de Cornélia às gargalhadas. Ela se balançava nos saltos altos e prateados: uma figura prateada, chamejante, cintilando com os brilhantes, encimada pela cabeleira ruiva viva.
Então, sem uma palavra ou olhar, ela foi para a porta, ainda atirando a medalha, gritando cada vez que subia ou caía. Estava cambaleando, parecendo embriagada. Ninguém se levantou. Ninguém a acompanhou. Ela chegou à porta, abriu-a enquanto a medalha girava no alto, pegou a medalha e saiu.
Enquanto ela se afastava, todos ouviam suas risadas.
PARTE UM 1
0 degelo típico de janeiro durou três dias, fazendo pensar que a primavera chegara.
Diariamente todos profetizavam neve para o dia seguinte, mas ela não vinha. Em vez disso, a grama se tornou de um verde vivo e as plantas perenes brilhavam no jardim, vivas, na terra negra e úmida. A neve recuava como uma onda branca contra os muros e se encolhia no mato. O sol pálido e vivo brunia os galhos despidos das árvores e brilhava nos lados das casas. O rio estava volumoso e escuro e ao pôr-do-sol as névoas rolavam das montanhas e o céu ficava de um azul suave e tenro.
Poderia ser a primavera, só que a terra não exalava aroma algum e os ventos estavam estéreis, sem qualquer doçura, e a grama, embora estivesse verde, parecia artificial. As pererecas não cantavam ao anoitecer, nem se ouvia o canto dos pássaros. As pessoas olhavam para o céu, inquietas, ou vigiavam o rio, que subia e ameaçava o vale.
Na quarta noite começou a chover e o céu ficou cinzento, tornando-se rosado aos poucos. Nuvens negras começaram a esvoaçar depressa nesse fundo fantasmagórico e de repente relâmpagos vivos as cortavam. Começou a trovejar. A tempestade abateu-se furiosa sobre os campos e as árvores desnudas açoitavam o ar, as montanhas e o vale tremiam nos clarões loucos de luz e pareciam se abalar à trovoada. O rio, iluminado num momento, escuro no seguinte, jogava-se em fuga pelos morros.
Eram onze horas da noite e a tormenta estava no meio quando Lydia DeWitt aos poucos foi saindo do estado inconsciente em que se encontrava fazia horas. Seus ouvidos aturdidos tomaram conhecimento do martelar nas janelas e depois seus olhos, fracos e ainda apagados, captaram o clarão dos relâmpagos por entre as dobras das cortinas de veludo vermelho. Muito confusa, não se lembrava de onde estava. Ouviu o trovão e se perguntou, fraca: “É verão? O que aconteceu comigo?” A sarjeta estava cheia de água rolando, e ela a ouvia, como uma cascatinha. Então, Lydia viu a luz da lâmpada no quarto e tentou erguer a cabeça.
—    Bom! — exclamou uma voz masculina, animada. — Afinal, ela acordou! Nossa Liddie acordou!
O piso sólido, sob o tapete pesado, balançou um pouco sob os pés de alguém. A luz da lâmpada tremeu aos olhos de Lydia, e ela tornou a fechá-los. Então, em tom suave e servil, uma mulher falou:
—    Agora ela está bem, sr. DeWitt. Nossa senhora está bem. Não está, sra. DeWitt?
Lydia manteve os olhos fechados, engolindo, nauseada. Estremeceu quando um violento trovão ecoou. A casa era grande e sólida, mas estremeceu.
—    Um bebê maravilhoso, Liddie! — disse o homem. — Não quer abrir os olhos? A enfermeira pode trazê-la aqui.
Lydia suspirou e abriu os olhos.
—    Menina? — suspirou.
—    Uma menina linda — disse a voz, exuberante. — Cabelo ruivo. Cornélia! Esse será o nome dela.
Cornélia. Um nome duro, de pedra. Lydia ficou deitada inerte na cama imensa, olhando para o marido. Olhou para ele, odiandoo, e virou a cabeça para o lado. Mas ele continuava ali, próximo, sorrindo, corpulento e forte, o cabelo ruivo ondulado ardendo à luz da lâmpada. Ela o via ali, embora estivesse com a cabeça virada. Sentia a sua presença, e o belo terno de casimira e a gravata preta com o alfinete de pérola. Via seu rosto grande e corado, os olhos castanhos brilhando, os lábios grossos abrindo-se sobre os dentes grandes e alvos. As mãos eram grandes, brancas e macias e ele usava um anel de brasão.
Lydia sentia o magnetismo dele, sua saúde e vitalidade. Sabia que ainda estava sorrindo. Lydia sabia de várias outras coisas sobre ele. Seu horror aumentou e ela temeu dar um grito. Lydia sentiu a pele ficar quente, cerrou os punhos e fixou os olhos atentamente sobre o fogo que crepitava e se levantava em centelhas douradas na boca da chaminé. Aí uma saia branca engomada se interpôs entre ela e o fogo e a voz da sra. Brunt, sua enfermeira, se fez ouvir:
—    Vou trazer o bebezinho para a senhora ver, sra. DeWitt. Uma menininha tão bonitinha!
“Não”, pensou Lydia. “Não a quero. Não quero vê-la.” A mão tocou seu cabelo comprido, enroscado no travesseiro, e ela se encolheu.
—    Loi tão difícil para a nossa coitadinha — murmurou o marido, continuando a lhe afagar o cabelo. — Mas agora está tudo bem. Dormiu bem, querida?
Lydia respirou fundo, exausta. Pensou se não poderia se lançar de volta àquelas trevas, para sempre. Alguém lhe beijou o rosto e ela se encolheu. A presença do marido a dominava e sua carne se arrepiava.
—    Não — murmurou ela. — Por favor, não, Rufus.
Rufus começou a rir. A mão dele tocou sua garganta molhada, com solicitude.
—    Não me importo que seja menina, querida — disse ele. — Eu queria homem, sim. Mas esse bebê é melhor ainda. É a minha cara, foi o que disse o dr. Worth. — A voz dele, sempre cheia, ficou ainda mais inflada de orgulho. Lydia sabia o que o marido estava sentindo. “Rufus Ruivo!”, pensou ela com desprezo.
Ela virou a cabeça de repente e olhou-o, querendo que ele visse o ódio que fervia dentro de si e que tinha começado a se manifestar menos de três meses depois do casamento. Agora ela não podia evitálo. Seus grandes olhos escuros estavam cheios de fogo e ela abriu a boca pálida, sem querer. Fitou o marido, o rosto branco brilhando em razão de um ódio que ocultara por mais de dois anos. Não se importava se ele o visse; queria que percebesse.
Rufus recuou. Cerrou as sobrancelhas ruivas, perplexo. Seu rosto assumiu aquele ar jovem e ansioso que tanto atraía as mulheres. A sra. Brunt viu e falou:
—    Às vezes as mulheres ficam perturbadas, num momento desses — disse ela, em tom de consolo. — Talvez seja melhor não trazer o bebê por enquanto. A sra. DeWitt devia dormir mais um pouco.
Marido e mulher se olhavam fixamente em silêncio. Aí Lydia, dirigindo-se a Rufus, disse, devagar e claramente:
—    Não quero ver o bebê.
—    Claro que não. Ainda não — disse a sra. Brunt, acalmandoa. —: Temos de dormir mais um pouco...
Lydia disse:
—    Quero ver Alice e Stephen.
Rufus desviou o olhar e, depois de um instante, disse com animação:
—    Mas claro, minha querida! Estão aqui. Não saíram ainda. E mamãe e papai estão esperando.
Rufus deu um passo em direção à lareira e Lydia viu os músculos fortes de suas costas e ombros. Ele começou a atiçar os carvões, que se desfizeram, enchendo o quarto com uma luz amarela. Ele ficou ali, olhando para o fogo, e disse baixinho:
—    O que é que há, Liddie? — Ele olhou para a porta fechada, por onde saíra, a sra. Brunt.
Pela primeira vez, Lydia sentiu imensa dor em seu corpo. Ela se contorceu, agarrando os lençóis. O suor banhou-lhe o rosto. O ódio em seu espírito e a dor em seu corpo foram demais para ela. Gritou, sufocada. Rufus não se virou. Empurrou um carvão caído de volta para a lareira. O cabelo ruivo estava iluminado pelo fogo, parecendo uma nuvem em volta de sua cabeça grande.
—    Nunca mais vou ter um filho! — exclamou Lydia, contorcendo-se de novo. — Nunca com você, Rufus!
Rufus então se aproximou, apreensivo e sinceramente preocupado. Não a tocou. Cerrou as sobrancelhas e mordeu o lábio, pensativo. Estava inseguro e perplexo. Não era possível que Lydia o detestasse, pensou. Era só a imaginação, a luz e o sofrimento que ela suportara que davam uma expressão tão feroz a seus olhos.
—    Ora, Liddie — disse ele. — Não entendo. Claro, você passou por um mau bocado e as mulheres...
Lydia ficou deitada, ofegante, olhando para ele, as mãos tensas e brancas, puxando o lençol sobre si, num gesto instintivo de proteção. Ela não conseguiu mais falar. A emoção que a dominava era forte demais. Estava ali, reprimida, controlada, havia mais de dois anos. Agora subiu-lhe aos lábios uma onda de raiva fria e de aversão. Mas o hábito de vinte e quatro anos de uma educação refinada não podia ser vencido, e Lydia se calou.
Rufus falou de novo, quase sem se fazer ouvir, como que para si:
—    Você me olha como se me odiasse, Liddie. Por quê? 0 que fiz? Eu a magoei de algum modo, querida? Você sabe como a amo, não sabe, Liddie? A dor foi demais para você?
Lydia disse, com a garganta apertada:
—    Foi.
Rufus ficou satisfeito e muito aliviado. Mulheres como Lydia, que sempre tinham levado uma vida protegida e resguardada, por vezes ficavam emotivas depois do parto. O dr. Worth o prevenira. Poderia até haver um período de depressão e melancolia. Era comum. Rufus fitou os olhos de Lydia e viu neles a febre viva, a concentração furiosa. Ele enfiou as mãos nos bolsos e se balançou nos calcanhares, com a testa franzida outra vez.
A luz do fogo saltava e caía pelas paredes brancas, acentuando o vermelho das cortinas de veludo, estendendo suas sombras pelo teto branco, com seu friso dourado. Aos pés de Lydia, as colunas da cama, com pontas em forma de abacaxi, erguiam-se como esguios troncos de árvore. As cadeiras de veludo azul estavam colocadas junto ao fogo e perto da janela havia um sofá de seda dourada, combinando com o dourado suave do tapete. Um espelho acima da lareira refletia o quarto, a bela decoração e a lâmpada, sobre a mesinha distante.
—    Enquanto você dormia houve uma tempestade, querida — disse Rufus. — Trovões e relâmpagos. Como no verão.
A voz dele estava hesitante, preocupada.
Lydia tornou a virar a cabeça e fechou os olhos. “Ah, Deus!”, pensou. “Se eu nunca mais tivesse de vê-lo!” Ela nem pensou no bebê.
A porta abriu-se e apareceu a sra. Brunt. Era uma mulher baixa e gorda, de cara grosseira, mas simpática, com olhos pequeninos aduladores e obsequiosos. Ela sorriu para Rufus com ar travesso e levantou um dedo gordo, numa advertência afetadamente tímida.
—    O sr. e sra. DeWitt, senhor. Mas só por um momento. Por favor, temos de dormir.
Lydia virou-se nos travesseiros, interessada. Lá estava a irmã, sua querida irmã Alice, e Stephen. Aproximavam-se dela, de mansinho. Ela estendeu a mão para Alice e seus dedos apertaram os da irmã.
—    Ela está muito cansada. Foi difícil — disse Rufus. O rosto bonito e corado se tornara frio, embora ainda estivesse sorrindo. Era impossível a Rufus não sorrir. — Ela não pode se cansar muito.
Alice debruçou-se sobre Lydia e seus olhos bonitos, de um azulclaro, se encheram de lágrimas e compaixão. Um de seus cachos compridos tocou na face de Lydia.
—    Lydia, queridinha. Que bom que acabou. É um bebê tão lindo. Calma, meu bem, calma.
Lydia estava tremendo violentamente e agarrou a mão de Alice com desespero.
—    Não me deixe, Alice, não me deixe!
Alice ficou alarmada. Afagou a testa úmida da irmã, tentando entender a expressão frenética de seus olhos. Isso não era típico de Lydia, mulher sossegada, divertida e firme. Ela nunca tinha visto Lydia assim, nem mesmo quando os pais morreram, depois de uma longa luta contra a febre pulmonar. Havia alguma coisa muito grave com Lydia. Era assim tão horrível ter um filho? Apreensiva, ela pensou no seu filho, que deveria nascer dali a três meses.
Mesmo sofrendo, Lydia viu afinal o medo nos olhos da irmã delicada. Alice tinha apenas vinte e um anos; era três anos mais moça. E ela sempre a protegera. Disse a si mesma, severa, que estava assustando aquela criaturinha e desprezou-se por sua emotividade. Enrijeceu o corpo para não tremer e procurou sorrir.
—    Não ligue para mim — disse, em voz abafada. — Estou só cansada, Alice.
Ela apertou os dedos de Alice na sua face, com meiguice, num velho gesto de afeto e proteção. Nada deveria ferir Alice, que nunca conhecera o ódio nem a raiva, que jamais sentira aversão poderosa por ninguém e que sempre vivera na confiança e sob a proteção do amor paterno e da irmã. Nada deveria perturbar o sonho da vida de Alice, para quem a humanidade era boa e heróica, todas as coisas lindas e ternas, Deus estava no céu e a guerra era um pesadelo que não existia. 0 sonho era tão forte naquela moça, que, sob tantos aspectos, não passava de uma criança, que mesmo a guerra, terminada menos de um ano antes, nunca realmente tocara sua consciência. Ela ficara horrorizada com o assassinato do sr. Lincoln e chorara um pouco, sendo consolada pelo marido, e todos tinham conspirado para tirar-lhe o fato da cabeça. Dentro de algumas semanas, esquecera-se de tudo. Ninguém nunca mais mencionara essa morte na presença de Alice.
—    Você está tão pálida, Lydia — disse Alice, com a voz trêmula.
Lydia recorreu a suas forças e afagou o rosto da irmã.
—    Não foi nada, meu bem. Nada. Logo estarei bem, você vai
ver.
Não havia consolo para ela em lugar algum, nem coragem, nem amigo. Por toda a vida tivera de ser a forte numa família que nunca enfrentara a realidade. Pensou nos pais, tão parecidos com Alice, tão pequenos, frágeis e comoventes. Ainda menina, forte, ela já os conhecia muito bem e os defendia contra toda a feiúra e verdade. Não se lembrava de quando se instituira protetora deles. Parecialhe que sempre tinha sido assim.
Então ela pensou naquela casa linda e encantadora onde nascera e onde seus pais tinham morrido. Viu os jardins antigos, com os chorões e as faias brancas e os altos olmos que emaranhavam os galhos num encantamento escuro. Viu os lilases e os roseirais, o relógio de sol e as pedras cobertas de musgo. Ouviu o gorjear dos passarinhos ao sol nublado. As próprias montanhas que se erguiam ao longe tinham uma aura irreal e arroxeada e até as tempestades e o inverno eram sonhos.
Os aposentos da casa nunca ressoavam. As janelas sempre pareciam brilhar, suavemente. 0 fogo nunca crepitava forte. Até mesmo o vento era manso ali, nunca abafando o ruído de xícaras, os risos suaves e baixos e os passos deslizantes. A vida era pacata naquela casa. Nada fazia um livro cair de repente, nenhuma voz se erguia com aborrecimento ou raiva. Quando a morte chegou, foi sem barulho, sem sofrimento nem dor. Lydia então lembrou-se: a estranha sensação sufocante que ela conhecera por tantos anos na casa dos pais voltou, dominando-a.
Relembrando tudo isso e vendo o rosto lindo de sua irmã, Lydia recorreu mais ainda a suas forças. Beijou a mão de Alice e tentou rir, debilmente.
—    Já estou quase boa, Alice querida — disse ela. 0 sofrimento em seu coração, a dor de seu corpo, o ódio selvagem em seu espírito não podiam ser revelados à irmã. Ela murmurou, com ternura, quando Alice se debruçou mais sobre ela e apertou a face macia na dela. As mechas claras roçaram os lábios de Lydia e ela as beijou, com remorso. 0 perfume de Alice, suave e leve como ela mesma, encheu as narinas de Lydia. Ela passou os braços pelos ombros da moça, pois Alice começara a chorar.
Alguém estava afastando Alice dela. Era Stephen, irmão de Rufus. Lydia olhou para ele, grata. Ele abraçou Alice, enquanto ela chorava, e sorriu para Lydia. Ela levantou a mão para ele, que a pegou e apertou com simpatia e afeto. Ela não viu Rufus ali perto, com aquele sorriso frio no rosto.
Stephen DeWitt era um homem alto, magro e insignificante, trinta e dois anos, dois anos mais velho que o irmão. Nele não havia nada de brilhante. Ele dava a impressão de um castanho embaçado, de uma insignificância desbotada. Seu corpo era estreito, o rosto estreito e sem virilidade, os olhos pequenos, castanho-claros. Tinha um nariz comprido e torto, a boca sossegada e grande sob o bigode castanho, orelhas grandes e cabelo castanho e ralo. Parecia uma sombra comparado ao colorido vivo do irmão. Quando Rufus estava presente ele parecia recuar, tornar-se inteiramente sem importância, ausente. As pessoas sempre esqueciam Stephen. Quando falavam dele, era sempre para comentar que era antipático, desinteressante, sem conversa, espírito ou encanto, que não era muito inteligente. Dizia-se que, sem a inteligência rápida, a força e a vitalidade incansável de Rufus, Stephen não seria nada.
Muitas vezes Lydia ouvira casualmente esses comentários e tinha ardido de raiva. O que aqueles idiotas sabiam sobre Stephen? Se ele não falava muito, ela sabia o motivo. Se ele se afastava das pessoas, cabisbaixo, como se desculpando, ela compreendia. Ela sabia bem o desdém que sentiam por ele. Sabia das chacotas de que era alvo. Os pais dele não tinham desencorajado o descaso comum pelo filho, pelo contrário, até encorajavam isso. Rufus, que poderia ter mais simpatia pelo irmão, sempre procurava ridicularizá-lo, fazer brincadeiras às custas dele, dar-lhe tapas fortes demais nos ombros magros e rir muito. E também isso Lydia compreendia. Fora em parte devido a Stephen, e a tudo o que soubera sobre os dois irmãos, que passara a odiar o mando.
—    Como está, Lydia? — perguntou Stephen, enquanto afagava o cabelo e ombros bonitos de sua esposa. Ele apertou a mão de Lydia e seus olhinhos estavam tímidos e compreensivos. Stephen tinha um jeito hesitante de falar, balbuciando, como se não soubesse se suas palavras seriam compreendidas pelos outros. — Foi... muito ruim?
—    Não — disse Lydia.
A amargura e o ódio desapareceram. Sem querer, ela se aproximou mais de Stephen e da irmã. As lágrimas ainda brilhavam no rosto de Alice, mas a moça estava sorrindo como uma criança e enxugando os olhos. O vestido azul-marinho moldava-se sobre seu corpo bem-feito, alargando-se em dobras profundas na altura dos quadris. Usava gola e punhos de renda branca. Parecia desamparada e frágil, com um braço em volta do marido.
—    Ela não pode se cansar — disse Rufus, aproximando-se da cama. Imediatamente todos perderam a cor, ante o fascínio dele. Alice parecia uma marionete, Stephen uma coisa indistinta e Lydia um vulto em preto e branco.
—    Ah, sim, claro — murmurou Stephen. — Não podemos cansar Lydia, não é? — Um bebê bonito, Lydia. Parece muito com Rufus.
Lydia perdeu o controle:
—    Não me deixem, por favor — disse, com a voz falseando.
Rufus gargalhou e deu um tapa no ombro do irmão.
—    Eles vão passar a noite aqui, querida. É muito longe para voltarem agora. Mamãe e papai insistiram para que ficassem.
—    Ah, não poderiamos deixar Lydia hoje — disse Alice, na sua voz de criança, tão aguda e límpida. Ela não olhou de frente para Rufus, pois, instintivamente, tinha medo dele.
—    Não, em absoluto — disse Stephen, depressa.
—    E agora — disse Rufus, com voz forte e jubilosa — que tal deixarmos a coitada da Liddie em paz, para dormir e repousar?
Ele se debruçou sobre ela. Lydia não se mexeu, nem olhou para ele.
Suportou o beijo carinhoso, a pressão dos lábios do marido nos dela. Nem sequer recuou, quando ele lhe afagou o cabelo e murmurou palavras de afeto. Agarrou-se ao seu controle, pois Alice estava observando-os sorrindo, inocente e meiga.
Então, ela ficou só com a sra. Brunt, que começou a arrumar ativamente os lençóis e colchas, falando com entusiasmo e a esmo sobre o bebê. Lydia a ouvia, mas não dava atenção ao que dizia. O pesadelo lhe voltara, o ódio, a raiva e o sofrimento. Ela fechou os olhos e fingiu estar dormindo, e a sra. Brunt foi para junto do fogo.
O trovão e os relâmpagos tinham passado, mas um vento forte fustigava as vidraças. O fogo crepitava, em resposta. As sombras amarelas saltavam nas paredes e no teto. A sra. Brunt roncava na sua poltrona.
2
Desceram a escada branca, numa curva elegante, com seu tapete fofo e vermelho. Rufus gentilmente ajudando Alice, que recuou, inconscientemente e com timidez, de suas mãos fortes. Stephen seguia atrás.
Stephen, como sempre, estava fascinado com o encanto e beleza da casa do pai. Andando devagar atrás de Rufus e Alice, ele olhava para os belos lambris da parede à esquerda, e para os painéis dourados incrustados em madeira creme, com saneas; onde a escada fazia a curva havia um vitral em arco dando para o jardim escuro, frio. Do teto branco e alto pendia um magnífico lustre, cheio de velas acesas, lançando luz de prisma sobre o hall amplo, com o assoalho encerado, tapetes Aubusson, sofá em tom creme e delicadas cadeiras em dourado, azul e rosa, e mesinhas frágeis. Também ali as paredes tinham lambris e arandelas douradas, com velas acesas e flores da estufa de Aaron DeWitt. Uma pequena lareira branca ardia cheia de lenha. O calor, o perfume das flores e o cheiro de cera e do fogo enchiam o ar sossegado da meia-noite.
— Cuidado, meu bem — disse Rufus a Alice, com carinho, quando chegaram perto do pé da escada. Os gestos dele eram exageradamente solícitos. Rufus sabia que Alice o temia e não gostava dele. Ele achava graça disso. Um dia pensara seriamente em se casar com Alice, pois ficara fascinado com sua beleza dourada e azul, pálida. Mas Alice, sempre tão branda e amável, demonstrara de modo inequívoco seu horror por ele. Isso não o enraivecera nem insultara. Ele logo a tirara da cabeça, considerando-a uma mulher sem inteligência ou senso crítico, e voltara suas atenções para Lydia, morena e sorridente, que parecia admirá-lo.
Ao pé da escada, Alice se livrou da mão dele e levantou os olhos, suplicantes, para o marido. Stephen vinha atrás deles, devagar, absorto. Parou no quarto degrau e olhou para o hall embaixo como se nunca o tivesse visto, encantado. Insegura, Alice alisou as dobras do vestido azul e ficou esperando por ele. Stephen então olhou para ela e viu a expressão aflita em seus olhos. Desceu depressa os degraus que faltavam, pegando-lhe a mão. Ela sorriu, como se tivesse sido salva, e se aconchegou a ele.
Stephen sabia que Alice temia Rufus e seus pais, mas achava que isso acontecia por ela ser ainda uma criança, em tantos sentidos. Não sendo tão sensível, muitas vezes ele não entendia Alice, talvez porque ela sempre falava da família dele com condescendência, nunca criticando nenhum de seus membros, ou talvez porque seu amor por ela fosse um profundo sentimento de proteção e ternura paternal.
Stephen segurou-lhe a mão com força, enquanto os três se dirigiam para o grande salão, onde os pais aguardavam para saber se Lydia tinha voltado a si.
Intimamente, ele começou a se encolher e lhe voltaram a antiga frieza e antipatia tão conhecidas. Stephen sabia muita coisa, tanto sobre os pais quanto sobre Rufus. Mas, embora tivesse tanto conhecimento objetivo e clareza, não podia evitar o vago sentimento de fadiga e enjoo quando estava prestes a encontrar o pai e a mãe. Eles o desprezavam, como quase todos o faziam. E, a despeito de sua inteligência, pensava que talvez merecesse isso.
—    Não seja tão humilde, não tenha um conceito tão triste de si, Stephen! — exclamara Lydia, um dia, com uma aspereza incomum.
Ele ficara perplexo e surpreendido e respondera, inseguro:
—    Mas eu não sou nada humilde, nem tenho mau conceito de mim. — Ele refletira um momento e depois acrescentara: — Mas será possível a gente conhecer algo de si, sem humilhação? Creio que um total conhecimento de si levaria uma pessoa ao suicídio.
Entraram no salão e aí o enérgico Rufus exclamou, animado:
—    Lydia está muito bem! Acordou e agora está dormindo de novo. A sra. Brunt é muito competente e o bebê também está dormindo. Que noite, essa! E escutem só o vento. Parece um tigre nas janelas.
Os pais estavam sentados perto do fogo e Rufus foi para junto deles, exuberante, e beijou-os com vontade. A mãe sorriu-lhe com muito carinho. O pai, estranhamente, e pela primeira vez ao que Rufus se lembrasse, olhou para Stephen, atrás dele.
Stephen, como sempre, vacilava na soleira, parecendo um intruso naquela casa em que passara a maior parte de sua vida. A sala tinha proporções majestosas e fora mobiliada com requinte. Não por Aaron DeWitt, mas por um artista famoso que morrera no dia em que entrara na casa concluída. As paredes da sala eram pintadas de branco, com alguns painéis de seda de um azul forte, de onde pendiam alguns dos quadros menores, porém melhores, de montanhas, rios e florestas. Um tapete desmaiado, roxo-rosado, cobria o chão e sobre ele havia espalhados tapetinhos Aubusson, como retângulos de flores desbotadas. Uma enorme lareira branca, lindamente entalhada e canelada, dominava quase uma parede inteira e o fogo ali tinha chamas douradas. Lampiões de prata, bronze e dourados iluminavam a sala, e um sofá curvo, estofado com uma tapeçaria delicada, rosa e azul, ficava num dos lados da lareira. Uma grande poltrona de cetim azul estava colocada diante dele. Armários dourados ocupavam dois cantos distantes e em suas prateleiras de cristal estavam dispostas lindas estatuetas de marfim de Dresden, caixinhas de rapé de ouro, espelhinhos de boneca e outros objetos de arte, que ninguém olhava, com exceção de Lydia, Alice e Stephen.
Aaron DeWitt estava sentado no sofá de tons suaves, com seu roupão de veludo vermelho, muito rígido. Sophia, a mulher, sentavase diante dele, na poltrona de cetim azul. Ele tinha uma barba curta, branca e pontuda, dura como seu corpo, e um rosto cavado e macilento em que os olhinhos pretos olhavam para o mundo com um sarcasmo frio e insensível. O nariz ossudo se destacava em seu rosto como uma pedra aguçada e sob o espesso cabelo branco a testa era enrugada como o granito velho. Ele era muito menor do que o filho. Seus pezinhos, metidos em quentes chinelas de pano, mal tocavam o chão. Dava impressão de uma dureza total e indômita e havia nele um ar inexorável que intimidava a todos, menos a mulher.
Sophia tinha a mesma idade que ele: sessenta e cinco anos. Casaram-se muito antes de Sophia ter seus dois filhos. Ao contrário de Aaron, ela era alta.
Enquanto ele era inflexível, ela era arrogante e isso se revelava no jeito altivo de sua cabeça e no seu modo emproado. O pai dela era proprietário de um armazém deficitário numa aldeia do vale e, desde que o marido enriquecera, Sophia sentira a necessidade de assumir uma grandeza e pretensão que não lhe eram naturais. Ainda tinha um corpo bom, apesar da idade, e naquela noite usava um vestido meio antiquado, embora muito rico, preto com imensas armações na saia.
Era de Sophia que Rufus herdara o cabelo ruivo berrante e embora o cabelo dela, arrumado severamente, já estivesse quase totalmente grisalho, ainda se viam fios cor de fogo. Rufus também herdara seus olhos e sua antiga cor rosada. Ela fora uma mulher fogosa, como ele era agora fogoso, mas, como sua velha animação e jovialidade, exuberância e espírito de camaradagem, alegria e petulância mais tarde passaram a lhe parecer “vulgares”, ela reprimira tudo isso.
— Bem, entrem, entrem! — gritou Sophia para Stephen e Alice, ainda parados no limiar da sala, inseguros. Depois, baixou a voz e disse: — Alice, sente-se junto do papai e Stephen... Ela não se importava onde Stephen se sentaria, contanto que não fosse a seu lado. Stephen foi para uma cadeira a certa distância, sentou-se e procurou o cachimbo no bolso. A cadeira dele não estava perto de um lampião e ele começou a se fundir com as sombras, como sempre acontecia.
Rufus postou-se atrás do sofá em que estavam Alice e o pai. Era inquieto e vivo demais para ficar sentado. Colocou uma das mãos sobre o ombro do pai e a outra estava bem aberta perto das costas jovens de Alice. Ele sorriu para a mãe e
disse:
—    Tudo está ótimo agora. A querida Liddie está repousando.
O bebê não é lindo? É a nossa cara, mãe.
Sophia sorriu para ele. Quando sorria, o antigo colorido espelacular que possuira parecia envolvê-la, a despeito do cabelo grisalho e a falta de cores. Seus olhinhos castanhos brilhavam de orgulho. Ainda tinha dentes naturais, grandes e alvos, que brilhavam entre os lábios pálidos. Ela disse:
—    Bem, mas é uma pena que não seja um menino.
Aaron DeWitt falou pela primeiva vez, com voz singularmente neutra e desinteressada:
—    Ainda bem que é menina. Assim, não há perigo para Rufus.
Rufus riu-se, ruidosamente, e afagou o ombro do pai.
—    Ora, o que quer dizer com isso, pai?
Aaron deu de ombros e puxou as dobras do roupão para cobrir o peito cavado.
—    O seu pai não quer dizer nada, meu bem — disse Sophia, franzindo a testa de leve para o marido. — Está implicando com você. Mas da próxima vez será um menino, hem?
Rufus começou a sorrir e menear a cabeça e depois parou. Tornou a pensar na explosão de Lydia e franziu as sobrancelhas ruivas, perplexo.
—    Liddie estava um pouco histérica — comentou. Ele se endireitou e começou a andar de um lado para outro, atrás do sofá.
—    Estava? — perguntou Aaron, com o primeiro interesse que demonstrava. — Por que será? O que ela disse?
—    Lydia não costuma ser histérica — reprovou Sophia. — Muitas vezes,
depois do parto, as mulheres ficam emotivas. Não se leva em conta o que dizem.
—    0 que foi que ela disse? — repetiu Aaron. Ele sorriu friamente e seus dentes amarelados reluziram à luz do fogo. — E pare de andar de um lado para outro atrás de mim, Rufe.
Rufus obedeceu logo.
—    Francamente — disse — não me lembro bem. Ela parecia nervosa. Mas sofreu tanto hoje. E foi difícil...
A mãe olhou para ele, com ar sagaz. Não gostava de Lydia, mas lembrava-se de que fora o dinheiro de Lydia e Alice que livrara o marido de uma situação especialmente difícil. Ela dominava a quase todos, mas não dominava Lydia, com seu sorriso frio, seus humores secretos, sua ausência de ilusão. Ela também gostaria de fazer perguntas a Rufus, mas sabia, como ele também sabia, que era muito mais cômodo e seguro nunca discutir nem notar nada que pudesse ameaçar o conforto pessoal. Se Lydia se mostrara enigmática e inescrutável, conforme o seu jeito cansativo, era melhor não tomar conhecimento. Sophia disse, então, remexendo a saia-balão:
—    Não deve ser nada importante. Ter um filho deixa a mulher muito nervosa. — Ela virou a cabeça e olhou para Stephen, dizendo com uma irritação ofendida: — Stephen! Está fumando esse cachimbo detestável? Você sabe que não gosto que fumem em casa e isso faz muito mal aos pulmões do seu pai. Faça o favor de parar imediatamente.
Com um sobressalto e um ar de desculpas, Stephen começou a jogar fora as cinzas do cachimbo. Foi aí que Aaron disse:
—    Deixe que ele fume. Fume, se quiser, Steve. Quem é que se importa?
Isso foi tão extraordinário e sem precedentes, que tanto Rufus quanto Sophia olharam para Aaron, sem entender: ele estava rindo, com ironia. Eles sabiam que Aaron tinha um conceito tão triste de Stephen quanto o deles, e que sentia prazer em humilhar o filho, ridicularizar sua timidez e atormentá-lo.
—    Mas, pai, os seus pulmões — disse Rufus.
—    Para os diabos os meus pulmões — respondeu Aaron. Seu rosto mirrado se aguçou e ele tornou a dar de ombros. Stephen, tão espantado quanto a mãe e o irmão, ficou segurando o cachimbo, como se não soubesse o que fazer dele. Depois, vendo o olhar de desdém do pai, tornou a pôr o cachimbo na boca. — Esta é uma ocasião fora do comum, não é? — acrescentou Aaron. Ele parecia estar satisfeito com alguma coisa, pois deu uma risada baixa e amarga. — Acho que devíamos comemorar. Os empregados ainda estão de pé? — Ele puxou uma campainha com uma tira de brocado ao seu lado. — Uísque, Steve? Rufe? E o que querem tomar, minhas queridas? — perguntou a Sophia e Alice.
—    Um pouco de leite quente — respondeu Sophia. Suas faces mirradas estavam coradas; ela sacudiu a cabeça, com muita raiva, e lançou a Stephen um olhar de profunda antipatia.
—    Um pouco de leite quente — disse Aaron, com desprezo. — Para você, então, Sophia, se quiser. Mas e você, Alice?
Alice estivera todo esse tempo sentada ao lado dele, encolhida, olhando apenas para o fogo. Ela teve um sobressalto ao ser interpelada diretamente e procurou sorrir.
—    Ah, um pouco de leite quente... — disse, quase num sussurro.
—    Tolice! — replicou Aaron. — Não vai tomar uísque, claro, mas um xerez ou Porto. Não vai beber à saúde de sua sobrinha?
Ele a observou com atenção. Achava-a uma coisinha bonitinha, mas sem importância e não muito inteligente.
Alice tinha tanto medo dele que balbuciou, incoerente:
—    Estou pensando em Lydia. Estava tão estranha. Não... não é do feitio de Lydia ser estranha, ou chorar.
—    Você há de ver que é bem natural ficar “estranha”, quando chegar a sua hora — interrompeu Sophia, aborrecida. Essa coisinha miando, esse gatinho branco! Só o dinheiro dela a tornara tolerável a Sophia, que era tão forte. Ela não fez mais caso de Alice e disse, com um ar virtuoso: — Uma xícara de leite quente, Aaron, por favor.
—    Para mim, uísque, claro — disse Rufus, que estava apoiado no sofá, bem atrás do pai, irradiando prazer e afeição a todos, inclusive Stephen.
—    Bem — disse Aaron ao filho mais velho, com impaciência —, não pode falar alto, Steve?
Como Stephen nunca “falava alto”, Rufus e Sophia acharam aquilo muito engraçado e riram. Alice olhou para os dois, devagar, e algo começou a arder em seu rosto doce e meigo, alguma coisa como o brilho do aço. Ela disse com clareza:
—    Acho que o Stephen disse claramente que queria uísque, papai DeWitt!
Sophia e Rufus olharam pasmos para ela, sinceramente espantados. Alice, tão sossegada, tão tímida, parecendo um camundongo, tinha “falado alto”, ela mesma, pela primeira vez, que se soubesse. Tinha um ar valente e ofegante.
—    Ah, foi mesmo — disse Aaron, dando outra risada. Acontecera alguma coisa para dar coragem àquela menina, revelando emoções que ninguém imaginava que ela possuísse.
Um mordomo sonolento atendeu ao chamado e Aaron deu suas ordens. Fez-se um silêncio prolongado na sala. 0 plano mudara: havia um aspecto diferente em tudo, esquisito e fora de foco. Todos tomaram conhecimento disso, especialmente Aaron, muito observador,
—    Então! — disse Sophia, perplexa, explodindo afinal.
—    Então, o quê? — perguntou o marido, como se estivesse interessado.
Rufus e Sophia trocaram olhares. Rufus sorriu, descansado, e Sophia esticou o pescoço.
—    Parece que estamos todos um pouco... nervosos, hoje — disse ela. —Já é tão tarde. — Ela acrescentou para Stephen, sem se voltar para ele: — O quarto do lado sul está preparado para vocês dois e tenho certeza de que todos ficaremos contentes em ir para a cama logo.
Alice falou de novo, depressa:
—    Espero que tenham acendido o fogo para nós. Da última vez não acenderam e eu me resfriei. E o Stephen também.
—    Não tem importância — comentou Stephen, sorrindo para a mulher com carinho.
Ela se virou depressa no sofá e exclamou:
—    Tem, sim, Stephen! Você sabe que seus pulmões não são bons e não irá para um quarto em que não haja fogo aceso!
“Quer dizer que a gatinha chorona tinha garras”, pensou Sophia. Essa ideia não lhe incutiu maior respeito por Alice. Pelo contrário, aumentou o seu desprezo. Essas criaturas fracas e insípidas por vezes se inflamavam imoderadamente, desesperadas; mas era fácil subjugá-las. Sophia fitou Alice com altivez e disse, num tom muito repressivo:
—    Foi um lapso. Além disso, você não pretende ficar de pé a noite toda no seu quarto, não é, Alice? Ou gosta de um quarto quente e incômodo?
Alice, porém, não se importou.
—    Gosto de um quarto aquecido — disse ela, e sua voz, embora fina e infantil, estava inflexível. — Quero fogo no quarto.
Aaron deu uma risada final e ácida. Estava se divertindo cada vez mais.
—    Então, terá o seu fogo — disse.
0 mordomo voltou ao salão com o uísque, o leite e o xerez. Era um homem baixo, corpulento, de seus quarenta anos, com olhos azuis e duros, salientes, uma calva branca leitosa com um tufo ralo de cabelos louros sobre cada orelha saliente. Ele colocou a bandeja na mesa, diante de Aaron, e abafou um bocejo mal-humorado. Levantou os olhos e Rufus, ainda de pé atrás do pai, piscou para ele, que logo sorriu.
—    Seth — disse Aaron, abruptamente —, acenderam a lareira no quarto sul?
—    Não, senhor — respondeu o homem, o sorriso desaparecendo. — Não tivemos ordem para isso.
—    Não? — Aaron ergueu as sobrancelhas brancas e grossas. — Pois tem essa ordem agora. Acenda a lareira imediatamente, para o sr. e sra. Stephen.
—    A essa hora, senhor? — perguntou o mordomo, sem poder acreditar. — Já é quase uma hora.
Aaron brincou com as borlas de seu roupão e olhou para o empregado.
—    Eu lhe perguntei que horas são, Seth? — Ele fixou os olhos frios e implacáveis sobre o outro e Seth recuou.
—    Sim, senhor — murmurou ele, saindo da sala depressa, as nádegas gordas balançando sob o casaco comprido.
—    Não devia ter-se incomodado, pai — falou Stephen, com sua voz hesitante.
—    Por que não? Esta casa não é minha? Ele não é meu empregado? — Aaron começou a servir o uísque da garrafa de cristal. — Você não é meu convidado, além de ser meu filho?
Ninguém lhe deu resposta. O silêncio estranho voltou a reinar na sala. Rufus se levantou da pose protetora que assumira atrás do pai. Desta vez, quando encontrou o olhar da mãe, sua expressão estava consternada. Aaron estendeu um copo na direção de Stephen, que se levantou e foi pegá-lo. Ele ficou ali, como um estranho, entre o pai e a mãe, só conseguindo olhar para o uísque. Não se lembrava de nenhuma ocasião em que o pai lhe tivesse mostrado a mínima consideração, não se lembrava da última vez em que o pai dissera “meu filho”. Mas os olhos de Alice brilharam para ele, com amor valente, e seu queixo estava levantado. Sophia sentava-se muito empertigada, afrontada, e em sua boca havia
uma expressão que parecia medo.
—    Esqueceu-se de mim, Aaron? — perguntou, bem alto. — Eu tinha a impressão de que as senhoras deviam ser servidas primeiro. — Sua voz tremia de raiva e confusão.
—    O leite quente está tão perto de você quanto de mim, minha cara Sophia — comentou Aaron, com indiferença. Aí ele pegou o cálice de xerez e o pôs na mão de Alice. Rufus e a mãe tornaram a se entreolhar, e a fisionomia de Sophia ficou séria.
Rufus começou a rir, com naturalidade. Saiu de trás do sofá e pegou seu copo de uísque. Disse:
—    Nem sei mais quando é que já ficamos de pé até esta hora. Estranho, mas não estou nada cansado.
Alice raramente falava com alguém, a não ser com Stephen e Lydia, sem que primeiro lhe dirigissem a palavra, mas agora ela se virou para Rufus, impetuosamente, exclamando:
—    Não foi você quem teve o bebê! Não foi você quem sofreu! Por que iria se sentir cansado? — O xerez pingou em seus dedos agitados. Os olhos dela estavam brilhantes demais, como se estivesse febril. Ela continuou: — Tenho de saber o que magoou Lydia. Preciso saber!
Stephen olhou para ela, com pena, tentou sorrir o seu sorriso doloroso de sempre, mas não disse nada. Sophia largou a colher no pires e disse:
—    Deus do céu! Mas o que é que há com você, Alice? Você hoje está um bocado irascível, não é?
—    Vamos beber à saúde do bebê? — disse Aaron, com uma voz muito mansa. Seu sorriso malévolo fazia seus olhos dançarem.
Stephen levou o copo aos lábios, distraído, e os três homens beberam. Rufus ficou ainda mais vermelho. Mas Alice largou o cálice e ficou de novo sentada num silêncio rígido, olhando para o fogo, além de Aaron.
—    À nossa herdeira — disse Aaron, pensativo, bebendo as últimas gotas do uísque. Levantou o copo e examinou-o, com pesar. Sophia começara a sorrir, meneando a cabeça, satisfeita. Rufus riu alto, com prazer, sentou-se no braço do sofá e passou o braço em torno dos ombros ossudos do pai. Então, o olhar rápido entre mãe e filho foi triunfante. Sempre ficara subentendido que, embora Stephen fosse vice-presidente da State Railroad Company, e Rufus apenas superintendente, Rufus, o filho mais moço, é que herdaria a presidência depois da morte do pai. Não era mais que o justo, diziamse mãe e filho. Ele, Rufus, era o membro da companhia que tinha visão, que era inteligente, o ousado e ambicioso. Stephen, o "sombrio”, era apenas o trabalhador, o moderado, que manuseava os papéis empoeirados, o guardião calado dos arquivos e livros. Não fora Stephen quem dissera ser quase impossível conseguir aquela concessão de novecentos e noventa e nove anos? E não fora Rufus, ajudando o pai, quem a obtivera? O próprio Aaron não dissera que sem Rufus não se conseguiría isso?
Rufus e a mãe tinham-se esquecido, embora o fato fosse muito recente, que, durante meses antes disso, Stephen tinha, prosaica e sossegadamente, e com obstinação discreta, apresentado os fatos e as cifras sólidas e monótonas e os argumentos mais insistentes aos homens poderosos autorizados a ceder a tal concessão. Cada vez que Stephen ia a Filadélfia com sua antiquada maleta de viagem, Rufus e a mãe se riam, felizes, do "nosso guarda-livros”, divertindo-se muito com conjeturas quanto ao modo como Stephen se comportaria nas grandes mansões e escritórios no meio de homens sofisticados. Nunca ocorria a Sophia perguntar a Aaron por que ele mandava Stephen para Filadélfia. Ela supunha que não havia muita importância nos áridos papéis e Stephen, o “homem da papelada”, só servia para organizar os fatos antes que a verdadeira potência da família, Rufus, chegasse a Filadélfia com sua inteligência imaginosa e persuasão eloquente.
Ninguém jamais sabia o que Aaron estava pensando, mas Rufus e a mãe não se importavam e Sophia nem sequer franziu a testa quando Aaron, depois do brinde, serviu-se de outro copo de uísque e jogou pela garganta mirrada. Foi só Stephen quem disse, com sua voz inexpressiva:
—    Pai, acha que devia estar bebendo uísque, depois de sua doença? O seu estômago, sabe... — E a voz sumiu, como sempre, na insegurança.
—    Não é toda noite que nasce uma herdeira — disse Aaron. Lançou um olhar a Alice, demorado e cheio de conjeturas. Depois bocejou, repentina e abruptamente, e declarou: — Vou para a cama. Sophia, meus comprimidos estão na cômoda?
—    Está sentindo dor, Aaron? — perguntou ela, mas distraída, pois ainda estava pensando, com prazer, no que Aaron dissera sobre a filha de Rufus. Aaron levantou-se e contemplou todos eles, os olhos passando de um rosto para outro. Não respondeu à mulher, mas, ao dar seu sorriso amarelo, um espasmo contraiu seus músculos faciais. Ele meneou a cabeça.
Sem dizer mais uma palavra, ele saiu da sala. Sempre tivera um andar rápido e leve, pois era um homem pequeno. Mas ultimamente dera para andar com fraqueza e devagar. Só Stephen notou isso, acompanhando o pai com um olhar longo e concentrado.
Sophia levantou-se com os gestos fluidos de moça, estendeu a mão a Rufus e disse, majestosa:
—    Meu bem, tenho que dar uma última olhada na minha primeira neta. Vamos.
Rufus pegou-lhe a mão, mas ao conduzir a mãe pela sala virou a cabeça a fim de piscar para o irmão, com um ar fraternal e conspirador. Isso não significava nada; fazia parte de sua atitude bem-humorada para com todos e era quase maquinai. Stephen não o viu, nem Alice. Eles estavam de pé, juntos, perto da lareira, a cabeça de Alice pousada no ombro de Stephen.
A saia-balão de Sophia balançava de leve pela escadaria e os brincos de brilhantes reluziam à luz do lustre. Quando chegou com Rufus ao topo da escada, ela beijou-o com carinho e, de repente, por trás do disfarce de seu cabelo grisalho, faces desbotadas e lábios meio roxos, voltou-lhe o colorido que ela tivera um dia e que legara ao segundo filho.
—    Você ouviu o que o papai falou? — sussurrou ela, exultante. — Ouviu o que ele disse?
3
Alice e Stephen acompanharam os outros, devagar, mas só depois de algum tempo.
O quarto sul era o menor dos cômodos da casa, reservado para os convidados menos importantes e seus criados. No entanto, era agradável, com chintz alegre, e tinha três janelas dando para o sul, madeiras brancas e uma pequena lareira de mármore preto. Não tinha nada do luxo dos outros aposentos, mas era simpático e bonito.
Estava entendido que, quando Rufus se casasse com Lydia, iria morar com Aaron e Sophia. E estava igualmente entendido que, quando Stephen se casasse com Alice, não morariam naquela casa. Em vez disso, Aaron, com um gesto zombeteiro de magnanimidade, dera a Stephen a velha casa em que tinham nascido ambos os filhos.
A casa era escura, de quartos pequenos, incômoda e antiquada, com a cozinha de paredes de tijolos, entradas pequenas, sala estreita e fria, sala de jantar sem luz, quartos de dormir minúsculos e o jardim era triste e úmido. Alice, com sensibilidade, iluminara a casa com cores suaves, introduzindo calor onde só houvera frio, plantara um jardim com flores e arbustos ardentes, que mitigava o escuro de muitas árvores. Descartara a maioria dos móveis pesados e levara para lá grande parte das peças elegantes e distintas que guardara da casa dos pais dela. O que antes era feio e repulsivo agora se tornara lindo e atraente.
Por ordem de Aaron, tinham acendido um fogo no quarto sul, com má vontade. Mas o fogo ainda não tivera tempo de expulsar o frio rigoroso. Os lampiões estavam acesos e as cortinas de chintz cerradas. Alice estremeceu quando ela e Stephen entraram no quarto, agarrando os braços com as mãos. Stephen notou isso e disse:
—    Vamos nos deitar logo. É tão alegre olhar o fogo deitados na cama!
Mas Alice, sempre dócil e suave, concordando com tudo, foi até a cama grande, de colunas, puxou as cobertas e exclamou:
—    Não puseram as panelas de aquecer a cama! — Ela se virou para Stephen, com o rosto desusadamente exaltado. Ele a abraçou com os braços magros e compridos.
—    0 que importa, querida? Eu a aqueço, abraçando-a bem.
Ele se espantou quando ela se soltou dele e correu para puxar a campainha, com força. Estava ofegante, os olhos muito brilhantes. Stephen não estava entendendo, e quando quis abraçá-la de novo ela o empurrou.
—    Stephen! — exclamou. — Não vão mais fazer isso com você!
Ela bateu o pé e rompeu em prantos.
Stephen estava muito alarmado.
—    Não fique tão agitada, querida — disse ele, aflito. — Que importância
tem?
Uma empregada de roupão e bocejando atendeu à campainha, emburrada.
—    Onde estão as panelas de esquentar a cama? — perguntou Alice, os punhozinhos brancos cerrados ao lado do corpo. — O sr. Stephen não tem passado bem e não vai se deitar nessa cama fria e úmida. Traga já as panelas de esquentar a cama, sem demora!
A empregada, que conhecia Alice muito bem, viu as lágrimas de raiva e as confundiu com sinais de frustração impotente. Disse, então, com um desprezo ranzinza:
—    Não há carvão para as panelas, sra. DeWitt.
—    Alice — começou Stephen, mas Alice, para seu espanto crescente, lhe fez
um gesto violento.
—    Cale-se, Stephen. Edith, há carvão no salão. Encha as panelas lá. Duas.
A empregada, agora bem desperta e tão espantada quanto Stephen, recuou, como que fugindo. Alice, cheia de uma energia sem precedentes, arrancou a colcha amarela da cama, jogou-a sobre os ombros de Stephen e o empurrou para uma poltrona junto ao fogo. Depois sentou-se no colo dele, envolveu-lhe o pescoço com os braços e abraçou-o com uma força inesperada e feroz, as lágrimas escorrendo. Stephen, petrificado, só conseguiu ficar ali sentado, perplexo, enquanto ela chorava.
Não o tratarão mais assim! — repetia eia. — Todos esses insultos, enquanto você é quem trabalha! Todas as risadas e escárnio, quando não são nada sem você! Sempre o “Stephen sombrio", enquanto o Rufus leva as honras! Não suporto mais isso, Stephen. Por vezes chego a detestá-lo por permitir que o tratem com tanto desdém. — Ela bateu nos ombros dele com os punhos. — Vamos embora para bem longe, para onde o apreciem devidamente!
Stephen então ficou assustado mesmo. Beijou as faces molhadas da mulher, procurando acalmar seus tremores horríveis.
—    Não sei o que deu em você, Alice. De que importa o que eles pensem? Eu sei o que sou. Para mim, basta. — Ele ficou calado um instante, enquanto diante de seus olhos passavam cenas nítidas de toda a sua vida sombria. — A vida é curta — comentou, quase para si. — A gente trabalha do melhor jeito que pode. Não interessa que ninguém nos aprecie.
—    Interessa, sim, para a mulher desse homem, para a sua noção da importância do marido!
Alice ainda tremia. Seu cabelo macio estava desgrenhado, esvoaçando em volta de seu rosto molhado e apaixonado numa massa de cachos dourados.
Stephen ficou calado. Ele alisou o cabelo de Alice e suspirou muito. Depois tentou sorrir, aquele sorriso dolorosamente inseguro.
—    O dia hoje foi demais para você, minha Alice.
Mas ele estava se sentindo pesado com as recordações. Não estava zangado, apenas perplexo. Rufus realmente era brilhante, tinha imaginação poderosa e era ousado. 0 que havia nele, Stephen, que fazia com que os outros o desprezassem, que fizessem pouco dele? Essa ideia atormentara toda a sua vida apagada e conscienciosa.
Stephen ainda não chegara ao ponto, em seu raciocínio, em que poderia acreditar que a humanidade é fascinada por superficialidades pirotécnicas, mentiras alegres e um exterior bonito, por graça hipócrita e falso sentido de camaradagem, por magnetismo inteiramente egoísta e tão supinamente egocêntrico que despertava a adoração entusiástica. Era preciso acreditar em alguma coisa. Ele acreditava na humanidade com desespero, e se a humanidade o desprezava era porque, de algum modo, ele é que estava errado. Ele também acreditava em Deus.
A criada voltou, toda ofendida, e jogou as panelas cheias sobre a cama. Já ia saindo do quarto, como um furacão, quando Alice falou:
—    Coloque-as entre os lençóis, Edith.
Alice se levantou do colo do marido e enfrentou a empregada. Edith a fitou com raiva. Por um ou dois momentos duros, Alice e a criada se encararam, medindo forças. Então, resmungando, Edith puxou as cobertas da cama e colocou as panelas entre os lençóis. Ela parecia estar manuseando armas que desejaria usar. Depois, saiu do quarto, batendo a porta com força atrás de si. Alice começou a rir, tremendo.
—    Eu nem sabia — disse ela, assombrada. — Eu nem sabia. E é tão fácil. Sempre tive horror de fazer as pessoas “conhecerem o seu lugar", como dizem. Mas agora sei. É preciso fazer isso. De modo amável, quando possível, mas é preciso fazer isso.
Stephen disse, num tom de desânimo:
—    Imagino que eu não tenha personalidade.
Alice estava inebriada com suas novas descobertas.
—    Você tem muita personalidade, Stephen! Mas é que não faz pose, nem é pretensioso, não exige nada de ninguém e trata a todos com consideração e delicadeza. Isso não é errado... às vezes. Mas essas ocasiões são muito raras. Abnegação e prestimosidade inspiram desprezo... Ah, que horror! — Horrorizada, ela levou as mãozinhas frias ao rosto e olhou para Stephen, com pavor. — Que mundo horrível!
Muito perturbado, Stephen levantou-se, com a colcha pendendo dos ombros. Ele tomou a mulher nos braços e apertou o rosto dela em seu peito, como para esconder de Alice aquela coisa terrível que ela vira num momento de triste revelação. Ele murmurou, muitas vezes, alisando-lhe o cabelo:
—    Não, meu bem, você está enganada. Edith só estava cansada e com sono, por isso foi tão grosseira. Como você está agitada. Deixe-me ajudá-la a ir para a cama. Minha querida, queridinha.
Alice chorou baixinho, enquanto se despia. Depois que se deitaram, ele a abraçou muito, a cabeça de Alice no ombro dele. Stephen olhou com tristeza para o escuro do quarto. Por entre as cortinas entreabertas, ele via o brilho gélido da lua. 0 vento amainara e não havia barulho algum, a não ser os carvões caindo lentamente na lareira.
Alice se aconchegou e sua mão macia encontrou o rosto dele. Ela riu forçadamente.
—    Já é tarde e devíamos estar dormindo — murmurou, agarrando-se a ele.
—    É, sim — disse ele.
—    Descobri outra coisa — disse Alice, novamente com aquele tom de assombro na voz. — Ele odeia todo mundo... menos você.
—    Quem? — perguntou Stephen, confuso.
—    O seu pai.
E então, depois dessa declaração incrível, ela adormeceu.
Stephen ficou deitado ali ao lado dela, olhando de olhos enxutos para a fatia de lua que aparecia por entre as cortinas. Ele se esquecera logo das palavras de Alice. Eram palavras de uma criança querida, que não sabia de nada. Ultimamente ele ficava assim muitas vezes, deitado sem conseguir dormir e, sem aviso, sem ele querer, cenas de sua vida passada lhe ocorriam, assoberbantes em sua nitidez, arrasadoras no seu significado meio revelado.
Vinte anos antes, ele só tivera um desejo. Era um rapazinho, solitário, esquecido, de quem os pais não faziam caso, tão absortos estavam com Rufus, o encantador e animado. Ele não tinha amigos, pois mesmo os meninos de sua idade o evitavam na escola. Ele não tinha nada a lhes dizer e o que ouvia os meninos se dizendo uns aos outros parecia tão oco e trivial, tão sem conteúdo e significado, que lhe parecia impossível que se interessassem por sua própria conversa. Os professores não lhe davam atenção alguma, nem se dando conta de sua presença. Ele passou sua infância como uma sombra.
Quando tinha dez anos, quis ter um cachorro, para aliviar sua solidão. Os cães dos colegas corriam atrás dele, adorando-o, olhando para ele com seus olhos estranhos e insondáveis. Havia algo na breve presença deles que o consolava. Os cães lhe lambiam as mãos, mesmo quando seus donos os chamavam impacientes, e se apertavam aos joelhos dele. Eles o enchiam de calor e faziam-no sentir-se unido ao mundo em que vivia e geralmente se sentia tão estranho e atormentado. Naquele curto espaço de tempo em que saltavam sobre ele e tentavam lhe falar, ele não era mais um estranho, mas aceito na fraternidade universal.
Por isso Stephen queria um cachorro. Nunca pedia nada aos pais. Levou meses para pedir ao pai, que olhou para ele, sem dizer nada.
—    Ele não vai comer muito — implorara Stephen. — Tomo conta dele.
Nessa ocasião, Aaron estava começando a ganhar dinheiro. Era desconfiado e pouco comunicativo quanto a sua nova fortuna. Olhou para Stephen, de quem sempre se esquecia, e depois disse, com frieza:
—    Um cachorro? Para quê? Não podemos ter bichos de estimação por aqui. Não gosto deles.
Alguns meses depois, comprou um pônei para Rufus.
Deitado ali ao lado da mulher, de repente Stephen experimentou a mesma agonia que sentira quando o pai levara para casa o pônei de Rufus, cheio de sinos retinindo, com sela e arreios de couro vermelho e prata. Ele tornou a ouvir os gritos de alegria de Rufus, a risada forte e carinhosa de Sophia, as risadas satisfeitas de Aaron. Ele ficara ali, separado de todos, olhando, sentindo angústia nova e forte em seu coração. Ele não ficara com inveja, nem com raiva. Não havia ressentimento nele, nem indignação. Só sofrimento.
Ele se afastara, sem ser visto ou notado. Não sentira ódio do pai, por sua traição. Até então, achara inevitável que seus desejos não fossem levados em conta. Ele tinha caminhado por muito tempo, subindo o morro, e depois se sentara numa pedra, sem chorar, sentindo frio. Vira o sol redondo e avermelhado se esconder abaixo das montanhas distantes e tinha noção apenas de seu sofrimento.
Ele não comprara um cachorro quando se casara e se mudara da casa dos pais. Não queria mais um cachorro. O cachorro que tinha desejado estava morto.
O relógio de madeira no consolo da lareira tocou às duas e meia da madrugada. Alice respirava profundamente ao lado de Stephen. Ele tocou no cabelo dela, pensando: “Por que me lembro dessas coisas? O que importa, agora? Por que hão de me atormentar, se são coisas passadas há tanto tempo?"
4
Portersville ficava às margens de um rio estreito, atravessado por uma ponte leve, um lado reservado para pedestres e outro para veículos.
Era uma cidade pequena e sossegada, com seus mil e quinhentos habitantes e muito sofisticada. Não raro os mais abastados iam até Filadélfia, que, graças à
State Railroad Company, ficava a apenas quarenta e cinco minutos de viagem. Lá frequentavam ópera, teatros e reuniões sociais, pois muitos tinham amigos e parentes na grande cidade a leste. Lamentavam que Filadélfia provavelmente nunca os absorvesse em seu desenvolvimento previsto, pois ali as montanhas se erguiam abruptas e os morros eram íngremes demais. No entanto, acreditavam, felizes, que um dia se considerariam um subúrbio da cidade tão querida. Alguns tinham casas no alto dos morros, semelhantes à dos DeWitt, e era um divertimento local virar os binóculos na direção de Filadélfia e dizer que se via perfeitamente a fumaça.
Portersville, de certo modo, sempre se considerara um subúrbio de Filadélfia e a indústria local era pequena. Antes do advento da State Railroad Company havia muito tráfego fluvial entre as várias comunidades. Esse tráfego desaparecera, em parte. A mão-deobra que sustentava a State Railroad Company morava ou em Pittsburgh ou em Filadélfia, as duas cidades ligadas, se bem que o grosso do pessoal de escritório ficasse em Portersville. A State Railroad Company recentemente instalara um pequeno escritório em Filadélfia, que estava sendo usado cada vez mais por Rufus DeWitt, mas a maior parte do trabalho executivo era realizado em Portersville.
Portersville era uma cidade agradável, embora meio apagada. As ruas eram o mais largas possível, considerando-se os morros e montanhas próximos. Muitos dos mais abastados possuíam sítios montanhosos nas proximidades, obtendo a mão-de-obra rural da Cidade Leste, como era chamada. Tratava-se de um bairro de casas estreitas de três andares, de pedra ou tijolo, com ruas tortuosas sugerindo aldeias europeias. As torres brancas das igrejas pontilhavam o tom dominante de cinza, castanho e vermelho do bairro. Lá havia uma pequena serraria, para uso quase exclusivamente local, alguns silos e um moinho de trigo. Três ruas de lojas, ocupando três lados da praça pública, serviam às necessidades modestas dos trabalhadores e da classe média baixa. Lá moravam os pequenos comerciantes, os açougueiros, os seleiros, os trabalhadores e os empregados domésticos que trabalhavam nas mansões da Cidade Oeste. Portersville se orgulhava de ter poucas favelas, se é que tinha alguma, e de que sua “origem” fosse alemã, inglesa e escocesa. Por enquanto, ali ainda não tinham surgido rivalidades raciais nem antagonismos, a não ser o que se sentia de modo vago e bem-humorado por uma população católica muito reduzida.
A Cidade Oeste era totalmente ocupada por famílias de recursos, que viviam das empresas perto de Scranton, Pittsburgh ou Filadélfia. A maioria dos residentes nascera em Portersville e nada os levaria a partir para cidades maiores e de maior movimento. Suas casas ficavam perto do rio e a alguma distância dele, sendo feitas da mesma pedra e tijolos que as de seus empregados. Alguns, como os DeWitt, tinham construído suas casas no estilo arquitetônico sulista, com colunas e frontões brancos e sobrados arqueados. Mas as casas, em sua maioria, embora grandes, sugeriam sossego e solidez conservadores. Algumas pessoas desse bairro tinham migrado da Cidade Leste, após terem conseguido bastante dinheiro, mas nunca se referiam ao seu bairro antigo com desprezo ou aversão. Aliás, muitos se lembravam com saudade da vida de comunidade mais ativa, o movimento na praça nas noites de sábado, os mexericos e risos e as inocentes amizades de vizinhos.
Bem poucos desprezavam sua origem na Cidade Leste. Os DeWitt, com exceção de Stephen, sentiam esse desprezo. Ficaram muito orgulhosos quando os dois filhos se casaram com as moças Fieldings, cujo pai e antepassados nunca se tinham dedicado ao comércio, tendo ganho seu dinheiro da Inglaterra e de imensas fazendas no centro do Estado. Mais uma vez com exceção de Stephen, os
DeWitt não quiseram mais contatos com seus antigos vizinhos da Cidade Leste, os quais não se zangaram com esse esnobismo, mas o acharam muito divertido.
O único banco da cidade era o Portersville National, no lado leste do rio. Ocupava a terça parte de uma das ruas da pracinha e era o prédio mais imponente, construído de pedra cinzenta com grandes vidraças reluzentes e tinha escada de granito liso. Nesse prédio, de grande atividade, o banco só ocupava dois andares, sendo os outros dois alugados como escritórios para os advogados locais, negociantes prósperos, dois ou três médicos, administradores municipais que não tinham alojamento na pequena Prefeitura, e a State Rail road Company. Quando alguém conseguia alugar escritórios de frente, significava que tinha positivamente vencido na vida. Os escritórios de fundo, embora não tão grandes quanto os da frente, eram igualmente bem iluminados, limpos e movimentados. Por vezes, quando havia modificações sensíveis de fortuna, os “cavalheiros dos fundos” se apossavam dos escritórios da frente e os “cavalheiros da frente” mudavam-se “temporariamente” para os fundos. Quando ocorriam essas mudanças, havia bastante falatório e emoção, como um jogo bem-humorado e feliz.
A State Railroad Company ocupava três dos grandes escritórios de frente. Uma das salas era de Stephen, com letras douradas na porta — AARON DEWITT, PRESIDENTE —, e continha duas mesas, a de Stephen e a do pai. Rufus, o superintendente, tinha uma sala menor, só para ele. A outra sala era ocupada por quatro guarda-livros, cinco escriturários e um mensageiro.
Os DeWitt tinham outro escritório grande e encardido na estação ferroviária local, e Rufus ficava mais ali do que no prédio de Portersville. Ele tinha a parte mais ativa na administração da ferrovia, o que lhe agradara muito, até recentemente. 0 pai passara quase um ano doente e só fora aos escritórios quatro vezes em oito meses.
Do quarto andar, os escritórios davam para a ativa pracinha com sua estátua de Benjamin Franklin (muito verde e solitária) no centro. Tinha-se uma vista excelente da praça: viam-se árvores e veredas sinuosas, as ruas dianteiras, o rio ao lado e as montanhas escuras e próximas erguendo-se além da cidade.
Como os DeWitt não eram muito simpáticos, com exceção do exuberante Rufus (que dava a impressão de ainda gostar da Cidade Leste, desculpando-se pelo esnobismo da família), havia pouco movimento entre os escritórios particulares acima do banco e os da State Railroad Company. O pouco movimento ocorria quando Rufus estava presente. Então havia muitos tapinhas nas costas, risadas, cigarros e anedotas, com Rufus empoleirado em todo o seu esplendor, sem cerimônia na beira da mesa, com seu riso mais forte que os dos outros. Eles declaravam a Rufus, em particular e repetidamente, que ele estava sendo tratado injustamente pelo pai e que ele, e não Stephen, é que deveria ser o vice-presidente, apesar da idade. Ao que Rufus respondia, fingindo horror e sorrindo:
— Eu? Toda aquela papelada? Deus me livre! Prefiro estar lá, onde moram as pessoas, e aqui, onde meus amigos são bem-vindos.
A guerra conseguira criar certa amargura em Portersville. Havia quem ousasse afirmar que os Estados sulistas tinham o direito de se separar e mostravam exemplares da Constituição, para provar isso. Esses argumentos não tinham sido desviados com raiva e uma veemência patriótica: tinham sido considerados seriamente, e até mesmo os contrários tinham concordado com grande parte das alegações. Nenhuma inimizade duradoura resultara dessas discussões. Reconhecia-se que as pessoas têm direito a opiniões, e até mesmo os mais apaixonados adeptos do sr. Lincoln tinham expressado dúvidas acerca de alguns de seus atos inconstitucionais, declarando que consideravam com grande apreensão sua tendência para um governo centralizado. A escravidão era moralmente errada, mas todos sabiam que a escravidão não era o problema. O sr. Lincoln não frisara isso, várias vezes, em seus discursos? O problema era a secessão, constitucionalmente legal mas perigosa, com a Europa tão vigilante e sequiosa do outro lado do Atlântico.
Mesmo quando apareciam cartazes nas ruas, com uma caricatura do sr. Lincoln e as palavras ABAIXO O DITADOR, não surgira raiva nem ressentimento entre o povo da cidade. Nem houve janelas quebradas, nem amigos se tornaram inimigos. Mas tudo isso também aconteceria mais tarde, muito mais tarde.
Quando Gettysburg se tornou cenário de uma batalha terrível, Portersville fervilhou. Milhares se juntaram na estação ferroviária para chorar pelos feridos, amigos ou inimigos. As mulheres entravam nos vagões para tratar dos soldados, sem considerar as fardas, e saíam manchadas de sangue e chorando, de saias de bombazina e de lã, toucas de veludo ou de xale na cabeça, e carregando cestas vazias, que antes continham alimentos, bebida e curativos. Os médicos de Portersville correram em auxílio de seus colegas exaustos nos trens, sem repararem se esses colegas usavam a farda cinza ou azul. Tinham conversado com seus irmãos, sacudindo a cabeça, por causa da guerra, suspirando, e até deixando, sem pudor, que as lágrimas corressem pelas faces barbadas. Quando os vagões seguiam para os hospitais, iam acompanhados de orações.
Quando ocorreu o assassinato do sr. Lincoln, ele foi chorado e nenhum de seus antigos inimigos em Portersville foi olhado com amargura ou de modo condenatório. Era mau, muito mau. Mas havia um vice-presidente e era preciso tratar do futuro e ajudar o sul com seus problemas e suas feridas terríveis. Ninguém ficou mais horrorizado, mais indignado, mais enraivecido contra os aproveitadores políticos do que o povo de Portersville. Se alguns dos homens da cidade se envolveram naquela pilhagem desavergonhada dos Estados derrotados, mantiveram isso em segredo, bem guardado e vergonhoso.
Portersville teve seus feridos, seus mortos. O povo dos dois bairros os chorou, lado a lado, nos cemitérios, onde não havia diferenças de classe. Também isso viria mais tarde.
Portersville era um bom lugar para morar, no ano de 1860, na nobre comunidade da Pensilvânia.
Os pombos refletiam nas asas a luz plúmbea da manhã de março, voando de janela em janela.
Março era o hiato entre as estações, não suavizado pela neve, um cinza despido, uma neutralidade castanha, um vazio sombrio. A praça estava enlameada, com tufos de grama castanha e encharcada. As árvores negras emaranhavam seus galhos como os andaimes nus de uma catedral em ruínas. Às vezes ventanias as convulsionavam sob um céu pálido, em que o sol nublado era apenas uma mancha mais pálida.
O frio úmido do ar penetrava nas roupas e as carruagens que andavam pelas ruas da praça pareciam estar menores, os cavalos lânguidos em sua provação. As pessoas andavam o mais depressa possível, encolhendo-se em suas capas, xales e sobretudos, cabisbaixas, o vento soprando nas saias e arrancando os chapéus de cabeças desprotegidas. A luz cinzenta se refletia das vitrines reluzentes das lojas.
Além de Portersville, dessa vista dos escritórios da State Rail road Company, erguiam-se as linhas nítidas da Montanha da Faca. Mas ela se parecia não com uma faca, mas com uma enorme navalha, em posição horizontal, com o cabo um pouco mais abaixo do que a lâmina. Roxa, bem destacada, fazia um contraste agudo com o céu frio e sem cores, aumentando a melancolia do cenário.
Desde a doença de Aaron, Stephen vinha ocupando junto da janela a mesa do pai, grande e quadrada, de tampo de couro. A mesa dele estava despida, era menor do que a de Aaron e ficava junto à parede, em ângulo reto. O escritório era grande e claro, com o tapete vermelho sobre o piso de parquete, e nas paredes brancas havia gravuras de caçadas, bem coloridas. Cadeiras estofadas de couro vermelho e verde, enfeitadas de tachas de metal, estavam espalhadas pela sala, e um fogo confortável ardia numa lareira de mármore preto. Sobre o consolo da lareira havia um relógio de mogno com um carrilhão agradável e contra outra parede os arquivos de mogno, pessoais e secretos, sempre trancados, continham documentos relativos à companhia. Num dos cantos havia um pequeno cofre de ferro, a única coisa feia no escritório.
A pasta de Stephen se encontrava sobre a mesa, diante dele. Retirara alguns documentos bem grossos e os segurava. Mas no momento não olhava para eles. Seus olhos passeavam devagar e distraídos pela praça e pela gigantesca montanha como uma navalha dominando a cidadezinha.
Sozinho, ele podia descontrair-se. Sua melancolia natural pairava como uma sombra escura sobre a fisionomia insignificante: seus olhos castanhos e cabelo ralo da mesma cor. Suas roupas discretas, que não tinham um talhe perfeito, lhe caíam mal nos ombros e braços.
No entanto, a despeito da melancolia e quietude de sua atitude, com os braços dobrados desajeitadamente sobre a mesa, o rosto revelava a intelectualidade triste, seu ar profundamente pensativo e a introspecção. Esses traços, escondidos a custo quando ele estava na companhia de outros, lhe davam um ar de nobreza tranquila e uma reserva distinta.
Ele levantou a mão direita e alisou o bigode, refletindo. Quando movia as mãos, via-se que eram finas e elegantes, as mãos de um filósofo e pensador. Ninguém notava isso, claro, a não ser Alice e Lydia, assim como só elas jamais o tinham visto tão controlado e preocupado, pensando, contemplativo, sem medo de ter de se retrair.
A paisagem do lado de fora da janela parecia fazer parte dele, de seu desânimo estático. Ele ficou olhando os pombos voarem de janela em janela. Por alguns instantes, pousou seus olhos nada notáveis sobre a montanha, e aí eles não eram mais insignificantes. Ficaram vivos, não com animação, mas com uma resolução.
Ele não ouviu baterem à sua porta de lambri, de modo que teve um sobressalto visível ao ouvir a voz alegre de Rufus.
—    Maquinando, Steve? — perguntou Rufus, rindo. Era uma brincadeira dele e da mãe, essa coisa de Stephen “maquinar”. Os dois concordavam que Stephen tinha muito pouca inteligência para isso.
Stephen, ainda de costas para o irmão, pegou depressa os documentos à sua frente e os guardou logo na pasta. Depois virou-se e lançou a Rufus o seu sorriso vacilante. Seus olhos estavam opacos de novo, sem luz, e não revelavam nada de seus pensamentos.
—    Não propriamente — respondeu.
O relógio no consolo da lareira bateu nove horas. Stephen era sempre o primeiro a chegar nos escritórios e, desde a doença do pai, dera para chegar às sete e meia. Morava mais perto da cidade do que Rufus, que em geral chegava depois.
A luz cinzenta do escritório foi dissipada com a entrada de Rufus. Stephen recuou para o canto da sala, como as sombras se retiram diante do brilho do sol da manhã. Rufus sentou-se na beira da mesa de Stephen, e seu rosto bonito irradiava amizade e boa vontade. Essa expressão era tão natural nele, tão maquinai, que ele a usava tão livremente com o irmão quanto com muitos de seus amigos, de modo que, a despeito de seus longos pensamentos acerca de Rufus e seu conhecimento instintivo, sofredor, Stephen sentiu-se cativado e confuso, como sempre.
Algumas semanas antes, Joseph Baynes, seu melhor amigo, comentara amargamente, referindo-se a Rufus e citando Shakespeare:
— "Ele tem um aspecto e temperamento amenos, suspeitos."
Ao que Stephen, sorrindo de leve, murmurava:
—    É, eu sei, lago. Mas creio que está sendo injusto com Rufus... de certo
modo.
O sr. Baynes achara aquilo muito ingênuo e, a despeito de seu afeto por Stephen, não pôde deixar de pensar, com certo desdém: “... julga os homens honestos quando apenas parece que são.”
Stephen olhou para o corpo simétrico e forte de Rufus, com o rosto inocente e sorrindo com afeto. Sentiu de novo a antiga perplexidade magoada. Se Rufus fosse inteiramente mau, seria evitado por todos, a não ser — e por um instante a pista brilhou diante do olho íntimo de Stephen — que houvesse alguns homens que não acreditavam que o que faziam era mau, sendo incapazes de considerar perversas quaisquer de suas ações... A pista apagou-se e Stephen sacudiu a cabeça, de leve.
—    O que há? — perguntou Rufus, interessado. — Dor de cabeça, Steve? Por falar nisso, ainda não aconteceu nada, não é?
—    Não. Mas o dr. Worth acha que a criança pode nascer a qualquer momento, agora. Alice está muito bem e não pensamos que haja algum problema. Espero que ela não passe tão mal quanto Lydia.
Por um instante os olhos sorridentes de Rufus se apertaram, como seu sorriso. Não foi uma expressão branda, a despeito do sorriso cativante que permaneceu fixo no rosto dele. Ele acendeu um charuto, e o cheiro de enxofre do fósforo de fricção permeou o ar, acre.
—    É, Liddie passou mal, sim. Esperamos que Alice passe melhor. Aliás, você e Alice não vão lá em casa há quase um mês, e o pai anda perguntando por você.
Stephen, como sempre, logo se desculpou, mesmo sem haver necessidade de desculpas. Esse defeito seu se originava de sua aversão a causar aos outros a menor mágoa ou insulto.
—    Mas você me traz recados e instruções dele todos os dias, Rufus...
—    Num envelope lacrado — interrompeu Rufus, com um sorriso irônico.
O rosto de Stephen ficou corado.
—    O pai não quer ofendê-lo. É só o jeito dele. Sempre lacra tudo, mesmo as
coisas mais insignificantes. O hábito de toda uma vida. Você não deve se ofender. Afinal, eu lhe mostro os papéis, Rufus.
—    É verdade. — Rufus debruçou-se para o irmão a pôs a mão afetuosamente naquele ombro magro. — Não o culpo, em absoluto.
Stephen ficou calado, aflito, humilhado. Rufus não o culpara, mas ele sentira uma pontada de culpa. Talvez devesse escrever ao pai e pedir que ele não lacrasse os envelopes. Não era justo com Rufus. Mais uma vez Stephen foi traído pela compaixão e consideração anormais pelos outros.
Rufus notou a luta íntima naquele “peixe cinzento" e ficou satisfeito. Tinha um espírito tão aguçado que acompanhava quase todos os pensamentos alheios, e isso em si era parte do segredo de sua popularidade. Ele esperou, mas Stephen, sempre de poucas palavras, estava demorando muito a falar, e o instinto de Rufus agitou-se.
Stephen então começou a falar, devagar:
—    O pai deve compreender que Alice agora não pode ir longe e não gosto de deixá-la só, nem por pouco tempo. Além disso, não sei por que, ela agora deu para chorar de noite, a pobrezinha.
—    Ah, claro, claro — disse Rufus, com sua voz cheia, com uma compreensão íntima. — Liddie também chorava.
—    É mesmo? — Stephen sentiu-se aliviado. Depois parou. Rufus estava mentindo. Lydia era sempre serena. Estivera especialmente serena, embora um tanto calada, durante o período em que esperava Cornélia.
Ele olhou para Rufus, sentado ali na mesa, fumando, a glória de seu corpo e rosto inocente totalmente evidenciada, toda sua amizade e compreensão se irradiando dos olhos castanhos brilhantes. Rufus disse:
—    Algum recado para os nossos amigos de Filadélfia? Vou lá amanhã, de
novo.
—    Amanhã? Você agora está indo muito lá, não, Rufus?
As palavras eram sinceras, não contendo qualquer outro significado, mas Rufus examinou o irmão com maior concentração. Por vezes ele desconfiava que aquele homem obscuro, humilde e brando tinha “profundezas” perigosas.
—    Ah, é verdade — disse ele, com aquele seu jeito aberto e juvenil. Ele riu. — Cada dia há mais coisas a fazer no nosso escritório de Filadélfia. E é muito cômodo para os nossos amigos. Nada de cartas compridas. Eficiência.
Ele se levantou e espreguiçou-se. Parecia um belo leão fulvo, no seu colorido e gestos. Foi até a janela e olhou para a praça.
—    Que dia horrível! Todo mundo apressado. Detesto a ideia, mas tenho de ir à estação. — Ele começou a cantarolar para si, em tom de barítono. A fumaça erguia-se de seu charuto. Por fim, ele voltou a Stephen e novamente se empoleirou na mesa.
—    O pai está muito empolgado com a nossa decisão de instalar uma linha de Filadélfia a Washington, concorrendo com a Capital Railway. — Ele falava com displicência, insinuando que tudo era uma ideia ativa de Stephen. Lançou um olhar de admiração a Stephen, que corou.
—    Rufus, você sabe que foi sua a ideia, mais do que minha — disse.
—    Não, não, não quero saber disso! Você faz tão pouco de si, Steve. Eu
apenas concordei com sua sugestão.
Isso era bem verdade, mas Rufus se mostrava tão entusiasmado, admirando-o tanto, que Stephen mais uma vez sentiu certa culpa, uma culpa injustificada.
Rufus fazia anéis de fumaça azulada, olhando feliz para eles.
—    Mas eu também tenho minhas idéias, Steve. Aquelas estradas de ferro pequenas, entre Filadélfia e Washington: coisas inúteis, só ligando comunidades esparsas, quando deviam estar ligadas à estrada de ferro principal... nossa e de nossa propriedade...
Stephen ficou alerta. Já ouvira tais insinuações por parte de Rufus. Protestou, dizendo:
—    Mas essas “coisas inúteis” são dirigidas por outras famílias e lhes dão rendas. Por que havemos de privar os outros de suas rendas?
Rufus deu uma gargalhada e olhou para o irmão com um brilho nos olhos.
—    Por quê? Porque queremos crescer. Expandir-nos! Essa é a palavra de ordem, desde a guerra. Além disso, essas estradinhas estão quase falidas. Os bancos de Filadélfia estão com suas promissórias e ouvi dizer que as ferrovias não conseguem sequer pagar os juros, em muitos casos. Se, por exemplo, adquiríssemos os títulos, teríamos esses ramais para a nossa linha. É bom pensarmos nisso, sem demora. Eu lhe garanto que a Capital está pensando nisso!
Stephen agora estava frio como o gelo no inverno. Bateu na pasta com um dedo magro e murmurou:
—    Já falamos tanto sobre isso...
—    Eu sei, eu sei! — Rufus parecia muito sincero, sorrindo, brilhando. — Mas você sempre se opôs a isso, Steve. E o pai, por algum motivo estranho, o tem apoiado. O que é que há com vocês dois? Sei que você é conservador, mas o pai sempre foi um entrepreneur. Estará caduco, ou coisa assim? Onde está a sua velha imaginação, suas tramas e ousadia? Não que eu o esteja menosprezando, Steve. Em absoluto! O seu trabalho nunca incluiu o planejamento. Mas acho que você, como substituto do pai, devia agora se arrancar de sua papelada eterna e pensar em nós, no futuro.
Stephen ficou calado. Olhou para a pasta que, para ele, parecia conter um poderoso explosivo. Pôs a mão sobre ela, como para protegê-la de Rufus, que viu o gesto e ergueu as sobrancelhas ruivas.
Então, Stephen disse:
—    Mais da metade dos ramais e pequenas estradas de ferro que ligam as comunidades são de propriedade de Joseph Baynes, nosso amigo.
Rufus riu-se disso, com desdém.
—    Você sabe perfeitamente que Joseph Baynes é um preguiçoso. Só conseguiu ganhar dinheiro durante a guerra, levando munições, armamentos, soldados e tudo mais para o nosso entroncamento principal. Nunca teve êxito no negócio dele antes da guerra e mal conseguia pagar as despesas gerais. A guerra o salvou. Mas não está sendo salvo agora. O nosso bom amigo Alex Peale, presidente do Philadelphia Savings Bank, está de posse de quase todas as promissórias de Joe. Poderiamos comprá-las por uma ninharia.
Rufus há tempos insinuava isso e falava com o pai sobre os ramais de
Joseph Baynes e suas estradinhas de ferro locais. Stephen ficava escutando. Também houvera insinuações sobre os títulos. Até recentemente, Stephen dera pouca atenção a isso. Seu rosto ficou fechado e inexpressivo.
—    Já conversamos sobre isso — acrescentou Rufus.
—    Eu sei. — A voz de Stephen mal se fazia ouvir.
—    Bem, e por que não pensar nisso logo? O irmão de Alex é o senador George Peale, que é mais nosso amigo do que o próprio Alex. Podemos dar o dinheiro para as promissórias. E veja o que não será a nossa renda! Temos idéias, imaginação, uma vida progressista!
As mãos de Stephen estavam pousadas sobre a pasta. Claro, ele sempre soubera. Mas, na sua crença de que a humanidade é fundamentalmente decente e honrada, ele não acreditara que tais conversas dariam em alguma coisa. Aaron muitas vezes gostava de fazer especulações, por puro prazer.
—    O que o pai diz de sua ideia agora? — perguntou Stephen, de cabeça virada para o lado. Ele sabia, antes mesmo de Rufus responder com entusiasmo.
—    Bem, depois de todo esse tempo, o pai está de acordo comigo.
Stephen sentiu os ossos frios e duros, em seu corpo magro. Disse então:
—    O que será do Joe? Ele possui o maior bloco de ações em seus ramais e estradas de ferro e é diretor.
Rufus, embora conhecendo Stephen, ficou espantado com essa infantilidade.
—    Joe? Vai ficar feliz por não ter de se exaurir, tentando arranjar dinheiro para pagar os juros dos títulos. Isso é um esforço demasiado para um homem da idade dele.
—    Acontece que sei que ele não tem reservas — disse Stephen, com sua voz monótona e distraída. — De que vai viver? Como vai sustentar a família?
Rufus estalou os dedos.
—    Ora, o Joe é um velho amigo. Podemos ser generosos. — Ele estava triunfante. — Joe é um bom ferroviário. Podemos até encarregá-lo de dirigir os ramais e de ligar as estradinhas com o nosso tronco principal.
—    Quer dizer que ele trabalharia para nós, como nosso empregado?
Stephen não demonstrou qualquer indignação, só um vago interesse, e Rufus se entusiasmou.
—    Por que não? Seria um grande alívio para ele. Um bom ordenado, nenhuma responsabilidade. De certo modo, ele se orgulharia de ver a expansão do que um dia foi sua propriedade. Ele não tem idéias progressistas.
Stephen apoiou os cotovelos na mesa, pôs o queixo estreito nas mãos e ficou olhando pela janela.
—    Joe — disse ele — é um homem de brio. Não creio que sobrevivería ao que seria quase um confisco de sua propriedade. Não acho que aceitaria trabalhar para nós.
Rufus ficou impaciente, mas ainda afetuoso.
—    Steve! Joe é um homem prático.
Stephen não parecia tê-lo ouvido. Continuou:
—    Se comprarmos as promissórias de Joe, as ações dele não valerão nada. Ele não terá nada para legar à família.
—    Temos sempre que considerar os outros às nossas custas? — Rufus estava sinceramente indignado.
—    Algum dia consideramos? — perguntou Stephen, melancólico.
Isso fez Rufus rir de novo. Deu um tapa no ombro de Stephen, achando muita graça.
—    Não consideramos, não. Como ganharíamos dinheiro, se tivéssemos tido essa consideração?
—    Existe uma coisa chamada princípios — disse Stephen, desanimado.
Rufus abriu a boca.
—    Nos negócios? De que está falando? — Ele estava sendo inteiramente sincero e ficou pasmo diante da infantilidade do irmão.
—    Aonde iríamos parar, se pensássemos constantemente nos “princípios”? Ora, em parte alguma, só no asilo dos pobres. Mas claro que você não está falando sério.
Stephen não disse nada.
—    Nós precisamos expandir, ou então decair e largar o negócio — continuou Rufus, encorajado pelo silêncio de Stephen. — Devemos ser progressistas...
Stephen saiu da apatia e ergueu os olhinhos castanhos para Rufus, pensativo.
—    Progressistas? Para ir aonde?
Rufus se levantou e começou a andar de um lado para outro no escritório, depressa.
—    Steve, você deve saber que estamos no limiar da era de expansão e progresso! Todo o raio do país! Os territórios! Ora, ligar o leste ao oeste! As grandes estradas de ferro já estão falando nisso e em breve será uma realidade! Não há limite para a expansão. Progressista? Por que não?
Stephen disse:
—    Será que nunca poderá haver progresso sem sofrimento e desespero? E falência, exploração... e traição?
—    Não poderá, não! — retrucou Rufus, com veemência aborrecida. — E você também sabe disso.
—    É — disse Stephen, pensativo —, eu sei. Ou pelo menos sei que é o que pensa muita gente. Olhe aqui, Rufus, essa terra é bastante grande para todos nós, sem necessidade de sacrificar os outros. Pode levar um pouco mais de tempo, mas haveria a paz nacional, confiança, cooperação, e mais certeza nas vidas humanas. 0 homem não precisaria estar vigiando o tempo todo, receando seus concorrentes e seus amigos.
—    Ora, você é mesmo obstinado — disse Rufus, com indulgência. — Sabe que essa ideia é fantástica?
—    Sei, claro que sei — disse Stephen. — Sei bem demais.
Rufus estava exultante. Ficou atrás de Stephen e apertou as mãos nos
ombros do irmão, com afeto.
—    A concorrência é a vida de todo o progresso — disse ele.
—    Você acredita nisso, não?
—    Certamente. — As mãos de Stephen estavam frouxas sobre a pasta. — Mas não pode ser uma concorrência honesta?
—    Não pode, não. Só pode ser cada um por si. Quanto a mim, não quero ser dos pequenos, quero ser dos grandes — e ele fez um barulho engraçado, batendo os calcanhares.
—    Muito embora Joe Baynes seja destruído nisso tudo?
—    Ora, o Joe — disse Rufus, tirando as mãos dos ombros do outro. — Joe também é um homem de negócio. Ele não nos culparia. Faria o mesmo conosco, se tivesse oportunidade, pode ter certeza.
—    Não faria, não — disse Stephen, sem ênfase. — Eu o conheço muito bem. Ele tem vinte e dois anos mais do que você, e vinte anos mais do que eu. Há muitos anos que sou o melhor amigo dele, sempre o admirei e conheço tudo sobre ele.
Rufus foi para junto da lareira. Chutou um carvão, pensativo, e disse:
—    Se não assumirmos promissórias dele, a Capital o fará. Isso é certo. E a Capital não lhe dará um emprego, e ele não terá nada. Joe é sensato, há de aceitar a metade do bolo.
A Capital Railroad. Stephen franziu a testa seca. Rufus tinha razão, claro. Stephen suspirou tão profundamente que se ouviu na sala. Então trancou a pasta e endireitou os ombros.
—    Pensa que Alex Peale vai vender os títulos à Capital?
—    Ora, sem dúvida, Steve! Aliás... — Rufus parou e depois continuou: — Alex praticamente nos ofereceu os títulos na semana passada, quando estive com ele. Prefere que fiquem conosco, a entregá-los à Capital. Mas o banco não pode continuar assim, sem cobrar os juros. Meu Deus, ele é banqueiro! Espera que tenha prejuízo?
—    Não, claro que não.
—    Então?
—    Se o Joe puder continuar a pagar os juros, se puder pagar os juros agora...
—    Mas não pode.
Stephen não respondeu. Seu corpo magro estava curvado contra a luz pálida que entrava pelas janelas.
—    Mesmo que pudesse — disse Rufus, com impaciência súbita e dura —, a partir de hoje, não poderá continuar. Não tem imaginação, nem previsão, nem audácia. Estaria novamente em apuros dentro de um ano, dois, três anos. As propriedades dele não dão lucro e você sabe disso.
—    Poderiamos ajudá-lo, fazendo conexões entre as estradinhas dele e o nosso tronco — disse Stephen.
Rufus ficou chocado.
—    Você não está falando sério! — exclamou. — Isso dispenderia muito dinheiro e os lucros custariam muito a entrar. Por que lhe daríamos esse presente, mesmo sendo nosso amigo? E o que diriam os nossos acionistas? São todos a favor de uma expansão rápida. Temos de levar em conta os nossos acionistas. — Ele esperou e então, como Stephen não dissesse nada, continuou, num tom mais forte e incrédulo: — Mas claro que você não está falando sério! O pai nunca concordaria com isso e você sabe.
—    É verdade — concordou Stephen, com pesar.
—    Está vendo? E agora o pai é a favor de comprar os títulos. — Rufus acrescentou: — Eu gostaria que você não falasse assim em vão, Steve. É um desperdício de tempo. Você sabe que não podemos perder tempo com conversas inúteis. 0 que direi ao Alex, amanhã? Claro, o pai e eu já resolvemos, mas eu queria a sua concordância formal, como vice-presidente. — Ele não conseguiu disfarçar o tom de desprezo em sua voz.
—    Deixe-me pensar a respeito por algumas horas — respondou Stephen. Então se levantou, com a pasta na mão. — Enquanto isso, tenho de sair um pouco.
—    Vou à estação — disse Rufus, agora o irmão simpático. — Deixe que o
leve.
Já realizara o que planejara e estava jubiloso.
Stephen olhou para ele, o rosto mais sombrio do que nunca à luz cinzenta.
— Não, só tenho de ir ao banco, lá embaixo. E depois preciso tratar de um assunto meu, particular.
5
Rufus olhou pela janela, esperando que Stephen saísse do banco. Passou-se algum tempo. Então, primeiro tinha ido ao banco, como dissera. Rufus nunca tivera motivo para duvidar da palavra de Stephen, nem jamais o pegara numa mentira. No entanto, a falsidade fazia de tal modo parte de sua natureza que ele não podia acreditar que algum homem fosse sincero.
Por fim Stephen saiu pela porta que dava para os fundos e para todos os escritórios. Estava com o sobretudo abotoado até o alto do pescoço e com aquela “maldita cartola antiquada". Era bem do feitio dele não saber quando uma moda passava, tornando-se ridícula. O vento bateu na cartola e Stephen, um pouco trôpego sob a força da ventania, agarrou-a enquanto a pasta foi jogada para o lado e bateu no chapéu de um transeunte. Rufus não ouviu o que se passou, mas notou que Stephen estava muito atrapalhado, quase servil em suas escusas, e o transeunte furioso. Quanto mais o irmão explicava e se desculpava, mais o outro se indignava, endireitando-se e dominando Stephen.
Rufus deu uma gargalhada, sacudiu a cabeça e voltou para a mesa de Stephen, que tinha sido do pai. Sentou-se e passou a revistar metodicamente todas as gavetas, lendo todos os papéis. Ficou outra vez desapontado. Depois avistou os arquivos e foi logo para junto deles. Mas estavam trancados. Então ele estava escondendo alguma coisa, não é, aquele sonso? Ele ficou tão contente ao ver que os arquivos estavam trancados que riem parou para pensar que talvez Stephen, que sempre os trancava de noite, talvez ainda não tivesse tido oportunidade de destrancá-los naquela manhã.
Rufus ficou sentado uns instantes à mesa de Stephen, refletindo feliz sobre o triunfo que tivera sobre o irmão naquele dia. Tinha sido absurdamente fácil. Ele e o pai ririam do fato naquela noite. E no dia seguinte Rufus ia jantar na bela casa de seu caro amigo, sr. Alex Peale, e seriam tomadas todas as providências para o resgate das promissórias do velho Joe Baynes. Talvez o senador também estivesse presente. Por certo estaria! Estavam em Portersville, nesse momento, na sua cidade natal, acertando as arestas políticas e entrevistando os seus eleitores com solicitude e carinho.
E depois, após o jantar, charutos, Porto e conversas, Rufus iria a um “lugarzinho” discreto que passara a conhecer bem nos últimos dois meses. Sua expressão de expectativa e prazer começou a desaparecer, aos poucos, e então urna expressão perversa apareceu em seus olhos. Maldita Lydia! Era tudo culpa dela. Ele às vezes tinha vontade de lhe jogar na cara fria e morena o fato obsceno, mas afinal havia certas coisas que um marido não dizia à mulher, mesmo que ela dormisse em outro quarto, abandonando o leito conjugal. Rufus nunca perguntara a causa. Até então, limitara-se a assumir um ar magoado e triste na presença de Lydia. E era muito imponente em sua mágoa. Não respondia às perguntas curiosas da mãe; mesmo com ela, Rufus às vezes representava, pois nascera teatral e tinha certo prazer em exercer seus dotes histriônicos naturais.
O estranho é que ele estava realmente ferido e magoado. Muito intrigado. Ele amava a esposa. Havia o mistério, o ar indefinível que o haviam cativado mesmo quando, no princípio, se sentira atraído pela irmã dela. Lydia era tão completa, tão serena, uma dama, como sua mãe nunca seria. Havia um enigma tão insondável em seus lindos olhos escuros, o formato perfeito de suas faces esguias, o fogo escuro tão empolgante no seu cabelo espesso. Seu corpo alto era muito bem-feito e tinha gosto impecável. Possuía pose de rainha, serena, sem o ar dominador, mas brando e seguro. Não oscilava com languidez, como outras mulheres, e andava com graça e segurança. Rufus, pensando nela e no mal estranho de que ele padecia, pensou no pescoço longo e alvo da esposa, os braços compridos e brancos e as mãos lindas, a boca forte, rosada e firme. Lydia tinha personalidade, era divertida. Ela o amara.
“Eu a amo, não só por seu físico e maneiras e pelo fato de ser uma dama, mas porque posso confiar nela." Levantou os olhos, espantado. Era verdade. Ele confiava em Lydia, ele que nunca confiara em ninguém, nem mesmo na mãe. Então, sua dor tornou-se uma coisa viva, contorcendo-se dentro dele. Rufus se lembrou dos primeiros meses de casamento: a paixão de Lydia, a alegria com ele, a ternura infinita, o amor retribuído. As coisas tinham começado a piorar só depois que ela concebera Cornélia. Lydia passara a evitálo, desviando o olhar, raramente falando com ele, respondendo-lhe com frieza, quando insistia. Atribuira isso à gravidez e esperava ansioso até que ela desse à luz. Mas depois do parto as coisas tinham ficado insustentáveis, em vez de melhorarem.
Claro, pensou hesitante, ele podia exigir seus dir
— Por que vêm para cá? Por que não ficam na terra
— Cornélia, pare de rir assim. Vai passar mal.
o candidato republicano em 1880.
— Aqui, talvez — respondeu Allan, sorrindo, de mod
— Ah, sim — disse Cornélia, com sua voz comum e ou
Allan não conhecia grande coisa sobre música, a nã
— Os segredos nem sempre são bons — disse ele, mei
Ele agarrou o ombro de Laura e sacudiu-a com uma f
Miles estava falando sobre os instrutores deles em
— Um bocado antiquado e incômodo — disse Cornélia,
0 velho estava escutando fascinado. Decênios antes
— Não — disse Tony. Os dedos sob sua mão estavam t

Claro, pensou hesitante, ele podia exigir seus direitos de marido. Mas Rufus, que não recuava diante de nada, recuava agora. Sabia que Lydia se sujeitaria, se ele insistisse, mas essa submissão seria odiosa a ele, que já lhe conhecera as reações amorosas. Lydia tinha de ser reconquistada daquele mundo estranho e inimigo ao qual se retirara e do qual não queria sair nem mesmo para amamentar a filha. Essa retirada causara a necessidade e o trabalho imediatos de se arranjar uma ama-de-leite. Parecia que Lydia não se interessava. Sophia, indignada, dizia que Lydia raramente ia ao quarto do bebê.
Stephen caminhou certa distância, depois de sair do banco, de olhos baixos, como era seu costume, assim evitando a necessidade de cumprimentar alguém conhecido. Ele sabia o conceito desdenhoso que quase todos tinham dele, ricos, pobres ou de classe média, e sentia menos não ver ninguém do que ver os olhares de zombaria em rostos que, para os outros, eram simpáticos.
Durante sua infância e meninice ele aceitara tudo isso, mas agora estava surgindo nele uma dúvida e um ressentimento amargos. Aos poucos tornava-se evidente a Stephen — embora ele procurasse severamente dominar essa ideia — que ele sabia demais sobre a humanidade e sempre soubera. Ele via a humanidade despida, não coberta pela civilização e controlada pelo cristianismo. E o que via não era bom.
Não era a falta de jeito, a timidez ou constrangimento, como acreditavam a maior parte das pessoas, que o levavam a se afastar de grupos e sofrer agonias nos jantares de sociedade, desse modo tornando-se ridículo, segundo a opinião geral. Era o medo. O medo dos homens o enchia de pânico gélido, de desejo desesperado, embora secreto, de fugir imediatamente. Era um entendimento total que o deixava com um certo ar de escusas diante dos que encontrava. Ele tinha tanto remorso por saber tudo sobre eles!
Aqueles olhos pequenos, desconcertados, se afastavam de um olhar direto, de modo que ele adquiriu a reputação de ser furtivo. Às vezes, quando estava desprevenido, ele os fixava sobre os outros com uma expressão curiosamente atenta e penetrante, de modo que até quem passasse por ele, ou estivesse por perto, ficava sem jeito.
O vento o açoitava, enquanto ele se apressava com suas pernas compridas pelas ruas em direção ao rio. Várias pessoas sorriram com maldade ao verem aquela figura, o aspecto ridículo dele com as abas do casaco abanando e a pasta também. Ele não via os sorrisos. Sabia que estavam ali, mas, em sua compaixão, se recusava a olhar. Ele chegou à rua do rio e encontrou um carro de aluguel. Pediu para ser levado a Elm Road, 46.
A carruagem seguiu, atravessando a ponte com um ruído oco. A luz cinzenta no céu estava mais escura, por causa da tempestade que se aproximava. Então, Stephen viu-se sendo levado pela rua mais bonita e elegante da Cidade Oeste, que dava para o rio, através de longos gramados. Mesmo naquele dia de março as casas pareciam quentes e imponentes em seus terrenos amplos, e as árvores nuas tinham uma certa grandeza fria. O rio frio, cinza e roxo, corria depressa diante dessas casas agradáveis e uma luz pálida banhava os telhados molhados. Lá as montanhas pareciam mais enfáticas em sua proximidade, seu volume, linhas e dobras, de um roxo mais escuro do que o do rio, erguendo-se num caos petrificado por trás da cidade.
De repente a chuva jorrou do céu e bateu nas janelas sujas da carruagem. Quase imediatamente as janelas ficaram embaçadas, do leve calor dentro do veículo, e Stephen esfregou uma delas, a fim de olhar para fora. Nesse momento, o carro chegou a um largo caminho de cascalho e dirigiu-se para uma casa de pedra cinzenta, com telhado muito inclinado, chaminés chatas e altos vitrais com cortinas de seda. Mesmo naquele triste dia de março, a casa parecia admiravelmente bem proporcionada, no final da entrada.
O carro parou sob a porte-cochère e Stephen desceu, atrapalhado com as pernas compridas. O vento fustigou-o e no meio de suas tentativas de agarrar a cartola, conservar a pasta que segurava como se ela contivesse os segredos de um grande império, e impedir que o casaco lhe fosse arrancado do corpo enquanto procurava trocados no bolso, virou uma figura um tanto cômica. “Parece um pouco com o velho Abe Lincoln, de bigode”, pensou o cocheiro do carro, observando-o calmamente de sua boleia, sem oferecer qualquer auxílio, o que teria feito a um homem de mais presença. Na opinião dele, seu passageiro era alguém sem a mínima importância, algum pobre advogado ou coisa assim, ou um eleitor meio faminto do senhor que morava naquela casa.
A ventania deixara Stephen sem fôlego e ele sentia pontadas dolorosas no
peito. Meio ofegante, bateu a aldrava, não com o ar sem-cerimônia e confiante do irmão, mas hesitando, como se pedindo desculpas por se intrometer. A porta abriu-se e apareceu um mordomo imponente. O homem franziu a testa diante daquele homem meio desgrenhado à porta, com sua cartola antiquada e sobretudo fora de moda, o nariz vermelho, sapatos molhados e o bigode grande, que era o único traço definido em seu rosto.
—    Que deseja? — perguntou o empregado, com aspereza, já começando a fechar a porta para quem desconfiava não passar de um oportunista pobre ou um mendigo político.
Stephen aprumou-se, endireitou a cartola num ângulo menos esdrúxulo na cabeça e enxugou os pés no capacho. Ele disse consigo, como estava começando a fazer, recentemente: “Vamos. É só olhar bem firme nos olhos dele. Diabos, dói eu olhar assim para ele; dói eu me forçar a uma dignidade pretensiosa e usar um tom de voz frio. Por que as pessoas não podem ser decentes? Por que o homem tem de agir com seus semelhantes como se fossem desprezíveis e impertinentes?” Ele disse, num tom de voz um pouco mais forte do que era alguns meses antes:
—    Queira informar ao senador Peale que o sr. Stephen DeWitt está aqui.
O empregado recuou depressa, boquiaberto. Fez uma mesura tal que a cabeça ficou quase à altura dos joelhos. Começou a balbuciar:
—    Ah... ah, senhor, não o reconhecí! Sinto muito mesmo, senhor, sinto...
Stephen, com um pouco de inveja, mas ao mesmo tempo condenando, já tinha visto outros homens enfrentando um empregado presunçoso e contendo as palavras dele com um olhar duro, um gesto de desdém superior. Stephen sabia que devia fazer isso e tinha certa vontade de fazê-lo. Depois, vendo a apreensão frenética do mordomo diante de seu engano, seu coração derreteu-se, apesar de toda a sua vontade. "Ninguém deveria ter tanto medo de outra pessoa", pensou, “ninguém devia ser obrigado a sofrer tanto em sua segurança íntima, mesmo por culpa própria”.
Ele disse:
—    Não tem importância. Nunca estive aqui, portanto, como você ia me conhecer? Obrigado, obrigado. Acho que não vou demorar. Pode deixar o meu chapéu e casaco aí.
O empregado, imensamente aliviado, também estava espantado. Stephen, com o costumeiro sentimento de desânimo, viu o rosto pálido retomar suas cores e o seu ar original de arrogância, se bem que um tanto abafado e secreto. Ele sabia exatamente o que o homem estava pensando. "Esse será Stephen DeWitt, Stephen DeWitt de verdade? Que criatura miserável e sem importância! Se fosse homem de verdade, me derrubava.”
O fato de Stephen, nem fisicamente nem por implicação, não tê-lo “derrubado”, o fez cair no conceito do empregado. Stephen pensou, como sempre, que era melhor não notar muitas coisas que o magoassem, de modo que acompanhou o sujeito por um corredor comprido e escuro, com um assoalho encerado, grandes espelhos e um teto inclinado e com traves. Concluiu que não gostava daquela casa grande e achava toda aquela madeira e escuridão crepuscular muito deprimente. “Provavelmente ele quer acalmar os eleitores”, pensou, e ficou satisfeito com essa ideia malvada, que, no entanto, pareceu intoxicá-lo. Mas ele estava necessitado dessa sensação, de modo que foi um Stephen mais alto, mais reto e menos sem jeito que foi levado a uma biblioteca tão grande quanto uma sala de reuniões, cheia de livros marrons, vermelhos e azuis, tapetes persas desbotados e móveis feitos para um gigante. Uma parede de janelas cinzentas cobertas de seda dava para o que era provavelmente um jardim muito triste. Mas um bom fogo crepitava numa lareira e brilhava nos guarda-fogos de metal e havia dois lampiões acesos. Mesmo àquela distância ouvia-se claramente o ruído do rio, como um contraponto tempestuoso.
Um homem estava lendo diante da lareira, confortavelmente fumando um cachimbo. Ele levantou os olhos, alertado, quando Stephen foi anunciado, e levantou-se logo, estendendo os braços e mãos curtos e roliços, o paletó abrindo-se para revelar um colete estampado, esticado sobre uma barriga grande e redonda. Era um homem completamente calvo e tinha um rosto bondoso, comum, cheio de uma honestidade simpática, um nariz largo e vulgar e um sorriso feliz. Ele exalava um aroma de fumo e água-de-colônia de limão e seu aperto de mão foi cordial e sincero. Ao ver essa recepção amável àquela criatura miserável, o mordomo ficou mais desconcertado do que nunca e se retirou rapidamente.
—    Meu caro, caro Stephen! — exclamou o senador George Peale, com um carinho paternal. — Que prazer ver que afinal veio me visitar! Já o convidei tantas vezes, seu tímido, mas só veio hoje. Então, parece uma caverna de dragão? Venha, venha, sente-se junto do fogo! Vamos conversar bastante. Vinho? Uísque? Xerez? Como está molhado! Que pena! Que bom ver você, seu patife! Uísque? Então, está confortável? Como vai o seu querido pai e o encantador Rufus, aquele malandro?
Stephen ficou estonteado com toda aquela cordialidade, amabilidade e prazer evidente. Ninguém jamais o recebera assim. Ele teve de controlar o seu encantamento e gratidão e cerrou as mãos na pasta, para não se esquecer.
Então, ficou rigidamente sentado na beira da poltrona confortável, as pernas abertas, sem elegância, os joelhos esticados contra o pano das calças. Agarrou bem a pasta e disse:
—    Meu pai continua inválido e Rufus vai bem. Uísque, por favor, senador. Espero não ter-me resfriado de novo.
O senador, de pé junto dele, ficou preocupado. Isso deixou Stephen com um sentimento de culpa.
—    Não é nada, senador. Eu nem devia ter falado nisso.
O senador tinha apenas quarenta e cinco anos, mas Stephen, traiçoeiramente, pensava nele como sendo um tio afetuoso. Ele arrancou os pensamentos dessa imagem cativante e de repente, sem que nem ele soubesse, sua boca se apertou sob os bigodes e seus olhinhos recuaram, reservados. Tinha de se lembrar de sua missão, pensou, com raiva de si, e nada poderia abalá-lo. Havia coisas demais em jogo.
O senador puxou o cordão da campainha junto da lareira e di rigiu toda a solicitude carinhosa que pôde para o seu “caro, caro Stephen". Sentou-se junto dele, e nada poderia ser mais íntimo e familiar do que seu sorriso. Inclinou a cabeça e olhou para Stephen com um afeto divertido.
—    Que pessoa estranha você é, Steve. Uma pessoa estranha mesmo. Mas gosto de você. Sempre gostei mais de você que do nosso Rufus e nem tenho palavras para dizer como gosto de seu irmão, Ele parece o sol, é o que diz minha querida esposa. Mas você, você... — De repente o senador percebeu que tinha cometido um erro, que poderia tornar-se ofensivo se não fosse logo usado muito tato. Mas com quem ele poderia comparar Stephen DeWitt, diabos? — Ora, diabos! — exclamou. — Você se parece um pouco com o velho Abe, de bendita memória.
Ele viu logo que tinha cometido um engano, mas não sabia por que, pois Stephen estava dizendo, com uma frieza desconhecida:
—    Imagino que o senhor esteja querendo fazer um elogio, senador, e lhe agradeço. No entanto, creio não ser nada parecido com o sr. Lincoln.
—    Bem... é — balbuciou o senador, sem saber o que dizer, se perguntando por que alguém ficaria sentido por ser comparado ao sr. Lincoln. Então ele se lembrou da modéstia de Stephen e achou que tinha feito um elogio exagerado. Ele sorriu, com ternura. — Claro, o sr. Lincoln tinha uma cabeleira vasta e uma verruga na face, além de um queixo muito magro. Mas quem se importava com isso? Um tal espírito, tal nobreza, tal glória interior! — Ele suspirou. — Você me faz lembrar dele, nesse sentido.
Stephen ficou calado.
—    Quando recebi seu bilhete ontem fiquei feliz demais — disse o senador Peale, afastando os joelhos gordos e apoiando uma mão em cada, olhando para Stephen com uma expressão benigna. — Eu disse à minha querida esposa: “Anna, Stephen DeWitt afinal consentiu em vir nos visitar!" Ela sempre gostou muito de
você, sabe?
Stephen duvidava muito disso, mas se lembrava que a sra. Pea le era uma pessoa muito boa e calma e fez uma careta. Desejava que aquele homem fosse um vilão, um vilão grande e bruto, ou pelo menos hipócrita ou mesquinho. Era tão difícil sentir amargura contra esse tipo de homem, que não achava errado o que tinha feito. O senador certamente achava que levava uma vida boa e cristã e que cumprira o seu dever como representante do povo, tendo feito sua fortuna do modo mais legítimo possível, e que era um bom chefe de família. E, sem dúvida, refletiu Stephen, desanimado, a maior parte das pessoas concorda plenamente com ele. Sentiu o couro úmido da pasta sob suas mãos e mais uma vez sua bondade traiçoeira quase o dominou.
Ele se deu conta de que o senador Peale estava falando, rindo com prazer, e que ele estava meneando a cabeça, sem ter dito uma palavra. O senador lhe deu um copo de uísque. A tempestade estava tão escura sobre a cidade que mais parecia noite, em vez de quase meio-dia. Stephen percebeu uma palavra.
—... tempo.
Ele concordou, meneando a cabeça de novo.
—    É, muito mau, não? Acho que vai nevar.
Um silêncio seguiu-se a essa sua observação e ele olhou para cima e viu que o senador Peale o estava observando, perplexo. 0 senador olhou para o copo, um sorriso fixo no rosto bondoso, e Stephen viu que mais uma vez cometera a sua gafe conhecida. Baseado sobre uma única palavra, ele pensara que poderia continuar uma conversa que o deixara muito atrás, e inteiramente sem ideia a respeito.
—    0 seu filho Patrick já deve estar com seus onze anos, não é? — A voz dele vacilou, esperançosa.
0 senador olhou para ele, sorriu de um modo especial e disse:
—    É. É, está com onze anos, Steve. Mais uísque? — perguntou o senador, levantando-se com o ar ágil do anfitrião satisfeito. Stephen estendeu o copo, o braço rígido. 0 senador então tornou a puxar o cordão da campainha e disse, a voz forte demais: — Ele está aqui, em casa! O clima de Washington não faz bem ao garotinho, nem à mãe dele. Os dois se resfriaram. Preferem Portersville, onde nós todos nascemos, e nem gostam muito de nossa casa em Filadélfia. Lugarzinho simpático, Portersville! Sempre fico feliz quando posso voltar para casa.
0 mordomo retornou, tendo o cuidado de não olhar para Stephen. O senador pediu que dissessem ao menino Patrick para ir à biblioteca. Stephen ficou logo aflito. Ver o garotinho, que ele re cordava ser um menino bonito, sério, lhe dificultaria ainda mais o trabalho. Mas não havia como evitá-lo e quando Patrick entrou na sala, sorrindo para o pai com seus olhos sérios e depois fazendo uma mesura para Stephen, este quase não pôde suportar. Falou alguma
coisa com o garoto, hesitando, e teve uma resposta educada. Depois, Patrick retirou-se e o pai o acompanhou com um olhar prolongado e comovente. Quando ele se virou para Stephen, sua voz estava bastante abalada:
—    Nosso único filho. Mas sinto que, em Patrick, o céu me abençoou...
Mil rostinhos negros se ergueram como um coro acusador diante de Stephen e sua compaixão trêmula pelo senador desapareceu, deixando-o frio e muito parado.
O senador, mais do que nunca disposto a ser bondoso com Stephen, que ele, intimamente, achava muito esquisito, disse:
—    Mas muito breve você terá o seu filho, meu rapaz! Rufus tem a sua menina. Talvez você tenha um menino.
—    É — disse Stephen, começando a abrir a pasta.
“Ah, meu Deus!", suspirou o senador, com paciência. Uma petição, ou coisa parecida! Bem, eram os ossos do ofício! Mas era esquisito que fosse Stephen a levar uma petição, assinada sem dúvida por pelo menos duas mil pessoas. O que haviam de querer agora, aqui em Portersville? Aí ele se eletrizou, pois no momento em que estava compondo as feições para assumirem a expressão convencional de interesse paternal e senatorial, viu os olhos de Stephen. Pequeninos e afundados, sob as maçãs do rosto salientes, agora eram os olhos de um inimigo, não vingador, mas severo, impossível de abrandar.
Stephen tinha nas mãos um maço de papéis, que estendia para o senador.
—    Venho coligindo essas informações, e pagando para isso, há sete anos, senador — disse ele. — Achei que o senhor deveria ver essas cópias. As outras cópias estão em lugar seguro, em Filadélfia. O senhor vai concorrer de novo ao senado este ano, não vai?
Aturdido, o senador pegou os papéis, mas por momentos não conseguiu afastar os olhos de Stephen. Começou a sacudir a cabeça, como que perseguido por um som estranho.
—    Ah, sim — disse ele, por fim, a voz lenta —, vou concorrer de novo este ano. Acho que o povo me quer... — Ainda olhando para Stephen, ele perguntou: — Isso é uma petição, Steve? — Ele tentou sorrir, mudar aqueles olhos inexoráveis.
—    Não é uma petição, senador. Apenas um resumo confidencial de sua carreira enquanto no Senado.
O senador não podia acreditar no que tinha ouvido. Ficou segurando o maço de papéis, que começou a tremer um pouco, farfalhando.
—    Quero que o senhor entenda, senador, que nenhum motivo de
animosidade pessoal me traz aqui hoje — dizia Stephen. Ele queria desviar a cabeça, mas recusou-se a se permitir isso. Aquele
era quase o momento mais insuportável de sua vida, pois sabia que estava prestes a dar um golpe nesse homem, talvez um golpe mor tal, nesse homem que fora um dos melhores amigos da família De Witt por muitos anos e que dera e recebera muitas vantagens nesse relacionamento. Assim Stephen, sem desviar o olhar, continuou: — Mas, em todos esses anos, pensei que o senhor não deveria ser senador dessa comunidade, que não deveria ser eleito.
—    O que está dizendo, Steve? — murmurou o senador, sem poder acreditar. Os papéis farfalharam mais fortemente em suas mãos. A chuva batia loucamente contra as janelas e o fogo vermelho crepita va e estalava. “Ele deve estar louco”, pensou o senador Peale. “Sem pre foi esquisito; é, deve estar louco.” Ele pigarreou e disse, em voz fraca: — O que quer dizer? A sua família sempre me apoiou. O seu pai... — Ele teve de engolir em seco. — Sinto muito, Steve, se fiz alguma coisa em Washington que não merecesse a sua aprovação, mas...
—    O senhor votou por um governo mais forte e centralizado senador, e não só durante o período da guerra, mas como uma coisa permanente. — A voz de Stephen alteou-se, clara e incisivamente pois ele agora tinha controlado a sua compaixão e conseguiu se lem brar. — O senhor votou a favor de uma medida que teria destruído tudo o que George Washington e Thomas Jefferson defenderam pelo que rezaram e viveram: o direito de os Estados e as comunidades guardarem a sua soberania. O senhor fez isso, senador, não por algum motivo vil, tenho certeza. Se me recordo bem, o senhor dis se: “É a tendência dos tempos.”
Ele sacudiu a cabeça.
—    Não, senador, não é a “tendência dos tempos”, é a ten dência da tirania. Washington sabia que sempre havería homens que tentariam suprimir os direitos dos Estados e das comunidades, cen tralizando o governo e tornando-o todo-poderoso. Os homens que redigiram a Constituição também o sabiam. É por isso que temos um sistema de controle e equilíbrio. Mas os homens que cobiçam o poder detestam esses controles e equilíbrios e, imagino, em todas as gerações de nossa história hão de tentar derrubá-los.
Ele parou e depois continuou:
—    Não creio que o senhor deseje mais o poder do que os ou tros. Sei que o desejo do poder é forte na maioria das pessoas. Não creio que o senhor esteja propositadamente tramando contra os Es tados Unidos. Não obstante, homens como o senhor são perigosos. Conheço todos os argumentos a favor do governo centralizado: eco nomia, maior eficiência, resultados mais imediatos pelas diretrizes, maior mobilidade nas emergências de todo tipo. Talvez sejam argu mentos válidos, de certo modo. No entanto, levariam ao despotis mo, o tipo de despotismo que hoje está esmagando a Europa e a vem esmagando há séculos.
Aquele era o discurso mais longo que já fizera em sua vida e ele o despejou em rajadas longas, com indignação poderosa. Ele conseguia apelar para essa indignação ao proteger um amigo ou um princípio, ou contra uma injustiça, embora não pudesse fazê-lo por si. O seu rosto, de cor neutra, lampejava com vida e força. Ele não era mais um homem humilde, ali sentado diante do senador pasmo, e sim um homem que, a despeito de desajeitado e magricela e dos gestos desconexos, das roupas desmazeladas, era uma potência. O senador ficou paralisado, tanto por essa modificação naquele homem que sempre considerara um nada, como por suas palavras.
Stephen estava falando de novo, com mais moderação, mas ainda com
raiva.
—    O senhor também votou a favor da lei para trazer dezenas de milhares de europeus famintos para este país, senador. Aparentemente, foi uma lei caridosa, cristã e digna, e eu também a aprovaria, a não ser por um senão muito importante. Nós estamos nos expandindo industrialmente. Precisamos de mão-de-obra. Portanto, ainda superficialmente, tudo o que o senhor votou nessa lei é excelente e digno de louvor. Mas pensemos na nossa mão-de-obra nativa e pensemos também nesses europeus. Aliás, pensemos primeiro nos europeus. Nessa lei, houve alguma disposição forte para proteger a mão-de-obra europeia contra a ganância dos nossos, os nossos empregadores? Houve alguma disposição para que essa gente tivesse acomodações adequadas e recebesse os mesmos salários que recebe a nossa mão-de-obra nativa? Houve alguma providência para a sua saúde e segurança? Não, não houve. Então, agora estão chegando às bateladas, as infindáveis milhares de pessoas nos porões fedorentos de navios, sujas, doentes, famintas. Para onde vão? Para as cidades, para tomarem o lugar de nossos trabalhadores nativos, para trabalharem por muito menos dinheiro e ficarem presas por um ano inteiro aos patrões a quem são consignadas, e serem vítimas das usinas e fábricas, praticamente escravas que nunca ousarão se mexer até terminar o seu período de servidão. E isso foi feito a criaturas desesperadas, por homens perversos, que se aproveitam de seu desespero.
O senador levou a mão ao rosto. Sua simpatia tinha desaparecido, ele estava muito pálido.
—    Steve — disse ele —, por favor, escute. Não é melhor que esses homens sejam consignados a empregadores por um ano, enquanto pagam sua passagem, do que morrerem de fome em seus países, ou nas guerras eternas da Europa? Eles trouxeram suas famílias. Dentro de uma geração, farão parte deste país. Precisamos da mão-de-obra, se quisermos nos expandir...
Stephen sorriu, com pesar.
—    Sim, somos um país em rápido crescimento, um país pio neiro, e agora vamos começar a avançar as fronteiras, de verdade. Mas isso poderia ter sido feito um pouco mais devagar. O influxo de europeus poderia ter sido controlado com cuidado, de modo que quando chegassem, houvesse algum abrigo adequado para eles, al guma providência tomada. Poderia ter sido um processo lento, com o auxílio de nossa própria mão-de-obra nativa. Não gosto de profe cias, mas agora vou prever o futuro: durante muitos decênios, devi do a esse fluxo incontrolável de gente num país ainda despreparado para cuidar dela, haverá tumultos sangrentos, ódio, antagonismos raciais que durarão, talvez, gerações. Os que votaram a favor dessa lei, sem quaisquer restrições de vulto, sem qualquer controle nor mal e sensato, não são bons americanos. O senhor foi um dos que votaram a favor, senador. E é por isso que estou resolvido a tentar impedi-lo de voltar a Washington este ano.
O senador olhou para Stephen, muito sério, a sombra de sua perplexidade ainda nos olhos. Pensou no que Stephen dissera e quan do falou sua voz não soava mais boa e redonda, como uma ameixa madura. Estava baixa e pensativa.
—    Você é um homem nobre e idealista, Steve, e o louvo por isso. Mas há exigências...
Stephen sorriu, triste.
—    Sim, sempre há exigências, senador.
—    No entanto, Stephen, não creio que o povo da Pensilvânia se recuse a me reeleger ao Senado devido a esses meus dois atos, que foram praticados com a maior boa-fé e na ideia firme de que eram para o bem deste país. — Ele olhou para o outro, pesaroso. — Espe ro que isso não estrague a nossa amizade, meu filho.
Stephen mostrou o maço de papéis nas mãos do senador.
—    Trouxe essas cópias para o senhor ler.
O senador afastou de Stephen seus olhos hipnotizados e come çou a ler. Os lampiões da sala ficaram mais fortes, enquanto o dia lá fora escurecia. O fogo passava a brasas rubras e a chuva martelava as janelas. Stephen recostou-se em sua poltrona, inteiramente exausto e deprimido. Então, sua compaixão lhe voltou, dilacerando seu co ração desprotegido. Não conseguiu olhar para o senador, enquanto este lia. Podería trair todo o seu trabalho, se olhasse. Ficou olhando para o teto, cegamente, e sua boca estava seca e com um gosto ruim.
O senador, acostumado a ler depressa, a saltar, a coligir todas as informações numa folha de papel, juntando-a num resumo de fatos quase à primeira vista, não soltou nenhuma exclamação, ao ler os papéis que Stephen lhe dera.
Stephen ouvia os papéis serem virados, com grande avidez. Dez, onze, doze. 0 senador terminara. Stephen baixou os olhos que fita vam o teto. O senador estava sentado ali, calado, a cabeça baixa, os olhos fixos no chão entre seus joelhos. Os papéis estavam grudados em suas mãos. Seu rosto se tornara cinzento e apareceram rugas que o faziam parecer muito mais velho.
Sentindo que Stephen estava olhando para ele, levantou os olhos. Havia neles uma expressão doentia.
—    Você fez isso... a mim... Steve, para me ferir...
Stephen cerrou os punhos para conter a compaixão odiosa.
—    Não, não para feri-lo, senador. Acredite. Só para impedir que voltasse para Washington.
O senador falou, com dificuldade.
—    Você mandou me espionar, durante anos. Para me destruir, Steve, você sabe que seu pai também participou desse... desse... "comércio de escravos”? Sabe que foi ele quem me convidou para investir.... O meu irmão Alex é quem sempre teve o dinheiro, eu não. Eu queria dinheiro. É normal querer isso, de modo que pedi emprestado o que pude e investi...
Stephen falou delicadamente, mas inflexível:
—    O senhor o investiu em navios e homens para sequestrarem homens, mulheres e crianças negras da África e levá-los para os Eslados do sul. Investiu-o na agonia, sofrimento e escravidão. Não pensou que fosse errado. Nunca pensou que fosse errado, nem mesmo agora pensa isso. O senhor foi muito patriota durante a guerra, para libertar suas vítimas, senador, mas o senhor, como o sr. Lincoln, sempre disse que a guerra foi para conservar a União. E foi mesmo. — Ele parou por um instante. — Fui informado, sabe, que o senhor foi um dos únicos três senadores que o sr. Lincoln chamou à Casa Branca para ler o Ato de Emancipação, antes de ele ser promulgado. E creio que o senhor foi o único que disse a ele que era "desatonselhável”. Pelo menos o senhor foi honesto em suas opiniões, senador, e nunca condeno uma opinião honesta.
Ele se empertigou na poltrona, duro.
—    O senhor ganhou muito dinheiro, senador, e, segundo as suas idéias, não foi mau adquiri-lo desse jeito. Ajudou-o a se eleger, da primeira vez. Ajudou-o a investir numa série de coisas que lhe estão dando bons lucros. Mas, senador, o senhor se esqueceu de uma coisa: neste Estado há dezenas de milhares de pais, irmãos, filhos e mães que choram os seus mortos na guerra. Há um campo de batalha, Gettysburg, de que as pessoas não se esquecerão, assim como não se esquecerão de seus mortos. Elas se lembram de que esses soldados morreram por causa de homens como o senhor. Não vão reelegê-lo, senador, quando souberem. — O rosto dele mostrava sofrimento. — Vão odiá-lo até o senhor morrer também, senador.
O senador Peale esfregou a testa úmida com as costas da mão. Falou, em voz surda:
—    Então, você coligiu toda essa chantagem para eu não ter coragem de me candidatar ao Senado. Está ameaçando me expor porque acredito num governo forte e centralizado e aprovo trazerem europeus para esta terra, o mais depressa possível.
—    É — disse Stephen, não podendo evitar o tom de súplica na voz. — Acredito que o senhor seja um perigo no Senado. De certo modo, pode chamar isso de chantagem. Talvez outros considerem patriotismo.
O senador levantou a mão e sorriu para Stephen, com um ar sombrio.
—    Eu já disse que o seu pai me convidou para entrar naquela... naquela coisa. Steve, se você me desmascarar, também vou arrastar o seu pai comigo. Ele não há de gostar disso, doente como está, nem do filho que fez isso.
—    Ele vai rir — disse Stephen, num tom pensativo. — Tem muito senso de humor. Vai achar muita graça. Vai rir do senhor, senador, ele gosta de rir. Só vai se lembrar de que, mesmo que as pessoas fiquem enojadas dele, e o detestem, não podem se recusar a andar em nossos trens. Mas não se esquecerão do senhor, senador. Os senadores podem ser sacrificados.
O senador se levantou, enfiou as mãos gorduchas nos bolsos e olhou para as brasas do fogo. Tinha um ar largado e cansado e Stephen teve de se controlar para não se desfazer em compaixão.
—    O que você está querendo me dizer, Stephen, é que não devo me candidatar ao Senado este ano?
Muito devagar, Stephen se levantou, desdobrando-se, como dizia Rufus, colocou o cotovelo no consolo da lareira e cobriu o rosto com os dedo longos. Falou por trás deles.
—    Era essa a minha intenção original, senador. Não é mais.
O senador continuou a olhar para o fogo. Depois, com uma lentidão infinita, virou-se para Stephen, sem poder falar.
A voz de Stephen lhe chegou abafada e mortalmente cansada, de seu refúgio por trás da mão:
—    Estou aqui para fazer um trato com o senhor, senador. Hoje de manhã, ainda era o trato original: o seu afastamento e o meu silêncio. Mas as coisas mudaram, em pouco mais de uma hora. Serei breve. Quero que o senhor telegrafe ao seu irmão Alex, em Filadélfia, para não vender as promissórias de Joseph Baynes ao meu irmão Rufus, amanhã. Quero que lhe telegrafe, dizendo que nunca as venda sem lhe avisar devidamente. E o senhor me avisará, em segredo. Quero
que consiga que ele lhe prometa que, de modo algum, venderá esses títulos à Capital Railroad Company.
O senador ficou pasmo e com o seu espanto surgiu um respeito profundo e confuso. Ele tentou sorrir.
—    Ah! Você as quer para si, é, Steve?
Stephen abaixou a mão e mostrou o rosto abatido.
—    Não — disse ele. — Só quero que Joe Baynes fique com elas. Sabe, vou emprestar... dar... o dinheiro para ele pagar os juros pendentes.
O senador ficou pasmo. Não conseguia falar. Puxou a face carnuda, esfregou o queixo. Pegou um atiçador e avivou o fogo que estava se apagando. Sugou os lábios, cruzou os braços sobre os joelhos e olhou para as brasas, num silêncio prolongado.
Depois disse, como se estivesse falando sozinho:
—    Nunca me considerei um homem venal.
—    Eu sei — disse Stephen, com brandura.
O senador pôs a mão sobre o rosto.
—    Eu nunca tinha conhecido um homem bom, Steve.
—    Eu não sou... — e Stephen sorriu, sem querer —... Joe Baynes é meu amigo.
0 senador abaixou as mãos e fitou Stephen, com olhar muito penetrante. Por duas vezes começou a falar, mas parou. Depois riu, sem alegria.
—    E você sacrificaria até seus princípios por um amigo... só um homem?
O rosto de Stephen tinha estampado o sofrimento, sofrimento tão grande que chegava a ser angústia.
—    Creio que sim. — Ele acrescentou: — Como vê, não sou um homem bom, não, senador.
O senador Peale pegou as cópias e as jogou no fogo. Os dois ficaram olhando a chama fugaz. Depois que os papéis viraram cinzas, o senador Peale disse:
—    Eu é que estou fazendo o melhor negócio. Você não está ganhando nada, Steve, nada mesmo. Você me deixa confuso.
—    O senhor acha isso muito estranho?
O senador pensou. Passou-se algum tempo até que ele tornasse a falar. E foi num tom baixo:
—    Não para você, Steve. Não, não é estranho para você.
Quando ele levantou os olhos de novo, Stephen se fora.
6
0 vento e a chuva formavam um vasto redemoinho retumbante quando Stephen saiu da casa do senador. O mordomo olhou para fora e disse, na dúvida, enquanto olhava para Stephen, ressentido por ter-se enganado de tal modo:
—    0 tempo está muito mau, senhor. Sua carruagem foi embora.
0 mordomo insinuava que um homem sem carruagem, ou que não
providenciara uma para seu uso, era de condição muito humilde. Stephen, aborrecido por não ter mandado que o carro de aluguel esperasse por ele, ou pelo menos voltasse para apanhá-lo, contemplou muito consternado o dia escuro e cinzento.
—    Vou chamar uma carruagem para o senhor — disse o mordomo, desse modo perdoando a Stephen e por conseguinte sentindose melhor. — Uma do senador.
—    Ora, não se incomode — comentou Stephen, como sempre não querendo incomodar as pessoas, mas o mordomo já desaparecera. Após alguns minutos uma carruagem pequena parou diante de Stephen, que olhou para ela agradecido. Deveria dar uma gorjeta ao mordomo? Mas o homem estava sorrindo para ele de modo muito bondoso e superior. Stephen percebeu que o empregado lhe fizera um favor misterioso, que seria anulado pela gorjeta. Portanto, ele se limitou a sorrir, entrou na carruagem e foi levado dali.
Ele conseguira. Stephen sabia que não fracassaria. Mas então sentiu-se deprimido e seu corpo caiu sobre as almofadas de couro da carruagem. Por um homem, um amigo, ele traíra a pátria. Não adiantava ele dizer para si mesmo que o senador Peale não era pior do que qualquer político, e talvez fosse até melhor do que outro que fosse substituí-lo. O fato é que ele, Stephen, perdera parte de sua integridade e não conseguira fazer o que se propusera inicialmente. Lembrou-se do que o senador dissera: “Não sou um homem venal”. Não, não era. Os negociantes de escravos inescrupulosos tinham solicitado escravos, a despeito de todas as leis rigorosas aprovadas pelos Estados sulistas proibindo a importação do infortunado negro.
O tráfico de escravos era o crime em que os nortistas haviam se empenhado, com lucro imenso, e entre os mais veementes dos nortistas exigindo que o sul fosse esmagado estavam homens como o senador Peale. Agora eram eles que estavam mandando suas hordas de aproveitadores contratados para o sul arruinado, e o senador Peale tinha agentes entre eles. O peito côncavo de Stephen parecia sob ferro.
Stephen dera as instruções ao cocheiro e, num esforço para esquecer a depressão, olhou para fora das janelas arriadas. A carruagem estava seguindo pelas ruas da Cidade Leste, depois de ter atravessado a ponte, e agora se aproximava da estrada de ferro. Stephen ouvira um silvo doloroso, à distância. “A velha 63”, pensou, olhando para o relógio de prata. E bem no horário. A carruagem atravessou a linha depressa e o silvo encheu o ar úmido enquanto um olho faiscante penetrava a escuridão espectral do vento e da chuva. A velha 63 era de confiança, pois o maquinista, Bill Lauffer, se orgulhava de sua reputação e era o empregado mais antigo de State Railroad Company. Tinha perdido três dedos da mão direita quando era acoplador, havia quinze anos, e para ele a perda era seu distintivo de serviço, ostentado com orgulho. Stephen compreendia o amor dos ferroviários pelas estradas, pois ele mesmo o sentia.
A carruagem agora estava seguindo por uma rua meio deserta, de armazéns e escritórios modestos. Stephen bateu no vidro e disse:
—    Na esquina. Deixe-me saltar, por favor.
Ele abotoou o sobretudo, tornou a pegar a pasta, firmou o chapéu na cabeça e desemaranhou as pernas. Saiu para a chuva e correu para um vão de porta. Não havia ninguém na rua, a não ser uma ou duas carroças, e as paredes estreitas de tijolos reluziam molhadas à meia-luz cinzenta. Água suja escorria das janelas dos escritórios, as portas eram velhas e rachadas. Stephen entrou numa ruela pequena
e encardida e se aproximou de uma porta em que estava impresso, em letras apagadas: TRENS DE SUBÚRBIOS BAYNES. Ele bateu e depois entrou.
A porta abriu-se para o pequeno escritório mobiliado com simplicidade, onde havia uma mesa, uma escrivaninha de tampo corre diço, uma poltrona de couro preto esfolado, uma mesa de guarda-livros com um banco e uma lareira pequena com um fogo modesto. As janelas davam para a rua triste e não eram lavadas ha via tempos. O piso sem forro pareceu arenoso sob as botinas de Stephen e ele assumiu o sorriso de sempre: brando e acanhado.
0 homem sentado à escrivaninha era baixo, mais baixo ainda do que Aaron DeWitt, e se virou ansioso quando Stephen entrou, Seu rosto cansado e magro se iluminou. Era um homem de seus cinquenta e poucos anos, mas tão abatido e gasto, tão sobrecarregado de preocupações e ansiedades crônicas que parecia muito mais velho. A despeito de suas roupas velhas bem passadas, as botinas remendadas e a gravata bem cerzida, evidentemente era um cavalheiro, pois os olhos azuis se mostravam espertos e inteligentes, as feições bem feitas e destacadas. Os cabelos ralos tinham encanecido no último ano e estavam bem penteados do melhor modo possível.
—    Steve! — exclamou ele, levantando-se e estendendo as mãos, olhando para Stephen com prazer e afeição sinceros.
—    Você parece estar surpreendido por me ver. Tinha esquecido que eu
viria?
—    Não! Claro que não. Mas é sempre tão bom ver você. Pare ce um prazer renovado, sempre que você aparece. Como está pas sando? Sente-se nesse raio de poltrona. É a melhor que tenho, sabe? Espere um instante. Vou atiçar o fogo e jogar mais uns carvões.
Stephen o observou.
—    Comprei mais umas terras perto de Scranton. Todos se riem de mim, mas acho que vai ser a melhor jazida de carvão que já descobrimos.
—    Foi você quem disse a eles que o ferro já estava praticamente esgotado e que era bom se concentrarem no carvão — disse o sr. Baynes, olhando para o amigo por sobre o ombro, enquanto atiçava o fogo. — Vai começar a escavar logo?
Stephen hesitou e olhou para a pasta.
—    Não, ainda não. Há tempo para isso.
O escritório podia ser pequeno, sujo e melancólico, com apenas um lampião de querosene iluminando as paredes marrons, mas Stephen ali sentiu paz e contentamento. Ele pôs a cartola na mesa, esticou as pernas para o fogo e puxou o cachimbo do bolso. Encheuo devagar e o acendeu com cuidado. O sr. Baynes empoleirou-se na cadeira da escrivaninha e olhou para Stephen com muita estima.
—    Agora me lembrei de que estou com fome e não almocei — disse Stephen. — Você terá um sanduíche sobrando, Joe?
—    Eu me esqueci de comer e agora fico contente — respondeu o outro.
Ele puxou uma gaveta da escrivaninha velha e pegou um cestinho. Abriu-o, desdobrou o guardanapo branco e tirou pão com manteiga, fatias de presunto, mostarda e duas fatias de bolo. Abriu o guardanapo na mesa e colocou a comida sobre ele. Stephen olhou, satisfeito. Pegou dois pedaços de pão, pôs aí uma fatia de presunto e fez um sanduíche.
—    Joe — disse ele — não se preocupe mais. Trouxe dinheiro para você pagar os juros das promissórias.
O sr. Baynes se virou na poltrona e olhou para as janelas, sofrendo.
—    Eu me enganei, Steve, como sempre me engano. Pensei que os juros venciam na semana que vem, mas é hoje. Acabei de olhar meus livros. Portanto, como vê, é tarde. Hoje escrevi a Alex Peale, pedindo um prazo maior, pois você tinha prometido me ajudar. Mandei a carta por mensageiro especial, num dos seus trens. Mas esta noite vão vender meus títulos. Há alguém atrás deles. Talvez a Capital...
Ele não voltou os olhos enxutos para Stephen e falou com calma, se bem que suas mãos estivessem se contorcendo o tempo todo, num gesto de desespero.
Stephen deu uma boa dentada em seu sanduíche e mastigou.
Olhou para o amigo, penalizado, e engoliu.
—    Está enganado, Joe, Alex não vai vender os seus títulos a ninguém. Isso eu lhe garanto, sob minha palavra de honra.
Ele largou o sanduíche e puxou a pasta. Devagar, sem poder acreditar, o sr. Baynes se virou para ele. Stephen estava empilhando notas de dinheiro sobre a mesa, em montes arrumados.
—    São cinco mil dólares, Joe. Os seus juros, até hoje.
Aturdido, Joseph tocou num dos montinhos com a ponta do dedo, mas ficou fitando Stephen.
—    Não compreendo — disse, a voz trêmula. O que quer dizer? Como conseguiu impedir que ele vendesse? Como é que sabe?
—    É muito complicado para lhe contar. Você tem de confiar em mim, Joe.
—    Confiar em você — repetiu Joseph. Aí ele pôs as mãos sobre o rosto e seus ombros arfaram. Pôs os braços na mesa e abaixou a cabeça sobre eles.
0 escritório sujo estava muito quieto. Por uma ou duas vezes Stephen estendeu o braço para tocar no amigo, mas depois puxou a mão, constrangido. Seus olhos pequeninos brilhavam com pena e compreensão compadecida. Ele pegou o sanduíche e continuou a comer. Depois disse, com brandura:
—    Está tudo bem, Joe. Você pensava que eu não o ajudaria ao máximo que pudesse? Os juros não eram importantes. Mesmo que não os pagasse, Alex Peale não vendería seus títulos. Agora, nunca fará isso. Sabe, hoje falei com o irmão dele, o senador.
Joseph levantou a cabeça depressa. Seu rosto estava tenso de fadiga e emoção.
—    Mas fui procurar o senador ontem, Steve! Falei com ele, pedi que intercedesse a meu favor com o irmão. E ele disse, lamentando muito, que não havia nada que pudesse fazer. E conheço George Peale desde menino. Fomos colegas de universidade e companheiros de igreja!
—    Parece que você não usou os argumentos devidos — respondeu Stephen, hesitando, sem saber se comia mais uma fatia de presunto. — De vez em quando eu sei ser muito persuasivo.
Joseph Baynes não pôde impedir um sorriso involuntário. Depois, deu uma risada e Stephen juntou-se a ele, secamente.
—    Naturalmente — disse Joseph, assoando o nariz — ele foi sempre tão amigo de sua família, embora vocês não o conheçam há tanto tempo quanto eu. Nós éramos vizinhos. O seu pai? Será possível que o seu pai...?
Stephen parou de mastigar.
—    Meu pai? Meu Deus, Joe! Você me lembrou! Não conte nada disso a ninguém, nem mesmo a Elsa.
—    Você nem a mim contou — sugeriu Joseph, esperançoso.
Stephen pensou na sua entrevista com o senador e perdeu o apetite. Recostou-se na cadeira e olhou para o fogo, com um ar sombrio.
—    Não há nada a contar — disse. — Nada mesmo.
Agora que Joseph Baynes se deu conta plenamente de sua salvação, as lágrimas apareceram nos cantos de seus olhos.
—    Steve, Steve! Sabe em que eu estava pensando, antes de você chegar? Eu tinha resolvido me matar. Não havia outra coisa a fazer.
—    Isso ajudaria muito a Elsa e a seus filhos — respondeu Ste phen, com
calma.
—    Ajudaria, sim. Ela voltaria para Filadélfia, para a casa dos irmãos e das irmãs. Briguei com todos eles, há muitos anos.
Stephen pensou naquilo e depois disse:
—    Já observei que nenhuma viúva é bem-vinda entre os irmãos e irmãs, especialmente quando eles têm dinheiro. E sei que os parentes de Elsa têm.
Stephen estava preocupado, pois o rubor da alegria desaparecera do rosto de Joseph Baynes, que estava pálido e exausto outra vez. A mão direita dele, pousada na mesa, saltava como que puxada por cordões.
—    Acho que sou um fracasso, Steve. Pensei que tinha fundado uma coisa inteiramente sólida e lucrativa. Afinal, como dizem, estamos nos expandindo e não há limites para a expansão. E é verdade que sirvo a comunidades onde a sua companhia e a Capital não vão. Tenho minha licença e ninguém pode tirá-la de mim, a não ser que eu vá à falência. Depois, descubro que sou um péssimo homem de negócios. Não vou pretextar falta de sorte, isso é coisa de covarde. Bem, talvez eu seja mesmo um covarde. Minhas linhas não estão dando lucro, Steve. E não sei como fazê-las render. Não posso aumentar os preços; os lavradores e a gente pobre das aldeias e empregados no campo...
—    Claro que você pode aumentar os preços das passagens! Deixe de ser bobo, Joe. Os lavradores? A gente das aldeias? Ora, Joe, ganharam rios de dinheiro durante a guerra! Sempre ganham. É o chamado povinho que ganha dinheiro nas guerras, aos montes. Sabem como fazer: um dólar aqui, outro ali, dinheiro novo entrando o tempo todo. Talvez as cidades maiores não se tenham dado tão bem, a não ser os fabricantes de material bélico. Mas os pequenos, nos lugares afastados, como suas despesas não aumentam, não precisam gastar dinheiro e o que lhes chega eles guardam bem guardado. Vivem num lote de terra ou um sítio e comem o mesmo de sempre, não compram nada e escondem o dinheiro nos bancos locais ou em colchões e bules de chá. E, claro, gritam se alguém aumenta os preços de alguma coisa básica! Não são as pessoas sem importância, escondidas, levando suas vidinhas "modestas"? Quem são os grandes homens, que haviam de querer fazê-los pagar o devido pelo que lhes é oferecido? É um pecado; é um crime! É a mesma história humana de sempre, Joe, meu amigo.
Joseph ficou escutando, com certa surpresa.
—    Steve, nunca o ouvi falar assim.
—    Estou aprendendo, estou aprendendo! — disse Stephen, com ironia. — Estou aprendendo, dia a dia. Então, meu amigo, você vai aumentar suas passagens imediatamente. Vai equilibrar a sua receita. Vai ter um lucro decente. Não estou sugerindo que explore, mas você tem tanto direito a ganhar a vida quanto qualquer lavrador ou aldeão que viaja na sua linha. Mais, aliás. Você forneceu a cabeça, o equipamento e o trabalho mais árduo. Eles não vão boicotálo! Como poderiam fazê-lo? Não têm outra alternativa em transporte, Faça uma revisão nos seus livros todo o dia de hoje, Joe, e à noite também. Pense no que seria um lucro justo para você. E depois organize as suas tarifas de acordo.
Ele esperou. Joseph estava de testa franzida e seus olhos brilhavam de entusiasmo.
—    À medida que formos nos expandindo, Joe, as suas linhas se tornarão mais usadas e mais importantes. Vai haver viagens a toda hora. As pessoas se movimentam num ar de prosperidade, mesmo que seja só nos lugares de sempre. É uma espécie de fermento.
Joseph pegou um dos montes de notas.
—    Eu lhe pagarei, Steve. Posso demorar, mas lhe pagarei. E vou conseguir aquelas promissórias. Puxa, você me empolgou! Sou um homem novo, Steve. Deus o abençoe.
Steve, desconcertado como sempre quando lhe agradeciam alguma coisa, olhou para o relógio.
—    Já passa das duas. Tenho de voltar ao escritório, Joe. Lembranças a Elsa e às crianças.
—    Você ainda não me contou o que disse ao senador Peale.
Stephen abaixou a cabeça.
—    Bem, entre outras coisas, eu disse que achava que ele não devia ser reeleito. Como sabe, nós falamos disso inúmeras vezes...
—    Você disse isso a ele? — exclamou Joseph, sem poder acreditar.
—    Disse.
Joseph, olhando para Stephen como se ele fosse maluco, coçou a cabeça.
—    E ele prometeu interceder por mim junto ao irmão dele, a seu pedido?
—    Foi. Pelo telégrafo.
A fisionomia de Joseph ficou muito pensativa.
—    Há alguma coisa que você não me contou, Steve. Você é um patife reservado. Nunca conta nada a ninguém, se puder evitar.
Mas não importa. Não há ninguém em Portersville que tenha feito tanto bem quanto você, anonimamente. Os pacotes de dinheiro às viúvas e aos órfãos de guerra, os alimentos que comprou para os doentes e indigentes nas cidades e aldeias... que transportei nas minhas ferrovias... as contribuições anônimas aos hospitais de soldados, o orfanato, o asilo de mendigos, as igrejas. Não fique tão espantado. Você nem me falou nisso, mas tenho meios de saber. As pessoas falam e às vezes, apesar de sua discrição, elas se recordam. E —Joseph baixou a voz — você é o melhor amigo que um homem poderia ter.
—    Ridículo — disse Stephen. — Você faria o mesmo por mim, não faria?
—    Claro. —Joseph não tirava os olhos de cima dele e estava com uma expressão curiosa.
—    Então?
—    Não lhe perguntei por Alice — disse Joseph, num tom preocupado.
—    Está ótima. Agora pode ser a qualquer momento.
—    Se não for amanhã, quer vir jantar conosco? Elsa gosta muito de você, Steve, e as crianças sempre gostam de vê-lo.
Isso era verdade quanto a Elsa Baynes, pensou Stephen. Uma mulherzinha tão bonita e alegre, de cabelos castanhos desarrumados e olhos vivos. Mas as crianças não gostavam dele, o que era estranho, pois ele amava as crianças, especialmente as pequeninas. Ele muitas vezes lhes levava presentes e procurava conversar com elas, porque as admirava. Mas elas se limitavam a receber os presentes, sorrir encabuladas e depois desviar o olhar. "Bom", pensou Stephen, com pesar, “não é culpa das crianças, se não gostam de mim.” Ele disse então:
—    Nunca deixo Alice sozinha à noite, Joe. E, de hoje em diante, não pretendo deixá-la só por mais de três horas de manhã, até nascer a criança.
Ele deixou o amigo e saiu na tempestade fria. A chuva tinha cessado, mas o vento rugia pelas ruas como uma catarata. Abaixando a cabeça, encolhendo-se, Stephen começou a caminhar de volta a seu escritório.
Joseph ficou olhando para a porta fechada, por alguns minutos, depois que Stephen saiu. A seguir, voltou devagar para a mesa. Contou o dinheiro. Cinco mil dólares. Mais do que o suficiente para os juros atuais. Ele pôs o dinheiro empilhado e sua expressão ficou muito esquisita, sombria, doentia e cheia de horror por si.
7
“Fica pouco na minha conta pessoal”, pensou Stephen, mas sem pesar, ao se aproximar do prédio do banco, meio ofegante. Tinha esperança de começar a explorar as jazidas de carvão de Scranton naquela primavera. Pensara no “dinheiro Fielding”, que fora investido na State Railroad Company e que permitira à companhia estender suas linhas. Alice não possuía mais muito dinheiro de seu dote e o marido tinha esperanças de ajudar a restaurá-lo. Mas havia muitas solicitações desesperadas à sua caridade, que ele atendia anonimamente. Stephen sabia que Rufus era muito mais sensato. Aliás, Rufus, que contribuía parcamente para qualquer pedido de auxílio, recebia louvores imensos pelo que dava, pois o dava com importância, com atitude de imensa generosidade e insinuação de remorso por não poder fazer mais no momento.
Stephen sabia de tudo, mas isso nada significava para ele. A glória ofuscante de Rufus não despertava sua inveja. Para ele bastava que, graças à sua caridade, houvesse um pouco menos de sofrimento em Portersville. Ele explicara tudo isso à jovem Alice, e ela logo concordara com ele, sem perguntar nada, acreditando que tudo o que Stephen fizesse seria o mais sábio possível. Entrando no prédio, Stephen pensou: “Pelo menos, não usamos o dinheiro que Alice vai receber quando fizer trinta e cinco anos. Ela sempre terá isso”.
Stephen foi subindo a escada, lembrando-se com um sorriso da alegria de Joseph Baynes. Já estava construindo a barreira contra a depressão, que sentia quando pensava no senador Peale e que, por causa do amigo, ele traíra seus
princípios mais sagrados. Chegou ao escritório e foi recebido por um grupo de escriturários pálidos e pelo guarda-livros.
—    Sr. Stephen! — exclamou um deles. — Estávamos tentando encontrá-lo! Todos estavam querendo encontrá-lo! O sr. Rufus disse para voltar logo para casa, assim que chegasse aqui! Ele está com a sra. Stephen, assim como toda a família, disse ele!
Stephen ficou ali, parado, olhando para eles.
—    O quê? — murmurou. — O quê? O quê?
—    É a sra. Stephen — disse o guarda-livros, com uma expressão trágica e o prazer evidente na notícia dramática que estava dando.
Então, tinha acontecido enquanto ele estava fora de casa. Não havia meios de o encontrarem. Ele não esperava isso, que Deus o perdoasse, não naquela manhã, quando deixara Alice sorridente e serena na cama, a bandeja ao seu lado. Alice lhe perdoaria por não estar com ela, na sua hora de sofrimento extremo? Ele lhe diria...
Ele ficou ali, seu rosto cinzento se contorcendo — como um idiota, na opinião dos empregados.
—    Acho bom o senhor ir para casa — disse o guarda-livros, Era demais esperar que esse seu patrão estúpido demonstrasse algu ma emoção ou alarme. — Quer que chame logo a carruagem?
—    Quero — disse Stephen, com a voz surda. De repente, ele se sentiu muito fraco. Sentou-se no banco do guarda-livros e a cartola caiu de sua cabeça. Ele olhou para ela, com os olhos vazios. Fiapos de seus cabelos castanhos e ralos estavam eriçados em seu crânio, a gravata estava puxada para um lado. As pernas, como pernas de pau, nem pareciam parte de seu corpo e sim sarrafos de madeira. Ele teve de agarrar o lado da mesa alta do guarda-livros para não cair.
“Tenho de ser calmo e inteligente”, pensou. “Não pude evitar a minha ausência. Alice não está sozinha. A família está com ela. A irmã, Rufus e provavelmente minha mãe. Além disso, os bebês não nascem assim tão depressa. Vou chegar a tempo.” Ele perguntou aos funcionários:
—    Há quanto tempo me chamaram?
—    Às dez, senhor. Era muito urgente. A sua governanta mandou logo o rapaz chamar o dr. Worth, e depois ele veio buscar o senhor aqui, na sua carruagem.
Às dez horas. Nesse momento, ele estava conversando com o senador Peale. Agora já eram três e meia. Stephen, com uma exclamação abafada, pôs-se de pé.
—    Tiveram mais alguma notícia? — perguntou. Rufus tinha ido! Rufus tinha ido, em seu lugar! Por quê? Por quê? O filho de Stephen e Alice não devia ser importante para Rufus, cuja filha já fora denominada “herdeira” pelo avô. Rufus teria esperado até de noite para então fazer uma visita fraternal, natural. Mas Rufus fora. Rufus, que não se importava com ninguém.
O rosto de Stephen ficou sombrio, abatido. Sem se lembrar do chapéu e largando a pasta onde estivera sentado, ele saiu da sala aos tropeções. Desceu a escada correndo, passando por conhecidos que olharam para ele, assombrados. A escada não tinha fim: os degraus desciam eternamente como um pesadelo. Seu coração era uma coisa oca de agonia e medo. Rufus tinha ido cinco horas e meia antes, precipitadamente, largando tudo! Rufus fora... fora... fora... Aquilo
martelava na cabeça de Stephen, um ruído que se tornou um trovão tumultuoso quando ele saiu para a rua.
O guarda-livros estava se aproximando dele depressa.
—    Não consigo encontrar um carro, senhor! — exclamou, em desespero. — É o mau tempo. Estão todos ocupados. Mas espere...
Stephen, porém, com rosto alucinado, olhar desvairado, estava passando por ele, correndo, como um espantalho alto, rua afora. Ele atravessou os cruzamentos voando, o sobretudo esvoaçando atrás dele, todo encharcado, pois a chuva recomeçara. Correu por ruas inclinadas, a respiração lhe rompendo a garganta. Chocou-se com pedestres apressados, de guarda-chuva, recuou deles, cambaleando e retornando a corrida frenética.
Sombras de rostos insultados lhe apareceram. Como num pesadelo, ele ouviu exclamações ofendidas, olhares zangados. Tropeçou nas pedras enlameadas, saltou por cima de sarjetas cheias, percebendo o barulho do rio à distância. Suas pernas se agitavam, erguendo seu corpo balançante. Os braços pulavam para a frente e para trás, os cotovelos levantados ao alto. As paredes dos prédios se inclinavam para ele e voltavam, o céu voava para cima e para baixo. As crianças que voltavam da escola o viam e fugiam de seu caminho, ou o perseguiam por alguns metros, gritando, troçando dele. Por uma ou duas vezes, ele esbarrou em carruagens que passavam e até em cavalos, provocando gritos grosseiros e palavrões. Ninguém o reconheceu, naquela chuva e naquela escuridão. Ele seguia, voando como o vento. Nele não havia nada senão a terrível necessidade de chegar a Alice, nada além do seu pavor. Estava preso numa eternidade em rodopio e, embora não pronunciasse uma palavra, achava que podia ouvi-lo gritando o nome da mulher.
Agora estava na ladeira íngreme que levava à sua casa. À frente, seguia uma carroça com um lavrador agachado no assento. Ele já estava perdendo as forças, os joelhos balançando. A agonia em seu peito se tornara um poço de sangue fervente, que o estrangulava. Ele gritou e o som parecia vir de todo o seu corpo suado. A carroça parou e o lavrador corpulento virou-se, quando Stephen emparelhou com ele.
—    Bem, não tive culpa — disse o lavrador mais tarde aos amigos assombrados. — Como é que ia saber que era o sr. Stephen? Tava chovendo pedra e escuro como breu. E o vento era uma coisa!
E aí apareceu esse sujeito, sem chapéu, encharcado e com uma cara que eu não queria que nenhum de vocês visse. Tava uma coisa! A cara se torcendo que nem de louco, como se ele tivesse com um ataque ou coisa que valha, o barulho mais horrível saindo da boca dele. O que é que a gente havia de pensar? Que tava com um doido diante da gente e ali na estrada, sem uma casa perto, tudo na lama, e os cavalos empinando ao ver o homem. E ele agarrado ao lado da carroça e fazendo barulho e nem dizendo coisa com coisa, só me olhando de olho arregalado, parecendo que tinha sido pescado do rio. O que é que eu havia de fazer? Se ele diz: “Olha, meu amigo, sou o sr. Stephen DeWitt, tenho que ir para casa”. Ora, então eu não ia fazer um favor pros DeWitt, que são tão importantes? Mas o que é que ele diz? — O lavrador cofiou a barba, num gesto de desafio e perplexidade. — Não diz nada, por um instante, fica só resmungando e eu fico com medo. Levantei o meu chicote e dei nos ombros dele. E quando isso não adiantou, peguei o cabo e dei com força nas mãos dele. E isso fez ele cair em si, um pouco, e ele ganiu: “Minha mulher. Dou cinco dólares agora, mas me leva para casa. Não consigo mais correr.” E aí, macacos me mordam, ele começou a chorar, que nem uma mulher, e a gemer. Bem, cinco dólares são cinco dólares, mesmo para um maluco. Aí pegou a pataca e eu peguei a moeda dele. Ele subiu pro meu lado e ficou fazendo aquele raio de barulho. Hoje não me admiro, mas naquela hora sim. E é de admirar? Toquei os cavalos, queria me livrar dele depressa, não se sabe o que um doido pode fazer, nos lugares solitários. E lá estava ele, agarrando os joelhos, com sangue nos nós dos dedos onde eu tinha batido, escorrendo com a chuva e ele arfando e olhando pra frente e gemendo. Não pode ir mais depressa? Mais depressa?, disse e eu respondí: “Os cavalo tão fazendo o que pode e é melhor do que andar a pé, mas pode tentar de novo, se quiser”. Ele não respondeu, mas ficou olhando prás costas dos cavalo e os cavalo são criaturas nervosa. Sentiram que ele tava olhando e começaram a correr que nem doidos e eu puxando as rédea. Assustado? Pensei que era o diabo que tinha entrado na carroça comigo! Cinco dólares. Um bocado de dinheiro, pra andar menos de três quilômetros e fiquei pensando que era dinheiro roubado, ou quem sabe esse dinheiro da Confederação, e o sujeito ia me matar, no fim do caminho. Assim, olhei pra ele de esguelha e tava tudo bem. Então eu disse: “Pára de fazer esses raios de barulho. O que é que há com você? Tá maluco, ou coisa assim? Alguém atrás de você? Não é da minha conta, mas...” E então ele só disse, num fio de voz, como de bebê, fraca e quebrada: “Sou Stephen DeWitt e acho que a minha mulher tá morrendo”. Bom — contou o lavrador — eu quase caí do assento. Olhei bem pra ele, naquele raio de luz esquisita e era mesmo o sr. Stephen DeWitt! Já vi ele centenas de vezes na rua, mas nunca me lembrava bem da cara dele. Sempre andando se escondendo, junto das paredes das casa, sem notar ninguém, feito um cachorro com medo. A gente tinha de ver ele umas cem vezes antes de se lembrar dele e meus olhos não são mais o que era, Mas era Stephen DeWitt, sim. Fiquei tremendo e peguei uma manta atrás de mim pra cobrir ele, todo molhado que estava. Mas ele só dizia: “Depressa, depressa”. E eu disse: “Sr. DeWitt, eu não conheci o senhor, mesmo, sinto muito, diabos, muito!” Quis devolver o dinheiro, mas ele empurrou ele com o cotovelo e disse, como quem tá rezando: “Mais depressa, mais depressa”. “Foi a maldita tempestade, senhor, e o escuro”, disse eu, me lembrando que minhas nota tão no banco e o velho Aaron DeWitt tá sempre comprando nota e executando escondido, comprando futuras servidão. E o meu sítio fica bem naquela maldita estrada de ferro que é dele. Assim botei os raio de cavalo pra galopar e acabamos chegando à casa dele, toda escura, só com duas janela acesa e duas carruagem do lado de fora. E o sr. Stephen saltou da minha carroça e desapareceu num ai! Nunca vi duas pernas andar tão depressa... parecia um grilo. Nem parecia tocar no chão.
—    Bem, o caso foi sério mesmo — disse um dos ouvintes.
O lavrador olhou para ele, truculento, embora estivesse envergonhado.
—    Não foi minha culpa, estou dizendo. E ele tem muito dinheiro. Ganharam muito durante a guerra, com a estrada de ferro deles. — Ele acrescentou, emburrado: — Em todo caso, sinto mas ele não gosta do pessoal miúdo aqui. Nem repara nele. É o sr. Rufus que é nosso amigo e não ele.
O coro de concordâncias o tranquilizou e o ressentimento dos ouvintes começou vagamente a estender-se a Stephen, sem motivo algum.
Stephen nunca se lembrou daquela terrível corrida pelas ruas de Portersville, nem do lavrador. Sabia que, de algum modo, devia ter chegado em casa, mas os detalhes estavam escondidos para sempre e ele nunca tentou se recordar. Afinal, não fora nada. A única coisa de que se lembrava era de ter corrido desesperadamente em direção à casa alta e estreita, que fora de seu pai, olhando freneticamente para as duas janelas iluminadas, uma dele e de Alice, a
outra da sala comprida que Alice tinha transformado de fria em encantadora.
Os cabelos colados à cabeça, os olhos desvairados, as roupas encharcadas e enlameadas, as botas cheias d’água, ele se atirou no pequeno vestíbulo e começou a gritar, com a voz rachada:
—    Alice! Alice! Onde está Alice?
Teve de se encostar a uma parede, pois de repente estava sem fôlego e sem forças.
Stephen já sabia, havia muitas horas, negras e eternas. Quando Lydia, a mãe e o irmão correram para ele, com estranhas expressões, não conseguiu dizer nada: pôde apenas olhar para eles, aturdido, a respiração áspera, rápida, gemendo. Mesmo quando o rodearam, ele não conseguiu fazer nenhuma pergunta. E quando a mãe, à luz do pequeno lustre pendurado do teto alto, viu seu rosto, rompeu em gemidos e cobriu os olhos com as mãos. Lydia estava chorando, as faces esguias e pálidas cheias de lágrimas, e até Rufus tinha os olhos vermelhos e úmidos.
Foi Lydia quem se aproximou e pegou sua mão, sem dizer nada. Ele só conseguiu dirigir toda a intensidade selvagem de seu olhar para ela. Não sabia que o irmão o estava sustentando. Não ouviu a voz de Rufus. Alguma coisa lhe estava acontecendo, internamente; alguma coisa estava sangrando, despejando sua vida, alguma coisa lhe tocara o coração como um ferro. Ele já devia saber? Devia saber que jamais conseguia conservar coisa alguma.
—    Ah, Stephen, pobre Stephen — dizia Lydia, esticando-se e beijando seu rosto abatido. — Meu pobre Stephen. Rufus, ele tem de se sentar. Parece que está morrendo.
Forçaram uma cadeira por trás dos joelhos de Stephen e ele se sentou, obediente, sem tirar os olhos do rosto de Lydia. Ela se ajoelhou ao lado, enlaçou-o com os braços e seu belo vestido de foulard lilás ficou manchado com as roupas dele, molhadas e enlameadas. Mas os braços de Stephen pendiam dos ombros, frouxos, e sua respiração ainda fazia um barulho horrível.
Sophia e Rufus ficaram junto dele e Sophia chorou alto. Seu traje de veludo vermelho fora vestido às pressas, a gola de renda torta, o broche de pérola num ângulo agudo, o cabelo cinzento despenteado.
—    Meu pobre filho! — gemia ela, torcendo as mãos.
Rufus disse, com voz cheia, curiosamente baixa e controlada:
—    Stephen, não havia nada a fazer. Ela caiu da escada por volta das nove e meia e às dez o rapaz foi procurar você e o médico. Não foi culpa de ninguém. Ela tropeçou, a coitada da Alice.
Coitada da Alice, coitada da Alice, coitada da Alice! Havia um zunido nos ouvidos de Stephen, como sinos loucos. Coitada da Alice, que tinha caído, cujo marido deveria estar com ela, em casa, ajudando-a. Mas o marido estava fora, longe dela, ajudando um estranho, um amigo. Todo aquele auxílio ao amigo, mas nada para Alice. O refrão terrível recomeçou: Alice! Coitada da Alice, coitada da Alice! Pobre menina, pobrezinha, pobres olhos azuis e vivos, pobre voz feliz, pobre riso, pobre canto. Pobre criança que era só o que ele tinha.
Ele então conseguiu falar. Só uma palavra:
Alice?
Lydia tentou puxar a cabeça dele para seu peito, mas ele a afastou com um gesto que conseguiu ser brando, mesmo agora. Só disse:
—    Alice... o bebê... estão mortos?
A voz dele parecia vir de um lugar longínquo, oca e ressoando. Lydia não conseguiu responder e ele de repente se lembrou, mesmo naquela agonia, que não podia ser verdade, que Lydia era irmã de Alice. Então, com um esforço tão imenso que exigiu suas últimas forças, ele passou os braços molhados em volta dos ombros dela e Lydia caiu contra ele, exausta de angústia.
Agora não havia nada senão um vazio dentro dele, uivando numa tortura requintada. Seu sangue e seus órgãos tinham desaparecido e ele estava sem nada dentro de si, a não ser o seu sofrimento.
—    Eu não estava em casa — murmurou ele. — Estava longe e não sabia. — Ele olhou para o irmão e seus olhos eram poços vazios. — Eu não devia estar fora de casa. Não sabia.
Rufus pôs a mão sobre a cabeça ensopada do irmão, abalado.
—    Você não podia ter ajudado. Aconteceu muito depressa. A idiota de sua governanta estava na rua, comprando ovos, e encontrou Alice, quando chegou. Não devia tê-la deixado. Steve, não fique assim. Teria acontecido, de qualquer modo. Ela estava... estava... quase acabada, quando foi encontrada.
Ele não podia dizer que Alice quebrara o pescoço e que só vivera uma hora depois da queda, morrendo quando o bebê estava nascendo naquele vestíbulo, nas mãos do dr. Worth. Tinham posto um tapetinho sobre a poça sangrenta que manchara o tapete grande, claro. Ela ficara ali, entregue à morte, com o seu roupão branco, enquanto o médico lutava e se esforçava por fazer nascer a criança antes que também esta morresse. Não, Rufus não lhe contaria isso. Ele vira, pois chegara com o médico. Nunca contaria ao pobre Steve o que vira, a cabeleira clara desfeita espalhada pelo chão, o rosto branco e parado, os olhos abertos, revirados, a boca frouxa aberta, produzindo os sons angustiantes da morte e os lindos braços e pernas esparramados na última agonia. Rufus, que raramente se comovia com alguma coisa, se comovera insuportavelmente com aquilo. A governanta não ajudara nada, berrando ali perto, mas Rufus, com todo o seu vigor, se ajoelhara ao lado do médico, ajudando-o. Suas mãos tinham-se coberto do sangue que jorrava e tocaram no bebê arrancado do corpo moribundo.
Ele não podia contar a Stephen, enquanto os dois vivessem, que no momento final, antes de Alice morrer, seus olhos vidrados tinham recuperado um laivo de consciência e ela gemera uma pergunta perdida, procurando:
—    Stephen? Stephen?
—    Ela nunca voltou a si, nem soube de nada — mentiu Rufus. — Não sofreu. Mesmo que você tivesse estado aqui, não teria olhado para você, nem conhecido você.
Rufus esfregou a cabeça do irmão, sem jeito. Lydia, incapaz de chorar, comprimiu-se então contra o casaco molhado de Stephen e ouviu o bater lento e forte do coração dele, sob seus ouvidos.
—    É uma menina, uma menina muito bonitinha — disse Rufus, a voz mudada e abafada. — Não quer ver... ver...
—    Quero ver Alice — disse Stephen, com voz fraca.
Ele afastou Lydia e Rufus ajudou-o a se levantar. Os irmãos foram para a
escada, devagar, e, passo a passo, bem apoiado sobre Rufus, Stephen foi subindo, cambaleando. Lydia os acompanhou; viu as botinas de Stephen, tropeçando, se arrastando. A água e a lama escorriam pelo tapete azul-claro, deixando pegadas que pareciam sangue escuro. Ela também não sabia da verdade e Rufus resolvera que nunca lhe contaria. Ela aceitava as mentiras dele, sem questioná-las, e chegara bem depois de Alice ter morrido e ter sido levada para o quarto. Nem ela sabia o que o tapetinho escondia, no vestíbulo lá embaixo. Mas fora ela e não Sophia (que estava aos gritos) quem tirara aquele lindo roupão de veludo branco e que lavara e vestira a irmã mais moça, que sempre estivera sob seus cuidados e sua proteção. Ela fizera isso sozinha, num silêncio duro e sem lágrimas, pois, até acabar, não ousava permitir que o sofrimento a dominasse. Parecia-lhe, enquanto trabalhava, que estava lavando e vestindo a pequena Alice de sua infância, penteando os cabelos claros com cuidado e dobrando as mãos sem cor naquele peito de criança.
Uma luz fraca ardia no quarto que Alice arrumara com tanto gosto, com os móveis leves e claros da casa dos pais dela. Estava deitada na cama do casal, a cabeça ligeiramente voltada para a porta, como se à espera do marido, não ansiosa, mas com paciência sonolenta, sorridente. Lydia a vestira com a preciosa camisola da noite de núpcias, de cetim e rendas brancas. As pálpebras, fechadas, arredondadas, cheias de veiazinhas, pareciam mármore, assim como os lábios.
Ajudado pelo irmão, Stephen chegou ao lado da cama, aos tropeções, e olhou para a mulher. Ficou ali por muito tempo e depois seus joelhos dobraram e ele pôs a cabeça ao lado da de Alice, no mesmo travesseiro, e fechou os olhos. As lágrimas escorriam pelo rosto de Lydia e Rufus fez um gesto, como que para abraçá-la, mas parou. No rosto de Lydia estava estampada uma frieza amarga, dureza e raiva.
0 hálito de Stephen — agora nem se ouvia a respiração dele — passou sobre o rosto de Alice, sereno e calado. Rufus pensou que ele tivesse desmaiado.
“Tudo o que tive, tudo que já me amou no mundo”, pensava Stephen. “Agora não há mais nada, assim como não havia nada an tes de eu conhecê-la. Mas é pior do que antes. Eu já soube o que é possuí-la, essa coisa querida, essa coisa amorosa, essa mais doce das criaturas." Como um homem podería viver quando a sua queri da se fora, quando nunca mais podería ouvir aquela voz que o orien tara, acalmara e consolara? O que havería na vida que pudesse amortecer aquela desolação, afastar a angústia, encher o vazio? Ela estava sozinha, ele não estava com ela, não pudera ajudá-la. Ela mor rera só, e levara consigo todo o sentido da existência, deixando-o despojado. Morrera enquanto ele ajudava um amigo e com ela se fora o sol e o calor, a alegria e a fé, o fogo e o amor.
Ele não esperava qualquer recompensa por algo que tivesse feito, ou por ter aliviado algum sofrimento. Nunca lhe teria ocorrido que ele merecesse uma recompensa. Não, ele não esperava nada.
Mas não esperava ser castigado por ter alimentado e consolado os outros. 0 seu castigo era demasiado para o que tinha feito.
8
A janela grande e larga do que Sophia chamava, elegantemente, de “grande quarto de hóspedes”, tinha uma vista considerada “uma das melhores do Estado”. 0 arquiteto que construíra aquela casa, inicialmente destinara aquele cômodo a ser um escritório do andar de cima, porém mais tarde fora convertido em quarto de dormir para os hóspedes de maior cerimônia dos DeWitt. As paredes brancas e altas, o teto branco esculpido, a magnífica lareira branca serviam de fundo para os tapetes Aubusson, do azul, rosa e ouro mais discretos, maciços móveis de
cerejeira, cortinas cor-de-rosa de fio dourado e lampiões dourados.
Durante seis meses Stephen ocupara aquela grande cama de colunas e a poltrona de veludo junto à janela. Durante seis meses ele vivera naquele quarto, em silêncio, sem ler nada, falando raramente e contemplando com o olhar vazio a paisagem magnífica que se estendia ao longe. Durante dois desses seis meses, a vida dele correra perigo, devido à “febre pulmonar” que, esperava, o matasse. Durante dois outros meses ele lutara contra o seu restabelecimento e quase vencera. Durante os dois últimos meses, o seu corpo ainda jovem começara a vencer a luta, contra todos os seus desejos angustiados. Ele continuava a desejar a morte, ardentemente, e por vezes, como naquela tarde de fins de outubro, a vontade conseguia vencer a carne que lutava.
Lá estava ele agora, sentado na poltrona de veludo azul, enrolado em xales e mantas de onde saíam sua cabeça estreita e o rosto comprido e cinzento, tão macilento e cavado, como a cabeça de uma, tartaruga de um casaco grande. Suas mãos esqueléticas estavam paradas, desanimadas, nos braços da poltrona, com as palmas para cima. O crepúsculo prematuro enchia o quarto com uma luz fria e pálida, como o reflexo da neve, e a luz do fogo corria pelas paredes e teto branco numa dança de espectros rubros. Junto ao fogo, parado como Stephen, estava Aaron DeWitt, de roupão, o cachimbo na mão, o ar pensativo, os olhos fixos sobre o filho, que não parecia tomar conhecimento da sua presença.
Stephen olhava pela janela, mas não via nada. O panorama cinza e roxo de morros agrupados num caos mudo à distância não lhe despertava qualquer interesse. As montanhas descreviam um círculo em direção à casa, encerrando um rio estreito, reluzindo sob um céu prateado, embaçado, que se estendia misteriosamente em névoas para as montanhas mais distantes. O colorido louco do outono, que antes tinha incendiado as montanhas em explosões de ouro, vermelho e verdes extraterrrenos, se acalmara na grandeza imensa de lilás frio e azul cobalto, recuando, irreal como um sonho.
Ainda era cedo para o pôr-do-sol. As montanhas ao longe ainda não estavam iluminadas. O céu acima delas continuava prateado. O fogo crepitava e estalava. Aaron fumava, pensativo, e Stephen olhava com um olhar vazio para o rio espectral, entre os morros. O relógio de mármore cinzelado fazia o seu tique-taque sobre o consolo da lareira, mas este ruído e o estalar do fogo eram os únicos sons do aposento. Nenhuma outra pessoa da família tinha entrado no quarto, nem um empregado. Pai e filho estavam sentados sozinhos, o pai vigilante, o filho esquecido.
A vontade de morrer tornou-se mais forte em Stephen e, como se ele mesmo sentisse esse impulso desolado, Aaron se levantou. Dirigiu-se sem barulho e devagar para uma mesinha junto de Stephen e misturou cuidadosamente um pouco de remédio num cálice de vinho do Porto. Depois tocou no ombro de Stephen e este teve um sobressalto violento.
— O seu tônico, Steve — disse Aaron e seus dentes amarelados reluziram entre os lábios e a barba. Então, uma careta involuntária contorceu-lhe o rosto e ele se dobrou um pouco, numa espécie de convulsão incontrolável. Ele tossiu um pouco, endireitou-se e repetiu: — O seu tônico. Beba, meu filho, está na hora.
A lassidão de Stephen era imensa demais para uma reação imediata em seus movimentos. Ele levantou a mão esquerda, dolorosamente, aos pouquinhos, e pegou o copo. Era pesado para ele, na sua fraqueza, de modo que tremeu em seus dedos. Ele não queria o “tônico” e o vinho. Se o bebesse, sentiría as forças voltando. Deixou a mão cair para a mesa. Aaron sorriu, pegou o cálice e o levou
aos lábios de Stephen.
—    Vamos, não seja criança — disse, de bom humor. A boca de Stephen, fria e seca, resistiu por um momento; depois, sem olhar para o pai, tomou o líquido. Aaron meneou a cabeça, satisfeito. Voltou para sua poltrona, tornou a encher o cachimbo e recomeçou a fumar. De vez em quando fazia uma careta, como fizera antes, e por uma ou duas vezes apertara o estômago com a mão. Tinha envelhecido e emagrecido nesses últimos meses, para tristeza de So phia. Ela atribuía isso ao pesar de Aaron pela morte de Alice e por causa do colapso e sofrimento do filho.
Os pensamentos de Stephen, como sempre, pareciam nuvens vagas e confusas. Ele não conseguia seguir um pensamento até a ideia fugia dele, como um sonho que se desfaz. Ele só conseguia pensar com alguma clareza em Alice e então o pensamento era uma agonia rara. Várias vezes ele dizia: “Eu não sabia. Eu a deixei. Estava ajudando... Havia a chuva, o rio, e não havia uma carruagem... só o vento. Eu não conseguia correr. Mas aí ela já estava morta. Estava deitada ali, me esperando. Alice”.
Ele sabia que estivera inconsciente, naquela mesma cama, quando a mulher fora sepultada. Ainda não tinha visto o túmulo. Não queria vê-lo. Alice se fora; não estava nesse mundo. Nunca mais entraria por aquela porta, nem ficaria ao seu lado, olhando para o rio. Não existia mais. Ela o deixara como se nunca o tivesse conhecido. Só deixara um vazio, cheio de um sofrimento intolerável. A dor não diminuía com o passar dos dias; a tortura não amainava, não havia alívio nem consolo. Seu corpo podia estar mais forte, mas seu espírito se achava abatido, sangrando, agonizando.
—    Ele não está se esforçando nada. Estou muito decepcionado — confessara o médico a Aaron e Sophia. — Se ele continuar assim... e há algumas semanas eu tinha esperanças... vai morrer. É isso que ele quer. Os remédios só lhe podem dar uma força provisória, contra a qual ele luta.
Sophia, cuja compreensão e imaginação eram tão reduzidas, ficara impaciente. Afinal, dizia ela a Aaron, Stephen ainda era jovem. Havia outras moças simpáticas no mundo. E era preciso trabalhar. Era mesmo horrível que o pobre Rufus ficasse tão sobrecarregado, agora que tinha de fazer o trabalho dele e o de Stephen. Aaron já notara como o rapaz parecia andar cansado? Era uma pena. Stephen devia entender as dificuldades que o irmão estava enfrentando. Devia fazer um esforço, especialmente já que sabia perfeitamente que o pai ainda não podia voltar ao escritório.
Lydia dera ao bebê o nome da mãe delas, Laura. Aaron se lembrava do dia constrangedor em que amigos tinham ido visitar Stephen e mencionado a criança pelo nome. Ele os encarara, o olhar vazio, e murmurara: “Laura? Quem é Laura?”
Realmente, Stephen estava abusando da família.
Aaron olhara para ela com seu sorriso rápido e malvado.
—    Realmente — repetira ele, com ar solene.
Sophia tinha corado, zangada, e depois se perguntara se realmente Aaron estava zombando dela, por quê? Ele, que sempre escarnecera tanto de Stephen e de seu jeito cansativo e apagado, que não tinha feito caso dele, na infância e juventude, e que se rira dele tão abertamente, não poderia estar zombando da mulher quando esta fizera uma queixa razoável contra o filho.
Aaron não acrescentara nenhum comentário àquela única palavra e, como
de costume, subira para ficar junto de Stephen. Isso deixava Sophia intrigada. Não era nada do feitio de Aaron. Por vezes ela fora de mansinho até a porta do quarto de hóspedes e ficara escutando. Mas nunca ouvira nenhum dos dois falar. Horas depois, Aaron aparecia, descia para tomar um uísque ou se recolhia ao seu quarto. Muitas vezes Sophia tinha vontade de perguntar ao marido por que ele passava tanto tempo com Stephen, mas alguma coisa a impedia de falar. Fazia parte da vida aborrecida daqueles meses e a impaciência de Sophia se misturava com uma raiva surda contra o filho abalado. Uma inquietação nebulosa começou a penetrar em sua vida, uma espécie de pressentimento de algum perigo. Nesse dia, Sophia, que se achava de cama com um “resfriado”, estava inquieta de novo. Aaron não fora ao quarto para saber de sua saúde. Estava com Stephen de novo, no belo quarto que ele insistira que Stephen ocupasse se bem que o quarto sul fosse bastante bom. O que será que pai e filho estariam falando, afinal? Ela escutou atentamente. Uma vez, pareceu-lhe ouvir Aaron murmurar alguma coisa. Ela se sentou na cama, prestando bastante atenção. Se Aaron tinha falado, Stephen não respondeu. Suspirando, vexada, Sophia deitou-se de novo. Por que não era evidente para todos, como para ela, que Stephen estava apenas se entregando à dor?
O remédio e o tônico aos poucos foram descontraindo o corpo dolorido de Stephen. Ele viu o rubor rosado pálido sobre as montanhas avivar-se num rosa mais forte, frio, sem calor. As montanhas se tornaram de um roxo mais escuro, entrando mais em foco. 0 rio assumiu tons mais claros, vermelhos e prateados. A névoa começou a se erguer sobre as águas apertadas e apressadas, e elas refletiam o sol, na sua passagem pelo desfiladeiro azulado.
A agonia acentuou-se em Stephen. Ele virou a cabeça, num espasmo de sofrimento. Sem querer, seus olhos pousaram sobre o pai, sentado ali tão quieto, fumando junto ao fogo. Pela primeira vez, o olhar ausente se Stephen não se desviou de Aaron. Com relutân cia, continuou a observar o pai e então sentiu a mais vaga curiosidade. Por que Aaron estava ali? Por que vinha, dia após dia, e ficava hora após hora, raramente falando, sem ler, sem se mover?
De repente, Aaron mexeu a cabeça e os dois homens se olharam, num silêncio prolongado. O quarto estava ficando escuro, embora o céu lá fora fosse uma torrente de magenta brilhante sobre as montanhas. A janela estava incendiada dessa luz; sombras vermelhas batiam no teto branco, que parecia estar ardendo. De um lado a outro do quarto, Aaron e Stephen se olharam na penumbra, sem se falarem.
Então Aaron se levantou e largou o cachimbo. Enfiou as mãos nos bolsos, balançou os pés e olhou para a janela, pensativo. Parecia que Stephen nem estava ali no quarto. Aaron começou a cantarolar, em voz rouca, um hábito que tinha quando estava só. Depois, colou os lábios e assobiou uma melodia vaga, como se faz quando se está com a mente muito ocupada. Começou a andar de um lado para outro no quarto, a cabeça baixa, os passos curtos, lentos e fracos. A barba pontuda era iluminada pelo fogo, quando passava diante dele. Seu rosto estava muito cavado, mas Stephen viu o brilho alerta dos olhos refletido pela luz do fogo.
Então, sentiu que o pai estava ao seu lado. Aaron ficou junto do ombro do filho e também olhou para o céu, com a boca apertada, sem fazer barulho. Stephen quis perguntar pela saúde dele, sem leito, inseguro, mas estava cansado demais. No entanto, sentiu certo desconforto, quando o pai continuou ali de pé ao seu lado, tão perto, na penumbra que se acentuava.
Houve um barulho de rodas de carruagem do lado de fora e Aaron deu de
ombros e disse, com naturalidade:
—    Bom, Jó, estou vendo que os seus três consoladores chegaram de novo para sua visita semanal.
Ele deu uma leve risada. Voltou à poltrona, riscou um fósforo e reacendeu o cachimbo. Tinha cruzado as pernas curtas e ficou balançando uma delas, para cima e para baixo. Parecia estar achando muita graça em alguma coisa. As mãos de Stephen se moviam inquietas nos braços da poltrona. Perguntou-se por que o pai muitas vezes ficava ali quando ele recebia a visita de Jim Purcell, Joseph Baynes e Tom Orville. Ele não fazia comentários se não falassem com ele diretamente, mas ficava escutando e ria, sem barulho, para grande desconcerto de Stephen.
Jó. Aaron o chamara de Jó. Jó não era o homem de muitos males, que Deus e Satanás tinham posto à prova, e que triunfara sobre seus padecimentos e desastres? Por que Aaron falara de Jó de modo tão irreverente? O que Jó tinha a ver com ele, Stephen DeWitt? Houvera crueldade, como sempre, nas palavras de Aaron, ou escárnio? Stephen sabia que seus amigos não ficavam nada à vontade na companhia de Aaron, ou pelo menos, Tom e Joseph não ficavam. Era impossível saber o que pensava Jim Purcell, e era ainda mais impossível saber por que ele ia visitar Stephen. As poucas palavras que grunhia não contribuíam em nada para a conversa geral. Ele ficava ali sentado, pensou Stephen, espantado e abrindo os olhos, como Aaron: escutando, por vezes distraído, balançando uma perna comprida como Aaron balançava a sua curta.
Eles agora estavam vindo pelo corredor comprido e largo, três homens bem diferentes. Tom Orville e Joseph Baynes eram velhos amigos e tinham uma camaradagem íntima com Stephen. Como Stephen, conheciam Jim Purcell a vida toda e não gostavam dele. Ele fora um garoto grandalhão e agora era um homem grandalhão, muito rico, solteiro, grosseiro, de aspecto grotesco e tinha pouco espírito e nenhuma sutileza. Sua vida se limitava à única aspiração de se tornar o homem mais rico daquela comunidade. Ele se afeiçoara a Stephen quando este tinha apenas nove anos e ele doze. Até mesmo Stephen, menino, se perguntara o motivo e continuava a se perguntar.
Bateram discretamente à porta e Aaron disse, jovial:
—    Entrem, senhores, entrem.
A porta abriu-se e os três entraram sérios no quarto, olhando para Aaron com uma polidez forçada e, no caso de dois deles, com constrangimento e medo. Aaron apontou para poltronas. Seus dentes amarelados reluziam à luz do fogo.
—    Sejam bem-vindos, bons consoladores — disse ele, sereno, instalando-se melhor em sua poltrona, com uma expressão de prazer antecipado. Ele puxou o cordão da campainha. — Uísque de novo, com certeza? — comentou, amável.
9
Inconfortáveis sob o olhar dançante de Aaron, Joseph Baynes e Tom Orville se sentaram sem jeito, olhando-se furtivamente, como que dizendo: “Por que ele tem de estar presente?” Mas Jim Purcell lançou um olhar prolongado a Aaron e meneou a cabeça, de leve. Seu rosto grande e deformado parecia uma porção de massa disforme e sem cor, cheia de protuberâncias, inchações e buracos circulares, em que os olhos eram apenas pequenos losangos de lama, de tão sem luz, e inexpressivos. O nariz encaroçado era gorduroso e parecia ter sido colado num ângulo qualquer no centro do rosto e a boca era um simples vinco no meio da massa. Acima de uma testa muito reduzida havia uma camada rala mas dura de cabelos castanhos grossos, que parecia nunca ser escovada nem penteada, e as orelhas grandes se destacavam dos lados da cabeça como cera mal modelada. Jim Purcell dava impressão insuportável de grosseria total e propositada. Suas roupas amassadas e a gravata preta de laço mal dado revelavam o desprezo sereno pelas convenções, assim como as mãos escuras e enormes e as unhas sujas. As botinas grandes estavam manchadas e cobertas de lama velha, da cor de seus olhos. Havia nele um quê de brutalidade, o desprezo displicente.
Contrastando com ele, o meticuloso Joseph Baynes parecia um pouco delicado demais, pequeno e frágil. Tom Orville, homem de estatura média, com seus trinta e tantos anos, minguava diante daquele gigante de homem, e seu rosto cândido, de colorido fresco e olhos vivos, parecia o rosto e os olhos de um colegial. Jim Purcell esgotava a maturidade dos outros dois visitantes. E embora Baynes e Orville fossem homens de aspecto apresentável e agradável, era um paradoxo que esse homem imenso e feio os fizesse parecer pueris, insignificantes e sem vitalidade, comparados com ele.
Uma vez Tom Orville, que em geral era um homem bom, comentara com Stephen que Jim Purcell era um “verdadeiro homem pré-histórico", tanto no aspecto quanto na natureza tosca. Stephen, sempre incomodado quando ouvia um comentário depreciativo sobre alguém, rira sem querer. Mais tarde, se arrependera do gesto, embora reconhecesse que havia certa verdade na observação frívola de Orville. Mas isso só fez aumentar, em vez de diminuir, sua perplexidade quanto à afeição muda de Purcell por ele. Por que aquele gigante de olhos mortos e sem expressão se afeiçoara a ele desde a infância?
Houve outra circunstância esquisita, que ocorrera em 1863. Tom Orville possuía um negócio de madeira, modesto mas em expansão. Em 1860, antecipando bons lucros com a guerra, Orville conseguira grandes opções sobre matas de madeira de construção. Grandes companhias madeireiras das vizinhanças, querendo livrar-se desse pequeno concorrente e furiosas porque ele lhes passara a perna em matéria de previsão, convenceram o banco de Portersville e os de cidades próximas a não lhe adiantarem dinheiro quando vencessem as opções. O próprio Purcell tinha investido em duas das maiores companhias madeireiras e sua palavra era lei entre os banqueiros. Ele dera suas ordens: Orville, o presunçoso, seria eliminado, levado à falência.
Orville procurara seu amigo, Stephen DeWitt, como Joseph Baynes o procurara depois, em desespero e em desalento frenético, ameaçando suicidar-se, chorando pela mulher e pelos filhos. Stephen, aflito, examinara seus recursos pessoais, mas vira que não bastavam, e intercedeu junto ao presidente do banco de Portersville. Chegou a ir à Filadélfia, oferecendo aos banqueiros de lá o seu aval por Orville. Fora recebido com uma cortesia amável, embora constrangida. Não lhe ocorrera que seu pedido poderia ser recusado, pois não era filho de Aaron DeWitt? E Aaron não era amigo íntimo e sócio daqueles homens? Mas o pedido fora recusado, com desculpas esfarrapadas, e Stephen, sentindo o constrangimento dos banqueiros, tivera dó deles, a despeito de seu próprio desgosto.
Então, em último recurso, ele recorrera a Purcell, que era seu íntimo misterioso. Fora procurá-lo com a maior hesitação e relutância, quase se assegurando de que, claro, fracassaria. Ficara sentado na casa empoeirada e desarrumada de Purcell, apesar do luxo, e expusera todos os argumentos humanitários e cristãos de que se lembrara, todos os pedidos de justiça que por vezes tornavam seu rosto sem graça tão eloquente. E Purcell esperara com paciência, mas sem expressão. Esperara enquanto Stephen prometia empenhar o seu futuro a favor do amigo. Até esse momento, não demonstrara qualquer interesse e então fixara seus olhos sem luz sobre Stephen, com uma curiosidade profunda. Depois de feitas todas as suas súplicas, Stephen ali sentado, exausto, aguardando a recusa inevitável. E então Purcell disse, com sua voz rouca:
—    Você quer que ele consiga o dinheiro nos bancos? Está bem.
Agora, estavam todos sentados em volta de Stephen. Purcell, depois de seu primeiro grunhido de cumprimento e sua primeira contemplação de Stephen, sentou-se balançando a perna grande e fumando um cachimbo horroroso. Ficou olhando para o espaço, sem expressão, enquanto Joseph e Tom perguntavam pela saúde de Ste phen e Aaron ficava escutando, rindo em silêncio.
Stephen procurou arrancar-se da letargia. Não falar, não demonstrar algum interesse, parecia grosseria imperdoável a esses amigos bondosos e aflitos. Portanto, respondeu que estava melhorando. Sua voz estava muito fraca e mirrada.
Joseph e Tom sorriram para ele, animando-o, mas na testa de Joseph havia uma ruga de impaciência bem-humorada.
—    O dia hoje foi bonito — comentou ele. — Você devia ter se animado e dado um passeio, Steve.
Ele e Tom trocaram um de seus olhares de apoio mútuo. Tom meneou a cabeça. Na opinião deles, Steve estava fazendo papel de bobo com esse luto prolongado pela mulher. É verdade que Alice era uma coisinha “bonitinha”, a seu modo, e era tudo muito trágico. Mas um homem não podia morrer porque a mulher morrera, especialmente um homem da idade de Stephen.
—    0 médico — falou Aaron placidamente, de junto da lareira — disse hoje que Steve ainda não está em condições nem de se sentar naquela sacada. — Ele acenou em direção da janela oeste, onde uma varandinha, com grade de ferro forjado, se projetava sobre o abismo.
Joseph se remexeu na poltrona, inconfortável. Como Orville, tinha medo de Aaron. Disse então, com um desejo quase ansioso demais para apaziguar:
—    Bem, talvez o médico tenha razão. Mas tantos meses... Coitado do Steve. Nunca vi febre pulmonar durar tanto tempo. Três meses, no máximo. Ele já devia estar recuperando as forças.
Jim Purcell disse, em voz rouca:
—    Talvez ele não queira recuperá-la. Talvez tenha motivos para não querer recuperá-la.
Isso pareceu inteiramente ridículo aos dois outros, mas, por temor de Purcell, não ousaram discutir. Joseph inclinou-se para Stephen, procurando prender aqueles olhos doentes e vagos e disse, com uma seriedade branda:
—    Steve. O que aconteceu foi pela vontade de Deus. Quem somos nós, para brigar com Ele? É uma afronta questionar os seus desígnios.
—    Quem é que disse isso? — perguntou Purcell, virando-se na poltrona e olhando para Joseph de alto a baixo, numa repulsa brutal.
—    É a Bíblia que diz isso — respondeu Tom, inseguro. — Nossas igrejas ensinam isso.
Joseph, que era superintendente da Primeira Igreja Metodista de Portersville e que fazia muito se esquecera de seu próprio dessespero, do qual
Stephen o salvara, disse, com uma voz profunda e solene:
— "Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige; não desprezes a lição do Todo-Poderoso. ”
—    Jó — disse Aaron, meneando a cabeça, todo contente. — foi um dos consoladores de Jó quem disse isso, não foi? Elifaz.
Joseph ficou assombrado ao ver que uma pessoa como Aaron conhecia a Bíblia. Balbuciou:
—    Tem toda a razão, sr. DeWitt.
Jim Purcell, com displicência, esvaziou o conteúdo de seu cachimbo na mão e depois jogou tudo no fogo. Muito raramente comentava alguma coisa, mas então citou:
—    E Jó respondeu, se me lembro: Pois, que é minha força para que eu espere, qual é meu fim, para me portar com paciência? E, se me lembro bem, não foi Elifaz quem falou em nome de Deus, que ouviu a Deus. Foi Jó. Engraçado, não?
Stephen mexeu a cabeça, como se estivesse sentindo dor. As vozes lhe chegavam de uma sombra e ele não conseguia distinguir uma da outra. Mas um eco se repetia vezes e mais vezes nos lugares desolados e vazios de sua mente: “Que é minha força para que eu espere? Qual é o meu fim, para me portar com paciência?”
Os outros estavam tão pasmos diante da citação bíblica por Purcell que ficaram ali fitando-o, sem expressão, exceto Aaron. “Como é que esse bandido poderoso, esse gigante e brutamontes, ousava citar a Sagrada Escritura? Era uma blasfêmia.” Joseph abaixou a cabeça para Purcell, apreensivo mas cortês. Mas teve a coragem de dizer:
—    Jó disse isso quando estava no fim do poço por ter perdido sua fé em Deus. Mais tarde, compreendeu.
—    Você está errado, Baynes. Ele nunca perdeu a fé em Deus. São só vocês de fala macia, que nunca tiveram fé. E é por isso que podem citá-lo com tanta facilidade.
Purcell girou o corpo imenso para Stephen, desajeitadamente. Stephen estava de cabeça abaixada, pousada no peito.
—    Steve — disse ele, com rudeza. Ficou esperando, mas Stephen não levantou os olhos; não tinha ouvido. Então, Purcell se pôs de pé, dirigiu-se para junto do doente e empurrou-lhe o ombro, sem muita delicadeza. Stephen levantou a cabeça e tentou fixar o olhar vidrado sobre Purcell. — Steve — repetiu Purcell e sua voz parecia quase um rugido. — Escute aqui. Chore à vontade. Se achar que a coisa está muito dura, faça algo. Está ouvindo? A pessoa não tem de suportar mais do que pode. Não se pode esperar isso dela. Mas não remanche, querendo se resolver. Você tem uma garota aqui. Vale a pena viver por ela? Vale, Steve?
A voz áspera e dominadora chamou a atenção de Stephen e ele ouviu todas as palavras.
—    Minha filha? — murmurou ele. — É, minha filha.
—    Bom, então, vale a pena viver por aquela pequenina? É o que lhe resta da Alice. Quem é que vai cuidar dela? Quer que ela vá para a rua, Steve? Quer que fique sozinha... a filha de Alice? Vai abandoná-la? Resolva-se, de uma vez por
todas.
Ele esperou e depois continuou, com mais aspereza do que antes:
—    Você tem uma ideia, aí no fundo desse seu miolo mole, do que é o mundo de verdade, se bem que não queira reconhecer. Quer que a guria enfrente o mundo sozinha, você sabendo o que é? Co mo você enfrentou? Não tem pena de Alice, nem do bebê de Alice?
As lágrimas encheram os olhos de Stephen. O quarto estava no maior silêncio. Aaron se debruçou para a frente, na penumbra, olhan do atentamente, mas Joseph e Tom estavam se entreolhando com desdém cuidadosamente disfarçado.
—    Resolva-se, Steve — disse Purcell. — É você que tem de re solver. Se a vida é demais para você, faça alguma coisa. Se a guria representa algo para você, resolva-se. É o que está tentando fazer, não é? Resolver-se?
Joseph foi forçado a dizer:
—    Jim, você está tentando dizer a Stephen que ele está propo sitalmente...
Purcell virou a cabeça de mamute e olhou para Joseph com desprezo.
—    Estou. E daí? É preciso ser corajoso para morrer e não covar de, como vocês da igreja estão sempre dizendo.
Ele voltou para Stephen.
—    Então? Vai ficar por aí e proteger essa pequena ou vai dar o fora? Gostaria de saber, para poder escolher as flores.
—    Eu acho — disse Aaron, afavelmente — que ele já fez a escolha. Vai se mudar daqui. Talvez seja boa ideia, pensando bem. E Jim — acrescentou ele, rindo — você sabe que essa criança não vai “ficar na rua”. Ela ainda tem uma família muito afetuosa, avô e avó, o tio Rufus. E a prima, também. Todos vamos tomar conta de Laura. Steve, pode confiar nisso.
0 mundo voltou a Stephen com nitidez terrível, pela primeira vez desde que Alice morrera. A filha de Alice e dele, largada nesse mundo terrível e cheio de sofrimento, de solidão, crueldade e ódio. Ele nunca pensara nisso. Não se lembrava do rosto da filha. Não se lembrava se a tinham levado para ele ver. Ele se mexeu na poltrona e o movimento foi como uma convulsão. Ele levantou as mãos gas tas e exclamou, em voz fraca:
—    O bebê! Tenho de ver o bebê!
Purcell e Aaron trocaram um olhar curioso. Depois Aaron me neou a cabeça e tocou a campainha de novo.
—    Por que você o atormenta assim, Jim — perguntou Joseph, tomando coragem na sua preocupação por Stephen, atacado tão impiedosamente por aquele bruto. — Deixe-o descansar.
—    Ele levou tempo demais para resolver — respondeu Purcell. — Se é que tem miolo e não mingau dentro da cabeça!
Joseph hesitou.
—    Steve — disse ele, com uma urgência bondosa — você tem de ficar bom, sentimos falta de você, rapaz. Foi ruim, mas você ainda tem seus amigos...
—    Ora, é mesmo — grunhiu Purcell. — Ele ainda tem os amigos, não é?
Ele se afastou de Stephen e foi para a grande janela oeste, olhando para fora com indiferença. Seus dedos grandes encheram o cachimbo com grande precisão e economia de movimento. Riscou um fósforo no salto da botina suja e acendeu o cachimbo. Encostou-se no lado da janela. As montanhas despidas se amontoavam, negras e roxas, contra o céu brilhante, dourado e vermelho, e o rio estreito entre suas fendas parecia correr em fogo.
Tom foi para junto de Joseph. Postaram-se um de cada lado de Stephen, esquecendo-se, na tristeza pelo amigo, das duas outras personalidades inimigas do quarto. Suplicaram a Stephen; exortaramno, fizeram brincadeiras e riram um pouco. Não sabiam que ele não estava escutando nada. Quando se calaram por um instante, ele repetiu, numa voz fina e intensa:
—    Quero ver minha filha.
Uma empregada entrou no quarto e Aaron disse:
—    Peça à sra. Rufus para trazer o bebê do sr. Steve. Ela deve estar no quarto da criança agora.
Aaron levou um copo grande de uísque para Stephen e o pôs na mão dele.
—    Vamos, beba. Nada de tônicos. Engula isso como homem. Joseph se endireitou e disse, aflito:
—    0 senhor acha aconselhável, sr. DeWitt? Ouvi dizer que o uísque faz muito mal a quem se está recuperando de febre pulmonar.
Purcell, sem se virar, comentou, para ninguém em especial:
—    Quando um homem tem de tomar uma decisão, é bom se embotar um pouco. Diabos, ele nunca teve febre pulmonar coisa nenhuma. Ande, Steve, beba.
Stephen, vendo o copo na mão, maquinalmente o levou aos lábios. Mesmo na angústia, era incapaz de ofender alguém.
—    Isso mesmo, tome tudo — repetiu Aaron.
0 cheiro e o gosto da bebida repugnaram Stephen e ele teve um gesto instintivo de repúdio. Mas quando levantou os olhos, não viu os rostos de Joseph e Tom, protestando em silêncio, e sim o rosto sorridente do pai e a massa pastosa que era o rosto de Jim Purcell.
Lydia DeWitt entrou no quarto carregando o bebê de Stephen num xale azul. Seus olhos preocupados se concentraram em Stephen e ela foi logo para junto dele. Joseph e Tom a cumprimentaram. Aaron não fez caso dela, mas Jim Purcell, encostado à parede junto da janela, a examinou com uma franqueza grosseira. Ela percebeu isso, sorriu e por um instante as protuberâncias e buracos que for mavam o rosto se transformando num sorriso.
—    Acho — disse Aaron — que é melhor levarmos o nosso uísque para baixo e terminarmos lá. Rufe deve chegar a qualquer mo mento e podemos nos sentar junto da lareira e tomar outro drinque com ele.
Os três homens o acompanharam, Joseph e Tom juntos, Jim Purcell atrás. A porta fechou-se quando eles saíram e Stephen, mui to pálido e suando de fraqueza, afundou na poltrona e fechou os olhos. Lydia puxou uma cadeirinha para o lado dele, sentou-se e fi cou esperando. A criança choramingou e ela começou a cantarolar baixinho, com sua voz forte mas suave, apertando-a bem ao peito. O quarto se encheu do som do fogo, do uivo do vento e da canção de ninar de Lydia. O crepúsculo tornava todo o quarto sombrio, en quanto a
conflagração escurecia, além da janela.
Por fim Stephen disse, fraco:
—    Lydia. — Ela levantou a cabeça e olhou para ele, séria e aten ta. — Lydia — repetiu.
—    Sim, Stephen? — A criança estava em seu colo e não se me xeu. Stephen levantou a mão, como se fosse um peso enorme e mos trou o bebê com ela.
—    Eu não a vi... acho... — murmurou ele.
Lydia se levantou logo e foi para junto dele. Ela afastou o xale e ele viu o rosto da filha pela primeira vez. O bebê estava deitado nos braços protetores de Lydia, uma criaturinha muito pequenina, com mãozinhas magras e um rosto pálido e pontudo, em que os olhos pareciam círculos cinzentos, indagadores. A última luz vermelha do sol iluminou a criança e Stephen, afastando-se a custo do encosto da poltrona, com um esforço que fez aparecer o suor na sua testa, debruçou-se e pai e filha se olharam, ambos sérios e imóveis.
Então a mão de Stephen, movendo-se como a mão de um ce go, esticou-se, sem jeito, pairando sobre a criança. A mão se ergueu, caiu, pairou de novo. Por fim, pegou a mãozinha do bebê e a segu rou. Os dedos estavam frios e sem vida como os dele, e igualmente parados.
—    Ela... está fria — disse Stephen, com dificuldade.
—    É — disse Lydia, com brandura e compaixão. — Está sem pre com frio. Os bebês precisam de amor. E receio que não haja muito amor por ela nesta casa. Eu faço o que posso, mas as crianças, mes mo pequeninas assim, parece que sabem.
Não havia cor alguma nas faces nem na boquinha. Havia uma expressão perdida nos olhos cinzentos, que se pregaram em Stephen, sem sorrir. Ele não pôde suportar aquilo: as lágrimas começaram a lhe escorrer pelas faces, lágrimas de dor e remorso e uma doença mortal. Ele disse com a voz falseando:
—    Ponha-a no meu colo, Lydia.
Ele abraçou a filha e a beijou. A menina se mexeu nos braços do pai como que se aninhando, pondo a cabecinha no peito dele. Então, Stephen exclamou:
—    Olhe, Lydia! Ela está sorrindo!
10
Rufus estava entrando no salão grande e imponente e uma empregada acendia as luzes quando Aaron, Joseph, Tom e Jim Purcell entraram por outra porta. Um fogo imenso crepitava na grande lareira branca, lançando suas sombras ambarinas sobre os painéis brancos e azuis das paredes e no teto esculpido. Os lampiões então começaram a brilhar na penumbra, prateados e dourados, e todos os belos tapetes e móveis se destacaram.
Rufus espantou-se ao ver que as visitas semanais ainda não tinham partido e por um instante seu rosto cansado mudou. Então, em seguida, com muita animação, ele os cumprimentou. Podia ser sinceramente simpático com Joseph e Tom, que ele desprezava bem-humoradamente como fracassos inofensivos, que na certa nunca o atrapalhariam de verdade. Jim Purcell já era outro assunto. Rufus mostrou-se mais efusivamente cordial com ele, sem se importar ao ver que Purcell se limitava a grunhir em resposta ao seu cumprimento e, sem esperar pelos outros, se sentava no sofá de tapeçaria rosa e azul, junto da lareira.
—    Como está Steve? — perguntou Rufus a Aaron, que se sentou ao lado de Purcell. — Estou vendo que estão todos com seus uísques. Não se importam se eu pedir um para mim? — Ele puxou o cordão da campainha, sorrindo para o pai.
—    O coitado do Steve — disse Aaron — teve um choque. Agora está tomando noção das coisas. Graças ao Jim.
Rufus levantou as sobrancelhas intrigado. Ele, como Aaron, sabia perfeitamente por que Jim “perseguia” Stephen. Era uma brincadeira eterna entre eles, compreensiva, mas não ridícula.
—    O que é que você fez, Jim? — perguntou ele, sentando-se na poltrona de cetim azul da mãe e dedicando-se a ser encantador, a despeito de seu cansaço. O rosto muito colorido tinha um ar cansado, como uma poeira, e o cabelo ruivo não estava arrepiado na cabeça, como de costume, na sua força leonina.
Jim não respondeu à pergunta dele, mas Aaron deu uma risada fina.
—    Ora, ele lembrou a Steve o que poderia acontecer ao bebê nesse antro de lobos. Foi isso que deu resultado. Steve tem muita imaginação, embora você não lhe dê crédito, Rufe.
—    Ora, o que o senhor quer dizer com isso, pai? — perguntou Rufus, sem achar muita graça.
O uísque foi trazido, a garrafa colocada defronte de Aaron, que serviu um copo para o filho e tornou a encher o copo de Purcell e o seu. Joseph e Tom recusaram, em parte por princípio, em parte porque queriam ir embora o mais depressa possível. No entanto, co mo todos os homens bons, gostavam de uma conversa e esperava saber de escândalos para contar em particular a seus amigos, o que os faria subir no conceito, por parecerem íntimos dos DeWitt, a despeito de seu temor pela família.
—    Espero que Steve saia dessa — comentou Rufus, depois de um trago comprido. — Com franqueza, não sou homem para detalhes e papelada; e tanto o meu secretário como o de Steve são muito tímidos para tomar a menor decisão. E, se bem que eu em geral saiba fazer amizade com todos, não compreendo esses três irlandêses que empregamos há meses. São loucos. Os lavradores na nossa servidão estão reclamando. Os rapazes têm o costume de roubar maçãs e galinhas e fazer uma confusão danada.
—    O Steve, por algum motivo que está além de meu entendimento, sempre conseguia manobrá-los — comentou Aaron, enxugando a barba com as costas da mão macilenta. Não seria de esperar. Ele os chamava à razão. — Ele sacudiu a cabeça. — As pes soas mais improváveis gostam do Steve.
—    Naturalmente, vocês poderíam dar aos irlandeses a mesma remuneração pelo mesmo trabalho que dão aos americanos natos — disse Purcell, com sua voz trovejante. — Mas isso não seria um bom negócio.
Não havia qualquer ironia em sua voz e Rufus e Aaron compreenderam isso.
—    O que não ganham conosco eles compensam com o que ganham dos lavradores — respondeu Rufus. — Mas isso não me inco moda. Nunca incomodou. Mas vamos expandir a nossa linha e precisamos de uma faixa de terra, na servidão. Os lavradores estão reclamando; eram todos a favor da expansão, sobretudo quando vi ram que isso lhes abriria novos mercados. Estão dispostos a aceitar os benefícios, mas pedem preços exorbitantes por aquelas faixas de terra sem valor. E querem garantia de que não vamos empregar esses irlandeses como trabalhadores itinerantes. Vamos ter de fazer o que sempre fizemos: prometer
mundos e fundos e deixar que tentem fazer alguma coisa, depois que a linha estiver assentada.
Joseph Baynes, que estava escutando atentamente, não pôde conter sua indignação.
—    Foi errado, desde o princípio, trazer essa gente. Temos bastante trabalhadores nossos, mas os nossos trabalhadores pelo menos exigem uma espécie de salário de vida.
Ele parou; todos olhavam para ele e sentia-se um tanto assustado, a despeito do interesse, aparentemente simpático.
—    E esses irlandeses estão sempre brigando, também. Lembram-se daquelas brigas no mês passado? Um deles foi morto e mais de doze ficaram bem feridos. Ouvi dizer que tumultos parecidos estão ocorrendo onde os irlandeses sejam empregados nas estradas de ferro. Uma gente muito esquisita e bárbara.
—    O Steve os compreendia — disse Aaron, com brandura. — Conseguia separar o que chamava de far-downers dos corkonianos, ou seja lá o que signifique isso. E se por acaso essas turmas misteriosas se metiam em brigas, Steve ia lá com eles logo, mesmo que fosse no meio da noite. E, com um pouco de abracadabra que eu nunca entendí, resolvia tudo.

—    Por que vêm para cá? Por que não ficam na terra deles? — perguntou Tom, insatisfeito. Seu rosto redondo e cheio, tão insípido e fresco, estava delineado pelo fogo e revelava plenamente o nariz rombudo e arrebitado. Era um rosto sem maldade, até ingênuo, e Rufus o examinou, sorrindo, mas com uma irritação íntima.
Purcell estava respondendo a Tom:
—    Pelo mesmo motivo que os seus antepassados vieram para cá, Orville. Por que não ficaram “na terra deles"?
Aquela voz surda tão sem ênfase, foi como um baque na sala.
Tom ficou ofendido.
—    Os meus antepassados, Jim, eram cavalheiros ingleses...
—    Engraçado — ruminou Purcell. — Todos os antepassados eram isso. Nem uma palavra sobre os servos e os restos das sarjetas de Londres e os degredados e os sujeitos que não se davam com os vizinhos e tiveram de ser deportados. Ah, esses coitados chamavam a isso “liberdade de religião", mas no fundo eram puritanos birrentos, que queriam bastante espaço para poderem enforcar seus adversários religiosos e queimar os que chamavam de “hereges” e “bruxas".
Ele se afundou mais na poltrona.
Aaron e Rufus deram uma gargalhada, mas Tom Orville ficou zangado.
—    O meu avô muitas vezes me contou que os antepassados dele saíram da Inglaterra por causa de Maria, a Sanguinária. A propriedade deles foi confiscada, suas vidas ameaçadas e tiveram de fugir no primeiro clíper que zarpou de Liverpool.
—    Uma maravilha como os nossos antepassados sempre tiveram mansões — disse Purcell. — Os meus moravam nas favelas inglesas e, quando chegaram aqui, fizeram um bom trabalho.
—    Os meus antepassados foram para Maryland, com uma concessão especial do rei — disse Joseph Baynes.
Purcell lançou-lhe um de seus olhares demorados, enlameados e desdenhosos.
—    Bom, o que posso dizer, Baynes, é que os católicos, que realmente tinham essa concessão, foram muito tolerantes. Um bocado tolerantes. E me parece que já o ouvi dizer que não gostava dos católicos. Isso — acrescentou ele, olhando para Aaron — me parece ingratidão.
—    Mais uísque, senhores! — exclamou Aaron, com gosto, e dessa vez Tom e Joseph, irritados, se esqueceram de seus princípios, na sua agitação, e permitiram que enchesse de novo os copos. A noite caíra de vez lá fora e os lampiões se refletiam nas janelas escuras.
Tom e Joseph trocaram um de seus olhares de consolo mútuo. Aí Joseph
disse:
—    O senhor também emprega alemães, sr. DeWitt. Os irlandeses os detestam mais do que se destestam mutuamente. Há alguma coisa nos alemães que os deixa alucinados, talvez porque os alemães são tão trabalhadores e de confiança e trabalham por quase nada. Nunca se ouve um bom trabalhador alemão cantando no serviço, ou brincando. O trabalho é uma coisa séria para os alemães.
—    Então, por que não emprega alguns alemães nos seus malditos trens locais? — perguntou Purcell. — Estão caindo aos pedaços, cada um deles. Vocês precisam de capital novo e novos empreendimentos. Ou talvez uma nova administração. Tenho visto que seus trens estão se arrastando e a cada momento penso que vão desmoronar.
Joseph teve uma sensação de mal-estar e então entendeu vagamente por que tinham insistido para ele se demorar mais, naquela noite, convite que até então nunca lhe tinha sido feito. Era um homem sutil e Tom, seu amigo, sentiu o medo dele.
Joseph tentou evitar o que sentia estar se aproximando.
—    Sr. DeWitt — disse ele e sua voz estava tensa, apreensiva
—    um dia desses vai haver grave encrenca entre os irlandeses e os alemães que a maioria das ferrovias por aqui vem empregando. Já ouvi falar de massacres e as mortes, em outros lugares...
—    Os massacres e as mortes figuram eminentemente na construção dos Estados Unidos e duvido muito que não tornem a figurar
—    interrompeu Rufus. Também ele sabia o que estava por vir e grande parte de sua fadiga desapareceu e todos os seus sentidos ficaram alertas. Ele fechou os dedos com carinho em volta do copo de uísque e, apoiando os cotovelos nos joelhos, debruçou-se, as pernas bem-feitas e maciças estendidas, as botinas reluzindo à luz do fogo. —
À despeito do que Steve está sempre alegando, ainda acontece, e acontece com regularidade, que sempre que o sertão é desbravado, os homens também acabam com seus vizinhos, num massacre geral de árvores e homens.
—    Você está advogando a morte, Rufe, como o preço do avanço da civilização? — perguntou Joseph, horrorizado.
—    Não estou advogando nada — disse Rufus, com impaciência bem-humorada. — Estou apenas citando um fato. Imagino que os fatos devem sustentar os preconceitos individuais, para serem aceitos por uma porção de gente.
—    Adoro uísque e adoro fatos — disse Aaron, feliz. Seu rosto mirrado não estava mais enrugado e puxado; a vitalidade temporariamente substituiu o cinza-acastanhado de sua pele. Ele se virou no sofá, olhou para além de Purcell e se dirigiu a Joseph do modo mais franco e com o sorriso mais simpático e razoável:
—    Como vão indo seus trens locais, Joe? Têm bastante movimento para dar
lucro?
Joseph não se iludiu. Pensou, com amargura: “Como se você não soubesse de tudo sobre isso, seu bandido perverso!”
—    Bastante — respondeu ele, tenso, reservado. — Não acredito em exploração. Segui o conselho de Steve e aumentei os preços das passagens e as tarifas de carga...
Aaron levantou as sobrancelhas, diabolicamente.
—    Steve lhe disse isso? Bom, bom. Não parece coisa dele não é? Mas foi bom conselho. Você nos estava suplantando, de certo modo, e os nossos clientes apontavam-no como um excelente exemplo de negócio altruísta. O que é que querem, diabos? Um negócio dirigido em benefício de sua ganância e interesse? Mas continue. Você seguiu o conselho de Steve e aumentou os preços. Então, tem lucro e não está mais preocupado.
O rosto delicado de Joseph ficou mais tenso. “Quem lhe disse que eu estava preocupado?”, pensou.
—    Não estou preocupado, não — disse. — Trato os meus clientes com justiça.
Os olhos dele ficaram reservados, escuros, e ele mordeu o lábio.
—    Justiça do seu ponto de vista, ou do deles? — perguntou Rufus, demonstrando interesse afetuoso.
Joseph não respondeu, mas Purcell se levantou de sua postura de gigante afundado no sofá.
—    Tenho perguntado muitas vezes como é que conseguiu se safar da Capital, Joe. Você não tinha dinheiro, mas conseguiu pagar os juros e impediu que o velho Alex o executasse. Milagre, hem, Joe?
Joseph, que se esquecera do papel de Stephen na sua salvação, de repente se mexeu na poltrona, incomodado com essa recordação e um vago ressentimento e com uma sensação de perigo.
—    Milagre — respondeu, olhando para aqueles olhos sem luz e odiando seu dono. Ele olhou abertamente para o relógio e virou se para Tom, que meneou a cabeça. Aaron levantou a mão.
—    Ora, não se apresse, Joe. Eu queria falar de negócios com você. Diga-me, está conseguindo dormentes novos por um preço razoável? Jim disse que você não está negociando com nenhuma das companhias madeireiras em que ele tem investimentos.
—    Compro meus dormentes de Tom, quando preciso. Ele me dá um preço razoável.
—    Trato todos os meus fregueses razoavelmente — disse Tom, desafiador e tenso. Ele respirou fundo e seu rosto rosado ficou quase ruborizado. — E se alguém estiver interessado, também vou indo bem.
—    Como Tom e eu somos homens éticos, que acreditam que nos Estados
Unidos há lugar para homens de negócios grandes e pequenos, jamais pudemos entender os atos pouco éticos de homens oportunistas e gananciosos — disse Joe, com a raiva deixando-o meio ofegante. — Por enquanto, não nos prejudicaram e damos graças a Deus.
—    Nunca é demais agradecer a Deus — disse Aaron, sério, mas seus olhos estavam bailando. — Agora vou contar a vocês, rapazes, uma coisa que pretendemos fazer, como parte do programa para expandir os Estados Unidos. Estamos estudando planos para levar a nossa estrada até Baltimore e Washington. Jim está interessado em investir nesse empreendimento.
Ele fez uma pausa.
Rufus representou bem o seu papel.
—    Acha prudente falar sobre esses planos agora, pai, com quem não está diretamente interessado?
Aaron fez um gesto de dispensa, com uma indulgência sorridente.
—    Cale a boca, Rufe. Por que Joe não deveria saber, ele que também é ferroviário? É só uma conversa amigável.
“Será possível que ele esteja sugerindo que eu invista nesse grande empreendimento?”, perguntou-se Joseph, sem poder acreditar e empolgado. Ele começou a ter visões de uma tal magnitude que mal podia respirar à vontade. Onde poderia pedir o dinheiro emprestado? O velho Steve, claro. Nunca desapontava os amigos. Depois, teve a ideia inquietante de que Stephen já lhe emprestara cinco mil dólares que ele ainda não tinha pago, pelo simples motivo que ele não podia pagar. O seu ressentimento aumentou; era injusto que uma oportunidade tão assombrosa lhe fosse oferecida quando ele não tinha dinheiro algum. Ora, Steve era um homem rico, não era? Se não, como poderia ter dado cinco mil dólares em dinheiro, com tanta facilidade?
Purcell, que sempre sabia de tanta coisa, observava Joseph atentamente. Então, resmungou alguma coisa e cuspiu no fogo.
—    Estou sendo franco com você, Joe, porque é amigo do Steve — disse Aaron, sorrindo para o rapaz, mostrando bem os dentes felinos entre os lábios barbados. — Tem algum dinheiro para investir conosco? Uma oportunidade maravilhosa. Você nunca mais terá uma oportunidade dessas.
“Tenho de falar com o Steve!" pensou Joseph, desesperadamente, com raiva. Ele disse, com avidez:
—    Dê-me um tempo, sr. DeWitt. Vou procurar arranjar o dinheiro, de algum modo, muito breve... “O dinheiro dos Fielding!
O velho Steve estava guardando aquilo. Mas ele certamente não iria abandonar um amigo, nessa emergência!”
Purcell então disse, com uma grosseria ruidosa e propositada:
—    Ele está pensando no Steve, Aaron. Está pensando em pedir emprestado ao Steve, outra vez. Ninguém me pergunte como é que eu sei, mas ele já deve ao Steve quase nove mil dólares: quatro que pediu há quatro anos e cinco que pediu emprestado... se é que querem chamar a isso de "emprestado"... há uns seis meses. Para pagar os juros dos títulos na mão de Alex Peale.
—    O quê! — exclamou Aaron, com um espanto grande e falso. — Ora, ora veja, eu não sabia! Mas isso é bem típico do Steve, não é?
Rufus reprimiu um sorriso e virou-se para Joseph, que estava vermelho..
—    É verdade, Joe? Mas, se for, é bom. Você naturalmente está pagando juros ao Steve sobre seus títulos. E o capital também, de modo que isso deve impressionar os bancos, que lhe poderão emprestar uma importância razoável para você investir conosco.
Joseph sentia-se fraco. Não tinha extratos e nem cheques. Nem sequer registrara os empréstimos de Stephen. “Mas é uma dívida de honra!”, exclamou para si. “Por que Steve havia de se recusar
a me ajudar de novo? Por certo ele não é de pedra e há de compreender por que preciso de dinheiro agora.” Involuntariamente, começou a se levantar; tinha de obrigar Stephen a sair daquela letargia ridícula e lhe dar ouvidos.
Ele não sabia que Purcell, Aaron e Rufus estavam observandoo com uma alegria diabólica e disfarçada. Então, Aaron disse:
—    É uma pena que não se possa arrumar isso como um assunto de amigos, entre você e o Steve, outra vez, Joe. Mas Steve agora não está em estado de se atormentar. Eu não o permitiría. Além disso... — com calma, ele examinou Joseph, que estava branco — Steve não tem dinheiro sobrando. Mas isso não importa, não é? — acrescentou ele, animado. — Você com certeza tem uma boa ficha nos bancos. Por falar nisso, Tom, que tal você também investir?
Joseph caiu na poltrona. Foi a vez de Tom corar. Mas ele disse, sem vacilar:
—    Não tenho o dinheiro, sr. DeWitt. Não poderia arranjá-lo. Já estou devendo aos bancos tudo o que posso. Não acredito em me expandir além da minha capacidade de pagar pontualmente.
Ele estava sinceramente espantado ao saber que Joseph tomara nove mil dólares emprestados de Stephen DeWitt. Olhou para o ami go com um misto de curiosidade e interesse.
Aaron deu de ombros, com pesar.
—    Bem, sinto muito, Tom. — Depois, teve uma inspiração — Você acaba de adquirir umas boas matas de madeira de constru ção. Olhe aqui, Tom, eu lhe faço uma primeira hipoteca sobre essas matas, a seis por cento e você poderá investir o dinheiro conosco. Que tal? Você nunca mais terá uma oportunidade igual.
Tom era sabido; tinha uma vaga ideia de que tudo isso não es tava sendo oferecido devido a uma amizade inexistente. Mas fechou os olhos: será que estavam pensando que ele não conseguiría saldar a dívida? Ele disse então:
—    Obrigado. Digamos que o senhor me deixe pensar no assunto por uns dias, sr. DeWitt? Acho a sua oferta muito generosa e creio que a aceitarei. Vou ter de olhar meus livros.
Ele olhou para Joseph, conjeturando, e disse consigo: “Por que o velho Joe está tão pálido? Parece que levou um coice de uma mula no estômago".
Aaron e Rufus ficaram visivelmente satisfeitos com a insinuação de Tom em investir na State Railroad Company.
—    Isso merece outro drinque — disse Rufus, amavelmente, e tornou a encher o copo de Tom, que bebeu. Suas mãos estavam trêmulas de emoção.
—    Mas Joe ainda não disse se vai investir ou não — disse Aaron, com um ar malicioso. — Não acredita em nós, Joe? Que tal?
A aflição de Joe era tão grande que ele foi dizendo, horroriza do consigo
mesmo:
—    Não posso. Não tenho dinheiro.
Aaron suspirou, sacudiu a cabeça, colocou as mãos nos joelhos pequenos e ossudos e pareceu estar meditando. Ficou chupando os lábios e piscando os olhos. Depois olhou para cima e contemplou Joseph, pensativo:
—    Joe — disse — eu o conheço desde que nasceu. Você tem trabalhado muito. Que idade tem? Cinquenta e dois? É uma idade difícil para qualquer um. Você está dirigindo as suas estradas locais quase que sozinho, casou-se tarde e seus filhos só vão poder assumir esses encargos daqui a muitos anos. Cada vez vai ficar mais difícil para você. Uma companhia de um homem só é um grande risco, especialmente um homem da sua idade, que não tem ninguém a quem delegar os detalhes, a autoridade e a responsabilidade. Ou você está trabalhando, ou não está. É um fardo grande demais para você, Joe.
Ele esperou um momento e depois olhou para Joe, com uma compreensão cada vez maior. Joseph abriu e fechou os olhos e ficou ainda mais pálido.
—    Então — disse Aaron, com bondade — falando como um velho amigo e sem qualquer outro motivo, você não acha que seria boa ideia se cedesse o controle das suas ferrovias locais à State Railroad Company, para se livrar da responsabilidade, a preocupação com as finanças e os problemas trabalhistas, sempre crescentes? Sem falar na obsolescência do seu equipamento velho. Você teria um bom ordenado, como gerente das linhas locais, uma renda fixa, sem aflições, e teria uma vida muito mais fácil.
Joseph a princípio não conseguiu falar. Seu coração estava batendo muito dolorosamente. Quando conseguiu dizer alguma coisa, quase não se podia ouvir:
—    Não, obrigado, sr. DeWitt.
Aaron mostrou-se muito compreensivo, mas ficou muito sério.
—    Joe, não creio que as suas linhas locais estejam servindo devidamente à comunidade. Uma estrada maior, como a nossa, poderia servi-la melhor. Nós expandiriamos as suas linhas locais, ligando-as às nossas. Pense no que isso significaria para a gente a quem você serve. Acabava o carreamento das cargas, a baldeação dos passageiros por carruagens ou carroças para fazer a conexão com nossas linhas.
—    Mesmo com o carreamento e a despesa extra da baldeação dos passageiros, o custo ainda é menor do que seria se as linhas locais fossem ligadas à State — disse Joseph. Seu coração batia mais compassadamente; ele estava respirando com mais facilidade, se bem que ainda houvesse uma expressão atormentada em seus olhos, uma sombra de medo. — Os pequenos dependem de mim, sr. DeWitt.
Aaron deu de ombros e estendeu as mãos, resignado.
—    Cada um tem a sua opinião, Joe. Então, suponho que não esteja interessado. Mais um drinque?
—    Não, senhor.
Joseph sentou-se na ponta da poltrona, fazendo um sinal para Tom Orville, que estava olhando para Aaron de testa franzida, fascinado. Mas Aaron, como se todo o assunto já lhe tivesse saído da cabeça, comentou:
—    Por falar nisso, enquanto nós agora estamos nos estendendo até
Pittsburgh, a Chicago Railroad System está projetando linhas de Chicago a Fort Wayne e Columbus até Pittsburgh. Isso nos dará o tráfego de oeste e as outras companhias terão o de leste. — Ele sorriu para Purcell. — A Capital então deve se dar muito bem! E você investiu muito nela, não é, Jim? A Chicago Railroad System é de propriedade de patifes. — Ele deu uma risada afetuosa. — Mas entrepreneurs brilhantes. Um dia desses eles virão nos procurar para tratar de negócios e estamos preparados para eles.
—    Gente encantadora, alguns deles — disse Rufus, sorrindo.
O relógio bateu as dezoito e trinta e então Joseph, sufocado na presença de homens que falavam de grandes negócios e lembrando-se de suas pequenas linhas locais e seu estado desesperador, levantou-se. Tom Orville levantou-se com ele e os dois, como se estivessem fugindo, deixaram um recado apressado para Stephen e se foram. A carruagem de Orville foi levada à entrada e uma pancada repentina de chuva caiu quando se sentaram.
—    Tenho medo desses patifes — disse Joseph, depois de alguns minutos, enquanto a carruagem descia pela estrada longa e sinuosa em direção ao vale. — Estão tramando alguma.
—    Não nos podem tocar, enquanto estivermos solventes — respondeu Tom, decidido.
Essas palavras pareceram a Joseph as mais pueris e ameaçadoras que ele ouvira, a tarde toda. Solventes! Tom podia falar em solvência.
Jim Purcell, retirando-se pouco depois de Tom Orville e Joseph Baynes, viu as luzes da carruagem deles piscando ao longe, na estrada estreita para a cidade. Ele olhou para a casa grande no morro, limpando a umidade de seu hálito no vidro. Lá estava ela, parecendo mais uma casa sulista do que nortista, com suas imensas pilastras finas e brancas, as paredes e a sacada brancas, os arcos de tijolos brancos sob o primeiro andar. Todas as janelas brilhavam num dourado suave, uma névoa lilás esvoaçava de suas muitas chaminés e se misturava com a chuva. Jim Purcell se recostou no assento e, sombrio, puxou o grosso lábio inferior.
11
Sophia DeWitt teve o seu quase primeiro lapso de sentimentalismo piegas quando, no dia 2 de janeiro de 1867, comentou com os filhos:
—    Parece até que ele planejou isso e quem sabe foi mesmo. Deixou este mundo quando nascia um novo ano para começar vida nova.
Stephen ficara muito encabulado e Lydia desviara o olhar, mas Rufus, depois do primeiro momento sem jeito, em que ele contivera com dificuldade uma risada histérica, meneou a cabeça para a mãe, muito sério. "Mais tarde, posso rir da ideia do pai começar uma 'vida nova’ em algum lugar”, pensou, "mas, no momento, certamente seria descabido." Ele pensou no pai, deitado exposto em câmara ardente no salão imenso que Sophia chamava de "sala de visitas” e refletiu, com um humor pesaroso, que se Aaron estivesse em algum lugar, seria no inferno, bebendo amigavelmente com o próprio Satanás. E provavelmente tramando para se apossar do reino.
Sophia, como "a viúva", cumpriu os seus deveres penosos com majestade altaneira: a cabeça erguida à moda de uma grande dama, suportando o sofrimento com dignidade e importância. Seus amigos, inclusive o senador Peale e a mulher, gente muito ilustre de Filadélfia, subiram a montanha em longas filas de carruagens. Mas o auge da satisfação e do orgulho foi quando Guy Gunther, o financista e corretor de ações ferroviárias, de Nova Iorque, chegou a Portersville para o enterro de Aaron DeWitt. Sophia ficou tão maravilhada que quase esqueceu a tristeza sincera pelo marido e comentou com os amigos, com voz entrecortada:
—    O sr. Gunther está aqui, sabe, o sr. Gunther, o famoso financista? Era tão amigo de Aaron... Ah, lá está ele conversando com Rufus. Sempre foi um segundo pai para Rufus.
—    A mãe está suportando isso bem — comentou Stephen ao irmão, hesitando, no dia do enterro.
—    Mas sempre foi assim — respondeu Rufus, surpreendido.
A mãe só precisa ser o centro de atenções para ficar contente, mesmo numa ocasião dessas. Ela é o que antigamente se chamava de uma mulher "robusta”. Não sabia?
Mas Stephen, vagando por ali como uma sombra cinzenta e tonta, não sabia. Não estava sofrendo. Tinha conhecido um sofrimento grande demais para ser suportado e suportara demais. Portanto, mesmo que amasse o pai, não poderia ficar muito abalado. Como sempre, foi menosprezado pela gente toda que foi olhar para Aaron e consolar Sophia, e olhar os senhores de Filadélfia e o homem fabuloso de Nova Iorque.
As salas farfalhavam com os vestidos pretos das senhoras; o hall estava cheio de bengalas, luvas e chapéus; o cheiro de flores impregnava o ar quente. Um murmúrio abafado enchia a casa e as portas estavam sempre sendo abertas e fechadas. Lá fora, o dia de janeiro, branco e frio, martelava as vidraças, e as lareiras rugiam em respostas.
Lydia, alta e magra com seu vestido preto, tratava dos detalhes que Sophia lhe delegara. Stephen pensou, com uma vaga admiração, que ela estava em toda parte, delicada, bondosa, fazendo tudo com graça e pose. Por vezes ela corria ao andar de cima, ao quarto das crianças para vê-las; depois voltava logo para baixo, recebendo novas visitas, levando-as a Sophia que estava sentada pomposamente junto do caixão de Aaron.
Os empregados, fungando decorosamente, impressionados eram dirigidos por ela, de modo quase imperceptível, recebendo fio res ainda frescas e úmidas das estufas, aceitando cartões e ajudando as senhoras e os senhores a tirarem os agasalhos e peles. O rosto de Lydia ficou apagado de fadiga, mas seu andar não diminuiu o ritmo. O marido a olhava com orgulho, amor e desolação e por vezes se aproximava dela, para ter o prazer de encontrar-lhe o olhar.
Para os filhos de Aaron DeWitt e para Lydia parecia que o tempo tinha parado inteiramente e que havia meses não saíam desses aposentos, que Aaron já tinha morrido muitos dias antes e que a hora do enterro não chegaria nunca. Mas enfim estava acabado e então, para assombro deles, era a tarde do enterro e eles estavam de novo em casa, amortecidos de frio. Aaron estava em seu túmulo e os advogados esperavam para ler o testamento.
O curto dia de janeiro findava e todas as janelas estavam envoltas em neve. Sophia, Lydia, Rufus e Stephen sentaram-se na biblioteca, que nunca era usada e de cujas paredes de madeira e couro emanava um cheiro frio e de mofo. O fogo na lareira de mármore negro tinha sido aceso dias antes, mas aquele odor persistia, como uma presença concreta. As cortinas vermelhas estavam puxadas nas janelas altas e estreitas, deixando à mostra uma vista de árvores negras cheias de flocos de neve e jardins cobertos e montanhas brancas distantes. A mobília de couro vermelho e preto se agigantava na penumbra e os lampiões não aliviavam o escuro dos cantos. Sophia embrulhada num xale preto, estremeceu e pela primeira vez, nesses últimos dias, ela pareceu mirrar, dando-se conta afinal de que o marido tinha morrido. Rufus sentou-se junto dela, a mão no seu ombro. Lydia sentou-se ao IaLhado dele, olhando pela janela mais próxima, o olhar vazio. Stephen ficou junto à lareira, insignificante como sempre, e desejando, com um cansaço intenso, que os advogados pomposos falassem e se fossem.
Mas os advogados, dois velhos amigos de Aaron, não queriam se privar desse momento especial, com sua importância. Abriram as longas folhas do testamento de Aaron, tossiram, delicadamente limparam os óculos, olharam com pena para a viúva e os filhos, consultaram-se, murmurando, verificaram cada página, menearam as cabeças com severidade. Depois, um deles se levantou e começou a ler. medindo cada palavra. E, enquanto ele lia, a família enlutada foi ficando pasma, sem poder acreditar.
Aaron deixara ao filho Stephen o controle da State Railroad Company. Determinava que Stephen assumisse a presidência da companhia e que Rufus fosse vice-presidente executivo. Determinava que Stephen pagasse "a minha querida esposa, Sophia, uma renda anual para mantê-la da forma a que está acostumada. Minha casa, por ocasião de minha morte, passará à posse de meu filho Stephen DeWitt e seus herdeiros e é meu desejo que residam aí"'
Havia muito mais, inclusive recomendações para os proventos de Rufus e pequenas doações para instituições de caridade e outras. Lydia não era mencionada e a menina Cornélia, filha de Rufus, também foi omitida. Mas havia um codicilo. “Para a minha querida neta, Laura Fielding DeWitt, deixo a importância de vinte e cinco mil dólares, a ser colocada num fundo até ela completar vinte e um anos de idade.”
A voz do advogado terminou num eco suntuoso. Ele sentou-se ao lado do sócio e, com uma satisfação e malícia impessoais, contemplaram os quatro rostos aturdidos e descrentes diante deles. Para aqueles homens, pouco importava o modo como Aaron DeWitt dispusera dos bens e da fortuna e quem era seu herdeiro. Pessoalmente, não gostavam de Stephen e o ridicularizavam, admiravam Sophia e Lydia e até gostavam de Rufus. Mas, como seres humanos empenhados numa profissão excepcionalmente seca e rotineira, tinham um grande prazer nas poucas ocasiões em que podiam participar de algum tumulto e violência emocionais, bem como quando podiam contemplar, indiferentes, a agitação e a consternação alheias. Isso dava vida a seus dias metódicos, um calor de vinho a suas vidas insípidas.
A voz de Stephen estava seca, farfalhante:
—    Mas por que, por quê? Ele me detestava. Ele... ele me desprezava. Não é possível!
O advogado que tinha ficado sentado, calado, pigarreou:
—    Meu caro Stephen, tenho certeza de que o seu pai tinha grande estima por você, para lhe confiar um cargo tão importante e para fazer de você o seu principal herdeiro.
Ninguém se mexeu nem falou. Nenhum rosto mudou a máscara rígida de repúdio e incredulidade, mas Stephen se levantou, tateando, segurando as costas da cadeira. Tendo sido livrado da morte tão recentemente, tendo sido salvo havia tão pouco tempo, ele teve de se esforçar para respirar, para conseguir falar.
—    Não — sussurrou. — Não, não posso aguentar isso.
Foi então que Sophia soltou um grito rouco, quase um berro. Ela tapou o rosto com as mãos e começou a gemer.
—    Aaron! Meu marido! Fazer isso comigo, com meu filho, com o meu Rufus e a filha dele! Devia estar louco. Louco, louco.
Rufus perdera todo o colorido. Seu rosto grande e bonito estava caído em pregas flácidas, azulado.
—    Não compreendo — balbuciou e parecia estar doente. — Sempre pensei... ora, quando minha filha nasceu ele falou dela como sua herdeira. — Ele engoliu em seco. — Sempre ficou entendido... Eu era o favorito dele.
Um dos advogados, encantado com todo aquele drama, falou, acalmando-os.
—    Tenho certeza de que seu pai fez o que lhe pareceu melhor. Talvez fosse de opinião que o filho mais velho teria mais qualifi cações...
—    Rufus tinha e tem — disse Stephen, ainda lutando para res pirar, ainda negando. Ele se virou para o irmão e depois parou, pois Rufus estava olhando para ele, o olhar despido, sem seu divertimento e sua tolerância crônicos, mas com o horror e ódio mais desespera dos. A mão de Stephen, estendida numa súplica, caiu ao lado do corpo.
—    Eu... — balbuciou Stephen, inteiramente horrorizado com o que estava vendo na cara do irmão — não sou capaz...
Sophia soluçava, inteiramente largada, e Rufus estava sentado ao lado dela, como uma pedra, ainda olhando para Stephen com aquele ódio indisfarçado, total e franco.
—    Influência indevida — murmurou.
Um dos advogados deu uma risada.
—    Não creio — disse, recostando-se para apreciar plenamente a derrocada que o testamento criara.
Stephen não podia acreditar no que estava vendo. Tudo desapareceu para ele, menos o irmão. Ele tentou de novo.
—    Rufus — disse e a voz morreu-lhe na garganta.
Então, Rufus deu um sorriso feio e brutal.
—    Parece que estou nas suas mãos, Steve, meu velho — disse ele, com voz lenta e insultuosa, cheia de raiva selvagem e repugnância.
Aquele homem de papel-machê, aquela criatura insípida e magricela, aquele imbecil que remexia nos arquivos e na papelada, aquele palhaço inglório de cara macilenta e olhos apertados e dedos manchados de tinta!
A raiva em Rufus aumentou a tal ponto que sua cabeça parecia girar e seus ouvidos zuniam. Devia haver um meio de se vingar por essa humilhação tremenda, a destruição de todas as suas esperanças. A fúria bestial distorceu-lhe o rosto e de repente ele bateu no joelho com o punho cerrado.
Foi então que Stephen se afastou de todos e saiu da sala. Nele morreu outra parte de seu ser, como morrera com Alice.
Devagar, cansado, Stephen subiu a escada para o “quarto de hóspedes". A casa estava silenciosamente sinistra, o pai desaparecido, os amigos partido, as flores sumidas, deixando só um espectro de sua presença permeando as salas vazias. Não havia nem um em pregado por ali. Os lampiões ainda não tinham sido acesos. Stephen seguiu pelo corredor comprido, que fugia com sombras misteriosas.
Entrou no quarto em que passara tantos meses de tortura e o fogo baixo na lareira lançava reflexos acobreados sobre as paredes e o teto. Ali ele ouvia o vento que soprava do precipício sob o quarto, martelando as vidraças numa longa cortina de neve. Ele não acendeu o lampião. Ficou junto da janela que lhe mostrava as fileiras de montanhas brancas e o rio lento e negro entre elas.
Ele sentiu a testa quente e a encostou no vidro frio. Tentou pensar, compreender, mas estava muito confuso e infeliz. Ele se recusava a acreditar no que ouvira na biblioteca. Então uma dureza amarga, como o caroço de uma fruta murcha, se intrometeu em seus pensamentos. Ele provava a amargura, sentia aquela dureza irregular. Pareceu-lhe que tinha mudado muito, nesse último ano, e que alguma coisa mirrara dentro dele, uma coisa que antes era inteira e sã. “Eu sabia, não queria isso”, disse ele consigo. “Porque meu pai fez isso?”
A febre dentro dele aumentou e de repente ele abriu as janelas e foi para a sacada de ferro estreita que dava para o abismo turbulento que chegava às pedras e o rio abaixo. O vento o agrediu, a neve o cegou. Ele ficou ali, tremendo, mas quente, sentindo atrás de si a rejeição da casa grande e sem querer tornar a entrar nela e ver os rostos inimigos, os olhares desviados, o desprezo, o ódio e a desconfiança. Como é que ele podia viver com a mãe e o irmão nessa casa, que lhe fora dada de mão beijada?
Stephen viu que era exatamente isso que Aaron desejava: que ele achasse intolerável a presença da mãe e do irmão naquela casa ou que, se ele lhes oferecesse abrigo ali, recusassem desdenhosamente.
Ele tornou a ir para o corredor, decidido. Mas, por algum motivo obscuro, o escuro e as sombras pálidas no corredor o fizeram hesitar, confundindo-o de novo. Ele pensou, vagamente, que devia ver a menina. Então, em vez de se virar para a grande escadaria, foi para o quarto das crianças. Abriu a porta e encontrou calor e paz, a lareira acesa. A ama estava cochilando junto da janela, mas ainda não tinha acendido o lampião. Stephen foi de mansinho para junto dos dois berços onde estavam os bebês, lado a lado, junto do fogo.
A pequena Cornélia, com um ano, estava acordada, sentada, brincando com as mãozinhas rosadas. Era uma criança linda, toda âmbar, cobre e covinhas, e ela lançou ao tio um sorriso alegre. Estava sempre disposta a brincar, pois era cheia de saúde e vitalidade como o pai; mas, por algum motivo inexplicável, se tomara de amores por Stephen. Olhando então para aquele bebê lindo, com o cabelo ruivo formando uma massa de cachos vivos na cabeça, Stephen sentiu nova indignação e raiva contra o pai. Aaron deserdara aquela pequenina risonha; humilhara e quase destruira o pai dela; envergonhara a mãe dela. Ela riu alto, puxou a mão dele e tentou se levantar nos pezinhos gorduchos. Foi então que Lydia, que Stephen não tinha visto, do outro lado da lareira, se levantou e se aproximou dele:
“Claro, ela não pode suportar que eu toque na filha", pensou Stephen, com humildade. Ele recuou do berço e ficou ali, os ombros curvos, as mãos penduradas dos lados do corpo. Então, um misto de compaixão e desprezo brilhou nos olhos de Lydia e ela disse, com calma:
— Veio ver a pequena Laura, Stephen? Está dormindo.
Lydia foi para o outro berço, debruçou-se sobre ele e olhou para a criança ali com uma expressão estranha, meditativa. Stephen foi para junto do berço, desajeitadamente. Lá estava sua filha, pequena, magra e quase sem colorido, em contraste com a beleza radiosa da prima. Pela primeira vez Stephen pensou, com espanto: “Ah, ela se parece com Lydia". Experimentando, ele tocou no rosto da filha com o dedo e tornou a sentir uma saudade profunda e insuportável de Alice.
Ele murmurou para Lydia, num tom urgente:
—    Sinto muito; sinto muito mesmo...
Ainda olhando para Laura, Lydia não se moveu. Suas mãos estavam cerradas e rígidas no lado do berço.
—    Por quê? — perguntou.
Ele balbuciou:
—    Pelo testamento do meu pai. Eu não sabia, pode crer.
A ama estava despertando e se levantando, encabulada. Lydia virou a cabeça e pediu que ela se retirasse por uns instantes. Esperou que a mulher saísse e depois se endireitou e olhou para Stephen, com um ar pensativo.
—    Claro que não sabia — disse ela. — Eu disse que você sabia, Stephen?
—    Mas minha mãe e Rufus... — começou Stephen, com sua voz hesitante.
Lydia ficou calada. Era como se o visse pela primeira vez e não estivesse muito satisfeita com o que via. Por fim, ela falou e havia um tom áspero.
—    Stephen, um dia pensei por que Alice o amava e se casou com você. Não sei bem se ela não estava enganada, afinal.
Stephen olhou para ela, mudo. Cada uma das palavras cruéis parecia bater não só em seus ouvidos, mas em seu coração.
—    O que... o que está dizendo, Lydia? Como pode falar assim? Sabe o que vou fazer? Vou convidar minha mãe e meu irmão para continuarem nesta casa, comigo e com minha filha. Vou consultar Rufus sobre invalidar o testamento. Vou procurar consertar esse mal terrível, o que mais posso fazer?
Então, o desprezo nos olhos de Lydia virou um clarão gélido. Ela tentou falar, mas apertou os lábios. Afastou-se uns passos e deu-lhe as costas, olhando para o fogo. Ele viu que ela apertava as mãos, lutando para se controlar. Seu corpo alto e magro estava destacado pelo fogo e a seda preta reluzia suavemente, caindo em pregas do corpete apertado, e o cabelo preto delineava-se com uma sombra.
Lydia nunca parecera temível a Stephen, agora parecia uma estranha. Então, ela falou:
—    Eu tinha esperanças de que você estivesse começando a aprender, a enxergar um pouco. Existe diferença entre o homem inteiramente amoral e o tolo completo.
Ele não podia compreendê-la. Só podia ficar ali de pé e ela viu seu rosto brando e abatido, o sofrimento e a confusão em seus olhos. Os ombros de Lydia caíram, resignados. Seu rosto se suavizou e ela suspirou. Foi para junto dele e pegou-lhe o braço.
—    Stephen, procure entender. Não se escravize tanto pelas emoções. Desça comigo agora e fale com sua mãe e seu irmão.
Segurando Stephen como se ele fosse um prisioneiro que pudesse tentar fugir, ela o levou do quarto. Em silêncio, eles desceram juntos. Lydia só falou quando chegaram ao hall e então disse, numa voz baixa e autoritária:
—    Procure se lembrar de uma coisa, Stephen. Seu pai lhe deixou tudo. Tinha um motivo. Seria demais esperar que você pudesse compreender esse motivo, mas pelo menos pode tirar da cabeça que tenha sido maldoso.
—    O que mais poderia ser? — murmurou ele, mas ela deu-lhe um puxão forte no braço e ele a seguiu até a sala de visitas, onde a mãe e o irmão estavam sentados num silêncio vazio e violento, sem se olharem. Quando Lydia e Stephen entraram, eles se sobressaltaram, se entreolharam e depois se viraram. Lydia disse, num tom baixo e destacado:
—    Stephen tem algo a lhes dizer.
Ela largou o braço dele e foi para junto da lareira, mas enfrentando-o num desafio direto. Os olhos dela o comandavam, dando-lhe uma advertência que ele não compreendia.
Sophia estava sentada no seu monte de seda preta farfalhante, uma mulher dominadora e imponente, o cabelo grisalho um pouco despenteado, o rosto grande de feições fortes, cheio de ódio e de aversão. Estava pálida, cinzenta. Seus olhos castanhos brilharam sobre Stephen como se todo o repúdio tivesse chegado ao ponto de jogá-lo longe, para fora de suas vistas. Rufus ficou sentado ali, como se o irmão não estivesse presente, com os punhos cerrados apoiando a face rosada, as pernas esguias dobradas, prontas para o bote.
—    0 que ele pode dizer? — exclamou Sophia, com aspereza. — Depois do que fez?
Sophia mexeu o corpo, como para recuar de uma presença repugnante, e ergueu uma das mãos, reluzindo de brilhantes, num gesto histriônico.
Stephen, diante de toda essa raiva selvagem e desse horror por ele, não conseguiu falar. “O que fiz, para merecer isso?”, pensou. "Sempre me odiaram...”
—    Estive pensando. Este é seu lar, mãe, é seu lar, Rufus. Aqui sua filha nasceu e você mora aqui com sua mulher. Eu só morei aqui pouco tempo e depois, quando Alice e eu nos casamos, o pai nos deu a casa antiga.
Ele parou e aí uma ideia arrasadora lhe ocorreu: "Por que Alice e eu não fomos convidados para permanecer aqui? Por que estava entendido que havíamos de compreender que não seríamos bemvindos? Por que desprezavam Alice? Por que ela era boa, inocente e calma? Ou porque era minha mulher?”
Sophia e Rufus, embora manifestando um desprezo total, fingindo que não tinham ouvido Stephen, estavam muito duros e parados em suas poltronas. Lydia disse, com aspereza:
—    Stephen! Por que parou de falar? Eles estão esperando para saber o que você tem a dizer.
"Alice”, pensou Stephen. "Fora exilada daquela casa, desdenhosamente. Quando ia lá, era apenas suportada com escárnio e era atormentada e provocada. Eu via as lágrimas naqueles olhos queridos. Minha pobre Alice." Ele se endireitou e olhou para Lydia, sem querer. O rosto pálido da cunhada estava voltado muito atento para ele. A voz dele estava mais forte, quando continuou:
—    É minha intenção convidá-los a permanecerem... no nosso lar. É impossível que a senhora, mãe, e você, Rufus, vão embora. A despeito dos termos do testamento do pai, esta é a casa de vocês. Não podem partir.
Sophia exclamou, com forte aversão:
—    Realmente, senhor! Pensa por um momento que pretendo ficar numa casa, minha casa, da qual fui privada? Não sei o que você fez com seu pai, ou como o bajulou durante todos os meses em que passou ganindo e doente depois que Alice morreu, ou como o convenceu, quando ele estava tão mal e você o atraiu ao quarto de hóspedes para poder perverter a mente dele e desviar o seu amor natural para longe da mulher e do filho! Mas conseguiu! Como é que ele podia saber, doente como estava e fora de seu juízo perfeito, o que você lhe estava fazendo, sob o seu fingimento hipócrita de estar chorando a mulher!
Stephen ouviu aquilo com horror. Recuou para as sombras. Pela primeira vez na vida, ele cerrou os punhos. "Eles acreditam nisso!”, disse ele, intimamente. Uma repulsa tão tremenda invadiu seu corpo que ele começou a tremer e seu rosto macilento reluziu, como num relâmpago.
—    "Não estava em seu juízo perfeito” — repetiu Rufus, como que tendo levado um golpe. Ele se empertigou na poltrona e seus olhos castanhos, tão parecidos com os da mãe, começaram a brilhar, selvagemente. — Claro! Ele estava doente há mais de um ano e não tinha mais controle sobre os sentidos. Influência indevida, como já disse.
Lydia então falou e sua voz soou nítida e aguda como gelo:
—    O testamento foi feito no dia 15 de fevereiro de 1865... há dois anos.
Esqueceram?
Sophia virou-se na poltrona e olhou para Lydia com violência e indignação. Ela abriu a boca para gritar e então sentiu o impacto do que Lydia dissera. Seu rosto afundou em dobras e rugas. Rufus recostou-se na poltrona e suas feições se retesaram.
—    Vocês só têm uma reclamação possível, se é que existe, com o codicilo que deixa a Laura esses vinte e cinco mil dólares — continuou Lydia. — No entanto, pode-se provar que, embora Rufus e eu tenhamos recebido de volta o dinheiro de meus pais, nada da parte de Alice foi devolvido. E foi muito mais do que vinte e cinco mil dólares. Foram quase cinquenta.
Ela se virou para Stephen, que estava nas sombras, e lhe fez um gesto eloquente, como que dizendo: “Vê como são as coisas".
—    O que eu lhe fiz, Lydia, para que se volte assim contra mim?
—    perguntou Rufus à mulher, a voz sinceramente vacilante e rouca.
—    Será demais um homem esperar que a mulher lhe seja fiel, pelo menos?
—    Oh, meu Deus! — exclamou Lydia, com uma veemência impaciente. — Rufus, você não é nenhum tolo. Eu estava apenas dizendo uma verdade que você parecia estar querendo ignorar.
Rufus pensou nisso e ficou muito vermelho.
—    É, você tem razão, claro, Liddie. Mas, de algum modo, houve a influência. Sempre ficou entendido...
—    Por quem? — perguntou Lydia, atiçando a discussão.
—    Por você? Por sua mãe? — O rosto dela estava rubro de desdém.
—    O pai falou em Cornélia como sua “herdeira" — disse Rufus e, pelo tom, parecia que ele estava suplicando à mulher. — Nesta sala mesmo, na noite em que nossa filha nasceu.
Lydia riu com melancolia.
—    Nunca lhe ocorreu que talvez ele estivesse zombando de você? Você sabe que estava. Era um homem perverso...
—    Como ousa, sua desgraçada? — gritou Sophia, pondo-se de pé. — Como ousa falar assim do meu marido?
Então Rufus, zangado, também se levantou.
—    Mãe! Como está falando com Lydia, minha mulher?
Lydia lançou-lhe um olhar irônico, mas calmo.
—    Não tem importância, Rufus. É preciso lembrar-se das circunstâncias. Mas ainda não acabei. Repito que Aaron DeWitt era um homem perverso e gostava de ser mau. No entanto, não era burro. Tinha uma cabeça excelente, sagaz e compreensiva. E fez Stephen seu herdeiro devido ao que lhe pareceram motivos bons e suficientes. Não pretendo discutir esses motivos, que são muito óbvios para gente sem prevenções, como eu. Não me olhe assim, como se não entendesse, Rufus. Não fique tão assombrado. E o seu pai não o deixou na miséria. Temos muito dinheiro, você possui muitas ações da companhia e vai ser vice-presidente executivo. É o seu orgulho que foi atacado. Eu compreendo, embora não concorde.
Stephen não se mexera, durante todo esse tempo. Estava perdido nas sombras, a cabeça abaixada. Mas estava pensando e a amargura tinha um gosto mortal. Ele disse consigo: “Fui um tolo. Não sei bem como, mas fui”. Sua tristeza por Alice parecia uma ferida sangrando de novo dentro dele. Ele se esqueceu do que ia oferecer ao irmão.
Sophia tinha caído no encosto da poltrona e soluçava desesperadamente.
—    Um homem perverso... o meu marido! — exclamou. — Meu marido, meu pobre marido traído, morrendo sozinho na cama, há três dias apenas! Meu marido, ouvindo mentiras, adulações, atormentado por um ladrão e patife, que usou a morte da mulher para conseguir seus objetivos!
Stephen saiu da sombra e foi para a luz. Olhou somente para a mãe e seus olhinhos castanhos pareciam círculos fosforescentes.
—    Não, mãe — disse, com uma voz muito estranha. — Não minta mais. E nunca mais mencione o nome de Alice. Se mencionar, vou lhe pedir para sair desta casa e nunca mais pisar aqui.
Sophia deixou cair as mãos do rosto e o fitou, com pasmo total. Rufus, de pé ao lado da mulher, também estava espantado.
—    O que é que está dizendo? Está louco? Você nunca falou assim — disse Rufus, num tom abafado.
—    É, nunca falei — disse Stephen. — Porque, como vê, embora todos pudessem notar, eu estava cego e era um tolo.
Sophia estava incrivelmente abalada. Não podia acreditar que esse seu filho insignificante, esse filho hesitante e reservado, motivo de escárnio de toda a cidade, pudesse falar naquele tom. Ele ousara assumir a estatura de homem e isso a indignava.
Ela se levantou, teatralmente, e apontou-lhe dedo, mas olhou para Rufus.
—    Ele ousa falar com a sua mãe e você não o derruba!
Rufus sorriu e disse, secamente:
—    A senhora também é mãe dele. E as objeções que ele faz não são mais que justas.
Ele fez uma mesura irônica para Stephen.
—    Aceitamos o seu amável convite para ficarmos na casa. A sua casa. E devo dizer, Steve, que se eu estivesse no seu lugar, não teria feito esse convite.
12
Rufus estava sentado sozinho no quarto, diante da lareira, envolto em seu roupão azul-marinho e fumando um charuto. Ele sentiase só. Era meia-noite. A casa estava num silêncio pesado como ilha isolada do mundo pelo vento, a neve e a tempestade. Estava com seus pensamentos pesados, desanimados e negros de raiva. Não estava mais culpando Stephen pelo testamento do pai, mas pensava em Aaron, sepultado naquele dia, e seu ódio tornou-se uma coisa violenta dentro dele. Olhou em volta do quarto, ocupado apenas por ele, e seu ódio estendeu-se a tudo e a todos. Ele passou as mãos pelo cabelo, nervoso, jogou o charuto no fogo e praguejou em voz alta. Tinha um humor especial, mas não conseguia achar nada de engraçado naquela situação, o fim de esperanças e planos. Levantouse e começou a andar de um lado para outro, esfregando o queixo, cerrando os punhos, resmungando.
Era por natureza exuberante e imediatista, de modo que, a princípio, os planos todos foram urgentes e ativos. Um por um, ele os foi pondo de lado, com pesar. Intuitivo, cheio de percepção, ele sabia que quando Stephen acompanhara Lydia escada abaixo e entrara na sala, algumas horas antes, estava disposto não só a oferecer à mãe e ao irmão um lar para sempre naquela casa, mas também a prontificar-se para anular o testamento do pai ou modificar suas cláusulas. Se ao menos Sophia tivesse sido mais inteligente e menos grosseira e estúpida! Em menos de dez minutos ela destruira as esperanças de seu filho favorito e o deixara ali, planejando desnecessariamente e quase inutilmente. Rufus se permitiu pensar: "O que dera no velho Steve, para não oferecer nada? O que transformara em pedra aquele rosto insignificante?”
Talvez já tivesse passado o tempo em que as pessoas podiam atingir Stephen com emoções absurdas, sentimentos de culpa irracionais e impostos por ele, humilde, pela incapacidade de ferir os outros e de se proteger, por imensa falta de amor-próprio e pela convicção de ser indigno. De algum modo, Stephen misteriosamente tivera um relance da verdade que Rufus sempre soubera: ele tinha poder, habilidade e sagacidade intrínsecos e sem sua visão global e perspicácia, a State Railroad Company não poderia ser o que era.
Aaron sabia disso; era imperdoável que, depois de morto, ele não tivesse permitido que essa ilusão confortável continuasse.
De algum modo, Stephen tivera um vislumbre da verdade. Sophia lhe permitira isso. No entanto, outra coisa também acontecera naquela sala, naqueles momentos, uma coisa que Rufus não conseguia apreender. Ele não perdeu tempo tentando apreendê-la; era poderosa, mas também intangível. Ele tinha de lidar com aquilo e assim suavizar qualquer coisa imediata.
A porta do quarto de Rufus abriu-se. Ele ouviu o ruído e teve um sobressalto. Lydia estava entrando, fechando a porta. Usava um roupão rosa suave e seu longo cabelo preto lhe caía até a cintura. Rufus fitou-a, sem poder acreditar. Olhou para o rosto pálido e os grandes olhos escuros e viu que ela estava ao mesmo tempo triste e decidida. Ela nunca tinha entrado no quarto dele, desde que ele se mudara para lá, nem permitira que ele entrasse em seu quarto de dormir, depois do nascimento de Cornélia. Rufus, com o coração de repente disparando, o rosto corado e os olhos se iluminando, levantou-se, sem dizer uma palavra.
Ela se aproximou dele e encarou-o, séria.
—    Sinto muito pelo testamento, Rufus — disse, em voz baixa. — Deve ser horrível para você.
Ela estava com pena, foi o que ele entendeu. Puxou uma cadeira. Lydia sentou-se, dobrando as mãos sobre os joelhos. Ele ofegava e sabia que suas feições estavam-se engrossando com seu desejo, amor e sua paixão por ela. Rufus sentou-se junto à esposa e esperou, deixando que sua fisionomia ficasse desanimada e reservada.
—    Mas não se pode fazer nada e o melhor é continuar, do modo mais sensato — continuou Lydia. Ela não estava constrangida, nem fria, e os ouvidos de Rufus começaram a zunir de alegria e exultação. Ela olhava para ele cheia de compreensão e bondade.
—    Lydia, querida — disse ele baixinho. Com uma timidez real, ele estendeu a mão e pegou a dela. Lydia não resistiu, embora não correspondesse plenamente. Mas se inclinou para ele e o rosto se abrandou, ficando quase terno.
O primeiro impulso dele foi falar de Stephen com desprezo e exprimir a amargura contra o pai e as “injustiças” contra ele. Mas sua percepção impediu que esse impulso vencesse. Lydia não era uma mulher de caráter mesquinho. Assim, ele disse, com muito cuidado e calma:
—    Não fique magoada, Lydia, meu amor. Talvez meu pai estivesse fazendo o que achava melhor.
Ele sabia que estava certo, pois o rosto de Lydia ficou mais corado, mais meigo. Ela chegou a apertar os dedos dele. Rufus ficou um pouco desanimado e meio zangado. Se tinha esperanças de que a compreensão dela incluísse indignação e desprezo por Stephen, ficou decepcionado. Ela estava meneando a cabeça.
—    Você tem toda a razão, Rufus. — Ela sorriu para ele e Rufus ficou vexado ao ver que ela aceitava tão prontamente a premissa do “valor” do irmão dele, diante do menor valor dele mesmo.
Como se compreendesse o que ele estava pensando, ela disse, depressa:
—    Eu não quis parecer desleal a você hoje, Rufus. Estava apenas chamando a atenção para os fatos. Naturalmente, sei que, com o primeiro choque, você se esquecera de que o testamento foi feito há dois anos.
Rufus fez que sim.
—    Mas continuo a não entender — disse ele, apertando mais a mão de Lydia, que a deixou assim.
—    Não importa — disse Lydia. — Temos muita coisa, Rufus. Eu gostaria de sair desta casa com você e Cornélia e ter uma casa nossa. Sua mãe pode ficar com Stephen, claro.
Alegre e aliviado, ele momentaneamente esqueceu toda a sua aflição.
—    Você prefere mesmo isso, Lydia? Nós três, sozinhos?
—    Prefiro.
Rufus ficou pensando. Aparentemente, Lydia estava oferecendo ao marido uma vida de família normal. Se este fosse o caso, então ela o amava, a despeito das conversas frias e violentas que tinham tido nos últimos meses. Isso bastou para lhe dar prazer. Ele olhou nos olhos dela e perguntou:
—    Você me ama, não é, querida?
Ela ficou calada e a cor sumiu de seu rosto. Lydia retirou a mão, delicadamente. Mas não conseguiu afastar os olhos de cima dele.
—    Ainda amo o que pensei que você era, até seis meses depois de estar casada com você, Rufus.
Ele se levantou, o rosto corado ficando tenebroso.
—    Uma de suas frases ferinas, Lydia. Você já me disse uma dúzia de vezes, este ano. O que você pensava que eu fosse e o que sou são duas coisas irreconciliáveis. Você disse que era impossível amar quem eu sou realmente. Continua com essa opinião?
Ela aguardou um momento e depois disse, com remorso:
—    Continuo, sim.
Ele não queria perder o prazer e a alegria que tinha sentido. Postou-se ao lado de Lydia e pôs a mão no seu ombro.
—    Lydia, sejamos razoáveis. Foi culpa minha que você formasse alguma imagem impossível? Foi culpa minha que você se iludisse?
—    Não.
—    Então, por que tem de me castigar porque não sou o homem que você pensava que eu fosse? Eu algum dia a enganei quanto ao meu caráter?
Ela baixou a cabeça e começou a chorar, sem fazer barulho.
—    O que posso dizer, Rufus? Não é minha intenção “castigálo” pela minha ignorância e estupidez. Estou castigando a mim mesma e se você está magoado com isso, só posso dizer que sinto muito. E, por favor, me perdoe. Não, você nunca me enganou quanto ao seu caráter. Eu que fui cega, incapaz de ver. Mas o que você é, Rufus, inteiramente amoral e feliz com isso, inteiramente oportunista e impiedoso, me repugna.
Ela levantou a cabeça, as faces molhadas, e olhou para ele realmente angustiada.
—    Perdoe-me, Rufus, pela minha burrice e o sofrimento que devo ter-lhe causado, todo esse tempo.
Ele notou que levava uma boa vantagem. Deixou que sua fisionomia exprimisse uma grande infelicidade e ofensa.
—    Acho difícil perdoá-la, Lydia. Você tornou minha vida quase impossível.
—    Eu sei.
Ela pensou nos mexericos venenosos que ouvira sobre a ligação de Rufus com alguma mulher de vida fácil em Portersville, viúva rica de um especulador de terrenos. Ela não sentiu qualquer humilhação, nem raiva. A culpa era dela, disse para si. Estava acabrunhada demais para comentar que era meio absurdo Rufus alegar que a vida dele “se tornara impossível”.
Ela disse, vacilando:
—    Rufus, se você quiser, fico aqui com você esta noite. E todas as outras noites.
O primeiro impulso dele foi tomá-la nos braços, com alívio e felicidade. Pensou: “Talvez eu consiga vencer a desconfiança que ela tem por mim e fazê-la largar suas idéias tolas. E mesmo que não consiga, pelo menos a possuirei e talvez isso seja suficiente”.
Então, ele sentiu que não seria suficiente. Ele a amava demais para tomar o que ela estava oferecendo, por uma piedade humilhante.
Ele estava sofrendo com desolação, mas disse:
—    Não sou tão “amoral” quanto você pensa, Liddie. Pois não a quero no meu quarto ou na minha cama, se você não me ama. Podia aproveitar-me dessa piedade, mas não quero.
Ele tornou a sentar-se, pesadamente, olhando para o fogo. Ela o observou com tristeza, por um momento, e depois exclamou:
—    Rufus, deve haver um meio de ajudá-lo! Não é justo que eu o trate assim, mas não posso evitar.
—    Está sugerindo um divórcio, Lydia? — perguntou ele, sem poder acreditar. — Baseado em quê?
Todo o rosto de Lydia tremeu, mas ela foi corajosa ao responder:
—    Tenho certeza de que você pode conseguir um divórcio, Ru fus. Alegando... abandono.
—    E expor você e a mim ao escândalo? E escárnio? Não, Lydia. Talvez eu como homem pudesse escapar disso. Mas você não. — Ele acrescentou: — E temos de pensar na menina.
Mas ele também estava pensando no riso dos seus amigos, diante do seu abandono por Lydia. Também estava pensando que teria de devolver a Lydia o “dinheiro Fielding” em caso de divórcio.
—    Não tenho medo de escândalo nem escárnio, Rufus. Você sabe, não gosto das pessoas. E vim a saber o que são e nunca em minha vida levei em conta as opiniões alheias, se essas opiniões eram triviais ou insolentes ou se o assunto não era da conta deles. Talvez isso fosse egoísmo, em certo sentido, pois a solidão gera o egoísmo, mas também me tornou indiferente às opiniões de estranhos que não representam nada para mim.
Rufus, que sempre vivera e dependera do bom conceito e da admiração de seus semelhantes e que não podia suportar a vida se não fosse aplaudido, invejado e cortejado, sentiu que estava ouvindo uma filosofia esotérica expressa num idioma estrangeiro, que ele só entendia parcialmente. Achou que Lydia estava sendo extremamente esquisita e insondável, e não acreditou muito nela.
—    O divórcio está fora de cogitações — disse ele, categoricamente. — Eu me surpreendo que você tenha sequer pensado numa coisa tão repugnante. — Ele se levantou de novo e começou a andar de um lado para outro, de cara fechada. Estava zangado e humilhado. Disse então: — Não, eu não quero você, Lydia, a não ser nas minhas condições, que você sabe quais são. E não podemos sair desta casa.
Por que não, Rufus? — perguntou ela, implorando. — Eu nunca discuto com sua mãe e vivemos mais ou menos afavelmente, mas assim mesmo gostaria de ter
uma casa. Jamais considerei esta casa minha e agora, pelo testamento de seu pai, também não é sua.
Ele ficou tão ferido com isso, e tão enfurecido, que gritou:
—    Mas ainda será. E talvez o momento não esteja assim tão distante!
Ela se levantou de repente, empalidecendo.
—    O que está dizendo, Rufus? Você não pode invalidar o testamento de seu pai, os advogados disseram isso.
Ele parou perto dela. Os dois se olharam, Lydia tensa e abalada, Rufus com o rosto vermelho e inchado, os olhos castanhos em fogo. Ele disse consigo, na sua fúria, que a detestava, detestava seus princípios superficiais e mesquinhos, o juízo complacente que ela fazia dele, a segurança que a levava a julgá-lo e acreditar que tinha razão. E se ele lhe dissesse que não tencionava deixar que Stephen conservasse o que tinha, que havia de maquinar eternamente, dia e noite, para privar o idiota do que deveria ser dele, Rufus, e que se aproveitaria de todas as fraquezas de caráter do irmão para arruiná-lo?
Mas foi sua cautela inata, sua desconfiança de todos, que o fez calar-se. Lydia se tornara sua inimiga, não só por rejeitá-lo, mas também por insistir para que ele respeitasse as cláusulas do testamento do pai. Ela não merecia mais sua confiança. Talvez, pensou, nunca tivera motivos reais para confiar nela.
Ele cuidou de se descontrair. Obrigou-se a sorrir.
—    Por que está tão aflita, Liddie? — perguntou baixinho. — Eu só estava dizendo que considero esta casa minha, meu lar, e que já aceitei o convite de Stephen para continuar aqui. Afinal de contas, morei mais tempo aqui do que ele e moralmente... você gosta desse termo, não?... a casa é tão minha quanto dele.
“Há alguma coisa perigosa", pensou Lydia, com aflição. Ela olhou para Rufus, examinando-o, mas o sorriso dele estava tão franco que ela começou a se achar tola. Além disso, o que Rufus poderia fazer a Stephen? Nada. Ela suspirou. Começou a se dirigir para a porta, o roupão rosa se arrastando no chão. Ela vacilou no limiar e depois disse suavemente:
—    Boa noite, Rufus — e fechou a porta.
Então, pareceu a Rufus incrível que a tivesse deixado ir, que não tivesse aceitado seu gesto de compreensão. Sem ela, não havia nada de substancial na existência dele. Ele correu para a porta, abriu-a e chamou por ela. O corredor estava vazio. Ele ficou ali, muito abalado, dizendo consigo: "Eu teria de renunciar a toda a minha vida, se ela tivesse me ouvido. E quando o homem renuncia à vida, o que lhe resta?" Ele fechou a porta.
13
Portersville ficou profundamente chocada e incrédula ao saber que Stephen, o insignificante, era o herdeiro de Aaron DeWitt, e o novo presidente da State Railroad Company. Ninguém podia acreditar e, durante algum tempo, muitas pessoas se mostraram céticas. A cidade não via tamanha empolgação desde o assassinato do sr. Lincoln. Em quase todas as casas travavam-se discussões veementes, em especial nas casas das pessoas que conheciam os DeWitt pessoalmente.
Os amigos de Rufus, durante muito tempo, fizeram questão de se juntarem em grupos e marcharem para o prédio do Portersville National Bank, subirem a escada fazendo muito barulho, até os escritórios da State Railroad Company, passarem pela porta fechada ao gabinete do presidente com maior barulho ainda e depois entrarem no gabinete de Rufus, fazendo caras indignadas e com veementes manifestações de repulsa. Durante algumas semanas Rufus permitiu isso, para aliviar sua própria amargura, mas depois o seu bom senso se manifestou. Viu que essas manifestações de solidariedade, embora consoladoras, em breve o tornariam ridículo, pois sabia que com o tempo a humanidade passa a desprezar a pessoa que perde ou que é vítima.
O conselho diretor da State Railroad Company chegou a um estado próximo da apoplexia conjunta, tendo lúgubres conversas particulares em seus gabinetes de madeireiros, siderúrgicos ou banqueiros, insinuavam sombriamente que a State Railroad Company “acabaria”, com uma pessoa como Stephen à testa. O que pensavam disso tudo os “cavalheiros” de Filadélfia?, perguntavam-se. Os cavalheiros de Filadélfia demonstraram uma ausência tranquilizadora e os diretores sossegaram, ainda raivosos, mas aliviados. Jim Purcell, também diretor da companhia, disse, com o seu jeito rude, depois de soltar um palavrão:
—    Vocês são uma cambada de idiotas. As provas estavam todas ali, para vocês verem, acerca do Steve, mas vocês ficaram fascinados com o espalhafato de Rufus Ruivo. Esqueçam-se das poses e risadas dele e olhem mais além, para Steve, seus bobos.
Quando Portersville afinal teve de aceitar o fato de que Stephen era presidente da companhia, o ressentimento aumentou, em vez de diminuir. Centenas de pessoas sentiram-se insultadas pessoalmente, mesmo que não tivessem ligação direta com a State Railroad Company. As emoções estavam incendiadas a favor de Rufus, enquanto aumentava a raiva contra Stephen e o falecido Aaron. Era impossível a Stephen, mesmo nos seus refúgios mais longínquos, deixar de sentir a animosidade contra ele na cidade. Suportou aquilo por muito tempo e, com pena de Rufus, não culpava ninguém. Mas com o tempo não pôde mais deixar de reconhecer a maldade que faz parte do caráter humano e passou a ver que a afeição por Rufus era uma aversão por ele.
Mas aconteceu-lhe uma coisa estranha. No passado, ele aceitara essa aversão com humildade, quase acreditando que a merecesse, por algum motivo. Agora, aos poucos, começou a questionar essa humildade e nele surgiu algo parecido com a raiva surda que sentira no dia do enterro do pai.
Sua fisionomia, modesta, encabulada, branda, começou a adquirir um ar de severidade e calma fria. Com o tempo, o seu bigode castanho ficou grisalho, bem como o cabelo castanho ralo. A boca enrijeceu; os olhos perderam o hábito de se desviarem, encabulados, e adquiriram uma franqueza reservada, que muitas vezes deixava seus inimigos desconcertados, ao mesmo tempo que aumentava o ódio que sentiam por ele.
O projeto de Aaron, de estender a estrada de ferro a Baltimore e Washington, foi concluído e depois de uma reunião do conselho diretor, presidida por Stephen num silêncio quase total, e em que Rufus se mostrou muito encantador e entusiástico, decidiu-se reba tizar a companhia como Interstate Railroad Company. Um dos felizes diretores, que não primava pela diplomacia, concluiu os debates com o comentário vibrante:
—    De certo modo, devíamos chamá-la de Estrada de Rufus! Muito constrangidos, e depois de lançarem um olhar de esguelha ao rosto abatido a inexpressivo de Stephen, os diretores começaram, muito apressadamente, a falar de outra coisa. Após quatro anos estavam indignados com o fato de que Stephen fosse o presidente, recusando-se a reconhecer, mesmo entre si, que ele era muito competente. Declaravam que “era tudo coisa do Rufus, de qualquer forma", pois onde é que Stephen ia arranjar inteligência, força e imaginação que levara ao sucesso a expansão da estrada de ferro, especialmente numa época de insegurança nacional crescente?
As instituições de caridade que Stephen ajudava não tinham permissão de divulgar sua generosidade. Essa determinação não era difícil de ser obedecida, pois muitos dos diretores dessas instituições eram amigos de Rufus e se convenceram de que, de alguma forma Stephen “devia” estar arrependido pelo que fizera ao irmão e que apenas apaziguava sua consciência, se é que a tinha. Assim, até mesmo suas contribuições eram recebidas com ingratidão e grosseria. O fato de que Rufus contribuía pouco ou nada era inteiramente esquecido, ou explicado em termos que insinuavam que ele tinha si do “roubado” e no momento não podia dar mais. Enquanto isso ele tinha de conservar seus recursos para o “futuro”.
Não havia qualquer sentido em tudo isso, dizia Lydia consigo. Mas também há muito pouca lógica na humanidade. Mesmo quando a amargura contra o marido estava no auge, ela nunca sentira por ele nada mais que uma aversão. Agora começou a detestá-lo por seus sorrisos, silêncios, insinuações cheias de significado, quando, depois de tanto tempo, os amigos lhe manisfestavam compaixão. Mas ela nunca se referia a isso. Apenas evitava Rufus, dias a fio, e quando era obrigada, falava o mínimo, e sempre sobre assuntos irrelevantes, sociais ou domésticos.
Sophia, por sua vez, instigava o ódio dirigido contra seu primogênito. Embora tivesse sido advertida por Rufus para não usar termos ridículos como “influência indevida” ou “injustiça ao meu filho Rufus”, mesmo assim ela insinuava às amigas curiosas que Stephen tinha “maquinado” contra o irmão quando o pai estava sensível. Essas amigas argumentavam, entre si, que uma mãe não seria capaz de falsidade ou amargura contra um filho se não houvesse motivo.
Stephen, como se fosse inteiramente cego e surdo a todos os comentários sobre ele, trabalhava sem parar, metódica e incansavelmente. Muitas vezes ia para os escritórios ao raiar o dia e ficava lá até depois de Rufus sair. Mas Rufus nem sempre deixava o irmão sozinho. O estudo que fazia de Stephen e seus métodos continuava com a maior concentração. Agora sabia que ele fora a fachada colorida, a vivacidade que decorara o edifício já cuidadosa e monotonamente construído por Stephen. Ele mesmo sempre soubera das coisas, mas os detalhes, o trabalho árduo e penoso, a persistência o aborreciam. Ele não subestimava as próprias realizações, pois compreendia que até os negócios prosaicos têm de ter vida, drama, e que os homens de negócio, por mais insípidos, apreciam um pouco de vida e emoção e a ilusão de que os negócios não são apenas uma questão de cifras frias. Se ele conseguisse adquirir a potência da administração e do planejamento inteligente de Stephen, combinando isso com suas características, ele achava, com razão, que seria irresistível. Daí porque estudava o irmão, sem se aborrecer, já que tinha tudo para ganhar.
Ele dizia consigo: “Estou com trinta e dois anos. Estou caminhando para onde quero ir e é apenas uma questão de tempo, posso esperar".
Ele pensava estar só na sua admiração pelo verdadeiro gênio de Stephen, pois quase sempre esquecia Jim Purcell. Via que Stephen estava investindo pesada e constantemente nas minas de carvão perto de Scranton, tanto quanto permitia sua capacidade financeira. Ainda recentemente, em abril de 1871, Stephen adquirira mais terrenos inexplorados, embora Wall Street estivesse consciente e inquieta sobre a crescente depressão em todo o país. Na segunda-feira, dia 24 de setembro de 1869 (quando houvera um açambarcamento no ouro), Stephen discretamente comprara vastos terrenos, por um preço incrivelmente baixo. Dois anos depois, ofereceram-lhe o dobro do que pagara pelas terras, embora no país houvesse uma impressão terrível de que haveria um pânico. Rufus, que tinha sorrido com desprezo diante da compra de Stephen, agora, em novembro de 1871, se maldizia por sua cegueira. “É preciso tempo para se compreender tudo a respeito de um homem que se pretende arruinar”, dizia ele consigo.
Um dos planos de Rufus era eliminar inteiramente qualquer antagonismo existente entre ele e o irmão, pois só ele sabia que Stephen tinha uma tendência latente para a desconfiança, que só recentemente se vinha manifestando, por pequenos detalhes. Essa desconfiança antes fora rigorosamente reprimida por Stephen, que acreditava que todos os homens são intrinsecamente bons. Ele agora estava demonstrando uma discrição perturbadora, se bem que em intervalos muito pouco frequentes. Rufus ia aos extremos mais delicados e se esforçava para destruir qualquer suspeita possível. Nunca tomava a menor decisão sozinho, consultava Stephen em todas as ocasiões. Era sincero na sua admiração real pelo irmão, ria dos próprios erros ao conversar com Stephen e reconhecia ser impulsivo. Quando os “encrenqueiros” da estrada pediam aumentos de salários que estavam caindo em todo o país, sendo sensato negar o aumento, Rufus sustentou Stephen na decisão de aceder aos pedidos diante dos protestos veementes do conselho diretor.
—    Stephen sabe o que está fazendo — dizia Rufus, sério. Vejam os problemas que as outras estradas de ferro estão enfrentando.
Lentamente, graças aos esforços mais cautelosos e sutis, Rufus foi construindo uma solidariedade entre ele e Stephen.
Só havia duas pessoas que temiam, desconfiando, essa amizade e confiança crescente entre os dois irmãos: Jim Purcell e Lydia. Ela não ousava dizer nada a Stephen, pois uma frieza inexplicável se estabelecera entre eles. Mas Purcell, uma tarde, entrou no gabinete de Stephen, rude e maciço como sempre, e disse, com voz áspera:
—    Que negócio é esse entre você e Rufe Ruivo? A cidade inteira está falando de vocês dois serem tão amiguinhos e agarrados um ao outro. Você é idiota, Steve? Não está vendo o que ele está tramando? Está claro, bem debaixo do seu nariz. Ele quer arruinálo, como o negócio da aranha e a mosca.
Stephen, que sempre aceitara passivamente a “perseguição” de Purcell como um dos mistérios da vida e como coisa sem grande importância, ficara com raiva incomum.
—    Não sei do que está falando, Jim. Rufus me arruinar? Como? Sou o presidente; tenho cinquenta e um por cento das ações. Como ele podería me tirar tudo isso? É ridículo. Você nunca foi amigo dele, sempre houve animosidade entre vocês dois...
—    Você nunca se perguntou a causa, não é, Steve?
—    Não. Nunca pensei que fosse importante.
0 rosto pálido de Stephen corou.
Purcell apontou um dedo grandão quase na cara dele.
—    É porque somos canalhas, os dois, Steve. Ambos queremos a mesma coisa: ser o homem mais poderoso e rico desta cidade e talvez até do Estado, um dia. Nós dois sabemos de tudo um sobre o outro. Você pensou por um minuto que Rufus tivesse desistido da ideia dele, ou que eu desistisse da minha? Se pensou, é imbecil e está correndo perigo.
—    Rufus e eu somos amigos — disse Stephen secamente.
Purcell meneou a cabeça imensa e disforme, e as saliências e covas de seu rosto demonstraram a repugnância por aquela puerilidade.
—    Eu sei. Ele pensou assim mesmo. Sujeito sabido, o Rufe. E você está caindo direitinho no buraco que ele está cavando para você. Estou tentando preveni-lo, só isso.
—    Por quê? Por que isso havia de lhe interessar, Jim?
Purcell ficou calado. Ficou ao lado da mesa de Stephen, puxando um dos lábios frouxos e flácidos. Olhou para Stephen atentamente e depois sacudiu a cabeça, como se estivesse discutindo um assunto desesperador consigo mesmo.
—    Você nunca há de saber — disse ele, por fim.
Stephen ficou seis meses sem vê-lo.
Procurou esquecer a advertência de Purcell, mas aquilo ficou pairando incomodamente em sua cabeça, como uma traição a Rufus. Certa vez ele procurou falar do assunto com o irmão e disse, hesitando:
—    Não tenho visto Jim Purcell ultimamente. Está fora? Não? Veio aqui me procurar um dia, e...
—    E o quê? — Rufus perguntou, sorrindo.
Mas Stephen não conseguiu continuar. Seria uma humilhação moral para Rufus. Portanto, balbuciou:
—    Não foi nada de mais. Um assunto sem importância; ele é um dos diretores, não é?
Rufus examinou o rosto aflito, os olhos esquivos, a expressão de sofrimento e viu logo o que havia. Achou graça, mas também ficou alarmado. Ficou atento para observar algum encontro entre Stephen e Purcell, mas como os meses se passaram sem encontro algum, ele se sentiu aliviado.
Um dia, Rufus e Purcell se encontraram frente a frente, na rua. Rufus se contentara em sorrir e cumprimentá-lo, seguindo seu caminho, mas ali mesmo, no centro de Portersville, Purcell pegou o braço dele e disse, em voz bem alta:
—    Olhe aqui, Rufus, eu o estou observando. Se cometer alguma trapaça, vou fazê-lo se lembrar de que sou um dos diretores. Está entendendo?
Rufus riu-se.
—    Para que todo esse drama, Jim? Não, não o compreendo. Por que não nos visita lá na colina e conversamos sobre o assunto... Steve, você e eu? E agora, queira me dar licença.
Purcell, claro, não foi. Muita coisa estava acontecendo no país, naquele mês de novembro de 1871. O pânico profetizado estava dando sinais de se tornar realidade.
14
A guerra entre os Estados tinha proporcionado uma grande expansão industrial ao norte, mesmo durante os anos da guerra. Após a industrialização
britânica, que era soberba, completa e universal, a União, discretamente chefiada pelos novos bucaneiros, tinha a visão de os Estados Unidos se tornarem o império industrial do mundo. Esses bucaneiros, imperturbáveis durante a guerra, diante da perspectiva de derrota nas mãos da Confederação do Sul, mostraramse igualmente imperturbáveis diante do colapso do crédito do governo, que trouxe a desvalorização da moeda e a consequente inflação.
Os preços de todas as mercadorias subiram assustadoramente, mas os cidadãos do norte não prestaram muita atenção a isso, pois estavam empenhados no imenso negócio da guerra, consumindo e destruindo, e no norte surgiu uma prosperidade falsa, entusiásticamente proclamada como sendo o prelúdio de “uma nova era de expansão industrial, riqueza e oportunidades ilimitadas para todos os cidadãos”.
Os banqueiros e investidores conseguiram levantar um milhão de dólares por dia para continuar o conflito contra o sul. De Chicago vinha carne em quantidades incríveis, para os militares e civis. A produção do ferro passou a ser montanhosa. As estradas de ferro se expandiram enormemente e os poços de petróleo jorraram em várias zonas. Rapidamente foram inventadas máquinas agrícolas, para que os trabalhadores rurais pudessem ser convocados para o Exército
A industria bélica teve uma expansão incrível. As tarifas protecionistas contra os artigos estrangeiros tinham funcionado vantajosamente para os fabricantes nacionais, no meio de uma prosperidade de guerra delirante. Os Estados Unidos, cujo progresso industrial fora moroso, agora se viam atirados loucamente na revolução industrial. Tudo isso era visto com alegria pelos cidadãos irresponsáveis, que não percebiam nem de longe que uma prosperidade gerada por uma guerra tem de acabar em caos, no fim da guerra.
Somente os lavradores foram afetados negativamente. Acreditando, como seus irmãos das cidades, que a maré dourada da expansão industrial também os beneficiaria, tinham-se expandido imediatamente e se endividado. Os agricultores do oeste foram os que mais sofreram. A mosca hessena destruiu as colheitas; os silos só ofereciam quinze cents pelo milho; os fazendeiros assinaram mais duplicatas, até a quinze e vinte por cento. Só os intermediários das cidades é que prosperaram com a crescente miséria dos fazendeiros, que tinham de pagar preços exagerados por gêneros essenciais fabricados nas cidades, durante a guerra. Os direitos alfandegários e os impostos sobre a renda eram especialmente opressivos para os lavradores. Enquanto os bucaneiros das cidades e outros homens de fortuna, empenhados na fabricação e venda de material bélico para o governo, habilmente se esquivavam dos impostos, o agricultor não conseguia escapar do cobrador de tributos e da vigilância constante.
Em 1871, o povo americano se deu conta de que houvera um colapso tremendo na sua administração. Se a prosperidade da guerra tivesse continuado, os cidadãos não se teriam importado com o fato de que a corrupção se estendesse de Washington às cidades e aldeias. Mas o declínio súbito de um delírio de guerra nas cidades, com um desemprego assustador, permitiu ao povo observar o que tinha acontecido e continuava a acontecer.
Havia inúmeros casos de roubo em grande escala, inclusive prejuízos de companhias de seguro. A ética comercial foi completamente abandonada na corrida louca de se adquirirem propriedades como estradas de ferro, poços de petróleo e minas. A especulação era descontrolada e desenfreada. O sul, ferido e explorado, continuou a ser vitimado e infernizado pelos ladrões e canalhas do norte, com a bênção de um governo corrupto e passivo, cujos membros só
desejavam o poder e os lucros pessoais.
À medida que decaía a fé do povo americano em seu governo, decaía a fé em si e em toda a estrutura comercial e governamental. Eles não se consideravam culpados de seu sofrimento e desespero. Enchiam as ruas, procurando em vão emprego, enquanto as famílias passavam fome ou ficavam desabrigadas. Enquanto isso, os bancos estavam alertas, inquietos, receando uma corrida, que, no entanto, só se concretizou meses depois.
O colapso total da economia americana fora um pouco atrasado depois da Guerra de Secessão pelo início da Guerra Franco-Prussiana. Os industriais ingleses e americanos, já perturbados com a ameaça de uma derrocada econômica ameaçada em 1869, sentiramse aliviados. Concorreram furiosamente pelo mercado que fornecia armamentos à França e à Alemanha, e a animosidade já bem intensa entre britânicos, governo e povo americano atingiu proporções perigosas.
A Inglaterra acreditava que o continente europeu fosse sua fonte de mercados industriais, por direito divino, mas agora, indignada, via esse novo país bárbaro — crescendo enormemente tanto em territórios cultivados como em indústria — constituir uma ameaça sinistra ao império industrial britânico. A Grã-Bretanha tinha peranças de que um país dividido, ainda cambaleando depois de uma tremenda guerra civil, estaria fora da concorrência pelos mercados durante bastante tempo. Mas, pelo contrário, a guerra expandira a indústria de tal modo nos Estados Unidos, e revelara tantos recursos naturais imensamente ricos, que pela primeira vez no século XIX a Grã-Bretanha teve motivos para parar e temer.
Apenas alguns homens, e entre eles estava Stephen DeWitt, tinham começado a observar um fenômeno sinistro no mundo. Nos séculos passados, as guerras eram travadas por territórios, ou por motivos de disputas particulares da realeza, ou devido a antagonismos raciais. Nunca houvera guerras, propositadas ou inadvertidas, pelo controle de mercados industriais.
Então esses poucos homens alarmados começaram a suspeitar, sem qualquer outra prova senão a intuição, que uma economia industrial talvez tivesse de ser sustentada por guerras futuras. A medida que a indústria se expandisse e que mais mercadorias existissem no mercado com tendência a se contrair, ou a permanecer o mesmo, ou a não corresponder à produção, seriam necessárias guerras para promover a prosperidade nacional, ou eliminar concorrentes. Para esses poucos homens, isso era o máximo da degradação e infâmia humanas.
O mundo estava passando por uma crise, se bem que poucos se dessem conta. Stephen muitas vezes pensava, consternado: “Ninguém estudou a possibilidade de criar novos mercados por meio do auxílio a países pobres demais para comprar as nossas mercadorias, cada vez mais numerosas. Ninguém levantou a voz para dizer que o progresso não significa forçosamente usinas siderúrgicas e intermináveis fábricas fumegantes, onde são produzidos artigos que as pessoas não podem comprar. Deve haver um equilíbrio saudável entre a agricultura e a indústria, do contrário os armazéns das nações ficarão abarrotados de produtos encalhados, enquanto as cidades passam fome. O desenvolvimento das grandes cidades provocará declínio das zonas agrícolas e, embora nós, nos Estados Unidos, ainda tenhamos uma margem de segurança entre agricultura e indústria, pode bem chegar o momento em que essa margem será fatalmente reduzida.
"Nesse caso, seremos forçados a nos meter em guerras para consumir os nossos produtos e concorrer pelos mercados mundiais. Existe outra alternativa: menos ênfase na simples posse de bens e maior ênfase nos valores espirituais e na terra. O alimento sempre foi a solução dos problemas do homem e continuaria a ser a solução.”
Pela primeira vez na história do mundo, os homens estavam confundindo materialismo com progresso e civilização. Dessa confusão, a catástrofe e a guerra saltariam de um milhão de corações abertos em centenas de Pittsburghs. O rugido da catástrofe já se fazia ouvir em todos os cantos do mundo ocidental.
A revolução industrial poderia bem produzir não só uma revolução na existência física do homem, mas também na sua vida moral e espiritual — com risco para o ser humano.
No dia 11 de novembro de 1871, Stephen DeWitt recebeu uma carta do sr. Guy Gunther, sócio principal de The Gunther Company de Nova Iorque, financistas e corretores de títulos e ações ferroviárias. A firma era de quatro irmãos, todos sagazes, simpáticos e gananciosos. Guy fora amigo de Aaron DeWitt e entre os dois havia um respeito cauteloso pelas qualidades de entrepreneur de cada qual. No entanto, a amizade não atrapalhara uma ou duas tentativas de parte de Guy no sentido de controlar as ações da Interstate Railroad Company, numa certa ocasião de crise, anos antes, quando o dinheiro dos Fielding ainda não aparecera em seu auxílio. Mas Aaron não guardara rancor ao amigo por isso. Era tudo negócio.
Rufus entendera muito bem e nunca tivera qualquer ressentimento contra o poderoso financista de Nova Iorque. Somente Stephen, o pouco prático e honrado, ficara zangado e com nojo. Ele mal tomara conhecimento da presença do sr. Gunther no enterro do pai, o que Rufus e o outro acharam muito divertido, disfarçadamente.
—    O Stephen é... incompreensível — murmurara Guy a Rufus, em certa ocasião, conservando um ar solene.
—    É um idiota — respondera Rufus, com a mesma solenidade.
0 sr. Gunther sorrira de leve e se afastara, e Rufus se perguntara, meio desconcertado, se dissera alguma coisa ridícula.
A carta a Stephen era uma obra-prima de lisonja discreta, admiração e gentileza, e Stephen, para quem a hipocrisia era uma linguagem esotérica, sentiu abrandar-se em si parte daquela afronta. O sr. Gunther iria passar alguns dias em Filadélfia, “visitando velhos amigos". Ele não se encontrava com Rufus e Stephen havia alguns anos e “se perguntava" se os irmãos estariam na cidade durante a visita dele. “Seria simpático tornar a ver os dois e conversar sobre o meu querido amigo Aaron."
Stephen leu e releu a carta várias vezes. Foi depois da sexta leitura que começou a inquietar-se. Pediu ao secretário que lhe desse a “ficha do sr. Guy Gunther".
Rufus tinha lido alguns dos dossiês de homens de negócio e até de conhecidos. Nada era insignificante demais para Stephen anotar, fosse a notícia de que um banqueiro local comprara uma casa nova e melhor, ou que um madeireiro tinha casado a filha com um membro da principal família de Filadélfia, ou a anotação de que certo minerador de carvão perto de Scranton estava “bebendo demais, ao que se saiba". “Ele tem os instintos de um mexeriqueiro de cidade pequena", pensava Rufus, achando graça.
A pasta secreta de Gunther era uma das mais grossas e pesadas e Stephen
dedicou mais de duas horas a estudá-la.
Algumas semanas antes, o sr. Gunther estivera em Chicago, onde a mulher tinha parentes distantes. Esse fato interessante fora mencionado com orgulho no jornal da tarde de Portersville, pois o sr. Gunther não fora amigo de Aaron DeWitt e não comparecera ao enterro do sr. DeWitt? Foi sobre esse último comentário que Stephen passou pelo menos vinte minutos pensando. Depois, pediu ao auxiliar para lhe levar a pasta da Chicago Railroad System.
A Chicago Railroad System, embora não tão antiga e estabelecida quanto a Interstate Railroad Company, era considerada tão “sólida” quanto podia ser uma ferrovia. As ferrovias ainda eram um negócio precário, dependendo de safras e condições gerais da nação. Mas, precário como era, uma queda das ações de ferrovias podia aproximar mais o “pânico” ameaçado, agravando-o tremendamente. Stephen conhecia os diretores da companhia e os admirava como sendo homens íntegros. A Interstate Railroad Company tinha muitas ações da System. A última anotação de Stephen era que a System, dirigida por homens ambiciosos, estava planejando construir uma linha independente do terminal de Pittsburgh até Filadélfia, fazendo o tráfego direto de Chicago a Filadélfia, e possivelmente até Nova Iorque. No entanto, notara Stephen, com alívio, “Não estão em situação financeira de fazer isso, concorrendo conosco, talvez de um modo desastroso. Temos de vigiá-los com atenção. Gunther podería financiá-los? A despeito de uma briga, entre a companhia e Gunther? Não creio; eles o desprezam”. Outra anotação: “Quem os financiaria?”
Stephen continuou a ler. A System não distribuira seus últimos dividendos. A notícia de seus “projetos” seria apenas uma tentativa de promover a confiança do público neles? Claro, outras estradas de ferro também tinham deixado de distribuir não um, mas vários dividendos nos últimos três anos, devido às circunstâncias nacionais. A Interstate Railroad Company e a Chicago Railroad System eram quase as únicas que pagavam dividendos, recentemente.
Stephen continuou a ler, as sobrancelhas finas franzidas. Haveria alguma relação entre a visita de Gunther a Chicago e a Chicago Railroad System? E outra relação entre isso e seu desejo de ver os filhos do “velho e querido amigo”, Aaron DeWitt? Stephen pedira que lhe mandassem os jornais de Chicago e os examinara, procurando algum sinal de que Gunther tivesse estado com o pessoal da System. Não encontrara nada. Mas Stephen continuava preocupado. Alguma coisa estava acontecendo, em algum lugar. Os Gunther não produziam nada, a não ser mercados superampliados para ações ferroviárias ou pânicos. Parecia horrível a Stephen que os piratas financistas pudessem provocar pânicos à vontade, para seu próprio lucro. Ele achava que havia alguma coisa muito errada na estrutura de uma economia, se a alimentação, o salário e abrigo do povo ficavam à mercê dos Gunther da vida.
Stephen largou a pasta e olhou pela janela, para o céu. Alguns pombos arrepiados esvoaçavam por ali. A montanha, como uma faca erguia-se sobre a cidade. Alguns flocos de neve roçavam na janela. Atrás de Stephen, o fogo crepitava na lareira. A tarde começou a escurecer rapidamente.
O primeiro impulso de Stephen foi chamar o irmão para uma consulta e fazer conjeturas com ele sobre esse assunto. Ele agora não escondia nada de Rufus, como fizera antes da morte de Aaron. Já ia pegar a campainha para chamar o secretário e, inexplicavelmente, recuou. Por que não chamar Rufus? Por que não dizer a Rufus que ele, Stephen, tinha de ir já para Chicago, com um plano formulado, envolvendo uma ação ousada? Para ele, era porque as coisas ainda estavam muito vagas.
Stephen começou a recordar tudo o que pretendia fazer. Foi sentindo cada vez mais que havia um grande perigo. Se não fosse Gunther, pensou Stephen. Depois, confessou a si que Gunther era apenas o elemento precipitador, embora desconhecido. Seria preciso tomar alguma providência, com o tempo, quanto à Chicago Railroad System. Ele sabia disso e recuara, na esperança constante de que o inevitável pudesse ser retardado ou eliminado. Agora, chegara o momento.
Por fim, ele tocou a campainha. Seu auxiliar, rapaz sossegado, da maior discrição, entrou. Stephen disse, em voz baixa:
—    Vou sair da cidade, por uns dias. Por favor, vá à estação e me providencie uma passagem para Chicago, em nome de... deixe ver... um tal sr. Dawson. Não quero usar nosso carro particular. Por motivos só meus.
—    Sim, sr. DeWitt — disse o rapaz, respeitosamente. — Mas depois que o senhor estiver no trem, o pessoal vai saber.
Stephen sorriu.
—    É, claro. Mas aí o trem já estará partindo e só após vários dias é que chegará aqui a notícia do local para onde fui. Depois, não terá mais importância. — Ele parou. — Naturalmente, ninguém... e quero dizer ninguém mesmo... deve saber onde estou, enquanto estiver fora. Está entendendo, Gruger?
—    Sim, senhor — disse Gruger, sério.
—    Então, o trem de meia-noite e trinta e dois. Não deve haver quase ninguém por perto. — Ele tamborilou na mesa, com dureza.
E agora, quer pedir ao sr. Rufus para vir aqui um instante, por favor?
Quando Rufus entrou, sorridente, ficou impressionado com a cara e a expressão do irmão. Stephen estava extremamente pálido, os olhos fixos, parados. Ele observou Rufus, andando pelo escritório grande e aquecido, e pensou: “Estou fazendo uma coisa furtiva e insultuosa e não sei o que me leva a isso”. Disse então:
—    Rufus, esta noite pego o trem de meia-noite e vinte para Scranton. Tenho a oportunidade de comprar mais terras com potencial de carvão.
Rufus sentou-se na beira da mesa do irmão e virou a cabeça, alerta.
—    Alguma coisa em que eu deva investir? — perguntou, interessado.
Stephen ficou calado. Ele estava empenhado, pessoalmente, em negociações para o que pareciam ser oitenta hectares muito produtivos. Ele suspirou. Tinha de dar essa oportunidade a Rufus. Não era mais que justo, considerou, com pesar. De algum modo, ele precisava apaziguar sua consciência por aquela traição misteriosa que estava fazendo com o irmão. Ele disse:
—    Creio que sim. Claro, só será explorado daqui a alguns anos, mas posso lhe dizer que não vi possibilidades melhores em lugar algum. Tenho sua permissão para fazer uma opção em seu nome? Poderia me dar um cheque... “Se Stephen achava as possibilidades excelentes, então é porque deviam ser mesmo", pensou Rufus, empolgado. Ele exprimiu sua gratidão, fez um cheque e o deu ao irmão. Depois que ele saiu do escritório, Stephen chamou o assistente e ditou uma carta ao seu advogado em Scranton, anexando o cheque de Rufus. Pensou que o advogado ficaria bastante surpreendido.
Rufus, de volta ao seu escritório, passou algum tempo sem continuar com seu trabalho. Lembrou-se do rosto de Stephen. Estava acontecendo alguma coisa,
que Stephen não lhe contara. Mas o quê? Enquanto Stephen estivesse fora, ele pretendia examinar as pastas em segredo.
Stephen já ia colocar a carta de Guy Gunther na pasta deste, quando parou, novamente acometido por aquela sensação de perigo. Por fim, dobrou a carta e a guardou no bolso. Chamou o assistente e ditou uma carta para o sr. Gunther. Dizia que esperava que o sr. Gunther pudesse ir a Portersville no próximo fim de semana, depois que ele, Stephen, voltasse de negócios urgentes em Fort Wayne. Gruger escreveu a carta sem mudar de expressão e não fez comentários quando Stephen lhe pediu para colocar a cópia na pasta do sr. Gunther.
“O que me fizeram”, pensou Stephen, cansado. “Não sou homem de chicanas e fingimentos e isso me é imposto”.
15
Pela segunda vez, Rufus leu a carta endereçada a ele, de parte do sr. Guy Gunther.
“Estou-lhe escrevendo, meu caro Rufus, porque Stephen me informou que vai passar alguns dias em Fort Wayne. Não mencionou a data de sua volta a Portersville. Convidou-me amavelmente para passar o próximo fim de semana com vocês dois, pois eu lhe havia escrito sobre um assunto importante. O próximo fim de semana será impossível para mim, pois vou estar circulando entre os amigos até a próxima quinta-feira e não posso ir a Portersville antes disso. Quer fazer o favor de informar isso a Stephen, quando ele regressar? Espero que a minha mudança de planos não transtorne a família.”
Rufus largou a carta, pensativo, e fechou a cara. Então, o “verme insignificante” o tinha enganado, propositadamente. Por que Stephen enganara não só a ele, mas também a Guy Gunther? Tal falsidade significava algo de importância imensa, alguma coisa ligada a Guy Gunther. Rufus, que agora tinha acesso a todos os arquivos, pegou o dossiê de Gunther e, tendo aprendido o método de análise minuciosa de Stephen, por mais que escarnecesse dele, sentouse em seu gabinete e percorreu atentamente todos os itens da pasta.
A primeira coisa que notou foi que a carta de Guy Gunther não estava na pasta. Isso tinha tal significado que Rufus focalizou toda a sua atenção sobre cada item, procurando uma pista. Sua atenção ficou mais aguçada quando viu que não existia cópia da dita carta de Stephen a Gunther. O cachorro tinha escondido não só a carta de Gunther a ele, mas também a resposta.
Não havia nada na pasta que despertasse mais as suspeitas de Rufus. Recortes idiotas sobre a recente visita de Gunther a amigos em Chicago! Que importância tinha isso? Rufus anotou os nomes dos amigos e nenhum deles tinha qualquer relação com a Interstate Railroad Company.
Então Rufus prendeu a respiração. A Chicago Railroad System!
A Interstate Railroad Company tinha certos investimentos nessa empresa. Febrilmente, então, Rufus tornou a examinar todas as anotações sobre Gunther. Não mencionavam que Gunther possuísse ações da companhia de Chicago, nem de leve. Se possuísse, Stephen saberia e o teria anotado. Rufus recostou-se na cadeira. A Chicago Railroad System só não tinha distribuído um dividendo. Era uma boa companhia; pretendia expandir-se. Stephen tinha explicado tudo isso ao irmão, recentemente, e comentara sobre a ameaça à Interstate Railroad Company. A ameaça se teria tornado mais iminente?
Claro! E Stephen fora a Chicago. Por que não contara ao irmão? Por que não
confiara nele? O rosto de Rufus ficou vermelho de raiva. Ele não era vice-presidente executivo desse raio de companhia? O que acontecera, no que ele errara, para despertar aquela suspeita em Stephen? Então, estaria perdido todo aquele trabalho lento e aborrecido, de anos a fio? Durante alguns minutos, Rufus ficou mais preocupado com isso do que com o fato de que Stephen o enganara.
Rufus era do tipo que fazia deduções e chegava a conclusões rápidas. Mas aprendera com o irmão a arte de verificar tudo. Portanto, vestiu o sobretudo, pôs o chapéu na cabeça e saiu do escrito rio. Foi logo para a estação da estrada de ferro e procurou o superintendente, que o adorava.
George Hassen acreditava piamente, como todos os outros empregados da companhia, que se não fosse o sr. Rufus não haveria estrada de ferro. Também acreditava que o sr. Rufus tinha “sido lesado”. Era um homem velho e meticuloso, que adorara Aaron e sempre desprezara Stephen, tão calado e reservado.
—    Se aquele ali é um ferroviário, então sou mineiro de carvão! — dizia ele, com desdém. — É uma vergonha, uma vergonha indizível, que o velho Aaron tenha feito isso ao sr. Rufus, um ferroviário nato e com idéias.
Ele recebeu Rufus encantado e lisonjeado, levando-o logo para seu escritório quente e encardido, dando para os trilhos. Rufus sentouse, com o seu jeito jovial e ofereceu ao velho um dos charutos de sua cigarreira de prata. Uma locomotiva estava soltando ruidosos jatos de vapor logo abaixo da janela suja, de modo que nenhum dos dois conseguia falar. E ficaram ali sorrindo amistosamente um para o outro. Por fim, com muito ranger e martelar, a locomotiva seguiu para o pátio de manobras. Agora só grandes flocos de neve molhados batiam contra a vidraça.
—    Não o tenho visto, sr. Rufus — disse Hassen, fumando o charuto com prazer, depois que Rufus o acendeu para ele. — A gente sente falta do senhor por aqui.
—    Tenho trabalho demais no escritório, George — respondeu Rufus, em tom de desculpa. — Você sabe como gosto de conversar com vocês. Por falar nisso, como vai a mão do Jed Thompson?
—    Bom, o pino de engate lhe custou dois dedos, mas isso é assim mesmo, sr. Rufus. Os rapazes mais ou menos esperam isso, é uma espécie de insígnia do ferroviário. Dei-lhe os cinquenta dólares e ele ficou bem feliz. Ficou animado. Disse que tinha certeza de que o sr. Rufe não ia se esquecer dele.
Rufus pensou, achando graça, que Stephen tinha mandado dar quinhentos dólares a Jed Thompson, pagara as despesas médicas e dera ordem para que ele continuasse a receber o salário depois do acidente. Mas o superintendente, e sem dúvida Jed Thompson também, ou não tinham feito caso dessa generosidade, ou desconfiavam, erradamente, que era o sr. Rufus quem estava “por trás daquilo”. Rufus se inclinava para esta última hipótese com toda a razão.
—    Nunca esqueci nenhum dos nossos rapazes — disse Rufus, num tom profundo, de modo que comoveu o sr. Hassen e seus olhos ficaram turvos.
Não era preciso dinheiro, nem compaixão, nem misericórdia ou brandura para fazer esses cães lamberem as mãos da gente, pensou Rufus. Bastava um sorriso simpático, uma ou duas mentiras, uma boa gargalhada. Stephen era tolo, burro. Seus dólares, a compaixão e o grande amor pela humanidade não despertavam mais do que ódio e desprezo.
—    Como vão as coisas aqui e no pátio, George? — perguntou Rufus. —
Todos satisfeitos, confortáveis?
—    Sim, senhor, sim, senhor! — exclamou o velho, entusiasmado. — O senhor não vai ter greve aqui, sr. Rufe. Nada de problemas trabalhistas, enquanto estiver aqui! — Ele franziu a testa e se debruçou. — Enquanto o senhor estiver aqui, sr. Rufe — acrescentou, com expressão significativa.
Os dois fumavam numa atmosfera de afeição e estima mútua.
Então, Rufus disse:
—    É mesmo, o Steve deixou uma pasta no trem, há dias... Quando foi para Chicago?
Fazia parte de sua democracia espúria sempre se referir ao irmão e aos diretores da companhia pelo nome de batismo, mesmo falando com os funcionários mais humildes.
—    Uma pasta? Não, sr. Rufe. Ele perdeu uma pasta?
Rufus sacudiu a cabeça, sorrindo. Disse, vagamente:
—    Bom, ele não disse que ia levá-la, se bem que contivesse documentos valiosos. Só que não a vi no escritório e fiquei preocupado. Ele pegou o trem das vinte e uma e trinta e cinco, para fazer baldeação em Filadélfia, ou o da meia-noite e trinta e dois? Talvez a pasta tivesse ficado no outro trem.
—    O sr. Stephen pegou o da meia-noite e trinta e dois — disse Hassen. — Eu nem sabia, se bem que estivesse aqui, nessa hora.
Mas um dos homens me disse. Ele ficou espantado. Não tinha reserva para o sr. Stephen e ele não pediu carro particular. — Ele acrescentou: — Não tinha pasta nenhuma, sr. Rufe. Deve estar em casa, em algum lugar.
Rufus fez uma cara de impaciência.
—    Vou ter de procurar de novo.
Ele estendeu a mão, com seu jeito franco e simpático, mandou lembranças para Mollie, mulher de Hassen, e saiu da estação.
Então, estava certo. Stephen se encontrava em Chicago. E tudo tinha a ver com a Chicago Railroad System e Guy Gunther.
Haveria pista para ele, nisso? O momento de agir teria chegado? Guy Gunther fora enganado por Stephen, de modo que devia ser uma ameaça formidável. E se ele, Rufus, enviasse um telegrama a Gunther, um telegrama amistoso, exprimindo seu prazer com a próxima visita e depois dizendo casualmente que Stephen estava em Chicago e não em Fort Wayne? Isso faria com que Gunther fosse imediatamente a Portersville, entendendo a insinuação delicada? Então, ele e Gunther poderiam tramar alguma coisa imensamente vantajosa para Rufus DeWitt? Era uma ideia empolgante e tinha seu colorido.
Mas Rufus aprendera dolorosamente com Stephen que idéias efervescentes, baseadas apenas na intuição e no desejo de uma ação espetacular, eram não apenas tolas, mas perigosas. Rufus refletiu também que Gunther era um homem muito sagaz e que veria logo, depois de algumas perguntas espertas, que Rufus não sabia o propósito de Stephen na sua ida a Chicago. Gunther, como Stephen, lidava com fatos concretos. A opinião de Gunther sobre ele não melhoraria, se soubesse que Stephen deixara-o ignorando os fatos.
Sentado agora na carruagem, Rufus tornou a se preocupar com algum possível deslize que tivesse despertado a desconfiança do irmão. Ele repassou mentalmente todas as ocasiões em que houvera algum perigo. Não se lembrava de jamais ter sido indiscreto. Mas os homens como Stephen farejam a falsidade, inconscientemente.
A neve chegara cedo, naquele ano. Rufus não conseguia ver, através das janelas da carruagem, que estavam tapadas por uma brancura molhada. À frente, as luzes da carruagem formavam um túnel dourado e incerto no meio dos flocos rodopiantes e uivantes. Rufus sentia o frio da noite através das janelas do veículo e da manta de pele que lhe cobria os joelhos. Pensou com prazer antecipado no fogo e um copo de uísque junto da lareira e o jantar excelente que a nova cozinheira do irmão estava preparando. Depois, claro, tinha as crianças, as duas meninas de cinco anos que se agarrariam a ele, Cornélia gritando e pedindo para ser a primeira a ser carregada no colo e Laura esperando, os olhos cinzentos brilhando no rostinho pálido. Rufus amava sinceramente as crianças e a sua amargura contra a mulher invariavelmente aumentava quando pensava que ela o privara de mais filhos. Havia ocasiões em que lamentava não ter aceito a sugestão dela de se divorciarem.
Stephen devia chegar naquela noite, ou na seguinte. “Se essa neve continuar, os trens vão se atrasar muito", pensou Rufus, impaciente. Ele sentia o balançar da carruagem, o vento açoitando as vidraças. Seus pés estavam ficando frios e ele não gostava de viajar assim. Pegou um charuto do bolso e o acendeu; o aroma forte o reconfortou e a luzinha iluminou o escuro.
Ele continuou a espiar pela janela, de vez em quando, para a noite de tormenta. E foi com profunda sensação de alívio que afinal avistou a casa, ao alto, no flanco da montanha, as luzes amareladas jorrando na noite. Dentro de alguns minutos a carruagem entrou no círculo da entrada e os cavalos exaustos apressaram o trote. Rufus, sem esperar pelo cocheiro, abriu a porta ele mesmo, tão ansioso estava por entrar em casa, seguro, longe das trevas e do vazio.
Foi parte de seu instinto teatral que o fez entregar as chaves ao irmão, com ritual, pouco depois da morte de Aaron. Stephen ficara constrangido e aflito e Rufus o observara com prazer maldoso.
—    Francamente — dissera Rufus, sabendo que Stephen perceberaia a mentira “valente” — prefiro que me abram a porta. É mais distinto, sabe? Além disso, para que servem os empregados?
Portanto, nessa noite, Rufus tocou a campainha, como sempre, e ficou esperando. A porta abriu-se quase imediatamente e Seth, o mordomo, o fez entrar, com um sorriso preocupado.
—    O senhor estava atrasado, sr. Rufus, estávamos todos preocupados.
Rufus olhou em volta do lindo hall, com prazer. Para um homem que amava a mudança, movimento e mobilidade, ele era estranhamente suscetível ao imutável. No negócio de dirigir uma estrada de ferro, era “progressista”. No negócio de viver, era feliz em ser conservador. Havia gente que estava trocando os lustres de velas por globos de gás reluzentes, mas Rufus preferia o lustre de velas naquele hall de lambris brancos e dourados, com suas chamas áureas. Adorava os móveis claros e delicados, o fogo na pequena lareira branca, os tapetes Aubusson, o perfume das flores, da lenha de macieira ardendo e da cera.
Seth ajudou-o a tirar o chapéu-coco, o sobretudo de gola de pele e as luvas. Ele parou um instante, para esfregar as mãos junto da lareira, depois, sorrindo, entrou no salão e olhou em volta, com um ar de expectativa. Como esperara, houve uma corrida de passinhos infantis em sua direção e o grito rouco de
Cornélia. Duas menininhas, Cornélia na frente, correram para ele, os braços estendidos. Cornélia toda de vermelho e dourado, brilhante, rosada, de covinhas, rindo, e Laura, pequenina, pálida e sorrindo delicadamente, com os cachos escuros nos ombros, de veludo azul. Foi Laura quem Rufus pegou primeiro, embora fosse a última a alcançá-lo. E ele a apertou muito, sentindo os ossos frágeis através do veludo e os bracinhos magros se agarrando a ele. Talvez ele a amasse quase tanto quanto amava a filha, porque lhe tinha salvo a vida, ou talvez porque, em tantos sentidos, ela se parecesse com Lydia, em seriedade, sorriso e brilho sossegado dos olhos. Ele a beijou com ternura, largou-a no chão e depois pegou a filhinha alta e pesada, que o dominava animadamente. Os cachos espessos quase o sufocavam, os braços fortes o esganavam. Protestanto, rindo, ele a afastou um pouco, olhando com carinho para aquele rosto infantil redondo e muito colorido com os olhos castanhos radiosos e a boca grande e rubra. Uma beleza, sua filha, uma beleza ardente, robusta, já encantadora, magnética e mimada, mas deliciosa!
Ele largou Cornélia no chão, pegou cada uma pela mão e entrou na sala. Sophia costurava junto ao fogo, séria. Lydia estava lendo. Ambas olharam para ele. Sophia com um abrandamento visível no rosto duro e Lydia com seu sorriso enigmático. Ambas lhe ofereceram a face para ele beijar. Sophia agarrou-se um instante ao braço dele, apertando-o.
— Chegou tarde, filho — comentou ela, com a voz áspera.
Rufus ocupou o sofá amarelo ao lado do fogo e as duas meninas sentaram-se ao lado dele, o mais perto possível, Cornélia quase esparramada sobre seus joelhos, Laura contentando-se em se encostar em seu ombro. Ele afagou cada uma das cabecinhas, satisfeito e depois falou sobre a tempestade com as mulheres.
Sophia escutou seus comentários agradáveis como se cada palavra tivesse uma importância absorvente. Lydia prestou uma atenção educada. O mordomo apareceu com vinho para as senhoras e uísque para Rufus. O fogo grande crepitava na lareira e o vento martelava as janelas. A luz dos lampiões lançava poças douradas e sombras no tapete, nas paredes e no teto. Rufus sentia-se quase em paz. Ora, se ao menos Lydia fosse sua esposa de verdade e houvesse mais filhos, cujos rostos refletissem a luz do fogo e das velas, seguras ali, dentro daquelas paredes lindas e fortes, protegidas da noite lá fora! Rufus não era homem de se satisfazer com a metade; tinha vitalidade demais para os conchavos.
Aos poucos, embora ele sorrisse para Cornélia e Laura e conversasse com a mãe e a mulher, seus olhos ficaram pensativos. Por uma ou duas vezes eles pousaram em Lydia e ele pensou: “Eu devia ter deixado que ela se divorciasse de mim".
Como se sentisse o pensamento dele, Lydia levantou os olhos, o rosto toldado pela compaixão e tristeza. Ela se virou para a lareira e disse consigo: “Coitado do Rufus. Tem tanta vida e tanto poder e só exprimiu isso aqui em uma filhinha. Eu devia ter ido embora; ele teria esquecido de mim e nesta casa agora haveria outra mulher, uma mulher tão forte e cheia de animação quanto ele, que lhe daria um lar cheio de filhos, uma mulher bem alegre e inteiramente sem consciência, como ele".
"Por que fiquei? Eu podia ter voltado para a casa de meus pais e passado a vida, sob aquelas árvores sonhadoras e aquele encantamento eterno. Talvez eu tenha ficado porque não poderia levar Cornélia comigo. Talvez tenha sido por causa de Laura, que ficaria tão perdida aqui quanto o pai. Ou talvez”, e isso a fez ter um leve sobressalto, cheio de assombro, “eu tenha ficado para ajudar o
próprio Rufus.”
—    O que Stephen pode estar fazendo em Scranton por tanto tempo? — Sophia estava perguntando, com desdém. — Ele está sempre comprando terras sem valor lá e falando de carvão. Enquanto isso, as terras não são exploradas e ele fica pagando os impostos. Ele nunca entendeu dessas coisas.
Rufus deu uma risada breve.
—    Não subestime o velho Steve. Um dia desses aqueles hectares de carvão vão ser lucrativos. É só uma questão de tempo.
—    Se não fosse você, filho, o "tempo” levaria todos os nossos lucros e a estrada de ferro iria à falência! — exclamou Sophia, com um movimento de cabeça.
Rufus estava aborrecido. Os comentários da mãe não variavam nunca. Ele estava farto dessas queixas maçantes contra o irmão e cansado de responder a elas com risadas artificiais. Ele bebericou o uísque, brincou com os cachinhos ruivos e fortes de sua fílhinha ruidosa, sorriu para Laura, quietinha. Muitas vezes achava os adultos cansativos e as crianças sempre o encantavam. Desejou que a mãe se calasse.
Lydia estava examinando o marido, disfarçadamente. Ele poderia estar bocejando, estar sinceramente enfadado com a mãe, mas havia nele algo de oculto e alerta. Por baixo dos bocejos, seu carinho com as crianças, sua desconcentração, alguma coisa se movia, inquieta. Uma sensação de alarme, vaga mas conhecida, a dominou.
Rufus estava jogando para trás a cabeça leonina, rindo de algum dito de Cornélia. Como a menina naquela hora não estava querendo ser engraçada, seu rosto bonito assumiu uma expressão feroz e ela começou a bater no peito do pai, com os punhozinhos rosados. Isso fez Rufus rir mais ainda e ele a levantou bem alto no ar, onde ela ficou esperneando e dando socos, impotente, e afinal se desmanchou em gritos de alegria. Ele a abaixou e abraçou, sorrindo para a mãe por cima dos cachos despenteados.
—    A danadinha — disse ele, com carinho. — Ela inventa as mentiras mais adoráveis e quando a olho, fica furiosa. Mas só por um instante.
Lydia falou, com a voz áspera:

—    Cornélia, pare de rir assim. Vai passar mal.
A menina se aquietou logo, mas sorriu para a mãe com amor e Lydia não pôde deixar de sorrir também. Cornélia então saltou do colo do pai e correu para Lydia, empoleirando-se no colo dela. Lydia beijou-a, repreendendo-a. Era um quadro encantador, a mulher morena e magra com seu vestido de veludo marrom, e a menina forte, toda acobreada, de seda vermelha. Os rostos juntos, um fino e pálido, o outro irradiando luz. Rufus, sem ciúmes, ficou observandoas, contente. Mas Sophia exclamou:
—    Cornélia! Venha aqui com a vovó.
Cornélia, mesmo aos cinco anos e meio, era diplomata demais para não obedecer. Podia nutrir uma aversão secreta pela avó e não gostar de ser tocada por aquelas mãos duras, mas desceu logo do colo da mãe e correu para Sophia, que a abraçou avidamente com os braços ossudos. Cornélia nunca se esqueceu do cheiro da avó, uma mistura de cânfora, hortelã e carne velha.
Ouviu-se a porta do hall abrir-se, a chave girando, e depois uma rajada de
ar frio entrou pelo salão. Rufus endireitou-se, alerta.
—    Deve ser o Steve — disse ele e levantou-se, esquecendo-se das crianças. Cornélia saltou dos braços de Sophia e gritou, com voz estridente:
—    Tio Steve! — e correu para o hall, como uma imagenzinha de chamas. Laura, com um leve sorriso, desceu do sofá e seguiu Cornélia, pausadamente, calada.
Um véu frio passou pela fisionomia de Lydia e ela tomou a pegar o livro. Sophia e Rufus trocaram olhares, maquinalmente significativos, como faziam sempre que Stephen estava próximo.
Stephen, abatido e cinzento, sorriu para as meninas que se aproximavam dele, uma com um pedido alto e ousado por um beijo imediato, a outra com a mãozinha estendida. Ele entrou na sala, abatido, cansado e curvo. A mãe olhou para ele, truculenta, e murmurou um cumprimento. Lydia cumprimentou-o educadamente. Mas Rufus aproximou-se dele com um vasto sorriso, estendendo a mão grande e quente, que Stephen apertou, sem ânimo. As meninas se agarraram aos joelhos de Stephen, olhando para ele com muita atenção.
—    Bem-vindo ao lar — disse Rufus, amável. — Como foram as coisas em Scranton? Comprou aquelas terras para mim?
As feições cansadas de Stephen pareceram ficar ainda mais cansadas. Mas ele fixou os olhos no irmão, sombrio.
—    Mandei seu cheque para o agente em Scranton, Rufus. Você tem a opção.
Rufus ergueu as sobrancelhas ruivas e esperou.
Stephen suspirou.
—    Sabe, afinal não fui a Scranton. Fui a Chicago. Não adiantava lhe dizer antes, pois o que eu desconfiava poderia ser ilusão Mas não era. É verdade. Depois do jantar, Rufus, temos de ir para a biblioteca, para uma longa conversa.
Rufus não sabia se devia ficar aliviado ou decepcionado, agora que o irmão lhe contara o verdadeiro destino. Assim, limitou-se a sorrir. Stephen sorriu também, uma sombra triste de sorriso.
—    Não deixei minha pasta no trem, Rufus — disse ele. Então Rufus viu, confuso e humilhado, os olhos de Stephen chegarem a bailar um pouco, como que com uma alegria e compreensão pesarosas.
Os lampiões ficaram acesos na biblioteca até bem depois da meia-noite. Stephen tinha parado de falar; estava passando as mãos, cansado, pelo rosto extenuado.
Então, é isso — disse ele, sem animação.
Rufus, que tinha escutado sem dar uma palavra, ficou olhando para o fogo. Sentia uma grande satisfação e empolgação. Pensou: Eu o subestimei, durante todos esses anos. Vai ser muito difícil derrubá-lo”.
16
Rufus, que tinha aprendido muita coisa com Stephen, por vezes achava o controle dele frustrante. O golpe ousado, o discernimento, o drama fugaz de que ele tanto gostava e que faziam parte de sua natureza, por vezes tinham de se subordinar às cifras e declarações sossegadas, que eram não só seguras, como lucrativas. A aventura tinha o seu lugar, mas os fatos eram irrefutáveis, embora aborrecidos. No entanto, Rufus tinha de reconhecer que quando Stephen agia,
havia mais peso e poder por trás de sua tranquilidade, até mesmo mais drama, do que nas suas fanfarras teatrais, impelidas pelo vento.
Assim é que Rufus, sempre pronto com a palavra espetacular, o gesto eloquente, ficou quase calado durante grande parte da conversa entre Stephen e Guy Gunther.
O financista chegara num dia de novembro de uma neve brilhante e ventanias e disse, ao ser recebido em casa dos dois irmãos: Eu os felicito por sua decisão de morar aqui e não em Filadélfia ou Nova Iorque. Nunca vi um tempo tão magnífico.
Ele lançou um sorriso de aprovação a Stephen e um mais cordial a Rufus. Dirigiu-se a uma das janelas do salão e admirou em silêncio as montanhas azuis, o céu luminoso, o solo branco e o rio turquesa sob sua camada de gelo. Intimamente, disse consigo que aquela tranquilidade estática e a imobilidade o deixariam louco.
—    Vamos almoçar, sr. Gunther? — perguntou Stephen, com sua voz baixa e sem expressão.
O sr. Gunther virou-se da janela, mas olhou para Rufus, e o que viu lhe agradou. Alguns anos antes, Rufus teria ido com ele para a janela e lhe teria feito uma descrição da cena, com termos extravagantes. O novo Rufus limitou-se a aguardar ao lado do irmão, sorrindo com simpatia; mas estava observando. "Sempre observando", pensou o sr. Gunther, com admiração. "Ele aprendeu muito depressa e isso demonstra mobilidade mental. Ele está se tornando um rapaz muito perigoso e estou precisando de homens perigosos que não sejam só fogos de artifícios e bolhas coloridas.” O sr. Gun ther juntou-se aos dois irmãos, deu os braços a eles e sorriu-lhes, di zendo amavelmente:
—    Almoço, claro.
Ele era um homem baixo e redondo, com um rosto cheio e be névolo. Embora tivesse apenas quarenta e oito anos, já estava quase completamente calvo. O que lhe restava de cabelo era castanho-claro. Os olhos, realmente bonitos, eram de um azul inocente, sem astú cia ou malícia, e abaixo o nariz era largo e rechonchudo e a boca cheia e sorridente. Todo o seu aspecto, a despeito das roupas de boa casimira preta, a gravata de seda preta fixada por um alfinete de ou ro conservador, em forma de laço fixo e a camisa de linho branca lisa, sugeria um querubim espiritual. Tinha modos modestos e en cantadores — cuidadosamente cultivados — de uma animação e candura espontâneas, e dirigia seus negócios com humor e um ar falso de criatura razoável e franca...
À mesa de almoço, sentado entre Rufus e Stephen (as senhoras não estavam presentes), o sr. Gunther conversou afavelmente sobre a mulher e a família, contou anedotas tão sutilmente irreverentes que até mesmo Stephen, tão abatido, sorriu, e contou histórias, sobre Aaron que fizeram Rufus rir às gargalhadas. Tudo isso fazia parte da encenação prévia de afabilidade do sr. Gunther, antes de alguma discussão, e era feito com tanta habilidade que poucos desconfiavam de que fosse proposital. Stephen era desses poucos e o sr. Gunther não o ignorava, admirando-o por isso.
Depois do almoço excelente, que o sr. Gunther apreciou devidamente, os três cavalheiros foram para a biblioteca. Stephen tinha alegrado o aposento com cortinas de veludo rosa, lareiras e alguns móveis bonitos. E como ele a usava muito, a sala não era mais mofada nem lúgubre. As janelas altas e largas pareciam quadros colocados nas paredes forradas de livros, muito vivas com a paisagem de inverno. Seth, o mordomo, tinha preparado o conhaque e estava ali a postos para servir aos senhores. Um fogo forte crepitava na lareira. O sr. Gunther, apreciando sinceramente o fato de ter sido servido com requintes naquele "sertão dos infernos”, instalou-se junto da lareira e bebericou o conhaque excelente, sorrindo para seus anfitriões. "Muito bem”, pensou: "estamos abrandados”. Ele gostava de brandura, pois os negócios efetuados nesse ambiente raramente se tornavam ruidosos ou irritados.
Ele notou que Stephen bebeu pouco conhaque e lembrou-se de que não tinha bebido uísque antes do almoço e mal tocara no vinho à mesa. Rufus estava com os olhos meio aguados, mas Gunther ficou satisfeito ao ver que o irmão mais moço não se tornara íntimo ou indiscreto, como já acontecera antes, sob a influência do álcool. “Positivamente, vou poder me utilizar dele no futuro, para nossa • vantagem mútua”, pensou Gunther.
Como estava Fort Wayne, Steve? — indagou Gunther, fumando um bom charuto que Rufus lhe dera. Suas botinas pretas reluziam no misto de sol e luz do fogo.
Rufus ficou observando o irmão. Sem corar, nem se perturbar, Stephen disse, baixinho, com calma:
—    Sinto muito, sr. Gunther, mudei de ideia. — Ele olhou para o conhaque no copo. — Fui para Chicago, em vez de Fort Wayne.
Era assim que se fazia, pensou Rufus. Nada de declarações teatrais. Aí, o efeito era real. O sr. Gunther estava colocando o copo de conhaque na mesinha, com cuidado; todos os seus gestos eram lentos e medidos. E ele agora estava olhando para Stephen com uma leve surpresa. Os olhos muito azuis estavam levemente apertados e o sorriso que restava neles parecia o reflexo do sol no gelo da montanha.
—    Chicago? E como estava o tempo lá?
—    Muito mau. — Stephen fez uma descrição meio banal. Falava sem animação e aparentemente sem interesse. Mas o corpo redondo e rechonchudo do sr. Gunther tinha ficado tenso. Stephen continou: —Já que estava lá, fui visitar os meus amigos da Chicago Railroad System.
—    Uma empresa muito ambiciosa — comentou o sr. Gunther, dando uma risada. — Por acaso lhe falaram no plano deles, ainda nebuloso, de construir uma linha independente do terminal de Pittsburgh a Filadélfia, levando todo o tráfego direto de Chicago a Filadélfia, e provavelmente a Nova Iorque?
—    Falaram, sim — disse Stephen, tranquilo.
0 sr. Gunther sorriu, com tolerância.
—    E lhe revelaram como isso seria prejudicial para a sua ferrovia?
Stephen suspirou.
—    Eu não precisava da revelação deles. Já sabia.
Um silêncio envolveu a biblioteca e durante esse tempo o sr. Gunther virou-se para Rufus, que estava muito sério e cujos olhos castanhos se recusaram a encontrar o olhar do outro.
O sr. Gunther era sempre delicado em seus métodos. Por fim, repetiu o suspiro de Stephen. Rufus achou graça, mas continuou sério.
—    Eu detestaria ver a companhia do meu velho amigo ser... prejudicada —
murmurou o sr. Gunther, num tom pesaroso. — Posso fazer alguma coisa, Stephen?
Stephen ficou uns segundos sem falar. Agora havia certo rubor em suas faces cavadas. Ele olhou para o sr. Gunther com frieza e firmeza.
—    Não, senhor — disse e todas as suas palavras eram espaçadas regularmente — não há nada que o senhor possa fazer. Agora.
“Excelente”, pensou Rufus. O sr. Gunther tinha perdido um pouco do seu colorido infantil; a expressão afável estava um pouco fixa demais.
—    Bem — disse o sr. Gunther, estendendo as mãos gorduchas e rosadas — fico satisfeito que não precise de minha ajuda, Steve.
Ele esperou, mas Stephen não respondeu nada.
“0 velho Steve deixou uma brecha para ele se revelar”, pensou Rufus. “Se ele não fizer isso, esse encontro acabará com Guy no escuro e sua visita não resolverá coisa alguma. O próximo passo cabe a ele: é pegar ou largar e ele sabe disso.”
0 sr. Gunther estava resolvendo, rapidamente. Não gostava de “chegar ao assunto”, ele mesmo. Preferia forçar os outros a isso, por indiretas, sugestões. Mas Stephen, aparentemente, não seria forçado.
Assim o sr. Gunther disse, com uma bondade franca:
—    Você sempre foi amigo do pessoal da Chicago Railroad System. Pode me dizer... confidencialmente, claro... se eles vão realizar seus planos?
—    Vão, sim, sr. Gunther — respondeu Stephen, com certa dureza.
Rufus começou a se divertir. Afinal, não ia ser inteiramente privado de um espetáculo. 0 financista debruçou-se sobre a protuberância de sua barriga e as feições de querubim se endureceram e toda sua ganância apareceu avidamente em seus olhos.
—    E... Steve... você não pode impedi-los?
—    Não posso, não.
Steve estava começando a se mostrar inquieto e o sr. Gunther o contemplou num silêncio sagaz. “Será que o subestimei?”, pensou. “Será tão inteligente e previdente quanto creio?” O sr. Gunther virou a cabeça para Rufus, devagar, e viu que este tinha assumido um ar sóbrio. Com cuidado, o sr. Gunther introduziu no ambiente o seu sexto sentido: estava acontecendo alguma coisa, e ele não estava gostando, embora não soubesse o que era.
Ele se recostou na poltrona e parecia pensar. Fumou com calma. Stephen estava olhando para as botinas, como que inteiramente desinteressado. Então o sr. Gunther começou a dar uma boa risada.
—    Podemos impedi-los, ou pelo menos, retardá-los, se você quiser, Steve — disse ele, numa voz que estava quase ronronando. — E ganhar um bocado de dinheiro nisso.
—    Como? — perguntou Stephen. Seu rubor voltara. Não era homem para esse jogo de gato e rato, nem mesmo com Gunther. Aquele amolecimento doentio, tão seu conhecido, começou a roer as bordas de sua aversão pelo financista. Ele nunca chegaria a aprender a levar a melhor sobre os outros homens, gostando deles ou não; ele não sentia o menor prazer em destruir alguém, mesmo um inimigo. Havia sempre aquela sua maldita compaixão despejando-se como calda
morna sobre suas resoluções mais sérias, disfarçando suas bordas férreas num melado enjoativo.
Antes que o sr. Gunther pudesse responder à sua breve pergunta, Stephen largou o copo de conhaque com tanta pressa que o líquido derramou-se em sua mão. Ele a enxugou e sua voz estava desusadamente rápida e trêmula:
—    Sr. Gunther, o senhor, como muitos outros, faz um jogo. Faz negócios, mas gosta do bote rápido, o prazer da caçada, a manipulação impressionante. Eu não sou assim. Portanto, ao meu modo, que o senhor sem dúvida considera monótono, vou lhe contar tudo o que está querendo saber.
O sr. Gunther não se espantou, pois conhecia Stephen muito bem. Mas achou graça no que viu naqueles olhos atormentados, agora voltados para ele, tão aflitos. Era compaixão por ele, Guy Gunther, porque Stephen DeWitt estava a ponto de “magoá-lo".
—    O que quero saber, Steve? Confesso que não estou entendendo.
—    Entende, sim, sr. Gunther, e é por isso que está aqui — disse Stephen. Estava zangado com o que vira nos olhos do sr. Gunther, magoado. Era a velha história: ele demonstrava compaixão ou misericórdia e isso era recebido com ridículo e desdém. “Eu nunca aprendo", pensou.
—    Há algum tempo o senhor foi a Chicago, sr. Gunther — continuou Stephen, falando monotonamente, de modo que em sua voz não aparecesse qualquer emoção. — Foi com um propósito: descobrir tudo o que pudesse sobre a Chicago Railroad System e conversar com os seus amigos sobre essa estrada e urdir um plano contra um grupo de homens honrados. Depois o senhor viu que precisava de nós, a Interstate Railroad Company. Deu-se conta de que tínhamos interesses na System, pois sabia de nosso projeto de lançar uma linha paralela de Pittsburgh a Chicago, concorrendo com a Chicago System. Sabia que estávamos em situação financeira muito melhor do que os nossos amigos de Chicago.
Muito lentamente, à medida que Stephen ia falando, o sr. Gunther forçou-se a se descontrair em sua poltrona, se bem que a raiva e a consternação se estivessem acumulando. Ele conseguiu dar um de seus sorrisos angelicais, deixando que se espalhasse numa luz terna em seu rosto redondo. Depois, o sorriso apareceu em seus olhos, que brilharam.
—    Supondo que tudo isso seja verdade, Steve — disse ele, com brandura. — Como é que você sabia?
—    Tenho dossiê sobre todos, sr. Gunther. — A voz de Stephen estava cheia de um pesar duro e ele então olhou. — O seu dossiê é muito detalhado e extenso. Jamais confiei no senhor.
—    Sinto muito, Steve — disse o sr. Gunther, num tom de muito pesar. — Você nunca compreendeu as relações entre mim e seu pai. Pensei que afinal tivesse percebido, mas parece que me enganei.
“Ele está pondo Steve na defensiva", pensou Rufus, achando graça. Viu que os dedos de Stephen estavam cerrados e que ele suava, sofrendo com o que estava fazendo com o sr. Gunther. Mas Stephen, quando tornou a falar, o fez com calma, de modo compacto:
—    O senhor não me engana, sr. Gunther. Não pode me fazer sentir culpado. Sinto que me obrigue a falar assim.
O sr. Gunther bebericou o conhaque. Por sobre a borda do cálice, seus olhos
estavam pensativos.
—    Continue com a sua... explicação — sugeriu, com gentileza.
—    Não estou “explicando", sr. Gunther. Estou apenas procurando lhe poupar tempo, para o senhor não cometer o erro de me seguir. O senhor precisava de nós; sabia que tínhamos interesse na System; sabia que a nova linha projetada pela System nos prejudicaria. Portanto, o senhor e sua firma pensaram que concordaríamos com o seu plano cuidadoso de fazer baixar as ações da System e depois comprá-las e adquirir controle dessa estrada. Depois, conversando com seus amigos de Chicago, o senhor falou em financiar uma linha independente de Pittsburgh para leste. A essa altura, pensou, a System estaria nas mãos de sua firma, e a linha independente arruinaria a nossa companhia. Talvez o senhor tencionasse até assumir o controle de nossa firma. Tenho certeza disso.
Se o sr. Gunther sentiu horror, desalento, fúria e derrota não revelou nada disso. Continuou a sorrir para Stephen, como que para um irmão caçula precoce, que tivesse despertado sua admiração com um truque especialmente mágico.
—    Não estou admitindo coisa alguma, meu caro rapaz — disse ele. — Só estou interessado nas suas conjeturas.
—    Não são conjeturas, senhor. — Contra sua vontade, a voz de Stephen estava ficando um tanto alta e veemente. — São fatos e o senhor sabe disso. Devo continuar? Fui a Chicago para ver se conseguia impedir o que o senhor tinha em mente. Não estava tentando levar a melhor no seu jogo. Estava interessado em manter a
System fora de suas mãos, para evitar a ruína dos acionistas, o que nunca o preocupou, em momento algum. Estava interessado em manter a companhia solvente, pois são meus amigos; e a sua linha projetada, se bem que concorresse com a nossa, não fora planejada por ganância, mas num espírito de concorrência honesto. Naturalmente, eu estava alarmado com a ameaça à prosperidade de nossa companhia, de modo que fiz um acordo muito vantajoso com a System.
—    Foi mesmo? — perguntou o sr. Gunther, baixinho.
—    Foi, senhor. Diante do fato de que a System estava pretendendo concorrer conosco aberta e honestamente, porém para nossa desvantagem, levei à atenção deles o fato de que o senhor estava planejando arruiná-los e pedi ao presidente para convocar o conselho diretor. Expus o assunto claramente. Pedi que nos dessem uma concessão de novecentos e noventa e nove anos sobre a faixa da estrada deles, garantindo pagar as dívidas da linha e um aluguel. Se eles não concordassem e permanecessem cegos à sua trama, teríamos de construir uma linha paralela de Pittsburgh a Chicago, em defesa própria. — Ele parou. — Consegui a concessão e todos os acordos estão na minha pasta.
Ele se recostou, enjoado e exausto, e passou a olhar por uma das janelas da biblioteca. Estava ameaçando uma nova tempestade de neve, nuvens escuras se amontoavam nas montanhas. A terra fiou despida e plana, sob um céu cor de limão.
O sr. Gunther ficou calado. Já tivera algumas derrotas na vida, mas nunca uma tão final, tão completa, tão humilhante. Aquele caipira manobrara os negócios com um toque de gênio, que, o sr. Gunther sabia, exigia não só imaginação e audácia, como também um poder extraordinário. Até que ponto Rufus estaria metido nisso?
O esperto sr. Gunther disse consigo: “Rufus não sabia de nada. Ele teria
sido a favor da minha ideia; teria visto logo as vantagens mútuas de uma aliança comigo. A visão de longo alcance não está na natureza dele. Isso foi feito por
Steve, e só pelo Steve”.
Sua raiva e humilhação começavam a lhe dar uma violenta dor de cabeça e ele sentia-se um pouco preocupado. O almoço parecia uma massa de pedras em seu estômago. Mas seu rosto continuava bondoso e franco e os olhos continuavam a sorrir.
—    A tese sobre minhas tramas diabólicas é muito interessante, Steve. Gosto do modo como expõe as “tramas”. Naturalmente, não pretendo negar nem reconhecer toda essa história. Mas estou um pouco lisonjeado com a sua crença na minha onisciência. Permita que o felicite por um negócio muito bem feito. O seu pai não poderia ter feito melhor.
Stephen levantou-se de repente.
—    Acho que vou ter de fazer um pedido mal-educado. Não consigo dormir direito nos trens. Estou muito cansado. Tenho de me deitar um pouco e vou pedir que o senhor me dê licença. Podemos nos encontrar ao jantar?
—    Claro, meu filho — respondeu o sr. Gunther, solícito. Ele se levantou e sorriu para Stephen com uma afeição melosa. — Está com dor de cabeça? Tenho uns comprimidos. Sei que essas sessões de negócios por vezes são cansativas. Durma bem. E, de noite, vou apreciar um jantar agradável com as senhoras.
Ele e Rufus ficaram olhando, calados, enquanto Stephen saía da biblioteca com seu andar desengonçado. Depois, o sr. Gunther tornou a sentar-se na poltrona e continuou a fumar. Rufus ficou de pé, diante da lareira, parecendo estar muito interessado nela. Passaram-se muitos momentos. O vento batia nas janelas.
Em seguida, o sr. Gunther falou, com a voz mais macia:
—    Rufe, um dia desses precisaremos ter uma longa conferência. Uma conferência muito longa.
Rufus virou-se devagar e olhou para o seu hóspede. O sr. Gunther estava sorrindo e em seus olhos havia um brilho. Rufus alisou a cabeleira ruiva e sorriu também.
—    Estou esperando por isso — disse ele, sério. — É, estou es perando por
isso.
17
O relacionamento de Lydia e Sophia, com o passar dos anos, se congelara numa hostilidade educada. Quando Lydia chegara à casa da colina, recém-casada, nunca houvera grande simpatia entre as duas, mas Sophia respeitara a dignidade de Lydia e nunca tentara qualquer intimidade. O respeito aumentara com os anos — dez anos — de modo que agora Sophia por vezes tinha medo da nora, de quem não gostava nada. Havia outra coisa em Lydia, que era a arte da não-comunicação, uma repulsa a qualquer carinho ou contato hu mano. “Isso é porque ela se sente tão segura, por ser uma das filhas dos Fielding”, pensara Sophia, com raiva. “Ela se pavoneia, sem motivo. Contenta-se com a ilusão de ser importante e provavelmente nem sabe que alguns riem dela."
Ninguém ria de Lydia DeWitt, a despeito das idéias maldosas de Sophia. Tinham receio daquela mulher desinteressada e linda, que educadamente recusava-se a imiscuir na vida social, a não ser em raras ocasiões. Podiam
cochichar entre si a respeito das “indiscrições" justificáveis de Rufus, mas quando estavam com Lydia, a adulavam e se sentiam gratos pela companhia dela.
Durante os dois últimos anos, Lydia demonstrara, pelo menos aos olhos de Sophia, que a “esquisitice" estava aumentando. Acostumara-se a dar passeios a pé, longos e solitários, pelas estradas das montanhas, de noite. Desaparecia até por três horas de cada vez e quando voltava o rosto estava corado, ou muito pálido, os olhos muito atentos e luminosos, ou pensativos. Sophia notou que esses passeios só ocorriam quando Rufus não estava em Portersville. Quando Rufus voltava, Lydia ficava em casa, a esposa sossegada mas amiga. Uma vez Sophia mencionara esses passeios a Rufus, mas ele se limitara a sorrir e dar de ombros.
Os passeios de Lydia invariavelmente terminavam num ponto que ela considerava especialmente seu. Voltava sempre ao lugar que amara em criança e que sempre amaria.
Chegava-se lá deixando a estrada da montanha, virando e passando por uma mata de olmos antigos, subindo a colina onde havia abetos escuros, altos e espessos contra o céu, descendo o pequeno vale onde um riacho corria para o rio e depois passando por uma moita de madressilva silvestre e amoras. Saía-se numa vereda escondida de capim espesso e macio, no centro da qual havia um montículo sombreado por bétulas prateadas.
Ninguém ia àquele lugar onde na primavera havia o perfume doce de cornísias e lilases silvestres, dourado com as forsítias, tudo formando uma cerca alta em volta do local. Um braço pequeno do riacho corria por um dos lados até a época mais quente do verão.
Lydia comia os morangos silvestres que apareciam na grama como rubis e partia galhos do lilás, que para ela pareciam mais inebriantes do que os do jardim da casa de Stephen. Rosas silvestres cresciam nas moitas, bem como lírios-do-campo e emaranhados de margaridas. O gado nunca entrava ali, e ao que Lydia soubesse, ninguém jamais visitava aquele ermo.
Desde seu casamento, raramente ela ia à vereda de dia. Durante sua meninice, fora seu refúgio nas horas quentes do verão, pois as árvores, os arbustos e as moitas sempre o mantinham numa sombra azulada. Quando ela foi crescendo, e antes de seu casamento, dera para visitá-lo de noite e, deitada de costas no montículo, ela se imaginava num círculo de fadas, encantado, segura de qualquer intruso, de qualquer voz ou riso. Ela olhava para cima, para a lua, ou o brilho frio das estrelas, e era invadida por uma sensação de segurança tal como nenhuma casa podia lhe dar, nenhuma parede oferecer.
Às vezes, durante as noites quentes, Lydia adormecia ouvindo o murmúrio do riacho, o ar perfumado em volta de si, o vento nas bétulas. Acordava refrescada e renovada, podendo reassumir o fardo de uma vida que a cada dia se tornava mais árida e empoeirada.
Ali ela nunca se sentia só, como se sentia em casa, ou entre visitas, Ali tudo a reconfortava: as árvores, as flores, o fio de água clara na grama, o céu secreto, o zumbido dos insetos, as brisas calmas. Quando chegava o outono e a vereda se enchia de bronze, vermelho e ouro, ela sentia uma tristeza intensa, um sinal de exílio. Se ela aguardava a primavera com impaciência, era porque esperava a proteção de sua vereda, sua fuga para dentro de si. Mal as neves se derretiam e o gelo ficava ralo nas montanhas, ela voltava, sem se importar em molhar as botinas e saias, procurando avidamente o primeiro esplendor das forsítias, as primeiras violetas na grama.
Dois anos antes, seu refúgio fora invadido.
Ela nunca esqueceu aquela noite de luar, perfume e silêncio. Tinha ido para lá, sentando-se no montículo com um suspiro de profundo contentamento, com a noite se fechando atrás dela. Algumas nuvens escuras esvoaçavam pelo céu. A lua em quarto crescente, anormalmente grande e radiosa, de repente se lançara como um sabre numa nuvem, só aparecendo sua borda superior luminosa. Lydia ficara observando, fascinada. Então, muito alarmada, ouvira a moita estalando e se quebrando e aparecera o vulto sombrio de um ho mem muito alto, no escuro. Ela viu os ombros fortes, a cabeça gran de, descoberta. Ele não disse nada, só ficou ali, calado. A lua retirou sua espada da nuvem e lançou um chuveiro de luz clara na vereda. Então, tudo virou um prateado espectral, árvores, arbustos, grama, montanhas distantes, e a mulher sentada sobre o montículo num silêncio insultado e desalentado. Seu vestido de cassa cinzenta esvoaçava em volta dela e seus ombros nus brilhavam como pedras brancas aos raios espectrais do forte luar.
Ela sentiu seu coração bater mais apressado, assustado, e por fim disse, com aspereza:
—    Quem é? O que deseja?
—    Olá, Lydia — respondeu o homem, com uma voz áspera e rude,
Ele se dirigiu para ela, o corpo grande pesadão e lento como de um animal.
Ela então o reconheceu, pois o luar revelou o rosto dele.
—    Jim — disse ela. —Jim Purcell.
Seu coração, em vez de se acalmar, começou a disparar mais ainda. Ele sentou-se no montículo ao lado dela e cruzou os braços em volta dos joelhos. Ficou olhando para a moita por onde tinha chegado, sem dizer nada. Lydia sempre achara que se alguém descobrisse aquele lugar, perdería o encanto, ela acharia que o lugar tinha sido profanado e não poderia mais voltar lá. Mas nesse momento não sentiu ultraje, decepção ou depressão.
Os grilos cantavam alto no silêncio. Havia um zunido de insetos na mata além da vereda. Agora a fragrância de uma terra pertur bada, fecunda, quente e misteriosa, pairou em volta do homem e da mulher sentados ali juntos, tão quietos. O luar bateu num pico de montanha distante e o transformou num cone de fogo pálido.
—    Como é que encontrou esse lugar, Jim? — perguntou Lydia, com a voz
calma.
— Ora, Lydia — respondeu ele —, sempre soube que você vinha aqui. Desde criança. Lembra-se? Eu a seguia por toda parte, quando éramos pirralhos.
Ele procurou o cachimbo no bolso e acendeu um fósforo. O clarão amarelo iluminou o rosto bruto e esburacado. Lydia viu que estava cheio de seriedade e contentamento. Ela não o achava repulsivo; nunca o achara.
Parecia ouvir o som doce da voz da mãe: “Mas, minha querida, um brutamontes desses! Tão burro, meu amor, e tão pobre. Ele anda se arrastando, amor, e as botinas dele são enlameadas e ele a olha como um débil, verdade. Como é que você o suporta?” O pai dissera, com sua voz fraca e aristocrática: “Mas, meu anjo, Lydia não o suporta, não. Ela só tem pena do pobre coitado. Há anos que ele anda atrás dela, e ela lhe dá um olhar bondoso, de vez em quando, como quem olha para um vira-lata perdido”.
“Eu nunca desejei magoar ninguém”, pensou Lydia. “Então eu não sabia que por vezes era preciso magoar os outros, para salvar a própria alma." Ela dissera a Jim Purcell para não tornar a visitá-la, que seus pais não gostavam dele e ela nunca os magoaria. Agora alguma coisa começou a doer dentro dela, como uma desolação e uma tristeza insuportáveis.
—    Acho que você sempre gostou de mim, Lydia — resmungou Purcell. — Mesmo agora. Sinto uma espécie de consolo quando você me olha do outro lado de uma sala.
Os olhos de Lydia começaram a arder. Ela disse, a voz trêmula:
—    Há quanto tempo você descobriu que costumo vir aqui, Jim?
—    Ora, Lydia — e o tom dele, embora com um sotaque áspero, era quase suave — eu sempre soube disso. Eu às vezes estava aqui, sentado, pensando; e aí, quando ouvia você farfalhando, saía pelo outro lado e você se sentava nesse montinho. Durante horas. E eu a ficava olhando. — Ele se virou para ela, e as covas e inchações de seu rosto se iluminaram com um sorriso, ao luar. — Mas nunca deixei você saber que era meu lugar e seu.
Lydia sentiu um nó na garganta e um aperto no coração. A vereda nadava nas sombras em volta dela.
—    Por que você me deixou saber... hoje, Jim? — perguntou.
—    Bem, Lydia, cheguei à conclusão de que as coisas estão se descontrolando, para você. Achei que devia saber que pode contar com um amigo. Ainda não sei o que posso fazer por você, mas estou aqui, Lydia, para quando precisar de mim, a qualquer momento. — A mão dele, imensa e dura, tocou na dela por um instante e depois se afastou. “Um homem rude, sem educação”, era o que diziam dele. “Um pateta. Como é que conseguiu ganhar tanto dinheiro? Mas, claro, é inteiramente impiedoso e sem consciência. E perversamente ganancioso e inclemente.”
Lydia sabia que ele não era "sem educação". Se falava com “rudeza", era devido ao desprezo que sentia pelos trapaceiros delicados e bucaneiros educados. Se era impiedoso, e Lydia sabia que ele era mesmo, tratava-se de uma inclemência aberta, diferente da de Rufus. Por isso é que ela não antipatizara com Jim Purcell, nesses últimos anos, enquanto ele avançava tenazmente, como uma força da natureza para a fortuna e o poder. Se ele era culpado de maqui nações pouco éticas e se esmagava homens mais fracos, na sua passa gem rude, fazia isso com uma honestidade desdenhosa e potente sem justificativas fracas, sem declarações e pretensões piedosas.
Ele estava fumando calmamente; o foguinho rubro de seu ca chimbo desaparecia e tornava a brilhar. Ela via a boca grande e sem forma, o nariz mal feito, os olhinhos sem luz. Um homem feio, monstruoso, de certo modo. No entanto, de repente, com o coração disparado, ela viu que ele parecia ser todo força e domínio.
—    Creio que eu sempre soube que você era meu amigo — dis se ela. Sem querer, sua mão se levantou e tocou no braço dele, com timidez. Ele não se mexeu. As pernas volumosas estavam estendí das, sem elegância, à luz da lua. Seus ombros pareciam montanhas. O cachimbo continuou a brilhar e a sumir, tranquilamente.
—    Por quanto tempo você ainda vai suportar isso, Lydia? perguntou ele, sem olhar para ela.
Ela dobrou as mãos no colo, suave, coberto de cassa. Sua ho nestidade surgiu para enfrentar a dele, com toda a simplicidade
—    Não sei — respondeu. — Ofereci o divórcio a Rufus, há anos. Ultimamente, tenho pensado em ir morar na minha casa.
Ela parou.
—    Então, por que não vai?
—    Porque ele nunca permitiría que eu levasse Cornélia comi go. E tenho de ficar com ela, para fazer o que puder.
Ele deu uma risada rude.
—    Lydia, você nunca vai conseguir fazer nada por aquela me nina e sabe disso. Ela é igualzinha ao pai.
—    Mas também é mulher — disse Lydia, e sua voz ficou ten sa, de dor. — E as mulheres em geral não são tão sem consciência quanto os homens. Ela às vezes é uma criança bem razoável e eu a amo muito e ela me ama. Tenho de fazer o que puder por ela
—    Hum. — Ele tirou o cachimbo da boca e a fumaça se enroscou, apanhada numa névoa prateada do luar. —É, acho que a gu ria gosta mesmo de você. Já vi vocês duas, na sua carruagem, quando não estavam me vendo. Mas lembre-se de que o amor não muda o caráter básico das pessoas, Lydia.
—    Não quero que ela cresça sabendo que a mãe a abandonou — disse Lydia, num tom de súplica. — Mais tarde, daqui a muitos anos, ela poderá usar isso como uma defesa hipócrita para alguma maldade que cometer.
—    E talvez ela cresça desprezando uma mãe que não teve a co ragem de salvar a própria alma — disse Purcell.
Lydia passou uns instantes sem falar. Seu rosto estava quente e tinha lágrimas nos olhos. Depois, ela disse:
—    Cornélia só tem sete anos. Tenho de esperar um pouco.
Ele bateu o cachimbo numa pedra. Virou-se para ela e ela viu aquele rosto enorme e a expressão atenta dos olhos pequeninos.
—    Esse não é o único motivo, Lydia. Tem o velho Steve. Você está vigiando para que o Rufe Ruivo não o passe para trás? Certo, garota?
—    É — disse ela.
—    Sei. Mas o Rufe vai fazer isso, sabe? Qualquer dia desses. É um espertalhão, esse Rufe. A depressão está aí e não parece estar passando. E o Rufe anda agindo. Eu mesmo o tenho observado, querendo adivinhar o que ele anda tramando. Mas ele parece um dançarino ligeiro e hábil e eu fico uns passos atrás dele. Bem, em todo caso, agora está agindo depressa. Não está dizendo nada; não disse nada nem quando o Steve continuou a pagar os salários dos trabalhadores quando não tem muito movimento nas ferrovias, hoje em dia. Mas lá está ele, sorrindo que nem um gato com as patas no leite e lambendo-as. — Ele acrescentou, refletindo: — A Interstate deixou de distribuir os três últimos dividendos e Rufe continua a sorrir. Foi a Nova Iorque seis vezes nesses dois meses, para conversar com o Gunther.
—    Por quê? — exclamou Lydia, muito alarmada.
Purcell deu de ombros.
—    Ah, Lydia, isso é uma coisa que eu também gostaria de saber. Mas o Gunther é uma potência; não diz nada a ninguém.
Lydia torceu as mãos.
—    0 que podemos fazer, Jim? Diga, o que podemos fazer?
Ele pôs a mão no ombro nu de Lydia e, a despeito de seu medo, ela sentiu um fogo lhe percorrendo o braço, mexendo com seu coração.
—    Lydia, você não pode fazer nada pelo Steve. O que poderia fazer? E eu? Só posso ficar por aí esperando para juntar os cacos. Você conhece o velho Steve. Não daria ouvidos a ninguém. Confia no Rufe Ruivo e isso é o mesmo que confiar num tigre. Já tentei preveni-lo e ele me olhou como se eu fosse pó. Não o vejo há semanas; ele não quer falar comigo.
Ele tirou a mão do ombro de Lydia e olhou para a palma, como que assombrado.
—    Você poderia falar com o sr. Gunther — sugeriu Lydia, em seu desespero.
Ele deu uma risada forte e rouca.
—    Gunther? Ele havia de saber o que eu estava querendo fazer. Está nisso com o Rufe. Além disso, Gunther tem uma velha conta a acertar comigo. Não vou conseguir nada com ele. Além do mais, não adiantaria nada. O velho Steve é que é o problema. A gente não pode dobrá-lo. Ele tem consciência.
Lydia só conseguia ficar torcendo as mãos. Seu belo perfil esta va tenso e triste, à luz fraca.
—    Steve, por ser Steve, e por serem as coisas nesta terra gran des demais para ele, arranjando-lhe vários inimigos, vai se machu car e muito, Lydia. Assim, só podemos ficar aí para quando aconter o inevitável. Você não pode ajudá-lo, ficando nessa casa. Mais vale ir embora.
Mas ela exclamou:
—    Jim, você pode fazer alguma coisa! Sei que pode!
Ela se virou para ele e o luar bateu em seu rosto.
—    Obrigado, Lydia, por acreditar nisso. Já lhe disse que estou tentando. É indiretamente. Olhe, garota, nunca pedi a ninguém para confiar em mim. Nunca liguei a mínima porque, talvez, ninguém pudesse confiar. Mas agora estou pedindo que confie em mim.
—    Ah, sim, Jim, confio, sim! — Ela falou com paixão. — Sem pre confiei. Acho que nunca confiei em ninguém a não ser em você.
Purcell ficou olhando para ela, num silêncio total. Uma expressão estranha apareceu em seus olhos lamacentos e eles brilharam com uma ternura severa. Lydia estava passando as mãos aflitas pelo cabe lo preto e mechas espessas lhe caíram pelas faces e o pescoço. Purcell pegou uma das mechas e esfregou-a devagar e com força nos dedos. Ela então se aquietou, deixando as mãos caírem nos joelhos.
Ele falou como se nada tivesse acontecido, em voz surda:
—    Rufe pode ter de esperar mais do que pensa. Sujeito impa ciente, mas, de algum modo, ele aprendeu a esperar. E tenho de esperar até ele agir. E é duvidoso que eu consiga fazer alguma coisa então. Mas farei o possível.
Lydia falou, no tom alto e inexpressivo de sonâmbula:
—    Passei a detestar Rufus, por Stephen.
—    Ora, Lydia, isso é meio extravagante. É maneira de mulher falar. Rufe, eu e Gunther só chamaríamos a isso de “negócio”. Ru fe está passando a ser o melhor, melhor do que o velho Steve. Não use isso contra ele. Mas Steve não se adapta à escola de olho por olho, dente por dente, se bem que esteja se saindo de um modo honrado. Ele é.... bem, acho que o chamariam de um “anacronismo" nos dias de hoje.
Lydia começou a chorar, calada, e então, do modo mais natu ral do mundo, Purcell pegou o lenço, enxugou-lhe as faces com brandura e depois pôs o lenço na mão dela.
—    Stephen é tão tolo! — chorou ela. — Tão tolo!
Purcell ficou sério.
—    As pessoas pensam que não tive muita instrução, mas tive, de um modo meio irregular. Lembro-me de uma coisa que disse Plínio, o Antigo, e sempre me lembrei disso: “Estudei muito as filoso fias dos velhos sábios e seus sonhos do demos e liberdade universal e a fraternidade dos homens. No entanto, trabalhando fatigado em minha mente, não estou convencido de que um sonho assim algum dia surja das trevas das almas dos homens. Seria mais fácil acreditar que o sol se levante a oeste, ao contrário de seu costume, do que acreditar que um único homem transforme em realidade uma filosofia tão em desacordo com todos os seus instintos”.
Lydia mal escutara a princípio, mas como Purcell continuara com sua citação, ela se endireitara, ouvindo atentamente, e uma expressão amarga tinha endurecido os contornos de seu rosto.
—    Esse sujeito era muito sabido, Lydia. Não se pode fazer o sol nascer a oeste. As pessoas sendo o que são e o que sempre serão. Temos de lidar com as coisas como elas são.
Lydia suspirou.
—    Como tudo isso é terrível, Jim. Não é só Rufus e Stephen. Portersville também está mudando. Pela primeira vez, há alguma coisa feia no ambiente.
—    Acho que também não posso ser muito romântico nisso, Lydia. Digamos que Portersville era um lugar meio simpático e agradável, até uns anos atrás, porque era uma cidade pequena mais ou menos familiar. Agora temos todos esses imigrantes chegando e ninguém os conhece. São uma gente estranha para a cidade, que se uniu contra eles. É da natureza humana detestar os forasteiros. Foi assim que se formaram as castas sociais. O que você queria fazer, Lydia? Refazer o mundo e a natureza humana? Você só pode é se salvar.
—    Não posso ir — respondeu Lydia. — Há Cornélia, Stephen c a Laura também. São muitos para eu abandonar.
—    Hummm — fez Purcell, examinando uma das botinas à luz minguante da lua. — Quixotesco.
—    E você me despreza por isso? — exclamou Lydia, meio raivosa.
Purcell esfregou a lama das botinas.
—    Não, senhora, não posso dizer isso. — Ele pegou o cachimbo. — Gosto de saber que existe, embora me pareça uma grande besteira. Não me entende, hem?
—    Entendo — disse Lydia, quase sem se fazer ouvir. — Acho que sim, Jim.
Ele deu a mão a ela e a ajudou a se levantar. Ficou ali olhando para ela, sorrindo.
—    Você vai voltar aqui, não vai, Lydia? Não a assustei daqui?
Ela tentou sorrir, respondendo:
—    Voltarei, Jim, voltarei.
Desde aquela ocasião, eles se tinham encontrado muitas vezes, nesses dois anos, do princípio da primavera até o outono. Encontravam-se por acaso e à distância em casa de conhecidos. O fato de que Jim Purcell estava invariavelmente presente nessas ocasiões não era nem comentado como coincidência e ninguém notava as súbitas trocas de olhares entre ele e Lydia, ou o tocar de mãos ao se cruzarem.
Quando a primavera voltava, Lydia ia à vereda. Nem sempre se encontravam. Entre eles nunca houve um encontro marcado para alguma determinada noite, nenhuma promessa dada ou recebida. Nunca fizeram amor, só havendo entre os dois a leve pressão de mãos, se bem que, em raros intervalos, Lydia pousasse a cabeça no ombro de Purcell, num gesto de exaustão ou procurando um conforto mu do. O mais frequente era ficarem sentados, lado a lado, escutando os pios das aves noturnas, vendo as nuvens passando pela lua ou es trelas, e às vezes se separavam, depois de uma ou duas horas, sem terem trocado mais de algumas palavras.
Era o princípio da primavera de 1876, quando a trágica depressão estava se transformando numa violência aguda e sangrenta por todo o país, que Purcell sugeriu a Lydia que obtivesse o divórcio de Rufus
—    Não posso, querido — disse Lydia, sofrendo. —Você sabe que não posso abandonar Cornélia, Stephen e Laura. Como você dis se, sei que não posso fazer nada para protegê-los de fato, mas sou como a pessoa olhando um homem pintando uma torre. A gente tem a sensação de que, se desviar o olhar, o homem cai. — Ela con tinuou, em voz débil: — E, de certo modo, fico por causa de Rufus, acreditando vagamente que ele também precisa de mim e que, se não fosse eu, ele poderia ser pior.
Purcell pensou nisso com certo ceticismo. Rufus Ruivo estava rapidamente se aproximando do clímax que planejara e levando seus cúmplices à tragédia e ao desespero. Mas Purcell, depois de refletir, resolveu não contar a Lydia.
Ele disse:
—    Você pensa que vai ter de largar sua filha, mas não vai. Po de conseguir o divórcio e a custódia. — Ele puxou do bolso um ma ço de papéis e, forçando os olhos no escuro da primavera e à luz das estrelas, Lydia conseguiu ver que o maço estava amarrado e la crado. — Mandei investigar os movimentos do Rufe Ruivo... discre tamente, claro... durante os últimos dois anos. Aqui estão os nomes de todas as amiguinhas, os endereços e onde se encontram. Pode mos levar tudo isso ao tribunal.
Ela disse:
—    Ah, sim, já sei disso há muito tempo". Mas a culpa não é só do Rufus. Ele não tem culpa por não ser o que eu imaginava quan do me casei com ele. A ilusão foi minha e eu o fiz sofrer por isso.
—    Então, você quer continuar a fazê-lo sofrer, hem, Lydia! Não quer deixá-
Io livre para se casar com uma mulher que lhe dê filhos? Não quer se casar comigo?
Lydia se afastou um pouco dele, virando-se.
—    Também é por Rufus — murmurou ela. — Talvez eu seja uma tola, mas acho que ele se refreia em certas coisas por minha causa.
Purcell pôs as mãos enormes nos ombros dela e a virou para si, com violência.
—    Lydia! Você é tola. Ele não está se refreando em coisa alguma, como você verá muito breve. E então, Lydia? Não acha que sou um homem? Pensa que me satisfaço em ficar aqui sentado, ano após ano, de mãos dadas com você, como um garoto de colégio? Quero você na minha casa, na minha cama. Que idade você tem, Lydia?
Está com 34 anos, não está? Não é tarde para ter filhos. Quero nossos filhos,
Lydia.
Mas Lydia só tinha ouvido algumas palavras apavorantes de toda essa ladainha rude.
—    O que quer dizer, Jim? Rufus está...
—    Não lhe posso contar coisas que você não vai entender. E tampouco posso impedi-las. Mas está próximo o dia em que Rufus vai ter a maldita estrada de ferro nas mãos. E a casa também, que é de Steve. E todo o dinheiro. E então, Lydia? E então?
—    E Stephen?
O grito de Lydia passou a um gemido. Purcell meneou a cabeça, sério.
—    Tudo estará acabado para ele, Lydia. Ele vai descobrir e isso poderá matá-lo. Steve se arruinou porque confiou. Você chama a isso de vítima e pode ser que seja. Bom, é isso. O que eu poderia fazer agora seria jogar dinheiro bom em cima do mau. Além disso, Steve nem sabe que as paredes estão prestes a ruir sobre ele.
Lydia agarrou-lhe o braço.
—    Jim, por que não conta a ele?
—    Ele não acreditaria. Não vai acreditar, até ver por si. É tolo, você sabe
disso.
Lydia começou a tremer e, depois de resistir um momento, Purcell a abraçou e apertou contra seu peito de gigante. Beijou-lhe o cabelo e a face e por fim os lábios frios. Ela se agarrou a ele e chorou, em desalento.
—    Pronto, pronto, amor — murmurou ele. — Amor querido, linha Lydia. Há coisas que a gente não pode evitar; os homens provocam o destino que têm.
Quando ela conseguiu falar, na sua dor e desespero, disse:
—    Se isso acontecer, então eu me divorcio de Rufus. Se não o fizesse, acho que eu o mataria.
18
“Não é verdade que a gente esquece o sofrimento”, pensava Stephen. Não, não havia alívio no sofrimento dele. O dia da morte de Alice, dez anos antes, era tão vivido e terrível como se tivesse ocor rido naquele dia. O rosto e a voz, os sorrisos doces e infantis, os ges tos e o corpinho lindo e atos meigos nunca se apagavam em sua memória. Estavam sempre ali, lembrados. Até esse dia, quando uma porta se abria em seu quarto, ele se virava, na expectativa. De noite estendia a mão para procurá-la, na sua cama solitária. Por vezes, na sua angústia, ele apertava os nós dos dedos fortemente contra os den tes e suportava as ondas de dor como um homem, ao se suicidar suporta as ondas do mar em que entrou propositadamente. Toda a alegria dos dias tinha desaparecido para ele, todos os sonhos que tivera. Ele às vezes se dizia que vivia para a filhinha, Laura, agora com dez anos, mas na verdade só vivia esperando o dia em que ela não precisasse mais dele e pudesse morrer.
Ele não acreditava que um dia pudesse “encontrar” Alice, de pois da morte. O sofrimento e os golpes que lhe haviam infligido tinham apagado toda a fé que ele tivera em Deus e na imortalidade. O desespero passara a habitar com ele, como uma presença ne gra que turvava todos os dias e as noites, e não havia qualquer esperança para ocupar o lugar dele e expulsá-lo das cavernas nuas e vazias de sua alma.
O amor que sentia pela filhinha era na verdade uma ansiedade constante pelo bem-estar dela. Ele trabalhava para conservar os bens e a fortuna de Laura, a fim de comprar sua segurança, para deixá-la segura num mundo voraz. Não havia nada na menina que lhe lem brasse Alice. Ele nunca pensava que ela precisasse dele por algum outro motivo senão a segurança material e, embora sempre se mos trasse meigo com ela — pois a meiguice era parte de sua natureza — e embora a pusesse no colo, afagando carinhosamente os cachos escuros com mão branda, ele nunca se aproximou do espírito dela.
Só havia um outro membro da família que conseguia provocar seu raro sorriso ou riso leve: Cornélia, sua sobrinha. Esperta, petulan te e espirituosa, instintivamente amável com todos, ela subia nos seus joelhos sem ser convidada, como Laura nunca fazia. Ela lhe dava um bom tapa e logo lhe pedia dinheiro. Ele tinha prazer em colocar di nheiro nas mãozinhas ávidas, embora Lydia se mostrasse contrária a isso. Sua beleza jovem e acobreada, o gosto imenso pela vida, a pai xão despudorada por viver aqueciam suas mãos frias e por vezes fa ziam parar o tremor constante de sua alma. Sendo pessoalmente reservado, respeitando toda a liberdade individual, e perplexo como sempre diante do mistério de outros seres humanos, ele nunca tecia conjeturas sobre o caráter de Cornélia, nem se preocupava, com uma curiosidade de macaco, com o que havia por trás de sua voz forte e rouca, seu jeito barulhento e exigente, embora cativante.
No entanto, o sofrimento e a tristeza não livravam Stephen de sua convicção de que ele tinha a obrigação moral de aliviar a tristeza e o sofrimento dos outros. Aliás, o seu próprio desespero o levava a excessos que dez anos antes teria achado inimagináveis, ou que o teriam feito parar, sensatamente. A generosidade dele atingira níveis altíssimos, despertando tanto o assombro como o escárnio dos beneficiados, fossem indivíduos ou organizações. Stephen aos poucos passou a ser alvo de suspeitas de estar desviando dinheiro — que na verdade pertencia ao irmão "lesado” — para uso particular e suas caridades, não passando de uma migalha para apaziguar a pouca consciência que ainda tivesse. Como prova disso, apontavam as doações insignificantes que Rufus fazia às obras de caridade. Um homem simpático, bom e amável como Rufus DeWitt teria o maior prazer em contribuir, se tivesse os meios.
Ninguém, a não ser Rufus e os diretores do conselho, sabia que Stephen não retirava mais da Interstate Railroad Company do que o ordenado, bastante respeitável, e era do interesse deles que esse assunto não fosse de domínio
público.
As jazidas de carvão perto de Scranton, por enquanto, pouco acrescentavam às suas rendas. Ele poderia tê-las explorado se não tivesse investido a maior parte do dinheiro em fundos para Laura, e nas obras de caridade. Os fundos eram irrevogáveis e ninguém falava nas obras de caridade. Naturalmente, ele conservava os cinquenta e um por cento dos títulos e ações da estrada de ferro, porém mal os considerava como sua propriedade particular. E havia dois anos que não recebia dividendos.
E foi num quente domingo de agosto, examinando suas contas, de que ele sentiu a primeira ansiedade.
A depressão, iniciada em 1873 e que em 1876 dava poucas mostras de diminuir, atingira a Baynes Locais muito severamente. Joseph Baynes agora estava devendo vinte e quatro mil dólares a Stephen DeWitt. Joseph insistira em dar a Stephen promissórias por essa grande importância. Depois de entregues as promissórias ao “rico" Stephen, Joseph raramente se preocupava com essa lembrança. Sentia-se inteiramente a salvo. Tom Orville, enfrentando dificuldades durante a depressão, poderia ter perdido seu negócio de madeiras para a Interstate Railroad Company, se Stephen não lhe tivesse dado dez mil dólares, também garantidos por promissórias entregues a ele.
Stephen sentou-se à escrivaninha na biblioteca, o rosto abatido, suado e cinzento, num misto de calor e medo. Seu saldo bancário pessoal era de menos de doze mil dólares em dinheiro. Rufus e
Sophia não contribuíam em nada para a manutenção da grande mansão branca na montanha. Stephen recusara o oferecimento displi cente de Rufus; era o mínimo que Stephen poderia fazer, "nas circunstâncias". Nunca ocorreu a Sophia sugerir uma quantia razoável de sua renda pessoal, bastante sólida, nem isso ocorreu a Stephen.
Empregados, alimentação, despesas caseiras, manutenção e sus tento da família chegavam a pelo menos setecentos dólares por mês. Stephen pagava as contas de toda a vida social complexa em que So phia insistia. A mãe não tinha a menor intenção de gastar um cen tavo seu — e todo o seu dinheiro estava legado a Rufus e Cornélia, em testamento — nem mesmo com suas despesas pessoais e guarda roupa grandioso. Ela se dizia, com amargura: “Ele tem de pagar pelo que fez".
Sophia jamais fora extravagante enquanto Aaron estava cons truindo a fortuna, nem até a morte dele, agora ela esbanjava. Todas as contas que chegavam à casa eram endereçadas a “Stephen DeWitt. Esquirecontas relativas a lições de música dadas a Cornélia e Lau ra, honorários de médicos de toda a família, roupas, carvão, lenha ou carruagens. Nenhuma conta era pequena ou grande demais para ser colocada na mesa de Stephen.
Não ocorreu a Stephen que havia certa incongruência no fato de Rufus se recusar a aceitar a chave de casa, bem como suas contas, as da filha e da mãe.
Eram doze mil dólares em dinheiro e seis mil dólares em con tas, desde o mês de abril! “Naturalmente", pensou Stephen, havia o ordenado dele. Mas ele se comprometera a dar doze mil dólares em setembro, novembro e dezembro para o Asilo de Velhos de Portersville, o Orfanato de Crianças Abandonadas, os Veteranos da Gerra de Secessão e o hospital local.
Ele pensou: "Eu poderia ir a Filadélfia e pedir emprestado, dan do meus títulos e ações como garantia. Mas como poderia pagar empréstimo, se as coisas não melhoram logo? “Além disso, os seus cinquenta e um por cento eram um fundo sagrado e ele não podia se convencer de que na verdade lhe pertencesse. Se houvesse algum meio de reduzir as despesas, pensou Stephen... Ele examinou a lista de empregados. Sophia podia não contribuir em nada para o pagamento deles, mas ela se considerava inteiramente dona da casa e de seus empregados. Teria um ataque, pensou Stephen e desistiu da ideia. As carruagens? Havia oito veículos ao todo e um número correspondente de cavalariços e cocheiros. Poderíam ser eliminados, até certo ponto, mas o que fariam os pobres coitados, num momento em que o desemprego ainda grassava?
Não havia saída se não um empréstimo. Por um momento, Stephen pensou em confiar seus problemas financeiros a Rufus, não para pedir ao irmão que ajudasse nas despesas (isso seria inimaginável
"nas circunstâncias”), mas apenas em busca de um consolo e conselhos para o seu dilema imenso. Não, seria errado obrigar Rufus a partilhar de suas ansiedades. Ele tinha de pedir o dinheiro emprestado muito breve, dando em garantia certa quantidade de seus títulos e ações. Refletiu que a Chicago Railroad System estava custando um dinheirão à Interstate Railroad Company, nesses últimos cinco anos, pois ela, como todas as outras estradas de ferro, estava sofrendo com o pânico.
Stephen acreditava que seus problemas crescentes não eram do conhecimento de ninguém. Mas Rufus sabia; os banqueiros em Portersville eram seus amigos. Conforme ele suspeitara, as “fraquezas” de caráter de Stephen o estavam arruinando rapidamente.
Seria impossível a Stephen saber que estava sendo vigiado, e ele nem desconfiara disso. Suas relações com Rufus estavam excelentes e sempre se lembrava do apoio do irmão ao lidar com o conselho diretor, como um consolo quando seus problemas pessoais lhe pareciam insuperáveis. No entanto, nesses dois últimos anos, um sexto sentido o deixara inquieto. Ele parecia um homem preso num nevoeiro numa terra estranha e perigosa, sem saber de onde poderia surgir um inimigo mortal. Ultimamente, seu instinto não se aquietava; ele acordava de noite, tremendo, nervoso.
Agora os períodos em que a lógica conseguia expulsar o temor sem nome nem forma iam-se tornando cada vez mais breves.
Naquela tarde quente de agosto aquilo se apossou dele como as presas de uma fera temível. Ele se levantou, olhando em volta, com medo. Dirigiu-se para a janela oeste da biblioteca, que dava para os jardins, que formavam terraços pela encosta da montanha. Sobre os terraços superiores havia grandes pinheiros e olmos, uma fileira acima da outra, abrigando a grama verde-azulada que se estendia sob elas. Ali, a sombra, densa e fresca, não permitia canteiros de flores.
Os terraços mais abaixo explodiam em cores vivas, vermelho, amarelo, azul, branco, rosa e roxo, intercaladas com pequenas alamedas de pedras, sinuosas, repuxozinhos brilhantes, e apenas uma árvore de vez em quando. Três chorões esvoaçavam seus galhos verdes e longos ao vento quente, captando luz pura em suas folhas finas e delicadas. Um grupo de bétulas estava se acobreando sob o céu azul. Um muro de pedra branco, baixo, acompanhava o jardim pela encosta da montanha, coberto de roseiras entrelaçadas, verdeescuro e espinhosas, tendo aqui e ali uma flor tardia irrompendo da massa como uma roseta em fogo. Ao longe, as montanhas se elevavam em nuvens lilases, fundindo-se no céu. Stephen, junto da janela, sentia a brisa quente no rosto e ouvia o canto estridente dos gafanhotos. Não havia outro ruído no silêncio da tarde de
domingo, nenhuma voz das cocheiras além da casa, nenhum movimento de empregados ou membros da família nos corredores ou nos quartos.
O jardim dava a Stephen a vaga sensação de paz, mas nesse dia não foi assim. Ele passou para o gramado lá fora e começou a passear, distraído, entre os canteiros. Chegou a uma grutinha rodeada pelos chorões. O vento estava mais fresco ali e ele se sentou num banco de mármore, fora da vista da casa. As abelhas acentuavam a quietude com suas idas e vindas. Ele ouviu o tilintar de um chafariz, o canto sonolento dos gafanhotos. Um esquilo correu pela grama quente junto a seus pés. Stephen procurou seu cachimbo e o acendeu, suspirando. Os chorões, que ele amava, se curvavam e erguiam, mas não o consolavam mais. Um feitiço perverso dominara toda a cena iluminada.
Sem aviso, uma ideia lhe ocorreu: “Isso me parece hostil e remoto porque
receio que não seja mais meu”.
Aturdido e aflito, ele tirou o cachimbo da boca. Quem poderia lhe tirar a
sua casa? Rufus!
Mas Rufus era seu irmão, que se reconciliara com ele e o admirava. Como é que poderia lhe tirar o que era seu? “Tenho de conversar com alguém”, pensou, desesperado, “alguém que ache o meu pavor ridículo. Mas quem?”
Stephen levantou-se depressa, involuntariamente, impelido por uma urgência irresistível, mais forte do que a lógica. Foi então que ouviu as vozes de sua filha Laura e de Cornélia e parou.
A voz de Cornélia era forte, risonha e barulhenta, a de Laura suave e baixa.
—    Naturalmente, papai disse que eu não devia contar a ninguém onde estivemos, quando fomos a Nova Iorque — dizia Cornélia, a voz saindo aos borbotões. — Olhe, Laura, todas essas formigas horríveis! Elas comem as flores. Pise nelas. Aqui tem outro formigueiro, só para você.
—    Não — disse Laura. — Por favor, pare, Cornélia.
—    Mas elas comem as flores — protestou Cornélia. — Você quer que elas comam as flores? Elas são malvadas, o jardineiro disse:
—    Malvadas para quem? — perguntou Laura, com assombro sincero. — Você pensa que o mundo foi feito só para nós? Pois não foi. Foi feito também para formigas, centopeias, cervos, gambás, camundongos, mariposas, borboletas, cavalos e árvores. Se algum desses é mau para nós, é porquê nós' somos maus para eles.
—    Quem é que se importa? Você só tem de pensar em si — disse Cornélia. — Como você me cansa, Laura. Fala igual a mamãe, às vezes. Você até se parece com mamãe. Não faz mal, eu estava contando de Nova Iorque. Foi tão emocionante...
—    Se tio Rufus disse para não contar a ninguém onde foram em Nova Iorque, então não conte — advertiu Laura.
—    Ora, acho que papai pensou que ia causar inveja a vocês.
0 que é que tem? Você não vai correndo contar ao tio Steve, vovó ou mamãe, vai?
Stephen, tendo parado ao sair depressa da gruta, tornou a sentarEm seu espírito agoniado, não estava com vontade de encontrar as duas meninas, que se achavam a menos de seis metros dele.
—    Bom — disse Laura, procurando não parecer muito curiosa —, vamos nos sentar na grama e você conta.
—    Só depois que eu pisar nesse formigueiro que estava guardando para você — respondeu Cornélia, num tom ofendido. Novos ruídos de saltos vigorosos. — Pronto, empurrei ele bem para dentro. Olhe as horrorozinhas correndo! — Mais pisoteios. — Isso vai ensinar a elas a não comerem as nossas flores, criaturinhas horrendas. — Stephen ouviu Cornélia se jogar na grama ao lado da prima, Ouviu que ela respirava fundo, com prazer, recordando-se. — Foi maravilhoso em Nova Iorque. Não é como essa Portersville horrorosa, onde nunca acontece nada e as pessoas jantam muito e depois vão dormir. Ora, ficava tudo aceso a noite toda. Fui para as janelas; várias vezes. E tinha luz de gás, carruagens rolando nos calçamentos de pedra, pessoas indo e vindo, rindo, e todas as senhoras com vestidos lindos. De ombros de fora! E você nunca viu joias assim. E a gente ouvia as carroças passando até as três da madrugada! Eu não conseguia dormir, não dormi nada todo o tempo que passamos lá, e foi quase uma semana. Papai não se importou. Disse que eu precisava ver o que um dia seria o meu mundo. — A menina suspirou, encantada. — Claro, adoro nossa casa aqui e vou sempre guardá-la. Não vou vender nunca e vou deixar você e o querido tio Steve morarem aqui o tempo todo. E volto sempre para visitar vocês.
—    Mas a casa é do meu papai — disse Laura, muito intrigada. Stephen ficou frio e rígido, na vereda ensolarada.
A voz vulgar de Cornélia tinha um tom afetuoso e de pena.
—    Mas não vai ser, quando eu crescer. Papai disse. Disse ao Gunther. Logo vai ser a casa dele e depois ele vai deixar para mim. Não faz mal, Laura, gosto tanto de você e do tio Steve. Vocês podem morar aqui a vida toda, sem me pagar nada. E vai ser tão divertido vir para casa no verão e nas férias para ver vocês!
Laura ficou comovida com essa generosidade, se bem que continuasse perplexa.
—    0 meu papai vai vender a casa ao seu papai?
—    Deixe de ser ridícula, Laura! Papai disse ao sr. Gunther que o seu papai não pode ficar com a casa, de modo que como o papai é irmão do seu papai, o meu vai ficar com ela. Não me faça tantas perguntas. Em todo caso, não era para eu ouvir essas coisas e você não se atreva a contar a ninguém, entendeu? Eu estava escutando, sentada na escada de mármore da casa do sr. Gunther.
—    Ah, vocês não ficaram no hotel em Murray Hill? — perguntou Laura.
—    Não. Esse é outro segredo. Papai mandou a correspondência ser entregue lá, os telegramas de Portersville. Mas ficamos com o sr. Gunther, na linda casa dele, na esquina da Rua 34 com a Quinta Avenida. Você acha que a nossa casa é bonita? Pois devia ver a do sr. Gunther! Custou milhões, milhões mesmo, papai disse. É toda de mármore branco e tem pilares. Ele comprou da família Stewart, quando o sr. Stewart morreu. Banheiros dè mármore. E grandes lareiras-de mármore, se bem que lá tenha o que chamam de aquecimento central, também. E empregados! 0 sr. Gunther me deu uma empregada só para mim e ela me penteava o cabelo, me punha no banho e me ajudava a me vestir. Eu me senti tão bem! Como uma j princesa. Aposto que nem a rainha Vitória mora num palácio desses, nem tem tantos empregados. A casa mais maravilhosa, melhor do que a do sr. Astor e sr. Gould, melhor até que a do sr. Vanderbilt. Esses têm casas de pedra marrom e são sem graça e escuras, mas são grandes também. E o sr. Gunther tem uns móveis tão extraordinários. Tesouros, papai disse. Do mundo inteiro.
Cadeiras douradas, tapeçaria, quadros ricos e garfos e colheres de ouro puro.
—    Ora, Cornélia, quer que eu acredite nisso? — perguntou Laura, sem acreditar. — Colheres e garfos de ouro puro! Como você é exagerada!
Cornélia ficou indignada.
—    Você pensa que sou mentirosa, Laura DeWitt?
A voz suave de Laura tinha um tom de humor.
—    Muitas vezes você mente mesmo — comentou.
Cornélia gritou, rindo com humor e maldosamente.
—    Bem, a verdade em geral é chata. Mas agora estou dizendo a verdade, sua boba. Ainda não acabei de contar de Nova Iorque Viajamos no Pullman Elevated. O piso tinha tapetes e os pobres viajavam nos vagões horríveis e nós disparamos pela cidade! E fomos ao desfile da tarde no Central Park, descendo a Quinta Avenida na carruagem grande do sr. Gunther, com dois lacaios e o cocheiro, todos de libré vermelha e prateada. Eu me senti como uma princesa, ou talvez uma rainha. E as senhoras, todas de cores alegres, com chapéus com plumas grandes e sombrinhas com flores, todas se cumprimentando e rindo, os'"cavalos pisando as pedras e os arreios prateados reluzindo. Tanto entusiasmo. Tinha uma banda tocando no parque e um pavilhão onde a gente podia tomar chá-da-china e comer sanduichinhos com caviar e bolinhos franceses. E as pessoas iam passear de barco no lago. E depois fomos a Coney Island. Pegamos um vapor na Battery e fomos pela baía. Foi tudo tão bom! E as pessoas tomando banho de mar. Fomos até o parque de diverões, se bem que papai risse. Você vai adorar Nova Iorque, Laura. Talvez seu papai te leve lá, um dia, também.
A voz de Cornélia ficou ainda mais feliz.
—    Talvez, quando eu tiver uma casa grande como a do sr. Gunther, em Nova Iorque, você vá me visitar.
—    Gosto mais da minha casa — comentou Laura, sem inveja.
Acho que vou ficar aqui com papai.
—    Bem, pode ficar, se bem que ela vai ser minha. Mas já te disse que quero que você e o tio Steve morem aqui a vida toda. Claro, você nunca vai se casar — continuou Cornélia, com uma confiança cheia de pena. — Você não é bonita como eu. Vovó chama você de ratinha. Você é uma ratinha muito querida. Mas vai ficar aqui e tomar conta do tio Steve, até ele ficar bem velhinho. E vai ler todos os livros. Eu — continuou Cornélia, feliz — vou me casar com Patrick Peale. Vimos ele em Filadélfia, trabalhando com o tio, o sr. Alex Peale. Você nunca viu um homem tão bonito como Patrick Peale!
—    Eu vi ele há um ano — disse Laura, com uma tolerância risonha. — Você está com dez anos e Patrick é um homem. Imagino que ele se case, um dia desses.
A voz de Cornélia assumiu um tom estridente e indignado.
—    Não é verdade! Pedi a ele, que prometeu esperar por mim, pronto. — A respiração dela estava forte, no silêncio quente. — E o sr. Peale lembrou a Patrick, bem ali nos escritórios do banco grande, para ele não se esquecer que ia se casar comigo, daqui a uns sete anos, talvez.
—    Lá está tia Lydia, nos procurando — disse Laura.
Cornélia levantou-se de um salto.
—    Veja só quanta grama em mim! Lembre-se, Laura, você não vai contar a ninguém o que te contei. Papai não falou por que, mas foi muito severo nisso, e, se ele soubesse que te contei, eu nunca mais ia a Nova Iorque com ele. Jura!
—    Está bem — disse Laura, com paciência. Juro, pronto. Mas você sabe que eu nunca conto a ninguém o que você me conta.
Pezinhos infantis pisotearam a grama, afastando-se da gruta, e Cornélia gritou:
—    Mamãe! Mamãe! Eu estava contando a Laura o conto de fadas que a senhora me contou ontem!
Stephen não se mexera durante aquela narrativa inocente. Agora ele se deu conta de que estava coberto de suor frio. Guy Gunther, Alex Peale, Astor, Gould, Vanderbilt. Segredo. Rufus voltara dois dias atrás, com Cornélia. Antes de partir de Portersville, ele mencionara com naturalidade seu desejo de que Cornélia conhecesse Nova Iorque e que ele poderia “visitar alguns velhos amigos, se não estivessem fora". Não falara nada sobre Filadélfia. Ao voltar, Rufus dissera que Nova Iorque estava sem graça e vazia. Todo mundo tinha ido para Newport. Ele não vira ninguém de importante, nada de interessante.
“Devo confrontá-lo?”, perguntou-se Stephen. “Mas o que direi? Se eu mencionar essa conversa das crianças, ele há de se rir e vai tentar me fazer ver que não foi nada. E vou acabar acreditando." Stephen recostou-se no banco de mármore. “Mas o que é que eles podem fazer? A verdade é que possuo cinquenta e um por cento dos títulos e ações e esta casa, que meu pai me deixou."
Se bem que a Interstate Railroad Company tivesse deixado de distribuir muitos dividendos, era mais solvente que as concorrentes e ninguém poderia tomá-la, nem forçá-la à falência. A voz da lógica falou mais forte na cabeça de Stephen. O seu tremor frio passou. Mas, embora agora pudesse raciocinar com maior clareza, percebeu que estava sentindo um mal-estar tremendo, de corpo e espírito. O irmão, em quem confiara, era um maquinador incansável contra ele. Isso, afinal, era a coisa mais terrível para Stephen.
Lydia estava sentada sob o grande olmo junto da casa. O vestido leve, de seda lilás, com um feitio simples mas elegante, destacava seu corpo esguio. O rosto estranho e lindo estava debruçado sobre as duas meninas bonitas sentadas a seus pés. Ela levantou os olhos e viu Stephen se aproximando devagar e pesadamente pelo gramado. Cornélia soltou um grito de alegria, levantou-se logo e correu para o tio. A animação dela e sua beleza viva pareciam um sol irradiante à luz brilhante. Os cachos ruivos, arrumados com compridas fitas azuis, esvoaçavam atrás dela e o vestido de cambraia branco, com uma faixa azul, ondulava na brisa quente. Sua boca vermelha estava aberta, os dentes reluzindo, os olhos castanhos cheios de uma radiosidade vigorosa.
Laura, também de cambraia branca, mas com fitas cor-de-rosa, aproximou-se do pai com mais calma, os cachos escuros formando uma nuvem nas costas magras, o rostinho pálido sorrindo, com timidez, os notáveis olhos cinzentos brilhando.
Cornélia abraçou o tio com força, mas Laura esticou o rostinho fresco para ele beijar. Ela possuía um queixo alvo e com uma covinha, nariz alvo e arqueado, e sobrancelhas negras e inclinadas sobre os olhos. Stephen, ainda tremendo e quase mortalmente mal, controlou-se ò suficiente para beijar Cornélia brevemente e depois Laura. Pela primeira vez ele viu Laura, plena e completamehte. Sua filha. Sua filha ameaçada, com aquele ar inocente no rosto, sua delicadeza, seu ar misterioso, reservado! Ela era sua responsabilidade, ele seu protetor. Ele a levantou nos braços fracos e abraçou-a quase apaixonadamente, enquanto Cornélia olhava, meio intrigada.
Ainda com Laura no colo, e acompanhado por Cornélia, que estava ofendida, Stephen dirigiu-se para Lydia. Ela esperou, e quando viu o rosto dele, soltou uma exclamação e se levantou, farfalhando as sedas. Ela raramente falava com Stephen, mas agora exclamou, a voz estridente:
—    Stephen! O que é que há? Está doente?
Ele esqueceu que sabia que a cunhada o desprezava — por algum motivo desconhecido — e disse:
—    É o calor, Lydia, Eu... saí de casa para tomar um pouco de ar.
Eles ficaram se olhando e Lydia pensou: "Ele parece que está morrendo. Está segurando Laura como que a protegendo ". Seu coração começou a bater com compaixão e alarme. Mas, antes que ela pudesse tornar a falar, eie se afastou, levando Laura.
—    Não vai descer para o chá? — perguntou Rufus, solícito.
O irmão estava deitado na cama, esgotado, extenuado.
—    Há umas dez pessoas.
—    Não. Não, obrigado — disse Stephen, em voz baixa. — Estou com dor de cabeça. Por favor, peça que me desculpem.
Ele olhou para Rufus e seus olhos pequenos e despretensiosos ficaram fixos e penetrantes. Havia nele um ar desesperado, de súplica. Rufus sorria-lhe com compreensão, o cabelo espesso e ruivo fazendo um clarão no escuro do crepúsculo. Stephen estava pensando. "Se eu pudesse ter certeza! Será possível mesmo que eie esteja querendo me trair?” O seu corpo extenuado queria ser reconfortado, desejando saber que estava errado, para se consolar e poder, pela fé em pelo menos uma pessoa, continuar a viver.
Rufus desceu a escada, assobiando baixinho, pensativo. Não era possível que o pateta soubesse de alguma coisa. Ele. Rufus, tinha muita imaginação. Ele deu uma boa risada diante dessa lisonja e, cantarolando, voltou para o salão, onde Lydia estava sentada ao piano, distraindo as visitas.
Rufus sorriu e passou a mão na corrente do relógio, com ar tolerante. Observando a muiher linda ao piano, sentiu ardor no coração. Não conseguia se livrar dela. Ela era como a ponta envenenada de uma lança que nunca deixava de fazê-lo sofrer. No entanto, eie a detestava por ter fendo sua vida. Mas ultimamente se mostrara mais bomdosa para com ele. Os olhos de Lydia, por vezes, o contemplavam com tristeza, como se sentisse uma pena infinita dele. Ela estava com quase trinta e cinco anos, mais linda e esquiva do que nunca, mais misteriosa, e em seu rosto havia um brilho perolado, uma umidade em seus iábios que lhe lembrava a Lydia de onze anos antes, Ela parecia uma mulher apaixonada... Uma mulher apaixonada!
19
Como um homem morrendo de solidão e fome, Stephen começou a visitar seu amigo Joseph Baynes, com uma regularidade desesperada. Não queria nada dele a não ser a sensação de que o outro lhe era fiel e lhe tinha afeição e o consolaria no futuro insondável e sinistro.
Joseph Baynes, agora com seus sessenta e poucos anos, mudara pouco em dez anos. Continuava arrumado e elegante; suas feições delicadas não tinham perdido a finura com o passar do tempo. Ele, a mulher e os três filhos moravam numa casa de pedra, no “bairro errado” de Portersville. Quase não tinham amigos, a não ser Stephen e os Orville, nem os queriam, pois formavam um clã pequeno, desconfiado e invejoso. Stephen, em sua inocência, achava que eles eram “exigentes” e, aliás, Joseph muitas vezes dissera, com um ar superior, que ele era “difícil” para fazer amizades.
Joseph sempre parecia ficar feliz com as visitas de Stephen, bem como a mulher dele, Elsa, pequenina e rosada. Eles atiçavam o fogo na saleta pequena e úmida, oferecendo uma poltrona e xerez a Stephen, solícitos. Era um xerez muito ruim e barato, mas para Stephen, sentado ali junto da lareira com os amigos, bebericando, o vinho se tornava um consolo líquido e o esquecimento. Não notou que, recentemente, Joseph adotara um tipo de hostilidade falsa e óbvia demais e que Elsa, afastando o cabelo claro, espesso e despenteado, lhe lançava olhares maliciosos. Os filhos, mais francos, des denhavam a hipocrisia dos pais. A moça, Flora, moça bonita de dezessete anos, e os rapazes, Duncan, de vinte e dois, e Shaun, de dezenove, mal olhavam para Stephen quando ele entrava, e nem se levantavam. Isso deixava Stephen se sentindo muito humilde e aflito. Ele inventava para eles a desculpa antiga de que “não compreendiam” ou que, naturalmente, se aborreciam com gente mais velha.
Numa noite de outubro, Stephen sentia-se especialmente inquieto. Essa inquietação se tornara nele uma febre. Ele desceu a montanha a pé, para a cidade, atravessou a ponte sobre o rio negro e foi para a Cidade Leste. As ruas iam-se tornando cada vez mais estreitas, subindo e descendo as ladeiras, acabando em pequenos vales cheios de uma névoa fria. Lá as luzes das ruas eram poucas e tinham cheiro de óleo.
A lua estava imensa, como um disco de bronze, plantada no céu de pedra escura. O cheiro da fumaça ficou mais forte no ar parado de outono e as folhas mortas corriam à frente dos pés apressados de Stephen, sussurrando nas pedras. De vez em quando ouvia-se um grilo insistente.
A casa dos Baynes ficava num terreno de gramados mal-cuidados, emaranhado de árvores grandes meio mortas. Stephen subiu pela pequena entrada de mato crescido para a casa, onde brilhava epenas uma luz amarela. Levantou a aldrava manchada e a bateu, visitando. Quando Joseph abriu a porta e viu quem era seu visitante, sorriu, feliz, e disse:
—    E o Steve!
Apertou a mão fria de Stephen e o puxou para dentro de casa.
Então, enquanto Joseph tirava o sobretudo de Stephen, Elsa entrou no hall mínimo, sorrindo.
—    Querido Stephen — disse ela, com sua voz aguda e cristalina. — Que surpresa!
Ela se pôs nas pontas das botinas pontudas e deu um beijo de irmã na face de Stephen. Ela era cheia de curvas e protuberâncias, disforme, mas Stephen achava que sua gordura indicava uma natureza alegre e afetuosa.
Um olhar mais esperto do que o de Stephen teria notado a falsidade sob essa cordialidade acentuada. Mas ele estava sequioso demais de bondade para perceber isso. Entrou na sala desarrumada e surrada e não viu nada, só o fogo. Os filhos estavam ali, lendo, malhumorados, e nem levantaram os olhos. Isso não era nada fora do comum. Quando Stephen os cumprimentou, timidamente, eles murmuraram alguma coisa. Então, antes mesmo que Stephen sentasse no seu lugar de costume junto do fogo, numa poltrona surrada, Shaun e a irmã, Flora, levantaram-se e saíram depressa da sala, como se Stephen nem estivesse presente. Mas Duncan ficou.
Duncan, o mais velho dos três filhos, largou o livro nos joelhos, cruzou os braços sobre ele e ficou olhando para o fogo, furioso, calado. Era um rapaz troncudo e baixo, com um rosto moreno e vivo em que todas as feições destacadas exprimiam um mau humor imutável. O cabelo preto estava cortado rente, mostrando uma cabeça redonda e dura.
Um cálice de xerez foi dado a Stephen por Joseph, que manteve uma conversa rápida e ligeira. Stephen, que raramente notava alguma coisa, viu pela primeira vez que o cálice era grosseiro e viscoso e não muito limpo. O fogo não dava o calor costumeiro. Havia um ar de desconfiança no ambiente e, a despeito das declarações enfáticas de Joseph de que Stephen estava com bom aspecto, muito bom mesmo, e, a despeito das expressões de carinho de Elsa, Stephen ficou com mais frio ainda. Talvez fosse o jovem Duncan, sentado ali, tão antipático, tão concentrado no fogo.
Joseph, sentado defronte do amigo, a quem ele tanto devia, pensou: “Ele só tem seus quarenta e dois anos, mas parece ter mais de cinquenta. Ficou cinzento e encovado”. Ele disse:
—    Nunca o vi tão bem, Steve. Está com boa cor. Veio a pé?
—    Vim — disse Stephen, procurando se livrar da contemplação preocupada de Duncan. — Está uma noite bonita.
Ele bebericou seu xerez e a bebida o enjoou. De repente, ficou obcecado pelo desejo de fugir. Tentou controlar o desejo. Tinha ido procurar o amigo para se consolar. Eles ficariam sentidos se ele fugisse, inexplicavelmente. Ele lhes sorriu, debilmente. Elsa pegara os seus eternos cerzidos, mas o rosto gorducho conservava a animação e expressão de prazer automáticas. Ela começou a falar sobre coisas triviais, de vez em quando mencionando o nome de um vizinho. Aí sua voz risonha assumiu um tom altamente desdenhoso e despeitado. Stephen começou a se perguntar se ela sempre falara assim; não se lembrava.
—    Claro — dizia Elsa —, nunca nos metemos com essa gente vulgar. — Ela largou uma meia grossa e olhou para Stephen com um brilho vazio nos olhos castanhos. — Se ao menos Joseph tivesse tido tanto sucesso quanto você, Stephen, meu bem. Se tivesse tido as oportunidades! Mas o Joseph é tão correto e honrado. Joseph é um homem de princípios. — Ela suspirou, tornou a pegar a meia e a atacou com vontade.
Joseph disse, numa advertência branda:
—    Mas Elsa, meu amor, o Stephen nunca teve nada a ver com as maquinações do sr. Aaron. Stephen também é um homem de princípios. E se Stephen teve boas oportunidades, bem, é apenas uma questão de sorte e a misteriosa providência do Todo-Poderoso. Não devemos nos queixar.
Ele suspirou e lançou um sorriso paciente a Stephen.
—    Mas Rufus não é um homem de princípios — disse Elsa, enfiando a agulha com lã preta. — Como diz você, meu bem, não devemos nos queixar. Estamos contentes com o que temos.
Ela tornou a levantar os olhos para Stephen e neles havia uma acusação fria
e viva. Ele ficou alarmado e de repente cheio de culpa. Sim, era horrível para o coitado do Joseph e da Elsa. Ele se perguntou, aflito, o que mais poderia fazer por eles, para aliviar seu sentimento de culpa por possuir uma casa linda. “Se ao menos eu tivesse uma grande fortuna particular, poderia fazer alguma coisa por meus amigos”, pensou, infeliz. “Masjoseph tem tido tão pouca sorte com a ferrovia. E ele não sabe fazer negócios. A depressão o atingiu quase mortalmente, mesmo com o meu auxílio.”
Um rubor doloroso tingiu-lhe as faces, enquanto seu sentimento de culpa aumentava. Se ele conseguisse um bom empréstimo com eus títulos e ações, havia a possibilidade de poder de fato ajudar Joseph Elsa e os filhos. Ele começou a sorrir.
—    Tenho algumas idéias — disse, com brandura. — Deixem que eu pense um pouco nelas.
Duncan se pôs de pé, desajeitadamente, mas com propósito.
Olhou para Stephen quase com ódio.
Não vai fazer mais nada — disse. — Já fez bastante para meu pobre pai. Ainda não está satisfeito por tê-lo mantido num estado de ruína crônica estes anos todos, quando ele poderia ter-se aposentado, com uma renda decente? Ou ganhando um bom ordenado, em troca dos conhecimentos e da capacidade dele? — Ele se aproximou de Stephen, como que para bater nele. — Por que o impediu de vender a firma para a sua companhia, há anos, e aceitar um ordenado? Sei de tudo sobre esses vinte e quatro mil dólares que o senhor diz que ele lhe deve. Deve! Pagamento por uma chantagem, não passa disso! Esperando até poder engolir a companhia inteira, e ficando com esse empréstimo como uma espada sobre a cabeça dele! Se fosse um homem de sentimentos, teria ódio de si. — Ele cerrou os punhos.
—    O meu pai não lhe “deve” nada e, se tivesse fibra, lhe diría isso.
Joseph e Elsa ouviram aquela explosão num estado de paralisia e horror apatetado. Uma coisa era eles enganarem os filhos; outra era Stephen saber dessa traição. Joseph maldisse o filho, em seu pavor frenético; Elsa ficou branca e sua boca grande e cheia abriu-se, numa exclamação de terror.
Stephen não conseguia falar, só olhar para o rapaz, estupefato e com um desgosto mortal. Um silêncio súbito e terrível abateu-se sobre a sala.
“É”, pensou Stephen, com compaixão e tristeza quase avassaladoras,” Joe contou isso ao rapaz para conservar o seu orgulho aos olhos do filho, para conservar o seu respeito próprio, para reforçar as muralhas de seu ego, que estão desmoronando.”
Sua compaixão parecia uma chaga esmagante no peito. Ele queria dizer alguma coisa àquele rapaz zangado, indignado, não para explicar, mas para tentar conservar intacto o respeito dele pelo pai. Mas não conseguiu encontrar palavras, pois não tinha eloquência, nem a oratória da falsidade.
Joseph Baynes começou a falar, com a voz aguda e esganiçada do pânico desmoralizado:
—    Duncan, você não sabe o que está dizendo! O Steve é meu melhor amigo...
—    O seu melhor amigo! — exclamou Duncan, apaixonadamente — O homem que fez o senhor lutar durante anos, pagando juros ilegais sobre o “empréstimo” dele e lhe privando do conforto e segurança que devia ter, na sua idade!
Joseph virou-se para Stephen, implorando, o rosto prateado de suor.
—    Steve, o rapaz... Você tem de perdoá-lo, Steve.
Stephen levantou os olhos cansados para o outro, a boca já formando palavras de consolo; seu único desejo era aliviar a aflição de
Joseph. E então sua vista clareou, sua compaixão desapareceu e ele só sentiu amargura. Estava certo, o homem se desculpar com o filho mentindo para salvar as aparências. Mas havia um limite. Stephen se ouviu dizer, com uma voz abafada:
—    Joe, lembra-se que um dia me disse que o suicídio era a sua única saída
e eu...
—    Você o quê?! — exclamou Duncan, com um novo acesso de raiva. — Levou o meu pobre pai a isso? — Ele cerrou os punhos jovens e carnudos, olhando para Stephen com os olhos negros cheios de vontade de matar. — Seu desgraçado desprezível! — berrou — Eu devia matá-lo! Se não fosse a lei... Meu Deus, pai — e ele se virou para Joseph, que tremia —, não vai mais calar sobre isso! O agiota e ladrão, como vem chamando o seu amigo, há tantos anos, esse homem de quem nos vem falando desde que éramos crianças...
“Agiota! Ladrão! “Stephen pensou nas promissórias sem juros que Joseph lhe tinha empurrado, contra seu protesto. Pensou no dia em que Alice morrera sozinha devido aos problemas prementes de Joseph — em que Joseph lhe dissera, sombrio, que a morte era sua única solução possível e ele, Stephen, o salvara. Pensou em sua honra, que ele sacrificara por Joseph Baynes, ao lidar com o senador Peale. E Stephen sentiu-se tão mal que lhe pareceu estar se afogando num vômito.
Elsa estava frenética; começou a chorar convulsivamente. Joseph só conseguia ficar entre o filho e o amigo. Depois gaguejou, desesperado:
—    Steve, não culpe o menino...
—    Não o culpo — respondeu Stephen, com brandura. Ele olhou para Duncan e toda a sua imensa compaixão lhe voltou, numa onda. — Diga-me, Duncan, o que queria dizer com o que seu pai vem lhe contando desde que era menino?
Duncan ficou calado, preso pela expressão estranha naquela cara cinzenta abaixo dele, aquele sorriso triste que não o condenava. Ficou meio abalado. Olhou depressa para o pai e uma incerteza terrível surgiu no rapaz.
Dilacerado entre o medo e a vergonha, as lágrimas começararam a encher os olhos de Joseph.
—    Você me perdoe, não deve pensar, Steve... — disse, tristemente.
Stephen se levantou, devagar. Virou-se para Elsa, que estava chorando; olhou para Duncan de rosto virado; olhou para Joseph
—    Eu sei, eu sei — murmurou. —Está bem. Eu compreendo
Ele foi para o vestíbulo e Joseph o acompanhou. Uma vez lá,
Joseph suplicou de novo:
—    Steve, você é meu amigo. Diga que sempre será meu amigo. O rapaz está confuso; não sabia o que estava dizendo. Eu nunca...
Stephen, na sua misericórdia, ergueu a mão. Não podia suportar que Joseph lhe mentisse, dissesse que o filho era mentiroso.
—    Está bem, Joe — repetiu.
Ele tocou no ombro de Joseph e o outro abaixou a cabeça, com todo o seu corpo tremendo. Então, Stephen foi-se embora, com um andar de velho. Joseph ficou olhando até ele desaparecer rua acima. Então, voltou para a mulher, que soluçava, e o filho de cara áspera, Ele exclamou, numa voz atormentada e fina:
—    Por que você contou a ele todas essas coisas? O que está querendo me fazer, me arruinar? Ele era meu convidado, meu amigo, nessa casa, e você...
Duncan levantou-se e seus membros fortes tomaram um contorno de ferro. Em seus olhos brilhava um ódio tremendo.
—    Ah — disse ele, numa voz assombrada e tensa —, o senhor é um mentiroso, não é? Mentiu para nós, o tempo todo, não foi? Por quê?
Elsa interrompeu:
—    Fale com ele, Joseph. Conte que você estava querendo poupar o Stephen, embora ele não o mereça.
Duncan esperou e, como o pai não respondesse, sorriu, sombrio.
—    Não, não fale, pai. Acho que vou preferir que o senhor não diga nada.
“Não tenho para onde ir”, pensou Stephen, caminhando debilmente pelas ruas calçadas de pedras. “Não tenho para onde ir.
Nenhum alívio nem refrigério nem bondade.” Era tudo mentira; ele passou a vida toda mentindo para si. Ninguém jamais tinha um amigo. Agora estava tão evidente, a traição horrível que vivia no coração de cada homem, a falsidade ávida, a inveja consumidora, a ganância, a inclemência, a alegria tripudiante com a dor alheia.
Passo a passo, ele seguiu sob os lampiões de rua altos e solitários e seus passos lhe ressoaram surdamente. As casas estavam escuras, retraindo-se dentro da noite. Uma névoa se desprendia das pedras molhadas, girando em volta dos lampiões, esvoaçando sobre os gramados mudos. Até mesmo os grilos estavam calados. A lua se reduzira a uma bola branca redonda e dura, compacta como a neve, rolando por faixas de nuvens negras.
De repente, Stephen achou que não podia dar mais nem um passo. Chegou a um cocho de cavalo e se encostou nele, ofegante.
Tentou apelar para suas forças. Disse consigo: “Não posso culpar o velho Joe. O que lhe restava senão mentir aos filhos?” Mas a angústia não dava sossego a Stephen.
Ele nem se sobressaltou quando sentiu que alguém lhe pegava o braço, com força e rudeza. Teve de usar toda sua força para levanrar a cabeça. Alguém estava a seu lado, alto, dominando-o como uma estátua escura, malfeita, com um sobretudo volumoso.
—    Vi você saindo da casa do Baynes — disse Jim Purcell, Acompanhei-o para ver se queria condução. Estou com minha charrete aqui. Entre, Steve.
Mas Steve teve de ser quase carregado para dentro, da charrete usada e arranhada. Ficou caído nas almofadas de couro rachado. A charrete seguiu enquanto Jim fumava, calado. Depois, ele disse:
—    Noite fria, para se sair. Por que não veio com um daquiles malditos carros ou caleches seus? Você está precisando é de beber alguma coisa. Muito, até. Vamos para minha casa.
A charrete foi chocalhando e rangendo pelas mas, a névoa esvoaçando em volta. Stephen não conseguia dar um pio: uma exaustão profunda o mantinha calado. Agora não lhe importava para onde fosse. Só sentiu vagamente que atravessavam o rio. Ele começara a tremer de frio, os dentes batendo. Purcell não olhava para ele: dirigia o cavalo velho, dando com as rédeas no lombo dele, fazendo barulho com a boca.
A casa de Purcell na Cidade Oeste era uma mansão tão grande quanto a do secretário de Estado auxiliar (ex-senador Peale), e ficava em River Road. Mas era uma casa quadrada e feia, de tijolos amarelos, o andar de cima projetando-se para fora dos inferiores numa curva. Fendas estreitas de janelas de topo oval cortavam a fachada, as cortinas invisíveis do lado de fora. Essas janelas eram tão juntas, nos quatro andares, que davam à casa um ar de quartel, árido e desdenhoso. Nenhuma árvore suavizava as linhas do prédio pouco interessante e nem havia arbustos enfeitando-o com suas massas. A casa ficava isolada em seus gramados amplos e cortados rente e nela havia algo de áspero e implacável.
Stephen já entrara naquela casa algumas vezes, com relutância. Ela o revoltava, com seus aposentos enormes, mal mobiliados com móveis de mogno cobertos por tapeçarias ou estofos de crina escuras, os espelhos brilhantes pendurados sem gosto algum, os tapetes esparramados de rosas e folhas verdes, as mesinhas de tampo de mármore, os cortinados de veludo vermelho ou azul mal pendurados, as lareiras com reposteiros de veludo, os corredores estreitos, portas pesadas e lampiões imensos, sempre acesos. Purcell, que não reparava em nada a não ser nos seres humanos e em seus negócios, era indiferente ao pó que se juntava e os empregados se aproveitavam disso.
Nessa noite, Stephen nem notou a decoração repelente da biblioteca. Purcell levou-o para lá. Ele tinha a maior biblioteca de Portersville e já lera quase todos os livros. Um grande fogo crepitava na lareira; a sala estava muito quente, a despeito de sua vastidão, as janelas apinhadas, as paredes guarnecidas com couro. Purcell fazia questão de ter calor, acima de tudo.
Ele fez Stephen sentar-se, abriu um armário alto e pegou dois copos grandes. Encheu o de Stephen pelo meio.
—    Tome, beba — disse ele. — Está precisando. — Stephen olhou para o copo, sem ver, e depois seus olhos vazios percorreram a sala, cegamente. “Ele teve um choque”, pensou Purcell. “Imagino bem. Descobriu alguma coisa sobre aquele fuinha beato, o Baynes. Bem, não havia como avisá-lo, o coitado do idiota.” — Ande, Seteve — disse ele, com sua voz áspera. — Beba.
Obediente, a mão trêmula, Stephen levou o copo aos lábios, De repente pensou em Aaron, brincalhão, que o obrigara a tomar remédio, dez anos antes. Ele disse, com a voz fraca, mal sabendo onde estava ou com quem falava:
—    Você me lembra meu pai...
—    Bom — disse Purcell, jogando o corpo maciço numa poltrona em frente e começando a beber. — Seu pai e eu tínhamos muita coisa em comum. Então? Vai beber ou não?
—    É muita coisa — disse Stephen, com seu jeito polido e doentio.
Ele bebeu o uísque de repente, em goles grandes e sequiosos, enquanto Purcell o examinava pelos cantos dos olhos. Stephen largou o copo. Seu tremor começou a melhorar. Ele se debruçou para o fogo e olhou para Purcell com aquele olhar cego, procurando alguma coisa. Purcell bebia, placidamente. Por fim, acendeu o cachimbo. Esperou. Do hall veio o bater forte e dissonante de um
relógio.
Purcell esperou muito tempo, enquanto as feições abatidas de Stephen ficavam fixas e sem expressão, à luz do fogo. Purcell disse consigo: “O mundo é demais para ele; é sempre demais para esses tipos. No fim, acaba com eles. Eles são mortos, tão certa e impiedosamente como se lhes enfiassem um punhal nas costas. E nunca se pode ajudá-los”.
O uísque estava surtindo efeito em Stephen. Ele nunca bebera tanto de uma vez e, em seu estado debilitado, foi extraordinariamente afetado. Seu sofrimento recuou; o fogo se ampliou diante de seus olhos, tornando-se uma conflagração. Seu corpo estava quente; seus pés e mãos perderam o sentido do tato. Sua vista se turvou e ele se descontraiu. Suspirou, repetidamente, e esse som lamentável soou forte no silêncio.
—    Não me lembro de ter vindo para cá, Jim — disse ele, a língua meio grossa. Ele se recostou na poltrona, muito devagar, e segurou os braços, pois estavam balançando. — Sou muito grato.
Eu... estava com frio.
0 rosto grotesco de Purcell parecia cada vez mais perto dele e Stephen levantou a mão, como que para repelir aquela presença dominante. Purcell continuava sentado, fumando.
—    Acho que você me deu demais, Jim — disse Stephen, com uma risada
fraca.
—    Eu o levo em casa, não se preocupe.
Stephen o fitou, vidrado e confuso.
—    Jim — disse, balbuciando —, por que me trouxe para cá? Por que está sempre perto de mim? Quando éramos crianças... não sei. Não consigo pensar claramente. Você nunca disse... diz... muita coisa. Nós... nós não temos nada em comum. Sou agradecido, mas nunca entendi.
—    Talvez seja só porque eu goste de saber que no mundo há gente como você — disse Purcell, com um de seus sorrisos feios. — Não seiApor que, mesmo. Talvez o seu pai também gostasse de saber disso. E um consolo.
Stephen tentou focalizar a atenção e franziu a testa.
—    Consolo? — repetiu. — Que consolo lhe posso oferecer? Você é auto... autossuficiente.
—    Talvez — respondeu Purcell. — Por falar nisso, há alguma coisa que você queira me contar, Steve?
Stephen juntou as mãos e as torceu.
—    Acho — balbuciou — que estou com medo.
—    De quê? — perguntou Purcell, com naturalidade.
Stephen levou uma das mãos à testa. Agora estava embriagado, mas sua natureza impedia as confidências.
—    Não sei bem. Talvez esteja imaginando coisas. A gente às, vezes imagina.
—    Todos nós temos medo de alguma coisa, todos nós, disse Purcell. — Quando não é isso, é aquilo. Pensa que é o único que tem problemas neste mundo? Olhe só para mim: vivo cercado por eles. Às vezes nem consigo dormir. — Ele sorriu para Stephen, com um humor vulgar. — E por isso que estou sempre
bebendo uísque; me encharco. Você devia aderir a isso, Steve. — Ele parou. — Quer me contar?
Mas Stephen estava murmurando, incoerente:
—    Meu pai. Tal e qual você. Ficava sentado na sala... Nunca me amou. E eu só queria um cachorro. Nunca tive um cachorro. Agora não quero mais. O cachorro que eu queria já morreu há muito tempo. Era uma coisinha linda: ficava me seguindo.
Purcell ficou calado. Tirou o cachimbo da boca e o fitou, a cara fechada. Depois disse:
—    O que aconteceu entre você e o Baynes?
—    Naaa — murmurou Stephen. — Foi o rapaz, Duncan. Ele não compreendeu.
—    Tem muita gente que não compreende, segundo você, Steve. Mais ou menos: “Perdoai-os, Senhor, pois não sabem o que fazem”, hem? Bom.
As palavras ressoaram no cérebro entorpecido de Stephen. Perdoai-os, Senhor, pois não sabem o que fazem. Senhor... perdoar... perdoar... perdoar....
—    E, é — disse Stephen. — Perdoar. Eu sempre me esqueço disso — acrescentou, desculpando-se. — Devia me lembrar. — Ele respirou fundo e por uns segundos venceu sua reserva. — O rapaz... pensava... que o pai estava me pagando juros de vinte e quatro mil dólares. Sabe, Joe precisava de dinheiro para a sua ferrovia... a Capital estava tentando consegui-la e acho que Rufus... Duncan estava muito zangado. Joe deve ter... deve ter...deixado que ele entendesse mal. Era natural, claro; Joe tinha o seu orgulho. Coitado do Joe.
Purcell disse:
—    Sei. 0 mundo está cheio de “coitados dejoes”. E sempre conseguem mais “coitados de Joes” para ajudá-los. Não importa. Já é tarde para lhe dizer alguma coisa, Steve. Creio que há alguma coisa na Bíblia. “Aquele que fica por fiador de um estranho cairá na desventura.” Provérbios.
—    Você me acha um pateta? — perguntou Stephen, com um sofrimento aturdido.
—    Bom, claro. Mas você não pode evitar, foi feito assim. Goethe: “Assim tens de ser... não podes escapar a ti.” Tem boas coisas nesses livros aí. Se existe um Deus, eu às vezes me pergunto por que Ele fez gente como você. Gosto de pensar nisso, sentado aqui sozinho junto do fogo. Quase consegui a resposta um dia, uma resposta idiota que não fazia sentido. Veja você, Steve: está pagando a todos esses ferroviários do seu bolso. Já faz um ano, hem? Esgotando-se. E quem é que fica com o crédito? 0 Rufe Ruivo, que sofre por seu semelhante. Os trabalhadores o detestam porque não têm trabalho, quando todo o maldito país está desempregado. Nunca pensam.
O ronco na cabeça de Stephen estava tão violento que ele apertou-a com as mãos, afundando mais na poltrona. Murmurou:
—    Não importa quem leva o crédito por isso. Para mim, basta saber que eles não estão morrendo de fome. Os diretores não me deixaram pagar aos trabalhadores com os fundos da estrada de ferro; sugeri isso uma vez e eles se riram como se eu estivesse louco. Assim, teve de sair de meus fundos pessoais. Não tenho dinheiro — acrescentou, com simplicidade. — A casa me custa muito. Tenho de tirar emprestado sobre os meus títulos e ações só para as despesas e
continuar a viver. Vou a Nova Iorque.
Purcell se endireitou na poltrona, devagar, observando Stephen atentamente.
—    Também é a Chicago Railroad System... um sorvedouro imenso — sussurrou Stephen. — Eu poderia manter os operários com a minha retirada, mas há tantas outras coisas. As vezes, tudo parece ser demais para mim. — Então, sua angústia mental extravasou por cima das comportas de sua cautela normal. — Quando as coisas melhorarem, vou poder reaver os títulos e ações. Devem melhorar...
—    Vão piorar — disse Purcell, em voz áspera. — A depressão ainda não acabou. Então, o que vai fazer?
Stephen esfregou as faces até arderem.
—    Não sei.
—    De quanto precisa, Steve, para continuar a viver por algum tempo, no seu jeito idiota de viver?
Stephen murmurou:
—    Acho que uns quarenta mil dólares. Não posso usar o que vou levantar em Nova Iorque sobre meus títulos para despesas pessoais... ou os trabalhadores. Não seria direito: os títulos e ações são um fundo; pertencem à estrada. Portanto, o que levantar sobre eles será para o bem da companhia. Mas esses quarenta mil dólares...
—    Eu lhe empresto esses quarenta mil agora, lhe dou um cheque meu — disse Purcell.
Stephen deixou cair as mãos e fitou o outro, sem poder acreditar. Uma luz começou a brilhar em seu rosto, aos poucos. Ele exclamou:
—    Minha promissória pessoal...!
Purcell sacudiu a cabeça e respondeu com brutalidade, devagar:
—    Não serve para mim, Steve. Quero suas terras de carvão... seus imóveis em volta de Wilkes-Barre e Scranton. Uma venda direta, para mim.
A cor desapareceu do rosto de Stephen. Aos poucos ele se levantou da poltrona, agarrando as costas com as mãos suadas e colocandose atrás dela. Purcell o observava, imóvel e fumando, com interesse e isolamento. Suas feições polpudas assumiram os contornos de concreto endurecido, descartado e deixado secar sem uma fôrma.
—    Você chegou lá primeiro, Steve: uma das poucas coisas espertas que fez na vida. E quero aquelas terras. Vou explorá-las: você nunca terá o dinheiro. O que me diz?
A voz dele estava forte e estridente nos ouvidos de Stephen.
Stephen sussurrou:
—    Não posso. Tenho de proteger Laura. Você me trouxe aqui, me deu uísque demais, para poder me arruinar, roubar de minha filha...
Purcell deu de ombros.
—    Pense o que quiser, Steve. Não posso controlar os seus pensamentos. Você está precisando de quarenta mil dólares. São mais dez mil do que o que
pagou por aquelas terras. Está fazendo um bom negócio. Acho melhor aceitar. O que mais pode fazer?
Stephen não conseguia dizer coisa alguma; só conseguia se afundar na poltrona, como um animal desesperado, encurralado num último refúgio. Sua respiração estava cada vez mais rápida, até ele ficar ofegante. Então disse, com uma voz abafada e trêmula:
—    Muitas vezes me disseram que você era um homem mau. Joe e Tom me disseram. Ouvi muitos casos... exploração... impiedade... crueldade.
Purcell ergueu as sobrancelhas.
—    Não perca tempo falando, Steve. Fico com as terras ou não?
São quarenta mil dólares. Pense em todos os salários que pode pagar aos seus camaradas, embora não haja trabalho para eles. Vai deixar que passem fome, Steve? — Ele esperou, observando os olhos arregalados, a boca aberta, aquela cara abalada. — Claro, você pode parar de pagar, Steve. Não vai mais haver os cheques semanais, assinados por Rufus, o seu vice-presidente executivo, depois de você ter depositado seus fundos pessoais nas contas da estrada de ferro. Para os homens. Expulsos, é o que serão. Catando comida no lixo. As crianças sem pão. Pense nisso.
Stephen levantou os olhos, o rosto envelhecido e abatido. Purcell estava sentado à sua escrivaninha e o roçar da caneta se ouvia bem, no silêncio. Ele se levantou, agitou o cheque diante do fogo e depois o estendeu a Stephen.
—    Escrevi no verso: “Recebido em pagamento pelas terras localizadas nas vizinhanças de Wilkes-Barre e Scranton. Contrato a ser assinado dentro de tíinta dias”. Deposite-o na sua conta pessoal, Steve, para não haver falatório. Aí vai poder sacar para pagar aos seus trabalhadores. Como tem feito. Ppndo nas contas da estrada de ferro.
Stephen não se mexeu. Purcell se áproximou e pôs o cheque na mão dele. Enfiou as mãos nos bolsos' desajeitados.
—    Você está cansado, Steve. E melhor ir para casa, dormir. O uísque vai ajudar. Também estou meio cansado. Vou acordar um dos meus rapazes e ele o leva em casa. Vou para a cama.
Stephen olhou para o cheque, sem dizer nada. Depois, levanlou o rosto arrasado e olhou para Purcell com uma angústia acusadora. Purcell não pareceu se comover. Tornou a dar de ombros.
—    Rufe não lhe emprestaria quarenta mil, Steve. Mas poderia se oferecer para comprar suas terras por quinze mil. Estou sendo seu amigo, Steve.
—    Amigo, amigo — repetiu Stephen. Seus olhos se turvaram, ele se virou pára o lado.
Na manhã seguinte, Stephen estava sentado à sua mesa num estado de paralisia. Tinha acabado de depositar os quarenta mil dólares na sua conta pessoal e depois, imediatamente, transferira vinte mil para as contas da estrada de ferro, no banco-. Seus trabalhadores tornariam a viver em alguma tranquilidade, até que passasse a depressão. Mas Stephen só sentia angústia e desesperança.
Sua mesa estava cheia de contas que ele trouxera de casa naquela manhã. Pareciam uma exigência inexorável, que tinha de ser atendida. Ele pegou a caneta, mas parecia um pesado bastão de ferro em suas mãos. Seu assistente entrou,
pigarreou e disse:
—    Sr. Stephen, está aí um rapaz para falar com o senhor, um sr. Duncan Baynes.
Stephen se encolheu. Seu primeiro impulso foi recusar-se a receber o jovem Duncan. Depois disse, em voz débil:
—    Mande-o entrar.
Ele se recostou na poltrona, preparando-se para mais insultos e recriminações. Só estava certo de uma coisa: não trairia Joseph. No fundo de sua mente, uma voz zombava dele: “Coitado do Joe... coitado dojoe... coitado dojoe...”
Duncan Baynes, meio truculento, meio encabulado, entrou com o chapéu na mão. Sua cabeça dura e redonda erguia-se acima dos ombros largos como uma bola superposta e suas feições fortes estavam sérias. Ele foi logo dizendo:
—    Sr. DeWitt, ontem eu não sabia. Vim me desculpar e pedir que não ponha muita culpa no meu pai. Ele nem dormiu; notei que ficou andando de noite. Receia que o senhor não seja mais amigo dele.
Stephen tentou falar, o seu sofrimento renovado, mas não conseguiu. Duncan continuou:
—    Imagino que esteja contra o meu pai. Não o culpo, de certo modo. Mas o meu pai é mesmo seu amigo; só nos mentiu para salvar o orgulho dele. Não é um homem nobre, eu acho: é fraco.
A compaixão traidora de Stephen o fez fechar os olhos, com pesar e compreensão.
—    Você não deve culpar seu pai — disse ele, com brandura.
—    Não é culpa dele. Em breve vai conseguir se refazer. Ele não deve se preocupar com esse dinheiro. Eu... não me preocupo. Um dia desses ele me paga. Você deve ter confiança em seu pai.
Duncan examinou aquele rosto cavado e os olhos fechados. Pensou: “Por Deus, um homem bom! Nunca vi um na vida.” Disse então:
—    Se o meu pai não conseguir lhe pagar, sr. DeWitt, nós pagaremos.
Stephen abriu os olhos. Parte do sofrimento tinha desaparecido do rosto dele. Ele conseguiu até sorrir um pouco e disse, em voz mais forte:
—    Compreendo tudo. O seu pai lhe contou a verdade sobre o assunto, Duncan?
Duncan hesitou. Depois mentiu:
—    Contou, sr. DeWitt. Ele... — e o rapaz sorriu, com pesar, como que se lembrando de uma conversa tempestuosa com Joseph
—    ele fez um barulho danado comigo. Agora entendo tudo. — Ele olhou para Stephen, desconfiado. — O meu pai disse que se não fosse o senhor teríamos perdido a Locais. Disse que o senhor tinha recusado todos os juros, que, na verdade, queria dar o dinheiro a ele de presente, e não emprestado.
O sorriso de Stephen acentuou-se e ele suspirou, como se uma angústia insuportável o estivesse deixando.
—    0 seu pai lhe contou a verdade, Duncan. Recusei as promissórias dele, por tanto tempo. Mas ele insistiu. Achou que era mais comercial. Então, para
fazer-lhe a vontade... e ele tem tanto orgulho... aceitei as notas. Mas ele lhe contou tudo isso, não foi?
O rosto de Duncan ficou mais escuro, com algo de ódio e desprezo pelo pai. Estava horrorizado. Isso era muito pior do que o que tinha esperado. Disse, em tom sério:
—    É ele me contou, sr. DeWitt, não diga a ele que vim aqui hoje, sim? Ele podia achar que era presunção de minha parte.
Stephen estendeu a mão, sorrindo para Duncan como um pai.
—    Claro que não conto a ele, meu filho. Entendo a sua reserva. Mas não fique contra o Joe. E um bom homem, é meu amigo.
Duncan apertou aquela mão fria e trêmula e, pela primeira vez, desde seus oito anos, teve vontade de chorar.
20
A grande crise estava se tornando evidente a alguns homens de raciocínio, quando o mal intrínseco da Revolução Industrial afinal se tornou vagamente patente, mesmo em Washington. Uma produção enorme e irrestrita da indústria não era equiparada por uma absorção correspondente. Os mercados externos, deprimidos por guerras inúteis e loucas, não podiam importar os produtos americanos, nem os seus fabricantes febris podiam vender os produtos a uma população sem dinheiro.
Nos Estados Unidos, milhares de pessoas anualmente largavam as lavouras para “trabalhar nas estradas de ferro” ou nas fábricas, e as terras aos poucos foram sendo abandonadas. As cidades jaziam numa verdadeira paralisação de desemprego e de fome, enquanto os fazendeiros se exauriam trabalhando sem a devida assistência. A Inglaterra, que controlava os mercados mundiais, sofreu menos do que os Estados Unidos e outros países.
Como uma máquina incapaz de se.conter, as usinas e fábricas continuavam a despejar mercadorias, a despeito da incapacidade nacional de vendê-las. E, em segredo, os homens ricos, proprietários dessas usinas e fábricas, se reuniam para debater o modo de enfrentar a crise. Chegaram ao acordo de que somente guerras poderíam, estimular a absorção dos produtos. No entanto, notava-se que poucas nações, no momento, estavam interessadas em guerras.
Quando o presidente Hayes apelou para que os novos habitantes das cidades voltassem ao campo, a fim de evitar a crise industrial, ou vencer suas manifestações imediatas, seu pedido encontrou oposição. Em certa ocasião ele disse a um confidente: “As terras não são mais o objetivo das guerras. Os mercados e a destruição são as novas metas.” Ele sugeriu um plano, pelo qual os novos imigrantes para os Estados Unidos fossem quase exclusivamente lavradores, que fossem colonos ou trabalhassem em bons sítios, já preparados. Insinuou, esperançoso, que o Congresso tornasse obrigatório os imigrantes seguirem imediatamente para o campo, sob pena de serem deportados. Seus inimigos, e vários amigos, reclamaram indignados, dizendo que isso seria “ditadura, contra os princípios da Constituição”. Ele então comentou, com ironia: “Parece que ninguém quer privar os americanos, ou os imigrantes, de seu direito soberano de morrer de fome. “Mas, como era homem de idéias, passou a sugerir que, já que os industriais persistiamóem produzir produtos que ninguém podia pagar, seria um ótimo plano fazer trocas com as nações que desejavam comprar os produtos americanos, mas que não tinham dinheiro. “Medievalismo!”, exclamaram seus inimigos. O presidente deu de ombros e resolveu que não seria

o candidato republicano em 1880.
Surgira outra crise, observada por poucos: os homens das cidades, sem propriedade e sem raízes, morando em cortiços, não conheciam nada da terra e, consequentemente, não participando da nação, nem tendo contato com suas raízes, tornaram-se criaturas sem honra, ou identidade. A dignidade os deixara com a terra que lhes caíra das mãos.
A crise tornou-se ainda mais terrível em 1877. O povo faminto e enlouquecido quase perdeu a cabeça. Cada vez mais usinas e fábricas se esvaziavam; máquinas e fornalhas se calaram. Como as estradas de ferro se tinham tornado tão importantes na vida da nação, constituíam o principal motivo de ressentimento de parte dos lavradores, que descobriram que quando as cidades não tinham dinheiro para comprar pão e carne, eles também sofriam. Além disso, as estradas de ferro tinham conseguido antagonizar os lavradores devido à sua opressão. A maioria aumentava as tarifas à vontade, algumas tão elevadas que o fazendeiro não podia despachar seus produtos.
Um poderoso grupo de ferroviários impedia que o governo federal ou estadual regulamentasse os preços a favor do público, fosse da cidade ou dos campos. Grande parte das melhores terras do oeste tinha sido reservada pelas estradas de ferro, a preços baixos. Milhares de lavradores, desencorajados com isso, se recusavam a se mudar para terras e mercados novos. Centenas de lavradores do meio-oeste, segundo informações recebidas no leste, estavam até queimando seu milho de quinze cents, como combustível. No leste, o milho estava custando um dólar, mas o custo de enviá-lo a mercados mais escassos era proibitivo pelas tarifas ferroviárias.
A crise na história do mundo tomou corpo. Freneticamente, o povo das cidades olhava em volta, procurando bodes expiatórios. Era inevitável que os encontrassem nos infelizes imigrantes da Europa, "que trabalham por quase nada e estão tirando o pão da boca de nossos filhos”. Notou-se que os imigrantes criavam favelas; a correlação entre os salários de fome e as favelas não foi notada, ou ignorada. O imigrante, como pessoa, era a “causa” da miséria do trabalhador urbano. Então, o ódio racial, e especialmente o ódio religioso, explodiram pelas ruas apinhadas das cidades desesperadas, O mascatezinho judeu, faminto e barbudo, com sua carrocinha de mercadorias baratas, o irlandês de sotaque estranho, com sua religião “papista”, eram protótipos do mal apresentados a uma população frenética. Quando os imigrantes irlandeses, indomáveis e corajosos, que trabalhavam por quase nada nas minas e fábricas da Pensilvânia, constituíram seus “Molly Maguires”, numa tentativa de aumentar os salários em geral, os “antigos” trabalhadores americanos, que deveríam ter sido seus auxiliares e adeptos mais fervorosos e entusiásticos, encontraram uma nova fonte de ódio nessa união "pouco patriótica e estrangeira”.
Os Estados Unidos, com milhões de hectares por explorar, com milhões de alqueires de trigo e milho não sendo vendidos às cidades famintas devido às altas tarifas ferroviárias, com armazéns industriais lotados de produtos que poucos podiam comprar, com dezenas e centenas de milhares de lavradores partindo para as cidades — onde colidiam com as torrentes esfarrapadas de imigrantes também à procura de trabalho que não existia —, tinham chegado à mais grave crise de sua história, que não se resolvería no futuro, a não ser com guerras propositadamente planejadas para absorverem os produtos das máquinas.
As estradas de ferro dos Estados Unidos, tendo parcela de culpa nessa triste conspiração contra o mundo, de repente se viram mergulhadas nela. A mais tremenda greve ferroviária começou em 1877.
As estradas de ferro tinham tido uma grande prosperidade desde a Guerra de Secessão. Obtiveram lucros fabulosos com o funcionamento de suas linhas; tinham regado suas ações com mão generosa. Quando a crise se alastrou na vida do país, os-dirigentes das estradas, para compensar a redução de rendas, recorreram a práticas desprezíveis, como a construção de pontes baratas, que caíam com grandes perdas de vida, a negligência da manutenção e a redução de salários. Tentaram abolir, por meio da legislação, os protetores da lavoura: os fazendeiros iniciaram uma guerra demorada e séria contra os transportadores.
Durante muito tempo, enquanto a crise se agravava, as ferrovias continuaram sua vida, felizes. As companhias maiores, como que demonstrando seu desdém pela miséria universal, continuavam a distribuir bons dividendos. A Central Pacific distribuiu a seus acionistas oito por cento sobre o capital, enquanto reduzia os salários em dez por cento. A New York Central fez o mesmo. Apenas algumas estradas de ferro, como a Chicago Railroad System e a Interstate Railroad Company, deixaram de distribuir dividendos e, por instigação de Stephen DeWitt, não reduziram os salários. E por fim a Interstate era a única estrada de ferro que não procurava destruir as confrarias ferroviárias.
Por todos esses motivos, Stephen estava condenado. Não podia competir com homens perversos. Sozinho, não podia desafiar a tormenta da crise industrial que rapidamente se estendia sobre o mundo inteiro. Não podia apontar para toda a humanidade, que, aviltando e abandonando a terra por uma fornalha e uma máquina, estava se degradando e se escravizando. Não podia dizer: “Há dignidade e segurança na terra”, só “há desenraizamento e uma ameaça constante de fome nas usinas.”
Desse modo surgiu a era dos homens sem brio. E, por serem homens Sem brio, tornaram-se presa calculada dos futuros malfeitores do governo. Com uma visão interna e profética, Stephen distinguia isso vagamente e ficava doente com o que via.
—    Não sei aonde ele conseguiu o dinheiro para pagar aos cães — disse Rufus a Guy Gunther, em Nova Iorque. — Não é muito, embora ele não tivesse reduzido os salários — disse rindo. — A ironia é que a confraria e os “Molly Maguires” o detestam, achando-o um “explorador rico”. Bem, isso sempre acontece com os tolos. Mas agora podemos agir contra ele.
—    Espere — disse Guy Gunther. — Há uma crise se aproximando. Você já esperou dez anos, pode esperar mais um pouco.
Durante a crise, o desemprego e a redução de salários, as confrarias ferroviárias tinham-se mostrado singularmente pacientes, talvez porque tivessem líderes ajuizados, que não acreditavam que as greves trariam imediatamente a prosperidade. Mas a providência da Baltimore and Ohio, anunciando, a partir de 16 de julho, um corte de dez por cento nos salários de mais de um dólar por dia, foi o tiro de partida que ressoou em todas as confrarias ferroviárias. Desesperadas, resolveram agir. Os foguistas da B & O em Martinsburg fizeram greve, declarando que só voltariam ao trabalho quando o corte fosse cancelado.
O prefeito da cidade chamou logo a polícia, que prendeu os foguistas. Mas os cidadãos enraivecidos, que tinham presenciado as prisões e a confusão contra os ferroviários, atacaram a polícia e libertaram os prisioneiros. Enfurecidos por esse ataque a seus colegas, os guarda-freios dos cargueiros imediatamente entraram em greve e não permitiram que nenhum trem de carga passasse por Martinsburg. Mais de setenta e cinco trens de carga, carregados, esperando, bloqueavam todas as linhas de Martinsburg, menos de quarenta e oito horas
depois.
Os transportadores exigiram que o governo Matthews, da Virgínia ocidental, convocasse a milícia do Estado. Ele atendeu logo, enviando duas companhias com ordem de atirar, se necessário, em qualquer ferroviário intratável. Mas ele não sabia de uma coisa importante: a milícia não existia como algo individual. Estava ligada aos grevistas por laços de sangue e de amizade local. Os milicianos se apoiaram sobre as armas e se recusaram a agir, limitando-se a rir para os grevistas e seus simpatizantes. O governador, que odiava todos os “insurretos”, convocou a milícia de Wheeling e tomou seu lugar à frente, severamente, marchando sobre Martinsburg. No entanto, quando chegou a Grafton, ele viu que toda a região estava num estado de fúria perigosa e, pensando no seu futuro político, discretamente abandonou a milícia. Os homens, satisfeitos, voltaram para suas casas.
Então, a greve alastrou-se como incêndio. Os empregados da B & O em Grafton, Keyser e Wheeling entraram em greve. O governador, alarmado, pediu que o presidente Hayes enviasse tropas federais para “controlar essa desordem revolucionária”. 0 presidente resistiu. — Eles mesmos é que provocaram tudo isso — comentou ele, com amargura. Levou dois dias para atender ao pedido do governador, enquanto insistia para que os transportadores se reunissem com seus grevistas. Mas os transportadores se recusaram, com desdém.
O povo tomou violentamente o partido dos grevistas e os ânimos em todo o Estado esquentaram perigosamente. Assim, o presidente, no dia 19 de julho, foi obrigado a mandar parte de um regimento de tropas federais. A situação tornou-se ainda mais ameaçadora quando operários meio famintos furaram a greve e fizeram funcionar as ferrovias, para poderem conseguir comida para suas famílias. Compuseram dois trens, um para oeste, outro para leste. Estavam protegidos pelas tropas federais, que atacavam os grevistas com armas e baionetas. As tropas também viajavam nos trens, protegendo-se o melhor possível contra as pedras e outros objetos que lhes eram atirados pelo populacho alucinado.
Dois dias depois, a B & O conseguiu tirar catorze comboios de Martinsburg. Mas a greve alastrou-se por toda a linha, até Maryland, onde o governador Carroll convocou o Quinto Regimento da Guarda Nacional, porém, em Camden Junction, o povo expulsou a turma de maquinistas que furara a greve do trem que esperava a Guarda.
A Guarda conformou-se, complacente, em não ir a lugar algum.
O governador, irritado, então mandou três companhias do Sexto Regimento para Camden, onde encontraram uma multidão de quase três mil pessoas, armadas com cassetetes e projéteis. A fim de se protegerem, os milicianos atiraram sobre a massa de homens, matando doze e ferindo dezenas. Mas não conseguiram passar além de Camdenjunction. Milhares de homens e mulheres postaram-se nos trilhos, desafiando os trens a se locomoverem. Tropas federais acorreram ao local, bemAarmadas, morreram mais treze homens e os feridos lotaram os hospitais.
Desesperados, perseguidos, os grevistas constituíram uma comissão para procurar o governador Carroll, propondo outra vez uma solução por arbitramento com os transportadores. Mas a B & O, já certa da vitória, recusou. Mais tropas federais foram chegando a Camdenjunction e por fim acabaram com a greve. No dia l.° de agosto, a greve fora vencida. A B & O, satisfeita, observou o que tinha conseguido e achou que era bom. Guy Gunther e seus amigos em Nova Iorque
enviaram à companhia um telegrama de felicitações.
Guy Gunther enviou um telegrama particular a Rufus DeWitt.
Continha apenas uma palavra: “Agora”.
Stephen tinha observado o progresso da greve e o sofrimento dos empregados ferroviários com angústia. Anonimamente, enviou uma importância vultosa aos hospitais de Camden Junction para pagar o tratamento dos feridos. Absorto como estava no seu desespero e aflição com os fatos do momento, não notou que um silêncio sinistro emanava de seu conselho diretor. Quando, no dia 15 de agosto de 1877, esse conselho diretor lhe comunicou seu desejo de que ele presidisse uma reunião de emergência, Stephen pensou que os outros só estivessem preocupados com um declínio nas rendas da companhia.
Geralmente prevenido por seus pressentimentos, eie agora não teve nenhum. Exausto, com as forças quase esgotadas, ele se reuniu com os diretores na sala do conselho, preparado para intermináveis reclamações e sugestões. Encontrou o irmão na ante-sala. Rufus sorriu com simpatia e Stephen notou, vagamente, que o caçula parecia especialmente caloroso e radiante.
—    Negócio cansativo — murmurou Stephen.
Rufus lhe pegou o braço e respondeu, alegre:
—    Não há nada mais desagradável do que homens que insistem em receber lucros de seus investimentos. Não faz mal; já os manobramos antes, vamos manobrá-los hoje.
A afeição evidente e a compreensão cativante de Rufus, naquele dia, afetaram Stephen profundamente. Ele entrou com o irmão na sala do conselho, onde os diretores o aguardavam, sombrio1. Sorriu-lhes com timidez, mas com uma sensação de apoio. A presença confortadora de Rufus o sustentaria, mesmo frente a mil caretas.
O dia de fim de verão estava quente e sem sol, cinzento como a cinza de um fogo que acabava de se apagar. As montanhas, nuvens pintadas de cinza, pairavam sobre a cidade sem sombras, contra um céu lívido. Um reflexo quente e perolado enchia a sala. Cada rosto parecia incolor e duro. Os diretores nunca haviam considerado Stephen com simpatia, em ocasião alguma, mesmo antes da morte de Aaron. Desde então o tinham detestado, e ele sabia disso. Ele então olhou para aqueles banqueiros, fabricantes de aço, donos de minas de Scranton, comerciantes de madeira, representantes de várias indústrias fornecedoras das estradas de ferro. Eram dez e fitaram Stephen não com indiferença ou frieza, como de costume, mas com uma selvageria imóvel. Entre eles estava Jim Purcell, que desviou o olhar de Stephen e virou o rosto massudo para a janela.
Rufus deu um tapinha consolador no braço do irmão e sentouse junto de Tim Brownell, presidente do Portersville National Bank, que era seu amigo particular. Acendeu um charuto, piscou com simpatia para todos, exceto para Purcell, que não fez caso dele. Ninguém cumprimentou Stephen e isso o perturbou. Ele ficou vacilante à cabeceira da mesa comprida, examinando um por um, e todos retribuíram seu olhar com firmeza. Por fim, seus olhos se fixaram no perfil maciço de Purcell e aí parou. Seu rosto cansado se retesou. Não se sentou. Disse, com calma:
—    Pediram-me que viesse. Qual o assunto do conselho hoje?
Foi Purcell quem lhe respondeu, com voz forte e rouca:
—    Querem reduzir os salários em dez por cento, como todas as outras ferrovias.
Stephen acreditou que o foco daquela selvageria que estava sentido se encontrava em Purcell, que Purcell era o porta-voz nesse dia. Esse homem lhe tinha arrancado a fortuna ae sua filhinha, obrigando-o, sob promessas vagas, a se privar do que fora a fortaleza de Laura.
—    Não podemos reduzir os salários — disse Stephen, a voz grossa de pânico.
Os homens se mexeram, fitaram-se com ar sinistro e tornaram a olhar para Stephen. Tim Brownell era um homem magro e distinto, com um rosto patrício, bem talhado. Ele disse, no tom pesado de um banqueiro:
—    Sinto muito, Steve. Podemos e devemos. Sejamos breves e vamos ao assunto. Mantivemos os salários, por insistência sua, e perdemos os dividendos. As estradas de ferro estão num estado lamentável hoje em dia. Todas as outras estradas, menos a nossa e a Chicago Railroad System, já reduziram os salários. Estamos sendo odiados... por nossos amigos, os outros transportadores. Não pretendo entrar no assunto de você pagar aos ferroviários desempregados os salários normais. — Ele sorriu, com um desdém aristocrático. — Isso é coisa sua... e seus empréstimos sabe Deus de quem. — Ele não olhou para Purcell, a quem temia e respeitava.
Ele continuou, com um gesto gracioso da mão:
—    Mas, a partir do dia 10, vamos ter de reduzir os salários em dez por cento para salvar nossas peles e deixar de colocar os nossos amigos numa situação constrangedora. A não ser — acrescentou ele com brandura — que você tenha os meios de compensar o corte pessoalmente.
Seus colegas deram risadas e depois se calaram.
Stephen sentou-se. Colocou as mãos sobre a mesa e elas começaram a suar. Virou o rosto doente examinando os rostos em volta e encontrou um escárnio duro e ódio. Começou a falar, com à garganta apertada:
—    Além do fato de que, se reduzirmos os salários do seu nível já quase bárbaro, estaremos arriscados a uma greve, a B & O...
—    Você se esquece — disse o sr. Brownell, com uma polidez branda — que a B & O resolveu aquela greve com as tropas federais. Não creio que o-nosso governador hesitasse em convocar a milícia e pedir tropas ao presidente.
—    O povo — disse Stephen — está perigosamente provocado Não se esqueceu do enforcamento dos “Molly Maguires”. Nãose esqueceu de Martinsburg e de Camden Junction. Alguma coisa está se agitando em todo o país. Não se pode oprimir os homens para sempre. Se os empregadores continuarem a fazer isso, vão colher as tempestades. Se não hoje, então amanhã. Os opressores se tornarão os oprimidos. O poder costuma mudar. Receio não estar sendo bem claro.
—    Não está não, Steve disse John Schwartz, o maior madeireiro da região. — Mas posso lhe dizer uma coisa: sua benevolência com os empregados não lhe está adiantando coisa alguma. Eles o desprezam e estão perdendo o respeito pela autoridade.
Stephen pensou nos mortos e feridos em Martinsburg e Camden. Pensou nos rostos famintos e alucinados, a fome que levara homens normalmente pacatos a atos violentos. Disse, em voz fraca:
—    Um dia desses os transportadores vão pagar pelo que aconteceu. As manchas de sangue nunca se lavam.
Ele se virou para Rufus, que estava olhando para as mãos cruzadas. Rufus estava sério, o cabelo ruivo incendiado à luz cinzenta.
—    Rufus — disse Stephen. — Tem alguma coisa a dizer?
Rufus suspirou; desdobrou as mãos, remexeu-se na cadeira.
Olhou para o irmão com um sorriso patético.
—    Steve, o que posso fazer? Estou em minoria.
Todas as bocas na sala se apertaram para não sorrir; olhos se enrugaram, lábios se torceram. Então Purcell disse, com naturalidade, com sua voz áspera:
—    Bem, faço outra declaração de minoria. Então somos dois, Steve e eu. — Ele deu de ombros. — Não que isso dê em alguma coisa.
Stephen ficou sobressaltado. Levou as mãos às faces cavadas e apertou-as. Pela primeira vez, em quase um ano, ele falou com
Purrcell:
—    Você, Jim? Está comigo e Rufus?
Não podia acreditar.
—    Isso mesmo, Steve. Mas uma retificação, por favor. Só você e eu. Rufe não está conosco.
Jim se debruçou e cuspiu.
Rufus deu uma boa risada.
—    Ora, vamos, Jim. Sei que você não gosta de mim. Mas, por favor, lembre-se de que sempre apoiei Steve. Você prefere ignorar os fatos. Para os seus próprios fins.
“Claro”, pensou Stephen. “Para seus próprios fins”. Ele estava muito confuso e abalado para examinar seus pensamentos perturbados. Só conseguia pensar: “Todos sabem o que é o Jim Purcell; eu sei, pessoalmente, para desgraça minha.”
—    Estamos perdendo tempo — disse o sr. Brownell, olhando para um grosso relógio de ouro. — Neste momento tenho dois clientes me esperando lá embaixo. Vamos ser francos com você, Steve. Você sabe que pediu emprestados duzentos mil dólares a Jay Regan, em Nova Iorque, com a garantia de vinte e cinco por cento de seus títulos e ações na Interstate. Naturalmente, você não achou necessário mencionar esse fato importante a seus diretores.
—    Deixe de ser tão consciencioso, raios — disse Purcell, com grosseria. — Você não é diretor da escola de catecismo aqui, Brownell. Guarde as devoções sentidas para os meninos e meninas que chupam bala enquanto você lhes fala de Deus. Steve pediu emprestado empenhando as ações dele... e isso é negócio dele... e nós nos beneficiamos. Os nossos investimentos não se depreciaram, se bem que as ações e títulos de outras companhias tenham caído. 0 equipamento está em bom estado. Vamos ao assunto. Vocês querem reduzir os salários em dez por cento. Estão dispostos a acabar com as greves por meio da milícia estadual; e com as tropas federais, se necessário. E isso, não é? — Ele olhou com desprezo para o banqueiro, que estava corado. — Steve não quer nada disso e nem eu. Acho que poderemos suportar a crise. Vocês não acham, ou, pelo menos, querem
dividendos e só podem consegui-los reduzindo os salários. Diga logo e seja um homem, e não um pastor.
Brownell, com ódio dele, olhou-o com suavidade.
—    Tenho de felicitá-lo, Jim, Você sempre vai direto ao assunto, com lógica. E, é isso que queremos e é isso que vamos votar.
A confusão e a angústia de Stephen aumentaram. Havia um mistério que ele não conseguia enxergar. 0 que Purcell dissera era inacreditável; ele não era homem de concordar com a falta de dividendos; não era homem de recuar diante de greves e violência. Então, por que estava recuando agora?
—    Creio — disse Rufus, sério e com expressão de franqueza
—    que Jim receia que uma greve possa resultar em prejuízo para a nossa propriedade. — Ele franziu a testa, como se estivesse aflito. Estendeu as mãos. — Francamente, senhores, acho que não vou votar hoje. Não posso contrariar Steve, que em geral tem razão. Desta vez, não tenho condições de dizer se tem ou não. Steve, você compreende? — disse ele ao irmão, desculpando-se com um sorriso triste.
—    Compreendo, sim — disse Stephen, confuso. — E fico contente que você deixe de votar, Rufus. — Ele parou. Claro, Rufus tinha razão: Purcell estava ansioso por evitar algum prejuízo à propriedade da Interstate. Não tinha qualquer motivo mais magnânimo do que este. “Ah, Deus”, pensou Stephen, na sua aflição, "se eu ao menos tivesse muito dinheiro!” Balbuciou: — Sinto muito se inadvertidamente ofendi algum dos diretores não revelando que fiz um empréstimo sobre minnas ações. Eu... não pensei que fosse necessário. Estou pagando os juros de meu empréstimo a Regan. Tenho certeza de que em breve conseguirei reaver as ações, quando as coisas melhorarem. E não se alarmem, senhores, pois não empenharei mais esse tipo de garantia; considero a Interstate um encargo...
—    Um encargo sagrado — disse Purcell, solene, e tornou a cuspir.
Stephen não fez caso dele.
—    A Interstate pertence a todos — disse Stephen, olhando para eles com uma expressão suplicante. — De modo bem menos conereto, também pertence a nossos empregados. Não somos divisíveis. Não podemos trair nossos funcionários. Acredito que a crise esteja passando. Não vamos alienar os homens que criam a nossa fortuna e nos permitem ter uma companhia, afinal. Eles já estão passando por privações, assim mesmo. Se reduzirmos os seus salários, estaremos reduzindo-os a um estado de quase fome. Provocaria uma greve. Poderão controlar a greve, mas a violência deixaria atrás de si o ódio que ferverá desastrosamente no futuro. Apelo a vocês como homens honrados e sensatos...
—    Sinto muito — disse Brownell. — Isso não é por nossa vontade. Temos de levar em consideração nossos acionistas. Você está lutando pelo que considera “justiça”, Steve. Mas está se esquecendo de que os acionistas também devem ser tratados com “justiça". Qual é o voto? — perguntou a seus companheiros de conselho.
—    Reduzir os salários em dez por cento — disse cada um, prontamente, com exceção de Stephen, Rufus e Purcell.
Os diretores se levantaram e enfrentaram Stephen, muito angustiado.
—    É só isso — disse Schwartz.
Stephen interrogou cada rosto silenciosamente, depois virou a cabeça e saiu da sala, devagar. Purcell o viu sair, mexendo com os lábios grossos. Depois disse aos colegas:
—    Vai haver greve, sabiam? E vamos acabar com ela, de algum modo. E. — Ele riu, sinistro. — Primeiro ato, primeira cena. Sei o que todos vão fazer... um pouco mais tarde. Não posso culpá-los: Rufus Ruivo aqui é melhor, melhor para a companhia. Não vamos chegar a lugar algum nessa corrida com Steve. Por que não pediram logo? Iam lhe poupar muito sofrimento, no final.
—    Ora, Jim — disse Brownell, com afeto. — Não o compreendo mesmo. Nós apreciamos a chefia de Steve; somos gratos...
Purcell soltou um palavrão, com displicência.
—    Uma coisa que não consigo engolir é falar sem sinceridade, Mas uma faca enfiada em sua barriga com um sorriso dói tanto quanto sem sorriso; aliás, dói mais. Por que não acabar com isso? — Virou-se para Rufus, cujo rosto rosado estava sombrio e parado. Deu um tapinha em seu peito. — Está aguardando as novas ordens, é? Do Gunther?
Rufus recuou um pouco. Mas os outros riram e saíram da sala, em grupos. Rufus já os ia seguindo, mas Purcell o puxou pelo braço. Os dois se olharam em silêncio, os olhos castanhos de Rufus de repente ardendo com ódio, Purcell sorrindo sarcasticamente. Eles ficaram assim, assim por momentos, rígidos, mudos. Então, Rufus disse:
—    Tire a mão de cima de mim, Jim.
—    Estou com a mão em você? — perguntou Purcell, olhando para a mão, com surpresa. — Ora vejam só. E eu que sempre pensei que não tocaria em você nem com uma vara de três metros.
Ele se encostou â mesa de reuniões e começou a raspar o cachimbo, deixando os restos caírem no chão.
—    Tenho de afiar essa faca, um dia desses — comentou, olhando para Rufus com as frestas lamacentas que eram seus olhos. — É sempre bom ter uma faca afiada; nunca se sabe quando a gente pode precisar dela.
—    O que é que você quer? — perguntou Rufus.
Purcell soprou pelo cachimbo limpo, experimentàndo-o. Meneou a cabeça, satisfeito.
—    Uma coisa que acho que você tem, mas nunca teve, de fato. Não importa. Um dia eu lhe conto. Talvez mais breve do que pensa.
—    O seu estilo de falar é muito literário — disse Rufus, vermelho e com os pulsos cerrados. Aproximou-se de Purcell, que o fitava com interesse. Começou a falar; as veias incharam em suas têmporas e a garganta ficou seca. — Mas eu o felicito pela sutileza.
—    É mesmo? — perguntou Purcell, devagar, fechando a faca, com um estalo, e guardando-a em um dos bolsos deformados, Espanou as mãos sujas — mãos grandes e carnudas —, esfregando-as. A carne saliente sob suas sobrancelhas ralas se enrugou.
Rufus não lhe respondeu, mas sua respiração ficou forte e irreguiar. Estava junto de Purcell, alto e largo, belo como um leão prestes a dar o bote. Purcell permanecia encostado à mesa, displicente, mas seus músculos estavam tensos.
“Que diabo”, pensou. “Será que ele sabe? E como? Terá algum espião, ou coisa assim?”
—    Ainda não estou disposto a lidar com você, Purcell — disse Rufus, falando quase sem se fazer ouvir, como se estivesse estrangulado. — Isso pode esperar um pouco. Primeiro, os negócios prioritários. E não vamos ser sutis.
Purcell sacudiu a cabeça, como se estivesse pasmo.
—    Quem é que está sendo sutil agora? — perguntou, como se falasse para si. Ele se empertigou e se firmou bem nos pés. Rufus era alto, mas não tão alto quanto ele. — E é bom você se cuidar — continuou PurcelE — Os homens de sua cor costumam ter apoplexia. Não me espantaria se você tivesse um derrame um dia desses. E isso seria mau... para a companhia. Espero grandes coisas de você no futuro, Rufe. E pretendo seguir a seu lado. Não há nada que detenha sujeitos como você, e eu seria o último a tentar. Era isso que eu queria dizer, até que você começou a... me falar de literatura.
Ele estalou os dedos na cara de Rufus, mas este, mais vermelho e congestionado do que antes, não recuou. Por um momento ele parecia estar prestes a saltar sobre o outro, e Purcell o ficou observando.
Então, devagar, aos poucos, Rufus se obrigou a ficar descontraído. Seu rubor passou; seus músculos se afrouxaram. Purcell observou isso com admiração. “A cada um o que lhe é devido”, pensou “Ele está se descontraindo por pura força de vontade e é esse tipo de sujeito que precisamos à testa deste negócio.”
—    Você queria me advertir sobre minha saúde? — disse Rufus sorrindo um pouco.
Purcell meneou a cabeça.
—    Isso mesmo, Rufe. E a de Steve também. O que você pretende fazer com ele está certo. E melhor para todos nós. Mas ande depressa. Ele não pode aguentar a tensão por muito tempo. Alivieo com calma. Ou vai ter surpresas que não vai gostar, não preciso avisá-lo. Você é especialista em enfiar facas, sem que o outro perceba. Lembre-se de fazer isso com Steve. Nada de se vangloriar e tripudiar, certo?
—    Você me intriga — disse Rufus.
Purcell suspirou.
—    Ora, Rufe, quando você fala assim, me decepciona. Só quero que continue a deixar o Steve pensar que você é amigo dele.
—    E se eu não o fizer? — perguntou Rufus.
Purcell ergueu os ombros fortes e depois os deixou cair.
—    Não gosto de dizer isso, Rufe, mas você o lamentaria. Creio que lamentaria até o dia de sua morte. — Ele coçou uma orelha grande. — Você não tem nada de bobo, Rufe. Sabe perfeitamente do que estou falando. Continue a se lembrar.
Rufus esfregou o lábio superior com os nós dos dedos da mão direita. Olhou para Purcell, concentrando-se.
—    O Regan é meu amigo — continuou Purcell. — Eu poderia interferir a qualquer momento. Ele não vendería os títulos e ações que Steve empenhou, a não ser para mim. Eu não gostaria de ter de interferir, pode estar certo disso.
Preferia deixar que você seguisse seu caminho, para a minha comodidade e lucro pessoal.
—    Sei — disse Rufus, irritado e consternado. Ia ser privado do trinfo teatral, o triunfo para o qual tinha vivido. Gunther podia ser poderoso, mas Regan era rei. Gunther nunca lhe perdoaria se Purcell falasse com Regan. Durante noites sem conta ele ensaiara o que diria ao irmão no dia final.
—    Eu sabia que você entendería — disse Purcell, aprovando.
—    Espertinho.
Ele cumprimentou Rufus amavelmente e, cantarolando baixinho, com sua voz rouca, saiu da sala, pesadamente.
Ao ficar só, Rufus sentou-se de repente. Estava tremendo. Puxou o lenço e enxugou o rosto. “Você não vai conseguir o que quer, Purcell”, pensou. E então exclamou em voz alta, com o maior ódio e raiva.
—    Lydia... Puta!
Ele repetiu as palavras vezes e mais vezes. Cada vez parecia que alguma coisa o feria no peito e furava sua cabeça com dor violenta. Ele levou a mão à cabeça. Apoplexia. Tinha de se lembrar disso.
No dia 10 de setembro, os empregados da Interstate Railroad Company foram notificados do corte de dez por cento nos salários, Eles imediatamente entraram em greve. Naquela noite, à luz de velas, enforcaram a figura de Stephen DeWitt. Carregavam cartazes com caricaturas grotescas de Stephen, com um nariz comprido e predador, que os grevistas achavam representar o de um judeu. O povo os seguiu pela Cidade Leste, aplaudindo, carregando porretes pesados.
No dia 14 de setembro, o governador convocou a milícia estadual, a pedido dos diretores da companhia. No dia 18 de setembro o presidente enviou tropas federais. Os trens se moveram, equipados por homens macilentos que, envergonhados, escondiam a cara do povo furioso nos pátios de manobra.
Foi o princípio do terror. Misturado com isso, havia o surgimento perigoso do ódio racial e religioso. O povo, detestando Stephen, voltava-se contra si mesmo. Os motins estouravam nas ruas sujas Os grevistas foram espancados e suas mulheres e filhos ameaçados Os trens se moviam, protegidos por tropas federais armadas de carabinas e baionetas. O tumulto e o frenesi aumentaram na cidade; pelo menos catorze homens morreram e dezenas ficaram feridos. Os barracos pobres foram queimados. A igrejinha católica, que se erguia humilde e pobre na orla da cidade, foi incendiada. O padre se escondeu na casa de um amigo.
No dia 30 de setembro acabou a greve, com violência e sangue Os homens voltaram ao trabalho e tudo se acalmou. Mas Portesville não se esqueceu.
21
As tardes de fim de outono tinham-se tornado frias e doces como pêra. Mas Lydia DeWittt, caminhando no meio da grama alta para a vereda, naquela noite de setembro, sentia que toda a natureza estava envolta num abandono, uma desolação agourenta.
A lua em forma de fatia, acobreada e sinistra, parecia uma lâmina reluzente de um machado lançada ao âmago do céu negro. Alguns chorões, banhados de luar, pareciam grandes fantasmas embrulhados na margem do riacho. Ela viu Jim Purcell à sua espera no montículo. Viu a brasa vermelha de seu cachimbo e parou
perto dele, reta, alta e ameaçadora.
—    Então, afinal, você veio — disse ela, num tom duro. — Quatro semanas...
—    Sente-se, Lydia — disse ele, num tom irritado.
Mas ela se recusou a sentar.
—    E verdade que não tenho nenhum direito sobre você, Jim — continuou ela, sem se mexer. — Mas as coisas têm andado tão horríveis. Pensei que o encontraria aqui pelo menos uma vez, para me dizer o que está acontecendo e me dar algum consolo. — Ela então parou, como que lutando contra as lágrimas. — Ninguém foi procurá-lo. Nenhum dos “amigos” dele. Ele ficou deitado, olhando para a porta. Eu o vi. Você podería ter ido...
—    Sente-se — repetiu Purcell, com calma. — Parece que precisamos ter uma conversa.
Lydia, embrulhando-se bem em sua capa, sentou-se no montículo, mas a certa distância de Purcell.
—    Rufus... foi a Filadélfia pelo menos duas vezes, nessas últimas quatro semanas, e uma vez a Nova Iorque — disse ela, com amargura. — Você deve ter sabido disso, sempre sabe. Mas não veio...
Ele estendeu a mão e pegçu a dela, fria e inflexível.
—    Lydia, ele não foi, não. E, precisamos ter uma conversa. Rufe Ruivo não saiu da cidade, até ontem â noite. Ficou escondido em casa de amigos, passando a noite, cada vez que disse que ia viajar.
A mão dela fraquejou na dele e Lydia virou o rosto pálido, depressa, surpreendida.
—    Por quê? Ele sabe que eu não me importo que vá ou fique, ou onde fica. Se ele quiser passar a noite com... Ele já fez isso e fiquei inteiramente indiferente. Por que ele havia de querer me enganar agora, ou me dar explicações falsas?
—    Porque ele descobriu sobre nós. Talvez já soubesse há muito tempo. Eu o ando vigiando e ele tem me vigiado! Parece que estou ficando descuidado, com a idade. Eu já devia ter desconfiado dele. Ele parece uma raposa ruiva.
—    Ah, meu Deus! — exclamou Lydia, num tom cortante.
—    Ora, vamos, não se aflija. Eu agora mandei vigiá-lo bem de perto. Hoje está mesmo em Nova Iorque. Espere um pouco, já lhe conto tudo.
Lydia escutou. Seu rosto ficou mais pálido e ela começou a tremer.
Ela apertou os dedos no rosto e baixou a cabeça.
—    As crianças — disse ela, em voz débil. — Cornélia...
—    Vamos, cale a boca, menina. Pensa que sou tolo? Quando chegar o momento, vamos fazer o Rufe Ruivo balançar nas bases, Você vai conseguir o que quiser. Deixe comigo; conheço bem a vida. Bom, em todo caso, enquanto ele estava esperando para nos pilhar aqui, mandando o pessoal dele nos vigiar enquanto ele supostamente estava fora, eu não podia vir.
—    Execrável — murmurou Lydia, estremecendo.
—    A maioria das coisas neste mundo é isso, quando a gente as enfrenta. O único meio de o mundo se tornar bom e agradável é a pessoa não ser importante, morar em ruazinhas escondidas numa casinha e não ter dinheiro. Talvez também
Rufe pensasse que ia ter uma vantagem sobre mim, e usá-la para o tipo de chantagem bem-humorada dele. Pois bem, eu lhe passei a perna. Mas vou lhe dizer uma coisa: não vamos esperar mais muito tempo. Talvez não mais do que uma semana.
Ele puxou a cabeça de Lydia para o seu ombro grande, com uma ternura brusca.
—    As coisas estão andando depressa. E nós vamos andar com elas. Agora, me conte do Steve.
—    Você sabia que ele estava doente — disse Lydia. — Você sabe de tudo. — Ela procurou tornar sua voz fria e proibitiva de novo, se bem que a força do braço em volta de seus ombros lhe consolasse o coração infeliz. — Você não foi vê-lo.
—    Bem, eu não podia ir. O Steve agora me odeia. Pensa que o passei para trás. — Purcell então contou a ela sobre as terras de carvão. Por uma ou duas vezes ela enrijeceu, mas o abraço a puxou mais para perto dele. — Eles teriam tirado isso dele, também, como vão conseguir tudo o mais, a não ser o fundo da filha dele. Pensei em salvar alguma coisa para Steve. Quando chegar a hora, vou chegar para ele e dizer: “Olhe, Steve, vou explorar aquelas terras bem depressa. Vou pôr o meu dinheiro nisso e você tem cinquenta por cento. E talvez você até consiga comprar de volta uma boa parte."
Lydia disse:
—    Jim! Por que não lhe diz isso agora? Isso o consolaria tanto.
Purcell sacudiu a cabeça.
—    Isso não seria sensato, Lydia. Ele nunca se cuidou. Sabe o que tentaria fazer? Usaria todo dinheiro que eu lhe adiantasse... e pediria um adiantamento... para o pessoal da estrada de ferro. Para ajudar a devolver parte dos salários reduzidos. Já lhe contei o que ele vem fazendo há anos por eles. — Purcell fez cara de nojo. —
E veja como o trataram. Mas quando o Rufe fizer o que vai fazer bem depressa, talvez amanhã ou depois, ora, estarei ali, ajudando a juntar os cacos. Agora, espere aí, Lydia. Eu não posso impedir o Rufe. Não tenho tanto dinheiro assim. Não podería comprar os títulos de Steve. E não faria isso, de modo algum. Steve não é mesmo homem para esse negócio.
—    Esse último golpe vai matar o pobre Steve — disse Lydia, desolada.
—    Talvez — disse Purcell, agora sério. — O mundo sempre mata homens como Steve. Esse bom mundo cristão. Nunca soube de um homem que fizesse as coisas pelas pessoas que não fosse enforcado, ou queimado, ou odiado por isso. E a natureza humana. Dois mil anos de cristandade e olhe para o mundo. Não. Não vale a pena ajudar os outros, se quiser viver em paz.
Lydia sorriu tristemente.
—    Mas você ajudou o Sfephen, embora ele não saiba disso
—    Bem, sim, sempre ajudei, embora nem saiba por quê. Quando nós éramos garotos, sempre havia guris tramando para fazer quue ele parecesse ridículo ou para pregar peças nele. Um dia, quando Steve tinha seus treze anos, ouvi os garotos bonzinhos traçarem um plano para encurralá-lo no caminho de casa, depois das aulas, e atiçar uns cachorros em cima dele e surrá-lo. Por quê? Uma pessoa como você não havia de saber, mas eu sabia. Sabe, sempre compreendí esse mundo. Isso não me incomoda, é como o vento, ou a neve, ou a chuva. E um fato, e a gente tem de encarar os fatos. Bom, em todo caso, peguei os dois chefes da turma que ia fazer o Steve ver como era o mundo. Então, apliquei uma surra nesses dois garotos fortes, dei minhas ordens e eles deixaram o Steve em paz. — Ele alisou o cabelo de Lydia e depois beijou-lhe de leve o rosto frio e chocado. — Ora, menina — disse ele, com uma ternura rude —, de certo modo, você se parece com o Steve.
As lágrimas começaram a rolar lentamente pelas faces de Lydia.
—    Os amigos dele — disse ela —, Joseph Baynes e Tom Orville, não vieram nem uma vez, depois de tudo o que Steve fez por eles.
—    Isso é natural — disse Purcell, num tom ameno. — O que se poderia esperar? Afinai, ele os ajudou, não foi? Pensa que podem perdoá-lo por isso?
—    Mas o filho de Baynes veio — disse Lydia. — Um rapaz moreno, com cara de poucos amigos, de feições rudes. Ficou ali sentado com Stephen e não creio que tenham trocado meia dúzia de palavras. Não acho que Stephen estivesse iludido, desta vez. Não creio que ele pensasse que Joseph Baynes dvesse mandado o filho. Mas assim mesmo, aquilo o reconfortou. E estranho que as pessoas mais improváveis, aquelas que você nunca esperaria que demonstrassem compaixão, sejam as pessoas que se revelam num momento difícil, enquanto as de fala macia, as que têm ideais sobre amizade e humanidade, sejam as primeiras a abandonarem um homem abatido.
—    Bem, claro — disse Purcell, com indulgência. — Isso é muito simples. Hipócritas, só isso. Sabem que são tão maus quanto os outros e igualmente gananciosos e vorazes, mas acham que se elevam aos olhos dos demais se representarem bem.
—    Estou me sentindo mal — disse Lydia.
Purcell tornou a beijá-la.
—    Vamos, isso não é jeito de minha garota falar. A garota que muito breve vai enfrentar o Rufe Ruivo e dizer bem na cara dele o que pensa. Vamos, um sorriso. Bem, um sorriso meio triste. Antes de continuar esta conversa, me diga por que me ama. Não sou nenhuma beldade.
Lydia riu fracamente.
—    Acho que sempre te amei, mesmo quando era menina. — Ela pôs a mão naquela face deformada e o amor pulsou através de sua mão. Ele virou a cabeça e a beijou, devagar e profundamente.
—    Eu sempre soube o que você é, Jim.
Seus dentes bonitos reluziram ao luar e seu rosto se suavizou, com uma emoção pungente.
—    Isso é maravilhoso — disse Purcell, sorrindo. — E bom saber que alguém aprecia as minhas belas qualidades, que escondi todo esse tempo, mesmo de mim. Mas quero saber de uma coisa, Lydia. Como é que o Rufe Ruivo está tratando Steve, atualmente?
Lydia ficou pensativa.
—    Acredito em tudo o que você me contou sobre Stephen e Rufus, Jim, e não consigo entender. Rufus não podia ser mais bondoso com o irmão. Passa horas sentado com ele, de noite, e às vezes até consegue fazer o Stephen rir. A solicitude dele é maravilhosa.
Purcell franziu a testa e olhou para Lydia com alarme. Disse:
—    Sabe, às vezes não sou muito esperto. Pensei que você havia percebido, menina. Que soubesse das coisas por intuição, ou coisa que o valha. Enganei-me. Escute aqui: eu disse a Rufe que nunca podia deixar que Steve soubesse que é ele que o está apunhalando, que tramou tudo com uma ajudinha dos amigos dele aqui e em Nova Iorque e Filadélfia. Eu sabia que Steve não pode se salvar; mas queria que ele morresse com toda a paz possível, quando chegasse a hora. Se ele viesse a saber que era tudo Rufe, Rufe com os sorrisos, piscadelas e afagos, Rufe, em quem ele confiou todos esses anos, Steve enlouquecería.
Purcell se levantou e deu a mão a Lydia.
—    O homem sempre age conforme se espera. Quase sempre Consciência? E coisa que Rufe não tem desde que nasceu. Como quem nasce cego. Não é culpa dele. — Ele espanou a terra e folhas da capa de Lydia e depois a abraçou, com muita brandura. — Não se importe com isso. Eu também não sou homem de consciência. Nunca tentei enganá-la, garota. Você me conhece bem. Está na hora de ir embora.
Sophia disse a Lydia, irritada, observando-a com seus ferozes olhos castanhos:
—    E muito aborrecido! Stephen enfrenta todas as crises da vida dele ficando doente. Não sei de todos os detalhes, mas o Stephen certamente é um homem muito pobre de espírito, pois não pode encarar o fato de que a estrada teve de reduzir os salários dos empregados. E, certamente, sabendo como os grevistas agiram, e, como o detestam e ridicularizam, só por ter feito o que devia fazer, ele não podia ter ficado tão impressionado. Cada vez que ele lia os jornais e via como a greve tivera de ser dominada com a milícia e tropas e que os maquinistas, foguistas e condutores tinham tentado destruir a nossa propriedade, Stephen ficava arrasado. O médico às vezes teve de ser chamado à noite. Isso perturba muito a casa toda, atrapalha o ambiente e não é bom para as meninas. — O rosto duro e enrugado de Sophia se contorceu. — Rufus também sofre com isso; sente muito profundamente e é compeensivo demais. Nãosei de onde ele herdou essa paciência — suportando todos os fardos enquanto Stephen fica deitado na cama que nem um cadáver, procurando fugir de tudo, ficando doente.
As duas mulheres estavam tomando o chá da tarde juntas, um delicado chá-da-china, em xícaras frágeis. O fogo do salão estava aceso e a luz âmbar perseguia as sombras da noitinha pelas paredes e teto.
Lydia deixou as mãos caírem no colo, sobre o veludo marrom, e as unhas se cravaram em suas palmas. Mas ela disse, com calma:
—    Stephen vai voltar ao escritório na segunda-feira. A senhora deve se lembrar, mãe, que o médico disse que Stephen tinha tido um ligeiro derrame, um ataque cardíaco. Ele não pode deixar de reagir à tensão.
—    Quando Alice morreu... — começou Sophia, sacudindo a cabeça grisalha.
Lydia levantou-se de repente. Tentou controlar-se, mas ficou muito pálida.
—    A senhora não deve falar de minha irmã — disse, num tom inseguro.
Sophia a fitou e começou a falar. Aí, ficou impressionada com a expressão tensa e terrível na face de Lydia. Levantou as mãos, como que em desespero. Por fim, disse:
—    O que é que há com todas as pessoas desta casa? Loucas, inteiramente
loucas! Não se pode falar nada! Quando procuro simpatizar com Rufus e lamentar a fraqueza de Stephen, ele me manda parar e me olha furioso.
Lydia procurou suavizar a voz.
—    Mãe, é que a senhora não compreende tudo. Nem eu. — A despeito de tudo o que sabia, ela sentia pena daquela mulher velha e implacável, com seu vestido de seda preta e franjas e correntes e broches de ouro e anéis cintilantes. Ela tornou a sentar-se e pegou a xícara, bebericando dela. — Perdão se fui muito brusca. Nós todos passamos por uma grande tensão. A senhora deve lembrar-se de que Stephen quase morreu, uma ou duas vezes. Mas ele agora está melhor, quase bom. Temos de procurar esquecer que as coisas estiveram feias. Sophia abrandou-se um pouco, se bem que tornasse a sacudir a cabeça com um ar insultado.
—    É as coisas andaram “feias”, como você diz, Lydia. E você não ajudou em nada, andando por aí com uma cara bem feia. Por vezes os seus olhos chegam a faiscar... mortalmente. Há vezes em que sinto que você chega a culpar o coitado do Rufus por tudo isso!
Ela ficou observando Lydia com astúcia, mas esta permaneceu impassível.
—    A senhora imagina coisas — disse Lydia, sem ânimo. — Eu... apenas detestei a situação. Não... não estou culpando Rufus, se é isso que teme.
—    A situação não é por culpa do Rufus — disse Sophia, ressentida.
Lydia ficou calada. Estava bem ciente de que Sophia sabia bastante dos planos e tramas de Rufus e seu coração começou a bater cheio de raiva e repugnância. Mas, devagar, comeu uma fatia de bolo. Disse:
—    Não podemos fazer nada, somos apenas mulheres. E agora se me dá licença, vou ver como as meninas estão se comportando no quarto delas.
Ela se levantou e Sophia olhou-a, com frieza. Mesmo depois de tantos anos ela se ressentia da educação e distinção de Lydia, a graça natural de sua cabeça, de seu jeito. O veludo marrom de seu vestido tinha um drapeado muito simples, sem franjas nem botões reluzentes, e o corpete destacava seu corpo esguio sem artifícios. Ela ficou olhando para Lydia enquanto esta saía da sala e murmurou baixinho. Não havia rolos nem torcidos complicados nos cabelos de Lydia. Ela o escovava para trás do rosto pálido e sereno e formava um coque grosso na nuca. Nem um pingo de elegância, pensou Sophia, servindo-se de outra xícara de chá.
Lydia subiu devagar a escadaria sinuosa, o vestido arrastandose atrás dela.
A tarde estava ficando cada vez mais escura, naquele primeiro dia de outubro, e a chuva batia nas vidraças em rajadas violentas Lydia parou junto de uma janela do segundo andar e olhou para as montanhas sombrias, uma neve púrpura contra o céu vaporoso Viu os jardins e terraços, a grama ainda verde, espantosamente, as árvores desbotadas e solitárias.
Lydia parou junto da porta de Stephen, bateu de leve e depois entrou. Stephen dormia. Estava deitado na cama como um morto o rosto pálido virado para a janela. A luz do fogo tremeluzia sobre as mãos dobradas e os cabelos grisalhos. Lydia esperou, mas ele não se mexeu e ela tornou a fechar a porta, de mansinho, uma dor selvagem em seu peito.
As crianças estavam sós. A governanta era uma senhora franzina e Lydia insistira para que durante aquela “hora do chá” ela descansasse no quarto. Lydia achava isso agradável, pois então podia falar com Cornélia e Laura bem à vontade.
Quando entrou no quarto, Cornélia deu um grito de prazer e se atirou nos braços da mãe beijando-a com exuberância. Lydia afagou-lhe os cachos ruivos com amor, tocando na face brilhante com um dedo carinhoso. Ela conhecia bem aquela sua filha de onze anos, mas isso não diminuía seu amor por ela. Lydia acreditava que o amor tinha uma influência poderosa e suavizante mesmo sobre os que nasciam bárbaros.
Laura se levantou quando a tia entrou e ficou esperando junto da mesa, colocada perto da lareira. Sorriu quando Lydia se aproximou e aceitou-lhe o beijo sem dizer uma palavra. Sophia já comentara mais de uma vez, com maldade, que “Lydia parece se interessar bem pouco, curiosamente, pela filha da própria irmã. Um pouco desnaturada”. Mas Lydia e Laura se entendiam sem demonstrações emotivas e um amor estranho, mudo mas eloquente, surgira entre elas. Eram parecidas e sabiam disso, e só se comunicavam por um olhar ou um gesto vago.
Lydia sentou-se à mesa numa cadeira que Cornélia puxou para ela, com muita atividade e bastante falta de jeito. Tudo o que Cornélia fazia era com ênfase, energia e força física. Isso impressionava as pessoas por sua grande “simplicidade”. Mas Lydia sabia: os que aparentam simplicidade não são nada simples.
—    0 que é que vocês andaram fazendo o dia todo? — perguntou Lydia.
Cornélia sorriu para a mãe.
—    A senhorita Trenton andou nos contando tudo sobre telefone — disse ela. — Mamãe, vamos ter um telefone? A srta. Trenton disse que um dia desses vamos todos nos falar, mesmo do outro lado do país, e talvez até do outro lado do oceano! Não vai ser maravilhoso?
—    Não vejo por quê — respondeu Lydia, com um sorriso. — Acho que nós todos já falamos demais. É meio terrível pensar que um dia poderemos estar gritando através dos continentes e mares, rompendo os silêncios que, por enquanto, estão livres de nossas vozes.
Cornélia franziu a testa, meio intrigada.
—    Mas a senhorita Trenton diz que se conseguirmos “atravessar” o mar e os países e conversar uns com os outros, isso fará o mundo ficar menor e então vamos nos entender e não haverá mais guerras, E ela disse que um dia vamos ter grandes máquinas voadoras voando por cima de tudo, em volta do mundo, levando as coisas para todos os que precisam, e não vamos mais ser estranhos uns para os outros e vamos nos amar uns aos outros e não vamos brigar.
Cornélia sorriu para a mãe; ansiosa, e Lydia reprimiu um sorriso diante dessa ingenuidade hipócrita. Depois, aborreceu-se.
—    A senhorita Trenton é muito boazinha — disse, com a voz mais fria e prática —, mas acho que é uma idealista. Está enganada, claro. Só vamos poder nos matar mais depressa e com maior eficiência. Você se lembra da história da dinamite, Cornélia. Isso devia ter tornado as guerras tão pavorosas que nenhuma nação ousaria atacar outra. 0 mosquete também deveria ter feito isso, e o canhão. E, antes disso, o arco e a flecha. Sem dúvida os gregos achavam que suas bolas de fogo, lançadas de navio em navio, trariam a paz ao mundo. Mas nada jamais a trará. Porque o homem é uma fera, sabe?
0 rosto favo e eloquente de Cornélia assumiu uma expressão de grande aflição. Também isso era um artifício, para inspirar compaixão em Lydia, adulta, pela criança inocente que estava sendo desiludida. Lydia deu uma risada breve.
—    Não me venha com fingimentos, queridinha — disse. — Você também é uma brutinha.
Cornélia, que tinha grande senso de humor, rompeu numa risada forte e rouca. Abraçou a mãe, com força.
—    Mamãe, a senhora é tão malvada! Sabe que as pessoas esperam que a gente não seja natural. Não se pode ousar!
—    E verdade; não há muita gente que “ouse” — concordou Lydia. — E muito cansativo, e até perigoso, por vezes, ser sincero.
—    Bem, gosto de gente como eu — respondeu Cornélia. O que há de mal
nisso?
—    Alguns são um pouco mais exigentes.
Mas Lydia sorriu, com pesar.
Cornélia atirou-se aos pés de Lydia e começou a alisar o veludo do vestido da mãe. Ela podia ser natural com a mãe, o que às vezes era um alívio.
—    Se as pessoas gostarem da gente, a gente consegue o que quer delas — disse ela.
O fogo brilhava sobre o rosto redondo e lindo, cheio de riso Lydia pôs a mão na cabeça da filha, com pena, e virou-se para Laura.
—    O que você acha, meu bem?
Laura pensou um pouco, depois disse, com sua voz grave e doce
—    Não me importo muito se as pessoas gostam de mim ou não Só não quero é que me “toquem” com alguma coisa. A não ser que eu goste muito delas.
Cornélia estava ficando irrequieta, como sempre quando deixava de ser o centro das atenções. Puxou o braço da mãe, para chamar-lhe a atenção.
—    Mamãe, por que não podemos ter uma quadra de tênis? Está na moda. Todo munao tem quadra de tênis. O tênis é tão elegante.
—    Você sabe por que, meu bem. O terreno é todo em ladeira. E não creio que tio Stephen se interesse pelo tênis.
Cornélia examinou a mãe, com malícia. Começou a cantarolar baixinho, rouca, como costumava fazer quando tinha pensamentos secretos e não muito bons. Depois, levantou-se de um salto e exclamou:
—    Vamos brincar de dominó!
Fez uma barulhada com a louça do chá, colocando-a desordenadamente em outra mesa, tagarelando em voz alta e a esmo enquanto arrumava as peças de dominó. Lydia a observava atentamente.
Ela jogou com as meninas, maquinalmente, pois estava cheia de sua própria infelicidade e desespero. Onde estariam, dali a um ano? Diante dela estendiam-se imensas rochas e abismos, vistas sombrias e aterradoras e trovões de violência. Ela, pessoalmente, podia suportar tudo aquilo. E Laura? Lydia olhou para aquele rostinho pensativo debruçado sobre os dominós. Uma cascata de cabelo escuro caía sobre as faces pálidas da menina. Lydia viu as reentrâncias fundas em torno dos olhos cinzentos: o estigma dos sensíveis e apaixonados.
—    Por que está suspirando, mamãe? — perguntou Cornélia curiosa.
—    O dia está muito deprimente — respondeu Lydia.
Quando ela desceu para o salão, mais tarde, Rufus já estava lá.
Ele se levantou quando eia entrou, mas não disse nada. Lydia sentouse, sentindo o olhar concentrado do marido. Ficou muito quieta e disse, tranquila:
—    O tempo está feio, não está?
—    Está, sim — respondeu ele.
A despeito de seus esforços, Lydia não conseguiu deixar de olhar para ele. Parecia esgotado e extenuado e estava tamborilando nos braços da poltrona. “Alguma coisa o está atormentando”, pensou ela, com uma compaixão súbita. "Alguma coisa o está impelindo. “
Rufus disse:
—    Subi para ver o Steve, Acho que ele vai descer para jantar hoje. Fico muito contente. Há... negócios a tratar, na semana que vem, e precisamos dele. — Ele sacudiu a cabeça. — Tudo vai mal. Dezenas de milhares de dólares de prejuízo â nossa propriedade. Os... bandidos... incendiaram muita coisa em nossos pátios. Estamos começando a descobrir até onde foi a destruição.
Lydia ficou calada. Rufus não tornou a falar. Ficou sentado ali, olhando para o fogo, tamborilando. Aos poucos foi-se absorvendo mais em seus pensamentos, que evidentemente não lhe agradavam nem consolavam. “Ele não está pensando na destruição nem na grevê”, pensou Lydia. “Está pensando em Stephen e em mim. Ele agora nos detesta, e o ódio não lhe dá prazer. Dá-lhe sofrimento.”
Sophia entrou, suspirando e reclamando. Beijou o filho e disse:
—    Meu pobre Rufus, como você está mal!
22
—    Eu gostaria de ver os pátios — disse Stephen ao irmão. Sua voz estava muito fraca, desde sua doença repentina, mais balbuciante do que nunca. Embora a carruagem fosse confortável e ele estivesse com uma grossa manta de pele sobre os joelhos, o corpo magro estava tremendo constantemente. Rufus o embrulhara em casacos e xales; parecia que estava embrulhando um esqueleto, pensou ele, sem ridicularizar mas apenas com compaixão ardente. Era burrice ter pena de um pobre idiota como Stephen, que estaria melhor fora daquilo que tinha devorado sua vida. Mas era isso mesmo. Rufus sorriu para o irmão.
—    Você não vai gostar — disse. — Por que não espera até eslar mais forte? E o seu primeiro dia, e estamos começando a limpar a confusão.
Fazia cinco dias que a chuva não parava; fustigava o teto da carruagem, como enviando agulhas pelas janelas. A carruagem balançava ao vento e os cavalos inquietos corriam como cetim na água.
—    Assim mesmo, gostaria de ver os pátios — disse Stephen. A face estava caída, seu rosto mirrara. O bigode grande e grisalho parecia absurdo naquele rosto miúdo. No entanto, acentuava seu aspecto patético. Ele estava com apenas quarenta e três anos; parecia ter sessenta ou mais.
—    Muito bem — disse Rufus, animado, subindo na carruagem como um rapazinho. Mas estava deprimido. “Faça-o depressa”, lhe avisara Purcell. Ele tinha a noção de estar sendo apressado, não só por Purcell, mas também por aquele homem moribundo ao seu lado. Não tinha dúvidas de que Stephen estivesse morrendo. Lydia mal teria acreditado, se soubesse dos pensamentos do marido,
en quanto a carruagem começava a rolar desajeitadamente pelo morro abaixo, o vento uivando em volta dela. Sempre cuidarei de Laura, pensou Rufus. Um amor de menina. Eu a amo como se fosse minha. De algum modo, tenho de fazer Stephen saber disso, no final.
Stephen não teve forças para falar, durante o longo trajeto até Portersville. Rufus lhe dissera, com displicência, que o conselho diretor ia se reunir naquela manhã, mas que era sobre um “assunto de rotina”. “O que mais podem fazer, além do que já fizeram", pensou Stephen. Ele estava frio como a morte; as mãos estavam geladas. “Provavelmente devem estar jubilosos. Mas, de algum modo, posso aliviar o que fizeram. Quando eu estiver um pouco mais forte, vou empenhar mais ações minhas para os homens. As ações estão subindo. Vamos distribuir dividendos c em breve conseguirei resgatar tudo.”
Stephen olhou para Rufus, com medo; o irmão observava a estrada de montanha encharcada e a paisagem triste mais além. As montanhas os rodeavam, sombrias, molhadas e frias. “Rufus parece exausto”, pensou Stephen. Estava muito menos corado e a pele em volta da boca tinha tiques. Stephen murmurou:
Tem sido difícil para você, Rufus. Nem lhe posso dizer como sou grato por ter ficado do meu lado.
Sem querer, Rufus apertou o ombro do irmão.
—    Esqueça, por favor — disse ele e sua voz estava quase áspera.
Eles tinham quase chegado ao plano mais baixo, na ladeira para Portersville, quando Stephen, falando com dificuldade, falou na venda de suas terras carboníferas a Purcell.
—    Tive de fazê-lo porque precisava dos quarenta mil dólares para os homens. E as despesas da casa. E Joe Baynes tinha de receber algum para pagar os juros sobre os títulos que empenhara com Alex Peale, em Filadélfia. E Tom Orville... tem tido tão pouca sorte com a nova serraria...
Rufus ouviu aquilo, horrorizado. Tinha contado com as terras do carvão para si. Por um instante, ficou enraivecido com aquele irmão imbecil, por tê-lo deixado sem elas. Disse então as palavras pesadas de ódio e fúria:
—    Purcell! E quarenta mil dólares! Ladrão! Que pessoa desprezível! Por que não me procurou, Steve?
Stephen o olhou com uma vaga surpresa.
—    Mas você não tem quarenta mil dólares, Rufus — disse.
Rufus se conteve. Sacudiu a cabeça, com pesar.
—    Claro que não. Mas podia ter-lhe emprestado alguma coisa. Podíamos ter dado um jeito. Ora, Steve! Todo esse dinheiro para os cães que o vêm desprezando e xingando há semanas!
—    Mas como eles poderíam saber? — perguntou Stephen, em voz débil. — Eu nunca disse a eles. De certo modo, teria sido errado.
—    Quanto é que Baynes e Orville estão lhe devendo agora? — perguntou Rufus, novamente enraivecido.
Stephen hesitou. Depois disse, como se desculpando:
—    Bem, vinte e sete mil dólares dojoe Baynes; doze mil dólares do Tom. Mas eles vão me pagar um dia, tenho certeza.
Eram trinta e nove mil dólares! Uma fortuna. Rufus sentiu-se como um homem roubado cruelmente. Tornou a pensar nas terras do carvão. Esse carvão deveria ter sido explorado para a Interstate Railroad Company. Seria má notícia para os diretores quando descobrissem que o que pretendiam abocanhar para a companhia agora pertencia só a Jim Purcell. Então a raiva de Rufus se voltou contra o irmão. Que idiota ele era! Como era incompetente e pródigo!
A carruagem rodou pelas ruas calçadas de pedras de Portersville e se aproximou dos pátios da estrada de ferro. Então Rufus falou, com sinceridade:
—    Eu queria que você não estivesse resolvido a ver os estragos, Steve. Você só vai se sentir mal.
Mas Stephen, com um esforço tremendo, se empertigou para poder ver tudo e bem claramente. Viu os vultos enegrecidos dos galpões de reparos das oficinas e viu os esqueletos negros dos vagões de carga. Os dormentes estavam espalhados. Em alguns lugares os trilhos tinham sido arrancados. A chuva e o vento uivavam sobre as ruínas desoladas. Mas Stephen mal viu as ruínas. Estava olhando com uma atenção apaixonada para os homens trabalhando nos escombros, de cara séria, magros, esfarrapados, tremendo de frio e umidade, as roupas miseráveis se balançando neles. Estavam trabalhando num silêncio total, sem se olharem nem se falarem. Stephen disse:
—    Vamos embora.
Ele se recostou no assento e fechou os olhos. Os homens não destruíam à toa os seus meios de vida; os homens respeitavam seus instrumentos de trabalho. Tinham sido levados àquela loucura pelo desespero e pela fome.
0 pior de tudo, pensou Stephen, que se sentia literalmente morrer, naquela nova agonia, é que agora haverá uma onda de legislação punitiva contra a mão-de-obra. Provavelmente os sindicatos levarão decênios para recuperarem alguma importância e força. Enquanto isso, o povo vai sofrer crises repetidas, fome, desemprego e desespero, sem qualquer alívio. Vai se consumir em fogo lento por muitos anos, lembrando-se do fato.
0 cérebro de Stephen pareceu iluminar-se com uma clareza terrível. “E quando o povo se lembra”, disse ele consigo, “torna-se tão opressivo quanto os opressores já foram.” Nunca há nenhuma clareza na humanidade, nem racionalidade, nem tolerância. As pessoas nunca se dizem: “Foram cometidas injustiças contra nós. Mas a vingança não é substituto da justiça.”
—    Já chegamos — disse Rufus, a voz branda. — Deixe-me ajudá-lo a saltar.
Stephen abriu os olhos. A carruagem havia parado defronte do prédio do Portersville National Bank e a porta estava aberta Movendo-se como um velho doente, Stephen permitiu-se ser quase carregado da carruagem, pelo cocheiro e por Rufus. Apoiado no braço de Rufus, entrou no prédio. Sentindo a força e a solicitude de Rufus, Stephen pensou: “Se não fosse Rufus, acho que cairia morto aqui e agora e não me importaria.”
—    Descanse um pouco no seu gabinete — disse Rufus, ajudando o irmão a tirar o xale, o sobretudo e o chapéu. Stephen sentouse pesadamente, a respiração difícil e ofegante. Tentou sorrir para o irmão, que o estava observando com uma compaixão franca.
—    Nem sei o que faria sem você, Rufus — disse ele. — O que é que os diretores querem hoje?
Rufus pendurou o sobretudo de Stephen e disse, sem se virar:
—    Nada de importante.
Ficou ali junto da janela, olhando para o jardim fustigado pelo vento, com suas árvores nuas. As montanhas estavam ocultas na névoa.
—    Quando penso no que fizeram — balbuciou Stephen, enxugando a testa úmida com as costas da mão. — Não estavam passando fome, embora não distribuíssemos dividendos. Nossos acionistas não estavam precisando...
Rufus continuava junto da janela.
—    Eu sei — respondeu.
—    Você ficou a meu lado — continuou Stephen. — Fielmente.
Rufus virou-se da janela e toda sua cor desaparecera. Stephen sacudiu a cabeça.
—    A única coisa que me tem mantido é a sua lealdade, Rufus...
Com dificuldade Rufus disse:
—    Deixe ajudá-lo a ir para a sala de reuniões.
Ele levantou o irmão, mas ficou com a cabeça virada, juntos, eles caminharam devagar pelo corredor rumo â sala em que os diretores os aguardavam.
Estavam todos lá. Levantaram os olhos quando viram Stephen e Rufus, e então, sem querer, ficaram de pé. Cada um examinou o rosto de Stephen e depois desvioti o olhar, esperando até que ele se sentasse. Em seguida sentaram-se. A expressão de Jim Purcell era sombria e pesarosa, olhando para a botina que ele balançava. Depois, todos olharam para Rufus DeWitt.
—    Tenho certeza de que estamos todos contentes por Stephen poder estar de novo conosco — começou ele, com calma. Esperou, mas ninguém lhe respondeu. Então Rufus disse, com a voz mais forte e áspera: — Bem, vamos tratar do assunto! Eu...
—    Está tenso, Rufe? — perguntou Purcell, suspirando.
—    Parece-me que há alguns detalhes — disse Stephen, com sua voz fraca, de morte. — Queriam conversar comigo sobre o assunto?
—    Não são propriamente detalhes, Stephen — disse o sr. Brownell. Seu rosto aristocrático estava pálido. — Chegamos à conclusão de que você não é o homem talhado para um negócio duro como este. Sabemos que esteve muito doente. Portanto, não vamos lhe tomar muito tempo. O que temos a dizer pode parecer cruel, mas acreditamos que seja o melhor, não só para nós, mas também para você. É uma coisa dura de se dizer: tem de ser dita e nós o lamentamos.
—    Embora a aula de catecismo já esteja em ordem, ainda podemos dispensar a piedade — disse Purcell. — Vá ao assunto e deixe o sujeito ir embora.
Mas ninguém falou. Rufus ficou sentado em sua poltrona, o rosto de leão sombrio e melancólico. Stephen virou-se para um e outro, calado. Por fim perguntou:
—    0 que é? Acho que não estou entendendo.
Purcell olhou em volta, com desdém.
—    Ninguém se oferece para ser o carrasco? Querem que eu o faça, sendo cavalheiros tão distintos? — Ninguém falou nada. — Querem que eu seja porta-voz, hem? Agora lhes falta coragem? — Jim Purcell disse e parou por instantes. — Olhem para ele, rapazes. Foi isso que fizeram com ele. Necessidade, disseram vocês. Não é o homem para nós, disseram. Mas agora ficam aí, virando os olhos para cima e examinando as unhas. Muito bem, então, vou dizer a ele, se bem que não caiba a mim. E serviço para o irmão dele.
0 coração de Stephen começou a bater muito depressa e a dor angustiante que ele sentira havia algumas semanas correu por seu peito e pelo braço. Sua respiração ficou presa na garganta e ele cerrou as mãos fracas num esforço para respirar. Disse a Rufus, em voz fraca:
—    0 que é? Conte-me.
Rufus foi obrigado a levantar os olhos. Encontrou os olhos moribundos de Stephen e fez uma careta. Um silêncio profundo reina va na sala. Rufus ia falar, mas calou. Depois, de repente, se virou. Purcell o observava, com cinismo.
—    Bem, bem — comentou Purcell. — Não é tão mau quanto eu pensava, Rufe Ruivo. Quem sabe um homem como você não deveria ser presidente?
—    Presidente? — murmurou Stephen. Um suor cinzento lhe banhava a testa.
—    Ninguém quer falar como eu gosto — disse Purcell. Ele se debruçou para Stephen. — E simples. Não o querem mais como presidente, Steve. Acham que você não está apto para isso. Entregou a Jay Regan vinte e cinco por cento de seus títulos e ações como garantia de um empréstimo de duzentos mil dólares. Já falamos sobre isso. Você não pode resgatar seus títulos e ações; empréstimo a curto prazo, três meses. Os três meses se expiraram. Regan tem o direito de vender as garantias no mercado aberto. Gunther, Gould e Vanderbilt querem comprá-las, para fazer baixar as ações da Interstate Mas todos eles tiveram uma porção de reuniões, os caras, com o Rufe Ruivo aqui. Gostam dele. Ele está nisso com eles.
—    Espere! — exclamou Rufus, levantando-se de um salto, o rosto congestionado. — Maldito, você queria que ele não soubesse... me disse...
—    Mudei de ideia — respondeu Purcell. — Ele não precisa mais de você, Rufe. Tem a mim. E vai descobrir de qualquer maneira, dentro de alguns minutos.
Stephen estava de boca aberta e todos ouviam sua respiração áspera. Ele levou a mão ao coração. Rufus olhou para ele — todas as suas feições demonstraram dor. Ele não se sentou, mas ficou se apoiando com os punhos sobre a mesa.
—    Bem, vamos continuar — disse Purcell, apreciando com ironia as expressões de todos eles. — Todos os caras de Nova Iorque, em suas reuniões com Rufe, chegaram a uma conclusão muito bondosa. Estão ajudando Rufe a comprar as suas ações; acreditam nele. Pensam que podem usá-lo em suas manipulações, quando se apossarem de outras estradas de ferro, num monopólio. Alguma coisa me diz que o Rufe vai passar a perna neles, afinal, de modo que estamos todos nisso com ele, contra os sujeitos de Nova Iorque. Mas isso é segredo nosso. E temos a Chicago System. Não temos fundos em nosso tesouro no momento, com a crise, as greves e tudo, para servir às dívidas para com a Chicago. Mas estamos todos nos reunindo e pagando proporcionalmente, de nossos bolsos, para conservar a Chicago fora das garras do pessoal de Nova Iorque. A não ser o Rufe. Esse é o jogo dele com Nova Iorque. Triste porque os outros diretores agiram por trás das costas dele. Conseguir que o pessoal de Nova
Iorque ajude-o a comprar as suas ações enquanto nós ficamos olhando,
vendo que à última hora a gente consegue pagar os empréstimos deles a ele. Passando a perna neles. E Rufe fica com as ações e nós estamos por trás dele e vamos votar nele para presidente.
Stephen não estava mais respirando, que se ouvisse. Tinha ficado muito quieto. O suor escorria por suas têmporas e faces, como lágrimas. Uma estranha dignidade estava estampada em seu rosto, Quando ele falou, foi com força tranquila:
—    Creio que compreendo. Mas primeiro quero dizer que o senhor Regan me garantiu que não vendería meus títulos e ações enquanto eu lhe pagasse os juros, coisa que venho fazendo.
Ele agora não estava olhando para Rufus, e sim para Purcell.
—    Tem essa garantia por escrito? — perguntou o sr. Brownell, numa voz abafada.
—    Não tenho, não. Foi apenas a palavra dele.
Purcell deu de ombros.
—    A palavra dele — repetiu.
Stephen estava reunindo todas as suas forças.
—    Sinto que me considerem incapaz de ser presidente desta companhia — disse ele. — Vocês todos não me emprestam o dinheiro para resgatar meus títulos e ações?
—    Sinto muito, Steve — disse um dos diretores. —Jim explicou aqui toda a situação. Mas não se preocupe, pensando que o pessoal de Nova Iorque algum dia consiga o controle de nossa companhia. Seria muito difícil levantarmos o dinheiro nós mesmos, pois também temos de pensar na Chicago System. Rufus agiu muito inteligentemente com Gunther, Gould, Regan e Vanderbilt. Vai conseguir engabelá-los por muito tempo. Você não poderia ter tido o nosso apoio. Há muito tempo que não está passando bem e...
—    E vocês me acham incapaz de dirigir os negócios de nossa companhia? — perguntou Stephen.
O sr. Brownell suspirou.
—    Receio...
—    E isso já vem acontecendo há muito tempo?
Ninguém lhe respondeu. Então, numa voz mais fraca, Stephen foi passando de um em um.
—    Você, Tim? Você, George? Você, Stratton? Você, Jim? Você, Edward?
Você...
Um por um, eles menearam as cabeças, evitando seu olhar. E então só restava Rufus, olhando fixamente para a mesa em que o irmão estava apoiado.
—    E você, Rufus? — perguntou Stephen, com brandura.
Devagar, como que obrigado, Rufus levantou a cabeça. Stephen olhou para ele, com pena.
—    Não, não responda — disse. — Eu compreendo. Afinal, você nunca acreditou em mim. Rufus, não faz mal. Sabe, tenho tido uma ideia, há mais de um ano... Mas há outra coisa que devo dizer. Você trabalhou contra mim, me arruinou e desejava minha casa e tudo que é meu. Pensava que tudo devia ser seu. Mas há uma coisa, de que sempre me lembrarei: você tem sido_bom para mim. Você não queria que fosse assim, mas aconteceu. Começou com a traição e hipocrisia e terminou se desprezando e preocupado por mim. — Ele estendeu a mão por sobre a mesa e pôs os dedos magros no braço do irmão. Acho que talvez tenha razão. Creio que você é melhor para este negócio do que eu.
Rufus olhou para o irmão em silêncio e rugas brancas de vergonha e sofrimento sinceros se gravaram em volta de suas narinas. “Se ao menos ele não sorrisse”, pensou.
Os olhos de Stephen brilhavam de compaixão.
—    E — disse ele — melhor para este negócio. Meu pai estava errado e eu sabia disso desde o princípio.
—    Não — disse Rufus — ele estava certo. Aprendi muito com você, Steve. Aprendi a ser paciente e esperar e juntar os fatos e agir baseado em coisas concretas, e não em ilusões entusiasmadas. — Ele desviou a cabeça. — Sinto muito.
Stephen cobriu os olhos com a mão.
—    Desde o primeiro dia, eu queria ceder tudo a você. Mas alguma coisa me impediu. —Ele baixou a mão e olhou para o irmão, como que se desculpando. — Eu... não me lembro do que me impediu. Acho que é porque agora estou muito cansado.
A grande dor em seu peito se alargou. Uma névoa prateada flutuava diante de seus olhos. Havia um zunido forte em seus ouvidos. Agora não tinha qualquer sensação nos braços e pernas. Fez um último esforço supremo.
—    Há um envelope com lacre vermelho na minha mesa. Quer trazê-lo aqui, por favor?
Todos, com exceção de Purcell, imediatamente se levantaram de um salto, como que diante da possibilidade bem-vinda de fuga. Mas foi Rufus quem chegou primeiro à porta. Então os outros ficaram ali pela sala, sem se olharem. Logo Rufus voltou e deu o envelope ao irmão, em silêncio.
—    Um fósforo, por favor — disse Stephen, a voz já tão perdida que só Rufus o ouviu. O fósforo foi aceso e Stephen, com um esforço imenso, o encostou ao envelope. Deixou-o cair num grande cinzeiro sobre a mesa e o viu arder. Os reflexos rubros passaram por suas feições cavadas, e o suor lhe pingava da testa e têmporas. Então, consumidos os papéis, ele sorriu.
—    Eram as notas de Joe Baynes e Tom Orville, no valor de quase quarenta mil dólares — sussurrou ele. — Em meu nome.
Rufus se adiantou um ou dois passos, horrorizado.
—    Mas Laura...! — exclamou, boquiaberto.
—    Laura... tem o fundo — disse Stephen, olhando para Rufus com pesar. — E deixei a casa para você, Rufus. Você sempre a desejou. Fiz outro testamento...
Jim Purcell, agindo depressa, foi até junto da mesa, abaixou-se e examinou o rosto de Stephen.
—    Um médico — disse ele, bruscamente. — Um de vocês, palermas, vá buscar um médico!
Quatro dos diretores saíram correndo da sala, mas Rufus ficou, ao lado do
irmão. Murmurou, vezes e mais vezes:
—    Não. Meu Deus, não. — Havia lágrimas em suas pestanas ruivas e espessas.
Purcell, com delicadeza, fez Stephen se encostar na poltrona. Dobrou as mãos moles no colo dele. Enxugou o rosto molhado com seu lenço. Depois olhou para Rufus.
—    Não se preocupe — disse, com sua voz forte e rouca. — Você vai superar tudo. Enquanto isso, me traga um copo d’água.
Quando Rufus levou a água, Purcell encostou o copo nos lábios cinzentos de Stephen. Mas ele não podia mais engolir. Abriu os olhos devagar, fixando-os sobre Purcell, sem fala.
—    Está me ouvindo, Steve? — perguntou Purcell, quase gritando. — Escute! Aquelas terras de carvão... vou explorá-las. Do lucro, são cinquenta por cento para você ou para a sua garota. Está ouvindo, Steve?
Stephen não tinha mais voz. Mas os olhos, cheios de morte, se animaram por um instante, como que com alegria e assombro.
—    Sempre tive essa intenção, seu pobre idiota — disse Purcell, ajoelhando-se ao lado do moribundo. — Para manter aquilo fora das mãos desses outros caras aqui. Salvei isso para você. Está ouvindo, Steve?
Não havia qualquer ruído na sala. Os outros diretores e Rufus estavam em volta da mesa, numa aflição desesperada. Então, de repente, o silêncio foi rompido por um grande suspiro e depois outro, Rufus levou as mãos aos ouvidos.
Purcell levantou-se, esfregando as mãos.
Espero que tenha ouvido o que eu disse. Gosto de pensar isso. E bom um de vocês ir lá fora dizer ao médico que já é tarde.
23
A lua brilhava sobre a neve das montanhas e nos vales estreitos. A neve se enfunava em grandes dunas brancas. A paisagem parecia lunar. Um silêncio absoluto se instalara. Não havia a menor brisa, nem a geada crepitava e nem uma árvore estalava.
Era meia-noite e Lydia estava sentada sozinha com o marido, junto da lareira. Sophia se retirara uma hora antes, mas desde então marido e mulher não tinham trocado uma palavra. Eram dois estranhos, olhando para o fogo.
Por fim, Rufus disse:
—    Bem, você me pediu que ficasse, depois que minha mãe saísse. O que é?
Lydia olhou para ele, sem responder. Ele tinha emagrecido bastante nesses dois últimos meses e perdera muito de sua cor. Devido a isso, o cabelo vermelho se fazia notar mais do que nunca. Tinham aparecido rugas ao redor de seus olhos, e havia um vinco permanente de cada lado da boca. “Se todos nós sofremos, ele também sofreu”, pensou Lydia, com amargura e pena. Por fim, Lydia disse:
—    Eu queria que você soubesse que não o culpo demais, Rufus. Sei que você traiu Stephen. Esperou mais de onze anos para se apossar do que ele tinha. Sabe, não foi bem você que realmente derrotou e matou Stephen. Foi o mundo que matou Stephen e a natureza dele.
O rosto de Rufus sofreu uma mudança. Ele começou a esfregar a boca com
os nós dos dedos da mão direita e virou-se para o fogo, de novo.
—    Você sempre soube que isso aconteceria continuou Lydia, com brandura. — Então, esperou e trabalhou, sabendo que seu dia chegaria. Não se iludiu com o paradoxo que assombrava outras pessoas: os repentes de Stephen, de poder, perspicácia e aparente inclemência. E... — e ela sorriu tristemente, quando Rufus de repente a encarou — sei mais do que você poderia compreender.
Ela esperou, mas Rufus, embora tivesse corado, continuava sem falar. Ela continuou:
— Stephen nunca mais quis viver, depois que Alice morreu. Aliás, conhecendo-o tão bem agora, duvido que ele algum dia tivesse desejado viver. Alice mudou isso um pouco, dando-lhe algo por que viver. Depois, ela lhe foi tirada. Sabe, Rufus, ele me contou sobre o sr. Gunther e como tinha conseguido escapar dele. Isso foi antes de Stephen e eu deixarmos de ser amigos.
—    Ele lhe contou sobre Gunther? — perguntou Rufus, surpreendido e muito interessado.
—    Contou. Acho que tinha de contar a alguém. Ele confiava em mim, por isso me contou.
—    Continue, por favor.
A tensão de seu corpo estava começando a relaxar. “Ele tinha de contar a alguém. “ Ele, Rufus, também queria contar “a alguém”.
—    Então, embora ele tivesse levado a melhor sobre o sr. Gunther, isso não lhe deu prazer algum. Era uma... doença. Ele estava sempre sendo traído por sua compaixão e assim, quando fez o que tinha de fazer com o sr. Gunther, ficou com pena. Um paradoxo? Mas todos nós não estamos sempre dilacerados entre as emoções e a razão?
—    Stephen não estava apto a lutar contra o mal, pois nele havia tão pouco
mal.
Lydia hesitou. Mal conseguia dizer as palavras finais. Ela olhou para o relógio de bronze dourado no consolo da lareira. Já era quase meia-noite e meia. De repente, ela sentiu as mãos úmidas e as enxugou com o lenço de renda.
—    E, tem razão, Lydia — dizia Rufus.
—    Mas também há outra coisa — disse Lydia, com a voz mais baixa. — Stephen também morreu quando se deu conta de que nunca tivera amigos, a despeito das mentiras, hipocrisia e afirmações de lealdade. Durante seus últimos poucos meses de vida, ficava esperando pelo sr. Baynes ou o sr. Orville, mas eles nunca vieram vê-lo. Deviam ter sabido que ele estava doente, um mês antes dele morrer, mas não vieram.
Rufus falou, numa aspereza súbita e amarga:
—    Ele emprestou quase quarenta mil dólares àqueles bandidos e, para protegê-los, destruiu as promissórias deles! Não, nunca vieram, os cães virtuosos. E eu os poderia tê-los arruinado e vingado
Steve, se ele não tivesse destruído aquelas malditas promissórias! Eu podia ter ficado com as... — Ele parou, de repente.
Mas Lydia, como se não tivesse ouvido, continuou:
—    O que o homem tem na vida como estímulo senão o amor e a ambição pessoal? Ele pode sobreviver sem ambição, mas não pode sobreviver sem amor.
Ela olhou para Rufus e então seu rosto ficou severo e frio
—    Sc bem que você não tenha tido muito a ver com a derrota de Stephen... e quero dizer sua derrota espiritual e sua morte... você o traiu nas emoções dele. A “afeição” foi uma crueldade desnecessária. Ele passou a confiar em você.
Rufus se levantou, muito devagar, como se tivesse um propósito.
—    Sempre pensei que você fosse uma mulher perceptiva e inteligente, Lydia. Mas, de certo modo, você é burra. “Crueldade desnecessária.” Eu tinha minhas razões pessoais e urgentes para isso, sim. Também conhecia bem o velho Steve e, nesses últimos anos passei a conhecê-lo melhor. O que começara de minha parte como ‘hipocrisia”, como diria você, e por outros motivos, pouco depois também se tornou, para meu espanto, uma.afeição verdadeira por ele. Sabe, Lydia, as coisas nunca são tão vis, nem tão boas quanto você pensa.
Ele sorriu para ela, sombrio, e Lydia se empertigou na poltrona, fitando-o. Ele meneou a cabeça.
—    Nunca deixei de detestar o fato de ele ser o presidente da companhia, mas acabei entendendo que isso servia perfeitamente a meus propósitos. Tudo é complexo e levaria muito tempo para eu explicar. Você nunca me deu o crédito de também ser um parado xo. Mas estou divagando. Steve não era apenas um homem suicidamente compadecido, era também intuitivo. Ficou muito tempo de sobreaviso e nunca chegou a confiar inteiramente em mim. Mas quando comecei a sentir por ele uma afeição sincera, embora desdenhosa, ele soube. Sabia que nunca teve um amigo, a não serjim Purcell E estava sempre querendo se esquecer disso, porque detestava a ética de Purcell. Ele sabia que você não era amiga dele.
Lydia ficou vermelha. Ela se levantou e enfrentou o marido no tapete junto à lareira. Aí ela empalideceu e seu rosto ficou com um brilho cadavérico.
—    Você desprezava Stephen, Lydia, porque o considerava fraco. Essa é a verdade. Como mulher — Rufus parou um pouco, os olhos brilhando com maldade —, você gosta da força nos homens Você chama isso de astúcia. Gosta de força franca e brutal... como a de Purcell.
O nome estava entre eles como uma arma. Rufus ficou observando Lydia e riu um pouco.
—    Já voltaremos a Purcell daqui a um instante. Só quero lhe mostrar, meu bem, que na sua esperteza, você é bem tola. Steve adorava esta casa. Sabia que eu também a amava. Assim, no fim, quando sentiu que ia morrer, deixou a casa para mim, se bem que meu pai a tivesse legado a ele e seus herdeiros, para sempre. Naturalmente, você chegou à verdade ao pensar nisso. Provavelmente achou que era compaixão ou tolice de parte de Steve. Ele fez isso porque queria que alguém possuísse essa casa e gostasse dela tanto quanto ele.
Lydia ficou ali, num silêncio rígido, muito branca, o vestido de seda preta de luto envolvendo seu corpo esguio.
—    Você não ama esta casa, minha cara Lydia. Minha mãe também não; apenas se orgulha dela e vai viver aqui pelo resto da vida. Cornélia ama esta casa. Não importa onde ela vá, sempre voltará para ela. Steve também sabia disso.
—    Você está imaginando coisas — balbuciou Lydia. — Está querendo desculpar a sua conduta...
Rufus estava começando a se divertir. Ele sacudiu a cabeça.
—    Você é uma mulher muito lógica, Lydia. Mas a lógica é rigida demais;
nunca verga, nem compreende os intangíveis. E ótima para os silogismos, mas nunca reconhece que há coisas além da realidade aparente.
—    Não! — exclamou Lydia. — Recuso-me a reconhecer suas premissas.
—    Imagino que você nunca vai aprender, Lydia, que a vida é mais do que apenas premissas. Sabe — continuou ele, olhando para ela com curiosidade —, houve tempo em que eu pensava que você fosse uma mulher muito sutil. Você pode ser sutil quanto às abstrações, mas a realidade deixa-a confusa. Como Laura, você é supercivilizada.
Lydia olhou para ele com um espanto súbito e intenso. Isso levou Rufus a dar uma risada.
—    Está envergonhada por descobrir que não tenho tanta ideia fixa nem sou tão pouco complexo quanto você imaginava. Preferia achar que sou um vilão muito vivo e inteiramente desapiedado.
Ele olhou para o relógio no consolo e conferiu-o com o seu relógio de ouro.
—    Dentro de uns dez minutos, Lydia, a sua carruagem estará aqui para levá-la para a casa da sra. Townsend. Não importa como sei: o fato é que sei. Uma vez lá, com sua amiga, pretende instaurar um processo de divórcio contra mim, por algum motivo delicado. Depois, vai casar-se com Purcell.
Lydia procurou uma cadeira, às cegas, e se jogou nela, os grandes olhos escuros fixos em Rufus. Ele estava sorrindo para ela, achando muita graça, mas falou com brandura:
—    Houve um tempo em que eu teria lutado contra tudo isso, meu bem. Sabe, eu ainda a amava. Talvez, de certo modo, ainda a ame. Mas pretendo deixar que se divorcie de mim. Agora sou presidente da companhia e tenho a casa. Preciso de filhos, quero filhos, Você pode se surpreender se lhe disser que já escolhi a mulher que será minha esposa. Cornélia é a minha queridinha, mas, por algum tempo, pode ser que atrapalhe minha nova mulher. Assim, sendo um homem sensato, e sabendo que você, do seu modo limitado, é uma mulher ajuizada, além de boa, acho melhor que Cornélia vá morar com você. E com Laura. Você é tutora de Laura. Não receio que Purcell faça Cornélia virar-se contra mim. Ela só tem onze anos, mas já possui cabeça. Você é uma pessoa justa: vai permitir que Cornélia venha em casa sempre que ela quiser, de visita, ou quando eu quiser falar com ela. E nunca mentirá a ela a meu respeito. Vê como confio em você.
Lyaia soltou a respiração qur tinna prendido. As lagrimas começaram a lhe encher os olhos. Quando Rufus lhe pegou a mão e a beijou, as lágrimas saltaram por suas faces e ela soluçou, convulsivamente.
—    Não, Lydia — disse Rufus, de mansinho. — Não pense por um minuto que talvez você tenha sido injusta comigo. Não foi, de modo geral. Vou sentir uma falta danada de você e mais ainda das meninas. Mas, às vezes, pelo que se renuncia, recebe-se muito mais.
PARTE DOIS
24
Allan Marshall apoiou-se em sua enxada para olhar por muito tempo a casa de tijolos branca, grande e linda, com terraços, bem acima de onde ele estava. O sol quente batia nas arcadas inferiores, nas altas pilastras brancas e nas janelas compridas e ofuscantes. No terraço inferior, os chorões se moviam sob a luz constante, curvando-se e soprando como fontes verdes, e os carvalhos e olmos abrigavam espaços inclinados de grama escura. As rosas tardias ainda estavam em flor nas paredes de pedra que desciam. As alamedas — bordejadas por flores, cravos-de-defunto, escudinhas, lírios-de-verão e muitas outras flores cujos nomes ele não sabia — subiam e desciam pelos terraços, ao acaso, desaparecendo por trás de moitas e arbustos.
O vento da montanha, com perfume de rosas e pinheiros, enchia o silêncio luminoso em volta do rapaz e, de vez em quando, um pássaro cantava de repente ou, carregando a radiosidade nas asas, se lançava para o céu.
“Se eu tivesse uma casa dessas”, pensou, com ressentimento, ambição e inveja, “nunca a deixaria para ir a esses tais lugares para onde vão: Nova Iorque, Paris, Newport e Riviera.” Mas ele sabia que iria, pois não era apenas um rapaz muito inteligente, mas também nada ingênuo. Ele sorriu para si, aborrecido. Enxugou o rosto suado, voltou a cultivar o jardim estreito em que estava trabalhando e deixou que sua ambição tornasse a empolgá-lo. Sabia exatamente não só aonde queria ir, mas para onde estava resolvido a ir. Sonhar não bastava: os devaneios entorpecem o espírito do homem e, no final, não lhe deixam nada: apenas o mal-estar da náusea, da inveja e o despeito improdutivo.
Allan Marshall desprezava os que gozavam de fortunas pelas quais não tivessem trabalhado; mas desprezava mais ainda os homens sem capacidade, sem intelecto ou sem aspirações, que detestavam os afortunados. Muitas vezes tinha de ouvir essa gente. Ele sabia que precisaria deles e que os utilizaria sem piedade.
Allan via a casa e o que ela representava. Embora fosse o jardineiro e andasse no meio da beleza, não tinha sentimento por ela. Aliás, mal a via. Para ele, árvore era árvore e às vezes uma contrariedade danada, quando tinha de ser podada. As flores eram bonitas, mas tinham de ser estaqueadas e regadas; e não adiantavam nada para um homem que queria vencer na vida.
Allan pensou na velha meio aleijada e maldosa que de vez em quando, cheia de dores, passeava pelos jardins à tarde, apoiada ao braço de um empregado, muito rígido. Ela raramente saía de casa ou do terreno. Nunca participava das fugas constantes do resto da família. Para ela, os jardins floresciam, as árvores murmuravam e as alamedas tinham de ser bem conservadas e aparadas. Allan acha va que ela se comovia tão pouco quanto ele com a beleza natural O poder da posse era suficiente para ela, como era para ele.
Ele atacou o mato com violência contida, arrancando as raízes jogando-as para o lado. Erva daninha não produzia nem beleza nem frutos e, portanto, não tinha motivo para viver. Ele tinha prazer em destruir o mato. Ao examinar as ervas pensou nos homens que ele representava. Eram inúteis como aquelas ervas, mas necessários pelo que podiam fazer por homens como ele.
Allan tornou a enxugar o rosto e então, no terraço mais alto, viu o azul vivo e elétrico de um vestido. “Que diabo”, pensou, apoiando-se de novo na enxada. A velha muito raramente recebia visitas e, quando apareciam, usavam sedas ricas e sóbrias, e não cores vivas como aquelas. Além disso, ele não tinha ouvido o barulhoi de uma carruagem subindo a montanha. Então, se lembrou. Era a mocinha, Comelia DeWitt, neta da velha. Mas o que estava fazendo ali em julho, quando o pai, a madrasta e dois meio-irmãos estavam em Newport? Devia ter chegado na véspera, de noite.
A cor forte estava descendo os terraços, devagar. Ele vislumbrou o cabelo de um ruivo brilhante no meio das árvores, já tinha visto Cornélia várias vezes, na carruagem pelas ruas de Portersville, durante as breves semanas que ela e a família passavam em casa. Ele a achara de uma beleza deslumbrante, só não gostava do cabelo. Não tinha inclinação para cabelo tão escandalosamentc vermelho.
Sem percebê-lo, ela começara a cantar ao descer, com facilidade e desenvoltura. Tinha voz rouca e animada e a música que entoava era uma canção popular, vulgar, comum, mas vigorosa. Ia bem com ela. Allan começou a sorrir. Não gostava de mulheres “pouco finas”, especialmente quando essas mulheres eram jovens; preferia moças suaves, calmas e caladas. No entanto, se uma garota fosse descontraída, ele achava interessante.
Cornélia então passou para uma pequena área de grama aveludada, que formava declive um metro acima de Allàn Marshall. Ela ainda não o tinha visto. Ficou ali, destacada contra o fundo verde da grama e das árvores, de uma altura fora do comum, mas com espantosa voluptuosidade juvenil. Estava com apenas dezenove anos, mas possuía o corpo maduro de uma mulher de vinte e poucos. 0 vestido azul, cintilante, bem ajustado sobre seios fartos, cintura fina e quadris salientes, destacava todo o seu físico. Abaixo dos quadris, o vestido se enfunava em babados, drapeados e franzidos. Cornélia segurava parte do vestido, a fim de ter liberdade de movimentos, e Allan notava as pernas bem torneadas quase até os joelhos. Os sapatos combinavam perfeitamente com o vestido. Sua pele era clara como lírio, acentuada pelos babados de rendas e saias brancas.
Um raio de luz atravessou as árvores e os cachos ruivos irromperam em fogo. Ela piscou, mas não antes que ele vislumbrasse seus olhos castanhos, cheios de vida. Eram olhos de leão, mas com humor, e pareciam possuir um entusiasmo primitivo. O rosto largo e cheio tinha um colorido forte e a boca grande e carnuda parecia uma papoula, em pleno soh O nariz, levemente aquilino, dava a expressão predadora à fisionomia normalmente bem-humorada e alegre. Sua cabeça estava erguida e Allan notou as linhas alongadas do pescoço jovem e a redondeza do queixo de covinha. Ela iniciou outra canção, bastante picante e viva, e começou a rir. Um cacho vermelho tinha caído em seu pescoço. Ela o ajeitou, afagando-o com carinho. Então, viu o homem lá embaixo. Cornélia abriu a boca, mostrando dentes grandes e alvos.
—    Olá! — exclamou com voz rouca que parecia quase um grito. — Quem é você? O novo jardineiro?
Ele sorriu para ela, sem submissão. Com grande perspicácia, entendia as pessoas. Sabia que sua falta de servilismo e humildade não a ofendería.
—    Sim, senhorita DeWitt. Ou, pelo menos, um deles. Trabalho o verão todo, depois de terminado o trabalho da primavera. Sou Allan Marshall — acrescentou ele, apoiando-se na enxada de novo e olhando para ela com franca admiração. Ela não tinha abaixado o vestido sobre as pernas, nem demonstrou qualquer confusão. Depois de uns momentos, em que os dois sorriram, Cornélia avançou descendo o pequeno terraço, indo até ele. O rapaz estendeu a mão morena e suja para ajudá-la, mas ela já estava saltando por cima da borda do terraço, num dilúvio de sedas e rendas. Quando ela chegou ao lado dele, Allan pôde sentir toda
a sua tremenda vitalidade e energia.. A moça exalava uma força primitiva, inteiramente sem qualquer elegância que a velasse.
Ela o estava fitando, satisfeita. Deixou as saias caírem, não como se tivesse noção do que estivera revelando, mas apenas como se não fosse mais preciso suspendê-las.
—    Você não parece jardineiro, Allan — disse ela, com candura.
—    Na verdade, não sou mesmo. — Ele pegou o cachimbo e acendeu-o calmamente, enquanto ela o olhava. — Estudo Direito de noite, nos escritórios do secretário de Estado auxiliar, o sr. Peale. Ele designou um de seus advogados para me ensinar.
—    Que ótimo — disse Cornélia, com admiração. — Então, vai ser advogado. No escritório do sr. Peàle.
—    Não é bem isso, senhorita. Vou ser advogado trabalhista Meu pai é maquinista de uma das ferrovias de seu pai. Sei tudo sobre os problemas trabalhistas. Não vão se resolver sem advogados, e serei um deles.
—    Você é anarquista? — perguntou ela, interessada.
Ele fez uma careta.
—    Não, não creio. E disso que os donos de estradas de ferro chamam gente como eu. Mas não sou. O futuro está nas mãos dos trabalhadores desta terra e... — ele hesitou.
Ela deu uma risada alta e apontou para ele com o dedo cheio de anéis.
—    E você vai fazer parte do futuro! Conheço muito bem as pessoas, e você não faz parte realmente dos trabalhadores, nem chora por eles. De verdade, não!
O rosto da moça, comum mas lindo, brilhava de alegria e um escárnio feliz. Seus seios arfavam, enquanto ela gritava, achando graça, e o azul vivo do corpete ondulava como água. Ela emanava um aroma limpo e forte, de juventude e poder atávico, e sua testa suava ao sol.
Por um instante, Allan ficou zangado e perplexo, quando ela expôs o que ele era. Depois, sentiu-se aliviado. Encostou-se ao tronco de uma arvorezinha, cruzou as pernas e ficou fumando. Que diabinha danada era essa; e esperta também. Ele concluiu que gostava muito de Cornélia, mas não estava disposto a confiar nela, apesar de toda sua franqueza e democracia fácil. Ele desconfiava de que aquilo escondia muita hipocrisia e uma afetação astuciosa. Ficou esperando que ela acabasse de rir às suas custas. Por fim, ela ficou ali olhando para ele, o rosto cheio de satisfação.
—    Acho que gosto de você — disse ela por fim. Examinou-o abertamente, da cabeça aos pés, não com a insolência dos incalculávelmente ricos, mas com a maneira de uma jovem criatura examinando a outra.
Cornélia era muito alta, mas ele a superava em pelo menos quinze centímetros, magro e musculoso, pele bronzeada e muito moreno. Allan possuía também rosto fino, o perfil quase adunco e olhos negros discretamente ardentes. O cabelo preto erguia-se rijo da testa bronzeada como uma juba, enroscando-se na nuca. Como Cornélia, também exalava uma aura de uma força imensa, mas a dele era menos espetacular, mais controlada e sutil.
Terminando o exame, Cornélia sentou-se na grama, envolta num turbilhão de saias. Sentou-se de pernas cruzadas, mostrando-as. Com um chute tirou os
sapatinhos de cetim pontudos e remexeu os dedos dos pés, num alívio franco. Depois olhou para o rapaz, com humor
—    Que idade você tem, Allan?
—    Tenho vinte e seis anos, senhorita.
Ela notou de novo, com prazer, que ele possuía uma voz sonora.
—    Eu estou com dezenove. — Ela arrancou um punhado de grama e começou a mastigar uma folha. — E vou me casar. Vou-me casar com Patrick Peale. Ele trabalha no banco do tio, em Filadélfia, Depois que nos casarmos, ele vai ajudar meu pai.
—    Que bom — disse Allan. — Quando é a feliz data?
O sorriso brilhante apagou-se no rosto de Cornélia e ela desviou o olhar.
—    Ainda não sei. Não... foi marcada. — Ela jogou fora a grama.
—    O senhor Patrick Peale sabe disso? — perguntou ele, esperto.
Ela virou a cabeça para encará-lo e seus olhos estavam apertados, desagradáveis.
—    Não acha que está sendo um pouco impertinente? — comentou. Sua boca havia perdido seu ar cheio, franzira-se, e ela não estava mais linda.
Allan deu de ombros.
—    Se estou sendo presunçoso, senhorita, é que me deu oportunidade. Desculpe.
Ele pegou a enxada, afastou-se dela e começou a revolver a terra seca no canteiro de flores. Era como se ele a tivesse dispensado e se esquecido dela. Ele ficou assobiando, pensativo. Ela o observou atentamente e depois sorriu.
—    Agora não gosta de mim — disse ela.
—    É importante?
—    Bom, é. Gosto de ser apreciada pelas pessoas. Tudo fica muito confortável.
Ele olhou para ela, curioso.
—    Mas não é porque goste das pessoas.
Ela tornou a rir estridentemente.
—    Eu as detesto — disse. — E você também. — Ela inclinou a cabeça e ficou examinando-o. — Mas nós não deixamos que as pessoas saibam o que sentimos por elas. Isso estragaria tudo.
—    E aí não poderiamos usá-las.
Ela meneou a cabeça, encantada.
—    Você é muito inteligente, Allan. Acho que dará um excelente advogado. — Os olhos dela brilharam, zombando. — Um advogado trabalhista.
Ele fez uma mesura irônica e continuou seu serviço. Negligenmente, os olhos pousados sobre ele, ela estendeu a mão para o canteiro de flores e colheu um raminho de botões brancos. Enfiou-os no cabelo e viu que ele percebera o seu gesto displicente.
—    Você não gosta de jardinar, não é? — disse ela. — E como é que eu sei?
Bem, tivemos um jardineiro de verdade, há um ou dois anos, e, se alguma de nós sequer olhasse de esguelha para as suas flores preciosas, ele tinha um ataque. Colhi estas e você nem sequer, piscou.
—    As flores são suas — respondeu ele, com indiferença.
Ela riu-se.
—    Se você fosse um jardineiro de verdade, as considerariacomo suas, e não minhas. Diga, Allan, o que você faz no inverno?
—    Serro madeira, limpo a neve, trato dos cavalos, ajudo meu pai quando os foguistas dele adoecem e muitas outras coisas. Faço trabalho de foguista desde os doze anos, para ajudar meus estudos. — Ele falava sem ressentimento. Virou a cabeça e olhou bem para ela. — E já tenho feito engates, jogando o pino acoplador entre os vagões. — Ele levantou a mão direita e ela viu que lhe faltava parte do dedo médio, até a segunda articulação.
Se ele esperava que ela fizesse uma careta ou empalidecesse diante de sua mutilação, decepcionou-se. O gesto tivera em si certa crueldade, o desejo de chocar. Mas Cornélia, embora parasse de sorrir, ficou mais curiosa do que outra coisa.
—    Meu Deus, mas que pena danada — disse ela.
—    Que palavreado — disse ele. — Pensei que moças bemeducadas não
usassem esses termos.
—    Já ouvi dizer que os guarda-freios e gente assim perdiam os dedos — disse Cornélia, impaciente, sem ligar para o comentário dele. — Imagino que não haja nada a fazer.
—    Ora, eu tenho idéias — comentou Allan. — Um engate automático. Estou trabalhando nisso. E por isso que não vou voltar aos engates na estrada de ferro neste inverno. Se voltasse e inventário 0 engate automático, seu pai poderia reivindicá-lo e talvez eu ganhasse um royalty insignificante por ele, se ganhasse. Não quero que ele fique com isso; quero montes de dinheiro por ele. Então, quando estiver pronto, vou procurar quem der mais. Entre os fabricantes, não entre os ferroviários.
Cornélia deu um sorriso sagaz.
—    Quer ficar rico, é? Bom. Eu também gosto de ser rica. Gente inteligente sempre ganha dinheiro. Os tolos nascem pobres, vivem pobres e morrem pobres. Claro, não é isso que dizem os ministros, mas é verdade. Meu avô nasce u pobre, mas teve a inteligência de enriquecer e não tinha paciência com gente sem ambição Temos muito dinheiro... milhões, eu acho... e quero mais. Por que não me pergunta por quê?
—    Porque eu sei.
Ele se abaixou e arrancou mais um punhado de mato. Cornélia meneou a cabeça.
—    É claro. — Ela bocejou e Allan viu sua língua rosada e quase todos os dentes, pois Cornélia não fez menção de tapar a boca. Parte do cabelo tinha-se soltado e se enroscava em cachos úmidos nas faces rosadas. Allan olhou-a com uma admiração declarada e, notando isso, ela piscou para ele. — Onde é que você mora? — perguntou ela.
—    Em Potters’ Road, com meus pais e meu irmão Michael. Ele agora faz
trabalho regular de foguista nas estradas.
—    O que você é: inglês, escocês, irlandês, ou coisa assim?
O rosto moreno ficou mais sombrio.
—    Sou irlandês, senhorita.
Ela espanou uns talos de grama do vestido e seus gestos eram lentos e caprichosos. Ele acrescentou:
—    E sou irlandês católico, também, e não um protestante quallquer.
Cornélia se levantou com um movimento longo e fluido e jogou o cabelo para trás.
—    0 que importa? — perguntou, sem interesse.
—    Não deixo que minha religião me atrapalhe — disse ele, mas havia uma expressão tensa em sua face.
—    E quem é que deixa? — disse Cornélia. — Só um idiota faria isso. — Ela sacudiu os babados. —Já devem ser quase quatro horas — continuou. — Prometí a minha mãe jantar com ela, minha prima e tio Jim... meu padastro... e minha irmã Ruth. Eles não costumam ir a Newport no verão, como nós. Não gostam de lá. Nem eu, especialmente.
—    Mas a senhorita vai, não vai, senhorita DeWitt? Eu estava pensando por que estaria na cidade, nesta época do ano.
Ela arregalou os olhos, como que surpreendida. Virou-se e olhou pelos terraços, para a casa, e então seu rosto se suavizou, ficando quase terno e meditativo.
—    Adoro minha casa, Allan. Não suporto ficar longe dela. Por mais tempo que eu viver, ou onde quer que eu vá, sempre hei de voltar. Assim, mesmo no verão, tenho de voltar por uma ou duas semanas, só para ter certeza de que a casa ainda está aí.
Sua voz rouca se tornara quase suave. Allan, meio espantado, também olhou para a casa. O sol não batia mais nos arcos do andar térreo, e eles estavam cheios de uma penumbra misteriosa, mas os pilares brancos da grande piazza estavam incandescentes de luz e as vidraças de cima fulguravam ao sol poente.
—    Vou ter uma casa assim, um dia — disse Allan, muito sério, quase sombrio. — Acho que não me importo de trabalhar aqui, desde que possa olhar para ela, de todos os ângulos.
Alguma coisa na voz dele a fez virar-se, de repente, e contemplá-lo, com uma espécie de assombro intenso. Eles ficaram se fitando por muito tempo. Então, o rosto de Cornélia encheu-se de luz e alegria e Allan sorriu. Entre eles houve uma profunda troca de emoções e os lábios de Cornélia se entreabriram suavemente, num sorriso correspondente. Numa das ocasiões muito raras de sua vida, ela se esqueceu de quem era; esqueceu-se de quem era Allan Marshall. Eles estavam numa comunicação em que dois jovens se compreendiam e se reconheciam. Quando Cornélia estendeu a mão a Allan, foi um gesto impulsivo e inteiramente sincero de camaradagem. Ele a pegou logo, com força, mas brevemente.
Ele viu os olhos de Cornélia, agora bem abertos e dourados ao sol e úmidos. O cabelo que ele criticara estava vivo, como que em fogo.
Cornélia estava rindo, não a sua risada normal, barulhenta, mas um riso
suave. Ela suspendeu as saias e subiu pelo terraço pequeno. Uma vez em cima, olhou para baixo, para Allan, e pareceu-lhe que por um instante ela concentrara o sol em si e o estava despejando sobre ele. Ela acenou e voou pelos terraços superiores como uma seta de uma cor brilhante. Ele se apoiou na enxada e ficou olhando-a. Uma velha, “a velha diaba”, tinha aparecido napiazza, séria, de cabelo branco, alta e curva, apoiada na bengala. Mesmo àquela distância, Allan viu que uma mudança se operava em Sophia; sua rigidez se derreteu, quando ela beijou Cornélia. Sua voz forte e estridente se difundiu em tons de um misto de queixa e afeto. Elas andaram juntas pelo lado da piazza, Cornélia sustentando a velha de preto.
Allan ficou ali, olhando para a casa. Para um rapaz tão seguro e de personalidade tão compacta, ele se achava estranhamente perturbado e abalado. Depois, disse consigo: “Não uma outra casa, mas aquela. Não uma moça sem rosto, mas aquela”.
Seus pensamentos não lhe pareceram vangloriosos. Ele continuou a trabalhar, absorto e atento, as sobrancelhas escuras se juntando sobre os olhos.
25
0 sr. Victor Drummond, bocejando, fechou os livros de Direito, piscou para as luzes de gás ao alto que iluminavam seu gabinete silencioso.
—    Acho que basta, por hoje, Allan. — Ele era um homenzinho rijo, de seus cinquenta anos, calvo, de bigodes brancos e um rosto aguçado e irritado. Olhou para o relógio, bocejou de novo, afagou os bigodes encerados e delicadamente afastou os livros. — Já são dez horas.
Allan Marshall levantou-se, empilhou os livros, dobrou as folhas amarelas que tinha usado e nas quais estavam escritas várias decisões, em sua letra miúda, e guardou-as no bolso. Sob o bronzeado da pele, estava pálido de cansaço. Mas o olhar funesto que lançou ao sr. Drummond era indomável.
—    Eu podia passar a noite toda — respondeu.
O sr. Drummond, embora desprezasse aquele “refugo das sarjetas", sorriu, lisonjeado. Sua posição no escritório do sr. Peale era secundária; fazia as pesquisas menos importantes, mas era eficaz. Não havia nada que fosse muito empoeirado para ele, nada aborrecido demais para a sua natureza meticulosa. Ele disse com condescendência:
—    Você vai dar um bom advogado, um dia desses, Allan. Aguardo com prazer o dia em que você se juntará a mim como meu assistente nas pesquisas. Há tanto trabalho! Estou precisando de um rapaz como você. Acho que dentro de um ou dois anos você estará preparado. — Ele acrescentou: — Você deve muito ao sr. Peale. Nunca me contou como o procurou e como o convenceu de sua queda natural para o Direito.
—    Eu apenas entrei no gabinete dele, quando ele voltou de Washington, e lhe disse — explicou Allan, com simplicidade. Aquele projeto de homem! Ele que ficasse com seu jeito condescendente e pseudo-elegante. Era de uma utilidade imensa para Allan Marshall.
O sr. Drummond suspirou, feliz.
—    O sr. Peale é um homem muito democrata, Allan. Quantos cavalheiros na situação dele deixariam a porta aberta para rapazesempreendedores? Ele tem o que chamamos de... hummm... o "toque comum”. Lembro-me bem do dia em que vim para este es critório. Meus pais — e o peito de pombo do sr. Drummond
inchouse pomposamente — poderíam mandar-me para Harvard. O sr. Peale dia me disse que o escritório não poderia funcionar sem mim.
—    Ele riu, num tom cheio e modesto. Afagou a barriguinha e torou a suspirar, com complacência. As pontas dos dedinhos estavam empoeiradas e manchadas de tinta.
Allan continuava com expressão séria e atenta. Estava de pé ao lado da escrivaninha de tampo corrediço do sr. Drummond numa atitude de respeito: o boné marrom na mão, o sobretudo velho, curto e ralo, apertado nos ombros largos. Suas botinas estavam rachadas e sujas. O sr. Drummond era um homem obtuso demais para ver o desdém sutil nos olhos negros fixos nele.
—    Diga-me, Allan — falou ele, com gentileza —, por que está tão interessado na legislação trabalhista promulgada nesses últimos dez anos? Onde pretende usar todas essas informações?

—    Aqui, talvez — respondeu Allan, sorrindo, de modo desagradável. — O senhor Peale tem uma porção de clientes que são industriais. — O sorriso tornou-se ainda mais desagradável. Além disso, posso ser de grande utilidade ao meu pessoal, sabe... os trabalhadores. Contribuir para um bom entendimento trabalhista em tre empregadores e empregados.
0 sr. Drummond balançou a cabeça, sério.
—    Uma bela aspiração. Esperamos que não haja mais aborrecimentos. Depois que o seu... pessoab., tome consciência dos problemas da indústria, não terá tanta vontade de se levantar contra seus benfeitores. E isso me faz lembrar: temos alguns livros pouco usados sobre o assunto. Vou pegá-los para você, na quarta-feira. A obrigação sagrada do trabalhador e As advertências da Bíblia para o trabalhador, de Elson. Creio que neste há um capítulo intitulado “Ensaio sobre o assunto de exortações na Escritura ao talhador de madeira e o aguadeiro”. Muito edificante. Exorta à humildade e à gratidão de parte do homem que trabalha.
—    Parece muito interessante — disse Allan. Sua voz, grave controlada e cheia de flexões eloquentes, encheu o gabinete, com ressonância. O sr. Drummond ficou escutando e coçou o queixo
—    Ah, é — murmurou. Não era muito burro. Alguma coisa o estava deixando nervoso. Ele empurrou a cadeira. — Acho que minha charrete já foi trazida da cocheira — disse ele. — Está chovendo, tempo muito feio, nessa época do ano. E você vai para longe, Allan
O sr. Drummond foi andando à frente de Allan pelos escritórios compridos e escuros, onde os fogos tinham sido apagados.
O frio permeava os cantos ocultos; um lampião de gás da rua permitia que os dois fizessem seu caminho sinuoso entre a confusão de mesas, cadeiras e arquivos. O sr. Drummond trancou as portas com cuidado e, sempre na frente, o rapaz surrado atrás, desceu os dois andares de escadas atapetadas até a rua. Uma chuva mercurial, fria e penetrante, batia nas paredes dos prédios e o vento de outono uivava pelas avenidas compridas e vazias. O rio estava subindo. Eles ouviam sua voz rouca contra o trovejar da borrasca. A charrete do sr. Drummond esperava junto ao meio-fio. Ele morava na Cidade Leste, como Allan, e pelo menos a metade do percurso seria em direção à casa do rapaz. Nunca ocorreu ao sr. Drummond oferecer a um membro das “classes inferiores” uma condução por trás das confortáveis cortinas de seu carro.
Allan ficou olhando a charrete seguir rápida pela rua; as rodas jogavam
para os lados os lençóis de água prateada, espalhada das sarjetas. Ele virou para cima a gola do sobretudo pobre, puxou para baixo o chapéu sobre a massa desgrenhada de cabelo preto e acompanhou a charrete depressa, escolhendo o caminho no meio das poças d'água nas pedras.
Suas pernas compridas o carregaram depressa e com facilidade pelas ruas desertas. Ele ficou de cabeça abaixada contra a chuva, as mãos enfiadas nos bolsos. Mentalmente, repassou vezes e mais vezes as mais recentes decisões contra a mão-de-obra. O Direito era uma faca de dois gumes. Era também um método de chantagem, A Justiça podia ser usada para vingar os direitos do homem, mas também podia destruir os mesmos direitos. A Justiça era serva dos fortes; tinha mil mãos, que podiam ser compradas. O licitante mais alto podia ter certeza de consegui-la, como escrava dócil, para o seu uso. A lei, pensou Allan, devia ser representada como um poço de mercúrio, escorregadio e infinitamente capaz de assumir partículas cada vez menores.
O relógio da torre da cidade bateu dez e meia da noite. Tim Marshall, pai de Allan, já devia ter acabado com o cansativo rosário da noite, a essa hora. Allan imaginou o pai, com sua camisa listrada de maquinista, ajoelhado, tendo ao lado a mulher e o filho mais moço, Michael. Via as contas passando pelos dedos velhos e marcados, à luz dos lampiões de querosene. Via a mãe, prematuramente grisalha e envelhecida, acompanhando as orações, e Mike, aquele palerma tonto, repetindo-as. As cruzes de metal, baratas, reluziam um pouco à luz amarela, tremendo nas mãos piedosas. “Ave Maria, Cheia de Graça... Pai Nosso, Que Estais no Céu...” Como seria possível ensinar aos tolos que essa besteira humilde era o sortilégio de sua servidão? Bem, pensou Allan, mais vale eles não saberem mesmo. Havia uma pedra em seu caminho. Ele a chutou e, com certo prazer, a viu voar pela ma. Parado ali um instante, a chuva lhe escorrendo pelo rosto, viu um camundongo sair do lado de um prédio e, confuso, atravessar correndo em sua frente. Ele o chutou com tão pouca emoção quanto a que chutara a pedra. O bicho saltou no ar com um guincho e caiu, contorcendo-se na sarjeta cheia d’água. Ele continuou, cantarolando. O camundongo lhe lembrou o sr. Drummond.
Ele nunca esquecera Cornélia DeWitt. Ela agora estava em Nova Iorque na bela mansão em que morava com os pais e irmãos na Quinta Avenida. Ele, Allan, nunca tinha ido a Nova Iorque, a não ser no verão anterior, numa viagem com o pai. Lembrava-se muito bem da Quinta Avenida: casas altas e quadradas, placas de metal polido nas portas de grades, janelas com cortinas de seda dando para a rua. Carruagens. Escadas brancas. Vestidos e peles das mulheres, joias, sombrinhas, chapéus cheios de plumas; o farfalhar de suas saias, seu riso cristalino e rostos bonitos. Crianças com suas amas. A luz forte e viva nas pedras pálidas. Ele encontrara a residência dos DeWitt, fechada para o verão, com venezianas cerradas. Ele se postara diante dela, dizendo consigo que um dia havia de morar naquela casa e que seria dele. Em sua imaginação, Cornélia o acompanhava, de braço dado com ele. Ele não estava com roupas remendadas: estava com um colete de brocado, de polainas, os ombros cobertos por uma boa casimira, e bengala de ponta de ouro na mão.
Ele então passou a caminhar mais depressa, pelas ruas pobres e silenciosas que levavam até sua casa. Uma questão de tempo. Tal vez não muito tempo. Ele estava com quase vinte e sete anos. Não podia esperar mais muito tempo. Três moedas de dez cents, uma de vinte e cinco e alguns trocados tiniam contra uma das mãos enfiadas em seus bolsos. Ele pegou as moedas, esfregando-as. Começou a assobiar uma velha canção irlandesa, ensinada pelo pai, e o som pareceu forte e suave naquele silêncio chuvoso. Ele assobiou para Cornélia e então todo seu corpo se encheu de desejo premente e expectativa. Não lhe importava o fato de que fazia meses que não via Cornélia. Não tinha medo daquele maricas de cara branca, Patrick Peale, que estava noivo da srta. Laura DeWitt e se casaria no próximo mês de junho. Dois fantasmas juntos, pensou Allan, rindo. Ele fizera questão de saber de tudo quanto se referisse aos DeWitt e escutava todos os mexericos sobre eles. Houvera muitos comentários maldosos sobre a srta. Cornélia se decepcionar por não ter conseguido “agarrar” o sr. Patrick; Allan escutara os leves escárnios nos escritórios dos Peale.
Ele duvidava muito que Cornélia tivesse ficado muito decepcionada. Talvez sua vaidade tivesse sofrido um pouco, mas ele sabia bem que Cornélia era forte e tinha humor suficiente para compreender que, afinal, Patrick Peale não era o seu tipo, além de ser-lhe antipático.
Quando ele passou pela fachada vazia e molhada de um velho armazém, a luz trêmula do lampião de rua bateu num fragmento esvoaçante de um cartaz político. Estava meio rasgado, molhado e amassado. Allan parou, examinou-o e tornou a rir. Alisou o papel encharcado e viu que mostrava as feições de um rapaz sério, de seus trinta e poucos anos, com rosto severo, olhos tranquilos e penetrantes. “Votem em Patrick Peale!”, exortavam imensas letras pretas. “Senado dos Estados Unidos. Votem no Homem do Povo! Justiça para todos, privilégios especiais para ninguém!” Allan arrancou cartaz de seus últimos laços e atirou-o ao vento violento. — O velho George Peale fizera muito por aquele seu filho altivo, com a voz controlada e as maneiras discretas. Allan já ouvira Patrick falar muitas vezes em comícios políticos, nas esquinas. Tinha sentido desprezo por ele. O imbecil realmente acreditava no que dissera com tanto fanatismo. Em todo caso, Patrick fora eleito, embora desconhecido até cinco meses antes das eleições de novembro. Ele fizera uma campanha especialmente eloquente, incansável e sincera. Mas, claro, a fortuna do pai ajudara.
— Boa sorte com seu velho, Pat — disse Allan, vendo o cartaz voar de encontro a uma parede e depois cair na sarjeta. — Alguma coisa me diz que vocês dois não vão ser mais tão felizes juntos, de agora em diante.
Então, Patrick Peale não seria marido de Cornélia DeWitt. Não faria parte da imensamente poderosa e rica Interstate Railroad Company. Allan continuou em seu caminho, assobiando de novo uma canção irlandesa. Algumas velhas frases dos pais lhe voltaram, sem querer: “Mavourneen (querida), não deves chorar agora, pois a tristeza não é para você, eu acho. A vida, a alegria, comida e dinheiro, mas não a tristeza. Vinho, dança, gritos e risos. Claro, és uma bela garota e serás minha”.
Ele se lembrou das poucas vezes em que tinha visto Cornélia DeWitt, desde aquele dia no terraço. Só a vira de longe, na carruagem, passando por Portersville. Diziam que ela resolvera ir morar com o pai e que tinha saído de vez da casa da mãe. E a casa que a atrai, pensou Allan. Ele se lembrou da última vez em que a vira, em outubro, quando ela ia embarcando no vagão particular do pai. O pai e a madastra, criaturinha bonitinha, estavam com ela, bem como os irmãos. Mas, como o fogo, ela era o centro do grupo, com a empregada arrumando suas peles e bagagens, e tagarelando que nem um pardal. Allan tinha descido da cabine de maquinista do pai e ficara ali encostado, negligentemente, fumando um cigarro, Não se aproximara daquele gmpo, rodeado de lacaios, guarda-freios e condutores, todos olhando boquiabertos e querendo ajudar. Ficara ali, querendo que ela olhasse em sua direção. E ela olhara; ele nunca se esquecería do clarão de seu sorriso vigoroso, o aceno com a mão enluvada, a inclinação zombeteira da cabeça com o chapéu de veludo azul. Ele sentira um prazer de proprietário por ser parte da locomotiva que a levava na direção de Nova Iorque. A jornada dele, e a do pai,
terminava em Filadélfia.
Ela não se esquecera dele. E ele nem pensara que ela fosse esquecer. Quando, certo dia, recebeu em casa um embrulho grande e misterioso, encontrando ao abri-lo uma imensa coleção de livros de Direito, encadernados em couro, ele apenas sorrira. Não havia bilhete algum, mas ele sabia. Os pais ficaram assombrados com o presente magnífico, embora anônimo, e tinham tocado respeitosamente no couro. Tim estava convicto de que o nobre sr. Peale fizera aquela generosidade com o filho, e Allan não o desiludiu. Por algum tempo, aquilo tinha abalado a convicção de Tim de que os “altos interesses” (expressão que ele usava vagamente para definir qualquer pessoa que não usasse as mãos para ganhar a vida) eram uniformemente malignos.
Cornélia voltaria para casa alguns dias antes do Natal. A família diría um ou dois dias mais tarde, antes de voltar para Nova Iorque para o ano-novo e a peregrinação anual à Riviera. Allan não estava muito triste com essa visita tão breve. Se não visse Cornélia nesse ínterim, ela se lembraria dele.
Sua invenção estava progredindo muito bem. Aguardando patente. Suas forças não tinham limite; podia trabalhar doze horas por dia, estudar Direito seis horas por noite e sentir muito pouco cansaço. De modo geral, as coisas corriam otimamente. Mas ele precisava agir depressa, agora.
Os jornais locais tinham publicado uma notícia tola de que a srta. Cornélia DeWitt estava sendo vista constantemente com um certo marquês de meia-idade, na França, e que o aristocrático senhor pretendia visitar os Estados Unidos no verão seguinte, com o propósito de continuar a cortejar a herdeira. Descreviam o marquês como nobre de grande fortuna, coisa de que Allan duvidava.
Nessa época, havia muitos nobres finíssimos, mas empobrecidos, perseguindo as jovens americanas ricas e casando-se com elas. Cornélia não era do tipo para uma elegante vida continental, com aquela formalidade e modo de vida restrito. Allan estava convencido de que ela entendería isso. Não obstante, ele não acreditava que alguma beldade olhasse para ele com bons olhos, e sabia que Cornélia era ambiciosa.
A neve começou a se misturar à chuva, depressa, engrossando. As pedras do calçamento estavam ficando escorregadias. Allan começou a andar mais depressa sobre elas, assobiando mais alto. Virou por uma ruela triste e estreita, com cheiro de lixo e repolho fervido. Antes não havia favelas em Portersville, mas agora elas se espalhavam como uma doença maléfica pelas ruazinhas que antes eram respeitáveis, limpas e arrumadas. Allan sabia que os “forasteiros”, incluindo sua família, estavam levando a culpa por esse fato deplorável. Os “forasteiros” ganhavam muito menos do que a mãode-obra nacional, mas os moradores da Cidade Leste, cheios de ódio, pouco se importavam.
A maior parte da zona pertencia a homens de negócios que tinham investido dinheiro ali, e os parcos aluguéis eram cobrados por agentes que não contavam nada sobre os rebocos caídos, telhados com goteiras, janelas rachadas e paredes inclinadas.
Potters’ Road não era menos miserável do que as ruas vizinhas. As casinhas, na maior parte de tábuas, há anos que não eram pintadas. As árvores plantadas tinham morrido. Os jardins estavam cheios de lixo e detritos caseiros. Como a zona estava sujeita à fuligem das ferrovias e das fábricas, as casinhas tinham uma camada unifome de sujeira, de modo que era de uma só cor, cinza-escuro. O fedor da vegetação apodrecida e da fumaça acre pairava no ar frio e úmido. Fracos lampiões de querosene — brilhando debilmente por trás de
cortinas rasgadas e esfarrapadas — lançavam manchas amarelas na noite.
A casa da família Marshall era diferente; embora a sra. Marshall tivesse de lavar as cortinas pelo menos uma vez por semana, ela as mantinha brancas e engomadas, cuidadosamente consertadas e remendadas. Tim até plantara um pequeno olmo no gramado, que estava vingando, pois, de noite, ele pegava uma cesta e uma pá e ir para as ruas juntar esterco de cavalo, como fertilizante, que aplicava com afinco. Apesar da fuligem, ele conseguira formar um jardinzinho. Tudo isso era olhado com escárnio pelos vizinhos, para grande perplexidade de Tim. Ele acreditava firmemente, mesmo diante de provas avassaladoras, que os pobres eram nobres, superiores aos que possuíam dinheiro, e de outra espécie, inteiramente diferente dos “tratantes que moram nessas casas junto do rio”.
Tim trouxera tinta vermelha das oficinas da ferrovia e havia pintado a porta e as guarnições da janelas, no verão anterior. Isso provocara muitas risadas entre os vizinhos. Tendo habilidade manual, ele mesmo consertara o telhado, rebocara as paredes rachadas e as cobrira com papel de parede barato. Em consequência, a casinha era jeitosa e arrumada, contrastando muito com as outras. Os vizinhos, ressentindo-se de todo esse trabalho, ressentindo-se dos Marshall pelo respeito que tinham consigo, deram-lhes o apelido de “aqueles irlandeses pretos e imundos”. Quando os “amigos” o tratavam mal, Tim os desculpava alegando que estavam cansados e desanimados e que “não faziam por mal, coitados”.
Allan abriu a porta e sentiu o cheiro da cera que a mãe usava sem cessar, do sabão que ela nunca poupava e do aroma gostoso de um cozido excelente. A sala, a sala de jantar e cozinha eram um aposento só, quente e úmido, naquela noite fria, do calor do grande fogão negro na parede em frente. Não havia dinheiro para cobrir o assoalho, mas a sra. Marshall o mantinha esfregado e branco. Um velho sofá marrom estava encostado à outra parede. A mesa, coberta por uma toalha branca, estava posta para Allan. Havia duas velhas cadeiras de balanço e duas cadeiras retas espalhadas junto do fogão. Numa parede florida tinham pendurado uma litografia viscosa do Sagrado Coração, muito violento e sangrento, que fazia Al lan se encolher cada vez que seus olhos relutantes deparavam com o quadro. A família — Tim, a mulher e o filho Michael — estava sentada em volta do fogão, os pés descalços de Tim na porta do forno, aberta, a sra. Marshall tricotando as meias da família e Michael, como sempre, debruçado sobre um livro religioso.
Tim largou o jornal, quando Allan entrou.
—    É o filho! — exclamou, com um carinho rude. — É o belo advogado que temos aí? E como vão os livros de Direito, seu patife?
A sra. Marshall levantou a face enrugada para o beijo molhado de Allan, sorrindo para ele com orgulho. Michael, que tinha vinte e três anos, olhou para o irmão calado, sem sorrir.
—    O cozido está quente — disse a sra. Marshall, levantando-se, dura e cansada, e mancando para junto do fogão. — E o café está fervendo. Você hoje chegou tarde, Allan.
O corpo magro, no vestido xadrez desbotado, era tão sem curvas, gasto, e o cabelo crespo e grisalho tornava o rosto cansado, quase igual ao de um cadáver. Ela mal completara cinquenta anos, anos de privações sem fim, sofrimento e trabalho exaustivo. Estava envelhecida prematuramente.
—    E como vai aquele belo cavalheiro, o sr. Drummond? — perguntou Tim.
—    O belo cavalheiro está... bem — respondeu Allan, olhando com prazer
para o prato cheio do cozido. Ele afastou o lampião para dar lugar ao prato de pão que a mãe colocou junto dele. O café foi servido numa caneca rachada. Allan pôs um leite azulado dentro dele e um torrão do açúcar precioso. Como a comida era considerada importante demais para ser perturbada pela conversa, a família ficou calada até Allan acabar a refeição. Michael voltara a sua leitura piedosa. Tim e a sra. Marshall ficaram sentados, num silêncio dócil, observando o filho mais velho com amor e complacência, esperando. Ele era seu herói, seu cruzado, seu libertador; com o “Direito" dele, ia livrar os “trabalhadores” de sua escravidão mal paga. Seria seu campeão; usaria aquela sua voz grave e possante contra os poderosos que exploravam os indefesos.
—    É um Clan-na-Gael, é o que ele é — dizia Tim, com orgulho. Não havia nada que esse seu filho não conseguiría fazer, com o tempo. Talvez até o Senado, onde lutaria pelos direitos do homem. Tim sorria para o filho e então, como que encabulado de seu orgulho, coçava a cabeleira espessa, branca e ondulada. Para completar, esfregava o queixo redondo e barbado e depois puxava o nariz grande. Sua camisa de maquinista, sempre limpa, farfalhava com a goma que a mulher usava. Ele ficou olhando para o fogão e seus tenazes olhos azuis se iluminaram com pensamentos ávidos. Era um homem pequeno, mas tinha um porte distinto e grande determinação. Não queria saber da posição curva e desanimada dos vizinhos. Voltou os olhos para Allan e disse consigo: “Ele tem uma voz de harpa, com muitas cordas; tem uma voz irlandesa. Nosso Senhor fez essa voz, é o que penso, para as Suas boas obras”.
O dono da “voz de harpa” acabou com o grande prato de cozido e tomou o café quente. Os olhos que ergueu não pousaram logo nos pais: primeiro dirigiram-se para o “estafermo” do irmão Michael, que era baixo como o pai, dava a impressão de ser inteiramente marrom, desde o cabelo ralo e escasso e os grandes olhos castanhos até a pele e mãos. Mas era um marrom como o da folha de outono, coisa que Allan nunca vira. Era o marrom da terra paciente e fértil, de onde brotava toda a vida, e em que ela florescia. Suas feições eram mais para o redondo, sóbrias e pensativas. As mãos eram grandes, quadradas e quase duras, de queimaduras. Como a mãe, falava muito pouco. Tinha desejado ser padre, mas sua mente era lenta, vulgar demais e sem força nem ímpeto para agradar a quem ele consultara.
Allan tinha uma espécie de afeto desdenhoso pelos pais. Por Michael, o insignificante, o calado, o obediente e aparentemente sem ambições, só sentia repugnância e, estranhamente, por vezes um ódio violento e inominável. Para ele, Michael era o protótipo mudo e anônimo do trabalhador diligente, que se satisfazia com migalhas, respeitando os patrões, disposto a viver de uma ninharia contanto que isso lhe permitisse ler seus detestáveis livros religiosos, de noite, e rezar interminavelmente.
Depois que Allan acabou de comer, os pais olharam para ele, empolgados.
—    Hoje foi Mike quem nos deixou orgulhosos — disse Tim. — O nosso Mike. 0 bandido fez tudo às escondidas! Vai entrar para a ordem dos franciscanos. Vai fazer trabalho missionário, ajudando os bons padres nos campos estrangeiros.
—    Não! — riu-se Allan, recostando-se na cadeira. Michael não olhou para ele, mas estava corando. — E que diabo o Mike vai poder fazer, nesses “campos estrangeiros”?
Michael não levantou os olhos do livro, mas disse, com calma:
—    Posso fazer qualquer tipo de trabalho manual. Sei cozinhar e consertar. Sei cuidar de doentes; aprendi a tratar de feridos de emergência. Sei um pouco de
carpintaria. Sei cultivar uma horta. Sei fazer o que Deus me der para fazer.
A ideia de Michael de capuz e batina e um cordão em volta do corpo redondo fez Allan rir. Tim e a mulher ficaram insultados, mas Michael não fez caso do riso.
—    Os chinas pagãos! — exclamou Allan. — Ou talvez os leprosos, hem? Ou ver os negros dançando em volta das fogueiras no coração da África? Uma vida maravilhosa.
—    É — disse Michael — uma vida maravilhosa. — A voz dele, grave e sem sonoridade, despertou a ira inexplicável do irmão.
—    Você não pensou que seu salário vai fazer falta em casa, não é? — perguntou Allan.
Pela primeira vez Michael virou a cabeça, os olhos castanhos brilhando à luz do lampião. E, em silêncio, Allan retribuiu aquele olhar penetrante e estranho. Tim disse, zangado:
—    O salário! Deus toma conta de Seus filhos. Não vamos sentir falta do salário. Vamos ter é alegria com o nosso filho.
Allan levantou-se e deu de ombros.
—    Tudo muito bonito. Mas vamos sentir falta do salário, assim mesmo.
Ele estava aborrecido com Michael, que levava uma vida tão obscura, por vezes até esquecido pelos pais, e que nessa noite tinha adquirido importância. Ele bocejou, passou as mãos pelo cabelo. Tim e a mulher olhavam para ele, magoados e perplexos. Não entendiam o desprezo e a brutalidade.de Allan diante dessa boa notícia.
—    Acho que vou para a cama — disse Allan, bocejando de novo. — Estou cansado como o diabo e ainda tenho de estudar um pouco.
Tim fez um esforço para vencer sua irritação com o filho favorito.
—    E vai preparar aquele discurso no Union Hall, de terça-feira a uma semana. Claro. E esse discurso vai disparar foguetes!
Allan tocou no ombro do pai, displicente, e sorriu para ele.
—    Foguetes — prometeu. Ele tornou a beijar a mãe e saiu da sala.
Allan dormia num quarto pequeno e despojado, junto com o irmão. O quarto só tinha uma cama de casal, de ferro, uma mesa cheia de montes arrumados de livros de Direito e papéis, duas cadeiras de cozinha e uma única cômoda surrada. Um tosco crucifixo de madeira pendia acima da cama. Uma cortina de xadrez desbotada ocultava as poucas roupas dos irmãos. Allan acendeu um lampião: o quarto estava de um frio mortal, se bem que a sra. Marshall tivesse deixado aberta a porta que dava para a cozinha. Allan vestiu por cima do casaco um agasalho de lã que a mãe tricotara e sentouse à mesa. Apontou uns lápis, examinou a caneta e a tinta. Não havia sinal dos livros de Michael no quarto; ele os guardava num canto junto do fogão.
Allan olhou para o papel de parede verde e vermelho e refletiu. Depois, puxou para si uma folha de papel, mergulhou a pena na tinta e começou a escrever. A carta era endereçada a Rufus de Witt, nos escritórios de Portersville. Começava: “Senhor...” Allan parou, sorriu com ironia e depois sua pena correu pelo papel, com sua caligrafia miúda, compacta.
“Sinto ser meu dever informar-lhe que certa pessoa de alguma instrução —
um provocador — vai se dirigir à Confraria de Maquinistas de Ferrovias e outros trabalhadores no Union Hall, no dia 18 de dezembro. É um rapaz que há algum tempo vem encorajando a rebelião entre os seus funcionários. Eles passaram a confiar nele cegamente e a considerá-lo seu salvador. É uma pessoa perigosa, pois tem o dom da persuasão. Parece que o discurso dele nessa noite terá repercussões e poderá provocar mais uma greve desastrosa contra a sua companhia. Sugiro que tenha presente à reunião algum empregado seu de confiança, de inteligência e discernimento, para que ele possa lhe fazer um relato pleno e adequado.”
Allan releu o que tinha escrito e depois acrescentou: “Embora a Confraria no momento não tenha grande influência, em consequência das leis punitivas contra o trabalho nesta comunidade, a pessoa de quem falo incitará os homens a exigirem o que denominam de seus direitos. Também exigirá que todos os homens pertençam aos sindicatos. Vamos ter de novo os Molly Maguire?”
Ele assinou a carta: “Um Amigo Indignado”. Colocou a carta num envelope e fechou-o. Pôs a carta no bolso e tornou a sorrir. O primeiro passo rápido fora dado. Allan sentou-se, satisfeito, escutando o vento e a chuva e os ruídos dos pais se preparando para ir dormir. A porta abriu-se e Michael entrou. Allan franziu a testa para ele, o intruso, mas Michael sentou-se na cama barulhenta e fixou os olhos sobre o irmão, não com sua timidez e silêncio habituais, mas como se soubesse de tudo e estivesse severamente, embora tranquilamente, preparado para falar. O tom moreno de seu rosto estava um pouco mais pálido do que de costume; ele dobrou as mãos sobre os joelhos e Allan o visualizou vivamente de capuz e hábito. Um monge. Era só para isso que ele servia, carregando água e rachando lenha no meio de algum ermo infindável. Allan levantou o lábio superior.
—    Então? — perguntou, irritado. — O que é?
—    Há alguma coisa? — respondeu Michael, com brandura.
Allan mexeu-se e o envelope farfalhou em seu bolso.
—    Tenho de estudar — disse ele. — Você pode dormir, se quiser.
Michael sorriu, um sorriso lento e triste.
—    É o que faço, em geral, não é? — Mas ele não se mexeu e seus olhos continuavam fixos sobre o rosto moreno e impaciente do irmão. — Estive pensando no seu discurso, Allan. O pai diz que os homens estão todos falando disso com ele. Pobres coitados. Estão contando com você para lhes dar esperança e coragem e lhes dizer o que fazer.
—    Isso é muito encorajador — disse Allan. — Espero que vá muita gente.
Michael meneou a cabeça. As mãos paradas em seus joelhos não se mexeram.
—    E o nosso pai nos disse que o velho Dan Boyle está disposto a apoiá-lo, com todo o dinheiro que você quiser. Vai ser um grande dia para você, Allan. É uma coisa maravilhosa ter uma voz como a sua, a capacidade de usá-la e o conhecimento para inspirá-la. De certo modo, é uma coisa sagrada, um dom.
—    Obrigado — disse Allan.
—    Também pode ser uma coisa perigosa — acrescentou Michael, pensativo.
Allan levantou-se.
—    O que quer dizer? — perguntou.
—    Ora, nada — disse Michael, com muita brandura. — O que você achava que eu quero dizer, Allan?
—    Você está querendo dizer que não devo incitar os homens para agirem por si e exigirem justiça? Está querendo dizer que devo apenas acalmá-los e dizer que esperem por “dias melhores” em algum futuro vago? E lhes prometa um paraíso confortável, no final?
Michael deu um sorriso mais triste do que o anterior.
—    Você sabe que não quero dizer isso, Allan. Sei quando você está representando e agora está.
Espantado e imensamente alarmado, Allan viu o irmão tirar as roupas e vestir o camisolão. Todos os gestos de Michael eram lentos, prosaicos e propositados. Isso sempre aborrecera Allan, mas, nessa noite, deixou-o furioso.
—    Representando! — disse ele. — Que diabo você pensa que sabe sobre mim, afinal?
—    Muita coisa. E o que sei não me agrada — disse Michael. Ele se deitou na cama, resoluto, e virou o rosto para a parede. Allan observava-o: largo, calmo e imóvel. Nessa noite, não queria mais conversar com Michael. Ele adormeceu imediatamente.
Allan sentou-se à mesa e puxou um livro para junto de si. Seu rosto estava feroz e atento. Era impossível que aquele idiota insignificante soubesse de alguma coisa, a não ser que tivesse poderes sobrenaturais. Ele abriu seus livros de Direito e puxou as notas amarelas. As horas foram passando. A chuva batia gritando nas vidraças. A luz do lampião fraquejou, diminuiu, aumentou de novo. Michael roncava, como Tim e a mulher. Um trem passou uivando tristemente no escuro. No quarto só havia o ruído das páginas virando. Allan empurrou um livro para o lado, pegou outro. Aquela era uma pesquisa de toda noite, pertinaz, inclemente. Foi só quase às três que Allan encontrou o que vinha procurando havia muitos meses, desesperadamente. Aí ele quase deu um grito de prazer e bateu na página de leve, com o punho cerrado.
Dois anos antes, na cidadezinha de Flintsburg, um juiz velho e obscuro tinha dado um parecer no caso de The Grandon Smelting Company versus John Hillary. Ele morrera seis meses depois. Sua decisão, ainda válida, ainda constituindo um precedente, caíra logo no esquecimento juntando pó. Nenhum advogado, famoso ou sem importância, a descobrira em seu limbo, ou, se algum soubera dela, nunca a exumara. No entanto, estava ali naquela página, como uma chama concentrada.
John Hillary tinha tentado sindicalizar os trabalhadores da companhia. Convocara-os para uma reunião e os incitara. Fora preso, acusado de “perturbar a paz do povo no Estado da Pensilvânia". O pobre advogadozinho contratado pelo dinheirinho dos trabalhadores, aparentemente, não tinha competência alguma e provavelmente fora subornado. Mas o juiz Seldon Timothy declarara:
“É minha opinião que as leis punitivas promulgadas contra o trabalho neste Estado são inconstitucionais. Não há nada na Constituição que proíba a liberdade de pensamento e de reunião. Aliás, ela expressamente acentua esses direitos. As nossas leis punitivas são uma tentativa propositada de revogar a Constituição, pois a ninguém é proibido constituir uma fraternidade ou sociedade que não viole os preceitos da Constituição. Portanto, é minha opinião reiterada que, ao trazerem este homem à minha presença, foi cometida uma verdadeira violência contra a Constituição, pois ele foi preso injustamente, por uma acusação que procura violar a Constituição dos Estados Unidos da América. É minha opinião, ainda, que qualquer pessoa ou pessoas que procurarem, de algum modo, impedir a formação de um sindicato trabalhista ou sociedade fraternal será culpada de violar a Constituição, e deve ser processada. O caso está encerrado”.
Lá estava o precedente e Allan tornou a rir, exultante. A lei. A lei era uma prostituta.
Michael murmurou dormindo, aflito, e Allan virou-se para a cama, num gesto ligeiro. A luz do lampião tremeu, ficou mais forte e bateu na figura mal talhada no crucifixo, pendurado acima de Michael. Por um instante, aquilo brilhou como que tocado por um raio.
26
O trem de carga seguia, com gritos, gemidos e rangidos, pelos vales estreitos e em volta dos morros íngremes, descendo e subindoos. Por pura alegria, orgulho e uma sensação de poder, Tim Marshall puxou a corda e deixou que o apito do trem, uivando e ressoando, corresse pelas encostas das montanhas e se contorcesse pelos vales.
O apito não se limitava a pedir passagem ou fazer advertências. Allan, o filho, trabalhava de foguista para ele e, como sempre, estava irritado com aquele barulho irresponsável. Mas, como sempre, Allan disse consigo: “Todos os homens almejam o poder. As almas pequenas exprimem esse desejo com barulho inútil”.
O trem ruidoso passava por pequenas cidades industriais, enfumaçadas e fedendo a fumaça e produtos químicos. Allan estava junto do pai que, absorto, olhava feliz pela janela aberta de sua cabine. O rapaz olhou com desagrado para as cidadezinhas miseráveis agachadas sob o céu de dezembro. Um dia, pensou, o povo vai exigir a centralização das indústrias numa zona só, todas juntas, onde possam feder sozinhas, dando espaço umas às outras. E então, em volta delas, haverá uma zona aberta, como um círculo rodeando uma cidade acometida por uma peste, onde não se permitirá que more ninguém, onde só serão permitidos ramais de estradas de ferro. Longe da centralização industrial, as pessoas vão construir casas, livres para respirar ar sem poluição, cultivar jardins e levar uma vida sossegada. Haverá problema de transportes, mas isso será resolvido, se os homens se dedicarem a isso.
Tim Marshall sentia o filho, que estava descansando um pouco de tocar lenha na fornalha, ali de pé junto dele, olhando por cima de seu ombro. Ele virou a cabeça e sorriu para o rapaz suado e de cara preta. Era um bom rapaz, esse Allan. Um cavalheiro, como Mary sempre dissera. Nem mesmo a camisa imunda, as mangas enroladas até os cotovelos, a gola aberta, a fuligem e as calças remendadas não lhe tiravam o ar de nobreza. Mas os irlandeses são nobres mesmo, cogitou Tim, com orgulho. Filhos de reis. Ele começou a cantar: A harpa que um dia nos salões de Tara! Sua voz era um baixo ressonante e lhe agradava. Ele puxou as abas do boné mais para baixo, cobrindo as orelhas, pois o ar frio chegava a arder; o rosto estava vermelho do vento. Ele tornou a fazer o trem gritar. Então, quando os gemidos se extinguiram, gritou por cima do barulho de sua passagem:
—    Então, é para Scranton que você vai com essa sua patente. Boa sorte, meu filho. Sua mãe fez uma novena para você.
Allan gritou de volta:
—    E quando for vendida e estiver em produção, o senhor e a mãe vão morar numa mansão!
Tim riu alto. Não podia conceber nenhuma fortuna, em sua simplicidade. Então disse:
—    Os coitados, perdendo os dedos, e você vai fazer com que os salvem.
Ele estava feliz. Um trem era coisa querida e viva, para ele, um monstro uivante que atendia a sua vontade. O que mais um homem poderia querer, a não ser, talvez, um salário decente — não muito mas o suficiente para se contentar, beber uma caneca de cerveja numa noite de sábado e comida substancial na despensa? Um vestido novo para Mary, no Natal, e um pouco para a coleta de domingo na igreja. Tim suspirou, mas não muito insatisfeito. Ele tinha muita coisa com Mary e dois belos filhos. Ele tornou a gritar:
—    E lá se vai o Mike, depois das festas! E você vai casar.
Ele ouviu o raspar da pá. Franziu a testa, mas não foi só para apertar os olhos por causa das cinzas. Allan estava com vinte e sete anos. Um rapaz com essa idade já devia estar casado com uma garota boa e já devia haver netos. Uma menina de cachinhos pretos, sorridente. Tim tornou a puxar o apito: o vapor e fumaça jorraram da chaminé. O trem agora se lançava pelo campo aberto, antes de chegar a Scranton.
Allan parou para enxugar o suor negro do rosto, com mão também negra. Estava outra vez junto do pai. O céu de dezembro, distante e frio, assumira a cor de aço azulado, cheio de camadas de nuvens brancas esvoaçantes. Abaixo, os morros com um vago tom de água-marinha circundavam o valezinho onde se estendia um laguinho, parecendo prata gelada e pálida. As terras arfantes, mais próximas, tinham tomado um tom de bronze escuro, pontilhado, nas fendas, com veios de neve. Ao longo da linha havia fileiras de pinheiros cobertos de gelo brilhante, como cristais pálidos. Havia nessa cena algo selvagem, mas estático, desolado. Tim também estava vendo isso.
—    Não é como a nossa terra — disse ele. — Depois de vinte e sete anos, dá pouco consolo ao coração da gente.
Ele olhou para a frente. A sujeira de Scranton borrou o colorido do céu e Tim ficou aliviado.
Naquela manhã, Mary Marshall embrulhara com cuidado o terno de domingo de Allan, uma camisa limpa, uma gravata preta e suas melhores botinas. Allan jogara por cima do embrulho seu casaco de trabalho, para protegê-lo da fuligem e faíscas. Ia se lavar na estação, voltou a seu trabalho de foguista, no último trecho até Scranton. Tim estava cantando de novo.
0 vulto grande e escuro da Interstate Iron & Steel Company erguia-se como um dinossauro vomitando fogo e fumaça negra, no meio das casinhas desoladas, caindo aos pedaços, por vezes servindo a duas famílias empobrecidas, todas cobertas de fuligem, cada janela com uma camada escura, cada caminho de tijolo ou de madeira encardido, cada sacada coberta por um banho de cinzas.
As chaminés monstruosas rugiam e despejavam chamas contra o céu cor de chumbo que estava com uma umidade terrível, e um fedor pesado se misturava à fumaça. Ninguém levara em consideração a saúde ou bem-estar dos moradores da região, quando se construíra aquela usina estupenda, uns oito anos antes, uma subsidiária da poderosa Interstate Railroad Company. Se alguém tivesse sugerido que a companhia construísse além dos limites da cidade, a indignação teria sido manifestada: “Precisamos de um fornecimento de água constante e a Interstate Railroad Company deve ter livre acesso a seus pátios de carga".
“As necessidades imperiosas de nosso país, em grande expansão e, aliás, as necessidades do público vêm em primeiro lugar”, teria dito Rufus DeWitt. Ninguém sugerira que os moradores daquela região faziam parte “do país”, ou tinham algum relacionamento com o “público”. Mas o relacionamento existia; muitos dos homens que moravam nas vizinhanças imediatas daquele gigantesco vulcão trabalhavam dentro de seus muros ardentes. Tossiam e suavam em volta de suas fornalhas e poços e tossiam e tremiam de noite em suas casinhas miseráveis. 0 rio que corria perto da usina estava descorado, com tons de roxo, amarelo, azul e manchas avermelhadas; suas margens revelavam os esqueletos de árvores mortas, limo e resíduos químicos, de modo que nada de vivo podia crescer ali.
Os pátios em volta da usina estavam cheios de montes de escória e carvão de coque, feitos pelo homem. Fumegavam e cresciam diariamente. Três ramais da Interstate Railroad Company entravam pelos pátios e locomotivas, com seu clangor e chaminés vomitando fumaça, contribuíam para o barulho do local e a podridão do ar. Uma alta cerca de madeira, pontuda e quase invulnerável, rodeoava os pátios e a usina. Em cada uma das quatro entradas havia guardas armados, truculentos e proibitivos, em pequenas guaritas, só permitindo a entrada de visitantes cuidadosamente examinados ou trabalhadores credenciados. Recentemente houvera ameaças de “problemas trabalhistas”, de modo que os guardas tinham redobrado sua vigilância, com caras fechadas e ameaçadoras.
Allan Marshall aproximou-se de um dos portões, com o boné puxado sobre a testa e o velho sobretudo bem fechado sobre o terno domingueiro. Ele olhou por cima da cerca e viu as chaminés acesas e berrantes. Puxou a corda da campainha junto do portão e logo um guarda deslizou a portinhola de uma pequena abertura na madeira grossa, olhando para ele com raiva.
—    Não estamos precisando de braços! — gritou ele, com desdém, notando a pobreza e o estado humilde evidentes do rapaz lá fora. Ele logo fechou a abertura. Allan, displicente, tornou a tocar a campainha. A portinhola abriu-se e a cara do guarda, selvagem e inchada, apareceu.
—    Dê o fora daqui, se não quiser uma bala no seu couro! gritou.
Allan sorriu e estendeu um envelope para a cara, dizendo, com muita brandura:
—    Você vai ter de procurar outro emprego amanhã, Cérbero, se não ler isso e me deixar entrar imediatamente.
Os olhos do guarda, negros e ferozes, fitaram-no com raiva desumana. Dois dedos sujos apareceram ao lado da cara e o envelope foi arrancado da mão de Allan. A chuvinha fina e suja caía, peneirada, e à medida que o céu escurecia, as chaminés em fogo se avivavam. Allan agora só via o boné curvado do vigia; o homem estava, devagar e com dificuldade, lendo uma carta assinada por Thomas Angers, superintendente da Interstate Iron & Steel Company, dirigida a Allan Marshall, 3 Potters’ Road, Portersville, Pensilvânia. Aí o boné desapareceu, a portinhola foi batida violentamente, uma chave rangeu na fechadura e o pesado portão abriu-se com muito ranger.
Allan entrou, o portão foi fechado e trancado. O vigia examinou Allan com o ódio de todos os homens mesquinhos que foram humilhados.
—    Quem haveria de dizer? — escarneceu ele. — E com essas roupas, então!
—    Não são piores do que as suas, meu caro — respondeu Allan.
—    E o meu nome não é Cér... seja o que for que você falou! — disse o guarda, com mais raiva.
—    Mas lhe convém — disse Allan. — Qual o caminho para o escritório do sr. Angers?
Outro guarda, parecendo um gnomo, mas com um físico poderoso, apareceu à porta da guarita.
—    Vigie o portão. Vou levar esse belo senhor ao escritório — disse o primeiro guarda, escarnecendo. Ele fez um sinal para Allan e depois foi andando para a usina com as botinas pisando o cascalho e cinzas. Allan acompanhou-o, assobiando. O som forte e suave penetrou o clangor e o ronco que enchiam o ar pesado e encharcado. 0 tema fantástico, irlandês, parecia uma recordação nostálgica no purgatório, triste mas esperançoso. O guarda parou, virou a cabeça e a cara brutal mudou. — Irlandês, é? — resmungou. — Eu também. — Ele tornou a andar e olhou para trás. — Parece que não acredita. — Allan continuou a assobiar, como se estivesse sozinho numa vereda de sonho, verdejante, cheia de uma névoa fragrante. Pensa que gosto deste trabalho? — disse o guarda, truculento.
—    E por que não? — perguntou Allan. — Ganha a vida assim.
O guarda parou, como que tendo levado uma pancada, e ficou ali, furioso. Examinou Allan por algum tempo, apertando os olhos. Depois, suas feições pesadas ficaram sombrias.
—    Estou percebendo — disse e continuou a andar. — E será um favor se assobiar outra coisa.
Aquele percurso pareceu interminável a Allan. Os dois foram serpeando em volta dos montes fumegantes de escória, coque e carvão. Agora fiozinhos de água negra corriam entre a cimalha e pocinhas refletiam o vômito rubro das chaminés, de modo que formavam poças de fogo sobre a terra escura e rachada. A usina e os prédios subsidiários erguiam-se como montanhas jorrantes, ali de perto. Uma boa reprodução do inferno, pensou Allan. Ao lado, em algum lugar, as locomotivas berravam e as cargas vibravam em linhas invisíveis.
Agora estavam em paredes de tijolos molhadas, rodeando a usina. De repente estavam numa clareira, sem morros de escória, e o barulho insuportável tornou-se mais suportável. O assobio de Allan tornou-se mais forte e claro. O guarda estava apontando, calado, para a fachada de um prédio com porta de grades. Ele enfiou a carta do sr. Angers na mão de Allan. Depois de lançar um olhar demorado e amargo ao rapaz, virou-se e voltou, deixando Allan sozinho. Allan viu o vulto atarracado e sem graça recuar e sorriu. Foi para a porta de grades e tocou uma campainha. A porta abriu-se e um homem magro e pálido, evidentemente um escriturário, olhou para ele por baixo de uma viseira verde. Allan lhe entregou a carta.
Após alguns momentos, estavam num corredor sossegado iluminado com luz de gás e vazio, cheio de portas fechadas. Ali o ronco das usinas estava quase anulado. Allan acompanhou o empregado calado, dobrou um canto do corredor e passou a andar sobre um tapete vermelho. Esse novo corredor, mais curto, evidentemente era particular e agora Allan ouvia vozes abafadas, confiantes e cheias e uma vez ouviu um homem rindo, tranquilamente. No final do corredor havia outra porta que o funcionário abriu, curvando a cabeça obsequiosamente não para Allan, mas para os que estavam sentados ali dentro.
—    O sr. Marshall — murmurou.
Allan viu diante de si um escritório imenso, com a lareira acesa e paredes de lambris, em que estava pendurado um quadro excelente. Cortinas vermelhas tapavam a desolação além das janelas e um tapete oriental cobria o assoalho encerado. Um lustre reluzente, aceso, pendia do teto alto e brilhava sobre uma mobília de couro marrom e azul e uma escrivaninha larga, entalhada, no centro da sala. A essa escrivaninha sentava-se um homem esguio, de meia idade, e a seu lado, fumando um charuto muito bom, estava outro homem, pesadão, com roupa de casimira, rosto rosado e cabeleira grisalha com fios ruivos. Rufus DeWitt!, pensou Allan, e por um instante ficou surpreendido.
O homem esguio disse, com calma:
—    Entre, sr. Marshall.
Ele indicou uma poltrona diante de Rufus, com o gesto da mão branca e elegante. Enquanto Allan se dirigia para a poltrona, os olhos do sr. Angers, calmos e quase sem cor, o examinavam sem um interesse pessoal. Ele tinha o rosto mais parado que Allan jamais vira; parecia entalhado e moldado em marfim, sem um traço de personalidade, sem uma ruga, sem expressão. O cabelo estava penteado com precisão sobre a cabeça estreita e as orelhas exangues eram bem encostadas ao crânio. “Este”, pensou Allan, tirando o sobretudo com cuidado, “é o rosto mais impessoal que já vi na vida.”
Rufus DeWitt já era outro assunto, inteiramente diferente. Seu corpo grande e musculoso perdera os contornos heróicos e se abrandara numa massa de gordura mole. As coxas; na casimira preta, eram volumosas, apertadas na roupa; a barriga grande enfunava o colete de brocado marrom, sobre o qual se via uma brilhante corrente de relógio de ouro. Os ombros pareciam montículos; ele perdera o pescoço, de modo que sua cabeça grande e retangular repousava nos ombros, sem separação, mal se vendo a camisa-de linho branca e a gravata larga de cetim preto com um alfinete de brilhante. O rosto era polpudo e vermelho demais, sendo algumas das protuberâncias acentuadas por rugas arroxeadas e avermelhadas; o queixo pendia sobre a gravata, uma dobra inchada com um brilho oleoso. Os olhos castanhos se aninhavam em covas de gordura, cintilando como topázios. A boca era lisa e vermelha demais, dando um ar sensual ao rosto. Mas o sorriso era simpático e os dentes grandes e alvos reluziam entre os lábios do modo mais amigo possível. Brilhantes faiscavam nos dedos gorduchos, onde havia pêlos ruivos. Ele podia ter perdido o tom violento do cabelo, mas este continuava espesso, apesar de grisalho, e estava cuidadosamente penteado. Dele emanava vulgaridade, vitalidade animal e apetite ilimitado e nada exigente. O fato de estar ali nesse dia deixou Allan empolgado; a ocasião devia ser importante.
Rufus sorriu para o visitante modesto e jovem e estendeu sua mão enfeitada com um gesto de cordialidade democrática. Allan olhou bem para a mão, fez uma mesura rígida e sentou-se. Os dois cavalheiros então sentiram que estavam diante de um tipo de homem que certamente não esperavam e, pela primeira vez, os olhos gélidos do sr. Angers apertaram-se nas bordas e focalizaram Allan. Quanto a Rufus, tirou o charuto da boca e examinou Allan; em seu rosto apareceu uma expressão especial, algo parecido com um reconhecimento espantado.
0 sr. Angers falou, devagar e languidamente:
—    0 sr. DeWitt estava passando por Scranton hoje e parou. Interessou-se por sua patente.
Allan sorriu, ergueu as sobrancelhas castanhas e espessas, educadamente. Tornou a inclinar a cabeça em direção de Rufu, que já estava alerta, e esperou.
—    Fico contente que tenha pensado em nós — disse Rufus.
Sua voz, com os anos, adquirira uma untuosidade cheia. — Sempre ficamos gratos quando nossos empregados se lembram da companhia e demonstram sua lealdade.
—    A lealdade — disse Allan, com brandura — não tem nada a ver com isso. Não sou um de seus empregados efetivos, sr. DeWitt. Às vezes ajudo meu pai, que é maquinista da ferrovia, quando um dos foguistas fica doente. Sou apenas um empregado fortuito, se posso dizer assim. Eu — acrescentou Allan — não faço acoplamento, de modo algum.
Um olhar muito rápido foi trocado entre Rufus e Thomas Angers. Rufus então se instalou mais confortavelmente na poltrona.
—    Vim procurar a Interstate Iron & Steel Company por um motivo: acredito que estão mais preparados para fabricar o meu engate automático do que qualquer outra companhia.
Allan cruzou as pernas magras e sorriu para cada um, por sua vez.
—    Fico contente por ter pensado em nós primeiro — disse osr. Angers, com
ironia.
Allan não se achou insultado pelo tom do outro.
—    Creio que mais tarde ficará ainda mais satisfeito, sr. Angers. — Ele ficou pensativo. — Claro, não sou um sujeito paciente. Vim hoje para ter a sua decisão. Se decidirem não fabricar o meu engate automático, vou imediatamente procurar outras firmas. — Allan fez uma pausa. — Aliás, já procurei duas outras, que estão muito interessadas. Também receberam cópias de minha patente.
Rufus sorriu, afável.
—    O senhor é filho de um de nossos melhores e mais apreciados maquinistas, sr... Marshall. Já viajei muitas vezes com o Tim. Gostaria de pensar que o velho Tim o tenha influenciado, de algum modo.
—    Não influenciou — disse Allan, frio e conclusivo. — Ninguém me influencia. Os senhores sabem que estou estudando Direito no escritório do sr. Peale. O Direito é o meu primeiro objetivo, tornei-me uma autoridade em matéria de Direito Trabalhista. Mas não sou contrário a fazer uma fortuna enquanto — Allan parou, significativamente — estudo essas leis trabalhistas para saber o melhor modo de ajudar aos trabalhadores a cuja classe pertence meu pai.
Fez-se um silêncio na sala enquanto o fogo crepitava na lareira e a fumaça do charuto de Rufus se enroscava no ar. O sr. Angers começou a estudar os desenhos em sua mesa. Rufus ficou muito parado. “Jovem insolente, pobre e provavelmente faminto, cheio de arrogância e impertinência”, pensou. “Mas também é destemido e, de algum modo, constitui uma ameaça.”
Rufus então disse, amavelmente:
—    Nunca subestimo meus semelhantes. Não tenho dúvidas de que será um excelente advogado, rapaz. Leis trabalhistas? Isso me interessa muito.
—    Como empregador, claro que devia se interessar — disse Allan, com uma cortesia extrema. Tirou do bolso uma folha de papel e então olhou só para Rufus. — Tenho aqui uma decisão, tomada há apenas uns dois ou três anos, na cidadezinha de Flintsburg. Uma decisão obscura, mas pode ser... digamos..! potente, senhor? Custei muito a encontrá-la, mas por fim achei-a, se bem que
duvide que muitos advogados saibam dela. E, mesmo que alguns saibam, têm o cuidado de não desencavá-la.
O sr. Angers levantou a cabeça e olhou para Allan com uma afronta gélida. Mas Rufus meneou a cabeça e estendeu a mão para pegar o papel. Allan entregou-o. Rufus sorriu ao ler, mas as feições polpudas ficaram um tanto fixas, no final. Calado, ele então passou o papel a Angers, que o leu com cuidado. Então, uma mudança se operou no sr. Angers. Seu rosto esguio e elegante enrijeceu. Ele pôs o papel na mesa e o cobriu com a mão esguia, como que para escondêlo. Esperou que Rufus falasse.
Rufus olhou para o charuto, distraído, achando graça. Depois disse com indiferença:
—    O sr. Peale, o assistente do secretário de Estado, é um velho amigo meu.
—    É, eu sei — disse Allan, olhando bem para ele e sorrindo.
—    e o sr. Peale tem a reputação de se preocupar muito com os problemas da mão-de-obra... explorada. Aliás, ele foi eleito várias vezes para o Senado com essa plataforma. E o filho, sr. Patrick, acaba de se eleger senador com essa mesma plataforma. Com esta diferença: o sr. Patrick é sincero.
"Não estou enganado ”, pensou Rufus, continuando a sorrir, com uma tolerância afetuosa. “A ameaça não é só real, é sinistra.
E esse jovem tratante tem seu preço, se não me engano. Um preço muito
alto.”
Allan acrescentou:
—    Por enquanto, ainda não levei esta decisão ao conhecimento do sr. Patrick. É um rapaz muito sério e tem uma integridade extraordinária. Mas o senhor sabe disso muito bem, sr. DeWitt. Ele vai se casar com sua sobrinha, a srta. Laura DeWitt. Se o sr. Patrick soubesse dessa decisão... e já descobri que não sabe... ele a utilizaria a favor dos trabalhadores da Pensilvânia.
0 sr. Angers, friamente aborrecido e desdenhoso, perguntou:
—    Posso perguntar por que ainda não a enviou ao sr. Patrick? já que é tão importante?
Allan, porém, nem olhou para ele. Ficou sorrindo para Rufus, calado.
Rufus perguntou, num tom cheio e brando:
—    Pretende levá-la ao conhecimento do sr. Patrick?
Allan deu de ombros.
—    Ainda não resolvi.
Rufus riu, à vontade. Pegou o papel que estava sob a mão do sr. Angers e tornou a examiná-lo. Os lábios vermelhos se apertaram.
Então, muito devagar, ele rasgou o papel, os olhos castanhos e vivos sorrindo para Allan.
—    Creio que nos entendemos, meu filho — comentou.
O sr. Angers olhou de Rufus para Allan e depois de novo para Rufus e uma ruga apareceu entre suas sobrancelhas. Rufus continuou:
—    Sem dúvida, o sr. Peale e o jovem senador o têm em alta conta, sr. Marshall. E tenho certeza de que esse conceito se justifica. Um dia, breve talvez,
temos de conversar sobre tudo isso.
A despeito de seu controle, Allan estava tenso, em segredo esses eram homens de poder, fortuna e posição. Ele não era nada comparado com eles, a não ser por ter conhecimentos e ser inclemente. Estava preparado para a indulgência e condescendência sorridentes e, na pior das hipóteses, uma recusa total e superior. O fato de que Rufus o reconhecera pelo que era e não subestimara o perigo que ele representava, não só levou Allan a se descontrair, como aumentou o respeito que tinha pelo velho.
O sr. Angers falou, com displicência:
—    O sr. DeWitt emprega um corpo de advogados de muita experiência e competência. Mesmo que fosse apresentada essa decisãozinha de nada, eles saberiam lidar com ela eficientemente, levando o juiz eminente a criar um novo precedente.
—    Talvez — admitiu Allan. — Mas enquanto isso, a decisão existe. — Ele falou com impaciência para o outro. — E, antes de tudo, teria de haver um caso pertinente; teria de ser arguido à luz dessa primeira decisão, por mais obscura que fosse. O sr. DeWitt, já ouviu falar do velho Dan Boyle? Já foi maquinista de sua estrada. Perdeu dois filhos e um genro nas greves de 1877 em Portersville. Desde então fez uma fortuna com o carvão. É um homem muito amargurado. É meu padrinho e me ofereceu o que eu quisesse. Sugeriu que eu fosse estudar em Harvard. O motivo que me levou a recusar a ajuda dele, até hoje, não tem importância no momento. Se o sr. Boyle soubesse dessa decisão, ele contrataria os melhores advogados da Pensilvânia para levá-la ao conhecimento público. Ele não pouparia qualquer despesa. Nem esforços. Como já disse, é um homem muito amargo e quer ver sangue.
—    E você recusou a ajuda dele, e até hoje não levou essa decisão ao conhecimento dele, por seus motivos particulares? — perguntou Rufus, com mais afeto do que nunca. — Posso perguntar por que, levando em conta que ele é seu padrinho, e você se intercessa tanto pelo trabalho? Posso sugerir que, se não se aproveitou de tudo isso, foi por ter em vista outro objetivo?
—    Sua sugestão é correta — respondeu Allan.
Rufus meneou a cabeça.
—    Eu já sabia, claro. Se demonstro curiosidade em tudo isso, deve me perdoar, sr. Marshall, creio que o senhor vai muito longe. — Ele sorriu, satisfeito. Então, resmungando um pouco, puxou do bolso um folheto barato, mal impresso em papel amarelado. — É o Aloysius Marshall citado aqui, suponho.
Allan inclinou a cabeça. O sr. Angers, com um olhar desdenhoso e desconfiado ao rapaz, pegou o panfleto, que dizia: “Grande Assembléia da Confraria dos Maquinistas Ferroviários! Todos bem-vindos! 18 de dezembro de 1885! Union Hall, Portersville! Às dezenove horas! Não deixem de vir ouvir o nosso grande orador, Aloysius Marshall. Trabalhador e amigo dos trabalhadores, filho do nosso irmão, Timothy Marshall! Ele fará um discurso. Erguei-vos, filhos do trabalho! Venham, venham todos!”
O sr. Angers jogou longe o panfleto, com um gesto de horror. Com cuidado, limpou os dedos delicados num belo lenço branco. Os ossos apareciam em seu rosto descarnado, enquanto ele olhava para Allan, com nojo.
—    Um agitador das massas — disse ele e acrescentou, mais depressa: — Rapaz, em toda justiça, devo lhe avisar que se o seu... discurso... for provocador
e perturbar a ordem pública, será sumariamente preso.
— Nesse caso, Dan Boyle convocará às pressas um monte de advogados muito bem pagos para me assistirem. Aí eu lhes apresento a decisão do caso de John Hillary. — Allan falava com calma, sem qualquer indício de consternação ou temor.
Rufus levantou a mão gorducha, numa advertência amistosa aos dois outros. Mas falou com o sr. Angers:
—    Thomas, não tenho receio algum de que o sr. Marshall faça alguma grave provocação no meio do povo. Estou certo, sr. Marshall?
—    Está certo, sim, senhor — disse Allan, educadamente. —
Pelo menos por enquanto.
Pela primeira vez, o sr. Angers esqueceu-se de seu desprezo por aquele intruso estranho e faminto, aquele intrometido desgraçado.
—    Creio que estou começando a perceber — murmurou e então chegou a sorrir, um sorriso frio e de compreensão. Ele olhou para Allan com respeito relutante e surpresa. Depois refez-se. — O senhor tem um leve... sotaque... sr. Marshall. É irlandês?
—    Sou americano — respondeu Allan.
Rufus recostou-se na poltrona, emanando atmosfera de imensa satisfação e fraternidade.
—    Vamos agora tratar do assunto da patente? Foi o propósito de Allan ao vir aqui, não foi? Muito propício que eu tenha parado aqui a caminho de casa. — Ele lançou a Allan um sorriso benévolo e paternal e bateu nas folhas de desenhos sobre a mesa do sr. Angers. Duas horas antes ele dissera ao sr. Angers: “Este é o conceito de engate automático mais notável que já vi; é raro e valioso. O homem que o inventou é um gênio; trabalhou como acoplador na nossa estrada e hoje é foguista. Mas, gênio ou não, provavelmente é um ignorantão burro e trabalhador, no que diz respeito aos negócios, como toda a sua maldita classe. Não sei quem fez esses desenhos para ele, mas trata-se de um desenhista exímio. Vamos oferecer mil dólares a esse Marshall pela patente e mais quinhentos para o desenhista”. Rufus tinha rido, satisfeito. “Um homem que ganha dois dólares por dia, ou menos, há de considerar mil dólares uma fortuna. Podemos resolver o caso dele em cinco minutos.”
Agora, ele disse a Allan:
—    Posso saber quem fez esses desenhos excelentes?
—    Fui eu — disse Allan.
Nem mesmo Rufus conseguiu disfarçar seu espanto.
—    Você! E onde foi que aprendeu mecânica e habilidade?
—    Dan Boyle — disse Allan, sorrindo e olhando para os olhos de Rufus — financiou meus estudos de desenho em Scranton, nos escritórios de Boyd, Lynch & Company, durante quatro verões, em mais de cinco anos. Dan, meu padrinho, perdeu quatro dedos quando era empregado como acoplador em sua companhia, há muitos anos. Quando contei a ele que queria inventar um engate automático, ele se mostrou muito entusiasmado.
—    Sei — disse Rufus, pensativo. Ele franziu as sobrancelhas, tornando a examinar os desenhos. — Sabe que estamos usando o engate Janney e o freio
hidráulico Westinghouse. Achamos o engate muito satisfatório, se bem que não o empreguemos em todos os trens de carga.
—    Mas os trens estão ficando mais pesados — disse Allan. —
O engate Janney não serve. Minha patente é para quase todos os pesos, como mostrei aqui. — Ele apontou para um terceiro gráfico. — Aliás, Janney se interessa pelo meu engate. Note que o meu invento consiste em levantar o prato no eixo do gancho, prender a cantoneira do engate e aliviar o pino do gancho de tensão lateral. Isso permite uma redução do sistema de alavanca do gancho, passando mais para a frente o ponto de apoio.
“Para seus engates, foi preciso mudar de ferro maleável para o aço. Mas vocês verificaram que era preciso mais força e esse tem sido o seu problema. Minha invenção resolveu esse problema. O pino do gancho é solto e removível quando o gancho fica sob pressão. Os homens continuam a morrer ou ficar feridos com o engate Janney, apesar de ser um grande aperfeiçoamento.”
“À medida que as cargas foram se tornando mais pesadas, o seu engate, em sua forma atual, se tornará cada vez menos confiável. Engata pelo impacto e o gancho se destranca sem os homens terem de se meter entre os vagões, mas o balanço do engate para a posição aberta ainda tem de ser feito manualmente.”
Embora o sr. Angers e Rufus tivessem estudado os gráficos por mais de duas horas, antes do comparecimento de Allan, conservaram suas expressões sérias e duvidosas. Vendo isso, Allan sorriu interiormente, de um modo desagradável. Disse então:
—    Conversei com o sr. Patrick Peale sobre a minha invenção, depois da eleição dele. Ele me disse que ia trabalhar, em Washington, por uma lei tornando compulsório o engate automático. Não está nada satisfeito com o engate Janney, como é hoje. Depois que lhe expliquei como era o meu engate, ele disse que ia levá-lo ao conhecimento da Associação de Mestres Construtores de Vagões. Quando lhe informei que alguma companhia assumiría sua construção, ele disse que qualquer estrada de ferro que adotasse o meu engate seria aclamada por ele e seus colegas como benfeitora da humanidade.
—    0 sr. Patrick é uma pessoa muito humanitária — murmurou Rufus, ainda examinando os desenhos.
—    E vai se casar com sua sobrinha, senhor, que possui muitas ações da Interstate Railroad Company.
Rufus olhou depressa para Allan, mas o rosto moreno do rapaz estava muito sério. Rufus deu uma boa risada.
—    O sr. Patrick não se preocupa com estradas de ferro, Allan.
Vai trabalhar em advocacia nos escritórios do pai, quando não estiver em Washington.
Allan inclinou a cabeça. Rufus ficou inquieto. Pessoalmente, detestava o jovem senador Peale e seu alívio fora grande quando ficara evidente que o senador preferia Laura a Cornélia. Não queria mais nenhum “Stephen sombrio” na família. Um homem desses, político e advogado, casado com a sobrinha, não o perturbaria. Mas um homem desses, interessado na companhia, era perigoso. Rufus repetiu:
—    Vai trabalhar em advocacia nos escritórios do pai, quando não estiver em Washington. Não pode ter um interesse real na nossa estrada, a não ser, talvez,
pelos dividendos das ações! — Ele tornou a dar uma risada, mas Allan continuava sério.
—    Quando se tratar de um assunto de vida e membros humanos, creio que os dividendos assumirão um lugar secundário com o senador Peale, senhor. É um idealista.
Allan olhou bem de frente para Rufus e os olhos deste, fortes e negros, mostraram seu desprezo.
“Esse jovem patife usaria qualquer coisa, ou qualquer pessoa, para atingir seus objetivos”, pensou Rufus, com um misto de raiva, nervosismo e admiração. “Domina com sutileza a arte da chantagem."
Rufus lançou ao rapaz seu sorriso mais magnético e afetuoso e piscou de
leve.
—    Estou vendo, meu caro, que você não tem os idealistas em muito boa
conta.
—    Pelo contrário, senhor, eles são muito valiosos. Para homens como eu.
—    Para os seus propósitos?
Mas Allan apenas sorriu, em resposta.
Rufus virou-se e trocou um longo olhar com o sr. Angers. Allan examinou esse olhar e ficou satisfeito, mas alerta. Quando o silêncio se tornou propositadamente opressivo entre os dois outros, Allan disse, com calma:
—    Imagino que queiram mais tempo para pensar no meu engate. Digamos... dois dias?
—    Impossível — disse o sr. Angers, com frieza. — Não podemos ter certeza de que sua invenção seja praticável. Teremos de consultar...
Allan deu de ombros.
—    Sr. Angers, o senhor já teve bastante tempo para consultar como diz. Estou disposto a estender o prazo por mais quarenta e oito horas, em consideração pela Interstate Railroad Company. Mas, enquanto isso, pretendo escrever às duas outras companhias interessadas na patente, notificando-as de uma breve decisão de minha parte, num futuro próximo.
Rufus estava recostado na poltrona, as mãos gordas dobradas sobre a barriga, os dedos se remexendo depressa. Ele examinou Allan com grande intensidade. O patife podia ser chantagista, mas não blefava. Quando entrasse numa luta, não entraria mal armado. Teria certeza de cada passo que desse, cada arma que usasse. Sendo ele próprio um chantagista consumado, Rufus reconhecia um artista melhor ainda. Rufus tomou uma decisão rápida. Mudou sua expressão para uma de um carinho confidencial.
—    Não lhe posso dizer, Allan, como apreciamos sua consideração pela Interstate Iron & Steel Company. Gostaria de sentir... e por favor, não me desiluda... que o seu gesto foi inspirado por lealdade para conosco. Suponhamos, então, que façamos uma opção sobre a sua patente, por seis meses, dando-lhe, nesta data, um cheque da companhia, de dois mil dólares?
Allan olhou com raiva. Depois, sacudiu a cabeça, devagar.
—    A opção, se quiserem, só pode ser por duas semanas. Tenho certeza de que alguém nesta companhia já examinou outras patentes.
Ele ficou olhando bem para Rufus.
Rufus fingiu não notar esse olhar implacável. Bateu com a mão na mesa, com força, e sorriu tanto que quase todos os seus dentes apareceram à luz forte do lustre.
—    Devo reconhecer que você é um sujeito difícil de se lidar. Bom, então, duas semanas. Enquanto isso, vamos considerar os termos a respeito dos royalties e o consultaremos. — Ele fez um gesto para o sr. Angers, sem desviar os olhos sorridentes de cima de Allan. — Thomas, pode fazer o cheque e os documentos da opção para este rapaz, já.
—    Mas devo lhe informar, sr. DeWitt, que os royalties terão de ser adequados. — Allan tirou um papel do bolso. Aqui está a proposta de Janney.
Ele entregou o papel a Rufus, que olhou para ele. Rufus ficou horrorizado.
—    Mas isso é um absurdo! — exclamou, sinceramente escandalizado.
Allan levantou-se.
—    Eu podia lhe pedir mais, sr. DeWitt. Mas só estou pedindo o que Janney ofereceu. Acho isso extraordinariamente justo, levando em conta que Janney não me ofereceu apenas uma opção.
Os dois mais velhos olharam para ele, indignados, mas Allan sorriu.
—    Imagino que sua pergunta, não formulada, seja por que não aceitei o oferecimento de Janney e por que me dei ao trabalho de procurá-los. A resposta é minha e não pretendo contar aos senhores.
Só quero dizer que não pretendo viver de royalties. Essas serão apenas uma fonte de minha fortuna. Meu negócio é a advocacia, legislação trabalhista.
Somente Rufus entendeu.
—    Sei — murmurou. — Como já disse, Allan, precisamos ter uma conversa, muito demorada, confidencial e íntima.
Rufus novamente fingiu ser amável.
Quando Allan saiu, com o cheque e os documentos da opção no bolso, Rufus disse ao sr. Angers:
—    Thomas, esse é o demônio mais perigoso, mais admirável e mais precioso que já encontrei. Tenho o maior respeito por ele.
E é por isso que, talvez num futuro não muito longínquo, ele se juntará a
nós.
Allan correu pela noite escura, a chuva lhe escorrendo pelo rosto. Estava quente, exultante e triunfante. Chegou aos pátios e subiu no carro de serviço. Sentia o coração batendo fortemente e não era de cansaço. Tinha vencido sua primeira batalha. Vencería sempre, até o fim da vida.
27
O belo faetonte parou no pátio de cascalho da casa de Jim Purcell e um rapaz de seus trinta e poucos anos saltou, quando se abriu a porta branca e reluzente da mansão. O rapaz se lembrava dessa casa, de sua infância. Era grande, mas desarrumada, cheia de mofo e bolor, maltratada e “uma vergonha para a vizinhança”, conforme protestavam os vizinhos, aborrecidos. Mas a sra. Purcell, antes sra. Rufus DeWitt, modificara esse quadro, de maneira agradável. A casa podia continuar a ser feia exteriormente, exprimindo uma péssima arquitetura.
No entanto, o que antes eram tijolos amarelos e frios tinha adquirido uma suave pátina dourada, brilhando através de muita hera que, felizmente, disfarçava suas linhas rudes. Jim Purcell, “o sovina”, permitira à mulher fazer o que quisesse, até mesmo se desfazer de seus móveis horrorosos. Ele se orgulhava do bom gosto dela, embora resmungasse dizendo que não o entendia. Mas, secretamente, aquilo lhe dava prazer.
Houvera muitos mexericos escandalizados, quando Lydia discretamente se divorciara de Rufus e depois se casara com Jim Purcell. Os escândalos não chegaram aos ouvidos de Purcell, os mexeriqueiros tiveram cuidado nisso. Ele era um homem perigoso e nunca se esquecia de um insulto. E com os anos se tornara mais perigoso e poderoso. Quando a sra. Purcell dava festas, a elite de Portersville comparecia em massa à casa. Notou-se que ela estava menos esquiva, depois de seu segundo casamento. Demonstrava mais simpatia e bondade e seus comentários não eram tão enigmáticos e misteriosos. Se era ainda reservada, em grande parte essa reserva se derretia se houvesse alguma referência sincera a sua filhinha Ruth que tivera paralisia na primeira infância e que ainda mancava, patética mas animadamente. Ruth estava com sete anos. Lydia e Jim não tinham tido mais filhos.
Quando o rapaz subiu a escada baixa e molhada, dirigindo-se para a porta, pela primeira vez perturbando-se nessa noite, tomou conhecimento do brilho da lua branca de dezembro e da voz do tio. Outro som o impressionou ao entrar no hall branco e castanho: Laura DeWitt, na sala de música que Lydia mobiliara e decorara com tanto gosto, estava tocando Debussy. As notas luminosas pareciam cintilar no ar, tremendo, radiosas, ao mesmo tempo pensativas e extra terrenas. O rapaz se esqueceu do empregado que esperava junto da porta aberta. Ficou ali escutando, um dos pés no degrau de cima, a cabeça virada, olhando para as árvores negras e despidas nos gramados e para o rio esbranquiçado correndo sob o luar.
0 rapaz, perturbado como estava, desejou poder ficar ali, num silêncio solitário, por mais um pouco, deixando as notas caírem, enquanto deixava que a noite o consolasse e acalmasse. Mas o empregado, por mais pacientemente que esperasse, continuava esperando e fazia frio.
—    Boa noite, senador — disse o velho, sorrindo ao visitante com um prazer sincero.
—    Boa noite, Gratz — respondeu o outro, entregando seu chapéu-coco, a echarpe branca, o sobretudo bem talhado e a bengala.
—    A família está na sala de música — disse Gratz, e Patrick Peale fez um gesto com a cabeça e seguiu pelo hall, que ia da porta da frente até os fundos; entrou na sala de música por um arco largo.
Dois lustres de gás, bem iluminados, pendiam como estalactites do teto oval, branco e entalhado, brilhando sobre móveis brancos de cor de marfim e dourados. Num estrado elevado ficava o piano de Laura, branco e dourado, dando para a arcada.
Jim Purcell estava sentado bem à vontade num sofá de veludo dourado, com a filhinha agarrada a ele. Lydia sentava-se junto da imensa lareira de mármore branco, trabalhando em petit point. Laura foi quem avistou Patrick primeiro e sorriu para ele, tranquila, enquanto seus dedos traçavam os últimos compassos da música nas teclas. Por enquanto ninguém, exceto Laura, notara o rapaz esguio no portal em arco, um rapaz sério, com olhos castanhos inflexíveis, cabelo castanho-claro ondeado e corpulento. E, embora tomasse conhecimento dos outros presentes na sala, na verdade ele só viu Laura, uma moça magra e graciosa, com um vestido de veludo azul que lhe acentuava o corpo e mostrava os ombros claros e estreitos. O cabelo escuro, fino e sedoso, parecia uma nuvem em volta do rosto quase sem cor. Mas os olhos grandes, cinzentos e radiosos davam uma beleza excepcional às feições miúdas, que, sem eles, seriam insignificantes e indefinidas para serem belas.
Patrick sabia que Cornélia DeWitt o desejara, mas essa ideia, em vez de lisonjeá-lo, lhe fora desagradável e quase humilhante. No entanto, como ela o amara, ele sentia quase compaixão por ela e se livrara da situação com tanto tato e habilidade, por um período tão prolongado, que deixara o orgulho dela intacto.
Lydia Purcell levantou os olhos quando Laura acabou sua música e sorriu para Patrick, amavelmente. Seu cabelo preto ia até a altura dos braços e havia rugas em seu rosto, mas o corpo, em veludo verde-escuro, era tão gracioso quanto o de Laura. Seus olhos escuros encontravam os dele, luminosos, e Jim Purcell virou a cabeça grande e o cumprimentou, sem falar. A filhinha estava dormindo, aninhada em seu braço grande, os cachos dourados na manga dele.
O cabelo dele era uma massa grisalha e descabelada na cabeça grande e redonda. Os anos tinham tornado suas feições grosseiras mais repelentes do que nunca, endurecendo-as como pedra.
Laura levantou-se do piano, desceu do estrado e deu a mão a Patrick. Levou-o para a sala e ele se sentou diante de Lydia, tendo Laura a seu lado. Eles começaram a falar em voz baixa, por causa da menina adormecida, que, pensou Patrick, já devia estar na cama. Já passava bem das vinte e duas horas e Ruth era franzina. Mas Purcell achava difícil se separar da filha. Em algum lugar da casa havia um retrato da jovem Alice Fielding. Patrick muitas vezes dizia que Ruth era muito parecida com a tia falecida e isso agradava Lydia.
Jim Purcell notou que Patrick estava anormalmente sério. Assim, murmurou, com sua voz rouca:
—    Então, como foi aquela palestra do jovem Marshall hoje?
Patrick franziu a testa.
—    Houve algo de estranho nela. Não consegui precisar o que era, mas havia. Como sempre, foi eloquente... ele tem uma voz extraordinária e sabe usá-la à vontade. E estava cheia de ameaças.
Purcell sorriu, aborrecido.
—    Os discursos dele em geral são assim.
Patrick sacudiu a cabeça, perplexo.
—    É. E esse discurso não foi menos ameaçador do que os outros. “Os patrões.” “Os exploradores do trabalho.” “Os opressores do povo.” “Os espoliadores dos trabalhadores.” “A servidão das massas.” “A paciência muda dos labutadores.” As coisas de sempre. Os homens escutaram de boca e olhos abertos e mal pareciam respirar. Quando ele terminou, ficaram histéricos, rodearam-no, abraçaram-no e muitos choraram. Foi muito comovente. Não obstante, fiquei inquieto. Havia alguma coisa errada.
Purcell sorriu de novo e o sorriso era mais tenebroso, embora indulgente.
—    Olhe aqui, Pat, não fique enigmático. Vamos ver os fatos e não a imaginação. De que diabo se trata?
—    Não sei — disse o jovem senador, devagar. — Mas notei uma coisa. Duncan Baynes... sabe, o superintendente local do sr. Rufus... estava lá, escutando todas as palavras. Ficou bem nos fundos e tentou esconder o rosto com as mãos.
—    O que é que tem, ele estar lá? Vamos ter problemas com a mão-de-obra, é o que todos achamos. Talvez o Rufe Ruivo o tenha mandado para ter uma ideia do pulso dos homens.
—    Pode ser — concordou Patrick, pensativo. — Mas não estou satisfeito. Por que ele havia de mandar o Duncan Baynes, que é importante demais para ser espião? Baynes é um homem muito inclemente e esperto...
—    Talvez fosse preciso um homem assim, para esse trabalho de hoje. Acho que você está ficando muito nervoso, Pat. Procurando um bicho-papão. É esse o único “fato” que tem a apresenar?
Patrick remexeu-se na poltrona, inquieto.
—    Foi só a qualidade do discurso. Senti que Marshall estava exibindo o poder dele. Senti que as ameaças tinham endereço certo. Era como se ele estivesse avisando alguém, em especial, e demonstrando o que poderia fazer. Hoje ele se exibiu especialmente e acho que tinha um propósito. — Ele procurou sorrir para Purcell, que estava de cara fechada, com ar de desdém. — É esse propósito que me preocupa.
Purcell estalou os dedos.
—    Já lhe disse, não trato com coisas intangíveis. Se Marshall estava ameaçando, ou se mostrando, ou advertindo alguém, era pelos homens. Olhe, e já lhe disse isso uma dúzia de vezes, não gosto de Marshall. É um desordeiro e detesto desordeiros. Não vou dizer que os homens estão ganhando um salário bom, nem que não votaria para lhes dar mais dinheiro, mas não gosto de Marshall. E acho que está trabalhando para si. — Ele fez um gesto incisivo para Patrick. — E o que há de mais em um cara usar outros caras? Se utilizá-los e conseguir alguma coisa para eles, como um subproduto do que consegue para si, quem vai ficar indignado e inflamado? Patrick corou. Enfrentou o sorriso de escárnio de Purcell com raiva.
Allan me convenceu, há mais de quatro anos, que estava dedicado a ajudar seus colegas de trabalho. Acredito que alguns homens se dedicam sinceramente à causa de outros. — Ele hesitou e depois acrescentou: — Eu me dedico. Acredito que sim.
—    Isso é porque você pode se dar a esse luxo — disse Purcell.
—    Qual o luxo a que o jovem Marshall pode se dar? É verdade que ele vendeu o engate automático à Interstate Iron & Steel Company e provavelmente vai fazer uma fortuna em royalties. Mas até agora, só ganhou cinco mil dólares. Talvez esse engate lhe dê muito dinheiro, nos próximos anos. É, talvez. Enquanto isso, ele estuda Direito nos escritórios de seu pai e, pelo que ouvi dizer, vai dar um bom advogado. Bom. Vai ganhar uma fortuna e vai ser advogado trabalhista. — Ele esfregou o queixo grande, barbado, com pêlos pretos e brancos, misturados. — Se Rufe está preocupado com ele, tem seus motivos.
Patrick ficou calado um pouco e depois disse:
—    Hoje me convencí, e reconheço que posso estar enganado, de que Allan não se interessa e nunca se interessou pela sorte da classe dele. Portanto, não creio que o sr. Rufus precise temê-lo. Acho que outros é que deveríam ter medo.
Purcell riu com escárnio, mas com cuidado, para não acordar a pequenina
Ruth.
—    E quem é que estava todo entusiasmado com aquele fedelho, no princípio? Você, Pat. E, voltando ao concreto, o que é que você tem contra ele conseguir ser alguma coisa? Quer que os outros carreguem o fardo por você, enquanto mora na sua bela casa e vai a Washington com fanfarras? Vamos, não me olhe tão zangado. Não estou escarnecendo de você. Estou apenas lembrando que se Marssall não quer ser mártir dos outros, ninguém pode culpá-lo.
—    Não me oponho a um homem querer “ser alguma coisa”, como o senhor diz, sr. Purcell — retrucou Patrick, com frieza. — Mas o que peço é que ele não seja hipócrita nem mentiroso. Insisto para que ele não se aproveite dos outros, que confiam nele, e que são indefesos, para conseguir os seus próprios objetivos.
Purcell deu uma risada.
—    Belos sentimentos. Mas só os ricos podem se dar a esse luxo. — Ele tornou a sacudir o dedo na cara de Patrick. — Não que eu goste de hipócritas. Se o homem é um canalha, e se, só pensa em si, que seja franco. Parece que você está preocupado porque se convenceu de que Marshall é um mentiroso hipócrita e um canalha, ainda por cima. Expulse-o do seu escritório, se não confia mais nele.
Patrick se levantou e começou a andar de um lado para outro, devagar, inquieto.
—    De que adiantaria se eu agisse por um impulso e o expul sasse? Ele agora tem dinheiro e vai ter mais. E pode financiar seus estudos de Direito. Não, acho que é melhor conservá-lo sob a minha vigilância. — Ele parou diante de Purcell e seu rosto, normalmente composto, estava perturbado. — Acho que ele está se preparando para trair os homens.
Purcell deu de ombros.
—    Pode ser. Mas isso é uma ideia sua. Quanto a mim, prefiro que ele esteja do nosso lado do que do outro. Você sempre soube disso; eu nunca o enganei.
—    Mas o senhor não é mentiroso, nem hipócrita — disse Patrick. — Ele deu uma risada, meio incomodado. — Pelo menos, o senhor é neutro. Não advogaria a causa dos trabalhadores, mas pelo menos não lutaria contra ela.
Purcell resmungou mas não respondeu. Patrick sentou-se de novo.
—    Vou me casar com Laura em junho. O meu negócio é a política e as leis. Nunca me interessei pelos negócios ferroviários, a não ser pelo problema trabalhista. Mas agora quero informações. A Interstate Railroad Company hoje é tão rica quanto a New York Central, mas não sei qual a sua extensão.
—    Ah! — disse Purcell e sorriu. — Bom, isso é fácil. Há cinco anos ela absorveu a Capital Railroad Company, aqui na Pensilvânia, e depois a Chicago Railroad System. Ela hoje vai até Nova Iorque. Também absorveu a Baynes Locais, quando o velho Joe Baynes faliu, após a morte de Steve. Tem a concessão de uma linha para St. Louis, de Chicago. Um negócio grande. O Rufe é responsável por tudo isso. Temos muita sorte em tê-lo conosco. Acho que sei o que você está pensando, meu caro. Steve, bem antes de morrer, empenhou vinte e cinco por cento de seus cinquenta e um por cento na companhia ao velho Jay Regan. Precisava do dinheiro para uma porção de empreendimentos idiotas, para os seus preciosos trabalhadores e outros. Depois que Steve morreu, o Gunther comprou as ações de Jay Regan, mas combinou com Rufe que votaria com suas ações para aprovar a eleição de Rufe para presidente da estrada e que revendería as ações, cinco por cento delas, a um preço de mercado, todos os anos, até Rufe ter recuperado todos os vinte e cinco por cento, desde que em nenhuma ocasião Gunther sofresse algum prejuízo no seu investimento inicial. Portanto, Rufe hoje tem cinquenta e um por cento.
Ele sorriu para Patrick, com expressão perversa.
—    Você não gosta do nosso Rufe. Mas vou lhe dizer: eu o respeito. Ele nos fez uma fortuna. Transformou a ferrovia no que ela é, Steve a teria mantido boa e conservadora e talvez a tivesse levado à falência. Pode ser que você prefira a falência à desonra, mas seria um rapazinho solitário neste mundo. E quanto mais cedo aprender isso, melhor. Você vai ter de lidar cada vez mais com o mundo, como ele é, especialmente agora que está metido na política. E a política fede demais. Você sabe que a Laura tem dezesseis por cento de ações em nome dela. 0 Steve tinha vinte e seis por cento antes de morrer, mas estava atolado em dívidas estupendas. Foi preciso, no inventário, venderem dez por cento das ações para liquidar essas dídidas idiotas e Rufe, que era um dos inventariantes, vendeu esses dez por cento a Jay Regan, com a condição de que os revendesse a Rufe mediante pagamento, juros, o capital e um bônus. Foi assim que ele conseguiu os cinquenta e um por cento dele.
Purcell levantou a filha adormecida no colo e a ninou, olhando pensativo para a cabecinha dourada em seu ombro. Acrescentou, resmungando:
—    Você se pergunta por que Gunther e Jay Regan fizeram tudo isso por nosso Rufe. Posso lhe dizer. Gostam dele. Você não pensaria que homens como Regan e Gunther se renderíam ao encanto, não é? Eles amam nosso Rufe Ruivo. Até mesmo assassinos como aqueles dois tubarões se enternecem com Rufe. Por ele, fazem coisas que não fariam nem pelos próprios irmãos. E sabem que ele é eficiente como o diabo. Pódem rir do que você chama de virtude, mas nunca riem da capacidade, nem mesmo num concorrente. —Jim apertou os olhos e olhou para Patrick, com ironia. — Você não é propriamente pobre, meu filho. Mas Laura também não é uma Gata Borralheira. Graças ao Rufe, ela é uma moça bem rica. Você devia ser agradecido.
Patrick se levantou de novo, duro, rijo.
—    Obrigado — disse ele. Purcell sorriu um pouco diante do tom do rapaz, mas esperou. — Estou pensando nos dezesseis por cento de Laura, sr. Purcell. A sra. Purcell e o sr. Rufus são os tutores dela. 0 sr. Stephen estipulou que quando ela se casasse, o marido seria seu tutor.
—    E então? — disse Purcell, levantando-se com cuidado.
—    Quero entrar para a companhia ferroviária — disse Patrick com uma franqueza firme. — Com esses dezesseis por cento.
Lydia e Laura olharam para ele, num espanto mudo.
—    Humm — fez Purcell. — É bom pegar seus livros de Direito e começar a estudar o assunto.
—    0 senhor não se oporia a mim, como diretor?
Purcell virou a cabeça grande, como uma pedra, contemplou o rapaz, e fechou a cara. Depois de alguns momentos, resmungou:
—    Será que eu, na minha velhice, vou ter de aguentar outro idealista?
—    Então, não vai me ajudar? — disse Patrick.
—    Não digo que sim nem que não — resmungou Purcell. Quando chegar o momento, decido. Estou ficando muito velho para deixar que mais idealistas me estraguem os negócios. Bem, boa noite. Vou levar essa menina para a cama e não vou mais descer
—    Ele examinou a cara severa de Patrick, atentamente. Depois, sacudiu a cabeça. — Acho que talvez você não seja igual ao coitado do Steve, afinal.
Ele saiu da sala feito um gigante com uma fada nos braços, e os três ficaram olhando enquanto se afastava. Laura disse, com brandura:
—    0 tio Jim vai ajudá-lo.
Ela deu o braço a Patrick. Eram quase da mesma altura, pois Laura era alta. Ela sorriu para ele.
Lydia suspirou e dobrou a tapeçaria.
—    Quando eu era mocinha, só havia o certo e o errado no mundo. Agora, não tenho tanta certeza. Homem nenhum é um demônio e homem nenhum é santo.
Lydia se levantou com um gesto ágil como o de uma mocinha. Pôs a mão no ombro de Patrick e olhou bem para o rapaz.
—    Um dia Stephen me disse que o bem é sempre vencido, mas o mal também. Nenhum dos dois vence, permanentemente. Não sei, mas acho que ele tem razão. — Ela acrescentou, num tom mais leve: — Não se esqueçam de que o Rufus vai dar uma grande recepção para a minha Cornélia, na véspera de Natal. Somos amigos tão civilizados, sabe, embora eu me tenha divorciado dele. Isso escandaliza a todos, mas negócio é negócio, como diria o Jim, e não há ressentimentos. Além disso, Rufus e eu nos separamos tão cordialmente e, quando Cornélia está aqui, ele muitas vezes vem nos visitar. — Ela deu uma risada, meio amarga. — Cornélia não o confirmou nem mesmo a mim, mãe dela. Mas parece que Rufus vai anunciar o noivado dela com o marquês de Fontainebleau. Ele vai se hospedar em casa de Rufus e vem todo mundo, até mesmo sócios de negócios de Filadélfia, Chicago e Nova Iorque. Vai ser uma festa muito imponente.
—    A senhora está feliz com isso, sra. Purcell? — perguntou Patrick, com frieza.
Ela se virou.
— Cornélia não tem tido muita intimidade comigo, desde que me divorciei do pai dela. Ah, ela é alegre e carinhosa. Mas foge de mim, do modo mais alegre possível. Cornélia se parece muito com o pai. — Ela continuou, com pesar: — Se Cornélia quer se casar com esse jovem francês, deve saber o que está fazendo. Ela sempre sabe.
Mais tarde, no quarto, com o marido, Lydia disse, desanimada: — Patrick tem todas as virtudes que se podería desejar, claro. Mas há nele alguma coisa inflexível, alguma coisa que nunca fará um conchavo. Imagino que isso possa ser muito louvável e nos santos é uma qualidade excelente. No entanto, por algum motivo, não creio que ele seja um santo. — Ela deu uma risada, cansada. — Ele não gosta de mim, Jim. Às vezes me olha de um modo muito estranho. Ah, você ri de mim, mas eu queria que ele não se casasse com Laura. Tenho um pressentimento...
28
O Philadelphia House, em Portersville, era considerado o hotel sidencial mais distinto de todos: conservador, discretamente luxuoso e de reputação estabelecida. As famílias e solteiros que ali moravam permanentemente eram pessoas de uma fortuna sólida e gostos “requintados”, muitos aposentados e idosos, com hábitos sossegados. Ser recebido como morador do Philadelphia House era ser tacitamente recebido na sociedade de Portersville e ser considerado uma pessoa de importância e bom caráter.
O saguão, todo de pelúcia verde e vermelha e mogno pesado, com seringueiras e palmeirinhas em grandes vasos de metal, pontilhado de colunas de mármore marrom sustentando um teto branco entalhado, nunca era local de risos ou vozes altas ou costumes ousados. O grosso tapete vermelho abafava todos os passos; o decoro imperava na portaria; as conversas eram em voz baixa. As ricas sedas podiam farfalhar, mas discretamente. Os empregados do hotel, de farda marrom com leves toques de dourado, eram, em sua maioria, idosos e antigos no serviço; demonstravam seu orgulho aristocrático em seu estabelecimento e seu comportamento era menos obsequioso do que digno. Só recentemente o hotel tinha acompanhado o progresso, mandando instalar luz de gás. Mas mesmo estas luzes ardiam fracamente, como se desculpando. Os hóspedes, reunindo-se no saguão antes do jantar na vasta e fria sala além das portas de vidro, murmuravam acerca do tempo, saúde, algum feriado próximo, ministro, política ou negócios, tudo de um modo vago e desinteressado, como se essas coisas não tivessem muita importância.
Algumas senhoras e cavalheiros idosos, esperando no saguão por suas carruagens naquele dia vinte e um de dezembro triste e sombrio, falavam com reservas sobre um novo hóspede. Um homem muito velho se perguntou “o que está acontecendo com o House, admitindo essa pessoa”. Uma senhora idosa disse que “ele parecia muito educado e bem-apessoado”. Uma senhora mais jovem, de não mais de sessenta anos, deu uma risadinha e mencionou que estava prestes a ganhar uma fortuna inacreditável”, se bem que ela, naturalmente, deplorasse o “comércio”. O filho do velho muito velho cavalheiro baixo e gordo de seus setenta e dois anos, sugeriu que “todos esperassem para ver. Afinal, os tempos mudam”. “Mas irlandês, ao que parece!”, exclamou o velho muito velho, aflito. "E católico, ao que dizem. 0 que dirá o sr. Ivers?” “Protegido do secretário Peale. O sr. Peale não o recomendaria se não fosse inteiramente respeitável e digno.”
— Psiu — murmurou a senhora mais nova.
O assunto dessa conversa aflita aparecera no recinto apagado do saguão, a caminho da porta. Sua carruagem, que não se distinguia de todas as outras carruagens dos moradores do House, aguardava junto ao meio-fio. Ele atravessou o tapete vermelho de um modo adequadamente imponente, a cabeça erguida, os gestos lentos e corretos. Seu ar podia estar sóbrio e preocupado, conforme convinha a um “morador”, mas a inquietação da senhora e do cavalheiro mais idoso aumentou. Havia nele algo de esquisito. Ele não parecia nada subjugado. No entanto, ninguém poderia criticar aquele chapéu coco conservador, na mão esquerda enluvada, nem a bengala de ébano com cabo de ouro na mão direita, nem a bela casimira preta de seu terno, o sobretudo de casimira com gola de pele, a camisa de linho discreta, a gravata preta e as excelentes botinas. A crítica, se houvesse, dizia respeito aos olhos negros, curiosamente ferozes e irrequietos, e a nitidez intensa de suas feições. Os verdadeiros cavalheiros não eram tão destacados e nítidos quanto esse rapaz; faltava-lhes a discrição. Como nenhum residente ainda não lhe falara, ele também não tentara qualquer conversa, tanto nos corredores, quanto no saguão, ou na sala de jantar. Ele fora discretamente observado à mesa; não cometera qualquer gafe. Notou-se que ele só lia os jornais e revistas mais aprovados. No caso dele a incluisão estava quase iminente e alguns dos velhos moradores começaram, muito em segredo, a pensar em sobrinhas e netas casadoiras.
Ao passar pelo grupo idoso no saguão, ele olhou-os rapidamente. Para alarme e reprovação da outra, a senhora mais nova meneou a cabeça, discretamente. O rapaz fez uma mesura de leve e continuou, sem parar. Viram-no sair do House e entrar em sua carruagem.
—    Que coragem, Elise! — disse o velho muito velho.
Uma vez na carruagem, o novo residente deu uma gargalhada.
—    Velhos idiotas!
O cocheiro, que era velho, endureceu os ombros, calado. A carruagem foi seguindo pelas ruas em direção ao prédio do Portersville National Bank. O rapaz começou a assobiar: “Volte a Erin...” Ele se recostou nas almofadas de couro e acendeu um dos novos “cigarros deploráveis”, fumando com a intensidade rápida que lhe era peculiar. Empurrou o chapéu-coco para trás e soltou nuvens de fumaça. Pegou a bengala e admirou o castão de ouro. Revirou-a nas mãos enluvadas e aí o riso desapareceu de seu rosto. “Já vim bem longe”, pensou Allan Marshall. “Vou seguir daqui e tem de ser depressa.”
Para acalmar uma emoção turbulenta, começou a cantar e até o cocheiro escutou, sem querer, mas encantado. A canção podia ser desconhecida, mas a voz era rica e cheia e de grande força dramática.
A carruagem rodou macia pelas pedras do calçamento e parou defronte do banco. Allan subiu a escada para o segundo andar, para os escritórios locais da Interstate Railroad Company. Nos últimos oito anos, a companhia passara a ocupar todo o segundo andar, se bem que agora os escritórios centrais ficassem em Filadélfia. Salas menores tinham sido unidas para formar gabinetes mais amplos e uma porta privativa bloqueava os que passavam para o terceiro andar e os escritórios menos prósperos dos homens de negócio locais. Discretamente, Allan tocou a campainha na porta do segundo andar, que se abriu para revelar o rosto sério e idoso de um homem vestido de preto, com um ar formal.
—    Ah, sim, sr. Marshall — disse ele, abrindo bem a porta e fazendo uma mesura. Allan, conduzido pelo porteiro, passou por um corredor atapetado para a porta de vidro em que estava impresso com floreios e traços, o nome do presidente da companhia, sr. Rufus DeWitt.
Nesse gabinete restava apenas uma escrivaninha. O ambiente era confortável e aconchegante, com a lareira acesa, o couro e veludo e as estantes de livros. Rufus estava sentado à sua mesa e então, quando Allan entrou, ele se levantou amavelmente e estendeu a mão ao rapaz.
—    Muito bem — disse amavelmente. — Fico contente por vêlo, meu filho. E contente por ter aceito o meu convite para uma conversinha, esta tarde.
Ele sorriu para Allan com afeto, ofereceu-lhe uma cadeira junto da escrivaninha, sentou-se e acentuou o sorriso, até estar brilhando. Insinuou que se orgulhava de seu visitante, tendo por ele não só a mais alta estima, mas um afeto pessoal. Allan sorriu para si, conservou o rosto sério e sentou-se. Não levantou a aba do casaco; apenas desabotoou-o, revelando o colete de brocado preto, com o corte mais conservador e elegante, e a corrente de um relógio de ouro.
—    Quero agradecer-lhe por ter recomendado o Philadelphia House, sr.
DeWitt — disse.
Rufus cruzou os dedos sobre a barriga grande.
—    Ah, sim — disse, a voz cheia. — Achei que era o lugar adequado para você, Allan. Um cavalheiro jovem e promissor, o inventor do nosso engate automático. Por falar nisso, a nossa subsidiária vai entrar já em produção. Os construtores de vagões já fizeram uma encomenda enorme. Parece que você está bem encaminhado para ser milionário, se bem, claro, que os royalties ainda levem pelo menos um ano para entrarem, em quantidade. No entanto — e novamente o sorriso se acentuou —, basta você pedir e a Iron & Steel Company terá prazer em lhe adiantar... qualquer coisa... o que precisar.
Allan disse:
—    Então, creio que vou pedir a eles seis mil dólares, digam, por volta do dia 2 de janeiro.
—    É muito dinheiro — murmurou Rufus, inclinando a cabeça, com um ar paternal —Mas você é jovem e acho que é um rapaz que não pretende deixar passar a vida sem aproveitá-la. Francamente, com a sua idade, eu era assim mesmo. — Ele tomou nota num papel. — Então, são seis mil. Eles lhe mandarão um cheque em janeiro.
“Tenho de ter muito cuidado; estou jogando a parada mais alta de minha vida”, pensava Allan. Uma de suas mãos estava pousada de leve sobre a bengala; as luvas estavam sobre o joelho. Ele observava Rufus com a mesma atenção com que Rufus o observava, não podia perder o menor piscar de olhos, o mais leve gesto. Rufus abriu uma caixa de prata sobre a mesa.
—    Charuto, Allan?
Allan vacilou; detestava charutos. No entanto, inclinou a cabeça, aceitando o charuto. Houve uma pausa momentânea e então Rufus, brilhando como um sol, riscou um fósforo e acendeu o charuto do visitante. O primeiro round estava ganho, pensou Allan.
—    E você está gostando do Philadelphia House? — indagou Rufus, com carinho, pondo certa ansiedade no tom. — Adaptou-se lá?
—    Muito, senhor. É bem o meu estilo — disse Allan. — O vistoso não é do meu gosto.
Rufus, cuja mulherzinha delicada às vezes reclamava por ele ser “vistoso”, não gostou muito daquilo. Ele olhou para Allan com desconfiança. Depois riu-se.
—    Não é do meu gosto — disse ele. — Parece um mausoléu cheio de relíquias velhas. Mas é eminentemente respeitável. É muito importante... para um rapaz que está subindo na vida.
—    Eu mesmo sou muito respeitável — disse Allan. Aí os dois romperam em risos e ambos se descontraíram numa onda de boa camaradagem.
Rufus disse:
—    Por falar nisso, recebeu o nosso convite para a comemoração da véspera de Natal, da srta. DeWitt, Allan?
Allan enfrentou aquele olhar paternal e entendeu logo que nenhum convite fora enviado e que a ideia era nova, formulada naquele instante.
—    Receio que ainda não o tenha visto, sr. DeWitt. Mas, com certeza, deve estar na minha caixa; não procurei a correspondência antes de sair.
Outra rodada vencida!
—    Bem, as coisas estão um pouco corridas — desculpou-se Rufus — Ainda não mandamos todos os convites, embora esteja ficando em cima da hora. Pretendemos anunciar o noivado de nossa filha com o marquês de Fontainebleau, nessa noite. Ele é nosso hóspede, sabe?
—    Li alguma coisa a respeito no jornal — respondeu Allan, os dedos apertando mais o castão da bengala. — Então, está tudo resolvido?
Rufus sorriu com simpatia e permitiu-se demonstrar certa tristeza.
—    Nossa filha não está bem — disse. — Francamente, eu não gostaria que ela fosse morar na França, se bem que viajemos todos os anos, na primavera. Cornélia e eu somos muito agarrados; ela se parece muito comigo, dizem. Afinal, ela é tudo o que tenho.
Sua mulher? Seus dois filhinhos?, pensou Allan, achando graça. Seus dedos se afrouxaram na bengala. Ele mal controlou um suspiro alto, de um alívio desesperado.
—    Então — continuou Rufus, com um suspiro sincero — não estou inteiramente satisfeito.
Reinava no escritório um ambiente da maior intimidade. Por algum motivo, a vigilância de Rufus esmoreceu. Ele examinou Allan por uns instantes e disse consigo: “E quase um cavalheiro. Uma boa cabeça; e não é nada bobo.” Allan disse, com respeito:
—    Talvez a srta. DeWitt mude de ideia, mesmo que tivesse planos para esse casamento.
Como isso estava inteiramente de acordo com os desejos de Rufus, a despeito das insistências doces e estridentes da mulher, e seu delírio quanto a “honra magnífica”, Rufus lançou a Allan um de seus sorrisos mais sinceros.
—    Ah, é — disse Rufus. — Bem, está ficando tarde, de modo que acho que temos de tratar de negócios. Allan, tenho uma sugestão a lhe fazer. Uma proposta, se quiser.
Allan demonstrou um interesse cortês e sério.
—    Conforme você já disse, meu filho, em Scranton, a lei é o seu forte, e você não pretende viver de seus royalties, embora possam vir a ser imensos, no futuro. Todos nos orgulhamos muito de você. Bem, por quanto tempo você ainda vai ter de estudar Direito nos escritórios do sr. Peale?
“Agora”, pensou Allan, mantendo a expressão inalterada. Ele disse, com
calma:
—    Creio que até por volta do dia primeiro de fevereiro.
—    E então? — disse Rufus, com brandura.
—    Minha decisão de me concentrar no Direito trabalhista não se modificou — respondeu o rapaz. Em torno de sua boca, havia certa palidez, ao observar Rufus.
Rufus alisou o queixo com o indicador direito e seus olhos castanhos faiscaram sobre o rapaz.
— Ouvi dizer que você é um orador muito eloquente — comentou.
Allan sorriu.
—    Fico contente que o senhor pense isso. Sem dúvida, o sr. Duncan Baynes lhe contou a respeito. Notei que ele estava no Union Hall, no dia 18 de dezembro.
Rufus não ficou embaraçado. Deu uma risada.
—    Fui eu que o mandei lá — disse, com uma candura simpática. Pegou uma carta da escrivaninha e tornou a rir. — Por acaso não foi você quem escreveu isso, foi, Allan?
Allan olhou rapidamente para a carta e, como única respv sorriu, com certa reserva. Rufus riu a valer.
—    O seu objetivo é muito claro para mim. — Ele esperou, n Allan apenas levantou as sobrancelhas, polidamente. Rufus recosn se na poltrona e olhou para o rapaz, com benevolência. — Voe o jovem Pat têm sido muito amigos, não é, meu filho? Acono como sabe, que ele vai se casar com minha sobrinha, que é como se fosse minha filha. Ela disse que Pat ficou preocupado com o seu discurso no Union Hall c está começando a... bem... digamos que ele o achou um tanto ambíguo?
—    Ambíguo? — Allan franziu a testa. — Em que sentido? No tei, há coisa de uma semana, antes de o sr. Pat voltar para Washington, que ele estava um tanto frio comigo. Os escritórios de Peale não são os mais importantes da Pensilvânia. Vou acabar de estudar Direito lá. Vou continuar com o Direito trabalhista, como já disse. Se o sr. Pat não gostar, sinto muito, mas não pretendo desistir disso.
Rufus teve um sorriso ladino.
—    Deixe de se fazer de bobo, Allan. Pode talar comigo como a um pai, ou pelo menos um irmão mais velho. Você sabe perfeitamente que o Pat se preocupa muito com leis mais favoráveis para o trabalhador.
Allan deu de ombros.
—    Também sei que ele está aprovando uma lei para a regulamentação das estradas de ferro, sr. DeWitt. E tem bastante apoio no Senado.
—    E você aprova essa regulamentação?
—    No momento... e o senhor me perdoe o que pode parecer grosseria... não posso dizer. — Ele fixou os olhos sobre Rufus. E os olhos faiscavam com uma ferocidade declarada. — Tudo depende de uma série de coisas.
Fez-se um silêncio repentino no escritório, em que os olhos dos dois se encontraram e se prenderam, duros e sabidos.. Então, Rufus desviou o olhar, brincando com uma pena na mesa.
—    Você tem descoberto decisões trabalhistas e outros assuntos, auxiliando Pat. Ele contou tudo isso à minha sobrinha. Ele disse que você era precioso. Já lhe contou sobre... hum... aquela obscura decisão que mencionou em Scranton?
—    Não, ainda não.
—    Posso perguntar por quê? — A voz de Rufus estava terna.
—    Tudo faz parte de meus planos, quando eu afinal me resolver.
Nada podería demonstrar maior felicidade do que o sorriso de
Rufus.
—    Você é um rapaz que não quer apenas ganhar dinheiro, mas também deseja o poder. Conheço todos os sintomas. Eu mesmo já os apresentei. Meu caro rapaz, gostaria de fazer parte da minha equipe jurídica aqui em Portersville?
Allan deu baforadas leves do charuto, olhando para o fogo. Parecia estar pensando. Depois, sacudiu a cabeça.
—    Obrigado, sr. DeWitt, mas não. Quero mais do que fazer parte de uma equipe jurídica. Estive pensando na política, aliada ao meu trabalho de Direito.
O desafio estava lançado. Rufus pensativo, Allan sem se perturbar. Depois que o silêncio se prolongou, Allan disse, baixinho:
—    Com meus conhecimentos, treino e dinheiro, acho que podería me dar muito bem na política. Os trabalhadores, em toda a Pensilvânia, estão de olho em mim. Ainda hoje recebi uma carta do velho Dan Boyle. Estou pensando em me candidatar a senador.
Rufus ouviu a ameaça profunda e implacável na voz expressiva do rapaz e escondeu sua consternação súbita e violenta. Aquele demoninho não se deixaria seduzir pela benevolência, lisonja ou manifestações de afeto. Ele sabia o que queria. Havia um cheiro de perigo no ar quente e plácido do gabinete. Rufus tamborilou na mesa, devagar, e suas sobrancelhas avermelhadas se juntaram numa concentração dura. Ele pensou em sua resposta e depois concluiu sabiamente que Allan via através de qualquer fingimento e estava aguardando uma declaração franca.
—    Bem, Allan. 0 que você quer? Qual é o seu preço?
Allan ergueu os olhos para o teto.
—    Se eu abandonasse minhas ambições políticas, desejaria ser chefe de uma equipe jurídica e não fazer parte dela. Eu lhe asseguro que sou bem capaz, sr. DeWitt.
—    Em outras palavras, meu caro, você quer ser chefe de minha equipe jurídica em Portersville, que já conta com algumas das melhores cabeças desse estado... cabeças velhas, experientes, bem temperadas. Você também havia de querer ser consultado pelos nossos escritórios de Filadélfia.
—    Creio que o senhor resumiu tudo muito claramente.
—    Você é um rapaz terrível — disse Rufus, com benevolência. — E acho que nos seria precioso. Digamos... dez mil dólares por ano? A começar de março?
—    Dez mil dólares por ano — repetiu Allan, pensando. — Creio que isso é mais do que o atual chefe do seu departamento jurídico está recebendo. É preciso ficar entendido que esse ordenado é apenas para começar, sr. DeWitt.
Rufus respirou fundo, com alívio e complacência. Era ridículo que, diante daquele homem que ainda não tinha trinta anos, Rufus DeWitt, poderoso e invencível, experimentasse tal emoção. Mas Rufus nunca subestimava os outros.
—    0 sr. Patrick Peale não vai gostar disso — disse Allan, depois de adquirir certeza de ter sido uma vitória total. Ele deu uma breve risada.
Rufus riu com ele. Estendeu a mão gorda a Allan, que apertou-a.
—    Nem os seus outros amigos vão gostar — disse Rufus.
—    Não tenho amigos — replicou Allan.
Rufus acendeu outro charuto, demorando nisso.
—    Meu irmão, o sr. Stephen, disse a mesma coisa, antes de morrer. Mas disse com amargura. Você não é amargurado, é, Allan?
—    Não, senhor, sou realista. — Allan começou a calçar as luvas, sem pressa.
— Aliás, descobri que homem nenhum tem amigos.
Rufus deu uma risada de desdém.
—    Ora, ora, Allan, você parece amargo, sim. Acho que você e eu vamos ser muito bons amigos.
—    Sim, senhor, certamertte — disse Allan, sério.
—    E você já tinha planejado tudo isso, desde o princípio?
—    Desde o princípio.
Rufus meneou a cabeça, muito satisfeito. Começou a aceitar. Allan com simpatia, como sempre aceitava homens poderosos e com ideia fixa.
—    O que é que pensa agora, meu caro, que conseguiu o que queria?
—    Não penso nada em especial, a não ser que era inevitável.
Rufus achou muita graça.
—    Mas e se eu tivesse recusado.
Allan riu-se um pouco.
O senhor não estava em situação de recusar, sr. DeWitt. Além disso, viu a vantagem imensa para si. Nunca ofereço nada a ninguém que não lhe seja benéfico, em troca do que eu quero. Creio que nós dois fizemos um excelente negócio.
Ele se levantou. Tinha passado por uma tensão extraordinária nessa última hora; tinha jogado, tinha vencido. Mas então seus joelhos começaram a tremer e ele sentiu uma umidade entre as omoplatas.
Bateram à porta, de leve, e a abriram logo, sem cerimônia. Cornélia entrou como uma rajada de sol e vento, gritando, em voz rouca:
—    Papai, quando é que o senhor vai descer? Esperei na carruagem...
Ela parou e abriu a boca quando Allan se virou para ela. Mas espanto foi muito breve. Ela começou a sorrir muito, com prazer. Ela avançou depressa para o rapaz e estendeu a mão.
—    Ora, se não é o... nosso jardineiro! — exclamou, os olhos amarelados cheios de pontos radiosos. — Papai me contou a seu respeito. Será tarde para as felicitações?
Allan apertou a mão dela. Por um momento, ficou incapaz de falar. Só conseguia olhar para Cornélia e se dizer como ela era linda e viva, alta e generosa. Um rápido desejo por ela quase o dominou, uma fome profunda e avassaladora, um apetite arrasador. Ela ficou ali, rindo na cara dele, alegre. O pai se levantou e foi postar-se ao lado dela.
—    Não é tarde, minha querida — disse ele, a voz cheia. — Acabei de nomear esse caro rapaz aqui o chefe de nossa equipe jurídico de Portersville. Pode felicitá-lo.
—    Ora, veja! — exclamou Cornélia, sem retirar a mão, seus dedos se enroscando nos de Allan. Ela olhou para o pai, por cima do ombro, e tornou a rir. — Mereço o crédito por ter descoberto o sr. Marshall. Conheci-o no verão passado, nos jardins, e depois lhe mandei uma bela coleção de livros de Direito.
—    É mesmo? — disse Rufus.
Seu sorriso cordial ficou meio fixo. Estava com a mão no braço da filha e maquinalmente afagou a manga de arminho branco de neve de seu casaco curto. 0 gesto era possessivo e ciumento e seu olhar passou por cima dela, devagar e ansioso. Um chapéu de arminho branco, redondo, estava empoleirado sobre os cachos ruivos e ela usava um pequeno regalo da mesma pele. Sob o chapéu, o rosto era malicioso e luminoso, vivo, as faces de um vermelho forte, de boa saúde e do frio, a boca grande sorrindo, os belos dentes reluzindo. Pérolas brilhavam em suas orelhas e nos dedos tinha brilhantes e pérolas. O azul-turquesa do veludo do vestido acentuava a vivacidade natural de seu colorido. Ela faiscava com magnetismo de modo que enquanto estava ali, rindo, parecia ser toda movimento.

—    Ah, sim — disse Cornélia, com sua voz comum e ousada continuando a brilhar para Allan. — Reconhecí logo o gênio. O senhor sabia, sr. Marshall, que fui eu que mandei os livros?
—    Vi logo que era — disse ele.
Estava sentindo a garganta muito espessa. Soltou-lhe a mão e ela balançou os pés, como o pai fazia, examinando-o com prazer e simpatia zombeteira. O colorido de suas faces ficou mais acentuado e por um instante ela desviou o olhar, numa confusão desusada. Depois tornou a rir.
—    E quem mais havia de ser? — perguntou, alegre. — Quem mais havia de compreender tudo sobre você?
—    Muito perceptivo de sua parte, amor — disse Rufus. Mas também, somo ambos perceptivos, não é? — Ele puxou o relógio, olhou para ele e fingiu estar espantado com a hora. — Temos de ir andando. Temos visitas para jantar e está ficando escuro. Por falar nisso, Cornélia, o Allan vai a sua festa.
—    Ótimo! — disse Cornélia. — Há tão poucos homens bonitos no mundo. — Propositadamente e francamente, ela examinou as roupas de Allan. Queria aborrecê-lo e constrangê-lo. Ele ficou diante dela, duro, num silêncio controlado, e ela lhe lançou um sorriso zombeteiro, ao pegar o braço do pai, com carinho. Sabia que Rufus estava meio inquieto, por isso disse: — O sr. Marshall e eu temos tanta coisa em comum. Temos de arranjar um tempo para conversar um pouco na festa. — Ela largou o braço do pai, jogou-se numa poltrona, quase esparramada e jogou o regalo na mesa. — Assim como o senhor, eu e papai precisamos ter uma conversa agora mesmo, antes de voltarmos para casa.
0 olhar de esguelha dela foi insolente e de dispensa. Assim, Allan fez uma mesura, friamente, apertou a mão de Rufus e saiu. Cornélia o viu sair e deu uma risada. Rufus voltou à poltrona, a testa franzida.
—    Meu bem, isso foi indiscreto, mandar livros para ele. Ele podia ter entendido mal.
Cornélia zombou dele.
—    Ele nunca entende mal... seja o que for. Está um cavalhero e tanto, agora, hem? Ou quase um cavalheiro... assim como o senhor, papai querido, é quase um cavalheiro. Ande, não feche a cara. Eu também não sou uma dama. Nada como a nossa querida Estelle. — Ela baixou a voz, com desprezo.
—    Eu gostaria, Cornélia, que você não escarnecesse tanto de sua madrasta, nem tivesse tanta antipatia por ela — disse Rufus a carne rosada e quente se arrepiando de aborrecimento.
—    Antipatia por ela? — exclamou Cornélia, arregalando os olhos. — Mas em absoluto. Além disso, não adianta nada antipatizar com Estelle. Ela acha que engana as pessoas com aquele rostinho doce e os cachos inocentes empilhados na cabecinha, seus sorrisos suaves, a maldita voz doce, covinhas idiotas e jeitinhos delicados. Que fraude ela é! Não é uma fraude boa e robusta como o senhor e eu, papai, só uma hipócrita açucarada, convencida de que está enganando todo mundo com sua vozinha compreensiva e branda e seu coração chorando pelos “pobres oprimidos”, como ela diz, enquanto o tempo todo ela é simplesmente a vaca mais gananciosa e ambiciosa...
—    Cornélia! — exclamou Rufus, zangado.
A filha acenou a mão, sem fazer caso.
—    Ora, papai, não sou fina, confesso. Agora, já que estamos falando de Estelle: ninguém se importa que os outros gostem de dinheiro, a não ser os tolos, mas sua mulherzinha bonitinha finge que o dinheiro não tem importância. No entanto, examina as contas da casa com olhos de lince e tem tanta piedade quanto uma pedra. Mas já falamos demais do caráter da querida Estelle. Só o menciono hoje por um motivo muito especial.
—    Então? — disse Rufus, ainda se sentindo mal. A filha o olhava com um amorsincero e muita ternura rude. Ele não podia resistir àquilo, de modo que se riu, meio desanimado. — Que bandida você é, Cornélia. Não consigo ficar zangado com você. O que é, agora?
—    Nicki teve uma conversa com Estelle, hoje de manhã. Ela foi me procurar e me contou, toda sorridente, animada e nervosa.
Toda feliz. Parece que o Nicki quer um milhão e quinhentos mil dólares para se casar comigo, em dinheiro, e um bom quinhão de ações da Interstate.
O fogo crepitava. Cornélia e Rufus se olhavam, num silêncio sério. Aí Rufus moveu-se pesadamente na poltrona e olhou para o fogo. Disse:
—    Isso não é tão... excessivo. Em troca do título, uns castelos bolorentos e o grande chateau na Riviera, a casa grande em Paris e vários vinhedos e tal e coisa. Se for isso que você deseja, Cornélia.
—    Não desejo — disse ela com rudeza. — Nunca desejei. Gosto do Nicki: ele é tão polido e tem maneiras tão bonitas. Mas nunca o levei a sério para marido. Imagine eu casada com aquela mistura de pomadas e sofisticação e... bem, o que chamamos de depravação. O senhor já reparou bem nos europeus? Uma corrupção elegante. Nós não somos corruptos, nesse sentido especial. Amamos a vida, mas eles apenas a perfumam e pervertem.
—    Meu Deus — disse Rufus, com um alarme sincero. — Onde é que você arranjou essas idéias, Cornélia?
—    Eu apenas observo — respondeu Cornélia, com calma, num tom razoável. — Somos uma nação de entrepreneurs, assassinos e piratas e o que Pat Peale chama de “magnatas do roubo”. Também não temos cultura, graças a Deus, se por cultura se entende o tipo continental. Mas pelo menos não somos doentes.
—    Doentes? — repetiu Rufus, consternado. Ele corou muito e Cornélia ficou olhando para ele, achando muita graça. Depois, ela baixou os olhos, com modéstia.
—    Doentes da cabeça, quero dizer, papai. O que é que pensou?
Rufus levantou-se e postou-se diante do fogo, as mãos nos bolsos.
—    Para uma moça educada finamente como você foi, Cornélia, com escola
de aperfeiçoamento e tudo, e todas as vantagens requintadas, sua conversa é extraordinária.
—    E o que o senhor já tem me dito, papai. — Ela se levantou, foi para junto dele e passou o braço pelo dele, agradando-o. Pôs-se nas pontas dos pés e beijou a face dele, que estava quente. — Papai, estou sendo sincera. Droga, só posso ser sincera com o senhor, portanto, não espere que eu seja outra coisa.
Ele afagou a mão dela, distraído, e continuou a olhar para o fogo.
—    O que foi que você disse a Estelle? E pare com esse palavreado. Nunca se ouviu isso de parte de uma senhorita.
—    Eu disse a ela que mandasse Nicki para o inferno — disse Cornélia, sem rodeios. — Ela, claro, ficou histérica e tive de chamar a empregada, que trouxe sais para ela cheirar. Coitado do papai — continuou Cornélia, com uma preocupação sincera. — Como nosso anjinho o domina! Mamãe nunca o dominou assim.
O rosto de Rufus ficou escuro, de dor e raiva. Quase com brutalidade ele empurrou a mão de Cornélia de seu braço.
—    Não vamos falar de sua mãe nem de Estelle. Vamos encarar os fatos. Você deixou sua madrasta doente. Isso era de esperar, E vou ouvir lamentos pela metade da noite. Ela está de cama?
—    Claro. Estava quando saí. Mas estará toda cheia de perfumes, babados e franjas, quando chegarmos em casa. Temos hóspedes, lembre-se, e “nunca se deve revelar as emoções. É vulgar".
Rufus suspirou.
—    Você torna a vida muito difícil. Bom. Não quer se casar com o Nicki. Eu nunca desejei esse casamento. Você sabe disso, Cornélia. — Rufus mordeu o lábio inferior. — Os convidados de sua festa estão esperando um comunicado. Vai ser muito constrangedor.
—    Em absoluto, papai. Estelle deu as más notícias ao Nicki hoje á tarde e ele vai embora amanhã de manhã. Constrangedor? Quem se importa? Nossos convidados estavam esperando olhar para um marquês e agora não terão para quem olhar. — Ela continuou, displicente: — Quando vinha para cá, passei pela redação do jornal e pedi que publicassem uma nota social, dizendo que o marquês de Fontainebleau foi chamado à França urgentemente... por cabograma.
—    Meu Deus! — exclamou Rufus. Virou-se para Cornélia e depois parou. Sem poder se conter, ele começou a rir e ela riu junto Ela se jogou nos braços dele e Rufus a abraçou com força.
29
Em nuvens, como pirilampos sob a luz da carruagem de Allan, a neve esvoaçava e, em rajadas rápidas, girava sobre as pedras. E o vento forte fazia a carruagem vibrar e balançar.
Os cavalos, sentindo o vento selvagem em suas crinas e caudas, abaixavam a cabeça e corriam. O rio, antes sonoro, estava agora agitado e violento, tornando-se uma presença impertinente. A escuridão da boca da noite espalhava sobre a cidade um manto como névoa, brigando com os lampiões de rua amarelados.
A cancela estava fechada, no cruzamento da estrada de ferro.
A carruagem e seus cavalos irrequietos e nervosos pararam, espetando.
Allan não precisou olhar para o relógio para saber qual o trem que se aproximava pelos trilhos reluzentes, com os sinos polidos batendo furiosamente contra a tempestade, fumaça e faguíhas saltando de sua chaminé gigantesca, tiras de fogo jorrando ae suas rodas.
Era o velho sessenta e oito e Allan ficou ali sentado na carruagem, com o rosto comprimido contra a vidraça. Ele antes achara que a estrada de ferro fora um mal necessário na vida de sua família, mas agora sabia que só se ressentira contra ela porque não significara nada mais além disso. A medida que o trem se aproximava, ruidoso, ele foi sentindo uma forte empolgação e exultação: a sensação de pertencer à força que mandava esses monstros para cidades, sobre planícies e montanhas, que desbravava lugares desconhecidos e primitivos. O que era descoberto tornava-se propriedade do homem; o que se tornava propriedade do homem crescia com vida e comércio. As chaminés fumegantes das locomotivas eram tochas elevadas à civilização nas sombras dos desertos. Logo atrás delas vinham homens da indústria, construtores de cidades, prostitutas, professores, juizes, assassinos, poetas e escritores, arquitetos... e soldados.
Quem estava dirigindo o velho sessenta e oito, naquela noite? Quinta-feira era dia de mudança. Podia ser qualquer maquinista, E então Allan, espiando da carruagem, viu que o maquinista era seu pai: Tim Marshall. Os lampiões de luz trêmula no cruzamento iluminaram o rosto de Tim, que recentemente tinha envelhecido, ficando puxado e desanimado sob o boné listrado. A máquina estava diminuindo de velocidade e então Allan, olhando para o pai, de dentro da carruagem, notou uma diferença nos sinos barulhentos. Não eram mais exuberantes, como costumavam ser quando Tim os tocava. Tinham um tom mecânico e quase doloroso, desanimado, sem vida, e os olhos que acompanhavam a passagem com tanto cuidado não continham mais o antigo orgulho e exultação.
Allan ficou sentado em sua carruagem, de cara fechada. Sem ver nada, esperou que passasse a longa carreira de vagões de carga. Encostou a ponta de ouro da bengala na boca. Velho idiota.
Allan ainda era muito moço e, a despeito da raiva e impaciência, sentia pena do pai. Ele gostara dos pais de um modo que achava ser misto de indulgência, superioridade e superficialidade. A tristeza aumentou sua impaciência e ele estava de mau humor quando as últimas luzes vermelhas, piscando, desapareceram ao longe. A carruagem continuou seu caminho, martelando por cima de pedras, do brando esquinas e subindo lareiras. Por fim, chegou ao Philadelphia House, que estava discretamente iluminado. Allan entrou no saguão tranquilo, onde alguns grupos de gente idosa e algumas moças bemeducadas e muito insignificantes conversavam em tons suaves e elegantes, antes do jantar. A entrada de Allan calou-os, enquanto o examinavam furtivamente. As sedas e veludos discretos das mulheres, seus rostos decorosos e sem colorido, a casimira preta dos homens, todo o ar de tranquilidade e distinção estudadas, fizeram Allan pensar em enterro. Essa ideia lhe restituiu o bom humor, enquanto ele se dirigia para o único elevador rangente do House.
— Ah, sr. Marshall — sussurrou o porteiro antigo, em tons si bilantes. O porteiro se debruçou sobre o balcão com ar de conspira dor, ao mesmo tempo duvidoso e confidencial — Um cavalheiro, está esperando pelo senhor ali, junto das palmeiras. Perguntou pelo senhor. Já está aqui há uma hora, creio, e não deu o nome.
Allan virou-se. Um rapaz baixo e meio gordo, de marrom, mo desto, estava calmamente lendo um jornal sob luzes de gás presas à parede de lambris. O rosto de Allan se retesou. Ele hesitou e depois encaminhou-se com rapidez pouco
distinta para o visitante, sen tindo a curiosidade e os olhos que o acompanhavam.
—    Então, olá, Mikc — disse Allan, segurando a bengala atra vessada, em ambas as mãos enluvadas.
Michael estava sorrindo para ele, os belos olhos castanhos e redondos brilhando agradavelmente.
—    Olá — disse ele. — Estava à sua espera.
—    Foi o que me disseram. Vamos subir para o meu quarto?
Michael levantou-se, o jornal farfalhando alto naquele silêncio quente. Ele estivera fumando o cachimbo, provavelmente ignoran do o regulamento do hotel, que proibia os cavalheiros de fumarem no saguão. Suas roupas amarfanhadas estavam cobertas de cinzas < o cachimbo, naquele ambiente puro, tinha um cheiro horrível. Allan começou a sorrir, embora estivesse muito constrangido.
0 elevador tinha subido, atendendo a uma campainha num an dar de cima, e agora estava descendo com muitos rangidos e chiados. Allan viu as senhoras e senhores saindo, cumprimentando os que já estavam no saguão com sorrisos comedidos e pequenas mesu ras. Ele tocou no braço de Michael e foi para o elevador, pedindo licença ao se ver obrigado a abrir caminho no meio dos grupos. As senhoras e senhores se separaram para deixar passar os dois rapazes, olhando afrontados para o aspecto plebeu de Michael, seu sobretudo marrom e grosseiro e as botinas manchadas de lama. Um trabalhador, um lavrador, um cocheiro! E com aquele jovem sr. Marshall, que estava prestes a ser aceito! Um cavalheiro idoso murmurou para outro:
—    Não sei aonde o mundo está chegando. Nunca pensei, no Philadelphia House... temos de falar com o gerente... um insulto a tudo o que o Philadelphia House representa... incrível...
Ignorando serenamente a reprovação geral, Michael, que gingava um pouco ao andar, seguiu ao lado do irmão. Allan estava outra vez de cara fechada. Entrou no elevador com Michael e, calados, os dois foram lentamente levados ao terceiro andar. Allan procurou as chaves quando eles saltaram num corredor atapetado e pouco iluminado. O assoalho abafava os passos deles e as luzes de gás dançavam numa corrente de ar. Allan abriu uma porta de mogno escura e os rapazes entraram numa saleta com uma lareira acesa, pequena mas quente e aconchegante, toda de veludo vermelho e azulmarinho, mobília monolítica e cortinas pesadas. O fogo crepitava sob o consolo de mármore preto. Nas paredes estavam penduradas gravuras muito boas mas melancólicas e por toda a parte, nos móveis e nas cortinas, as franjas penduradas farfalhavam. Uma porta aberta mostrava o quarto de dormir tão sóbrio quanto a saleta, com cabeceira de nogueira que chegava ao teto alto e uma cômoda e penteadeira pesadas, com mármore marrom.
Allan aumentou as luzes dos globos nas paredes.
—    Sente-se, Mike — disse ele. Michael sentou-se obedientemente numa poltrona de veludo vermelho, que o envolveu em seus contornos arredondados. Allan tirou o belo sobretudo, jogando-o num imenso sofá azul, jogou a bengala e chapéu, e tirou as luvas.
Como sempre, olhou para o dedo médio, mutilado. Depois, enfiou as mãos nos bolsos e se postou diante do irmão. — É bom ver você
—    disse ele, sem simpatia. — Afinal, já faz duas semanas, não é? Como vão pai e mãe?
Michael sorriu e seu rosto gorducho e comum se iluminou, com afeição. Ele respondeu:
—    Estão bem de saúde. Sentem falta de você, claro. Você está um verdadeiro cavalheiro. — Ele sorriu bem nos olhos de Allan e acrescentou: — Aloysius.
Allan grunhiu.
—    Por que “Aloysius”? Quer me aborrecer? Levei cinco anos dando socos e pontapés para fazer os nossos companheiros me chamarem de Allan. Nem mesmo o pai e a mãe me chamam por esse nome desde que eu tinha doze anos.
De repente, Michael ficou sério, sentado na poltrona e olhando para a lareira, distraído.
—    Não importa — disse ele. — Eu não estava querendo ser desagradável, desculpe. Estava só tentando... Não importa. Isso aqui é muito bonito, Allan. Muito distinto e tudo o que você sempre quis.
—    Há algum motivo que impeça o homem de querer coisas.
O rosto de Michael estava demonstrando uma aflição muito verdadeira.
—    Eu disse que havia?
Ele cruzou os dedos curtos e gordos, debruçou-se e os examinou. Allan procurou no bolso a cigarreira nova e cara, toda de prata trabalhada e brilhante. Ele a abriu.
—    Quer um cigarro? Ou será santo demais, ou antiquado? São feitos sob encomenda — acrescentou. — Os cigarros tinham seu nome gravado neles, num dourado discreto. Michael olhou para a cigarreira e cigarros com uma admiração declarada e, com cuidado, pegou um dos cilindros brancos. Allan enfiou um círio no fogo e acendeu o cigarro do irmão e outro para si. Michael fumou um pouco, desconfiado, com cuidado, enquanto Allan, encostado ao consolo da lareira, o cigarro elegantemente seguro na mão esquerda, o observava.
—    São muito bons — disse Michael.
—    Turcos — disse Allan. Ele estava meio virado, de modo que não viu a expressão de Michael, de compaixão e dor. Continuou:
—    Imagino que você tem algum motivo para vir, não simples solicitude fraternal.
—    E — confessou Michael, hesitando. — Tinha. Também vim por mim. Queria saber se podíamos contar com você em casa para o jantar de Natal, e depois irmos todos, como sempre, à Missa do Galo, juntos.
Allan jogou o cigarro no fogo.
—    Não posso — disse, sem rodeios. — Fui convidado para um baile muito importante, em casa do sr. Rufus DeWitt.
Allan virou-se para Michael, para ver a expressão de incredulidade do irmão e seu assombro. Mas os olhos de Michael estavam escuros e tristes; ele estava de novo examinando as mãos dobradas.
—    Isso vai deixar nossos pais muito tristes. Nunca faltamos à Missa do Galo... toda à família junta. Você antes sempre lhes dispensou essa consideração.
Allan ergueu a voz, zangado:
—    Que tolice! Sim, eu fazia a vontade deles, porque era Natal. Mas você
sabe muito bem que não acredito... em nada... há anos. Ouviu o que eu disse? Fui convidado para...
—    Eu ouvi. — Michael falou muito baixinho. — E lhe dou os parabéns. Não me surpreendo; eu sempre soube que um dia você iria ter êxito. Só queria poder dizer ao pai que você estaria conosco, como sempre. Afinal, em breve vou deixá-los. Você e eu provávelmente nunca mais nos encontraremos. Será uma vida solitária para eles, depois deste último Natal. Eu gostaria de saber que você e eles tinham se reconciliado e que lhes restava um filho para consolá-los.
—    Ele acrescentou: — Será um consolo para eles, se você estiver com eles.
—    Sentimentalismo — disse Allan. — Sentimentalismo irlandês. Já se esqueceu do pai gritando quando eu disse que ia me mudar para cá e ofereci para lhe comprar uma casa decente, fora da cidade, longe daquele bairro fedorento?
—    Ele tem seus padrões — disse Michael, com calma.
Os olhos de Allan estavam brilhando, com raiva.
—    O que ele esperava que eu fizesse? Guardar o dinheiro no banco e continuar a viver naquela toca de ratos com o que ele chama de “gente” dele?
—    Ele acreditava no que você sempre o levou a acreditar... que se interessava exclusivamente pelos trabalhadores, que era o portavoz deles. Acho que não foi só o fato de você ir embora que o deixou tão desgostoso. Foi outra coisa. — Michael levantou os olhos e eles estavam muito vivos e firmes. — Sabe, o pai é um homem muito simples, com noções muito antigas e simples.
Allan ficou furioso.
—    E quais são as noções dele? Ele inocentemente acredita que todos os ricos são malfeitores e que todos os pobres desgraçados, em virtude de sua própria pobreza, são santos. Se um homem, pelo esforço, imaginação e inteligência, consegue sair da sarjeta, ele se torna, aos olhos do pai, traidor e canalha. Mas você também acha isso, não é?
—    Eu disse isso? — perguntou Michael.
Allan fitou-o. 0 fogo crepitava, no silêncio.
—    Mas acredita — disse Allan, por fim.
Michael sacudiu a cabeça, devagar.
—    Você está enganado. Os homens são iguais, ricos ou pobres. Só diferem em grau. Concordo com você que pouca gente entende e é por isso que o mundo está mergulhado na inveja, no ódio e na maldade. Os nossos vizinhos não são diferentes do sr. DeWitt, por exemplo, a não ser pelo dinheiro. E quem lhes mente dizendo o contrário está provocando desordens e são perigosos. Esses homens são os verdadeiros inimigos do povo.
Allan apertou os olhos, vingativamente.
—    Você se refere a mim, claro.
Michael meneou a cabeça.
—    É, claro. — Michael olhou bem para Allan. — Sabe, você nunca me iludiu.
—    Você é um tolo e sempre foi — disse Allan. — O homem usa o material que tem para conseguir o que quer.
Michael disse, pensativo, como se Allan não tivesse feito nenhum
comentário:
—    De certo modo, você explorou aqueles pobres coitados. Não vai me contar, imagino. O pai compreende que você os tenha usado, mas ignora qual foi o método, assim como eu. Você não quer me esclarecer?
Allan foi depressa para o quarto e voltou com uma garrafa de uísque e dois copos. Ele os pôs na mesa, perto do irmão. Sorriu, com um ar tenebroso.
—    Quer beber alguma coisa, Mike?
—    Gosto de cerveja — disse Mike. Seu rosto gorducho estava cheio de pesar. — Mas bebo com você. — Ele notou que a garrafa estava pelo meio e franziu a testa. — Você agora gosta de uísque?
—    perguntou, quando Allan encheu os copos.
—    Gosto. Não é bebida de um cavalheiro. Xerez, sim. — Allan levantou o copo num ligeiro brinde e o uísque desapareceu num gole por sua garganta. Michael o observou, bebericando devagar, o sofrimento se acentuando em seu rosto. — O uísque — disse ele
—    é bebida de irlandês. Pelo menos, é o que ouvi dizer. E não é a melhor coisa do mundo.
Allan sorriu. O uísque finalmente tinha conseguido dissipar a expressão tensa de seu rosto.
—    Eu sou americano — disse ele.
—    Foi o grande poeta alemão, Goethe, quem disse que o homem não pode escapar do molde em que foi feito — replicou Michael.
Allan deu uma risada.
—    E agora, além de tudo, somos poetas — disse. — Pois eu me orgulho, e muito, de meu irmão. Nunca imaginei que fosse tão instruído.
—    Você nunca soube muita coisa e provavelmente nunca saberá — respondeu Michael, quase sem se fazer ouvir. — É essa sua maior infelicidade. O ignorante despreza seus semelhantes. O homem que compreende tem pena deles. Como é possível amar o mundo — continuou ele, com uma espécie de assombro trágico — e não ver o que há para ver?
Allan tornou a encher o copo, jogou a cabeça para trás e engoliu o uísque. Colocou o copo na mesa com violência, apoiou o cotoveio no consolo e olhou para o fogo, sombrio.
Michael disse, pensativo:
—    Quando somos crianças o mundo é um lugar mágico, onde tudo pode acontecer, há maravilhas do outro lado do morro e encantamento de manhã e o fim do mundo ao pôr-do-sol. Quando somos crianças é que vislumbramos a essência ofuscante da vida e adivinhamos todos os outros mistérios. Perdemos isso, quando deixamos nossa infância para trás. Mas alguns nunca foram crianças e, assim, nem mesmo nos verdes anos tiveram alguma compreensão.
—    Refere-se a homens como eu — disse Allan.
—    É — disse Michael.
Allan ficou calado. Olhou de novo para a garrafa de uísque e depois desviou o olhar. Por fim, disse:
—    Você fala com autoridade, Mike, mas o que sabe sobre mim? Acho que é arrogante e presunçoso e o quê o padre Tom chama de
"vanglorioso”. Isso não é pecado? Lembre-se de incluir isso em sua própria confissão.
Por um instante, seu olhar zombeteiro faiscou sobre o irmão.
Então ele pensou, de repente, sem qualquer aviso, num incidente de que não se lembrava, conscientemente, havia muitos anos. Agora, aparecia iluminado, não só nas cores frescas e vividas daquele dia de verão quente, distante, mas com a luz apocalíptica e sinistra da compreensão de adulto.
Ele sempre fora um menino de um orgulho feroz, solitário, filho de imigrantes atormentado pelos filhos de outros imigrantes, igualmente perplexos e famintos. Tinha aprendido a se defender, e mesmo quando muito pequenino se mostrara destemido, sempre pronto com os punhos, lutando com honestidade, mas sem misericórdia. O irmão, mais plácido e complacente, ou talvez mais brando e tolerante, escapara de grande parte das perseguições de infância infligidas a Allan.
Truculento, criativo, desprezando a fraqueza e a ignorância, Allan afinal passara a ser temido e desprezado pelos colegas, nunca sendo convidado, por medo de seu escárnio eloquente e seus punhos, para participar de qualquer brincadeira ou aventura. Embora tão jovem, a solidão obrigara-o a assumir dimensões maiores; pedia emprestado ou roubava livros que lhe deram a percepção da vida, da motivação e impulsos dos homens. Quando chegou o momento de sua primeira comunhão, foi um homem, e não uma criança, que se aproximou do altar, com cinismo resistente, indiferença e desdém.
—    Nunca fui religioso. Nunca acreditei em nada — disse ele a Michael, taciturno. Dessa vez não olhou para a garrafa de uísque. Pegou-a e se serviu de outra dose, que bebeu logo. Depois ficou junto ao fogo, olhando para o copo, sem
expressão.
—    Não? — disse Michael, com brandura, com as mãos nos joelhos redondos.
Mas Allan não o ouviu. Continuava mergulhado em sua recordação daquele dia. O presente se dissolvia no álcool.
Ele tinha aprendido o catecismo, impacientemente, e absorvera os ensinamentos pré-comunhão do velho padre Gallacher, não por interesse, mas por medo da correia. E então chegara o domingo, cheio de um calor dourado, árvores novas e suaves, céu brilhante e sossego. Portersville ainda não estava coberta pelas nuvens da indústria, as cinzas ainda não eram tão numerosas debaixo dos pés, o barulho ainda não invadira todas as ruas apinhadas. Ainda era uma cidade meio provinciana, sob suas montanhas de ametista e verde-azulado. Sem querer, Allan se comovera com a paz e ternura do dia, acentuada ainda por calças curtas novas, meias de algodão pretas e botinas baratas engraxadas.
Ele se ajoelhou com seus jovens inimigos e conhecidos. Ouviu o padre, indiferente. A luz do sol, quente, caía como uma cascata colorida pelos poucos e preciosos vitrais coloridos da igrejinha modesta e cada rostinho se tornou um prisma móvel. O padre Gallacher, homem magro e mirrado, com olhos ardentes e interessados, falou brandamente com as crianças, com quem costumava berrar, para discipliná-las. Estavam ajoelhadas diante dele e seu coração sentimental ficou comovido e triste. Ele disse:
—    Queridas crianças, vocês hoje, pela primeira vez, querem participar da
mesa do Senhor. Antes de serem admitidas, quero a sua confissão de fé...
Allan estava aborrecido. Moveu os lábios em silêncio, enquanto as crianças recitavam o credo e o pai-nosso. O calor e a paz sonolenta na igreja, o tremer das velas, os cantos sombrios, o coro de vozinhas maquinais provocaram nele sonolência e tédio de bocejar.
—    Renunciam a Satanás e todas suas obras e todas suas pompas?
“Suas pompas”... o que seriam? As casas grandes junto do rio, as carruagens reluzindo ao passarem pelas ruas, as caras bonitas sob os guarda-chuvas, a complacência geral dos cavalheiros, os belos barcos e veleiros no verão? Allan se interessou e começou a escutar.
—    Acreditam em Jesus Cristo, Seu único Filho Nosso Senhor, que nasceu no mundo e sofreu por nós?
O Senhor “sofrerá” pelas fabulosas senhoras e senhores naquelas casas, a gente que passeava nos gramados verdes e ria sob as árvores sombrias que rebrilhavam ao sol? O jovem Allan começou a escarnecer, intimamente, e de repente disse consigo: “Sim”. Essa nova ideia interessante o fez ficar sério, e o padre Gallacher viu os olhos duros daquele “bandido irlandês” se fixarem nele com uma intensidade apaixonada. O velho padre ficou estranhamente comovido e falou com maior interesse ainda:
—    Viverão sempre de acordo com a fé que hoje tão solenemente professam?
—    Viveremos — disseram as crianças e a voz mais forte e enfática era a voz de Aloysius Marshall.
O padre Gallacher rezou:
—    Ó Deus, Pai Celeste, olhai com misericórdia para os Vossos pequeninos aqui prostrados diante de Vós... Nós os encomendamos ao Vosso cuidado e amor paternal... Divino Redentor! Pelo Vosso amor estas crianças são filhos de Deus... Sois o mais sincero Amigo das dianças e na terra amastes estar com elas...
Allan, imensamente exaltado e excitado, olhou de lado para as faces de seus jovens inimigos e todo o ódio o deixou. Em seu lugar havia a exultação e algo estranhamente parecido com o amor.
Ele não mais os desafiaria; não bateria neles, nem os desprezaria.
Ia estender-lhes a amizade, convencê-los de que podia ser amigo deles. Iria perdoá-los por terem-no perseguido; vagamente, ocorreu-lhe que só os infelizes perseguem os outros e ele se encheu de compaixão. Também eles eram estranhos numa terra estranha, filhos de imigrantes, desprezados pelos que se podiam gabar de uma origem mais antiga naquele país.
—    Era besteira — disse Allan para Michael, que o observava com um olhar penetrante. Os olhos dele estavam acesos, com um misto de álcool, raiva e tristeza.
Michael não podia adivinhar os pensamentos do irmão, mas disse, com a mesma voz branda:
—    Como você podia julgar?
Alguma coisa estava acontecendo com o irmão, em sua casimira bem-feita, a corrente de ouro no colete de brocado, esse irmão elegante e tratado, que se apoiava no consolo da lareira.
0 gosto do pão e do vinho ainda estavam na língua de Allan quando ele
saiu da igreja para a luz da rua. Ele começou a correr, como se seus pensamentos o perseguissem. Tinha de contar a Michael, o irmãozinho desprezado, o que lhe tinha acontecido nesse dia. Tinha de encontrar um lugar sossegado em que pudesse examinar o que tinha experimentado.
—    Mas na verdade não experimentei nada — disse Allan. Ele procurou a garrafa de uísque, os olhos vidrados. Tinha desaparecido. Numa névoa, ele começou a procurá-la, maquinalmente, enquanto Michael o olhava com uma compaixão profunda. No meio de sua busca, às tontas, ele se esqueceu do uísque. Esqueceu-se de que Michael estava ali. Ficou diante da lareira, de costas para o irmão, as mãos enfiadas nos bolsos, o fogo iluminando suas feições morenas, tensas e a boca amarga.
Ele corria de novo pelas mas quentes. Ia ser padre! Isso deixaria os pais felizes. O pai ia se alegrar, ao cortar a galinha dura de domingo. Eles iriam juntos procurar o padre Gallacher...
Allan tinha corrido pela empoeirada Potters’ Road, cheia de sol na paz de domingo. Ele ouviu um choro e parou. O pequeno Michael, moreno mesmo naquela época, gorducho e brando, estava sentado no meio-fio, rodeado por quatro garotos fortes, um pouco mais velhos do que Allan. Eles estavam rindo dele, ameaçando-o, metendo punhos sujos debaixo do queixinho gordo do pequeno.
—    De certo modo, foi por sua causa, Mike — disse Allan, com voz mais grossa.
—    Conte — disse Michael, com pena.
Mas Allan aproximava-se do grupo no meio-fio sujo e suas mãos se cerraram em punhos. Então, a glória, toda a compreensão e alegria estavam recuando. Uma coisa negra se instalava em seu coração: seu couro cabeludo estava arrepiado. Ninguém o tinha visto, ainda. Ele escutou as vozes:
—    Seu irlandês imundo! 0 que faz em nossa terra? Onde está seu irmão? Pensa que é sabichão! Bem, ele agora não está aqui e quando a gente acabar com você...
—    Adora ídolos, é? — zombou outro garoto, esfregando os nós dos dedos com força no rosto molhado de Michael. — Está pensando que pode tomar conta da nossa terra, é? Pois vamos resolver isso já e já!
Filhos de Deus! Esses desgraçadinhos sujos que estavam assustando um garotinho muito pequeno! Infelizes, é? As caras cheias de um riso perverso e tripudiante.
—    E continua assim, tudo — murmurou, lembrando, com as mãos se cerrando em seus bolsos.
Allan estava em minoria e não era garoto de lutar quando via tudo contra ele. Aprendera a astúcia nas ruas sujas. Quando se aproximou do grupo, começou a assobiar, daquele jeito especialmente doce e entoado, tão conhecido dos ouvidos hostis. Os garotos ficaram sobressaltados, afastaram-se de Michael e, com medo e ódio olharam para Allan, com suas roupas novas. Ele sorriu pra eles, calmamente.
—    Estão querendo briga? — perguntou, com a voz suave. Bom, eu também gosto de brigas. — Allan sorriu para eles com muita simpatia, enquanto o fitavam com uma cautela carrancuda. — Vou dizer uma coisa — continuou. — Tenho uma bola nova, grande e vermelha. Ganhei de aniversário. Vocês são quatro. Digamos
que se dividam, escolhendo seus parceiros. Aí, dois de vocês brigam com os outros dois. Depois, os dois vencedores brigam e quem ganhar fica com a bola.
Quatro pares de olhos começaram a brilhar, desconfiados, cobiçosos.
—    E eu sou o juiz — ofereceu-se Allan, magnânimo. — Vocês sabem que sou um lutador leal e conheço todas as regras.
Os garotos grandes teriam preferido atacar Allan, em conjunto. Mas havia a bola vermelha. A ganância iluminou-lhes os olhos e molharam os lábios. O ódio era menor do que a cobiça.
Sempre é — comentou Allan, sem expressão, chutando um carvão em brasa com a ponta da botina. — A cobiça é sempre maior do que tudo...
Mas, de um modo profundo e intuitivo, Michael entendeu que o irmão não estava pensando em si e suspirou.
Os garotos, já gritando excitados, escolheram os parceiros. Num instante, a rua ficou um pandemônio, a paz de domingo desaparecendo. Allan pulara em volta dos lutadores, advertindo, ameaçando diante de um golpe baixo, rindo alto ao ver sangue. Michael ficara agachado junto ao meio-fio, gemendo baixinho, as lágrimas ainda em suas faces, os olhos muito horrorizados e conscientes fixos nos lutadores. Mas ele olhava mais para Allan do que para os outros, o irmão dançando com leveza nas plantas dos pés, Allan com o rostinho alegre e alerta, os cachos pretos caindo sobre a testa molhada, via nele um ar brilhante, uma espécie de espírito de vingança luminoso.
A luta acabara logo, o vencedor ensanguentado estendendo a mão, pedindo a bola. Allan meneara a cabeça, correndo para a casinha dos pais. O pai e a mãe ainda não tinham voltado; todos os quartinhos ressoavam com seus passos fortes. Ele pegara a bola, voltara correndo para a rua em que os quatro garotos estavam limpando os narizes sangrentos e se olhando de cara fechada. Allan olhara para eles, rindo, por um instante prolongado, e depois jogara a bola para o vencedor. Ela voara pelo ar como um grande coágulo de sangue, refletindo a luz do sol. O vencedor a apanhara, resmungando, satisfeito, e os outros se juntaram em volta dele, implorando para jogarem, esquecendo-se de sua luta e sua raiva num desejo abjeto de tocar no fruto da disputa. Ele não era mais um inimigo. Era objeto de súplicas, pois era rico.
—    Malditos — disse Allan. — São sempre assim. — Ele se virou do fogo e fixou os olhos no irmão. — Aprendí a minha lição, naquele dia. E a tenho utilizado bem. Você queria saber qual o meu "método”. É isso. Dividir e governar.
Michael observou o rosto atormentado do irmão e pensou: "Ele agrediu muito, foi ao inferno, à desilusão, ao ódio. E voltou com isso e talvez nunca se esqueça.”
—    Onde está o maldito uísque? — perguntou Allan, mas não se afastou de junto da lareira.
—    Talvez eu me lembre de incluir a “vangloria” em minha próxima confissão — disse Michael, quase com humildade. — Há tão pouca coisa que compreendo.
Allan sorriu, taciturno.
—    Especialmente sobre aqueles que você e o pai sempre chamam de “magnatas ladrões”.
Michael riu um pouco e ergueu as mãos num gesto resignado.
—    Bem, eles roubam muito, em grande escala. Mas quase todo mundo é ladrão, de um modo ou de outro. O ladrão pequeno tem inveja do grande, em segredo, de modo que o censura virtuosamente.
—    Que palavras para um futuro monge! — disse Allan.
Michael ficou sério.
—    A Igreja não condena a fortuna pessoal, quando alçada pela honestidade, trabalho árduo e inteligência. Só se alarma quando essa fortuna se torna mais importante para o homem do que sua alma imortal.
Allan fez cara de desprezo. Seus olhos não estavam tão turvos, e Michael saía de uma névoa.
—    Você se lembra que o pai nos contou que ele e a mão, e centenas de outros irlandeses, não puderam desembarcar nesta terra, por muito tempo, e ficaram indo de porto em porto, passando fome, doentes e com frio, até que afinal as amáveis autoridades lhes permitiram desembarcar numa terra que os recebeu de má vontade? Os imigrantes pareciam gado. A mãe perdeu o primeiro filho lá, a bordo, nos porões fedorentos. Num catre imundo. Quase morreu. Mas quem se importava?
Michael pensou, com uma compreensão nítida: “Quantas vezes o sucesso de um homem constitui uma vingança?”
Os pensamentos de Allan, embora intensos, ainda estavam vagando na névoa do uísque.
—    Quero que você escute, Mike. Estou apenas começando e sabe de uma coisa? Vou me casar com Cornélia DeWitt.
Ele esperou que Michael soltasse uma exclamação, risse dele sem acreditar. Mas Michael ficou calado. Estava dilacerado por sua compaixão e em seus olhos as lágrimas lhe pesavam. “Meu irmão é uma espada afiada e amarga.”
A mão de Michael tocou furtivamente na tampa da garrafa de uísque que ele escondera no fundo da poltrona de veludo, junto da sua coxa. Ele suspirou. Era loucura dizer a um homem: “Não se importa com o que lhe pode acontecer, quando bebe?” Michael entendia que o homem bebia em excesso exatamente pelo motivo de que não se importava com o que lhe podia acontecer. O homem que detesta a vida usa qualquer método para destruir sua consciência e seu corpo.
Por fim, ele respondeu a Allan:
—    Sim, você provavelmente vai se casar com a srta. DeWitt se é isso que deseja. Você sempre conseguirá aquilo que quer.
As idéias de Allan mudaram de rumo.
—    E a casa para o pai e a mãe. Eles precisam ter um lugar decente para morar...
—    Conte a eles — disse Michael depressa, ansioso. — Vá jantar lá no dia de Natal. Vai ser um belo jantar, com ganso.
Allan franziu a testa. Depois, estendeu as mãos.
—    Vou, sim. Se o pai... — ele sorriu — não me expulsar quando me vir. — Ele acrescentou, de repente: — Onde está o maldito uísque? — Olhou em volta, os olhos turvos.
Michael se levantou.
— É de comida que você está precisando. E não foi a sineta que ouvi?
Allan estava aturdido com o uísque e a tormenta emocional em que se envolvera. Assim, não se opôs quando Michael pegou-lhe o braço, com carinho, e levou-o até a porta e depois ao corredor. Alguns retardatários se reuniam para entrar na imponente sala de jantar, com sua prata fria, os pratos frios, as paredes brancas, toalhas brancas e colunas austeramente pintadas de ouro e branco. Allan disse:
—    Você janta comigo, claro.
Michael sorriu, com um ar obsequioso e disse, em voz bem alta:
—    Obrigado pelo oferecimento do emprego, sr. Marshall. Vou pensar a respeito, mas não creio que eu sirva.
Allan o fitou, sem expressão. Michael, segundo as boas normas, fez uma mesura, com o chapéu nas duas mãos e, de cabeça baixa, afastou-se. Allan ficou de boca aberta. Estatelado observou o irmão se afastando humildemente pelo saguão. Mas quando Michael chegou à porta e olhou para trás, Allan tinha começado a sorrir, de modo tenebroso mas compreensivo.
O grupinho de senhoras e senhores tinha parado junto às portas que davam para a sala de jantar. Trocaram olhares e depois olharam para Allan e sorriram, de leve. Um senhor muito idoso e venerável, de barbas brancas, disse, com uma reserva simpática:
—    Uma tempestade terrível, não é sr. Marshall? Sou o sr. Blaly e estes...
“É”, pensou Allan, “uma tempestade terrível”. Ele estava fazendo mesuras e correspondendo às apresentações, no melhor estilo e murmurando.
30
Uma tempestade de neve atrás da outra tinha assolado Portersville nos últimos dias. Casas e prédios da cidade pareciam montes de neve monstruosos, interrompidos por manchas irregulares de janelas e túneis estreitos. Os pátios da ferrovia fumegavam com as locomotivas ociosas e os homens fumavam sem cessar nos galpões de reparos, enquanto outros, com fogueiras, tentavam degelar as chaves congeladas. As montanhas erguiam-se umas acima das outras em cadeias de um branco imutável. Somente o rio, coberto de gelo aqui e ali, se movia numa escuridão taciturna pelo vale.
Mas nas vésperas de Natal, pararam as nevascas. As montanhas ardiam numa incandescência de alabastro sob um sol frio e num céu azul claro. O rio corria pela terra branca como uma m cha azul. O ar ficou cristalino, luminoso.
Na noite da véspera de Natal as estrelas pulsavam num céu roxo escuro. Todas as grandes casas ao longo do rio e nos morros vibravam com suas luzes amarelas. As estradas tinham sido limpas e Cornélia DeWitt, que temera por sua festa — que agora não tinha outro propósito senão o de festejar — se alegrou. Os convidados não seriam impedidos de comparecer.
Cantando em tons fortes e roucos, ela deixou que sua criada desse os toques finais a sua toalete. Depois levantou-se e se examinou no espelho comprido. Sorriu, satisfeita, e cantarolou, enquanto fazia piruetas e mesuras e gesticulava com a maior naturalidade. Seu vestido de Worth, comprado em Paris na primavera anterior, de veludo cinzaprateado, possuía um belo drapeado na frente e um rico apanhado nas costas, preso aqui e ali com ramos de violetas de veludo. Estava bem ajustado a seu belo corpo, revelando parte de seus seios fartos
e alvos e desnudando inteiramente os braços, ombros e pescoço.
Cornélia estava com o presente do pai. Um pesado colar de ouro amarelo cravejado de pérolas, brilhantes e águas-marinhas, os imensos brincos condizentes. Sapatos dourados, reluzindo com brilhantes nas pontas, espiavam por baixo do vestido quando ela andava. O cabelo ruivo tinha sido penteado complicadamente em novo estilo parisiense, todo de cachos bufantes e franjas em cima, com um rolo comprido sobre o ombro direito, e também ele reluzia com grampos incrustados de brilhantes. Ela sabia bem que sua delicada madrasta a considerava “vulgar”. Mas isso, claro, era inveja pura. A querida Estelle considerava o colorido e a força vulgares, especialmente quando exibidos por uma mulher.
—    Eu não sou — cantava Cornélia, quase gritando — uma dama, dama, dama! Graças a Deus! Sou uma mulher, mulher, mulher!
Como as palavras eram cantadas ao som de um hino sacro, a velha criada ficou escandalizada.
Cornélia, alegre, afagou o ombro magro, abaixou-se e beijou a face enrugada da criada.
—    Sally, é véspera de Natal — disse. Não precisa esperar por mim. Vá lá para cima e reze. E não se esqueça de rezar por mim.
Cornélia saiu do quarto, todo iluminado pelos lampiões e o fogo da lareira, cantando outra canção, Malditos, alegres cavalheiros!
Foi seguindo pelo corredor sossegado até o apartamento do pai, marcando o compasso com os braços cheios de joias. Bateu à porta do quarto de Rufus, cantando outra canção, com uma letra escandalosa ao som de Ouvi os anjos cantarem!
—    Entre — disse Rufus, irritado. Estava de pé diante da penteadeira de mármore. Seu camareiro, suando, tentava dar o laço na gravata do traje a rigor, não conseguindo fazê-lo ao agrado do patrão — Já que tem de cantar tão alto e espalhafatosamente, Cornélia — continuou Rufus —, eu preferia que não ofendesse os outros com palavras impróprias... Você não está fazendo isso direito, John, pelo amor de Deus!
Furioso, Rufus tentou olhar para a filha, através do espelho.
—    Pode ir, John — disse ela. — Eu dou o laço para o sr. Rufus. Tenho jeito para isso.
O camareiro saiu do quarto depressa, enquanto Rufus ficava ali, irritado, a gravata pendendo do pescoço grosso. Cantarolando e olhando para o pai com um ar travesso, implicante e afetuoso, Cornélia pegou a ponta da gravata e deu um laço com habilidade.
—    Pronto, meu querido — disse ela, recuando, as mãos nos quadris, examinando Rufus com ar crítico. — Está lindo. Formidável, bonito como o diabo.
Rufus virou-se e se olhou no espelho, exatamente como a filha fizera no quarto dela, enquanto Cornélia olhava para ele, com carinho.
—    Você entende desse negócio de gravatas — reconheceu ele, exultante. Afagou as lapelas de cetim de seu casaco a rigor e depois examinou Cornélia. — Esse não é o vestido que a Estelle diz ser muito sofisticado para uma mocinha?
—    E não é o vestido que o senhor me ajudou a escolher? — perguntou
Cornélia, beijando o rosto rosado do pai.
Ele coçou uma sobrancelha.
—    Pelo menos fui eu que paguei. É véspera de Natal. Talvez uma coisa branca... simples, juvenil. — Os olhos dele começaram a brilhar, de orgulho e adoração. Quando Cornélia riu, ele riu junto. — Assim mesmo — disse —, como hoje também é aniversário de Estelle, você poderia ter procurado agradar a ela, em vez de aborrecê-la.
—    Ela está sempre temendo que eu brilhe mais do que ela, papai. — Cornélia levantou as costas do vestido, candidamente, mostrando as pernas, e jogou-se numa poltrona. — Para o diabo a Estelle. Vamos nos sentar aqui juntos e o senhor me conta o que está havendo. E pode me dar um de meus cigarros, que está sempre querendo esconder de mim.
—    Você sabe muito bem que é abominável... é feio... uma dama fumar — protestou Rufus, distraído, enquanto abria uma gaveta de uma cômoda de mogno e dourados e tirava uma cigarreira pequena. —Você é um escândalo, Cornélia.
Ela concordou com a cabeça, despreocupada.
—    Claro. Somos ambos. E agora, me conte tudo. Pensei que estivesse tudo resolvido, mas o senhor está preocupado.
—    O que a faz pensar que estou preocupado?
Rufus, levantando a aba do casaco, sentou-se com a filha dianre da lareira e acendeu um charuto.
—    Eu sempre sei. Nós não sabemos sempre um do outro? Não é sempre assim?
No tom de Cornélia havia desdém pela madrasta e pelos dois irmãozinhos. Rufus não protestou. Tinha certa afeição pela mulher que Guy Gunther, o astucioso, lhe sugerira com franqueza. (“Você pode ser um homem rico e de futuro, Rufus, mas precisa de certo êclat social. Hoje todos nós estamos nadando em dinheiro. No entanto, muitos são chamados, mas poucos escolhidos. Hoje a sociedade nos Estados Unidos pode se dar ao luxo de ser exigente. Tenho a dama certa para você, meio madura, uns trinta anos, ou talvez até um pouco mais, mas de uma família impecável. Você não podia escolher melhor do que uma da família Norwich. A melhor de Filadélfia; tão boa quanto Biddles. Aliás, são aparentados com eles. Não vão fazer caso do divórcio, apesar de serem muito convencionais, já que a pílula é dourada. Estelle Norwich.”)
Cornélia continuou:
—    Há três dias que não o vejo e no jantar não houve tempo para conversar. Então, cá estamos. Desembuche, meu rapaz.
Rufus resmungou e olhou para o relógio, mexendo-se pesadamente para
isso.
—    Já são quase nove e meia. Temos de estar lá embaixo às dez. Meia hora.
Seu sorriso desaparecera e ele estava de cara fechada. Esperando, Cornélia fumava com gosto. Ela cruzou os joelhos sedosos e ficou balançando o pé reluzente.
—    Continua a ser aquele maldito lançamento de apólices — disse Rufus, começando a se descontrair. — Temos de adquirir aquele último tipo de locomotiva pesada. A New York Central está comprando-as, a granel. Como você sabe, elas puxam trens de carga e passageiros mais longos e aceleram o tráfego, deste modo economizando combustível. Mas ainda não sei ao certo quanto a financiamento. Sei, sei que já discutimos isso, para sua satisfação, se não a minha. Mas você sabe que os fundos que há em caixa são sempre distribuídos aos acionistas e funcionários...
—    As apólices só venceríam daqui a vinte e cinco anos — disse Cornélia, com paciência. E teriam uma taxa de juros reduzida. E nosso crédito nunca esteve melhor. Não seja tão cauteloso em sua velhice, papai.
Ele sorriu para ela.
—    Se emitíssemos ações ordinárias, filhinha querida, isso reduziría seus lucros naquele bloco, valendo mais de um milhão de dólares, que lhe dei de presente quando completou dezoito anos.
—    Claro — concordou ela. — E eu não gostaria disso. Nem os outros acionistas. Não, temos de colocar os títulos no mercado.
E chega de ações ordinárias, por enquanto; dividendos são dividendos.
—    Há sempre uma possibilidade má... — começou Rufus.
Cornélia agitou a mão.
—    Papai, o senhor não falava assim antes. As possibilidades na a glória. Então? Emitimos os títulos ou não?
Rufus ficou magoado.
—    Não estou senil! — gritou. —Já me arrisquei mais do que qualquer um! Do que está falando, diabos?
—    Mas ultimamente o senhor passou a olhar com muito cuidado para o sr. Gunther e o velho sr. Regan, aquelas gracinhas de urubus papai.
Ferido com essa verdade, que achava ser um segredo seu, Rufus, corou, de modo pouco saudável.
—    Eu os conheço melhor do que você, sua bobinha! — exclamou. — Está bem, colocamos os títulos no mercado. Espero que não se arrependa.
—    Não vou me arrepender. — Cornélia sorriu para ele, fazendo um gesto alegre com o cigarro. — O que é que os diretores pensam? Não que interesse.
—    Interessa e muito, sua idiota. — Rufus parou. — Acham que a ideia dos títulos é boa. Purcell é totalmente a favor.
—    E ele é o tutor da doce Laura. Papai, que tal um conhaque...?
Rufus levantou-se.
—    Não para você — disse, com ênfase. — Não vai descer cheirando a sarjeta. — Ele abriu a porta do armário e pegou uma garrafa de conhaque. Olhou para Cornélia por cima do ombro. — Você é uma bandida — disse. Pegou dois cálices de prata e cristal. — Um dia desses, toda a sua vida vai ser de domínio público. E aí quem é que vai se casar com você, diabo?
—    Qualquer pessoa — disse Cornélia, pegando seu cálice. Ela bebericou e estalou os lábios. — Um duque inglês, se eu quisesse, coisa que não quero. Além disso — acrescéntou — estou apaixonada. Foi por isso que mandei o marquezinho passear.
O quê?! — exclamou Rufus.
—    O senhor ainda não se serviu, papai. Deixe-me ajudar.
Mas ele balançou a garrafa para ela, ameaçador, e um pouco do conhaque derramou em seu joelho. Cornélia esfregou-o com o lenço de renda.
—    Suas artérias, papai. Quer ter apoplexia? Pronto, vai secar já. Dê-me a garrafa. — Ela a pegou da mão do pai, encheu o copo dele, colocou a garrafa com força sobre a mesa. — Beba direitinho — insistiu, com doçura.
—    Imagino — berrou Rufus, depois de ter obedecido que seja um segredo esse negócio de “apaixonada”? E imagino que não seja da minha conta saber quem é o feliz cavalheiro?
—    Como posso lhe dizer agora, quando nem o próprio "feliz cavalheiro” sabe? — perguntou Cornélia. — E mal o conheço. Aliás eu o vi exatamente três vezes. — O rosto dela, zombeteiro e rosado mudou de repente.
—    Nunca ouvi tolice igual — disse Rufus. — Posso ter algum indício? Eu o conheço, e à família dele?
—    Ah, sim, papai, o senhor o conhece. — Cornélia sorriu, feliz. — Mas não conhece a família dele. Mas vamos, tome mais um pouco do conhaque. Não fique com cara de trovão. Quando tiver certeza, eu lhe digo. Sabe que já estive apaixonada centenas de vezes.
Rufus começou a sacudir a cabeça. Mas estava muito aliviado. Cornélia não estava falando sério, claro, quanto a esse desconhecido. Ele queria que a filha se casasse, um dia. E queria netos. Mas ainda não, repetiu, mudo. Como acontecia frequentemente, começou a detestar o homem que um dia se casaria com Cornélia.
—    É — disse ele, com um sarcasmo pesado. — Você estava apaixonada pelo marquês e o mandou passear. Estelle não a perdoou: chora por isso pelo menos uma vez por dia. As pessoas pensam que ele a abandonou.
—    Com certeza foi Estelle quem lhes deu essa ideia — disse Cornélia.
—    Deixe a Estelle em paz — replicou Rufus, zangado. — Por que vocês duas... É tudo culpa sua, Cornélia. Você é uma atrevida. Bem, quem é o homem que está na sua mira?
Cornélia deu uma risada.
—    Talvez nem esteja — disse. — Vamos falar sobre uma coisa mais imediata. E importante. O que o senhor acha do último dis curso de Pat Peale, em Washington?
O rosto cheio de Rufus inchou de raiva. Alguns dias antes, o jovem senador Peale, falando a favor da lei regulamentando as estradas de ferro, dissera a uma galeria lotada: “Nunca, na história da humanidade, a criação da riqueza material foi tão fácil e tão maravilhosamente farta como agora e sua consolidação sob as formas de grandes blocos de poder, em benefício de poucos, tão perigosa para todo o país. Esses monopólios absorvem e retiram as rivalidades individuais e independentes. Aí reside o perigo que teremos de contemplar com seriedade, considerando quais as forças convocadas para combatê-lo.”
—    É um burro — disse Rufus, com raiva. — Monopólios! O imbecil não entende que uma grande nação não pode se expandir com a eficiência e rapidez que vemos agora com o sistema de milhões de pequenos proprietários individuais, que não têm o dinheiro nem a capacidade para dirigir grandes empresas? Os homens pequeninos pensam em termos pequeninos. O que é bom para um país pequeno não é prático para um imenso. Nós fizemos dos Estados Unidos a nação industrial monstruosa que é. E como o fizemos? Consolidando, juntando invenções, pela iniciativa, imaginação, audácia, capital de risco... todas necessidades gigantescas. Tudo são coisas que os pequeninos que protestam ganindo, e seus políticos pequeninos, ganindo, não compreendem.
—    Papai, o senhor não precisa discursar para mim — disse Cornélia, fumando pensativa. — Estou pensando em relação a Pat, e os dezesseis por cento de Laura na Interstate.
—    O que é que tem?
—    Papai — disse Cornélia —, pode haver um meio de atrair Pat para os “monopólios poderosos” que ele censura com tanto sentimento.
—    O quê?! — rugiu Rufus.
—    É uma coisa a considerar — disse Cornélia. — Ele poderia ser persuadido, depois que se casar com Laura, a ser diretor, ou coisa que o valha. Conhecimento de primeira mão. E depois... — Ela passou um dedo pela garganta e fez um estalo com os dentes.
Rufus olhou para a filha, furioso.
—    Você está falando uma tolice total — disse, devagar.
—    Só há uma coisa a fazer com um político: comprá-lo — disse Cornélia. — Não sei como, mas uma intuição me diz que ele já está pensando em se juntar a nós. Laura me telefonou, muito nervosa, querendo saber se o senhor hoje teria tempo para uma conversa sossegada com Pat. Bem, Pat é rico, mas onde está o homem que já teve o suficiente?
Rufus examinou a garrafa de conhaque na mesa junto dele. Hesitou.
—    Você, com sua intuição — murmurou.
Rufus continuou a pensar. O jovem Patrick Peale, segundo Gunther e Regan, tornara-se uma “ameaça”. Era parte do bloco que exigia regulamentação das estradas de ferro. “É só o começo da regulamentação de todas as indústrias”, dissera o sr. Regan.
0 que é que o velho Steve dissera, havia muito tempo? “Não há nada de errado com a grande indústria centralizada, em si. Uma imensa nação nova precisa de seu gênio. Mas existe o perigo de que
ela se torne mais poderosa do que o governo, um governo dentro do governo, abafando as indústrias mais novas e menores, ou encampando-as. Pode esgotar os recursos de uma nação para a produção de artigos ilimitados e para todos terá de abrir mercados mundiais. E na busca dos mercados mundiais, inevitavelmente terá de entrar em conflito com outros industriais, outras nações, sobretudo Alemanha e Inglaterra. Então, de posse dos legisladores, pode provocar guerras para eliminar concorrentes estrangeiros e controlar o mercado mundial.
É essa a minha profecia temível para o futuro”, dissera Stephen
—    Você e sua intuição — repetiu Rufus, mas dessa vez estava falando com o falecido irmão. Engoliu o resto do conhaque. Viu que Cornélia o observava com aquela expressão estranha que às vezes aparecia em seus olhos. Era uma espécie de selvageria inocente e vazia.
—    Se o sr. Pat Peale quiser me falar hoje à noite... — disse Rufus, emburrado.
—    Seja sério, mas esquivo, papai. — Ela repetiu, à toa, mas sorrindo: — Onde está o homem que já teve o suficiente?
Ela jogou o resto do cigarro na lareira e ficou ali de pé, alta e esplêndida, toda colorida e viçosa. Rufus a fitou, encantado.
—    Você devia ter sido meu filho — disse, dando uma risada.
—    Mas seria muito incômodo um homem como eu ter um filho assim.
Ela tornou a fitá-lo.
—    Seria, sim — concordou. Esfregou o pé no tapete sedoso.
—    Papai, o senhor já não deu bastante para aquele fundo de caridade que criou, o Fundo Stephen DeWitt para os Filhos de Ferroviários Mortos em Acidentes? Foram duzentos mil dólares, só este ano!
Rufus pensou no rosto de Stephen no último dia de sua vida, quando os dois irmãos tinham passado pelas ruínas arrasadas da estação local.
—    Nem mesmo o Comodoro Vanderbilt jamais pensou numa coisa dessas
—    disse Cornélia.
—    Nós não somos uma ferrovia fraudulenta — respondeu Rufus, sacudindo a cabeça, como que para se livrar de suas recordações. — Vanderbilt pode ter uma boa política, mas nós somos a ferrovia mais sólida do país e a maior transportadora dos Estados Unidos. Nunca estivemos em dificuldades; fizemos fortunas imensas. Podemos custear a Fundação, sua avarentazinha gananciosa. Além disso, isso nos dá uma vantagem em Washington. Meu pai também era sábio. Sempre tinha alguma caridade de arromba para confundir os malditos políticos.
—    Ele sorriu, recordando-se. — Quando meu pai e Vanderbilt foram chamados a uma comissão de inquérito parlamentar, pouco antes de papai morrer, Vanderbilt enfureceu os homenzinhos com seu comentário: “Eu estava em casa, cavalheiros, jogando uma partida de uíste, e nunca permito que nada me atrapalhe quando jogo. Como sabem, o uíste exige uma atenção total.”
A pergunta que lhe fora feita merecia esse comentário, mas foi pouco político. Quando fizeram a mesma pergunta a meu pai, ele disse, muito sério, afagando a barba: “Não posso responder prontamente, pois, nesse momento, eu estava solicitando a meus amigos contribuições para minha obra de caridade, o Fundo para Viúvas de Ex-Prefeitos da Pensilvânia".
—    E daí? — perguntou Cornélia, rindo.
Rufus recostou-se na poltrona, rindo também.
—    Qual o político que pode resistir a um homem rico que se preocupa com a sorte das relíquias dos ex-políticos? Bom, Vanderbilt fez sua fortuna pela manipulação e, se bem que nós... nós... tenhamos feito também um pouco de pirataria, continuamos a ser conhecidos como uma estrada de ferro, uma transportadora de mercadorias e pessoas, um serviço para o Estado e a nação. Os políticos atormentaram Vanderbilt, mas deixaram meu pai em paz. E me deixaram em paz, também. — Ele sacudiu um dedo para Cornélia. — Nunca queira engolir tudo de uma vez. Deixe bastante para comover o público.
—    Humm — disse Cornélia. — Como tio Stephen ficaria assombrado se soubesse o que o senhor fez.
Por algum motivo obscuro, Rufus sempre ficava aborrecido quando Cornélia falava do tio sem respeito.
—    Não se esqueça, garota, que seu tio foi um dos melhores ferroviários que este país já produziu. E o nosso pai foi o melhor engenheiro-chefe. Ele construiu solidamente. Quando Erastus Corning fundou a Central, em agosto de 1853, era um político maquinador. Mas não era ferroviário; nem seus sócios. Eram apenas advogados e investidores, especuladores ordinários. Nossa família — acrescentou Rufus, meio pesadamente — construiu para o futuro; e não só o nosso, como também o do país.
Ele olhou para o relógio e praguejou.
—    Já são quase dez horas. Preciso encontrar Estelle. Como você fala, Cornélia!
Ela pôs a mão no braço dele.
—    Só mais uma coisa, papai. A nova ponte sobre o rio Ohio, em Pittsburgh.
Rufus ficou furioso.
—    Nossos diretores não são muito amigos de pontes de vão longo, como você sabe. E logo neste momento, quando os “monopólios” estão sendo investigados. Especialmente agora. Temos a maioria dos títulos e ações da Hubert Hamilton Bridge Company. Isso vai ser resolvido depois, quando as coisas se acalmarem um pouco.
Eles saíram do quarto juntos e, de braços dados, foram para a porta dos aposentados de Estelle DeWitt. Antes que Rufus pudesse bater, Cornélia foi abrindo a porta e eles ficaram no limiar, olhando para a mulher bonita sentada diante do espelho da penteadeira, com a empregada ao lado.
Ela estava absorta em sua imagem ao espelho. Havia algo de narcisista em sua pose, algo de reverente. Pequenina, com um corpo bonito e cheio, estava com um vestido de veludo lilás, muito decotado, muito apertado na cintura alta e esguia, e reluzindo em volta dos ombros decotados, com brilhantes. No pescoço tinha um colar de brilhantes e pulseiras também de brilhantes pareciam estrelas presas em seus bracinhos roliços. O cabelo bonito, de um castanho sem expressão, estava amontoado em lindos cachos no alto da cabeça pequenina, presos com grampos de brilhantes. Possuía um rosto infantil, em forma de coração, grandes olhos castanhos que cintilavam radiosos e ternos, um narizinho arrebitado e uma boca vermelha, de beicinho, que exprimia quase constantemente a doçura mais cativante.
Ela sorriu para si, não com satisfação, mas com adoração, e seus dentes reluziram à luz suave dos lampiões. Começou a afagar a face esquerda com dedos amorosos, num gesto de amante adorador que só pudesse tocar com a veneração mais humilde. Seus dedos se arquearam, tremendo, quase com uma vibração sensual de amor e homenagem a si mesma. Para Cornélia, havia algo de indecente nesse movimento dos dedos, algo de repugnante e voluptoso. Estelle começou a gemer, em êxtase, ao ritmo de suas carícias meio despudoradas.
—    Ah, ah — gemeu Cornélia, num tom de quem está insuportavelmente excitada, sexualmente.
Foi típico de Estelle que ela não se embaraçasse com aquela invasão. Não repreendeu o escárnio grosseiro de Cornélia. Fingiu que se sobressaltava, lindamente.
—    Oh, Rufus — disse Estelle, num tom alto e doce. — E Cornélia, meu bem. Que bom, Cornélia, que você gosta de meu vestido e penteado novos. Não são adoráveis? — Mas Rufus tinha ficado vermelho. Ele lançou à filha um olhar de
compreensão, meio malvado, e entrou no quarto. Estelle estava olhando para Cornélia, satisfeita. — O vestido não é lindo, meu bem?
Cornélia entrou no quarto, toda vermelha, cinza, violeta e dourada. Imediatamente, Estelle ficou um pedacinho pálido de mulher, com um vestido que lhe ia mal, as joias berrantes nela.
—    Eu acho — disse Cornélia, com modéstia — que você é que será a rainha da festa e não eu, Estelle.
Isso fez Estelle se lembrar de alguma coisa, a despeito do elogio naquela voz escarninha. O sorriso sumiu. Ela pegou o leque, lilás e de pedrarias, e se abanou, ranzinza.
—    “Rainha da festa” — disse, rabugenta. — Nessa casinha não há mesmo lugar para um baile imponente. Não vejo por que ano após ano, temos de vir passar o Natal aqui. É tão provinciano, tão interior. Nossa casa na Quinta Avenida, onde devíamos estar nesse minuto, como as outras pessoas de nossa classe, seria ideal para essa comemoração festiva. — E acrescentou: — De que adianta este vestido elegante e minhas joias, quando temos de receber gente que, na maior parte, é insensível e ignorante?
Sua indignação aumentou. Cornélia sorriu para ela.
—    Esta casa é um bocado grande, de gosto perfeito e papai e eu a adoramos. É o nosso verdadeiro lar e, portanto, cá estamos. Estelle ficou rosada de indignação.
—    Certamente não é adequada a nós. Não entendo por que você não quer vendê-la, Rufus. “Gosto perfeito! “ Ora, é quase uma choupana.
Rufus, que suportava tudo menos fazerem pouco de sua casa querida, olhou para a mulher de cara amarrada. Postou-se ao lado dela.
Você se esquece de minha mãe e da idade dela. Ela não iria para Nova Iorque. E, como Cornélia disse, é o nosso lar e é aqui que devemos estar, no Natal.
Os lábios rosados se entreabriram, suavemente, mas apertados, com uma malícia declarada.
—    A querida mãe DeWitt — disse ela. — Nova Iorque seria esplêndida para ela. Ela ficaria empolgada com os navios, o Central Park e as carruagens cheias de gente.
—    Você sabe que isso não é verdade — disse Rufus, a cara mais fechada ainda. — Queira me fazer o favor de não falar mais nisso, Estelle.
Lydia se sentara àquela penteadeira, com o rosto pálido e aristocrático, cabelo escuro, distinção e orgulho tranquilo. Ela se refletira naquele espelho de cristal com dourados. Ela exalara um aroma de sofisticação e frescor e não aquele cheiro exótico e enjoativo, de Paris. Nessa noite, talvez, Lydia usaria um vestido de um prateado vaporoso, com joias de prata no pescoço comprido e nos braços. Rufus a via claramente, à luz do lampião, e ouvia sua voz fresca e calma. A filha dos Norwich! Parecia uma desmazelada enfeitada demais, com todo aquele veludo e joias.
Potinhos com granadas, águas-marinhas e esmeraldas apinhavam a penteadeira, misturados com espelhos dourados, pentes e escovas. (Lydia conservava a mesa austeramente arrumada.) O perfume forte começou a deixar Rufus enjoado.
—    Vamos descer? — sugeriu ele, bruscamente, oferecendo o braço à mulher. Cornélia, insolente, estava cheirando os frascos e potes, um dos quais continha uma pasta vermelho vivo. — Por que não trata de sua vida, Cornélia? — disse Rufus, irritado.
—    Claro, Rufus querido — disse Estelle, com uma docilidade exagerada. Ela se levantou e o vestido de Worth girou em volta dela. Ela olhou para Cornélia e todo o seu rosto ficou desagradável, com um toque de ódio. — Ah, Cornélia! Você está tão... tão... espalhafatosa! Esse vestido não serve mesmo; é de velha e impróprio. E você não devia estar exibindo o seu... seu busto... assim, com os braços e ombros tão despidos. É indecente para uma mocinha, no mínimo.
—    Eu — disse Cornélia, com sua voz grave — não sou uma mocinha. E nunca fui.
Estelle pegou o braço do marido e parou. Era impossível para ela prosseguir com uma ideia por mais do que alguns momentos, por mais perturbada que estivesse. (Sua mente parecia um vagalume, acendendo e apagando, como dissera Cornélia, um dia.) Estelle tivera outra ideia e ela exagerou a parada, até que Rufus olhou para ela, impaciente.
—    É muita humilhação esse caso do marquês — gemeu ela. — Como poderei encarar nossos convidados?
—    Nossos convidados — começou Cornélia, com grosseria — podem ir...
Estelle puxou a mão e a levou aos ouvidos, num drama delicado.
—    Não vou descer. Não vou descer, Cornélia, se você não prometer que usará um palavreado mais educado. Não basta eu...
0 rosto de Rufus tinha começado a ficar roxo, de modo que Cornélia, alarmada, disse depressa:
—    Não vou dizer palavrões. Serei muito distinta. Nossos convidados estão chegando; ouvi uma carruagem.
Ela esperou até que Estelle, murmurando baixinho (“miados", pensou Cornélia, com nojo), colocasse de novo a mão no braço de Rufus e começasse a andar graciosamente para a porta. Aí Estelle olhou para o marido num apelo suave.
—    Os meninos queridos, Rufus! — Sua voz estava com um lindo tom patético. — É a véspera de Natal e eles estão tão empolgados. E sempre esperam que a mamãe lhes dê boa-noite na cama. Temos de ir vê-los.
—    Estelle — disse Rufus, meio abafado —, não vamos ser tão preciosos hoje.
Os olhos grandes e castanhos da mulher se arregalaram, trágicos.
—    Tenho de ir, tenho. É véspera de Natal. Não me prive disso, Rufus.
Ela sabia ser obstinada como uma mula, quando queria. Cornélia fez uma cara de nojo, meneou a cabeça para o pai e os três foram seguindo pelo corredor para o que Estelle chamava ternamente de “seu ninhozinho". Aquilo antes fora o quarto sul, onde Stephen e sua jovem esposa um dia tinham ficado deitados nas cobertas frias, abraçados,
Os meninos, Jon, de sete anos, e Norman, de cinco, ainda estavam acordados no quarto quente e na penumbra, iluminado apenas pela luz do fogo. A governanta, mulher sossegada e inteligente, de trinta anos aproximadamente, estava sentada, meio adormecida, numa poltrona junto ao fogo. Ela não tinha licença de acender um lampião, decretara Estelle, pois poderia “negligenciar os meninos, e ficar lendo". (“Ela tem sempre de estar por perto, até os monstrinhos estarem dormindo profundamente”, comentara Cornélia com desdém para o pai.)
Jon e Norman sentaram-se logo na cama, com gritos estridentes e queixosos, quando os pais entraram. A srta. Schultz teve um sobressalto, na poltrona.
—    Está dormindo? — disse Estelle, com voz áspera. — Os meninos ainda estão acordados!
Ela abraçou os meninos, séria, com seus braços cheios de joias, como que protegendo-os de alguma ameaça terrível. E o olhar que lançou à srta. Schultz foi malévolo. A moça se levantou, pálida e exausta.
—    Desculpe, sra. DeWitt, mas o dia foi cansativo.
—    Sem dúvida — disse Cornélia. — Esses garotos são inteiramente indisciplinados. — Ela lançou um sorriso maroto à srta. Schultz e seu magnetismo emanava como uma força palpável. — Tomei conta deles um dia, no verão passado, e sei bem. Por fim, dei bronca neles; excelente argumento: dar bronca.
Os garotos estavam pulando nos braços da mãe, berrando à toa, os olhos arregalados de crianças mimadas e desordeiras.
—    Ficamos esperando, ficamos esperando! — berrou Jon, batendo no ombro nu da mãe com o punho cerrado.
—    A senhora prometeu, prometeu! — berrou o irmão mais moço. Rufus ficou calado. Eram esses os filhos que ele desejara apaixonadamente, garotinhos meio mirrados, muito efeminados, parecidos demais com a mãe, com seu cabelo castanho e fino, os rostos pontudos, os narizinhos e bocas obstinados. Então, ele tinha tão pouca vitalidade que não conseguira produzir um menino nos moldes de Cornélia? Estelle chamava os filhos de “patrícios”. Quando ela via essas tolices, Rufus pensava na vitalidade jovial do pai, a força da mãe, o poder severo embora controlado do irmão, a luminosidade da filha.
—    0 que foi que a sua mãe prometeu, meninos? — ele perguntou, a voz forte e áspera.
—    Um conto de Natal, uma cantiga de Natal, para eles adormirem — respondeu Estelle, com voz ansiosa.
—    Pelo amor de Deus! — gritou Rufus. — Então, por que é que não veio aqui antes, Estelle? Para que esperar até os nossos convidados chegarem? Para eles adormecerem? Que imbecilidade!
Os meninos tinham medo do pai, mesmo na presença da mãe, e se aquietaram, agachados na cama. Começaram a choramingar. Voltaram os olhos para cima, procurando, de um lado para outro e por fim os pousaram sobre Cornélia, que tinha ido para junto das camas. Ela sorriu para eles, com afeição, e brandiu o punho.
—    E aqui está a irmã grandona, louca para dar uma surra em vocês, se derem um pio — disse ela, estendendo a mão e empurrando a cabeça de Jon, e depois a de Norman. Eles tinham por Cornélia um misto de aversão e rancor. Mas ela era uma excelente companheira de brinquedos brutos. — Vou quebrar todos os seus presentes com minhas mãos, se não se comportarem — ameaçou ela levantando Norman e jogando-o de novo nos travesseiros.
—    Jogue eu também! — gritou o mais velho, pulando, excitado. Cornélia fez
a vontade dele, os braços grandes e brancos parecendo mármore. Os dois meninos gritaram de alegria. Estelle ficou olhando, com ciúmes, insultada.
Rufus virou-se para a srta. Schultz e sorriu, com bondade.
—    Parece estar muito cansada, meu bem. Vá já para os seus aposentos e mando lhe levarem uma bandeja.
—    Mas os meninos! — exclamou Estelle. — Não podem ficar sozinhos, acordados.
—    E quem vai lhes fazer mal nesta casa? Deixe de ser boba, Estelle.
—    Mas nunca ficaram sozinhos, até adormecerem.
—    Pois vão começar hoje. Vá, srta. Schultz.
O rosto de Rufus estava muito congestionado e escuro.
Era curioso: sempre que o marido a recriminava ou censurava, os olhos de Estelle se voltavam maquinalmente para Cornélia, ou, se esta não estivesse presente, Estelle pensava nela. Cornélia estava bem acostumada com aquele olhar de maldade pura e isso a divertia. Ela saiu do quarto, depois de acenar alegremente para os garotos conformados, e Rufus e Estelle a acompanharam, Rufus calado, a cabeça de Estelle abaixada numa submissão humilde e sofredora.
E foi assim que Allan Marshall, o primeiro e único convidado que os esperava embaixo, viu Cornélia descendo a escadaria em curva sozinha, como uma coluna de fogo e fumaça em forma de mulher.
Rufus e Estelle ainda não tinham chegado ao topo da escada. Cornélia parou no meio da escadaria e Allan olhou para ela. De repente, irrompeu entre eles algo de intensamente poderoso e magnético, algo de um reconhecimento profundo. Cornélia parecia imobilizada e seus lábios se entreabriram. Sem querer, Allan foi para o pé da escada e sua mão direita se ergueu para ela. Então, devagar, passo a passo, ela desceu para junto dele, os olhos fixos nos dele, hipnotizada.
Ela estava no último degrau quando Allan lhe deu a mão e ajudou-a a descer. Ficaram ali calados, se olhando. Suas mãos só se separaram quando Rufus e Estelle desceram.
"Que pessoa estranha”, pensou Estelle. “Realmente, não é um cavalheiro, se bem que eu não possa precisar a diferença. Talvez porque as roupas sejam um pouco demais na moda, bem talhadas demais. Ele tem um ar tão especial”. Ela sorriu para Allan, amavelmente cumprimentando-o ao ser apresentada.
O sr. DeWitt me falou tanto do senhor, sr. Marshall. Um gênio. O senhor está famoso, não? Um inventor! — Ela conseguiu dar à palavra uma entonação de superioridade e condescendência aristocrática.
Rufus bateu no ombro de Allan, com entusiasmo.
—    Mais que isso, um dos melhores jovens advogados desse país.
E teremos prazer de tê-lo em nossa equipe. — Ele sorriu para o rapaz, com orgulho.
—    É o primeiro a chegar, sr. Marshall? — perguntou Estelle com doçura, transmitindo sua opinião de que um convidado que chegava na hora, e era o primeiro a chegar, não era muito aceitável na boa sociedade. Os olhos negros de Allan olharam-na com dureza.
—    Ouvi dizer que a pontualidade é cortesia de reis — respondeu, com
calma.
Estelle abanou o leque.
— É mesmo? — murmurou, vagamente. Não estava insultada. Sua mente não conseguia se deter sobre os outros por mais de alguns minutos e a convicção de sua importância a tornava invulnerável a qualquer grosseria. Ela não notou que Rufus sorria de leve e Cornélia francamente.
Allan aprendera o truque de conservar os dedos da mão direita sempre meio dobrados, de modo que o dedo médio mutilado não aparecesse. Conversando com Rufus, estava todo confiante. O interior da casa, embora despertasse sua admiração profunda e seu prazer, não o tinha impressionado. Ele sentia que chegara em casa, que aquela casa lhe pertencia e que um dia ele tomaria posse plenamente. Ele ficou ali, respondendo às perguntas afetuosas e paternais sobre o seu progresso nos escritórios de Peale, com uma voz sem tensão, sem constrangimento. Cornélia, ali de pé junto do pai, estava séria de novo, escutando atentamente. Seu coração jovem e calejado batia com uma rapidez desusada e ela sentiu uma umidade na raiz do cabelo e nas palmas das mãos.
Quando Allan olhou para ela, sorrindo de leve, seu coração acelerou mais ainda, em seus olhos apareceu uma umidade suave e o rosto viçoso se derreteu numa estranha ternura e empolgação. Ela olhou para ele, ofegante, e disse consigo: “Ele é esplêndido. É feroz. É forte, É implacável. É como eu. Ah, estava esperando por ele, toda a vida.”
“Ora, o que há com essa pequena?”, pensou Rufus. Ele tinha contado uma boa anedota a Allan e o rapaz estava rindo. Cornélia, que sempre apreciava as anedotas do pai, não tinha reagido de todo. Estava meio pálida, a boca aberta, como boba. “Aquele maldito conhaque”, pensou Rufus, irritado. Ele pegou o braço de Cornélia e disse, em voz alta:
—    Esta é uma festa sem cerimônias, Allan. Nada de grandioso. Mal temos noventa convidados; só velhos amigos, que gostarão de conhecê-lo. Vamos para a sala?
—    O salão principal, Rufus — disse Estelle, franzindo a testa depressa e depois sorrindo. Ela deu o braço a Allan; tinha necessidade de encantar a todos e olhou para ele. — O querido sr. drVitt é tão sentimental, querendo passar o Natal em casa. No entanto estaremos em Nova Iorque para o ano novo.
Rufus, alguns passos à frente, com a filha, olhou para trás.
—    E por falar nisso, vamos esperar que esteja lá, também.
Sua decisão, instantânea, tinha sido inspirada pela tentativa da mulher de tratar o rapaz com superioridade.
Sophia, “a megera grande e cinza”, como Allan sempre a chamara para si, já estava esperando junto ao fogo forte, no belo salão. Estava ali, séria, dura e ofendida.
—    Já estou aqui há meia hora, Rufus — disse, com sua voz rascante.
Cornélia se aproximou logo e lhe beijou a face. Imediatamente, o rosto lívido se abrandou.
—    Por que é sempre tão pontual, vovó? — implicou. — Ninguém chegou ainda, a não ser o sr. Marshall, de quem o papai lhe contou tanta coisa.
—    Realmente — disse Sophia, com altivez. Ela alisou o colo preto e rico com mãos enrugadas, cheias de joias. Examinou Allan, sem cumprimentá-lo. Um estrangeiro. Ela sempre sabia quando eram estrangeiros, com seus rostos morenos e aguçados, olhos penetrantes e boca dura. Marshall. Claro, quando conseguiam algum êxito trocavam de nome. Ela acrescentou: — Espero que se divirta, jovem.
Allan fez uma mesura respeitosa e disse:
—    Assim pretendo, sra. DeWitt.
Sophia olhou para ele com mais atenção. Rufus tinha sido discreto no que contara sobre Allan à mulher e à mãe. Um jovem inventor, advogado jovem e promissor, que ia fazer parte da equipe legal da estrada de ferro. Aquele foi um momento difícil para Rufus. A mãe raramente se esquecia de um rosto, ou nunca. A expressão superior de Sophia já estava ficando pensativa. Ela brincou com o colar discreto de pérolas e azeviche, em seu pescoço forte, embora enrugado.
—    Já não o vi em algum lugar, sr. Marshall? Parece muito conhecido.
“Só no seu jardim, sua bruxa velha”, pensou Allan. Ele fez outra mesura, com um sorriso de pesar devidamente respeitoso.
—    Creio que não, sra. DeWitt — murmurou. — Ou pelo menos, não que me lembre.
—    Claro, não costumo ir a Filadélfia — disse Sophia, satisfeita com ele, contra a vontade. É, havia alguma coisa de conhecido nesse rapazote. Então, de repente, pensou em Aaron. A expressão dos olhos, a mobilidade súbita da boca, a mesura que tinha algo de ironia... Aaron. — O senhor me fez lembrar meu querido falecido marido, rapaz — disse ela e sua voz estava tremendo. — Não que se pareça nada com ele, fisicamente. Creio que talvez seja o caráter. Rufus ficou surpreso.
—    Eu também achei — disse ele, olhando para Allan com uma afeição verdadeira. — Um velho alegre, meu pai, mas cheio de aço. Talvez mais alegre do que você, meu filho. Há algo de muito sombrio em você. — Ele afagou o ombro de Allan.
Até certo ponto, Sophia continuava muito impressionada com o nome e posição da nora. Mas isso em geral se exprimia por uma irascibilidade.
—    Esse vestido não é um pouco jovem demais para você, minha cara Estelle? — perguntou. — Veludo lilás?
—    Não sou muito velha — respondeu Estelle, com frieza. — E por falar em idade, mãe DeWitt, não acha que o vestido de Cornélia é exagerado para uma mocinha?
Sophia deu uma risada que Estelle achou muito vulgar. A velha pegou a mão de Cornélia, a fez afastar-se e a examinou.
—    Exagerado? Não. Por que ela havia de esconder ombros e braços como esses? Ah, ela é igualzinha a mim, com a idade dela. Se fosse homem, seria a imagem do pai aos vinte anos. Por falar nisso, você andou bebendo, menina? — E ela lançou um sorriso abatido a Cornélia.
Os olhos de Estelle começaram a se arregalar, horrorizados, mas nesse momento chegaram muitos convidados e Rufus, dando graças, foi para a porta da sala a fim de recebê-los, agarrando o braço da mulher com firmeza. Sophia, que na velhice passara a ser mais franca ainda do que na juventude, disse:
—    Fico contente ao ver jovens americanos solteiros aqui de novo, sr. Marshall. O senhor conheceu o marquês? Um caça-dotes terrível. Eu o desprezava e fiquei muito contente quando nossa Cornélia o mandou passear.
Cornélia gritou de tanto rir. Seu rosto estava vivo, entusiasmado, e seus olhos se voltaram para Allan, brilhantes, maliciosos, mas estranhamente acanhados. Ela estava inteiramente parada, mas outra vez, como ele já notara, dava um efeito de iridescência, de uma vibração constante e irreprimida.
Os convidados estavam entrando na sala, elegantes e cintilantes, conversando animadamente e acompanhados pelos anfitriões. As senhoras deslizavam sobre os belos tapetes antigos, os cavalheiros ao lado. Entre eles contavam-se Patrick Peale, Jim Purcell, Lydia e Laura.
Allan virou-se para eles, educadamente. Encontrou os olhos sérios de Patrick como um estranho, aguardando uma apresentação. Se Jim Purcell o fitou com um olhar vazio, Allan não se perturbou muito. Conhecia Purcell ligeiramente, pois uma ou duas vezes ele fora aos escritórios de Peale, tarde da noite. Reconheceu Lydia e Laura pelas fotos que vira nos jornais locais, de Filadélfia e Nova Iorque. Logo as dispensou: eram mulheres pálidas e desinteressantes, apesar de sua altura e graça. Cornélia anulava todas as outras mulheres, por mais joias e vestidos ricos que tivessem, ou por bonitas que fossem.
Mais convidados estavam chegando. Rufus e Estelle tornaram a afastar-se, deixando as apresentações a cargo de Sophia e Cornélia. Purcell resmungou alguma coisa e apertou a mão de Allan brevemente. Patrick murmurou:
—    Já nos conhecemos — e se afastou. Allan sorriu intimamente com desdém. Reparara no tom reprovador de Patrick. “Adoro esses amantes da humanidade”, pensou. “Fazem tudo pelo ‘homem do povo’, menos tratá-lo como igual. Esse Peale sente que ‘trai’ alguma coisa, ou pelo menos acredita sentir isso. Mas a verdade é que está magoado porque foi obrigado a me aceitar, socialmente."
Cornélia estava falando mais alto do que os outros convidados:
—    Hoje temos uma linda surpresa. O grande tenor da Metropolitan, Giovanni Monetti, vai cantar para nós. Chegou hoje de manhã, e imediatamente se escondeu no quarto, arrumando-se, sem dúvida, e fazendo todas as outras coisas que fazem os tenores.
Cornélia cintilava para os convidados. O marquês lhe dera o fora! Eles a espiavam, furtivamente, e ela quase desatou numa gargalhada. Algumas das moças eram de sua idade; brincara com elas em criança. Estavam com expressão condescendente que não aborreceu Cornélia, mas a divertiu. Viu também que elas ficaram muito cativadas por Allan, lançando alguns olhares interessados. Quando ele falava com elas, a voz dele as cativava e uma porção de jovens olhos se derreteram. Cornélia ficou satisfeita.
Estavam chegando mais convidados e a sala, quente, iluminada pelas luzes dos lampiões e do fogo, ficou ainda mais quente e perfumada. Os leques abanavam; braços alvos lampejavam; pescoços alvos se curvavam, flertando; as joias brilhavam e ofuscavam. Os cavalheiros de preto se moviam, como focas, com mesuras, risos decorosos, cumprimentos, elogios. Sophia ficou sentada rígida junto do fogo, só olhando para a neta.
Os homens se mostraram curiosos quanto aquele estranho. Tinham ouvido falar dele através de Rufus, que fora muito cauteloso.
Não conseguiam “localizá-lo”. Não se lembravam se Rufus lhes dissera que
ele era de Filadélfia, Nova Iorque ou Boston. O sotaque dele positivamente não era da Filadélfia, nem tampouco de Nova Iorque. Havia algo de “estranho” nesse sotaque. Boston, com certeza, pensou um cavalheiro. Mas onde ele ouvira aquele determinado tom em Boston? Irlandês! Só um tom ligeiro, mas sem dúvida irlandês. O cavalheiro disse a Allan:
—    O senhor é de origem irlandesa? Tenho amigos... Desculpe...
Allan inclinou a cabeça. O cavalheiro se afastou, pensativo. Os irlandeses agora invadiam os recintos sagrados de Boston. As belas casas antigas estavam cheias de lamúrias. Mas os irlandeses, alguns deles, estavam ficando bem ricos. Não eram socialmente aceitáveis, claro, se bem que alguns se aproximassem da periferia, com suas caridades para causas aprovadas.
Allan estava se divertindo. Estava tendo muito cuidado. Generalizava. Evitava responder a perguntas sobre sua origem, com a maior habilidade. Quando não entendia uma referência, não improvisava. Havia muito perigo nisso. Eles falaram de música e ele respondeu com palavras semelhantes, pois seu vocabulário era imenso, resultado de leituras constantes. Em menos de dez minutos, a despeito de ser “estranho”, tinha conseguido grande aprovação, de ambos os sexos. Habilmente evitou o assunto política, sobre o qual alguns dos homens se mostraram veementes. E ficou escutando, eternamente escutando. Nos fundos, Lydia e Laura o observavam, incertas; Purcell resmungava, sem dizer nada. Patrick, meio branco em volta dos lábios, ficou calado.
Da saleta menor vinham melodias deliciosas. Os empregados estavam começando a circular, carregando salvas com champanhe. Allan bebericou. De repente, Cornélia estava a seu lado, exultante, os olhos bailando e zombeteiros, enquanto ela o olhava. Quando ela começou a falar, Allan sentiu que alguém tocava em seu braço. Virouse e viu Patrick Peale. Patrick fez uma mesura para Cornélia e o vasto sorriso da moça desapareceu, com uma expressão de aborrecimento.
—    Perdão, Cornélia — disse Patrick, olhando para Allan. — Posso ter uma palavra com você, por favor? Por um instante?

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                                            CONTINUE
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3I
—    Por quê? — perguntou Cornélia. Ela levou a taça aos lábios e por cima dela seu olhar parecia ousado e fixo. Aquela criaturinha mirrada, com os olhos grandes e solenes! Esse homenzinho por quem ela se apaixonara no verão anterior! Sua humilhação lhe deu um aperto na garganta; ela deu o braço a Allan e repetiu: — Por que?
Patrick estava extremamente aflito.
—    Desculpe, Cornélia. É apenas um assunto de negócio — Ele parou e olhou bem para a moça. Ela estava com as faces vermelhas; teria bebido champanhe demais? Ela nunca olhara para ele com tanta aversão. Desde o noivado dele com Laura, ela lhe demonstrara uma afeição indiferente. Ele começou a corar. Cornélia sorriu e apertou mais o braço de Allan.
—    Negócios? — repetiu, a voz bastante arrastada. — O sr. Marshall ia dançar comigo e é véspera de Natal. Não é hora de negócios. — Ela virou-se para Allan. — Você dança, não é?
Allan estava observando os dois, atentamente. Agora não tinha nada a temer. Se Patrick estava constrangido, se achava que Cornélia ainda o amava, o tolo era ele. Allan pôs a mão sobre a mão em seu braço e, olhando para Patrick, respondeu à moça:
—    Danço. — Depois continuou, mais pausadamente: — Danço, sim. Andei tomando aulas diárias, há mais de três semanas. Sei valsar muito bem.

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Cornélia jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada ruidosa. Depois, sua fisionomia mudou e ela ficou quase feia. Ergueu a taça para Patrick e disse:
—    Posso dispensar o Allan por um momento. Mas, Pat, se eu fosse você, não contaria a ninguém a origem de Allan.
—    Não estou entendendo — respondeu Patrick, corando.
—    Ah, entende sim. Vi quando torceu o nariz ao vê-lo aqui. Papai e eu não vamos gostar nada, se você tentar menosprezar Allan.
Patrick olhou depressa para Allan, mas este não demonstrou nada senão prazer. Cornélia estava lhe afagando o braço; um pouco de champanhe tinha se derramado no vestido de veludo cinza.
—    Vá, Allan, deixe que o menino lhe conte a história dele.
Ela sacudiu a cabeça e se afastou, acompanhada por muitos olhares de admiração.
Patrick ficou olhando para o chão, por um instante, e depois disse, em voz baixa:
—    Naquele canto retirado, perto da árvore de Natal. Ainda não está acesa e não há ninguém por perto.
Allan deu de ombros e os dois rapazes, pedindo licença aos convidados por quem passavam, chegaram ao local relativamente isolado, onde um pinheiro gigantesco, brilhantemente enfeitado, as velas ainda apagadas, aguardava as doze badaladas. Allan postou-se de costas para a árvore e Patrick parou diante dele.
—    Então? — disse Allan. — Maquinalmente, procurou a cigarreira: depois, notando que não havia nenhum homem fumando, ocorreu-lhe que não ficava bem, diante das senhoras. Ele deixou cair a mão. Um empregado passou com outra bandeja de champanhe e Allan estendeu a mão e pegou uma taça. Levou-a aos lábios. "Insolente”, pensou Patrick. Allan estava bebendo o champanhe um pouco depressa demais, mas...

 

 

                                                                 

                                                   

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