Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AJUDANTE DE CIRURGIÃO / Patrick O'brian
O AJUDANTE DE CIRURGIÃO / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O doutor Stephen Maturin tem que empreender uma arriscada missão no mar Báltico, e Aubrey será o encarregado de levá-lo a seu destino. Espera-lhes uma difícil navegação, um dura climatologia e, ainda pior, a dura vingança dos franceses.
Os grandes homens podem permitir-se cometer anacronismos e, na verdade, não é desagradável ver à Criseida ler as vidas dos santos ou ao Hamlet ir para a escola em Wittenberg; contudo, o escritor comum não deveria tomar muitas liberdades com o passado, porque se o faz, sacrifica sua autenticidade e o voluntário abandono da incredulidade do leitor e provavelmente receberá cartas daqueles que dão mais importância do que ele à precisão. Faz muito pouco recebi uma carta de um instruído holandês que me repreendia haver polvilhado com água de Colônia a bodega de proa da fragata Shannon em meu último livro, porque, conforme dizia, citando o Oxford Dictionary, a primeira referência à água de Colônia na língua inglesa aparece em uma carta de Byron de 1830, mas acredito que se equivoca ao supor que nenhum inglês havia falado da água de Colônia até então. Apesar disso, sua carta me preocupou, sobretudo porque neste livro mantive deliberadamente a sir James Saumarez no Báltico alguns meses depois de seu regresso no Victory à Inglaterra e de haver deixado o comando do navio. Quando fiz o primeiro rascunho, peguei os dados do Dictionary of National Biography, que afirmava que o almirante ainda estava ao comando no período escolhido por mim, mas depois, ao compará-los com as memórias de um de seus subordinados, descobri que, na realidade, outro homem havia ocupado seu lugar. Contudo, queria falar de Saumarez, que é um magnífico exemplo de um peculiar tipo de oficial naval da época, profundamente religioso e muito competente além de hábil diplomático, e como já não podia reordenar as datas, decidi deixar as coisas como estavam, mas por um sentimento de respeito pelo Victory, esse nobre navio, omiti todas as referências a ele. Portanto, a seqüência histórica não tem uma ordem cronológica exata, mas confio em que o benevolente leitor me aceitará esta licença.

 

X
X
X

X
X
X

 

CAPÍTULO 1
Era um longo dia de verão, e no amplo porto de Halifax, Nova Escócia, entravam duas fragatas só com as gáveas desdobradas com a subida da maré. A primeira, que tinha içada uma bandeira com barras e estrelas debaixo de uma bandeira branca, havia pertencido à Armada norte-americana até pouco tempo; a segunda, que tinha içada uma bandeira descolorida, era a Shannon, vencedora no combate curto mas sangrento que havia mantido com a Chesapeake.
Na Shannon todos tinham uma idéia da recepção que lhes aguardavam, já que a notícia da vitória havia se propagado e numerosos pesqueiros, barcos de recreio, botes de barcos corsários e pequenas embarcações de diversos tipos se haviam aproximado da fragata muito antes de que chegasse na entrada do porto, e haviam seguido navegando em sua companhia enquanto seus homens agitavam no ar seus chapéus e gritavam: "Bravo! Hurra! Muito bem, Shannon! Hurra!". Os tripulantes da Shannon olharam com pouco interesse para aqueles homens e seus barcos, e somente os marinheiros da coberta inferior lhes cumprimentaram com a mão, ainda que sem entusiasmo; em troca, eles olharam a Shannon com grande interesse. Os que eram pouco observadores apenas observaram irregularidades na fragata, já que conservava intactos a maioria dos aparelhos, usava velas novas e a pintura estava quase igual ao dia em que havia zarpado daquele mesmo porto, há várias semanas; porém, os corsários, que eram muito observadores, notaram que no gurupés e nos mastros havia profundas fendas, que o pau da mezena havia sido reparado com barras do cabrestante e que no costado havia algumas balas incrustadas e alguns espigões tapando os buracos que outras haviam feito. Contudo, mesmo alguém que não fosse observador haveria visto o enorme buraco que havia da popa até a alheta de bombordo da Chesapeake, no lugar onde as balas da Shannon, uns cinco quintais de ferro, a haviam alcançado e a haviam atravessado longitudinalmente. Mas o que ninguém viu foi o sangue derramado naquela encarniçada batalha, tanto que havia saído aos jorros pelos embornais, pois os tripulantes da Shannon limparam ambas fragatas e fizeram o possível para deixar a coberta reluzente. Apesar disso, a julgar pelas condições em que se encontravam os mastros e as vergas da Shannon e o casco da Chesapeake, qualquer um que houvesse estado em uma batalha haveria pensado que ao final do combate as fragatas tinham o mesmo aspecto de um matadouro.
Na Shannon todos sabiam como iam ser recebidos, e por isso os marinheiros da coberta inferior haviam se apressado para pôr a melhor roupa que tinham para desembarcar: jaqueta azul com botões dourados, amplas calças brancas com fitas laterais, chapéu de palha de aba larga com uma cinta com o nome de Shannon bordado e brilhantes sapatos negros. Não obstante, surpreendeu-hes o barulho que ouviram quando se aproximavam do cais: primeiro os vivas de alguns grupos cujas vozes se sobrepunham e depois outros muito mais fortes e muito mais apreciados por eles, o coro dos marinheiros dos barcos de guerra ancorados no porto, quando a fragata passava pelo seu lado. E enquanto a fragata se aproximava de seu ancoradouro habitual e a maré subia, os marinheiros, desde as vergas e a exárcia, gritavam em uníssono: "Shannon, hurra, hurra, hurra!", fazendo estremecer o ar e o mar. Todo Halifax havia saído para dar-lhes as boas-vindas e para aclamar-lhes por sua vitória, a primeira vitória da Armada real em uma guerra desastrosa para ela desde o princípio, já que os norte-americanos haviam aprisionado três de suas fragatas mais potentes em batalhas em que só duas naves inimigas haviam se enfrentado, além de haver capturado outras embarcações menores. Obviamente, os marinheiros eram os que davam mais vivas, e sua alegria era tão grande como profunda havia sido a pena que essas derrotas lhes haviam causado, mas os milhares e milhares de jaquetas vermelhas e civis estavam muito contentes também, assim que quando o jovem Wallis, ao comando da Shannon, deu a ordem de carregar as velas, muito poucos puderam ouvir.
Ainda que os tripulantes da Shannon estivessem impressionados e satisfeitos, tinham uma expressão grave, já que seu querido capitão se debatia entre a vida e a morte em sua cabine e haviam sepultado ao primeiro oficial e a vinte e dois companheiros de tripulação. Além disso, na enfermaria e no rancho havia cinqüenta e nove feridos, muitos dos quais estavam à beira da morte, e entre eles se encontravam alguns dos homens mais populares da tripulação.
De forma que, quando o comandante do porto subiu pelo costado, observou que os tripulantes, muito esmerados mas muito sérios, formavam um reduzido grupo, e que no castelo de popa havia muito poucos oficiais para dar-lhe as boas-vindas. Havia gritado: "Muito bem! Muito bem, Shannon!" enquanto lhe subiam a bordo, tratando de fazer-se ouvir entre as ordens do contramestre, e ao chegar, perguntou:
- Onde está o capitão?
- Abaixo, senhor - respondeu o senhor Wallis -. Lamento dizer-lhe que está ferido. Tem uma profunda ferida na cabeça e apenas pode falar.
- Sinto muito... Sinto muito. Está muito grave? Uma ferida na cabeça... Conserva sua capacidade de razoamento? Sabe que conseguiu uma grande vitória?
- Sim, senhor. Acho que é precisamente isso o que lhe mantém vivo.
- O que diz o cirurgião? Está permitido ver-lhe?
- Não me deixaram entrar para ver-lhe esta manhã, senhor, mas mandarei perguntar como se encontra.
- Sim, por favor - disse o almirante e, depois de uma pausa, quis saber o que havia sido do primeiro oficial, que havia servido sob suas ordens como guarda-marinha, e perguntou -: Onde está o senhor Watt?
- Morreu, senhor - respondeu Wallis.
- Morreu! - exclamou o almirante, baixando os olhos -. O sinto muitíssimo... Era um excelente marinheiro. Tiveram muitas baixas, senhor Falkiner?
- Morreram vinte e três homens e há cinqüenta e nove feridos, senhor, um número de homens que representa a quarta parte da tripulação. Na Chesapeake houve mais de sessenta mortos e noventa feridos, e seu capitão morreu em nossa fragata na quarta-feira. - E em um tom mais baixo, acrescentou -: Permita-me dizer-lhe que meu nome é Wallis, senhor. O senhor Falkiner está ao comando da presa.
- Claro, claro - disse o almirante -. Foi uma sangrenta batalha, senhor Wallis, uma horrível batalha, mas valeu a pena. Sim, valeu a pena.
Então deu uma espiada pela coberta, muito limpa e ordenada mas cheia de marcas, depois pelos botes, dois dos quais já estavam reparados, depois pelos aparelhos, e em continuação observou durante uns momentos o pau da mezena, que também havia sido reparado.
- Assim que o senhor e Falkiner e os poucos marinheiros que lhes restaram trouxeram as embarcações. O senhor e seus companheiros de tripulação fizeram um bom trabalho, senhor Wallis. Agora queria que me fizesse um breve relato da batalha. Mais adiante, se o capitão Broke ainda não estiver recuperado quando cheguar o momento de entregar-me um relatório detalhado, será o senhor que o fará. Mas agora quero ouvir de seus lábios o relato.
- Pois bem, senhor... - disse Wallis e se interrompeu.
Era capaz de lutar com desenvoltura, mas não era um bom orador. Além disso, estava perturbado por achar-se frente a um almirante e em uma audiência junto da qual estava o único oficial norte-americano sobrevivente que podia manter-se em pé apesar de suas feridas. Fez um relato incompleto e deslavazado, mas o almirante lhe escutava com visível agrado, pois coincidia com o que havia ouvido e incluía muitos mais detalhes que os rumores chegados até ele. O que Wallis disse confirmou tudo o que ele conhecia: Broke, ao descobrir que a Chesapeake estava sozinha no porto de Boston, ordenou aos barcos que lhe acompanhavam que se afastassem e havia desafiado ao seu capitão para sair e lutar com ele em alto mar, e a Chesapeake havia saído do porto e havia enfrentado eles com valentia. Estavam em igualdade de condições e haviam lutado lado a lado e limpamente, sem estratagemas. Durante os primeiros minutos a Shannon havia arrasado o castelo de popa da Chesapeake com seus canhonaços, por consequência dos quais morreram ou ficaram feridos a maioria dos oficiais, depois havia disparado numerosas descargas contra a popa, e seus homens passaram para a abordagem e aprisionaram a fragata.
- E transcorreram só quinze minutos entre o primeiro disparo e o último, senhor.
- Meu Deus! Quinze minutos! Isso eu não sabia - disse o almirante.
Depois de fazer mais algumas perguntas, juntou as mãos atrás das costas e, cheio de satisfação, começou a dar passos em silêncio. De repente viu uma figura alta com um uniforme de capitão de navio junto aos oficiais de Infantaria de Marinha e exclamou:
- Aubrey! Sim, é Aubrey, estou certo!
Então avançou com a mão extendida, e o capitão Aubrey colocou o chapéu debaixo do braço esquerdo, tirou a mão direita da tipóia e deu ao almirante um aperto de mãos tão forte como pôde.
- Estava certo de que não podia confundir esse cabelo loiro, ainda que faz anos que... - disse o almirante -. Tem o braço ferido? Sabia que se encontrava em Boston, mas como chegou aqui?
- Escapei, senhor - respondeu Jack Aubrey.
- Muito bem! - voltou a exclamar o almirante -. Então estava a bordo quando se conseguiu essa grande vitória! Valia a pena perder um braço ou inclusive os dois para estar ali! Felicito-lhe de todo coração! Quanto gostaria de ter estado com os senhores! Lamento muito a morte do pobre Watt e o que ocorreu a Broke. Queria falar com Broke, se o cirurgião...
E assinalando a tipóia com a cabeça, acrescentou:
- Tem feridas de importância no braço?
- Não. A ferida foi causada por uma bala de mosquete quando a Java lutava com o inimigo. Se quer falar com os doutores, senhor, aí os tem.
- Como está, senhor Fox? - perguntou o almirante, virando-se para o cirurgião da Shannon, que acabava de sair pela escotilha principal com um acompanhante que, como ele, estava vestido com roupa de trabalho -. Como se encontra seu paciente? Está em condições de receber uma visita, ainda que só seja por alguns momentos?
- Bem, senhor, acho que em seu estado seria prejudicial que se excitasse ou fizesse um esforço mental... - respondeu o senhor Fox, com tom indeciso, movendo a cabeça de um lado para o outro -. Não lhe parece, colega?
Seu colega, um homem baixinho de tez azeitonada, que usava uma jaqueta negra manchada de sangue, uma camisa suja e uma peruca mal posta, respondeu:
- Sem dúvida, sem dúvida. - E com certa impaciência, acrescentou -: Não podem permitir-se visitas até que a poção faça efeito.
Então, sem dizer mais uma palavra, começou a afastar-se, porém o capitão Aubrey lhe pegou pelo cotovelo e, em voz muito baixa, disse:
- Espera, Stephen! Esse é o almirante, sabia?
Stephen virou para Aubrey seus olhos claríssimos, agora rodeados de um círculo vermelho porque havia passado muitos dias e noites quase sem descansar, e disse:
- Escute bem, Jack, tenho que fazer uma amputação e não me deteria nem para falar com o mesmíssimo arcanjo Gabriel. Só subi para pegar meu pequeno retrator, que está na cabine. E diga a esse homem que não fale tão alto.
Imediatamente se afastou dali e deixou atrás de si sorrisos nervosos e olhares ansiosos que iam dirigidos para o almirante, mas aquele homem tão importante não parecia haver-se ofendido. Depois de percorrer a fragata com a vista, o almirante olhou para a Chesapeake, e imediatamente notou-se que atrás de sua preocupação pelo capitão da Shannon e de sua pena pela perda de alguns oficiais e marinheiros, assomava uma grande satisfação. Então pediu a Wallis a lista de prisioneiros de guerra e, enquanto iam buscá-la, permaneceu com Jack Aubrey junto ao toldo improvisado que haviam colocado sobre a clarabóia da cabine do capitão e lhe disse:
- Estou certo de que já vi esse homem antes, mas não consigo lembrar de seu nome.
- É o doutor... - começou a dizer o capitão Aubrey.
- Espere! Espere! Já o tenho! É o doutor Saturnin. O almirante Bowes e eu fomos ao palácio para perguntar pela saúde do duque e ele saiu para dizer-nos como se encontrava. Saturnin... Estava convencido de que o recordaria.
- É ele mesmo, senhor. Stephen Maturin foi chamado para atender ao príncipe William e, pelo que sei, salvou-lhe quando tudo havia fracassado. É um médico extraordinário, senhor, e meu amigo íntimo. Navegamos juntos desde 1802. Contudo, acho que ainda não se acostumou com as normas da Armada, e às vezes, sem pretender, falta com o respeito.
- Realmente, não é muito respeitoso, mas não estou ofendido. Apesar de ter chegado a almirante, não me considero um Deus, sabe, Aubrey? Além disso, custaria muito conseguir que me pusesse de mau humor hoje... Que triunfo, Aubrey! Deve de ser um grande médico para que lhe hajam pedido que atendesse ao duque. Quanto desejo que possa salvar ao pobre Broke! - Então, olhando com admiração para uma jovem muito elegante que havia saído de trás do gorro provisório, disse -: Seu servidor, senhora.
A jovem levava uma bacia e ia seguida de um ajudante de cirurgião extenuado e manchado de sangue. Estava pálida, porém, naquele ambiente, sua palidez lhe favorecia, dava-lhe distinção.
- Diana - disse o capitão Aubrey, - permita-me que lhe apresente ao almirante Colpoys. Minha prima, a senhora Villiers. A senhora Villiers estava em Boston e escapou com Maturin e comigo.
- Seu mais humilde servidor, senhora - disse o almirante, fazendo uma reverência com a cabeça -. Quanto a invejo por haver presenciado uma ação de guerra tão notável!
Diana pôs a bacia no solo e fez uma reverência.
- Na realidade, fizeram-me permanecer sob a coberta, senhor... - disse e, com um intenso brilho nos olhos, acrescentou -: Mas gostaria de ter sido um homem para participar da abordagem com os demais!
- Não tenho dúvida de que teria matado os inimigos - disse o almirante -. Mas agora que se encontra aqui, pode ficar conosco. Lady Harriet ficará encantada. Minha falua está a sua disposição. Pode descer para terra agora mesmo, se o deseja.
- O senhor é muito amável, almirante - disse Diana, - e eu gostaria muito de visitar lady Harriet, mas ainda tardarei algumas horas em terminar o que estou fazendo.
- A admiro por fazer esse trabalho, senhora - disse o almirante, quem havia compreendido que tipo de trabalho era ao dar uma espiada para a bacia -. Mas quando terminar, deve vir para nossa casa. Aubrey, quando a senhora Villiers terminar, leve-a para nossa casa.
Seu radiante sorriso desapareceu quando um espantoso grito de dor, um grito que não parecia humano, chegou da enfermaria penetrando no ruído das alegres vozes como um faca. Mas o almirante havia estado em muitas batalhas e sabia o preço que havia que pagar.
- É uma ordem, Aubrey, ouviu? - acrescentou um pouco desgostoso e depois, voltando-se para o jovem tenente, disse -: Senhor Wallis, vamos ao nosso assunto.
As horas haviam passado. O capitão Broke fora levado para a casa do comissionado, e os tripulantes feridos, para o hospital. Ali todos, com excessão dos que estavam atormentados pela dor, descansavam tranqüilamente junto aos feridos da Chesapeake e às vezes trocavam com eles tabaco e rum de contrabando. Todos os prisioneiros de guerra norte-americanos foram tirados do barco, os poucos oficiais sobreviventes foram postos em liberdade sob palavra e muitos marinheiros enviados para o quartel. Os desertores britânicos capturados na Chesapeake haviam tido pior sorte que todos os demais, porque foram encerrados no cárcere, de onde não tinham nenhuma possibilidade de sair salvo para ir para a forca. Já não se via o lado obscuro da guerra, e a alegria e a ilusão haviam começado a dissipar a preocupação e a tristeza na fragata. Os tripulantes da Shannon poderiam descer para terra graças aos capitães dos outros barcos terem enviado voluntários suficientes para completar uma guarda, e a alegria dos recém chegados junto com os gritos procedentes dos cais arrancavam risadas dos mais jovens, que, aglomerados no corrimão, pisoteando-se uns aos outros, observavam como seus companheiros desciam para os botes com cuidado para evitar manchar de alcatrão suas reluzentes calças de dril.
- Prima Diana, quer descer para a terra? - perguntou Jack Aubrey -. Avisarei à Tenedos para que o capitão mande seu esquife.
- Obrigada, Jack, mas prefiro esperar por Stephen - respondeu Diana -. Não tardará muito.
Estava sentada sobre um pequeno baú adornado com rebites dourados, o único que havia levado consigo ao fugir de Boston, e olhava para Halifax por cima de um destroçado canhão de nove libras. Jack estava junto dela com um pé apoiado na carreta e também olhava para ali, mas sem prestar muita atenção, porque sua mente se ocupava de outras coisas. Estava cheio de gozo, pois apesar de não ter sido ele quem havia conseguido aquela vitória, era um oficial honesto, unido à Armada real desde sua infância, e as derrotas sofridas no ano anterior lhe afetaram tanto que eram muito difíceis de suportar. Agora já não tinha aquela carga. As duas fragatas haviam lutado um bom combate, a Armada real havia ganhado, no universo as coisas haviam voltado a ser como deviam, as estrelas haviam recuperado seu movimento natural, e havia muitas probabilidades de que assim que ele chegasse à Inglaterra lhe dessem o comando da Acasta, fragata de quarenta canhões, o que contribuiria para prolongar esse movimento. Além disso, quando desembarcasse correria ao correio em busca de suas cartas. Durante o tempo que estivera prisioneiro em Boston não havia tido notícias de Sophie, sua esposa, prima irmã de Diana, e ansiava saber dela, de seus filhos, de seus cavalos, de seu jardim, de sua casa... Mas atrás desses sentimentos havia uma pitada de ansiedade, ou talvez mais que uma pitada. Ainda que era um capitão extraordinariamente rico, que havia conseguido mais butins que a maioria dos capitães de sua mesma antiguidade - e mais que muitos almirantes também - havia deixado atrás de si um negócio com muitos problemas e sua solução dependia de um homem do qual não se fiavam em absoluto seu amigo Maturin nem Sophie. Esse homem, um tal senhor Kimber, havia assegurado ao capitão Aubrey que a escória das minas de chumbo que havia em suas terras poderia produzir mais chumbo e, além disso, mediante um procedimento que só ele conhecia, uma assombrosa quantidade de prata, o que permitiria obter grandes benefícios com um pequeno desembolso inicial. Contudo, as três últimas cartas que sua esposa lhe enviara e que Jack havia recebido nas índias Orientais, antes de ser capturado pelos norte-americanos em sua viagem de regresso para a Inglaterra, não falavam de benefícios senão de ações pouco claras que Kimber havia realizado sem autorização e a inversão de grandes somas na construção de caminhos, a escavação de poços profundos, ferramentas para trabalhar nas minas, uma máquina de vapor... Estava ansioso para que aquilo se esclaressesse e confiava em que assim fosse, porque Stephen Maturin e Sophie não sabiam nada de negócios e ele, em troca, tomou sua decisão baseando-se em cifras e fatos concretos, não por intuição, e conhecia melhor que eles o mundo que lhes rodeava. Desejava com veemência ter notícias de seus filhos: as gêmeas e o menino. Provavelmente George já falava... enquanto esteve prisioneiro não havia recebido nem uma só carta, e a falta de notícias foi uma das coisas mais duras que havia tido que suportar. Mas sobretudo desejava poder pegar a mão de Sophie e ouvir sua voz o quanto antes. Suas cartas, que tinham data anterior à guerra com Estados Unidos, chegaram a suas mãos quando estava em Java, e as havia lido tantas vezes que se rasgaram nas dobras, mas depois se haviam perdido no mar, junto com quase tudo o que possuia. Desde então, nem uma palavra. Desde os 110° de longitude leste até os 60 ° de longitude oeste, quase meio mundo, nem uma palavra. Ainda que sabia que esse era o destino dos homens do mar, pois tanto os barcos correio como outros meios de transporte eram inseguros, às vezes achava que a sorte lhe havia abandonado.
Tal vez a sorte lhe havia abandonado, mas Sophie não. Seu matrimônio se apoiava em uma base firme, em um carinho profundo e mútuo respeito, e era melhor que a maioria, ainda que em um de seus aspectos não era plenamente satisfatório para um homem como Jack Aubrey, cujos instintos básicos eram muito fortes. Já que Sophie era possessiva e um pouco ciumenta, fazia parte de seu ser. Certamente, ela não carecia de defeitos, mas tampouco ele, e às vezes lhe parecia que os seus eram mais fáceis de tolerar que os dela, mas esqueceu tudo isso quando em sua mente apareceu a imagem do pacote de cartas que encontraria ao atravessar as tranqüilas águas de Halifax.
- Diga-me, Jack, Sophie passou mal quando teve a última criança? - inquiriu Diana.
- Que? - perguntou Jack como se houvesse chegado de muito longe -. Se passou mal ao ter George? Oxalá não... Não me disse nada. Eu estava em Mauricio então. Contudo, acredito que às vezes se passa muito mal.
- Isso me hão dito - afirmou Diana e fez uma pausa -. Aí vem Stephen.
Poucos minutos depois o esquife se abordou com a Shannon e eles se despediram, mas da fragata, não dos tripulantes, posto que voltariam a ver-lhes nas festas que dariam na costa para celebrar a vitória, entre elas um baile que o almirante já havia anunciado. Diana não aceitou a guindola que o senhor Wallis lhe oferecia e desceu atrás de Stephen com a agilidade de um menino, e os tripulantes do esquife cravaram os olhos no mar para não ver-lhe as pernas. Depois, gritando, rogou aos homens que estavam na coberta que cuidassem de seu baú e, olhando sorridente para Wallis, que estava radiante de alegria, acrescentou:
- É o único que tenho, o pouco que tenho, sabe?
Sentaram-se no banco da popa e o esquife começou a navegar em direção à costa. Formavam um curioso grupo, já que entre eles existiam relações muito estreitas e diversas. Em outro tempo os dois homens se haviam disputado o carinho de Diana, e a amizade que os unia havia estado a ponto de romper-se. Diana havia sido o grande amor de Stephen, sua grande ilusão; contudo, na Índia lhe abandonara por um norte-americano muito rico chamado Johnson, com quem as relações haviam se deteriorado depois de sua chegada aos Estados Unidos, sendo insustentáveis depois de começar a guerra. Quando Maturin chegou a Boston como prisioneiro de guerra, haviam voltado a encontrar-se, e ainda que ele ainda a admirava por seu beleza e seu ímpeto, parecia-lhe que seu coração já não sentia nada. Não sabia se isso era devido a ela ter mudado ou a ter sido ele que mudara, mas sabia que a menos que seu coração voltasse a sentir, havia perdido definitivamente o motivo principal de sua existência. Não obstante, ambos haviam escapado juntos e haviam chegado à Shannon em uma lancha; Além disso, haviam se comprometido, mas Stephen só adquiriu esse compromisso porque acreditava que era seu dever ajudá-la, porque era um meio para que recuperasse a nacionalidade, e surpreendera-se por ela ter aceito de bom grado, sobretudo porque até então pensava que era a mulher mais intuitiva e perspicaz que conhecia. E se não houvesse sido pela batalha, agora seriam marido e mulher, ao menos conforme o Código Civil da Inglaterra, não conforme o Código Canônico (Stephen Maturin era católico), pois o capitão Philip Broke, a quem seu posto lhe conferia atribuições para casar-lhes no mar, esteve a ponto de fazê-lo, e agora Diana seria de novo súdita britânica em vez de ser nominalmente cidadã norte-americana.
Apesar de todos os sentimentos que se entremesclavam em seu íntimo, foram conversando animadamente até que desembarcaram no cais e assim continuaram até que chegaram à casa do almirante, onde se separaram. Jack foi entrevistar-se com o comissionado e depois iria buscar o correio e alojamento para ele e seu amigo; Stephen afastou-se sem dizer para onde ia, com sua única bagagem, um pacote envolto num pedaço de tecido, metido sob o braço; e Diana ficou em companhia de lady Colpoys, uma mulher bondosa e de pernas curtas.
Stephen não havia dito para onde ia, mas se seus acompanhantes se houvessem posto a pensar nisso, não teria sido difícil adivinhá-lo. O capitão Aubrey, pelo fato de haver navegado junto com o doutor Maturin durante muitos anos, sabia que o doutor, além de ser um médico excelente, que havia decidido fazer-se ao mar como cirurgião naval porque assim teria a oportunidade de fazer descobertas no campo da história natural (sua grande paixão, só superada em intensidade pelo seu desejo de derrotar Bonaparte), era um dos espiões mais apreciados no Almirantado; e Diana, pouco antes de sua fuga de Boston, vira-lhe pegar os documentos que continha aquele pacote de um dos quartos que ela e Johnson ocupavam, e ele justificou sua ação dizendo que os documentos seriam de interesse para um alto cargo dos Serviços Secretos que conhecia e que casualmente estava destinado em Halifax. Stephen sabia muito bem disso, mas conforme um velho costume e uma tendência inata de agir com muita discrição (o que lhe havia permitido seguir vivo), sempre era muito reservado. Conforme esse costume também, foi para o escritório de seu enlace dando uma volta e parando para olhar as vitrinas das lojas, e posto que em algumas delas se refletia a rua, podia ver o que estava atrás dele. Ainda que costumasse tomar esse tipo de precauções mecanicamente, agora as considerava mais necessárias do que nunca, pois sabia melhor do que ninguém que em Halifax havia alguns espiões norte-americanos, e provavelmente Johnson, furioso por ele lhe haver roubado sua amante e seus documentos, faria todo o possível para vingar-se.
Chegou ao escritório muito tranqüilo, sem que ninguém o seguisse, e se apresentou. Imediatamente foi recebido pelo capitão Beck, oficial da Infantaria da Marinha, que era o chefe dos Serviços Secretos na América do Norte. Nunca se haviam visto, e Beck o olhou com grande curiosidade, já que o doutor Maturin gozava de uma excelente reputação no departamento por ser um dos poucos membros que trabalhava voluntariamente e que era eficiente. Ainda que Maturin fosse metade irlandês e metade catalão e, por esse motivo, era um grande conhecedor dos assuntos catalães, Beck sabia que recentemente havia logrado dizimar os Serviços Secretos franceses fazendo chegar a Paris, através dos incautos norte-americanos, certa informação falsa e comprometedora. Como esse era um assunto que lhe concernia, Beck foi informado oficialmente dele, mas também havia ouvido relatos não oficiais de outras ações também notáveis que Maturin havia realizado na Espanha e na França, e inexplicavelmente Beck se sentiu decepcionado ao ver-lhe. Esse homem que agora se sentava do outro lado da mesa e tratava de desatar um pacote envolto em um pedaço de tela era magro, estava mal vestido e tinha um aspecto comum, e Beck, sem razão alguma, esperava que tivesse a figura de herói, e, naturalmente, não esperava que usasse óculos com cristais azuis para proteger-se do sol.
O que Stephen pensava dele também era pouco bajulador. Havia observado que Beck era um homem deforme, de gesto austero, olhos esbugalhados e lacrimejantes, cabelo grisalho e ralo, sem queixo, com o pomo-de-adão proeminente. Pelo tamanho de sua testa parecia inteligente, mas por seu aspecto não parecia capacitado para nada. "Talvez todos nós sejamos muito raros", pensou Stephen enquanto recordava de outros colegas seus.
Falaram da vitória durante um tempo. Beck falou com tanto entusiasmo que seu rosto macilento ficou corado e Stephen repetiu que não havia tido uma participação notável na batalha, já que esteve sob a coberta desde o primeiro canhonaço até o último, e assegurou que não sabia como se havia desenrolado nem quantos desertores britânicos formavam parte da tripulação do barco norte-americano nem quais métodos foram empregados para induzir-lhes a isso. Ao final Beck parecia decepcionado.
- Recebi seu aviso de que os franceses estavam em Boston - disse Stephen, esforçando-se para desfazer um nó -. Obrigado, pois quando me encontrei com eles já estava preparado.
- Espero que não tenha tido nenhum desgosto. Dizem que Durand é um homem decidido e sem escrúpulos.
- Pontet-Canet era pior. Era muito desagradável e me causou muitos incômodos durante certo tempo, mas eu soltei as braças e logrei que se detivesse.
O doutor Maturin se sentia orgulhoso de saber expressões da gíria marinheira. Às vezes as usava corretamente, mas tanto quando acertava como quando errava, sempre as dizia com certa ênfase para expressar sua satisfação, tal como outras pessoas o fariam ao dizer uma citação em grego ou latim no momento oportuno.
- Depois o fiz mudar de bordo em redondo - prosseguiu -. Tem uma faca? Verdadeiramente, não vale a pena conservar esta corda intacta.
- Como o conseguiu, senhor? - inquiriu Beck enquanto lhe dava uma tesoura.
- Cortei-lhe a cabeça - respondeu Maturin, tratando de cortar a corda.
O capitão Beck estava acostumado a ver sangue e morte tanto na guerra como na luta clandestina, mas sentiu um arrepio ao ouvir o tom indiferente de seu visitante, que havia tirado os óculos e lhe olhava fixamente com seus inexpressivos olhos claros, o única coisa que chamava atenção nele.
- Estou certo de que o senhor sabe da posição que Harry Johnson ocupa nos Serviços Secretos norte-americanos, não é verdade, senhor? - perguntou Stephen, desembrulhando por fim os documentos.
- Oh, sim, sem dúvida!
Não era possível que Beck desconhecesse as atividades de seu principal oponente no Canadá, pois desde que começou a desempenhar o seu cargo tivera que lutar contra a rede de espionagem ampla e bem organizada criada por Johnson.
- Muito bem. Peguei estes documentos em seu escritório e de sua caixa forte em Boston. Os franceses os consultavam, mas eu pus fim às suas maquinações.
Pôs os documentos um a um sobre a mesa do capitão. Entre eles havia uma lista dos espiões norte-americanos no Canadá e nas Antilhas e alguns comentários sobre eles; cartas dirigidas ao Secretário de Estado onde Johnson falava com todo detalhe das relações entre os Serviços Secretos franceses e os norte-americanos no passado e na atualidade; algumas folhas com códigos para usar em distintas ocasiões e com comentários sobre o caráter, a formação e as intenções de seus colegas franceses; projetos para o futuro; uma avaliação da situação dos britânicos nos Grandes Lagos...
Quando Stephen colocou o último documento sobre a mesa do capitão, já havia alcançado a talha de herói, havia chegado mais lá do que se esperava. O capitão Beck o olhou por cima da pilha de papéis com profundo respeito, como se o venerasse.
- É uma informação amplíssima, a mais ampla que alguém jamais reuniu. Nós lhes tiramos tudo, meu Deus! Esta lista sozinha bastará para manter ocupado durante semanas a um pelotão de execução. Tenho que refletir sobre todas essas coisas. Estes documentos me acompanharão no leito durante muitas noites.
- Estes documentos não, senhor, com sua permissão. Devem ser enviados para sir Joseph e sua equipe de criptógrafos.
Quando mencionou sir Joseph, o capitão fez uma reverência com a cabeça.
- Proponho enviar a maior parte deles para Londres no primeiro barco que possa levá-los. Podem-se fazer cópias, é claro, ainda que isso também represente alguns problemas, como o senhor bem sabe. Mas antes de falar das cópias ou de qualquer outra coisa, queria fazer uma sugestão e um pedido. Já ouviu falar da senhora Villiers?
- Diana Villiers, a amante de Johnson, essa inglesa que renegou de sua pátria?
- Não, senhor - respondeu Stephen, olhando-lhe fixamente e sem pestanejar -. Não, senhor. A senhora Villiers não era a amante de Johnson, simplesmente aceitou sua proteção em um país estrangeiro. Tampouco renegou a sua pátria. Não só o enfrentou energicamente quando tentou que ela tomasse parte na guerra contra seu própio país, como que foi ela quem fez o possível para que eu conseguisse estes documentos. Lamentaria muito que a julgassem equivocadamente.
- Sim, senhor - disse Beck depois de uns momentos de vacilação -. Não é minha intenção faltar com o respeito por essa dama, senhor, mas se não me equivoco, tornou-se cidadã norte-americana.
- Foi um ato irrefletido. Pensava que cumpria uma simples formalidade e que isso não afetaria em absoluto a lealdade ao seu país. Disseram que esse era um aspecto que facilitaria o divórcio do senhor Johnson.
Observou que o capitão o olhava com benevolência e inclusive simpatia e franziu o cenho. Depois, em um tom mais calmo, prosseguiu:
- Sem embargo, ela é nominalmente uma estrangeira inimiga, e a respeito disso queria dizer que, em minha opinião, deveria-lhe dar a apropiada certificação, como a qualquer cidadão de nosso país. Por outro lado, quero destacar que ela desconhece minha relação com o departamento. Eu a trouxe comigo, e exceto que hajam outros motivos, não seria correto molestá-la nem causar-lhe nenhum desgosto.
- Agora mesmo lhe darei, senhor - disse o capitão Beck enquanto tocava uma campainha -. Alegra-me que me o tenha dito, pois provavelmente Archbold haveria começado a segui-la antes do anoitecer. Tem havido muitas mulheres... mas a dama em questão é de uma categoria muito diferente.
Nesse momento entrou o ajudante do capitão Beck. Era quase tão feio como o velho e tinha um aspecto mais desagradável e menos inteligente que ele.
- Senhor Archbold, uma certificação X em nome da senhora Villiers, por favor - disse o capitão.
Logo o documento foi preparado, e Beck lhe pôs um selo oficial, o assinou e entregou para Stephen enquanto dizia:
- Mas permita-me advertir-lhe, senhor, que este documento só é válido em minha zona. Se a dama tivesse que regressar para a Inglaterra, possivelmente teria muitas dificuldades.
Stephen poderia haver acrescentado que pensava evitar essas dificuldades casando-se com Diana, pois assim ela recuperaria a cidadania britânica, mas preferiu reservar-se seus pensamentos. Além disso, estava muito, muito cansado pelo grande esforço que havia feito para escapar e por haver realizado seu trabalho como cirurgião em duas fragatas quase ininterrumpidamente desde o começo da batalha. Assim, não disse nada, e depois de um curto silêncio, Beck prosseguiu:
- Parece-me que o senhor queria fazer uma petição, não é certo?
- Sim. Queria pedir que autorize ao pagador a aceitar uma letra devedora contra um banco de Londres. Necessito de dinheiro urgentemente.
- Se necessita de dinheiro, doutor Maturin, rogo-lhe que não se preocupe com os sete e meio porcentos do pagador nem com toda essa papelada. Tenho fundos à minha disposição e com eles posso solucionar qualquer problema desse tipo imediatamente. Estão destinados a conseguir informação, e um só destes documentos seria suficiente para justificar que eu...
- O senhor é muito amável, senhor - disse Stephen, - mas devo dizer que desde que comecei a colaborar com o departamento, nunca aceitei nem sequer meio penique de Brummagem{1} por nada do que fiz ou consegui. Bastará com que escreva uma NOTA para o pagador, se não for inconveniente. Também queria que dois de seus homens que sejam muito fortes e discretos me acompanhassem, pois a fronteira não está muito longe e enquanto o senhor não acabe com os agentes citados na lista de Johnson não deveria andar sozinho por Halifax.
Precedido por um homem discreto de seis pés de altura, seguido de outro e acompanhado por um terceiro, Stephen foi até o escritório do pagador, fez a transação, saiu com um pequeno pacote no bolso e ficou pensando uns momentos. Depois, seguido de seu acompanhante, avançou pela rua com passo vacilante e parou na esquina.
- Estou perdido - disse.
- O que foi, senhor? - perguntou seu guarda.
- Estou perdido. Não recordo onde estou hospedado.
A rua estava quase vazia, porque todos os que tiveram a oportunidade de ir ao porto para ver a Shannon e a Chesapeake haviam partido. Naquele lugar quase deserto, os outros dois homens faziam o possível para passar desapercebidos e caminhavam sem pressa a considerável distância e às vezes adotavam uma postura negligente, porém, viram o sinal que seu colega fez com a cabeça e se reuniram com ele na esquina.
- O cavalheiro se perdeu - disse -. Não sabe onde está hospedado.
Todos olharam para Stephen.
- Esqueceu o nome de seu hotel? - inquiriu um.
- Esqueceu o nome de seu hotel, senhor? - perguntou o primeiro, que havia se inclinado para Stephen para poder falar-lhe ao ouvido.
Stephen, tentando sobrepor-se ao cansaço, esforçou-se para recordar enquanto passava a mão pela mandíbula coberta pela barba incipiente.
- Provavelmente está hospedado no hotel Bailey - disse outro -. Aí é onde se alojam a maioria dos médicos.
- É o Bailey, senhor? - inquiriu o primeiro, inclinado para ele outra vez.
- É o White? O Brown? O Goat and Compasses? - perguntaram os outros, dirigindo-se não ao doutor Maturin mas a seus companheiros.
- Já sei! - exclamou Stephen -. Já tenho a solução! Por favor, levem-me ao lugar onde se recebe a correspondência dos oficiais.
- Então temos que apressar-nos - disse o primeiro -. Inclusive temos que correr, senhor, porque se não o encontraremos fechado.
Alguns minutos mais tarde, depois de percorrer umas centenas de jardas de distância, o mesmo homem, ofegando, disse:
- Aí está! Como eu temia. As persianas já estão fechadas.
As persianas já estavam fechadas, mas a porta estava entreaberta. E ainda que a porta estivesse fechada, ainda assim se poderia ouvir em toda a rua a potente voz de marinheiro do capitão Aubrey dizendo: "Que diabos quer dizer com "depois da hora", folgado? Por Deus que...!".
Stephen abriu a porta, e a voz aumentou de volume. Então viu que Jack tinha agarrado o jovem pelo peitilho da camisa e que o sacudia e o chamava de "maldito bastardo".
O peitilho da camisa se desprendeu e Jack se voltou para Stephen.
- Diz que cheguei "depois da hora" - gritou.
- Não é só isso, senhor - disse o empregado para Stephen, como se falasse com seu salvador -. O senhor Gittins tem as chaves. Não há nada nas caixas postais e não posso abrir a caixa forte sem a chave, isso é óbvio.
Limpou as lágrimas com a manga e continuou:
- Além do mais, dentro não há nada para o capitão Aubrey, dou minha palavra de honra. Sempre estamos dispostos a comprazer aos cavalheiros que nos tratam com cortesia...
Stephen observou a caixa forte. Era um modelo antigo, com um fecho comum que provavelmente não resistiria mais que uns poucos minutos ao seu requerimento, mas nem aquele lugar nem aquele momento eram os adequados para demostrar suas habilidades.
- Alegro-me por encontrar-lhe - disse -. Esqueci o nome da pousada, isto é, do hotel onde nos hospedamos e estou morto de cansaço. Daria tudo o que tenho para meter-me na cama.
- Verdadeiramente, parece muito cansado - disse Jack, deixando cair o peitilho -. Sim, parece esgotado. Nos hospedamos no Goat, e vou levar-lhe lá imediatamente.
Então, ainda furioso pela decepção sofrida, voltou-se para o empregado e lhe espetou:
- Escute-me, senhor. Voltarei amanhã na primeira hora da manhã. Está me ouvindo?
Ao sair para a rua, Stephen agradeceu ao seu acompanhante, disse que podia ir e o encarregou de cumprimentar o capitão Beck em seu nome. Depois Jack e ele partiram sozinhos.
- Que tarde espantosa! - lamentou-se Jack -. Decepções a cada passagem... nehuma boas-vindas como merecem os heróis. A cidade está cheia de oficiais do Exército, e só pude conseguir um quarto para os dois no Goat.
- Que lástima...! - exclamou Stephen, que amiúde havia compartilhado a cabine com o capitão Aubrey, possivelmente a pessoa que mais roncava na Armada.
- E quando subi a colina para dar o relatório ao comissionado, ele não estava. Havia muitos homens esperando-lhe, e falei com eles por um tempo e me informei de algumas coisas desagradáveis. Harte está outra vez na Junta de Chefes do Almirantado, e esse tipo, Wray, é o vice-secretário interino.
"Virgem santíssima!", disse Stephen para si, e não sem motivo. Jack havia corneado o senhor Harte quando estava em Menorca e ainda era solteiro, e, para o general, os cornudos seguiam usando os cornos até muito depois de que lhe punham. Além disso, fazia algum tempo, quando o senhor Wray já tinha um alto cargo no Governo, Jack o havia acusado pública e justificadamente de fazer armadilhas jogando cartas. Wray não respondeu então a acusação da maneira costumeira, mas era provável que não suportasse aquele agravo toda a vida.
- Esperei todo o tempo que pude e depois fui até o escritório dos correios correndo... E lhe asseguro que correr, na minha idade, já não é o que era antes... Mas ao chegar tive outra decepção. Que tarde espantosa!
- Vem, esposo! - disse uma bonita prostituta na penumbra -. Vem comigo e lhe darei um beijo!
Jack sorriu e negou com a cabeça, e seguiu andando.
- Percebeu que ela me chamou de esposo? - perguntou depois de ter dado alguns passos -. Todas costumam fazê-lo. Suponho que é porque tomar parte de um matrimônio é o estado natural do homem e assim lhes parece que o que fazem não é tão... tão mau.
A palavra "matrimônio" recordou a Stephen que havia planejado levar para um sacerdote a certificação de Diana, aquele documento tão necessário, e fixar a data do casamento, mas apenas podia andar, e agora que o interminável período crítico havia passado, o cansaço acumulado durante os últimos dias, como uma espessa névoa, propagava-se por seu interior entorpecendo-lhe. Só o seu espírito de contradição seguia intacto.
- Não, não o é; pelo contrário, como disse um grande homem de uma época passada, é tão pouco natural que uma mulher e um homem formem um matrimônio que todos seus motivos para permanecerem juntos e todas as travas impostas pela sociedade civilizada para evitar sua separação apenas são suficientes para manter-lhes unidos.
- Silêncio! - exclamou Jack, detendo-se.
Perto do porto uma banda havia começado a tocar Heart of Oak e se ouviam muitas vozes cantando-a ou dando vivas. Por cima dos telhados se via a fumaça e o resplendor avermelhado de umas tochas, e pouco depois puderam ver-se as chamas no final da rua estreita, por onde atravessava uma procissão de marinheiros e civis fazendo cambalhotas. De todas as partes, muitas pessoas iam unir-se ao grupo, entre elas a bonita prostituta.
Aubrey recuperou imediatamente seu bom humor.
- Assim está melhor - disse -. Essa sim é uma recepção merecida pelos heróis. Apesar dos desgostos que tive, estou muito contente, Stephen. E amanhã quando tiver as cartas de Sophie, estarei mais contente ainda. Escute! Outra banda começou a tocar!
- A única coisa que peço é que dêem as boas-vindas aos heróis com bastante distância do Goat, que não toquem a menos de um estadio{2} do hotel - acrescentou Maturin -. Ainda que Deus sabia que poderia dormir mesmo que dez bandas estivessem tocando no corredor.
Daria no mesmo se tocassem ali ou debaixo de sua janela, porque os tripulantes da Shannon celebravam sua vitória com o mesmo ânimo com que a haviam conseguido, e seus alegres gritos foram ouvidas por todo Halifax até depois do amanhecer. Apesar disso, o doutor Maturin dormiu como um tronco até que um raio de sol entrou por entre as cortinas da colgadura da cama e lhe molestou tanto que o fez despertar finalmente. Tinha a mente limpa e estava muito cômodo e completamente relaxado. Haveria se afastado do raio de luz e ficaria ali abstraído em seus pensamentos, e talvez inclusive teria adormecido de novo, se não houvesse ouvido uma tosse forçada, a tosse de alguém que não quer despertar seu companheiro mas advertir-lhe de sua presença se já está acordado.
Afastou as cortinas e seu olhar se cruzou com o de Jack, que era muito triste. Jack estava de pé junto à janela e parecia muito mais alto, exageradamente alto, e Stephen notou que a causa era que havia tirado o braço da tipóia e agora o tinha estendido junto ao corpo e isso mudava suas proporções. Sorriu ao ver Stephen, desejou-lhe bom dia, isto é, boa tarde, e depois disse:
- Tenho algumas cartas para você.
Stephen ficou pensando por uns momentos. A visível tristeza de Jack, ao menos em parte, estava associada com a larga bandagem negra que tinha ao redor do braço, mas em parte com outras coisas também.
- Que horas são? - perguntou.
- Acabam de dar as doze, e tenho que ir - respondeu Jack, entregando-lhe um pequeno pacote de cartas.
- Faz muito tempo que você levantou, não é? - inquiriu Stephen e deu um espiada nos envelopes sem muito interesse.
- Sim. Cheguei a esse maldita escritório quando abriram as portas, e ainda que o chefe não estivesse, fiz com que o revistassem de cima abaixo... Não pode imaginar a desordem que há... Mas não encontraram nada para mim.
- Alguns barcos correio foram aprisionados ou afundados pelos norte-americanos, meu amigo.
- Eu sei, eu sei - disse Jack -. Mesmo assim... Bem, queixar-se não serve de nada. Depois fui dar meu informe ao comissionado. Recebeu-me com amabilidade e cortesia e me deu boas notícias de Broke: que havia podido passar uma hora sentado, que já falava com coerência e que talvez poderia fazer seu relatório. Além disso, me convidou para comer depois do funeral. Observei que algo o preocupava, e depois de um bom momento soube o que era: não pegarei o comando da Acasta, senão que terei que voltar para a Inglaterra. Estive fora do país por muito tempo e a deram para Robert Kerr.
A Acasta era uma excelente fragata de quarenta canhões, uma das poucas equiparáveis às potentes fragatas norte-americanas, e Stephen sabia o quanto Jack desejava estar ao comando dela naquelas águas. Tratou de encontrar algumas palavras que mitigassem o efeito daquele golpe, mas não encontrou nenhuma e se limitou a dizer:
- Sinto muito, Jack. Ouve, se tem dor no braço, ainda que seja muito pouco, deve subi-lo e colocá-lo contra o peito. - Então se estirou, bocejou e, tirando o gorro de dormir, acrescentou -: Você falou de um funeral, não foi?
- Sim, claro. Parece que ainda não está acordado, Stephen. Enterraremos o pobre Lawrence, da Chesapeake.
- Eu também devo ir? Posso arrumar-me em um momento... Gostaria de expressar o respeito que sinto por ele, se os costumes permitirem.
- Não, o costume é que somente os que têm a mesma classe assistam, além daqueles que têm a obrigação de ir e de seus própios oficiais. Tenho que ir, Stephen. Conseguiu dinheiro? Entre o funeral e a janta não terei tempo de ocupar-me disso, ainda que quisesse fazê-lo o quanto antes.
- Está no bolso de minha jaqueta, que está pendurada no armário.
Jack sacou o rolo de notas e pegou o que necessitava.
- Obrigado, Stephen - disse, e apertou o sabre e desceu a escada correndo.
Todos os capitães de navio que havia em Halifax estavam agrupando-se no cais da pólvora. Conhecia a maioria deles, mas só teve tempo de cumprimentar a um ou dois antes do relógio dar a hora. O caixão chegou pontualmente ao cais, escoltado por infantes de marinha, e o seguiu um cortejo integrado pelos poucos oficiais norte-americanos que podiam caminhar, os oficiais do Exército, os capitães formados de dois em dois, os generais e o almirante.
Andavam no rítmo de um débil toque de tambor e as animadas ruas ficavam silenciosas quando passavam. Jack havia tomado parte de muitas cerimônias desse tipo (o enterro de companheiros de tripulação, amigos íntimos, um primo seu e seus própios oficiais e guardas-marinhas), algumas delas muito comoventes, porém, nunca havia lamentado tanto a morte de um oficial inimigo como a de Lawrence. Simpatizava com ele e achava que havia levado sua fragata para combate com decisão e que lutou valentemente. O repetitivo toque de tambor e os passos que dava a intervalos o fizeram esquecer as amargas decepções sofridas naquela manhã; e a rigorosa ordem da cerimônia, as palavras rituais pronunciadas pelo pastor e o ruído da terra ao cair sobre o caixão lhe causaram uma profunda impressão. Depois as salvas, as últimas honras militares, tiraram-lhe de seus pensamentos, mas não apagaram essa impressão. Apesar da morte ser algo inerente a sua profissão, não podia esquecer a imagem do capitão Lawrence ocupando seu posto no castelo de popa justo antes das primeiras descargas devastadoras, e lhe molestava que seus companheiros houvessem começado a expressar sua alegria de novo. Isso não significava que houvessem fingido respeitar ao defunto nem que houvessem estado muito sérios até o final da cerimônia por hipocrisia, pois, em realidade, respeitavam ao capitão valente e competente que era um desconhecido para eles, a um oficial inimigo que havia atuado como lhe correspondia.
- O senhor o conhecia, não é? - perguntou Hyde Parker, da Tenedos, que estava ao seu lado.
- Sim - respondeu Jack -. Veio visitar-me em Boston. Capturou um de meus oficiais quando aprisionou a Peacock e o tratou muito bem. Estava então ao comando da Hornet, sabe? Era um homem valente, muito valente.
- É uma pena - disse Hyde Parker -. Mas não se pode fazer uma fritada sem romper os ovos, sabe? É impossível conseguir uma grande vitória sem derramamento de sangue, e esta foi uma grande vitória. Acredito que nunca me senti mais feliz que ao ver a Shannon com sua presa, e, sem dúvida, nunca gritei mais nem mais alto em toda minha vida. Ainda estou rouco como um rei de codornas.
A alegria que enchia a base naval se notou muito mais na esplêndida janta oferecida pelo comissionado, e Jack voltou a senti-la quando, depois de recolhida a mesa, contou para seus entusiasmados companheiros da Armada a memorável batalha repetindo todos os movimentos das fragatas com duas maquetes que havia pegado do estaleiro e especificando que velas e que partes do aparelho haviam sido derrubadas em cada momento.
Também se notou na janta oferecida pelo comandante do porto. Colpoys estava muito contente e cantou enquanto ele subia a escada, e a dona da casa estava radiante de alegria e falava muito, apesar de sua preocupação por ter que preparar um grande baile com pouca antecedência. Diana havia se contagiado daquela alegria (poucas mulheres gostavam mais de bailes do que Diana) e recebeu Stephen muito carinhosamente, beijando-lhe nas bochechas.
- Quanto me alegra que tenha vindo! - exclamou -. Agora posso dar-lhe o convite em vez de enviar-lhe. Estive ajudando lady Harriet a fazê-los desde o café da manhã. Virão a metade dos oficiais da Armada e um grande número de oficiais do Exército.
- Meu convite? - perguntou Stephen, olhando-a de certa distância com receio.
- Seu convite para o baile, querido. Sabe o que é isso, não? É uma grande festa onde a gente baila. Você sabe dançar, Stephen, não é mesmo?
- A minha maneira. A última vez que bailei foi em Melbury Lodge durante a paz. Tiveste a amabilidade de ser minha companheira e bailamos um minueto bastante bem. Espero que volte a ser amável comigo.
- Sinto muito, Stephen, mas não posso ir porque não tenho nada para vestir. Contudo, eu o verei da sacada, e poderá levar-me um refresco de vez em quando. Já verá como rimos dos que bailam.
- Não trouxeste nada em seu baú?
- Não tive tempo para escolher a roupa e estava trastornada. Além das jóias, só peguei algumas anáguas e meias e alguma outra coisa que tinha a mão. De qualquer forma, não podia advinhar que me convidariam para um baile.
- Há modistas em Halifax, Villiers.
- Ah, as modistas de Halifax...! - disse Diana e riu com vontade.
Era a primeira vez que ele a ouvia rir desde que haviam se encontrado nos Estados Unidos e isso lhe causou uma estranha impressão.
- Não... - prosseguiu -. Neste deserto só há uma esperança. Uma francesa muito astuta que lady Harriet conhece traz coisas de Paris de contrabando, e nesta manhã veio para mostrar-nos um monte delas, entre elas havia um vestido de lustrina azul que nós duas gostamos. Lady Harriet não pode colocá-lo, sem dúvida... Tem mangas curtas e é muito decotado pela frente e por trás, e, como ela mesma reconheceu, a faria parecer uma grande estátua. Escolheu um vestido de musselina cor merde d'oie que é espantoso, mas ao menos a cobre por completo, e lhe estão alargando. Eu teria comprado o azul, mas madame Chose pede uma barbaridade, e necessito que o pouco dinheiro que pude trazer dure muito. Sabe que cerzi um par de meias ontem à noite? Se estivesse em Londres ou em Paris ou inclusive na Filadélfia, desataria a enfiada de pérolas e venderia um par delas, mas neste deserto só compram imitações e filigranas. Eu entendo de jóias, e sei que seria uma estupidez vendê-las em Halifax. As pérolas de um nababo em Halifax! Pode conceber que ocorra algo assim?
Essas palavras teriam sido um pedido direto e sem delicadeza se qualquer outra mulher que não fosse Diana as tivesse dito. Desde que haviam se conhecido, ela sempre falava a Stephen com absoluta franqueza, com confiança, sem segunda intenção, como se fossem companheiros ou inclusive cúmplices, e se assombrou muito ao ouvir-lhe dizer:
- Temos dinheiro. Saquei dinheiro da conta de Londres, assim que pode comprar o vestido de lustrina. Mandaremos buscá-lo imediatamente.
Trouxeram-no e recebeu sua aprovação; e madame Chose se retirou com uma imensa soma. Diana pôs o vestido em frente de si e se olhou ao espelho que estava sobre a chaminé. Não tinha bom aspecto, mas ter um vestido novo lhe proporcionava um prazer idêntico ao dos anos em que vivia rodeada de luxos e avivava sua expressão. Então semicerrou os olhos e franziu os lábios.
- A parte de cima tem pouca graça - disse olhando-se ao espelho e assentindo com a cabeça -. Foi pensada para enfeitá-la com algo, talvez com umas pérolas... Colocarei os diamantes.
Stephen baixou a vista. Ela se referia a um colar de diamantes de cujo centro pendia um extraordinariamente formoso de cor azul claro. Era um colar que Johnson lhe havia presenteado no início de sua relação, e mediante um curioso processo mental ela o havia separado de sua origem, mas Stephen não. Contudo, sua dor não era por ciúmes mas porque lhe desgostava que houvesse dito uma imprudência. Sempre havia acreditado que Diana atuaria com tato, fizesse o que fizesse, e que não seria capaz de dizer nada ofensivo sem propor-se. Talvez havia se equivocado ou talvez a longa permanência de Diana nos Estados Unidos, entre os amigos ricos e libertinos de Johnson, combinada com sua profunda aflição, levara-a a converter-se em uma pessoa ordinária, refúgiada na vulgaridade, além de fazer-lhe adquirir um pouco de sotaque colonial e o gosto por bourbon{3} e tabaco. Mas Stephen recordava que Johnson tirara os diamantes de Diana e pensou que talvez ela, por havê-los recuperado e escapado com eles expondo-se a um grande perigo, considerava que havia conseguido o título de propriedade daquelas pedras preciosas. Parecia-lhe que havia atuado como um pirata que, ao vencer, havia se apropriado sem remorsos de seu butim sem importar-se com a sua procedência. Então levantou a vista e perguntou:
- Não acha que parecerão um pouco exagerados em uma festa provinciana?
- Não, em absoluto, Maturin - respondeu ela -. Aqui há algumas mulheres distintas, muito diferentes das demais. Muitas das esposas dos oficiais do Exército as têm imitado; vi os nomes de pelo menos uma dúzia delas quando estava fazendo os convites. E também há algumas esposas de marinheiros, por exemplo, a senhora Wodehouse, Charlotte Leveson-Gower e a própia lady Harriet.
Depois de sua primeira tentativa, Stephen não se ocupou mais do caso. Não tinha dúvida de que Diana sabia mais do que ele dessas coisas; Além disso, em Londres e na Índia ela havia mantido relações sociais com pessoas muito distitas e influentes. Colocou a mão no bolso e pegou alguns papéis. O primeiro não era o que estava buscando, mas sorriu ao vê-lo, e em vez de guardá-lo de novo, disse:
- Isto me chegou esta manhã, e é curioso que meia hora antes de recebê-lo eu estivesse sonhando com Paris.
Entregou a ela.
- Pedem que você dê uma conferência no Instituto da França. Oh, Stephen, não sabia que era um homem tão importante! Querem que lhes fale das espécies extintas da avifauna de Rodríguez. Que é avifauna?
- Aves.
- Que lástima que não possa ir! Teria gostado tanto! Talvez achem que é neutro ou que é norte-americano.
- Acredito que poderei ir. Como vê, ainda falta muito para esse dia, e se conseguirmos embarcar em um barco o bastante rápido, poderei ir. É seu segundo convite, da vez anterior senti muito não ter ido. Possivelmente esta seja a distinção mais importante que hajam outorgado. Além disso, poderei conhecer alguns dos homens mais brilhantes da Europa; os Cuvier provavelmente estarão, e algumas das coisas que observei nos cetáceos da região antártica assombrariam a Frédéric.
- Porém, como é possível que vá? Como é possível que vá a Paris em meio a uma guerra?
- Isso não é difícil desde que se tenha uma licença e um salvo-conduto. Os naturalistas não têm em conta esta guerra nem nenhuma outra, e a comunicação entre eles é freqüente. Por exemplo, Humphry Davy foi ali para dar uma conferência sobre o cloreto de nitrogênio e teve uma calorosa acolhida. Mas era esse o assunto de que queria falar-te.
Pegou outro envelope e, um pouco perturbado, o pôs em cima da mesa, justo frente a ela, dizendo:
- Isto é para grampos.
- Grampos? - perguntou ela surpresa.
- Sempre ouvi que as mulheres necessitam de uma considerável soma para grampos.
- Stephen, você ficou corado! - disse, rindo alegremente -. você ficou corado! Nunca pensei vê-lo assim, garanto-lhe. É muito amável, mas teve muita atenção comigo. Tenho vinte e cinco dólares, mais do que suficiente para comprar grampos. Fique com o dinheiro, querido. Prometo que lhe avisarei quando eu ficar sem um penique.
- Bem - disse Stephen, pegando outro documento -. Esta é uma certificação na qual consta que, apesar de ser uma estrangeira inimiga, pode entrar em território canadense e permanecer nele enquanto tenha bom comportamento.
- Eu me comportarei muito bem - disse, rindo de novo -. Mas isso é uma bobeira, Stephen, porque já estou em território canadense. As formalidades e os documentos oficiais sempre me pareceram uma grande bobeira, mas nunca havia visto um documento tão ridículo como este. Por graça de Sua Majestade, diz, e Sua Majestade, pobrezinho, não sabe que estou aqui. Quanta sandice!
- Não, mas seus servidores sabem. Este é um documento muito importante, Villiers, falo sério. Sem ele poderiam tirá-la daqui, tenha ou não tenha a proteção do almirante. Sabe-se que legalmente é cidadã norte-americana, e por isso poderia ser presa e inclusive repatriada.
- A quem importa a lei e todas essas sutilezas? Qualquer um pode ver perfeitamente que sou inglesa, sempre fui e sempre serei. Porém, diga-me, como você o conseguiu?
- Fui ao lugar adequado e falei com o oficial que se ocupa desta tipo de assuntos.
- Agradeço-lhe que tenha pensado nisto - disse ela.
E de repente gritou:
- Ah, Stephen, havia me esquecido...! Ficaram contentes ao ver os documentos que trouxe de Boston? Recordo que me disse que ia dá-los a um oficial dos Serviços Secretos do Exército. Espero que lhe tenham sido úteis.
- Por desgraça, parece que tinham mais informação política do que militar. Ainda que dizem que têm algum valor, penso que poderia ter escolhido outros muito melhores. Acho que não seria um bom espião.
- Não, não posso imaginar ninguém pior dotado para ser um espião do que você - disse Diana rindo e, olhando-lhe afetuosamente, acrescentou -: Não é que não seja inteligente, querido Maturin. Na realidade, é um dos homens mais inteligentes que conheço, mas se sentiria muito mais à vontade entre os pássaros. Quando penso como seria como espião...! Oh, meu Deus!
A alegria tingiu sua tez de rosa. Rara vezes Stephen a vira tão alegre.
- Você me dá a certificação? - perguntou Stephen -. Tenho que levá-la para o sacerdote. Não poderá casar-nos sem ela. O que acha de sexta-feira, muito cedo para amanhã? Suponho que não quer uma cerimônia muito complicada, mas Jack poderia levá-la até o altar. Por fim voltará a ser uma súdita britânica.
Toda a alegria de Diana desapareceu, e seu rosto empalideceu e depois tomou uma cor terroso que lhe dava um aspecto doentio. Levantou-se, caminhou de um lado para o outro da sala e por fim parou junto ao janelão e, retorcendo o papel, olhou para o jardim.
- Agora que tenho a certificação, para que tanta pressa? - inquiriu ela -. Que importância têm todas essas formalidades? Não pense que não quero casar contigo..., o que ocorre é... Por favor, Stephen, prepare-me um desses cigarros que faz com papel.
Stephen pegou um charuto, o cortou em dois e os envolveu em uma folha de seu caderno formando dois pequenos rolos, um para ela e outro para ele. Depois lhe aproximou uma brasa, mas ela, em vez de acendê-lo, disse:
- Não. Não posso fumar aqui. Lady Harriet poderia vir, e não quero que pense, isto é, que saiba que deu alojamento a uma mulher dissoluta que gosta de tomar uma taça de vez em quando e fumar tabaco. Acenda o seu e nos iremos para o jardim... Ali poderei fumar. - E, ao abrir a porta, acrescentou -: Sabe uma coisa, Stephen? Desde que me falou do efeito do bourbon na pele, não tomei nenhuma bebida alcoólica exceto vinho, e muito pouco; mas Deus sabe que agora eu adoraria tomar uma taça.
Passeavam muito juntos, ocultos pelos arbustos e seguidos por uma nuvem de fumaça pouco densa.
- Com tanta pressa - disse, - os preparativos do baile, as conversas com lady Harriet e a preocupação com o que ia usar estava um pouco trastornada. Esqueci onde estava. Maturin, tenho que dizer-lhe que gostaria de esperar, mas não quero que se desanime com isso... De todos os homens que conheço, é o único que nunca faz perguntas, que nunca é indiscreto, nem sequer quando tem o direito de sê-lo.
Tinha a cabeça baixa e olhava para o solo. Stephen nunca a vira tão aflita e perturbada, apesar de a conhecer há tantos anos e de que a havia visto em diferentes estados de ânimo. Ela estava de pé e o sol a atingia de cheio, e ele olhava seu rosto atentamente. Mas antes de que ele tivesse tempo de dizer "Não tem importância" ou "É muito benévola", apareceu um criado no final do caminho de cascalho. Que proximou-se coxeando e, com voz forte, disse:
- A honorável senhora Wodehouse e a senhorita Smith desejam vê-la, senhora.
Diana olhou para Stephen de tal maneira que parecia pedir-lhe desculpas e correu para a casa. Ainda que seu estado de ânimo era muito estranho, seus movimentos seguiam tendo a naturalidade e a graça que sempre agradaram a Stephen, e sentiu em seu íntimo uma onda de ternura, talvez a mesma que acompanhava ao seu antigo amor apaixonado ou talvez o fantasma daquele amor.
O criado ficou ali esperando Stephen, com a perna de madeira perfeitamente apoiada no cascalho. Em verdade, quem esperava por Stephen era um homem com um uniforme de criado de cor laranja e vermelho violáceo como o fígado, as horríveis cores da insígnia do almirante; seu ar despreocupado, sua longa trança e as cicatrizes de seu velho rosto de expressão alegre, que podiam notar desde um cabo{4} de distância, revelavam qual era sua verdadeira profissão.
- Espero que esteja bem, senhor - disse, tocando-se a sobrancelha com o nó dos dedos do dedo indicador.
- Muito bem, obrigado - disse Stephen, olhando-lhe com atenção.
A última vez que o havia visto tinha a cara pálida, suada e contraída para não gritar enquanto ele lhe cortava com o bisturi na Surprise, quando a fragata, destroçada pelos disparos de um navio francês de setenta e quatro canhões, navegava lentamente para o oeste com destino a Fort William.
- Mas você não era amputado - acrescentou.
- Não, senhor, sou Bullock, marinheiro do castelo e membro da guarda de estibordo da velha Surprise.
- Claro! - exclamou Stephen, apertando-lhe a mão -. O que queria dizer é que lhe salvei a perna, que não a cortei.
- Não, senhor - disse Bullock, - mas quando estava no Benbow perto dos abrolhos e uma bala me fez uma ferida tremenda, como o cirurgião não era o doutor Maturin, cortou-me a perna sem sequer pedir permissão.
- Certamente foi necessário - disse Stephen.
E era necessário dar apoio ao seu colega com um comentário, mas não parecia ter feito com convicção, talvez porque o cirurgião do Benbow quase sempre estava bêbado e quando estava sóbrio era exageradamente desajeitado.
O criado o olhou afetuosamente e disse:
- Espero que o capitão Aubrey também esteja bem. Ouvi que desembarcou da Shannon mais contente que o Papa e que parecia mais alto que antes.
- Está muito bem, Bullock, muito bem. Eu o verei dentro de pouco no hospital.
- Peço que lhe apresente meus respeitos, senhor. Sou John Bullock, marinheiro do castelo da velha Surprise.
Enquanto estaiveram em Boston como prisioneiros de guerra, Aubrey e Maturin haviam sido muito bem tratados por seus captores, e como não tinham dinheiro nem roupa de inverno, os oficiais da fragata norte-americana Constitution se ocuparam de proporcionar-lhes o quanto necessitavam. Agora nenhum dos dois queria deixar de corresponder a essas ações, e como Stephen esperava, encontrou Jack junto a um tenente norte-americano ferido.
- Recorda-se de um homem de sobrenome Bullock que navegava na Surprise?
- Sim - respondeu Jack -. Era marinheiro do castelo, e muito bom.
- Pediu-me que apresentasse seus respeitos ao seu velho capitão.
- Oh, que amável! - exclamou Jack -. John Bullock... Disparava seu canhão com a maior precisão que se possa desejar, acertava exatamente no alvo, mas era um pouco lento. Estava ao comando da brigada do canhão de proa de estibordo. Mas quero que saiba, Stephen, que o velho capitão também pode acertar no alvo, ainda que por causa dos funerais, da melancolia e da natural decrepitude, sinto-me como se fosse o avô de Matusalém.
- Come e bebe muito, meu amigo, e se preocupa muito. Caminhar dez milhas com passo ligeiro pelos úmidos bosques do Novo Mundo, que provocam tanto interesse, ajudará a deixar para trás a melancolia e se restabelecer, e Além disso, fortalecerá seus instintos básicos. Ponce de León pensava que a Fonte da Juventude se encontrava nestas terras... Por outro lado, deve ter em conta que em qualquer momento pode chegar um barco correio da Inglaterra.
- Acho que tem razão com respeito à Fonte da Juventude, Stephen, mas se equivoca com relaçã ao barco correio. Nenhum zarpará antes do dia treze, e com este vento do oeste soprando constantemente, tão cedo não poderão chegar. Além disso, não poderia caminhar hoje, ainda que ao final do percurso houvesse uma dúzia de Fontes da Juventude e uma sala onde beber suas águas. Tenho que fazer um trabalho muito desagradável na prisão, tenho que identificar os desertores ingleses que foram capturados na Chesapeake, quase todos marinheiros que fugiram de nossos barcos de guerra. Mas antes vou ver o ajudante do oficial de derrota norte-americano, o único oficial que não está ferido. Quer vir?
- Não. Os oficiais que combatem são assunto seu, naturalmente, os que não combatem, assunto meu. Preocupa-me sobretudo o cirurgião, um homem de extraordinária cultura.
O homem de extraordinária cultura estava sentado na deserta sala de operações com uma jarra de cerveja de pícea na mão. Parecia estar muito triste e cansado, mas sereno. Aceitou com agrado o oferecimento de Stephen e logo esteve falando com ele sobre alguns casos durante um tempo, sorvendo a bebida de vez em quando. Disse que a cerveja de pícea era um "duvidoso antiescorbútico" mas "um bom carminativo" e que era uma bebida que se agradecia em um dia como aquele. Quando terminou de beber, Stephen disse:
- Parece-me que o senhor me disse que antes de fazer-se ao mar se dedicava principalmente a atender as damas de Charleston, não é certo, senhor?
- Sim, senhor. Era um parteiro ou, se preferor, um accoucheur.
- Exatamente. Portanto, tem muito mais experiência que eu nessa matéria, e lhe agradeceria sua colaboração. Além dos sintomas mais comuns e claros, quais outros aparecem no princípio da gravidez?
O cirurgião franziu os lábios e ficou pensativo.
- Bem - disse, - não há nenhum totalmente confiável, sem dúvida, mas as faces raras vezes me enganam. A pele do rosto fica mais grossa e perde cor justamente ao princípio, e depois segue perdendo com rapidez; as pálpebras e a parte que rodeia as comissuras ficam cinzentos, e os lacrimais, esbranquiçados. E não podemos desprezar o método que nossas avós usavam, que consistia em examinar as unhas e o cabelo. Por outro lado, um médico que conheça bem a sua paciente pode guiar-se por suas variações de comportamento, sobretudo se é uma paciente jovem. Os mudanças repentinas e sem razão aparente, por exemplo, da tristeza e da ansiedade para a alegria, ou inclusive a exultação, são muito significativos.
- Agradeço-lhe muito por suas observações, senhor - disse Stephen.
CAPÍTULO 2
Durante os anos que havia servido na Armada real, Stephen Maturin havia refletido amiúde sobre as diferenças entre seus oficiais. Em suas viagens havia visto oficiais descendentes de família nobre e oficiais de origem humilde; navegara com alguns que nunca abriam um livro e com recitadores amantes de poesia; conhecera capitães que citavam os clássicos e outros que apenas podiam escrever um relatório oficial coerente sem ajuda de seu escrevente. Apesar da maioria provir da classe média, dentro desta havia tal quantidade de subníveis e subdivisões locais que somente um observador que se houvesse criado no seio da sociedade inglesa e conhecesse seu intrincado sistema classista poderia dizer com exatidão qual era sua origem e sua posição social atual. Também havia entre eles diferenças econômicas, sobretudo entre os capitães, pois os que tinham a oportunidade de encontrar-se com barcos mercantes, se eram decididos ou tinham sorte, podiam conseguir uma fortuna com butim ao cabo de várias horas de perseguição, enquanto que outros não tinham mais dinheiro que o de seu pagamento e viviam angustiados, com aperto, e sua situação era verdadeiramente difícil. Não obstante, todos tinham a marca de sua profissão: ricos ou pobres, rudes ou corteses, todos haviam sofrido o embate dos elementos e muitos deles o dos inimigos do Rei. Inclusive os tenentes recém nomeados para seu cargo haviam passado toda sua juventude no mar, e a maioria dos capitães de navio que ocupavam um lugar tão alto como Jack Aubrey no escalão haviam estado navegando quase ininterrumpidamente desde 1792. Todos tinham em comum a participação em uma longa, longa guerra, com períodos de interminável espera no vasto oceano e breves lapsos de furiosa atividade.
Suas esposas não tinham isso em comum com eles, certamente, e as diferenças entre elas eram muito maiores. Alguns marinheiros, empurrados por suas receiosas famílias, casavam-se com mulheres de sua mesma classe ou de classes superiores, mas outros, ao regressar ao seu país depois de estar longo tempo fazendo o bloqueio a Brest e Toulon, entre o tédio e os perigos, ou de passar três anos em uma missão nas Antilhas ou nas índias Orientais, jogavam-se nos braços das mais estranhas mulheres; e em muitos casos os matrimônios eram felizes, pois os marinheiros eram excelentes esposos devido a passarem muito tempo longe e a permanecerem no lar quando estavam em terra. Porém, indubtavelmente, quando suas esposas eram convidadas para um baile, formavam um conjunto que chamava a atenção.
Stephen os contemplava atrás de um grupo de plantas semeadas em vasos. Ainda que os marinheiros fossem de muito diversas compleições, o uniforme lhes fazia parecer um conjunto homogêneo, e o mesmo ocorria com os oficiais do Exército, apesar de que entre eles havia mais diferenças; contudo, as mulheres haviam escolhido sua própia roupa e o resultado era muito curioso. Entre elas havia reconhecido a uma antiga camareira da pousada Keppel's Head de Portsmouth que agora estava envolta em musselina rosa e enfeitava sua mão com um anel de casamento, e havia muitos mais rostos que lhe eram familiares, que talvez havia visto em outras pousadas ou em teatros ou em tabacarias.
Havia uma notável diferença entre seus vestidos, o que permitia distinguir às mulheres que podiam escolher e comprar os bons das que não podiam, mas havia uma diferença ainda maior entre suas jóias, cuja gama abarcava desde o pingente feito de granada da jovem esposa de um tenente que só recebia um pagamento de cem libras anuais até os rubis de lady Leveson-Gower, com os quais teria sido possível construir uma fragata de trinta e dois canhões e enchê-la de provisões para seis meses, ou as enormes esmeraldas de lady Harriet. Mas o que Stephen se interessava em observar naquela multidão não era isso, senão o comportamento das mulheres, em parte porque aprenderia algo sobre a adaptação da mulher a um grupo onde, aberta ou implicitamente, dava-se grande importância à classe, e em parte porque comprovaria sua teoria de que quanto mais licenciosa havia sido a conduta delas no passado, mais discreta, mais correta e mais prudente era no presente.
De vez em quando interrompia a observação e se voltava para o alto da escada para ver se Diana havia terminado de vestir-se por fim, assim que não lhe foi possível comprovar sua teoria. Somente chegou à conclusão de que as que tinham elegância a conservavam fossem quais fossem suas origens e as que não, atuavam com torpeza ou afetação ou ambas as coisas de uma vez, e notou que todas, inclusive estas últimas, divertiam-se. A imensa alegria pela vitória da Shannon havia se estendido a todos os ali reunidos e por isso quase todas as mulheres tinham um aspecto atraente e davam à diferença de seus vestidos e à classe de seus respectivos esposos muito menos importância do que o habitual. Em resumo, a alegria compartilhada e a fraternidade haviam borrado as diferenças que marcavam a divisão hierárquica da Armada, a origem social, a riqueza e a beleza e que às vezes eram fonte de conflito.
Mas essa não era um descoberta que valesse a pena ficar um longo tempo atrás daquelas plantas - que nem sequer provocavam interesse porque eram em sua maioria filicíneas e bromeliáceas - assim que Stephen avançou até o lugar por onde as pessoas iam e vinham, e quase imediatamente se encontrou com Jack, que estava acompanhado de um homem tão alto como ele, mas muito mais robusto, com o uniforme vermelho e dourado dos oficiais da Infantaria.
- Ah, está aqui! - exclamou Jack -. Estava lhe procurando. Conhece ao meu primo Aldington? O doutor Maturin... O coronel Aldington...
- Como está, senhor? - perguntou o oficial num tom que lhe pareceu adequado para dirigir-se a um homem vestido com o escuro uniforme de cirurgião naval.
Stephen se limitou a fazer uma inclinação de cabeça.
- Este vai ser um baile estupendo, pressinto - disse o coronel, voltando-se para Jack -. O último a que assisti foi o dos paroquianos de Winchester... Por certo que havia me esquecido de dizer-lhe que bailei com Sophie... Foi um baile horrível porque havia apenas trinta pares e não havia nenhuma jovem que valesse a pena olhar. Busquei refúgio na sala de jogo, mas perdi quatro libras e quatro peniques.
- Sophie estava no baile? - perguntou Jack.
- Sim, estava com sua irmã. Tinha muito bom aspecto. Bailamos juntos duas vezes e lhe asseguro que nos... - Então, olhando para o alto da escada exclamou -: Meu Deus! Que mulher mais bonita!
Diana começou a descer pela escada. Usava um vestido azul e seus deslumbrantes diamantes, que eclipsaram todas as outras jóias que haviam na grande sala cheia a transbordar. Sempre fora e tivera um porte elegante, e agora, ao descer devagar muito erguida, tinha um aspecto soberbo.
- Gostaria de dançar com ela - acrescentou.
- Eu lhe a apresentarei, se quiser - disse Jack -. É prima de Sophie.
- Se ela é prima sua, também é prima minha, de certa forma - disse o oficial -. Porém... Que me crucifiquem se essa não é Diana Villiers! Que demônios está fazendo aqui? A conheci em Londres faz anos. Não necessito que me a apresente.
Passou a andar imediatamente e foi abrindo passagem entre a gente como um boi, seguido de Stephen. Jack os contemplava enquanto se afastavam. Sentia uma grande pena ao pensar que Sophie havia ido àquele baile. Em qualquer outro momento lhe haveria alegrado ouvir que não se havia ficado em casa triste e melancólica, mas nesse momento a notícia se somava ao seu amargo desencanto por não haver recebido cartas suas e haver perdido a Acasta, e ainda que não fosse propenso a enfadar-se, agora estava ofuscado pela indignação e pensava que Sophie nunca lhe escrevia e se passava o tempo bailando apesar de que a última notícia que havia sabido dele era que estava prisioneiro nos Estados Unidos, ferido, enfermo e sem dinheiro. Geralmente ela escrevia pouco, mas nunca havia dado amostras de ser uma desalmada.
O coronel Aldington chegou aonde se encontrava Diana e, depois de lançar para Stephen um olhar de desaprovação, voltou-se para ela com uma expressão completamente distinta e disse:
- Talvez a senhora não se recorde de mim, senhora Villiers. Meu nome é Aldington. Sou amigo de Edward Pitt. Tive a honra de levá-la para jantar ao Hertford House e bailamos juntos na festa de Almack. Suplico-lhe que me permita acompanhá-la esta noite.
Enquanto dizia isto havia desviado o olhar do rosto de Diana e o havia cravado em seus diamantes, e depois voltou a dirigi-la para seu rosto, com uma expressão que denotava muito mais respeito.
- Désolée, coronel - disse -. Já estou comprometida com o doutor Maturin, e acho que também bailarei com o almirante e os oficiais da Shannon.
A princípio Aldington não pareceu entender o que ela havia dito, mas depois, como não era um homem bem educado, não podia encontrar uma forma de sair dessa situação garbosamente. Então ela acrescentou:
- Mas se me trouxesse um refresco em recordação dos velhos tempos, ficaria muito agradecida.
Antes do oficial do Exército voltar, a música havia começado. Formou-se uma comprida fila e o almirante abriu o baile com a noiva mais bonita de Halifax, uma jovem de dezessete anos loira e de imensos olhos azuis e tão alegre e cheia de vida que todos sorriam ao vê-la avançar para o centro movendo-se com agilidade.
- Não teria dançado com esse homem por nada do mundo - disse Diana quando ela e Stephen esperavam sua vez -. É um imaturo e um fátuo e o homem mais fofoqueiro que conheço. Olha! Encontrou um par, a senhorita Smith. Espero que ela goste de mexericos.
Stephen olhou ao redor e viu o coronel colocar-se na fila com uma jovem alta vestida de vermelho. Ainda que fosse muito magra, tinha seios abundantes e seu aspecto era elegante. Tinha o cabelo e os olhos negros, e ainda que não possuisse uma grande beleza, seu rosto era muito expressivo e sua tez estava rosada de excitação.
- Está com um vestido um pouco extravagante e se pinta muito, mas parece que se diverte bastante - continuou -. Este vai ser um baile magnífico, Stephen. Você gostou do meu vestido de lustrina?
- Ele lhe cai muito bem. E a cinta preta que lhe pôs ficou ótima.
- Estava segura de que notaria. Ocorreu-me no último momento, por isso me atrasei tanto.
Chegou sua vez e fizeram as evoluções da dança com a deviada formalidade, Diana com a graça de sempre e Stephen corretamente ao menos, e depois voltaram a unir-se. Diana, alçando a voz para ser ouvida entre o ruído das inumeráveis vozes e da música da orquestra, disse:
- Você dança muito bem, Stephen. Como estou contente!
Tinha a cara avermelhada pelo exercício e pelo calor da sala, e, sem dúvida, pela alegria que havia no ambiente como consequência da vitória, mas talvez também pela satisfação de ter conseguido as jóias e de usar um maravilhoso vestido. Contudo, Stephen a conhecia bem e sabia que era possível que atrás daquela felicidade aparecesse logo um sentimento completamente distinto. Quando voltaram a fazer as evoluções da dança, Stephen viu o ajudante do capitão Beck falando com o ajudante do almirante e se surpreendeu de que o horrível homenzinho já estivesse bêbado. Cambaleava e tinha o rosto coberto de manchas vermelhas, que contrastavam com o branco de seu uniforme. Cravou seus olhos vidrosos em Stephen e, depois de uns momentos, olhou para Diana e lambeu os lábios.
- Parece que todo mundo está muito contente - disse Diana -. Bem, todo mundo exceto Jack. Está ali, apoiado naquela coluna, com uma cara como se houvesse chegado a hora do julgamento final.
Nesse momento tiveram que fazer evoluções de novo, e quando a música terminou, Jack havia desaparecido daquele lugar. Afastaram-se dali de braços dados e se sentaram em uma conversadeira situada perto da porta, e até eles chegou uma brisa quente que trazia o agradável odor do mar.
Jack aproximara-se de uma mesa cheia de copos e garrafas à qual muitos ainda não haviam se aproximado. E depois de beber certa quantidade de champanhe, disse:
- Isto está muito bom, Bullock, mas quero que me prepare um copo de grogue.
- Sim, sim, senhor - disse Bullock -. Um copo de grogue. O que o senhor necessita é algo explosivo. Um homem pode cair-se ao solo de um enjôo com esse horrível líquido espumoso.
A mistura que Bullock preparou era verdadeiramente explosiva, e Jack afastou-se dali com a sensação de que o fogo lhe queimava as entranhas. Falou com vários oficiais em meio ao barulho, pondo sempre gesto sorridente, como requeria a ocasião, e depois parou perto da orquestra. Aquele lugar era mais tranqüilo, e pôde distinguir claramente a nota fora de tom que um músico gordo deu para que seus companheiros afinassem seus instrumentos. Pensou que fazia tempo que não tinha um violino debaixo do queixo e se perguntou se ainda teria agilidade nos dedos da mão do braço ferido. Nesse momento ouviu atrás dele uma voz que perguntava:
- Quem é esse homem tão bonito que está perto da janela?
Olhou para a janela, mas perto dela só havia dois guardas-marinhas desengonçados e com a cara cheia de espinhas, e depois ouviu que a voz dizia:
- Não, perto da orquestra.
Então pensou assombrado que provavelmente se referia a ele. E sua idéia se confirmou quando lady Harriet, em voz mais baixa mas ainda audível, disse:
- Esse é o capitão Aubrey, querida, um de nossos melhores capitães de navio. Quer que lhe o apresente?
- Oh, sim, por favor! Estava a bordo da Shannon, né?
Nesse momento passou entre eles um grupo de pessoas que tentava desesperadamente alcançar os sorvetes recém trazidos, e Jack cravou a vista na orquestra. Era um homem bonito, mas não se dera conta disso nem ninguém nunca lhe havia dito, e estava encantado de ficar ciente e de saber que alguém lhe achava atraente. Era bonito, sim, mas para alguém que não apreciasse muito a esbelteza e a juventude, que considerasse atraente um homem de costas largas e de pele muito branca, olhos azuis e cabelo loiro, e que não desse importância a que tivesse no rosto a cicatriz de uma ferida causada por um alfanje, que se estendia desde a orelha direita até a bochecha, e a de uma ferida causada por um pontiagudo pedaço de madeira, que descia desde a outra orelha até a mandíbula e continuava ao longo desta. Evidentemente, a senhorita Smith era alguém assim, pois quando ele se virou e foram apresentados, o olhar dela expressava tanta admiração que inclusive o homem mais vaidoso se sentiria satisfeito. Jack tinha predisposição para julgá-la com benevolência, e a olhou do mesmo modo e mostrou uma grande deferência por ela, mas realmente viu uma mulher jovem, bonita, alegre e impetuosa, como lhe agradava, e sobretudo se fixou em seu peito.
Imediatamente Jack lhe pediu que bailasse com ele a música que tocavam, e depois a seguinte. E na metade da segunda música, ela perguntou:
- Não acha que este é um baile estupendo?
- O melhor baile ao qual já fui - respondeu ele com convicção.
A atmosfera já não lhe era asfixiante, o ruído já não lhe parecia a conversa insossa de um grupo de tontos senão a de pessoas sensatas e agradáveis que celebravam alegremente uma vitória... e que vitória! Agora recordava com viveza a glória que havia alcançado. A orquestra lhe parecia muito boa, e sua forma de interpretar o minueto, excelente. Além disso, sua companheira bailava muito bem, e ele estava encantado em ter como companheira de baile uma mulher tão ágil e alegre como ela. Sim, o baile era estupendo. Aquela noite a alegria de ambos se nublou só por uns momentos, quando a senhorita Smith, assinalando para Diana e para Stephen, perguntou:
- Quem é essa mulher que está de vestido azul e com esses magníficos diamantes?
- É Diana Villiers, a prima de minha esposa.
- E quem é esse homem tão baixinho que está dançando com ela? Parece muito raro... Dançaram juntos várias vezes. De que é o uniforme que está usando? Não o conheço.
- Essa é a jaqueta do uniforme de cirurgião naval... Deve de ter esquecido os calções regulamentares. É o doutor Maturin e vai casar-se com ela.
- Mas não é possível que uma mulher tão bela e elegante se jogue nos braços de um simples cirurgião! - protestou ela.
Com tom convincente, mas não isento de amabilidade, disse:
- Nenhuma mulher que esteja nos braços de Stephen Maturin se arrojou para eles. Havemos navegado juntos durante anos e somos amigos íntimos. Tenho um grande conceito dele.
No momento em que terminou de falar, tinham que ir até o final da fila com as mãos dadas, e ela lhe apertou fortemente a mão. E quando chegaram ao lugar que lhes correspondia, ela disse:
- Certamente o senhor tem razão. Seguramente há muito mais nele do que podemos ver. E os cirurgiões navais devem de ser melhores que os de terra. O que ocorre é que ela é tão bela e elegante que... Não sabe senhor quanto admiro a beleza em uma mulher.
Jack disse imediatamente que ele também admirava a beleza em uma mulher e que estava muito contente porque sua companheira de baile era o melhor exemplo dessa beleza em toda a sala. A senhorita Smith não se ruborizou nem baixou a cabeça, aliás exclamou:
- Por Deus, capitão Aubrey!
Sem embargo, quando ele voltou a pegá-la na mão para dar-lhe uma volta, ela pegou a sua sem mostrar reprovação.
Quando ele a levou à mesa para jantar, já sabia muitas coisas sobre ela. Criara-se em Rutland e seu pai tinha uma matilha. Encantava-se com a caça à raposa, mas lamentava que muitos dos caçadores fossem uns libertinos. Estivera prometida, mas rompeu seu compromisso ao informar-se de que seu noivo tinha um considerável número de filhos naturais. E havia passado várias temporadas em Londres, na casa de uma tia que vivia na praça Hannover. Pelo que disse, Jack calculou que teria uns trinta anos, o que lhe surpreendeu. Agora vivia com seu irmão Henry e cuidava da casa. Ainda que seu irmão fosse membro do Exército, por ser curto de vista lhe haviam dado um posto como ajudante do delegado, um posto ignominioso, e agora se encontrava em Kingston ocupando-se do suprimento de apetrechos. Ela pensava que nem sequer os soldados que combatiam estavam muito melhor, pois marchavam em uma direção e logo em direção contrária sem conseguir quase nada, e que não podiam comparar-se com os membros da Armada. Nunca se emocionara tanto como no dia que vira a Shannon entrar no porto com a Chesapeake. Havia sentido uma grande admiração pela Armada e havia gritado. E Jack, ao ver seu rosto avermelhado e ouvir seu tom veemente, acreditou nela.
Enquanto jantavam, ela pediu que lhe contasse a batalha com todos os detalhes, e ele lhe contou com muito gosto. Havia sido uma batalha bastante simples porque somente dois barcos se enfrentaram e durou quinze minutos. Ela seguia seu relato com grande atenção, e para ele parecia que ela tinha muito senso comum e uma facilidade de compreensão infreqüente.
- Quanta alegria deve ter sentido ao ver que arriavam a bandeira! E que orgulhoso de sua vitória! Estou segura de que meu coração teria saltado dentro do peito - disse juntando as mãos e apoiando-as no peito, que cedeu sob sua pressão.
- Estava muito contente - disse -. Mas a vitória não foi minha, sabe?, foi de Philip Broke.
- Porém, não estavam os dois ao comando da fragata? São capitães os dois.
- Oh, não! Eu era simplesmente um passageiro, uma pessoa sem importância.
- Acho senhor é muito modesto. Estou segura de que passou para a abordagem com o sabre na mão.
- Bem, arrisquei-me a passar para a outra coberta e lutei ali durante uns minutos, mas a vitória foi de Broke e só de Broke. Brindemos a ele.
Encheram suas taças até a borda, e ao brinde se uniram os outros comensais, que eram casacas vermelhas, mas tinham boa vontade. Um deles já havia desejado tantas vezes uma pronta recuperação ao capitão Broke que poucos minutos depois deste brinde seus companheiros lhe levaram, deixando-os sozinhos na mesa. A senhorita Smith voltou a falar da Armada. Disse que não sabia quase nada dela, desgraçadamente, porque sempre havia vivido longe do mar, mas que adorava ao pobre Nelson e que havia usado luto durante vários meses depois da batalha de Trafalgar. Perguntava-se se se o capitão Aubrey compartilhava de sua admiração e se havia conhecido esse grande homem.
- Sim, compartilho. E o conheci - disse sorridente e a olhou com benevolência, pois o caminho mais curto para chegar ao seu coração era expressar amor pela Armada e admiração por Nelson -. Tive a honra de jantar com ele quando era um simples tenente. Na primeira vez me disse apenas: "Se importaria de passar-me o sal?", mas o disse com grande amabilidade. A segunda vez disse: "Não importam as táticas, o que importa é atacar com decisão".
- Era um homem admirável! - exclamou entusiasmada -. "Não importam as táticas, o que importa é atacar com decisão". Isso é exatamente o que eu penso. Essa é a única forma de alguém com brio agir. Compreendo tão bem a lady Hamilton!
E depois de uma pausa, durante a qual comeram lagosta fria, inquiriu:
- Mas, por que ia de passageiro na Shannon?
- Essa é uma longa história - respondeu Jack.
- Não será muito longa para mim - disse a senhorita Smith.
- Um pouco mais de vinho? - perguntou Jack, pegando a garrafa.
- Não, obrigada. Para ser-lhe franca, a cabeça me dá voltas. Ainda que provavelmente seja pelo baile ou a música ou por estar encerrada ou por estar sentada junto de um herói. Nunca antes havia me sentado junto de um herói. Quando acabar de comer a lagosta, talvez possamos dar um passeio ao ar livre.
Jack assegurou que já havia acabado de comer e que somente estava brincando com a comida, e acrescentou que ele tampouco podia suportar estar encerrado ali.
- Então saiamos por essa porta de vidro. Alegro-me de ir porque assim posso escapar do odioso coronel Aldington, com quem estava meio comprometida para dançar a próxima música.
No jardim, ela agarrou seu braço e disse:
- O senhor se dispunha a contar-me por que ia de passageiro na Shannon. Por favor, comece do princípio.
- Para começar do princípio terei que falar do Leopard, o velho Leopard, um navio de cinqüenta canhões distribuídos em duas cobertas. Quando terminaram de reconstruí-lo, deram-me o comando e me ordenaram ir para Botany Bay e depois seguir até as Ìndias Orientais. Teria sido uma viagem simples, mas tivemos má sorte. Tivemos uma epidemia quando estávamos na zona de calmas equatoriais; depois um navio holandês de setenta e quatro canhões nos perseguiu, obrigando-nos a desviar-nos para sudeste do Cabo e a penetrar em uma zona de altas latitudes, onde, rodeados de uma espessa névoa, chocamos com uma montanha de gelo e nosso leme quebrou. Estávamos meio afundados e tivemos que seguir avançando para sudeste para tentar chegar a alguma das ilhas próximas, mas não estávamos seguros de poder consegui-lo porque os marinheiros estavam bombeando água dia e noite. Mas conseguimos, e para não fazer o relato muito detalhado, direi que reparamos o Leopard, pusemos um leme novo e fomos para Nova Holanda e depois atravessamos o estreito Endeavour e nos reunimos com o almirante Drury nas imediações de Java.
- Java! Fica nas Índias Orientais, né? Que romântico! Especiarias e gente passeiando em palanquins! E aposto que também há elefantes. Quanto o senhor tem viajado! Quantos lugares do mundo já viu! As mulheres de Java são tão bonitas como dizem?
- Havia algumas mulheres bonitas, realmente, mas nenhuma podia comparar-se com as de Halifax. O almirante teve grande satisfação em saber o que havia ocorrido com o navio holandês de setenta e quatro canhões...
- Por que? O que lhe ocorreu?
- Nós o afundamos. Nessa zona, quando uma embarcação tem o vento em popa, um canhonaço acertado pode fazer maravilhas. Estou falando da zona dos 40° de latitude, já sabe, onde os ventos são muito fortes. Quando lhe derrubamos o mastro do traquete, virou para barlavento e afundou. Mas o almirante não ficou satisfeito com o estado em que se encontrava o Leopard. Não tinha canhões, porque os haviamos jogado pela borda, e tinha as balizas tão deterioradas por causa do gelo que não poderia suportar o peso nem de um só, assim que já não servia para nada exceto para usar como transporte. Mas isso não me preocupava, pois me haviam designado outro barco, uma fragata chamada Acasta. Então ele me ordenou voltar para a Inglaterra na Flèche, e a viagem foi estupenda...
A senhorita Smith deu um grito e se refugiou em seus braços. Um sapo cruzava devagar a vereda e sua pele brilhava com a luz que saía pelas janelas.
- Ah, quase o toco! - gritou ela.
Jack ajudou o sapo a cruzar com o pé, ainda que com certa dificuldade porque ela o rodeava com seus braços. Quando o sapo passou, ela disse que os répteis e as arranhas lhe produziam uma grande repugnância e não podia suportá-los. Depois riu de tal maneira que Jack teria pensado que isso era uma amostra de superficialidade se ela houvesse sido uma mulher estúpida, e sugeriu que procurassem um assento entre as árvores. Contudo, não havia nem um lugar vazio entre os louros, já que a alegria da vitória, o vinho, a boa comida e talvez também o calor da sala de baile haviam feito muitos outros convidados pensarem igual; tampouco o havia na estufa, e retrocederam justo a tempo de cometer uma grave indiscrição. Tiveram que contentar-se com um banco próximo ao relógio de sol, e dali, entre o calor daquela noite de verão e do odor das plantas e das flores que exalam seu perfume à noite, Jack observou a Ursa Menor e, sobre tudo, os guardiães do pólo para saber as horas, e ao ver que de vez em quando ficavam quase ocultos pelos bancos de névoa que a brisa trazia do mar, disse:
- Acho que cairá um aguaceiro muito breve.
Mas ela não prestou atenção a sua observação e disse:
- O senhor estava dizendo que a viagem havia sido estupenda.
- Sim. Avançávamos pelo menos duzentas milhas por dia, e navegávamos sem dificuldade até que dobramos O Cabo e cruzamos o trópico. Mas então um maldito..., um horrível sucesso ocorreu: aconteceu um incêndio, o fogo se estendeu até a linha de flutuação e a fragata explodiu.
- Oh, capitão Aubrey!
- Então nossos botes se separaram na escuridão, e posto que não levávamos provisões, passamos muito mal até que fomos recolhidos pela Java nas imediações do Brasil. Contudo, nossos problemas não haviam terminado, pois alguns dias depois a Java se encontrou com o barco norte-americano Constitution, e como a senhorita recordará, os norte-americanos a destruiram.
- Lembro muito bem! Todos choraram ao ouvir a notícia. Mas diziam que isso não era justo porque a Constitution não era realmente uma fragata ou tinha mais; canhões ou algo assim.
- Sem dúvida alguma, é uma fragata, uma potente fragata, e ganhou a batalha em bom combate, asseguro-lhe. Em quaisquer circunstâncias teria sido um osso duro de roer, e nessa ocasião utilizou seus canhões melhor do que nós e nos capturou.
- Mas a bonita e nobre Shannon compensou isso - disse ela, pondo-lhe a mão no joelho.
- Claro! - exclamou Jack, rindo satisfeito -. E agora me custa recordar a tristeza que estávamos todos naquele momento. Mas os norte-americanos nos trataram bem depois que acabou a batalha. Enviaram para a Inglaterra em um barco com bandeira branca a maioria dos tripulantes da Java, e os feridos foram levados para Boston. Maturin teve a amabilidade de oferecer-se voluntariamente para acompanhar a mim e aos outros pacientes...
- O senhor foi ferido? - inquiriu ela.
- Bem, só tinha uma ferida que me causara uma bala de mosquete - disse -. Mas a ferida piorou, como costuma ocorrer, e se não houvesse sido por ele, haveria perdido o braço. Assim que nos retiveram em Boston como prisioneiros de guerra, compreende? E como tardavam em trocar-nos, por uma ou outra razão, e a situação não nos parecia boa, Maturin e eu pegamos uma lancha junto com Diana Villiers...
- Mas, o que estava fazendo ela ali?
- Estava passando uma temporada com uns amigos quando estourou a guerra. Nos fizemos ao mar com o fim de encontramos com a Shannon quando chegasse na entrada do porto para fazer um reconhecimento. Broke nos recebeu amavelmente a bordo e se ofereceu para trazer-nos a Halifax, por isso...
A chuva que ele prognosticou, e que também havia sido anunciada pelo sapo, começou a cair, e ambos entraram na sala correndo. Não foram muitos os que se fixaram neles, pois eram um casal a mais entre tantos outros e, além disso, foram precedidos por uma jovem que provocava muito mais comentários porque seu vestido branco tinha a parte de trás cheia de pequenos pedaços de musgo e verdes manchas de grama; contudo, não passaram desapercebidos. O coronel Aldington lhes olhou com uma mistura de ira e rancor, e depois, durante uma breve ausência da senhorita Smith, quando Jack bebia um copo de ponche feito com rum para eliminar a sensação que a umidade lhe produzia, disse:
- Olha, Jack, acho muito bom que se divirta, mas me tirou a minha acompanhante. Eu lhe vi levá-la justo no momento em que ia pegá-la para dançar... E tive que ficar ali de pé como um imbecil enquanto durou essa música, e também a seguinte. Isso não é justo. Não, isso não é justo.
- Somente os valentes merecem o justo - disse Jack.
E posto que gostou da frase, com voz grave, mas incrivelmente melodiosa, cantou:
Somente os valentes,
somente os valentes
merecem o justo.
- Ah, ah, ah! Que dize disso, Tom? - perguntou.
- Não sei o que insinua com "os valentes", mas se essa é sua idéia de "o justo", direi que não é igual à minha - respondeu furioso o coronel -. Isso é tudo, ainda que poderia dizer mais coisas. Poderia dizer que o que ouvi não é muito diferente do que esperava ouvir. Poderia falar da reputação e advertir-lhe que tenha cuidado de não queimar os dedos, mas não o farei. E poderia aconselhar-te que largasse esse copo e não bebesse mais porque já bebeu bastante, mas tampouco o farei. Sempre foi muito teimoso...
O regresso da senhorita Smith impediu que Jack seguisse pensando na resposta que ia dar-lhe. A música começou outra vez, e quando ambos começaram a dançar, ele se pôs a pensar nas diferentes formas com que o álcool afetava os homens. Uns ficavam tristes e criticavam os outros, outros se tornava brigões e chorões... Ele, por exemplo, não lhe afetava em nada exceto em que lhe fazia achar os outros mais simpáticos e desejar que o mundo fosse muito mais feliz. "Mas não acho que possa ser muito mais feliz do que já é", pensou sorrindo enquanto olhava para a multidão, entre a qual bailava a jovem do vestido manchado de verde, que não notava que estava revelando seu segredo e contribuia para aumentar a alegria geral.
- Jack e a senhorita Smith se fazem notar, não lhe parece Maturin? - disse Diana na metade da noite -. Bailam juntos todo o tempo exceto quando se escondem nos cantos.
- Espero que estejam se divertindo - disse Stephen.
- Porém, Stephen, não acha que deveria falar como amigo e advertir-lhe que tenha cuidado com o que faz?
- Não.
- Não, claro. Mas lhe asseguro que essa mulher me indigna. Seduzir ao pobre Aubrey é como tirar os peniques do chapéu de um cego! Olha-o, tem o rosto radiante e se move como se fosse um touro jovem. Se fosse uma jovem como a do vestido manchado de verde, eu não diria nada, mas Amanda é uma coquete.
- Uma coquete, Villiers?
- Sim. A conheci na Índia quando eu era uma menina. Chegou com a frota pesqueira e ficou para viver com sua tia, uma mulher de nariz tão comprido como ela e que também se pinta muito. Pertencem a uma família vulgar originária de Rutland, onde os cavalos são lentos e as mulheres audazes. Tentou ali e também aqui, mas os membros do Exército são muito cautelosos quando chega a hora de falar de matrimônio, sabe?, não se parecem em nada aos da Armada. E agora tem uma reputação... Não muito melhor que a minha. Jack deveria ter cuidado.
- Realmente, parece muito complacente. Porém, não acha que é um pouco tonta e que se deixa arrastar pelo entusiasmo?
- Não. Pode ser histérica, leviana e volúvel, mas quando surge uma boa oportunidade, discorre com extraordinária claridade. Todos sabem que é muito rico... Os marinheiros o chamam Jack O Afortunado... Direi uma coisa, Stephen: a menos que o teto se venha abaixo, ao final da noite ele cairá nos braços dessa mulher, e então terá se metido em um boa confusão. Não poderia preveni-lo do que pode suceder?
- Não, senhora.
- Não, claro. Você não é o guarda de seu amigo, certamente. E de toda forma, isto será simplesmente uma passade.
- Diga-me, querida, o que ocorreu que lhe pôs de mal humor?
Ela parou e, ao compasso da música, deu três passos para a esquerda e depois três para a direita, e então respondeu como ele esperava.
- Nada... Só que quando estava falando com lady Harriet e com a senhora Wodehouse, Anne Keppel se aproximou e me olhou com muita atenção e elogiou meus diamantes. Não recordava havê-los visto em Londres e estava segura de que nunca esqueceria um colar e um pingente como esses. Perguntou-me se os havia adquirido nos Estados Unidos e o que estivera fazendo durante todo este tempo. É uma impertinente. Mas já havia notado frieza antes. Juraria que qualquer outra velha ou o coronel Aldington estiveram murmurando.
Stephen fez um comentário sobre os diamantes e os ciúmes, mas ela seguiu pensando igual e acrescentou:
- Mas em uma noite como esta não me pareceria muito desagradável nem o mais intolerante puritano, ainda que Deus sabe que Anne Keppel não poderia jogar a primeira pedra. Espero que consigamos um barco logo, pois, apesar de lady Harriet ser muito boa, com pessoas malévolas e desprezíveis como Aldington e Arme Keppel espalhando fofocas a torto e a direito, a vida neste lugar se converterá rapidamente num inferno... Bah! Vamos, Stephen.
Foram dançando até o centro, e quando ele a afastou de si e a recebeu de novo em seus braços, percebeu que seu estado de ânimo havia mudado. Já não tinha aquele brilho atemorizador nem a cabeça erguida com gesto desafiante, agora desfrutava do baile e da companhia daquela alegre multidão extasiada com a música e a lembrança da vitória. Diana lhe parecia tão bonita como sempre, e voltou a assombrar-se por não sentir nada. Então ela olhou para os pares que bailavam seu redor redor e com muita alegria comentou:
- Quanta graça me faz essa jovem do vestido manchado de verde!
E ele se assombrou ainda mais, porque quando Diana estava alegre, o que não era freqüente, era encantadora. Talvez sua insensibilidade não fosse mais do que uma proteção que já se habituara a usar, uma forma de fazer mais tolerável seu vazio interior... Não havia dúvida que sentia algo que, por assim dizer, era independente de sua vontade. Por outro lado, ele também estava divertindo-se mais do que o esperado, apesar de que em seu íntimo ainda experimentava um grande vazio comparável às páginas finais em branco de um livro, era um vazio muito profundo, ainda que nesse momento apenas podia observá-lo. A orquestra estava tocando um minueto de Clementi em dó maior, o mesmo que Jack e ele haviam feito um arranjo para violino e violoncelo. Era uma das peças que interpretavam com mais frequência, mas agora que a dançava pela primeira vez, aquela música tão conhecida tinha um significado diferente, agora ele fazia parte da música, estava imerso nela como aquelas figuras que se moviam seguindo o compasso, vivia em um mundo totalmente novo, no presente.
- Quanta graça me faz essa jovem do vestido manchado de verde! - repetiu ela quando o violoncelo deixava escapar suas graves notas -. Como está se divertindo! Oh, Stephen, quanto eu gostaria que esta noite fosse eterna!
Em realidade, a noite somente durou algumas horas a mais, suficientes para que o capitão Aubrey cumprisse a profecia de que dormiria na cama da senhorita Smith. Quando começaram a aparecer as primeiras luzes no leste, ela o despertou e, com tom urgente, disse:
- Você tem que ir! Os criados já se levantaram! Rápido! Aqui está a camisa.
Apenas havia limpado a mente quando notou que ela estava chorando. Então ela o abraçou.
- Não devemos voltar a fazê-lo nunca, nunca - disse, e depois, mais calma, acrescentou -: Aqui estão os calções.
Posto que ainda não podia mover bem o braço, custava-lhe fazer o nó da gravata. Ela lhe amarrou rindo nervosamente, de um modo que ele se assombrou, e, entre outros comentários incoerentes, disse que lady Hamilton havia feito igual a Nelson. Depois lembrou:
- Não interessam as táticas, o que importa é atacar com decisão. Ah, ah, ah! - E quando ele já tinha a jaqueta posta e o cabelo arrumado, ela sussurrou -: Saia pela porta do jardim, que só está fechada com um trinco. A deixarei aberta esta noite.
Stephen viu Jack entrar no quarto que compartilhavam e, apesar do rangido das tábuas, que era quase impossível não ouvir, teria deixado que chegasse até a cama sem dizer que o havia visto se Jack, agindo com excessiva cautela, não houvesse derramado a velha bacia que tinham para lavar-se, a qual soou como um sino, rodou descrevendo uma espiral e se deteve ao chocar com a mesinha de noite que estava junto à cama de Stephen. Isso era algo que não podia passar despercebido, assim que se sentou na cama.
- Sinto muito tê-lo despertado - disse Jack com um sorriso radiante-. Fui dar um passeio.
- Por seu aspecto, parece que encontrou a Fonte da Juventude, meu amigo... Espero que tenha levado uma capa ou ao menos um colete de flanela, pois na sua idade e com essa ferida, o orvalho da manhã pode ser muito prejudicial. Não se devem alterar nem um pouco os humores do corpo, Jack. mostre-me o braço. Justamente o que pensava: inflamação, avermelhamento e dor. Parece-me que fez muito exercício com ele. Deve usá-lo na tipóia outra vez. Não sente que a articulação está um pouco rígida? Não sente?
- Dói um pouco, mas tirando isso me sinto muito bem - disse Jack -. Apesar do que hás dito da idade e do colete de flanela, Stephen, sinto-me tão jovem como quando fui nomeado capitão, ou talvez mais ainda. Um passeio matutino faz recuperar as forças, é a verdadeira Fonte da Juventude. Acho que darei outro esta madrugada.
- Você viu muitas pessoas na rua?
- Vi um grande número delas, inclusive alguns oficiais que conhecia, caminhando em todas as direções.
- O que dizes confirma minha suposição: Halifax é uma cidade madrugadora. O deduzo pelo ruído da rua e pelo fato de que veio um menino adoentado, um evidente caso de escoliose, o pobre, para trazer uma nota do senhor Gittings.
- Quem é o senhor Gittings?
- O encarregado do correio.
Jack abriu rapidamente a nota, aproximou-se da janela e leu:
Há havido um lamentável erro... As cartas do capitão Aubrey estavam separadas... os subordinados estavam mal informados... pode recolhê-las quando quizer...
- Bendito seja Deus! Louvado seja Deus! Nunca havia... Já volto, Stephen.
- Antes de ir, porei o seu braço na tipóia - disse Stephen -. E sugiro que se lave enquanto o preparo. Se lhe vêem assim à luz do dia, pensarão que travou algum tipo de batalha.
Jack se olhou no espelho. Na escuridão do dormitório da senhorita Smith não havia visto a grotesca mancha de batom que tinha no rosto, uma mancha que parecia mais grotesca agora que sua expressão era grave. Lavou-se muito bem, armou-se de paciência e esperou em silêncio que Stephen lhe pusesse a tipóia e depois saiu da pousada.
Parecia que apenas haviam transcorrido uns momentos quando subiu as escadas outra vez com dois pacotes de cartas que estavam envoltos em tela e alguns envelopes com data mais recente.
- Desculpe-me, Stephen - disse -. Quase todas as cartas são de Sophie, e não posso lê-las em um lugar público.
Quando Stephen terminou de vestir-se para ir ao hospital, Jack ainda tinha diante de si uma pilha de cartas e estava classificando-as e colocando-as de maneira que pudesse lê-las em ordem, e sua expressão culpada havia dado passagem a outra ansiosa e alegre. E quando Stephen regressou, a pilha de cartas havia se transformado em uma perfeita seqüência e Jack as havia lido todas duas vezes. As cartas estavam debaixo de uma garrafa de água, e junto delas havia algumas folhas com contas, e no semblante de Jack se refletia uma estranha mistura de alegria e preocupação.
- Sophie lhe manda um cumprimento muito carinhoso em todas estas cartas - disse -. Em casa tudo vai bem, exceto pelo maldito Kimber. George já veste os calções e as meninas estão aprendendo etiqueta e francês. E pensar que essas pequenas criaturas que tinham cabeça de pepino estão aprendendo francês!
- Recebeu alguma carta sua de Boston?
- Sim, duas. Pela reprodução do relatório oficial do almirante Drury sabia que o Leopard havia se salvado. Depois o bom Chads, quando foi julgado pelo Conselho de guerra, foi até New Hampshire para contar-lhe que a Java havia nos recolhido e o ocorrido entre a Java e a Constitution. Falou-lhe de minha ferida com muito tato, disse que não era nada que me mantivesse afastado da ação durante muito tempo, mas que haviam pensado que era melhor que eu fosse para a América do Norte contigo e ser trocado ali em vez de arriscar-me a passar por uma zona tórrida em um barco abarrotado de prisioneiros. Estou muito agradecido, porque ela acreditou no que ele contou ao pé da letra e não se preocupou.
- Certamente que o acreditou... Certamente que acreditou...
- Vão tomar o café da manhã agora, senhores? - perguntou uma donzela do outro lado da porta.
- Sim, por favor - respondeu Stephen -. E outra coisa, querida jovem, poderia dizer-lhes para fazer o café duplamente forte?
- É claro que acreditou - disse, bebendo a tragos aquela infusão clara -. Um provérbio latino, que provavelmente conhecerá, diz que os homens acreditam no que querem acreditar. Estava pensando nisso outro dia... - E enquanto via pela janela lady Harriet e Diana passando pelo outro lado da rua seguidas de um criado carregado de pacotes, continuou -: Estava pensando nisso outro dia, e em seu corolário, de saber, que os homens não vêem o que não querem ver. São realmente incapazes de vê-lo. E o pensava porque encontrei em mim mesmo uma prova evidente. Há várias semanas tinha ante minha vista os claros sintomas de uma determinada alteração do organismo e, contudo, não os via. O médico que há em mim deveria ter notado alguns pelo menos, e ainda que cada um separadamente fosse suficiente para chegar a uma conclusão, deveria ter percebido que o conjunto de todos eles era significativo; o homem não viu nenhum, e se assombrou muito quando lhe fizeram compreender que existia essa alteração de que falei. Gnosce te ipsum... Isso é muito bom, porém, como lográ-lo? Somos seres imperfeitos, Jack, e com tendência a enganar a nós mesmos.
- Isso dizia minha velha ama-de-leite - disse Jack.
Como ocorria em algumas ocasiões, Jack achava Stephen chato, por isso havia deixado de atender-lhe e agora prestava atenção às contas que tinha junto com as cartas de Sophie.
- Antes falou do maldito Kimber... - disse Stephen.
- Sim. Ainda está fazendo das suas. Segue pressionando-a para que lhe dê dinheiro porque, conforme afirma, uns quantos milhares de libras mais nos permitirão salvar o que investimos e transformar as quantiosas perdas em grandes ganhos... Agora fala de milhares como se fosse uma quantidade comum... Não entendo as contas que lhe apresentou, ainda que me dê bem com os cálculos numéricos... Quer que ela venda Delderwood... Não acho que esse documento que firmei antes de partirmos seja uma procuração, sabe?, porque se não poderia atuar sem seu consentimento.
- Quais são os termos do contrato matrimonial que você subscreveu?
- Não tenho idéia. Limitei-me a aceitar o que a mãe de Sophie propôs, isto é, seu agente de negócios, e depois assinei onde me indicaram: J. Estúpido, capitão da Armada real.
Stephen sentiu um grande alívio, pois conhecia a senhora Williams há muito tempo e estava seguro de que pelo fato de ser uma mulher sumamente avara teria assegurado os bens de Jack amparando-se em todas as leis arrevesadas e diamantinas que pode.
- Meu amigo - disse, - faz muito, muito tempo, quando navegávamos pelos distantes mares do Oriente e você se informou do comportamento desse homem, eu lhe disse que intentaras não pensar nisso até que A Flèche nos levasse até a Inglaterra. Pedi que não desperdiçasse seu tempo e sua energia em fazer conjeturas e recriminações senão que deixasse o assunto de lado até que pudesse analizá-lo com todos os dados necessários na mão, até que pudesse consultar a um advogado e encontrar-se com esse tipo em companhia de alguém que entenda tanto de negócios como ele. Esse conselho era o melhor que podia dar-lhe então e também é o melhor agora. Só faltam poucas semanas ou dias para que cheguemos à Inglaterra, e seria um absurdo que os passasse enfurecido por não poder fazer nada, já que chegaria com a mente trastornada. Só faltam alguns dias. O relatório oficial do capitão Broke será enviado assim que esteja pronto, pois a notícia vai agradar muito ao Governo.
- Oh, sim! - exclamou Jack e seu rosto se iluminou ao recordar da vitória -. E feliz do homem que a leve! Seguirei seu conselho, Stephen, e me comportarei como um estóico: conservarei a serenidade e não me preocuparei com Kimber.
E com um brilho menos intenso nos olhos, em um tom mais grave, acrescentou:
- Além do mais, acho que já tenho bastantes preocupações em Halifax.
Nunca havia dito nada mais certo, pois, ainda que usar o braço na tipóia, como insistia Stephen, e a ferida, a dieta e os remédios lhe serviam de desculpa para não ir ver a senhorita Smith pela noite, ela solicitava insistentemente sua companhia durante o dia, e às vezes seu corpo. Parecia sentir um prazer mórbido em comprometer-se e em expor seu relacionamento. Quando Jack se refugiava em seu leito de convalescente, ela ia à pousada e lhe lia em voz alta; e quando ele ia respirar ar fresco e fazer exercício porque já não suportava ouvir nem uma linha mais de Childe Harold em tom enfático, ela passeava com ele pelos lugares públicos de Halifax agarrada em seu braço ou dava voltas e voltas pela cidade na carruagem de seu irmão, conduzindo-o torpemente. Jack se deu conta de que outros homens, especialmente seu primo Aldington, não lhe invejavam, e teve que admitir que a companhia de uma jovem exageradamente ativa, leviana, superficial, insensata e ridícula não era invejável, que o coragem que a senhorita Smith se atribuia não era proporcionada por seus encantos nem por sua inteligência... e que às vezes desejava que lorde Nelson nunca tivesse conhecido lady Hamilton.
Mas nunca o desejou tanto como no dia em que levou a senhorita Smith para visitar a Shannon, porque ela falou do casal com tanto entusiasmo que ele teve a impressão de que inclusive a pessoa mais estúpida podia dar-se conta de sua intenção. Sabia que nenhum dos oficiais da Shannon era estúpido e notou que Wallis e Etough se olharam com perspicácia. Então, apesar dela protestar aos gritos que desejava ardentemente ver onde o herói havia jazido, ele a levou de volta para terra. Quando se achava num barco, recuperava em parte sua autoridade inata, mas em terra era muito débil, não podia ser severo ou descortês com ninguém deliberadamente, e estava quase indefenso, pois ainda que conhecesse as mulheres, as quais, indubtavelmente, não lhe eram indiferentes, havia passado a maior parte de sua vida no mar. No Mediterrâneo, sendo muito jovem, ganhara fama de farrista, mas não era, e nunca havia feito nenhuma estratégia para esse tipo de encontro; contudo, agora estava assombrado; assombrado e preocupado, porque lhe parecia que era necessária uma estratégia.
Costumavam encontrar-se nos jantares que ele devia participar obrigatoriamente, e ela o molestava e o punha em evidência com suas insinuações inoportunas, até o ponto que ele chegou a ausentar-se do baile oferecido pelo comissionado, apesar disso ser uma grave falta de respeito para a etiqueta da Armada. Por outro lado, cada vez havia mais probabilidade do capitão Smith voltar, e ainda que poucos homens fossem mais valentes do que Jack Aubrey, não lhe agradava a idéia de ter que dar explicações de sua conduta.
Os dias passaram. O bergantim correio Diligence chegou da Inglaterra, com mais cartas e meias grossas, e permaneceu ancorado com uma só âncora cerca da corveta Nova Scotia durante dias e dias, mas o pobre capitão Broke não podia fazer o relatório oficial.
- Ele se distrai poucos minutos depois de conseguir se concentrar - disse Stephen -. A ferida da cabeça, a fratura do crânio, é mais grave do que pensávamos, e seria uma crueldade forçá-lo a fazer um relatório detalhado da vitoriosa batalha.
- Pergunto-me por que não pedem para que Wallis o redija - disse Jack.
- Já lhe pediram, mas ele se recusou a fazê-lo porque não quer tirar os méritos nem arrebatar a glória de seu capitão.
- Muito bem - disse aborrecido -. Isso lhe honra, não há dúvida, mas acho que é muito escrupuloso. Contudo, estou certo que o oficial de mais antiguidade e o comissionado procurarão uma solução se Broke não se recuperar dentro de um ou dois dias. Devem de estar ansiosos para fazer chegar a notícia à Inglaterra, eu mesmo estou. Morro de vontade de estar a bordo do bergantim correio, de vê-lo sair do canal balançado pelas ondas e com vento favorável. Não sei como puderam esperar tanto tempo.
- Porém, por que no bergantim correio? O que levará a bordo, além das cartas, será a cópia do relatório oficial, enquanto que na Nova Scotia, Wallis ou Falkiner levarão o informe oficial original, e é lógico que o original chegue antes que sua réplica.
- Isso é o que qualquer um acharia, mas o bergantim correio é muito rápido e a corveta não. Além do mais, o Diligence não é um barco correio oficial e não vai para Falmouth, é um barco alugado e vai para Portsmouth, justo ao lado de casa, e aposto três contra um que chega primeiro, apesar de que Capel provavelmente deixará que a corveta zarpe duas marés antes, ainda que só seja em prova de respeito.
- Uma dama deseja ver-lhe, senhor - disse um servente.
- Oh, meu Deus! - exclamou Jack e se meteu na cama rapidamente.
Como todas as pessoas que viviam fora da cidade já haviam visto a Chesapeake, a pousada não estava tão cheia e eles dispunham agora de uma salinha. E fizeram Diana entrar ali.
- Tem um aspecto estupendo, querida - disse Stephen.
- Alegro-me - disse ela, olhando-lhe nos olhos.
E ele soube imediatamente o que se passava por sua mente. Amiúde havia se comunicado mediante essa transferência silenciosa, mas não com tanta frequência como com Diana. Isso não ocorria com regularidade nem ele podia controlar, mas acontecia, era totalmente confiável. A comunicação se estabelecia em ambas as direções, e depois já não era possível mentir, o que podia ser um inconveniente para ele quando atuava como médico ou espião. Pensava que era propiciada, ou talvez inclusive originada, pela interação dos dois olhares, e por essa razão às vezes usava óculos de cristais verdes ou azuis. Mas a primeira coisa que disse para Diana foi que iam zarpar quase imediatamente.
- Lady Harriet me confiou o segredo de que o capitão Capel e o comissionado haviam redigido o relatório oficial do capitão Broke e que iam mandar imediatamente o original na Nova Scotia e a cópia no bergantim correio. Mas como todo mundo vai ficar sabendo assim que as ordens forem enviadas, pensei que não tinha nada de mau que lhe contasse.
A segunda notícia que lhe deu foi que a carruagem da senhorita Smith havia virado ao dobrar uma esquina rápido demais.
- Passei por ali um pouco depois e ainda estava metida em um monte de palha e havia um homem sentado em cima da cabeça do cavalo. Quanto desprezo a uma mulher que não é capaz de cair sem ficar histérica!
- Então, houve muitos danos, não?
- Não. Só se soltou uma roda e ela rasgou a anágua. A acompanhei até sua casa andando... Diga-me, Stephen, quem é Dido?
- Se não me equivoco, era a rainha de Cartago. Enéias gozou de seu favor e ela sofreu muito quando ele a abandonou, quando pendurou o croque, como nós dizemos.
- Bem, então deixou de comparar-se com lady Hamilton. Como ela também sabia o segredo, não parava de exclamar: "Sou outra Dido!". Não entendo como Jack pode ser tão tonto. Com uma mulher como Amanda Smith! Eu poderia ter-lhe dito como ia terminar este caso.
- Isso teria sido uma grande satisfação para você, Villiers.
Antes de que ela pudesse responder, Jack entrou.
- Como está, prima? - perguntou Jack -. Ouvi sua voz e pensei que devia dar-lhe bom dia antes de sair. Tem muito bom aspecto.
- Obrigada, Jack. Estava dizendo a Stephen que a carruagem da senhorita Smith virou e que nós vamos zarpar dentro de pouco na Nova Scotia ou no bergantim correio.
- Que vamos zarpar? - perguntou Jack e depois acrescentou -: Espero que não tenha se ferido, que não tenha quebrado nenhum braço, nenhuma perna, nem nada.
- Só passou um susto e rasgou a anágua. Bem, já que vamos partir logo, acho que agora é o momento de se despedir e fazer as malas.
- Por que se refere a isso, não tenho nada mais que o que estou vestindo. Irei pedir que nos autorizem a viajar no bergantim correio e depois irei a bordo para conseguir que nos dêem cabines decentes.
Duvidou por um momento se lhes perguntava se queriam uma cabine para os dois ou não. Eles haviam pedido ao capitão Broke que os casasse a bordo da Shannon, e ainda que a batalha e a ferida de Broke o tivessem impedido, ele tinha entendido que a cerimônia ia ser celebrada em Halifax. Contudo, desde então nenhum dos dois havia dito uma palavra, e para ele parecia uma falta de delicadeza falar do assunto agora, assim que não disse nada.
Houve um comprido silêncio quando ele se foi. Ao fim Diana, assinalando os restos do café da manhã, perguntou:
- O que é isso?
- É conhecido tecnicamente como café - respondeu Stephen -. Quer uma xícara? Para dizer a verdade, não o recomendo, a menos que goste do sabor de cevada torrada e bolotas fervidas em água salgada.
E depois de outro silêncio, continuou:
- Já faz algum tempo que falamos de nosso matrimônio, querida, e posto que vamos fazer-nos ao mar muito em breve, não acha que deveríamos ir à igreja agora? Ainda não é meio-dia, e como tenho excelentes relações com o padre Costello, sei que não terá inconveniente em oficiar o casamento.
Ao ouvir isso, ela mudou de cor, levantou-se e, visivelmente nervosa, começou a caminhar de um lado para o outro da sala. E quando passou junto da mesa onde Stephen havia posto seus charutos, pegou um. Ele acendeu e ela, rodeada de uma nuvem de fumaça, disse:
- Stephen, gosto muito de você, e se alguma vez tivesse que implorar caridade para um homem, seria para você. Sei muito bem que não deseja casar-se comigo, o soube desde o momento que recuperei a sensatez que havia perdido ao passar aqueles horríveis momentos em Boston. Eu teria percebido no mesmo momento em que voltei a vê-lo se não estivesse completamente destroçada e aterrorizada por aquele homem. Não, não minta, Maturin. É muito bondoso, mas não pode ser. Não pode ser... - Então o olhou com um gesto desafiante e, ruborizando-se, acrescentou -: De qualquer maneira, nunca me casarei com um homem sabendo que espero um filho de outro. Deus sabe que não. Nem para salvar minha vida. E agora me dê uma bebida, Stephen. Estas confissões são exageradamente cansativas.
- Só tem rum - disse Stephen e olhou ao seu redor procurando um copo limpo -. Mas é a última coisa que deveria tomar. Havia pensado em dizer-lhe há várias semanas: não deve tomar álcool. Também deve evitar o tabaco e usar roupa apertada.
- Você sabia? - perguntou ela.
Ele assentiu com a cabeça e respondeu:
- Sem dúvida, exagera a importância disto, querida. Mas não é estranho que o faça, porque, como é sabido, e agora falo como médico, Villiers, o estado físico em que se encontra afeta a capacidade de raciocinar, e Além disso, porque os intensos sentimentos que tem experimentado recentemente, a fuga, o resgate e a batalha com a Chesapeake, como era inevitável, agravaram essa alteração e fizeram a sua mente cometer graves erros. Por exemplo, equivoca-se ao julgar meus sentimentos. Talvez não me pareça aquele jovem suplicante e trêmulo de outro tempo, mas isso se deve unicamente à idade. Demostrar as emoções quando se tem o cabelo grisalho é indecoroso. Contudo, dou minha palavra de que meu carinho não mudou.
Ela pôs a mão sobre seu braço sem dizer uma palavra, e seu sorriso era tão triste que Stephen se desconcertou e antes de continuar falando foi até a janela e voltou, pôs os óculos de lentes azuis e acendeu um charuto.
- E ainda que tivesse razão, o que nego redondamente, deve buscar sua conveniência, deve ter em conta seu estado civil. Um matrimônio, ainda que seja nominal, fará com que recupere de imediato a nacionalidade e, o que talvez seja mais importante que tudo, dará um nome ao seu filho. Carinho, pense no que significa ser um bastardo. Sua existência é em si mesma uma ofensa. Por seu nascimento, tem desvantagens em todos os sistemas legais que conheço; está castigado desde que nasce. É impedido de exercer muitas profissões, e se a sociedade o admite, é só para não fazer o esforço de recusar-lhe. Escuta a mesma censura a cada passo, durante toda sua vida, e inclusive de lábios de qualquer tipo que pertença à décima geração de uma família e haja herdado o rosto de tonto de seus membros ou qualquer tolo que seja filho legal, e não pode replicar. Sou um bastardo, como provavelmente saberá, e sei muito bem o que digo quando afirmo que é uma crueldade obrigar uma criança levar essa carga.
- Sem dúvida o é, Stephen - disse ela profundamente emocionada, pegando sua mão.
Permaneceram calados uns momentos, e por fim ela, com voz muito baixa, disse:
- Por isso recorri a você, a única pessoa em quem posso confiar. Você entende destas coisas... É médico... Stephen, não poderia suportar ter um filho desse homem. Seria um monstro. Sei que na Índia as mulheres usam a raiz de uma planta chamada holi...
- Aí está! Essa é uma prova evidente de que está com a razão turbada, pois do contrário não teria pensado em algo assim nem me o diria. Meu dever é proteger a vida, não. O juramento que fiz e minhas convicções...
- Stephen, por favor, não me falhe - suplicou ela.
Depois, retorcendo-se as mãos, começou a murmurar:
- Stephen... Stephen...
- Diana, deve casar-se comigo.
Diana negou com a cabeça. Ambos sabiam que a postura do outro era inamovível e guardaram silêncio. Permaneceram assim até que a porta se escancarou e entrou um oficial rosado, muito jovem e muito alegre.
- Ah, aqui está a senhora, senhora! - exclamou -. E aqui está o senhor, senhor! Encontrei os dois ao mesmo tempo! Transmitirei a minha mensagem imediatamente.
E maquinalmente, em tom solene, disse:
- O almirante Colpoys apresenta seus respeitos à senhora Villiers e se compraz em comunicar-lhe que o bergantim correio zarpará dentro de pouco, e lhe roga que suba a bordo o quanto antes. - Então pegou ar e continuou -: O comandante do porto informa ao doutor Maturin que o Diligence zarpará dentro de duas marés e lhe ordena apresentar-se a bordo do navio urgentemente.
Depois, desta vez apontando para o porto, em tom coloquial, acrescentou:
- Alí está, senhor. É o bergantim que está ao lado da Chesapeake. Tem içada a bandeira de saída.
CAPÍTULO 3
O Diligence avançou pelo amplo porto durante a noite, e já havia passado Little Thrumcap antes do amanhecer. E quando o Sol, ainda borrado, começou a iluminar o céu pelo leste, já estava em alto mar, navegando com todas as velas desdobradas e com o vento pelo través de estibordo, e fez rumo para o noroeste para deixar par trás, muito longe e ao sul, a ilha Sable. Pela popa não se podia ver nada, pois, mesmo que a névoa não fosse tão espessa, o cabo Sambro já não era visto do barco; contudo, a uns 70° pela amura de estibordo, a umas cinco milhas de distância, via-se a escura figura de uma embarcação, uma escuna, destacando-se sobre o fundo iluminado. Não era uma corveta, não era um navio de guerra, era, sem dúvida, uma escuna; e, pelo outro lado, a Nova Scotia, que havia partido uma maré antes, já devia estar pelo menos a quarenta milhas da linha do horizonte.
Não estava em movimento e suportava o embate das ondas com a vela maior ondeada, mas estava claro que não era um barco pesqueiro, em primeiro lugar, porque não haviam botes ao seu ao redor, e em segundo lugar, porque nenhum capitão que fizesse uma longa viagem para pescar bacalhau usaria uma escuna comprida e estreita, com pouco espaço para as capturas, nem iria a um lugar onde havia poucos peixes.
O segundo em comando, que estava encarregado da guarda, a viu ao mesmo tempo que o serviola do castelo, e depois de olhá-la atentamente por entre os lampejos do mar, desceu à cabine onde o capitão e Jack Aubrey estavam comendo um bife.
- Acredito que a Liberty se encontra a barlavento, senhor - anunciou.
- Ah, sim? - disse o capitão -. E a que distância, senhor Crosland?
- A umas cinco milhas, senhor.
- Então vire e largue a joanete de proa. Já subirei para a coberta.
O senhor Dalgleish, o dono - nominalmente o dono - do Diligence esvaziou sua xícara imediatamente, pegou seu telescópio da prateleira e subiu a escada seguido de Jack.
Da alheta de bombordo, ambos observaram a embarcação estranha, que já havia desdobrado mais velame, havia virado e seguia a mesma direção deles, e nesse momento apareceram bandeiras de sinais no topo de um mastro e disparou um canhonaço para barlavento.
Quando Jack a viu, pensou que provavelmente era um barco corsário norte-americano, já que nenhuma outra embarcação se deteria em meio da rota marítima que ligava a Inglaterra ao Canadá, e não se surpreendeu quando Dalgleish, passando-lhe o telescópio, disse:
- Sim, é a Liberty, e pelo que vejo, o senhor Henry lhe deu uma mão de tinta. - Voltou-se então para seu filho, um jovem alto e magro, e disse -: Tom, suba ao tope e diga-me se o sinal do senhor Henry tem algum significado ou se é outro de seus malditos sinais falsos. Senhor Crosland, largue a bujarrona volante...
Enquanto Dalgleish dava ordens para que abrissem mais velas, Jack observou a Liberty. Era uma escuna longa pintada de preto, de uns setenta e cinco pés de comprimento por vinte de largura e um arqueio de umas cento e cinqüenta toneladas, construída para navegar muito velozmente. Pelo que podia apreciar, em cada costado levava uma bateria de oito canhões, provavelmente de doze libras, e na proa, uma caronada, e a coberta estava abarrotada de homens. Tinha desdobrada a redonda no traquete e as outras velas aferradas em calções; contudo, nenhuma escuna podia navegar com grande rapidez com o vento em popa com as velas aferradas em calções e durante o longo tempo que Jack ficou observando-a, pareceu-lhe que ela não avançava muito, se é que realmente avançava.
- Bom dia, senhor - disse uma voz ao seu lado.
- Bom dia, senhor Humphreys - disse Jack secamente.
O oficial Humphreys fora escolhido para levar a cópia do relatório oficial no lugar dos suboficiais que haviam lutado contra a Chesapeake. Todos na Armada pensavam que isso era uma trapaça feita com o propósito de Humphreys conseguir uma promoção. Naturalmente, os oficiais da Shannon seriam promovidos, e, sem dúvida alguma, Falkiner, agora a bordo da Nova Scotia, ia ao encontro da nomeação de capitão; apesar disso, todos pensavam que os jovens suboficiais deviam compartilhar com eles a glória ao chegar à Inglaterra.
- O que vê, Tom? - gritou o senhor Dalgleish.
- Então, vejo algo parecido com o velame de um barco a 20° ou 30° pela alheta, papai, mas ainda não se vê o casco - respondeu Tom -. Contudo, não o distingo bem porque o sol me dá de frente, e pode ser que seja uma montanha de gelo.
- Há algo a sotavento?
- Nada a sotavento, papai, exceto um grupo de baleias... Agora essa volta a ofegar...! E ao norte posso ver até o horizonte.
Logo, depois de uma pausa, gritou:
- Escute, papai, há um barco a barlavento, outra escuna.
- Graças a Deus! - murmurou o capitão do bergantim correio e, virando-se para Jack, exclamou -: Como estou contente de ter dito que passaríamos pelo sul da ilha Sable! Se a outra escuna se aproximasse pelo sotavento, as duas juntas poderiam pegar-nos como...
Enquanto olhava atentamente a Liberty com o telescópio, tentava encontrar um símile com que expressar a idéia da lenta aproximação de dois barcos separados por uma grande distância para pegar um outro entre eles. Mas não encontrou, e então, imitando o movimento das pinças de uma lagosta com a mão, repetiu:
- Poderiam pegar-nos como...
- O senhor acha que tinham informação sobre sua rota?
- Certamente - respondeu o senhor Dalgleish -. Em Halifax não se pode nem urinar em uma parede sem que os ianques saibam no dia seguinte. Enquanto esperava as comunicações oficiais, estive no King's Head, que estava cheio de gente, e comentei que quando tivesse todas as sacas a bordo zarparia e faria rumo ao sul. Ah, ah, ah!
- Assim que não se surpreendeu em ver as goletas esperando-lhe na rota do sul, né?
- Não, senhor - respondeu -. Bem, não me surpreendeu ver a Liberty. O senhor Henry - assinalou para o alto mar com a cabeça - me há esperado muitas vezes com o propósito de aproximar-se por sotavento, aproveitando que sua escuna é extraordinariamente rápida quando navega de bolina, e passar para a abordagem e capturar meu barco. Foi assim que capturou o Lady Albermale e o Probus, dois magníficos e rápidos barcos correio, além de outras embarcações. O senhor Henry é um marinheiro excelente. Eu o conheço de muito tempo antes do início da guerra. Antes de ser corsário, ele também era capitão de um bergantim correio. Contudo, me surpreendeu ver a outra escuna, sua companheira. Eles nunca navegam em pares, a menos que persigam um mercante de grande valor, e nenhum mercante, nem de muito nem de pouco valor, passará por esta rota antes de umas duas semanas. A captura de um barco correio é para eles como pôr uma pluma no chapéu, e para o rei Jorge, como ter uma palha no olho, e não vale a pena fazer o gasto que isso comporta, pois têm que pagar conforme a tabela de salários da América do Norte para aproximadamente cem marinheiros que, além disso, comem vorazmente, sem contar o risco de perder paus e os danos que podem sofrer os homens e as fendas do casco pouco antes do abordagem.
- Acho que o senhor poderia fazer muitas fendas em seu casco, capitão Dalgleish - disse Jack enquanto observava as caronadas de doze libras do bergantim, distribuidas em uma fila de cinco em cada costado.
- Poderia, e as farei se se abordar com o meu barco. Mas não tema, capitão, pois navegamos mais rápido que eles com o vento em popa, e isso porque ainda não larguei as alas. Estas gotas de água no ar indicam que haverá névoa no Banco do Meio ou no Banquereau, e ali os deixaremos para trás e depois voltaremos a navegar com o mesmo rumo que antes, se eles não deixarem de perseguir-nos antes, como me parece que sucederá. Um barco correio não é um grande butim, não tem um carregamento valioso e os Estados Unidos não é um bom mercado para vendê-lo; não vale a pena persegui-lo a toda vela, durante todo o dia, sem levar em conta que é verão e os blocos de gelo desprendidos podem chegar a estas águas.
Depois de um curto silêncio, Jack perguntou:
- Já pensou alguma vez em usar a estratagema do barco que tem dificuldades, capitão Dalgleish? Soltar um pouco as escotas, dar solavancos, pôr uma arrastraculo{5} debaixo da espicha, mandar a metade da tripulação para baixo... Se lograsse atrair a escuna antes de que transcorresse uma hora, poderia lutar com ela antes de que sua amiga chegasse. Poderia tomar a liberdade de tomar a Liberty, ah, ah!
Dalgleish riu, mas Jack compreendeu que foi igual a cantar salmos ao coroamento do barco, porque o capitão do bergantim correio não havia mudado de opinião aliás estava muito satisfeito de sua forma de atuar. Era um homem decidido, seguro de si mesmo, que confiava que sua conduta era a correta.
- Não, senhor - disse -. Não serviria de nada usar essa estratagema com o senhor Henry. Eu o conheço e ele me conhece, e logo perceberia que há gato escondido. E ainda que não fosse assim, capitão Aubrey, ainda que não fosse assim, tomar a Liberty, como o senhor disse com engenho, não é parte de meu trabalho. Não faço a guerra nem meu bergantim é um barco de guerra senão um barco que transporta o correio por um tempo limitado - ainda que o tempo já se estendeu por mais de doze anos - ou, como dizemos, um barco contratado. Os senhores, os cavalheiros que procuram por glória, estão em uma situação diferente; os senhores têm que responder para o rei Jorge, enquanto que eu tenho que responder para a senhora Dalgleish, e ambos vêem as coisas de diferente maneira. Além disso, os senhores podem ir ao estaleiro o dia que queiram e pedir meia dúzia de mastaréus, grande quantidade de paus e inclusive todo o velame de seu barco novo, mas se eu fosse à associação de capitães de barcos correio e lhes pedisse sequer meio rolo de tela do número três, ririam em minha cara e me recordariam que firmei um contrato. E de acordo com o contrato, devo armar um barco a minhas expensas para transportar o correio de Sua Majestade, que, também de acordo com o contrato, devo levar e trazer da forma mais rápida e mais segura possível, já que o correio é sagrado, senhor. As cartas e os informes oficiais são sagrados, sobretudo esse bendito relatório que fala da vitória.
Ao dizer isto lançou um olhar perspicaz para Humphreys, que fez uma reverência com a cabeça. Contudo, este não disse nada, porque Jack tinha uma patente muito superior à sua e era um homem por quem sentia devoção, e, além disso, porque apesar de nunca, por nada do mundo, teria renunciado ao seu posto, percebia qual era a sua situação e pensava que possivelmente os outros o consideravam um intruso que tinha conexões, e alguns deles, inclusive, um miserável.
- E mais - continuou o senhor Dalgleish, - este bergantim é meu meio de vida, e ninguém me dará outro se for capturado.
- E é um magnífico bergantim - disse Jack -. Nunca vi outro de melhores características.
A atitude de Dalgleish não lhe incomodava. Ainda que ele sentia todo seu ser vibrar de emoção ao pensar na possibilidade de sustentar um combate, um combate que requeresse grande astúcia e terminasse com extraordinária violência e, muito provavelmente, com a captura da Liberty, pareciam respeitáveis as razões que o capitão do barco tinha para mostrar-se tranqüilo e seguro.
E assim disse para Stephen quando se reuniram para tomar café ao meio da manhã.
- Nunca pensei que me simpatizaria um tipo que confessa sem rodeios que vai correr como uma lebre para fugir de outro... Apesar de ter uma pequena mas potente bateria que pode fazer com que o capitão da escuna reze o Eu pecador, se sabe rezá-lo.
- Meu amigo, fala de uma lebre, uma fuga, uma escuna, e não entendo nada - disse Stephen.
- Não sabia que nos perseguem?
- Não.
- Onde esteve toda a manhã?
- Sentado junto de Diana. Subi uma vez para a coberta, mas estavam desdobrando velas e me pediram que voltasse a descer, e ao ver que estava falando com o senhor Dalgleish, voltei para o lado de Diana.
- Como ela está?
- Prostrada. Sem dúvida alguma, é a pessoa que pior suporta navegar de todas as que conheço.
- Pobre Diana! - exclamou Jack, movendo a cabeça de um lado para o outro, mas sua compaixão era puramente teórica, pois fazia trinta anos que havia sentido um enjôo pela última vez, e havia sido leve, assim que um momento depois continuou -: Bem, o que ocorreu é que ao amanhecer avistamos um barco corsário norte-americano, uma escuna, a cinco milhas de distância, e depois outro, ao qual ainda não se via o casco, muito mais longe por barlavento, e Dalgleish mudou o rumo e agora fugimos de ambos correndo como lebres, tal como disse antes. Acho que navegamos quase a onze nós. Quer subir para a coberta e ver como estão as coisas?
- Sim, certamente.
A uma simples vista parecia que as coisas não haviam mudado muito. A Liberty ainda estava situada pela alheta de estibordo do bergantim correio, e a escuna mais distante seguia navegando com rumo este-sudeste pelas águas cinzentas e agitadas. Mas no Diligence havia uma atmosfera completamente diferente, havia uma grande tensão, e no semblante do senhor Dalgleish se refletia uma preocupação maior. O bergantim já tinha desdobradas as alas de cima e de abaixo e navegava a grande velocidade enquanto sussurro da água ao passar pelos costados provocava no casco uma ressonância apenas audível. A Liberty havia largado muito mais velame e avançava perceptivelmente, enquanto que sua distante companheira, cujo casco já podia ser visto, avançava ainda mais rápido e estava a ponto de passar pela frente de um enorme iceberg com a borda dentada que se destacava sobre o fundo cinzento e se assemelhava ao conjunto de velas de uma esquadra de barcos de linha.
Dalgleish estava falando com o segundo em comando e o senhor Humphreys, o qual media com muito cuidado o ângulo subtendido entre os perseguidores.
- Nunca havia visto o senhor Henry agir com tanta determinação - disse Dalgleish, voltando-se para Jack -. Navega com grande rapidez, como se pensasse que as velas e os paus são grátis ou que persegue a um maldito galeão espanhol. Por favor, senhor, pegue meu telescópio e diga-me o que pensa da outra escuna.
Jack apoiou a mão nos amantilhos, dirigiu o telescópio para a distante escuna e se pôs a observá-la justo quando passava pela frente do iceberg.
- Largou as alas de cada lado - disse -. Nunca vira fazer isso com esse tipo de exárcia. Deve de ter muita pressa.
- Foi o que pensei quando me pareceu vê-las - disse Dalgleish -. Durante todo o tempo que estou ao comando deste bergantim correio, nas numerosas viagens que fiz, nunca vi nada parecido, nem sequer depois que começou a guerra. Qualquer um diria que levamos um carregamento de ouro.
Stephen viu alguns alcatrazes ao longe, a sotavento, e se pôs a observar como pescavam, como entravam na água verticalmente fazendo saltar a branca espuma, e apenas prestava atenção aos marinheiros. Eles falaram da possibilidade de que o vento amainasse e rolasse para noroeste, da pressão barométrica e das sossobres, que, na opinião de Dalgleish, eram velas desnecessárias, custavam um olho da cara e provavelmente se desprenderiam com um vento como aquele. Falaram de um método que o capitão Aubrey utilizava para segurá-las em casos de emergência, consistente em pôr-lhes gradis duplos que passavam por uma polia fixada mais acima e eram controlados por um marinheiro muito hábil, mas que deviam esticar-se no último momento, se é que chegavam a usar-se. Então Stephen ouviu Dalgleish dizer que, diferente de outros capitães de barcos correio, ele não pensava que não tinha nada que aprender com os cavalheiros da Armada real, que alguém podia aprender algo novo a cada dia, apesar de ser velho, e que provaria o método do capitão Aubrey.
Nesse momento Stephen dedicou toda sua atenção a um grupo de baleias, baleias boas, que apareceram pela amura de bombordo. Pediu emprestado um telescópio e as observou até que a rota que seguiam convergiu com a do bergantim, quando estiveram tão perto que lhe foi impossível vê-las com nitidez pelo telescópio e podia ouvir como lançavam os enormes jorros de água e inclusive o ruído que faziam ao aspirar o ar. Notou que em dado momento o bergantim aumentou de velocidade, como movido por um forte impulso, e que a música da exárcia subiu meio tom, e quando levantou a vista viu que as sossobres estavam desdobradas, que a Liberty estava muito mais longe e que todos os marinheiros estavam satisfeitos de si mesmos.
- Agora poderemos comer em paz - disse Dalgleish muito comprazido -. Sua idéia é muito boa, senhor, verdadeiramente boa. Não obstante, acho que deveria usar duas vinhateiras para segurar as perchas...
As baleias haviam desaparecido depois de dar um desses longos saltos seguidos de um mergulho com os quais fazem suas misteriosas viagens; os marinheiros falavam de ganchos e sapatilhos, das vantagens e das desvantagens do uso de ganchos e sapatilhos e vinhateiras com os gradis em comparação com o uso de trincas; e Stephen voltou para o lado de Diana. Estava convencido da eficácia do láudano, a tintura de ópio, e desta vez Diana havia retido a quantidade que ele lhe havia administrado por tempo suficiente para que fizesse efeito, de modo que, apesar de estar exausta e meio adormecida, já não tinha enjôos.
Diana emitiu um sussurro quando Stephen entrou, e ele lhe falou das baleias. E ainda que ela não parecesse prestar muita atenção, acrescentou:
- Parece que dois barcos corsários nos perseguem, mas estão muito longe e não representam uma ameaça. O senhor Dalgleish está muito contente porque confia que poderemos deixá-los para trás.
Diana não respondeu. Stephen a olhou atentamente. Estava deitada na maca com o cabelo úmido e alvoroçado, tinha o rosto verdoso e um gesto de dor, provavelmente por causa de uma incipiente náusea, e tinha um aspecto tão descuidado que não era agradável olhá-la, e menos ainda se quem a olhava era seu apaixonado amante. Tratou de encontrar o nome adequado do que sentia por ela, mas não encontrou nenhuma palavra ou combinação de palavras satisfatórias. Não era a paixão que havia sentido em seus anos jovens nem nada parecido; tampouco se parecia ao afeto em que se baseava a amizade, como o que sentia por Jack Aubrey, por exemplo. Sentia carinho, sem dúvida, e ternura, e tinha a sensação de que entre os dois havia cumplicidade, de que haviam iniciado uma busca em comum há muito tempo, talvez a absurda busca da felicidade. Isso o fez evocar dolorosas lembranças, mas, descendo a voz para que não a despertasse, se é que estava adormecida, continuou:
- Parece que essas goletas estavam na rota que todos acreditavam que íamos seguir. Encontravam-se ao sul de uma ilha, mas o prudente senhor Dalgleish passou pelo norte. É quase impossível que sua presença ali tenha sido fruto da casualidade.
Podia haver sido fruto do trabalho dos espiões norte-americanos; ou podia dever ao fato da lista dos agentes norte-americanos não ser correta, pois ele não achava que Beck houvesse deixado nenhum cabo solto. Contudo, tinha que levar em conta o pessoal de Beck... E enquando pensava naquele tipo que estava bêbado no baile, Diana saiu do aparente coma e disse:
- Certamente que não foi fruto da casualidade. Johnson faria, e gastaria, o que fosse necessário para fazer-nos regressar. É capaz de contratar barcos corsários, custe o que custar. Gastaria o dinheiro como água e moveria céu e terra para pegar a mim... e aos meus diamantes.
Fez uma pausa e se virou com dificuldade, mexendo os lençóis.
- São tudo o que tenho - murmurou por fim, e depois acrescentou -: Nunca escaparei desse horrível homem. - Fez outra pausa e depois disse -: Mas não os terá nunca, não os terá enquanto eu tiver fôlego, Deus o sabe.
Stephen observou que apertava o estojo fortemente contra o peito. Sabia que os estimava muito, mas não que chegasse a esse extremo.
- Acredito sinceramente que não tem por que preocupar-se. Estamos muito na frente delas, e o senhor Dalgleish, que conhece estas águas muito bem, assegurou-me que encontraremos névoa nos bancos e que ali não poderão ver-nos nem seguir-nos. Alegro -me muito de que seja assim, porque se há algo que detesto mais que a violência em terra, é a violência no mar, porque é muito mais perigosa e sempre vai acompanhada de frio e umidade.
Ela havia caído num profundo sono induzido pelo láudano, estava ausente, mas as lágrimas seguiam saindo por entre as pálpebras fechadas.
Stephen pensou que era quase certo que ela tinha razão. Johnson era poderoso, rico, influente e, além disso, vingativo, e o ocorrido lhe havia ferido em seu orgulho. Diana o conhecia intimamente (quem poderia conhecê-lo melhor, então?) e não podia equivocar-se ao julgar seu caráter. Por outro lado, era significativo que os barcos corsários tivessem deixado a Nova Escotia passar e houvessem perseguido somente o Diligence. Era provável que ela também tivesse razão com respeito ao colar. Realmente era um adorno magnífico. Tal era sua magnificência que a pedra central tinha nome, talvez Nababo ou Mogol ou algo parecido, e ele havia comprovado que inclusive os homens muito ricos tinham apego a determinados objetos que possuiam. Era o apego o que dava valor a diamantes como o Pitt, o Sancy, o Orloff... De repente se recordou do nome do de Diana e também de que tinha forma de pêra e um formosíssimo cor, uma cor azul muito parecida ao da safira, mas mais clara, e um brilho muito mais intenso que este. Um marinheiro ímpio o havia roubado de um templo em tempos de Aurangzeb e lhe havia dado nome, um nome que havia mantido desde então e que Stephen gostava muito. Sua cor lhe recordava o da bandeira de saída, a que içavam os barcos quando estavam a ponto de zarpar, a única que podia reconhecer, que, além da iminente partida, anunciava-lhe a descoberta de novas regiões do mundo, novas criaturas, novas vidas ou talvez nova vida. Como o senhor Dalgleish havia profetizado, puderam comer em paz, pois o bergantim correio seguia avançando, apesar do vento ter amainado, e os perseguidores não eram mais que uma remota ameaça. E como havia profetizado, havia névoa no Banco do Meio. Ao subir para a coberta, Stephen a viu ao longe, ao norte, formando um arco tão baixo que parecia uma distante faixa de terra; e viu que havia quatro embarcações ao redor do bergantim correio, a uma distância não muito grande, navegando lentamente na mesma direção, para o norte. Por um momento pensou que o senhor Johnson havia mobilizado a maior parte da Armada Norte-Americana e que esta tinha rodeado o bergantim correio; contudo, percebeu que aquelas embarcações tinham as cobertas desordenadas e uma vela latina em no mastro mezena e careciam de portalós, e ainda que não fosse um grande marinheiro, estava certo de que não eram barcos de guerra. Além disso, ninguém parecia estar preocupado, e os homens do Diligence inclusive estavam cumprimentando os do barco mais próximo. E Jack, Dalgleish e o contramestre, trepados na exárcia como se fossem macacos, estavam fazendo um trabalho.
- O que faz o capitão Aubrey alí em cima? -perguntou ao segundo em comando.
- Entre todos estão trocando as vinhateiras por estrobos, senhor - disse o segundo em comando -. Se deixassem o capitão Aubrey fazer tudo o que quer, teríamos o aspecto de um barco de guerra.
- Deve cuidar do braço. É uma loucura estar em mangas de camisa com este frio penetrante. Tenho vontade de chamá-lo, porém... Esses barcos têm uma exárcia estranha, né, senhor?
- São os barcos que costumam pescar nos bancos, senhor, barcos portugueses. Nós os chamamos terra-novas. Verá muitos mais como esses no banco, senhor, se é que pode ver algo, porque a névoa é muito espessa, como o dono disse.
- Terra-novas... Já ouvi falar deles. E essa é Terra-nova, suponho.
- Não exatamente, senhor. Esse é o banco, isto é, a névoa que cobre o banco. Como quase sempre há névoa sobre o banco, às vezes o chamamos de o banco de nevoeiro, sabe o que eu quero dizer...
O segundo em comando duvidava que o doutor Maturin tivesse muita inteligência, já que um homem capaz de confundir as varredoras e as alas dificilmente poderia distinguir o bom do mau, o bem do mal, um ovo de uma castanha... Mas era um jovem de bom coração e respondeu amavelmente para Stephen quando este lhe perguntou por que se formava a névoa, por que não se dissipava com aquele vento e por que os portugueses se agrupavam ali. Explicou o mais simplesmente que pôde que os portugueses iam aonde estava o bacalhau e que esse ano havia muito mais bacalhau ali que no banco Saint-Pierre e inclusive o Grande Banco. Depois lhe perguntou se sabia como era o bacalhau. Disse que era um peixe com uma barbicha sob a mandíbula que gosta de quase todas as iscas, mas sobre tudo da lula e do eperlano. Os papistas eram obrigados a comê-lo seco e salgado nas sextas-feiras e durante a quaresma, se não, iam ao inferno. Por isso os espanhóis e os portugueses, e também os franceses em tempo de paz, que eram papistas em sua maioria, iam aos bancos a cada ano, ainda que também iam ali os habitantes da Nova Escócia e de Terra-nova. Todos iam aonde estava o bacalhau, e o bacalhau estava nos bancos, onde o fundo do mar tinha bruscas trocas de nível e às vezes chegava a elevar-se a apenas quinze braças da superfície... O mesmo havia visto muitas vezes montanhas de gelo encalhadas ali... Porém, em geral, o fundo se elevava a quarenta ou cinqüenta braças. Os portugueses ancoravam e desciam os botes, e em cada um iam dois marinheiros que pescavam com redes de cânhamo. Quando ele era pequeno, havia ido pescar com um tio seu de Nova Escócia, precisamente de Halifax, e em onze horas havia capturado setenta e nove bacalhaus, alguns com um peso em torno de cinqüenta libras. Com relação à névoa, ela se formava porque a fria corrente do Labrador, em sua descida para o sul, passava pelos bancos e se encontrava com a quente corrente do Golfo, da qual o doutor provavelmente ouvira falar. A névoa se formava com grande rapidez e quase continuamente, e havia dias em que o mar jogava vapor como uma chaleira. Por isso o vento não a dissipava, porque estava se formando continuamente. Contudo, em algumas épocas do ano a corrente se desviava para o leste e a névoa não se formava, e durante dias e inclusive semanas os bancos ficavam limpos. De toda forma, um sempre sabia onde estavam os bancos, mesmo sem sondar, pela presença dos pássaros. Nos bancos, com névoa ou sem ela, sempre havia pássaros, pássaros muito curiosos.
- Que tipo de pássaros?
- Araus-comuns, fradezinhos, pássaros bobos, mergulhões, petréis, fulmares, salteadores, todo tipo de gaivotas, pardelas, pingüins...
- Pingüins, estimado senhor? - perguntou Stephen.
- Sim, doutor. Uma ave muito rara. Não pode voar, somente nadar. Alguns o chamam de outra forma, mas nós o chamamos de pingüim. É que é lógico: uma ave que não sabe voar é um pingüim. Pode perguntar a qualquer baleeiro que tenha navegado pelo sul.
- Tem aproximadamente uma jarda de altura, é branco e preto e com o bico volumoso e pontiagudo?
- É assim mesmo. E tem uma mancha branca entre o bico e os olhos.
Sem dúvida alguma, aquela ave era o Alca impennis que Linneo havia descrito e que outros autores de menor categoria chamavam de arau-gigante, uma ave que Stephen sempre desejara ver. Eram tão escassos os exemplares que, de todos seus colegas, somente Covisart assegurava ter visto um, e Covisart tinha tendência a mentir.
- E o senhor realmente viu algum desses pingüins? - inquiriu.
- Oh, sim! Muitos, muitas vezes - respondeu o jovem rindo. - Então, assinalando para Terra-nova com a cabeça, disse -: Ali há uma ilha na qual se criam aos montes, e meu tio da Nova Escócia costumava ir até ela quando pescava no Grande Banco. Um dia fui com ele e matamos muitíssimos. Acredito que o senhor teria achado divertido vê-los retos e imóveis como bolos que iam ser derrubados. Nós os esquartejamos para usá-los como cebo e comemos os ovos.
"Maldito seja esse tio da Nova Escócia! Godo! Vândalo! Huno!", disse Stephen para si, e depois, usando o tom mais amável que podia, em voz alta perguntou:
- Acha que há probabilidade de que veja algum neste banco?
- Acho que sim, doutor, se ficar alerta. Eles lhe interessam? Eu lhe emprestarei meu telescópio.
Stephen ficou alerta, ainda que por causa do frio as extremidades se entorpeciam e punham azuis e se embaçava o telescópio, e quando o bergantim correio, já a grande distância das goletas, deslizava para o limite meridional do banco e atravessava a capa de névoa, ele já havia visto não apenas os araus-comuns e os fradezinhos senão também dois arau-gigante. A névoa ficou mais espessa e ocultou o Diligence por completo. O senhor Dalgleish mandou arriar as sossobres, as sobrejoanetes, as joanetes, as maiores... Todas menos o velacho (que fez descer para debaixo do tamborete) e uma bujarrona, as necessárias para que o barco tivesse velocidade suficiente para poder manobrar naquela turbulenta escuridão. Chegou a noite, e Stephen ainda seguia ali de pé, tremendo, com a esperança de ver outro arau-gigante.
O Diligence avançava devagar. A sino soava continuamente, havia dois vigias na proa e dois na popa e a âncora de leva estava preparada e pendia do serviola de estibordo, porque o senhor Dalgleish não sabia o que poderia ocorrer-lhe ao navegar de noite por aquele lugar entre tantas embarcações e com o perigo de encontrar os blocos de gelo que chegavam até ali porque o verão os havia desprendido. De perto e de longe chegavam apitadas e toques de tambor em resposta, e também de todo o redor, o som dos caracóis dos botes invisíveis. A névoa deixou de ser branca e tomou uma cor cinza que, a medida que avançavam, tornava-se mais escura. Por fim, a umas duzentas jardas, viram através da névoa os reflexos dourados das luzes do farol de popa e os paus de uma embarcação. Era uma embarcação que, por meio de uma manivela, emitia um apito peculiar, exageradamente agudo.
- Ei, Leviathan! - gritou o senhor Dalgleish.
- Que barco vai? - perguntaram do Leviathan.
- O Diligence, sem dúvida. Que profundidade há, William?
- Trinta braças.
O senhor Dalgleish virou o leme para bombordo e o barco pôs a proa contra o vento e retrocedeu um pouco. Então jogou a âncora.
- O senhor Henry está furioso outra vez - disse com voz forte, mas com tom tranqüilo.
- Maldito sem-vergonha! - gritaram desde o Leviathan, agora pelo través de estibordo do bergantim correio.
- Há muito bacalhau, William?
- Bastante, bastante, Jamie - responderam do Leviathan com uma gargalhada -. Não há eperlanos, mas os atraímos com lulas. Mande um bote e terá pescado para jantar.
Imediatamente zarpou um bote sob o comando do segundo a bordo e ao fim regressou, avançando lentamente pelas fumegantes águas enquanto seus tripulantes riam. A bordo trazia dois bacalhaus do tamanho de um homem e, além disso, um pássaro branco e preto de enorme tamanho, já morto, que o segundo em comando manteve apertado contra seu peito quando subiu pelo costado.
- Aqui tem, doutor - disse -. Iam usá-lo como cebo, mas tinham muitas lulas e pensei que o senhor gostaria de ficar com ele.
Todas as profecias do senhor Dalgleish haviam se cumprido até esse momento. E na janta, depois que comeram o melhor bacalhau do mundo ligeiramente fervido em água do mar, profetizou que a Liberty e sua companheira desistiriam de perseguir-lhes naquela noite. Disse que o senhor Henry não podia permitir-se permanecer ali dias e dias com tantos homens a bordo e que não valia a pena fazer um gasto assim por um simples bergantim correio. Era um corsário que atacava melhor perto da costa que em alto mar, e de improviso. Provavelmente já havia mudado de rumo e se dirigia agora para Marblehead tão rápido como podia, já que o vento não mudaria até que a lua estivesse em quarto minguante. O senhor Dalgleish tinha razão no que disse sobre o vento, pois seguiu soprando do sudoeste, de maneira que favoreceu o deslocamento do Diligence quando atravessou cautelosamente o Banco do Meio entre a penumbra da madrugada e a pálida luz do nascer do dia, rodeado de barcos espanhóis, portugueses, da Nova Escócia e de Terra-nova cujas sirenes não cessavam de soar. Mas se equivocou com respeito ao senhor Henry. Apenas o barco saiu da névoa, avistaram as goletas, com seus inconfundíveis paus inclinados, ainda que, por sorte, estavam ainda muito longe, ao sul.
- Nunca havia visto com uma atitude tão obstinada - disse o senhor Dalgleish.
Voltou a dizer que a julgar pela forma como o perseguiam, qualquer um diria que seu barco levava um carregamento de ouro; e o Diligence voltou a rumar para o noroeste, e com a maior quantidade de velame desdobrado que podia usar, dirigiu-se para os bancos de Misaine e Artimon.
Não obstante, fosse qual fosse o ardil que Dalgleish utilizasse - e foram muitos - o condenado senhor Henry o descobria. Quando cruzou o banco Misaine, ali estava de novo; e depois de sair do Artimon, onde havia permanecido ao pairo por toda a noite, voltou a vê-lo à luz do amanhecer, a umas três milhas de distância. A única coisa que o senhor Henry não podia fazer era mudar a direção do vento. Tinham ainda o vento em popa, e posto que o Diligence era um barco com exárcia de cruz, tinha vantagem sobre as goletas. Mas essa vantagem só podia mantê-la atendendo ao velame em cada momento daquela interminável corrida, e se largavam e arriavam as bujarronas, as alas e as sossobres uma e outra vez, e a escassa tripulação estava cada vez mais cansada. Por fim Dalgleish decidiu fazer rumo para o leste, para o Grande Banco, onde a névoa era notoriamente mais espessa, e na longa rota que levava até ele, seu barco deixou de ter a vantagem, porque as goletas navegavam tão rápido como o bergantim com o vento pela alheta, apesar de seu dono cuidar do leme em todos os turnos de guarda e as escotas estarem esticadas como se fossem de ferro. As três embarcações navegavam velozmente, com os pescantes de bombordo quase sempre cobertos pela água e pela branca espuma e com a coberta inclinada como o teto de uma casa. Seus mastros lançavam lamúrias, o vento passava com força arrasadora pelo corrimão de estibordo e assobiava ao passar entre a tensa exárcia, tão tensa que parecia que podia romper-se de um momento a outro.
Não havia névoa no Grande Banco, não servia como refúgio. Havia aves, centenas de milhares de aves, e montes de barcos e inumeráveis botes pescando o bacalhau, mas não havia névoa. Algum estranho fenômeno havia se produzido nas correntes e aquela vasta zona estava tão limpa como a do Mediterrâneo. Além disso, esse dia havia lua cheia, assim que o banco tampouco serviria como refúgio durante a noite. O senhor Dalgleish maldice a hora em que não havia feito rumo para Saint John's, Terra-nova, e virou de novo o bergantim para ter o vento em popa, um vento que era forte, mas instável. E quando virou, se ouviu um rangido no mastaréu de velacho e apareceu uma fenda em sentido longitudinal no terço superior deste. Em uma perseguição como essa não podiam pôr-se em pairo durante o tempo suficiente para colocar outro, assim que de imediato o repararam colocando umas barras do cabrestante diante da fenda e fazendo depois uma arreata. Mas um mastaréu com uma fenda tão profunda não podia suportar a pressão de muitas velas desdobradas, assim que o bergantim correio perdeu a vantagem. Agora, apesar de ter o vento em popa, como era frouxo, só podia alcançar a mesma velocidade que as goletas, e quando teve que tomar rizos nas gáveas, as goletas superaram sua velocidade.
E seguiram navegando velozmente para o noroeste - mais para o norte que para o leste a maior parte do tempo - durante luminosos dias azul claro e brilhantes noites nas quais uma enorme lua iluminava tudo de um lado a outro do horizonte. Fazia tempo que Jack, Humphreys e seu ajudante estavam preparando os canhões e as armas leves do bergantim, e obrigavam a fazer práticas com os canhões aos poucos marinheiros que podiam largar as árduas tarefas do barco. Porém, no que se referia ao armamento do Diligence, Jack não tinha ilusões e pensava que por levar aquelas caronadas de tão curto alcance e de tão pouca precisão, o barco podia definir-se com a frase: cachorro ladrador, pouco mordedor. Além disso, ainda que os marinheiros fossem homens dispostos, eram muito poucos e estavam pouco treinados.
Na quinta-feira pela noite o vento quase se acalmou, e havia muita probabilidade de que rolasse para oeste ou para noroeste e voltasse a soprar com a mesma força de antes, a julgar pela descida do barômetro, a acumulação de nuvens pela popa e o grande aumento da marejada. O vento instável trouxe consigo o odor do gelo, e ao final da guarda de prima, quando a lua estava quase no mais alto do céu, viram como uma gigantesca montanha de gelo (quebrada pela ação da corrente quente) caia para um lado jogando para o ar enormes blocos, que, ao cair no mar, faziam saltar a mais de cem pés de altura um sem-fim de gotas de água que brilhavam à luz da lua, e poucos segundos depois ouviram o ruído estrondoso do portentoso impacto.
Ao passar pelos bancos puseram no Diligence defesas contra o gelo, uma série de paus que cobriam as amuras e diminuiam o efeito do choque com blocos de gelo, desprendidos por causa do verão, ainda que também fizessem diminuir a velocidade, e os tiraram desde que o mastaréu rachara-se, sobre tudo porque já haviam entrado numa zona onde não era usual encontrá-los. O senhor Dalgleish ordenou que voltassem a pôr as defesas e apenas comentou:
- Antinatural.
Era uma medida necessária, ainda que possivelmente inútil para evitar a fatalidade da captura, pois aqueles blocos de gelo dentados, que apenas podiam ver-se porque estavam quase completamente cobertos pela água, podiam perfurar a proa de um barco ainda que não navegasse mais que a cinco nós, e muito mais facilmente se navegava à extraordinária velocidade de catorze nós, a velocidade que o bergantim correio navegava; e ao norte, em seu campo visual, havia outros três brilhantes icebergs.
Dalgleish mal se ausentar da coberta desde que a verdadeira perseguição começara. Não se barbeara e parecia muito cansado e muito velho, e agora, ao pensar na probabilidade de que soprasse um vento favorável para as goletas, estava abatido. Contudo, em seus avermelhados olhos apareceu um intenso brilho na sexta-feira pela manhã, quando avistou um barco ao leste, onde se via um dourado resplendor e começava a aparecer o nimbo do Sol, de um intensa cor vermelha, e havia sinais que pressagiavam uma forte tormenta. Subiu torpemente até a cruzeta com o telescópio, e quando desceu disse para Jack:
- Pode parecer uma crueldade dizer isto, mas acho que esse barco será nossa salvação. Suba com meu telescópio, senhor, e diga-me se pensa o mesmo que eu.
Jack subiu até o tope com a agilidade de um menino - um menino gordo - e posto que o sol nascente lhe impedia de ver bem o barco desconhecido, passou a observar primeiro a Liberty e sua companheira, situadas respectivamente pelo través e pela alheta do bergantim correio. Aproximaram-se durante a noite, e ainda que ainda se encontrassem a uma distância superior ao alcance de um canhão longo, já haviam sentido as primeiras rachas do vento do noroeste, que chegaria ao sair o Sol. Seus capitães sabiam que o vento chegava com pontualidade, por isso já haviam preparado os canhões de proa, e para Jack pareceu que o do senhor Henry era um canhão longo de bronze de nove libras, uma arma que podia ser muito perigosa em boas mãos. Então se voltou para o barco desconhecido, que já se separara daquela luz cegante. Navegava de bolina, com as velas amuradas a estibordo e parecia levar uma carga muito pesada porque estava bastante afundado na água. Sem dúvida alguma, era um mercante, e de tamanho e valor consideráveis, e se estava ali naquela fase da guerra, só podia ser britânico. Avançava sem pressa e sem dificuldade, com as maiores desdobradas e as gáveas rizadas, e seguia um rumo que o levaria diretamente ao encontro com as goletas, as quais somente teriam que mudar de bordo um pouco o leme para aproximar-se dele e poder abordá-lo pelos dois costados e capturá-lo antes que despertasse.
Mas teriam que mudar de rumo muito logo, pois, com aquele vento tão forte e naquela direção, o mercante não tardaria a ficar a barlavento deles, e então, mesmo navegando de bolina, já não poderiam aprisioná-lo.
Todos os que estavam a bordo do bergantim correio os olhavam com grande atenção. Três badaladas... Quatro badaladas... Todos os telescópios enfocavam a Liberty para ver o primeiro indício de que ia aproximar-se do mercante. Havia tanta claridade que podiam ver seus tripulantes. Provavelmente o senhor Henry estava ali no abarrotado corrimão de estibordo olhando para o mercante, a resposta às fervorosas orações de todo corsário. Contudo, parecia que o mercante ainda dormia. E seguia avançando como se o mar estivesse deserto. Jack havia notado que em muitos mercantes os serviolas ficavam distraídos, mas nenhum tanto como o desse mercante.
- Devemos avisá-lo com um canhonaço! - gritou com indignação -. Com sua permissão, senhor, dispararei um canhonaço.
- Dispare uma dúzia, se quer, capitão Aubrey - disse Dalgleish com um sorriso amargo-. Mas lhe asseguro que o mercante não corre perigo. O senhor Henry não tem intenção de tocá-lo.
Jack disparou dois canhonaços, e estava contente de poder esquentar as caronadas. Estava quase certo de que Dalgleish tinha razão, porque um homem como o senhor Henry, um corsário feroz e um excelente marinheiro, não deixaria passar uma atrás de outra aquelas preciosas milhas tendo semelhante butim à vista. Preferia o bergantim correio ao mercante, e dentro de pouco dispararia seus canhões furiosamente.
Quando Stephen foi informado do que ocorria, subiu correndo para a coberta, e ainda que inclusive o mais inexperto marinheiro poderia dar-se conta da situação, pois as goletas manobravam com a facilidade de um barco de recreio com aquele vento, o segundo em comando expressou claramente a situação com uma frase grosseira. Depois do segundo canhonaço, Stephen se aproximou de Jack e perguntou:
- Que posso fazer?
- Desça à santa-bárbara e encha os cartuchos de pólvora com o senhor Hope - disse Jack -. E depois pode disparar esta caronada comigo.
Passaram vários minutos. O mercante despertou, respondeu com um canhonaço, içou a bandeira, a desceu um pouco em sinal de cumprimento e voltou a içá-la. Os barcos corsários responderam imediatamente disparando cada um um canhonaço por sotavento e içaram a bandeira britânica. Jack decidiu disparar as caronadas restantes da bateria de estibordo, convencido de que o mercante perceberia que ocorria algo. O odor da pólvora, que recordava tão bem, propagou-se pela coberta; as pequenas caronadas rodaram suavemente para fora e depois para dentro; as trincas fizeram um agradável rangido. Depois ele e seus companheiros voltaram a carregá-las com metralha e balas.
O mercante tirou os rizos das gáveas e seguiu avançando como se se jogasse nos braços de seus amigos. Ainda que há tempo o Diligence içara bandeiras de sinais para advertir-lhe do perigo, ele não parecia fazer caso. Mas o certo era que não estava em perigo.
Talvez os corsários desejassem capturá-lo, mas não restava dúvida de que sua única presa era o bergantim correio. Haviam orçado, e nesses momentos se aproximavam do Diligence e se afastavam do rumo do mercante. Acabava de passar o momento crucial, e o mercante, agora seguro, cruzou a esteira dos barcos corsários.
- Não há que dar-se por vencido - disse Dalgleish com um triste sorriso.
Deu ordem de que largassem as joanetes e as sobrejoanetes, apesar do mastaréu rachado, e ele mesmo pegou o leme, orçou e desviou um pouco a proa. Tinha afeto pelo Diligence e o conhecia muito bem; pedia-lhe tudo o que podia dar e ele respondia de maneira magnífica. Mas apenas a perseguição entrou nessa nova fase, o vento amainou, e era evidente que o barco não poderia deixar para trás as goletas navegando de bolina; mas agora não podia mudar de bordo para colocar-se com o vento em popa, porque as goletas situaram-se a sotavento desde que afastaram-se do rumo do mercante. Avançavam muito juntas, a uma velocidade de sete nós, enquanto que o bergantim correio navegava a seis nós, e provavelmente a perseguição ia terminar em contenda ao redor do meio-dia. Já haviam trazido para a coberta as sacas de correio, três grandes sacas de pele fina, e a cada uma haviam atado dois lingotes de ferro para que pudessem afundá-las quando chegasse o momento de jogá-las ao mar.
Hora após hora seguiram navegando velozmente pelas agitadas águas cinzentas. As nuvens se acumulavam no oeste escurecendo todo o horizonte; o vento e as ondas aumentavam. Os tripulantes olhavam uma e outra vez para o mastaréu reparado porque, apesar da arreata, as bordas da fenda se separavam e voltavam a juntar-se devido ao forte balanço. Ainda que o contramestre tenha reforçado ainda mais as velas, Dalgleish não podia orçar para situar-se a barlavento das goletas com aquela marejada porque o mastaréu tinha uma fenda muito profunda, e se virasse em redondo cairia em suas mãos.
- Deixo a glória para o senhor, senhor - disse para Jack com o olhar fixo na borda de barlavento da gávea maior -. Quando começarem a disparar virarei e passarei entre elas. - Então, com um gesto iracundo em seu rosto enrugado e quase coberto por uma barba cinza, acrescentou -: vamos lhes dar uma boa surra, ainda que isso seja a última coisa que façamos.
Jack assentiu com a cabeça. Era o único que podiam fazer, a excessão de render-se, e era melhor que render-se sem lutar, ainda que as probabilidades de ganhar à plena luz do dia eram infinitamente remotas.
Entre Jack e Humphreys e sua pequena brigada, seguindo uma rigorosa ordem, destrincaram as caronadas de bombordo, as dispararam e voltaram a carregá-las, e Jack se sentiu satisfeito, porque gostava de usar os canhões quentes e com pólvora recém colocada. Disparou a última caronada e, no momento em que esta retrocedia, ouviu uma gritaria na popa e se virou para ali. Os homens davam saltos para a coberta, gritavam de alegria e se davam palmadas na costas. Ao correr, alguém fez que se soltasse a bolina da vela maior, e o Diligence se abateu para sotavento. Então a Liberty pôde ser vista pelo través. O mastaréu do velacho se partira justo acima dos malhetes e, com todo o velame que levava, havia caído sobre a borda da amura de estibordo. E quando Jack olhou para ela, o mastaréu maior se partiu também. Imediatamente a proa da escuna se desviou para onde vinha o vento, e a vela maior, agora flácida, começou a dar fortes golpes.
Então Dalgleish, em tom furioso, gritou que todos eram uns malditos marinheiros de água doce e ordenou:
- Soltar as adriças das sobrejoanetes, as adriças das sobrejoanetes! Tom e Joe, soltem as condenadas braças de barlavento! Carregar as velas de proa! Esses brioles, esses brioles, malditos filhos da puta! Açoite esses maricas, senhor Harvey! Dê um chute neles! Ei, Joe! Quer atar essa condenada escota antes que se rompa a cabeça?
A confusão era terrível. Jack recebeu dois chutes e o extremo de um cabo lhe deu um forte golpe justo quando acabava de perder a voz. O Diligence ficou somente com as maiores desdobradas, a pressão no mastaréu do velacho diminuiu, a ordem foi restabelecida. O senhor Dalgleish cedeu o leme a outro e, com tranqüilidade, passou a observar a Liberty junto com Jack. A escuna chocara-se de frente contra um bloco de gelo e este a havia perfurado, e a julgar pelo afundamento da proa, a roda estava partida por debaixo da linha de flutuação. Seus tripulantes tratavam de descer os botes, e enquanto isso, a outra escuna se dirigia para ela e se afastava do bergantim correio perdendo em cinco minutos a vantagem que havia conseguido em uma hora.
Depois de dar outra bordada para o norte, o bergantim correio começou a navegar com o vento em popa deixando as goletas cada vez mais longe.
- Acha que a outra escuna continuará nos perseguindo sozinha? - inquiriu Stephen.
- Não, senhor - disse Dalgleish, bocejando -. Pode ir para sua maca e dormir tranqüilo. Assim como eu vou dormir, sem dúvida. A escuna recolherá todos os homens do senhor Henry, se puder... Olhe quantos se dirigem para ela...! Olhe aquele estúpido que se jogou ao mar, ah, ah, ah! Isto é tão divertido como uma obra teatral! Depois a escuna regressará para seu país. A viagem será difícil porque terá que navegar rumo ao leste dia e noite, e posto que as provisões da Liberty não se salvaram e há tantos homens a bordo, terão comido os cinturões e os sapatos antes de regressar a Marblehead.
- Há algo na desgraça dos outros que não nos desgosta de todo - disse Stephen.
Mas ninguém o escutou porque então todos gritaram "Aí vai!" ao ver a distante Liberty afundar sob a superfície do cinzento oceano.
- Não, senhor - repetiu o senhor Dalgleish -. Pode dormir tranqüilo agora. E também a senhora... sua noiva, sua prometida. Esqueci o nome da dama. Espero que o ruído e os gritos não a tenham perturbado.
- Acho que não, mas descerei para vê-la - disse Stephen.
Estava equivocado. Perturbaram-na muito. A primeira descarga havia acabado com seus enjôos, que já eram menos fortes, mas havia mal interpretado os últimos disparos e os gritos que ouvira na coberta. E Stephen a encontrou vestida, sentada em um escaninho, com uma pistola em cada mão apontando para o vácuo e com um olhar feroz como o de um gato montês preso em uma armadilha.
- Largue essas pistolas agora mesmo - disse secamente -. Não vê que é de muito mau gosto apontar com uma pistola para uma pessoa a quem não pensa matar? Deveria ter vergonha, Villiers! Onde a educaram?
- Perdoe-me - disse ela, impressionada com sua severidade -. Pensei que havia uma batalha, que eles haviam nos abordado...
- Nada disso! Nada disso! A mais notável nave corsária, a Liberty, destruiu a si mesma: chocou contra um bloco de gelo e se afundou faz menos de cinco minutos. E a outra, carregada como a arca de Noé, dirige-se para seu país. Felicidades por haver escapado, querida! Acho que está melhor - pegou-lhe o pulso -. Sim, está muito melhor. Quer tomar ar fresco e ver como derrotamos os nossos inimigos?
Stephen conduziu Diana à coberta, onde ainda se ouviam risos e perdera-se a noção de hierarquia, e todos a cumprimentaram com um espontâneo viva. Alguns marinheiros a seguiram até o corrimão e lhe assinalaram a escuna, que agora se achava muito longe, ao oeste. O cozinheiro, colado a ela, contou-lhe detalhadamente todos os movimentos que haviam feito desde o amanhecer sussurrando e com voz enrouquecida, cujo som quase era afogado pelas explicações dos dois ajudantes do capitão e um garoto franzino que queria que ela soubesse que ele havia previsto o que ia acontecer desde o princípio. O senhor Dalgleish se aproximou, tirou o chapéu e a cumprimentou cerimoniosamente:
- Todos estamos muito contentes de vê-la na coberta, senhora - disse -. E espero que nos faça a honra de vir aqui todos os dias enquanto dure a viagem. Ainda que não serão muitos dias, se este vento seguir soprando. Esses vilãos nos obrigaram a percorrer com rapidez uma grande distância para o leste, assim que não me surpreenderia que avistássemos Rockall na quarta-feira.
E ao notar que Rockall não tinha nenhum significado para ela, acrescentou:
- Não me surpreenderia que nossa viagem fosse a mais rápida que já se fez, excetuando o do Clytie, em 1794. E todos ficarão muito contentes ao ver-nos, senhora, pelas notícias que levamos! Eu mesmo comecei a rir quando ouvi pela primeira vez que a Shannon havia capturado a Chesapeake.
CAPÍTULO 4
Finalmente com o novo mastaréu, o Diligence rumou para sudoeste com o vento pela alheta de estibordo. O vento era de moderada intensidade, o melhor que um marinheiro poderia desejar, e, apesar de trazer consigo a chuva com frequência, soprava com a mesma força e na mesma direção dia após dia, como os ventos alísios. Era realmente apropriado para usar as joanetes desdobradas, mas quando diminuiu ligeiramente de intensidade, o senhor Dalgleish abriu também as sobrejoanetes, pois estava decidido a obter o máximo proveito de seu impulso. Ainda que tivessem se detido nos bancos, havia probabilidade de que fizessem uma viagem extraordinariamente rápida, já que os corsários os obrigaram a navegar a grande velocidade em direção leste. O senhor Dalgleish estava convencido de que o Diligence estava muito mais adiantado do que a Nova Escócia, uma corveta muito lenta, pela rota do sul, e de que chegaria primeiro à Inglaterra, e, como todos os que iam a bordo, morria de vontade de dar a notícia da vitória.
O vento seguia soprando com força. O Diligence navegava a toda vela e percorria 269 milhas marítimas de meio-dia ao meio-dia seguinte, e ao cabo de dezessete dias chegou a uma zona de menos de cem braças de profundidade, próxima ao canal da Mancha. E nas turbulentas águas do canal, em meio da chuva, Dalgleish gritou com todas suas forças: "Shannon capturou a Chesapeake!", quando passou a barlavento de um mercante que ia de regresso à Inglaterra, um dos barcos que faziam o comércio com a África, e seus tripulantes se puseram a gritar como loucos. Depois deu a notícia a um sardinero de Cornualhenses, a um cúter nas imediações de Dodman, a uma fragata perto de Eddystone e a muitas outras embarcações, a maioria das quais saíam do Canal.
Se por casualidade a notícia já houvesse chegado à Inglaterra, era lógico pensar que somente se haveria difundido pelo extremo sudoeste dessa úmida ilha e que o Diligence, navegando velozmente pelo Canal com vento do sudoeste e a favor da corrente, chegaria a Portsmouth antes dela. Mas não foi assim. Quando o Diligence içou as bandeiras de sinais para indicar que levava mensagens oficiais e começou a entrar no porto, com Haslar pela amura de bombordo e o castelo Southsea pelo través de estibordo, veio a seu encontro a falua do almirante, com o dobro de remadores, avançando com grande rapidez.
- É verdade? - inquiriu o tenente do navio insígnia.
- Sim - respondeu Humphreys, que levava a comunicação oficial guardada no peito e já tinha um pé posto na escada.
Quando a falua se abordou com o barco, Humphreys saltou para ela, e o vento lhe levou o chapéu. Caiu longe, mas ele riu, e a falua zarpou imediatamente para levar-lhe até a carruagem de quatro cavalos que o conduziria ao Almirantado a dez milhas por hora, uma carruagem adornada com galhos de carvalho, pois o loureiro escasseava desde que havia começado a guerra contra os Estados Unidos.
Apesar da notícia já ser conhecida, o barco correio não atracou no momento de anticlímax, já que a confirmação do rumor aumentou o entusiasmo e os desejos de conhecer todos os detalhes. Os passageiros tiveram que suportar as curiosas perguntas, mas não a inspeção, dos oficiais da aduana, e quando desceram a terra por fim, a gente lhes rodeou para preguntar-lhes como, onde, quando... As ruas de Portsmouth estavam abarrotadas, e todos abandonavam seu trabalho para correr para reunir-se com a multidão. Perto da entrada do estaleiro, muitos de seus empregados e marinheiros de licença estavam empilhando madeira para fazer uma enorme fogueira, e os tendeiros, acompanhados pelos aprendizes, abriam passagem entre eles para acrescentar caixas, barris e, em ocasiões, curiosos objetos, como por exemplo, um sofá com três patas e uma carruagem com uma só roda. E por todas as partes se ouviam gritos de alegria; parecia que a Portsmouth havia chegado a notícia de que toda uma esquadra era que havia alcançado a vitória, uma grande vitória.
Indubtavelmente, essa reação dava uma idéia do profundos que eram a dor, a raiva, o desalento, a frustração e o assombro dos cidadãos ingleses porque os norte-americanos lhes haviam infligido uma série de derrotas, e talvez refletia também seu amor pela Armada real, mas para Jack lhe parecia um pouco exagerada. Por outro lado, as chatas formalidades que eram requisitos prévios para poder ocupar-se de sua vida privada o retardavam, e posto que pensava em sua mulher como um amante apaixonado e desejava estar de novo em sua casa e ver seus filhos e seus cavalos, esses obstáculos enturvaram sua alegria. A hostilidade não era um traço notável de seu caráter, mas ficou visível agora, enquanto caminhava para o escritório do almirante. Não se incomodava que os marinheiros dessem vivas e rissem o quanto quisessem, porque sabiam o que era uma batalha, mas os civis com ar triunfante não lhe agradavam, nem tampouco seus gritos: "Aos ianques vamos vencer, uma e outra vez!". Ao passar em frente ao Blue Posts, teve que ir para a borda da rua para dar passagem a um grupo de entusiasmadas jovens, e ali se encontrou frente a frente com um prestamista que se chamava Abse, um tipo adulador que havia conhecido tempos atrás, quando era simplesmente o guarda-marinha Aubrey e apenas tinha um pouco de valor para empenhar. Abse quase não havia mudado. Ainda estava mal barbeado e tinha as bochechas penduradas, como as dos tipos de Bath, e o nariz bulboso; e tanto as suas faces como o seu nariz estavam vermelhos pela excitação. Imediatamente reconheceu ao seu velho cliente e gritou:
- Capitão Aubrey! Ouviu a notícia? A Shannon capturou a Chesapeake!
E depois que se separaram, Jack ouviu que seguia gritando:
- Vamos vencer-lhes, uma e outra vez!
Se apresentou ante o almirante e contou a batalha com detalhe pela centésima vez, e quando saiu do escritório, as chamas da fogueira já eram muito altas e havia mais alvoroço.
"Não me incomodava ouvir os vivas e os risos em Halifax, aliás gostava muito", pensou Jack. "Parecia-me algo natural, algo correto, porque esses homens estavam perto do lugar da batalha e os norte-americanos os haviam atacado e haviam aprisionado seus barcos, e porque realmente viram a Shannon e a Chesapeake". Além disso, pensou que pouco antes de chegar a Halifax havia comido, mas não antes de chegar aqui, pois o cozinheiro do bergantim estava tão excitado pensando em descer para terra e comunicar a estupenda notícia e ver outra vez a sua noiva (uma jovem de Gosport) que se esquecera. Não houve janta a bordo, e Jack tinha o estômago vazio e parecia que havia se aderido à coluna. Então foi até o Crown e pediu pão e queijo e uma jarra de cerveja.
- E quero que mande um moço astuto ao estábulo de Davis para buscar um cavalo, um cavalo de carga - disse ao hospedeiro -. Que diga que é para o capitão Aubrey. E se o moço voltar antes de que termine de tomar a cerveja, darei meia coroa a ele. Não há nem um minuto a perder.
Nenhum jovem comum teria podido ganhar meia coroa, pois nas ruas havia uma grande multidão e o capitão Aubrey tinha enorme desejo de beber cerveja (aquela era a primeira cerveja inglesa que tomava em muito tempo), mas o moço do Crown, que se criara bebendo as últimas gotas de álcool das garrafas, tragos de genebra e do que podia encontrar, apesar de ser franzino, era muito astuto, e trouxe a égua de Davis pelas ruelas traseiras da hospedaria. Saltou o postigo que dava para o imóvel de Parker e depois o de saída, correndo um grande perigo, e depois deixou a égua ofegando no pátio e, justo no momento em que Jack empinava a jarra pela última vez, entrou tranqüilamente para avisar que acabava de trazê-la.
- Desculpem-me, cavalheiros, mas tenho que dar a notícia a minha família e não posso ficar mais tempo - disse Jack ao grupo de oficiais que o rodeava.
A égua de Davis havia levado no lombo muitos oficiais navais gordos e com pressa (o que a havia feito envelhecer antes do tempo e havia mudado seu temperamento) mas nenhum mais gordo nem com mais pressa que o capitão Aubrey e quando subia a colina Portsdown, suando copiosamente, já estava descontente, por isso tinha as orelhas inclinadas para trás e um olhar furioso. Jack se deteve um momento para que a égua tomasse fôlego e se pôs a observar o manipulador do telégrafo, que se movia sem parar, provavelmente enviando para Londres mais detalhes da vitoriosa batalha através de seus fios. A égua escolheu esse momento para tratar de desfazer-se dele e deu um par de coices com uma agilidade enorme para seu tamanho, levantando as patas de tal maneira que parecia um cavalinho de gangorra vivo. Mas Jack, ainda que não fosse um bom jóquei, era muito decidido, e fazendo uma enorme pressão com os joelhos lhe tirou quase todo o ar e o mal-humor. Puxou as rédeas e, como sua força era superior à dela, a obrigou a andar de novo e a fez descer a galope a verde colina. Depois saiu do caminho principal e seguiu pelo outro que desviava para a direita, e a fez percorrer os atalhos cobertos de grama que conhecia tão bem. Subiu e desceu montanhas e atravessou vales, e por fim subiu a a colina desde onde começavam a estender-se suas terras e observou que haviam sido derrubadas muitas árvores. Cruzou o formoso bosquezinho chamado Delderwood, seguiu o caminho construído por Kimber, onde a égua esteve a ponto de cair, e depois, segurando fortemente as rédeas, passou entre as galerias de uma mina abandonada, uma chaminé de aspecto fantasmagórico e edificações vazias; contudo, apenas se fixou nessas coisas, pois conduzia a égua entre elas com rapidez e quase instintivamente, como se governasse um barco em um intrincado canal, porque havia visto assomar entre as árvores o teto de sua casa e o coração pulava dentro do peito.
Havia chegado a Ashgrove Cottage por trás, pelo caminho mais curto, e agora atravessava o pátio e se aproximava das cocheiras. Quando havia partido, apenas haviam começado a construí-las, mas agora estavam quase terminadas e tinham um formoso aspecto, com suas paredes de tijolo rosado, suas fileiras de portinholas brancas e uma vereda com uma arcada que as separava do jardim, e ao lado estava a cocheira, sobre a qual se alçava uma torre com um relógio que dava uma aparência elegante ao conjunto. Freou a égua e, ao olhar ao seu ao redor, viu muitas coisas que lhe produziram grande satisfação: as novas alas (feitas com a recompensa pelo êxito obtido numa operação bélica nas ilhas Mascarenhas e a recuperação de numerosos mercantes da Companhia das Índias), que, agregadas à antiga casinha de campo, a haviam transformado em uma ampla casa; a enredadeira, que ele havia plantado em forma quando pequenos estacas e já se havia estendido por cima das janelas baixas da casa; e as maçãs que coroavam o muro da horta. Mas tudo estava tranqüilo e silencioso como num sonho. As portinholas estavam fechadas e não havia cavalos assomando a cabeça por cima delas nem se viam moços de estábulopor ali. Não havia nem um alma nas limpíssimas cocheiras e tampouco atrás das reluzentes janelas de cristal da casa; não se ouvia nenhum som exceto o canto do cuco, que, mudando uma e outra vez de tom, chegava de um lugar distante, do outro lado das macieiras. Um estranho pressentimento escureceu sua felicidade e lhe pareceu estar em um mundo irreal; mas nesse momento se ouviu na torre um clique e um zumbido porque o relógio se preparava para marcar o quarto de hora. Ali havia vida, ali estava ele montado em uma égua empapada de suor que necessitava ser atendida imediatamente. Voltou-se para a casa e gritou:
- Ei!
E pouco depois, desde Delderwood, chegou o débil eco: "Ei!".
Outra vez se fez um profundo silêncio, e voltou a ter a sensação de um mundo ao seu redor e ele mesmo eram uma ilusão. Seu sorriso desapareceu, e quando estava a ponto de desmontar, viu no outro lado da arcada duas meninas que, com um menino gordinho no meio, marchavam em fila com bandeiras na mão e gritavam: "Wilkes e liberdade! Hurra! Hurra! Viva a direita! Hurra! Hurra!".
As meninas eram muito bonitas, tinham cabelos encaracolados e pernas compridas, porém Jack, que as olhava amorosamente, ainda podia ver em suas filhas gêmeas algo daquelas pequenas criaturas de cabeça de pepino e pouco cabelo que havia deixado ao ir embora. Tinham uma semelhança assombrosa, mas muito provavelmente a que era um pouco mais alta, a que dirigia o grupo, era Charlotte; e o menino gordinho provavelmente era seu filho George, a quem não vira quando era um bebê rosado muito parecido com as meninas. Então lhe deu um aperto no coração e gritou:
- Olá!
Mas a corrente de afeto se movia em uma só direção. Charlotte virou a cabeça e se limitou a dizer:
- Volte amanhã. Todos foram para Pompey.{6}
Depois reiniciou sua marcha fanática e pomposa, seguida pelas outras crianças, e todos voltaram a corear: "Wilkes e liberdade!".
Desceu da égua e começou a buscar um compartimento onde poder metê-la. Quase todos estavam completamente vazios e muito limpos, mas por fim encontrou um que estava em uso. Desaparelhou a égua, a escovou e a cobriu com um cobertor, e nesse momento o relógio marcou o quarto de hora. Atravessou o pátio, entrou na casa pela porta da cozinha, passou porsuas brilhantes panelas de cobre e chegou ao corredor silencioso e inundado de luz. Apesar de conhecer tão bem a casa que podia encontrar sem olhar as maçanetas das portas, reinava tanto silêncio que não se atrevia a chamar, e ainda que não fosse um homem imaginativo, parecia que havia regressado da morte e que voltava a encontrá-la ali esperando por ele, iluminada pelo Sol. Entrou no refeitório, onde o silêncio era absoluto. Depois entrou na sala de jantar, onde havia limpeza e claridade, mas nenhum som nem nenhum movimento, e instintivamente olhou para o relógio magistral, o relógio de grande precisão com o qual comprovava suas observações astronômicas. O relógio havia parado. Depois abriu seu própio quarto, e ali estava Sophie, sentada ante a escrivaninha com um monte de papéis. E um instante antes de que Sophie alçasse a vista da soma que fazia, ele notou que estava triste e preocupada e mais magra do que antes.
Uma imensa alegria a invadiu e sentiu tanto prazer como ele. Ambos fizeram inumeráveis perguntas - que, em sua maioria, ficaram sem resposta - e relatos incoerentes e fragmentários constantemente interrompidos por beijos e exclamações de júbilo e assombro. Depois ela, ao informar-se de que ele não havia comido, levou-lhe até a cozinha.
- Então é verdade? - perguntou -. Oh, Jack, como estou contente que esteja em casa!
- O que é verdade, querida?
- Que a Shannon capturou a Chesapeake. Ouvimos o rumor esta manhã e o carteiro o repetiu quando passou por aqui. Bonden e Killick me pediram permissão para ir a Portsmouth e eu deixei que pegassem a carruagem e fossem com os outros. Estranho que ainda não tenham regressado, porque se foram faz muitas horas.
- Sim, é verdade, graças a Deus. Isso é o que estava tratando de dizer-te. Stephen, Diana e eu estávamos a bordo da fragata... Foi um combate tão simples como é de desejar, pois só transcorreram quinze minutos desde o primeiro canhonaço até o último... Nós três regressamos juntos para a Inglaterra em um bergantim correio. A viagem foi muito boa depois que conseguimos desfazer-nos dos corsários. Resta mais pão, meu amor?
- Como está Stephen? - perguntou Sophie -. Por que não veio? Por favor, come um pouco mais de presunto, querido. Está muito magro. Sinto muito que não haja restado pastel de carne; as crianças comeram tudo no jantar. Onde está Stephen?
- Está em Portsmouth, mas amanhã irá para Londres em uma carruagem e é possível que nos visite. Diana teve algumas dificuldades por causa de sua nacionalidade e não pode sair de onde está até que as autoridades permitam. Está na casa dos Fortescue, e Stephen, Fortescue e eu somos seus fiadores e teremos que pagar cinco mil libras cada um se sair dali. Mas não irá. Ela e Stephen vão finalmente se casar.
- Vão se casar?
- Sim. Foi uma surpresa para mim. Fiquei sabendo quando pediu para Philip Broke que celebrasse a cerimônia. Um capitão pode casar as pessoas que vão a bordo de seu barco sabe? Mas Broke não pôde casá-los naquele dia, pois a Chesapeake já estava saindo da enseada de Nantucket, e tampouco depois da batalha, porque estava ferido, ainda que sei que gostaria de fazê-lo. Nem sequer pôde redigir o relatório oficial que estava obrigado a fazer... Sim, vão casar-se, e talvez isso seja o melhor, porque ele suspira por ela há muitos anos. Ela se comportou muito bem quando fugimos e também depois da batalha... É uma pessoa pouco comum, eu lhe asseguro. Nunca lhe faltou brio. Sempre lhe estarei agradecido porque lhe deu notícias sobre o Leopard.
- Eu também. E lhe farei uma visita amanhã mesmo. Gosto de Diana e espero que seja feliz.
Havia falado com sinceridade, e se Jack houvesse refletido sobre suas palavras, a haveria aplaudido, porque indicavam o triunfo de seus sentimentos sobre seus princípios ou sobre o que poderia chamar-se sua concepção da moral. Sophie pertencia a uma família tradicional e provinciana na qual, até onde podiam rastrear-se suas origens, nunca houvera um escândalo por assuntos amorosos, uma família de moral estrita que havia sido puritana em tempo de Cromwell e que ainda agora qualificava de detestável inclusive uma mínimo desvio de conduta. Apesar da forma em que a havia educado sua mãe, Sophie era muito bondosa e amável para ser uma falsa moralista; porém, por outro lado, não aprovava nem compreendia um comportamento desenfreado no terreno amoroso (para ela não tinha muito interesse o aspecto físico do amor nem sequer nas relações amorosas lícitas), e as irregularidades cometidas por Diana nesse terreno estavam muito longe de ser mínimas e haviam dado lugar a fofoca inclusive numa sociedade tão liberal como a londrina, na qual havia podido manter sua posição somente graças a sua beleza, seu brio e sua relação com alguns homens que pertenciam ao círculo de amizades do Príncipe de Gales. Mas Jack não refletiu. Estava aturdido por causa de tanta alegria e só havia se fixado em que ela havia mencionado os nomes de Bonden e Killick, seu timoneiro e seu despenseiro respectivamente.
- Como é possível que Bonden e Killick estejam aqui? - inquiriu.
- O capitão Kerr os mandou com uma nota muito amável. Dizia que, em vista de que seria ele que assumiria a Acasta em seu lugar, achou justo que seus homens fossem contigo quando lhe dessem o comando de outro barco.
- Robert Kerr foi muito amável, sem dúvida alguma, muito amável. O comando de outro barco... Ah, ah, ah! Sabe uma coisa, Sophie? Antes de que voltasse a fazer-me ao mar, encherei a casa de relógios. Em uma habitação não há vida sem um relógio fazendo tiquetaque. Há alguns que podem funcionar até doze meses seguidos sem necessidade de dar-lhes corda em todo esse tempo.
- O comando de outro barco... - começou a dizer Sophie, mas parou.
Sabia que não devia dizer-lhe quais eram seus desejos: que nunca lhe dessem o comando de outro barco e que nunca voltasse a afastar-se de casa nem a expor-se a naufragar e a ser preso e aos perigos de tormentas e batalhas. Sabia que uma condição implícita de seu matrimônio era que ela ficasse ali sentada esperando-lhe enquanto ele se expunha a tudo isso. E por essa razão, terminou assim:
-... porém, querido Jack, acredito em que a corda dos relógios durem um ano, todo um ano... Sinto muito o que ocorreu ao relógio magistral: o arganaz de Charlotte se meteu dentro e vai ter crias.
- Bom, com relaçã ao outro barco, não tenho muita pressa, a não ser que me ofereçam a fragata Belvidera ou a Egyptienne, de nossa base naval da América do Norte. Tenho esperanças de conseguir uma das fragatas com canhões de vinte e quatro libras que estão contruindo atualmente, e não acredito que isso seja pedir demais, pois nem todos os dias um navio de quarta classe{7} afunda por causa de um de setenta e quatro canhões. Isso me permitirá passar vários meses em terra, vigiar para que a constuíssem do meu gosto e ocupar-me dos assuntos de casa...
A frase assuntos de casa fez embaçar a alegria de ambos, pois incluia necessariamente ao malévolo senhor Kimber, e eles sabiam muito bem. E sabiam que por causa de Kimber teriam uma infinidade de complicações e possivelmente também grandes perdas, mas agora davam muito mais importância ao arganaz de Charlotte.
- Mas já passei muito tempo ao comando de fragatas - continuou. - É mais provável que me designem um barco de linha, e não tenho pressa para que o façam.
Tinham tantas coisas que se falar! Tinham que falar de tantas cartas que haviam trocado! E falaram do jasmim, do magnífico resultado que havia dado pôr treliça no damasqueiro, e pouco depois ficaram silenciosos, com as mãos agarradas por em cima da mesa da cozinha, olhando-se extasiados, como dois tontos. O silêncio foi rompido pelas vozes que gritavam: "Wilkes e liberdade!". A partir de então se ouviu a mesma frase uma vez depois da outra e cada vez mais perto.
- Aí estão as crianças - disse Sophie.
- Sim - disse Jack. - Eu os vi marchando como se fossem soberanos e dominantes. De que brincam?
- Brincam sobre eleições de Westminster. Seu pai é um candidato. - E depois de hesitar uns momentos, acrescentou -: Um candidato dos radicais.
- Santo Deus! - exclamou Jack.
Durante sua mutável carreira política, o general Aubrey havia lutado às vezes contra a corrupção e outras estivera entre os corruptos, e isso o levara com frequência a uma posição contrária ao governo, ainda que nunca chegara a este extremo. Desde que o general fora eleito representante do horrível distrito de Gripe, propriedade de um amigo seu, havia sido um tory quando o Primeiro Lorde do Almirantado era um whig e um representante das diversas correntes dos whig quando o Primeiro Lorde era um tory. O general, um homem de uma endiabrada energia que aumentava com os anos, tinha a pompa e a eloqüência própias dos militares e as evidenciara no Parlamento, pelo qual, como oponente, havia sido para os governantes como uma espinha cravada, e como partidário, uma vergonha. Alguma ou outra vez fizera para ajudar ao seu filho utilizando sua influência política, mas sempre fora mal interpretado e, em ocasiões, inclusive obtivera um resultado quase desastroso, e ainda que, em verdade, pensara muito poucas vezes em seu filho, Jack teria chegado a ser capitão de navio muito antes se não fosse por seu pai.
- Digo para que entrem? - perguntou Sophie.
- Sim, por favor, querida - respondeu Jack. - Gostaria de conhecer George.
- Crianças, venham dar boas-vindas ao seu pai - disse Sophie, temendo que não o reconhecessem. - Acaba de regressar da América.
Apesar das precauções de Sophie, as crianças não o reconheceram. Olharam-no atentamente e depois olharam ao seu redor para ver se viam a outro homem que fosse familiar. Foram uns momentos muito dolorosos, mas por fim eles recordaram suas boas maneiras e, com semblante grave, deram um passo adiante, fizeram uma reverência e disseram:
- Boa tarde, senhor. Bem-vindo à casa.
Depois olharam para a mãe para ver se haviam feito o correto.
- George, onde estão suas maneiras? - murmurou Sophie.
O pequeno ruborizou e baixou a cabeça, e depois, tomando coragem, aproximou-se dele desde a porta, fez uma inclinação de cabeça e lhe estendeu a mão dizendo:
- Espero que esteja bem, senhor.
- Bem-vindo à casa - sussurraram suas irmãs.
- Bem-vindo à casa - disse George, olhando-lhe fixamente, e depois, sem transição, acrescentou -: Eles chegarão imediatamente. Ouvi a carruagem no caminho da entrada. Bonden me prometeu que traria uma braçadeira de ferro se a notícia fosse verdadeira. Um braçadeira de ferro, senhor!
- Acho que ele vai trazer, George - disse o pai sorrindo.
Depois houve um silêncio, e posto que a Charlotte lhe pareceu embaraçoso, cortesmente, disse:
- O avô esteve aqui no outro dia com sir Francis Burdett e nos falou das eleições de Westminster e de Wilkes e a liberdade. Desde então estamos votando por ele. Não lhe agradaria que fosse eleito?
- Crianças, crianças, devem trocar os sapatos e lavar o rosto - disse Sophie. - E vocês, Fanny e Charlotte, ponham aventais limpos. Nós nos sentaremos no refeitório.
- Sim, mamãe - disseram.
Nesse momento a carruagem entrou no pátio. As crianças saíram correndo e regressaram uns segundos depois gritando:
- É verdade! Conseguimos uma grande vitória! A Shannon capturou a Chesapeake! Hurra! Hurra!
Desapareceram, e pouco depois se podia ouvir como gritavam com todas as suas forças no pátio, como suas vozes se destacavam entre as dos homens. Então Jack notou que ali usavam o tom e as expressões grosseiras dos marinheiros. Fanny chamou Bonden de "maldito tonto", mas de brincadeira, sem intenção de ofender, e Charlotte disse que apesar de Worlidge estar bêbado como um gambá, qualquer grupo de "malditos sodomitas" teria aparelhado o pônei melhor do que eles. Isso era certo, pois três dos quatro homens que se ocupavam das tarefas de Ashgrove Cottage se haviam criado no mar e não sabiam nada de cavalos, e o quarto, o atordoado Worlidge, que trabalhava em uma fazenda quando foi recrutado à força para a Armada, vinte anos atrás, jazia no piso da carroça desde antes de que iniciassem a viagem de regresso e não pudera mover nem um dedo desde então. Os outros três, ao ver que haviam perdido a coalheira e que Worlidge estava mudo e imóvel como se houvesse sofrido uma paralisia, haviam amarrado o pônei às varas com nós marinheiros, e dessa forma o animal não tinha nenhuma possibilidade de soltar-se, mas cada vez que dava um passo para frente, o cabo que tinha ao redor do pescoço lhe cortava a respiração, assim que tiveram que empurrar a carroça desde que saíram de Hand and Racquet, onde haviam celebrado a vitória.
Sem embargo, haviam suado tanto com o exercício que já estavam sóbrios outra vez, ou pelo menos bastante sóbrios em relação ao que era usual na Armada, e quando Bonden (o mais astuto de todos) foi ao refeitório para receber novas ordens, deu mostras de alegria que não eram causadas pelo dog's nose{8} nem pelo flip{9} nem o sumo de framboesa com rum.
Deu as boas-vindas ao seu capitão, felicitou-lhe por haver conseguido a vitória e escutou com grande atenção o relato que Jack fez da batalha, cujos movimentos compreendeu perfeitamente.
- Se não houvesse ocorrido isso ao capitão Broke, tudo teria sido perfeito. Servi sob suas ordens no Druid, e já então era um fora de série com os grandes canhões. Ele se recuperará, senhor?
- Espero que sim, Bonden - respondeu Jack, sacodindo a cabeça ao recordar sua profunda ferida. - Mas o doutor poderá dizer mais do que eu. É provável que nos visite amanhã e há que ter seu quarto muito limpo e arrumado para se recolha. Agora vá cumprimentar Kimber de minha parte e diga-lhe que eu gostaria de vê-lo amanhã muito cedo, antes que eu viaje.
- Sim, sim, senhor - disse Bonden. - Arrumar o quarto do doutor e dizer a Kimber que venha depois do café da manhã.
- Vai viajar, querido? - inquiriu Sophie quando a porta se fechou atrás de Bonden. - Não acho que tenha que ir ao Almirantado imediatamente. Acredito que o almirante tenha lhe dado algum tempo de licença.
- Oh, sim! Foi muito amável... Fez o que correspondia... ele lhe mandou muitas lembranças. Mas não é o Almirantado que me preocupa mas Louisa Broke. Há que dizer-lhe como está seu esposo o quanto antes, e se saio amanhã cedo, posso ir e voltar no Harwich Flyer e estar de regresso aqui na sexta-feira.
- Uma carta... Uma carta urgente serviria da mesma forma. Está tão cansado, querido Jack, e tão magro! O que deve fazer é descansar, e passar vinte e quatro horas em uma carruagem lhe esgotará, para não falar de cavalgar até a cidade. Além disso, como disse para Bonden, você não pode dizer nada sobre a ferida de Broke. Uma carta urgente com bons desejos, frases de consolo e a opinião de Stephen será muito melhor.
- Sophie, Sophie... - disse, sorrindo.
Em seu íntimo, Sophie sabia que era habitual que os membros da Armada percorressem grandes distâncias para consolar as famílias de seus companheiros de tripulação e que a ela a haviam consolado em várias ocasiões, por exemplo, dois meses atrás, quando o primeiro oficial da Java havia vindo de Plymouth para assegurar-lhe que ainda tinha esposo; contudo, não podia evitar opor-se à repentina viagem de Jack. Um pouco ciumenta e mal-humorada murmurou: "Louisa Broke", e lhe ocorreram outros argumentos, porém, pelo brilho que havia nos olhos de Jack e a forma com que havia inclinado a cabeça, sabia que, por mais sensatos que fossem, seria inútil expô-los. Pouco depois voltaram a ficar tão alegres como antes e deram um passeio pelo jardim para ver as plantas que tanto apreciavam, sobretudo as que estavam perto da casa original, as que eles mesmos plantaram. Nenhum dos dois tinha dotes para a jardinagem, nem muito gosto, e as plantas que haviam sobrevivido (uma pequena parte) formavam grupos isolados e estavam raquíticas, mas eram suas própias plantas e por isso as queriam muito tal como estavam. Quando Sophie teve que entrar de novo na casa para atender às crianças, ele entrou também, e ouviu seus fortes passos por toda a casa. Pouco depois ele foi para a sala de música e se sentou ao piano de Sophie, que, apesar dela utilizar pouco, havia sido afinado recentemente para as lições das meninas. Tocou uma série de alegres acordes, mais e mais agudos a cada vez, e depois outros que foram descendo de tom até que entroncaram delicadamente com as notas da sonata de Hummel, que ele interpretava amiúde e que Sophie havia aprendido há muito tempo. Pegou seu violino, um violino adequado para alguém com conhecimentos musicais muito superiores aos seus, um Amati nem mais nem menos, que tomara parte de um butim obtido no oceano índico e que ele comprara fazia algum tempo. Então interpretou a mesma melodia adaptada para o violino. Não tocava bem, porque fazia tempo que não tinha um violino nas mãos e, além disso, porque os dedos da mão do braço ferido ainda não haviam recuperado sua agilidade, mas para Sophie dava no mesmo se fosse Paganini, o que importava era que a casa tinha vida outra vez, que estavam nela todos seus habitantes.
Sophie acertara com relaçã à postura inamovível de Jack. No dia seguinte, ele e Stephen subiram na carruagem logo depois do jantar, e esta, dando solavancos e com grande estrondo, afastou-se de Ashgrove Cottage por um caminho secundário tão rapidamente como podiam movê-la seus quatro cavalos.
- Na verdade, não gosto de viajar assim - disse Jack quando chegaram ao caminho principal e foi possível conversar de novo. - Prefiro uma carruagem comum ou a diligência.
- Falou com Kimber, né? - perguntou Stephen,
- Não. Kimber disse que não podia vir ver-me porque ia para Birmingham, mas mandou um grupo de homens que, conforme ele, são novos sócios em nosso negócio. E alguns eram uns tipos raríssimos. Além disso, havia um par de advogados com gravatas sujas que não cessavam de tomar notas...
- Diga-me, meu amigo, as coisas vão mal?
- Bem, o que está claro é que Kimber descumpriu minhas instruções e fez mil vezes mais coisas do que disse. Construiu longas galerias e poços profundos, comprou maquinaria de todo tipo e fez que a sociedade, como eles a chamam, participe em outros negócios, incluindo um canal navegável.
"O canal era a única coisa que faltava", disse Stephen para si. "Agora, deixando à parte o movimento perpétuo e a pedra filosofal, o quadro está completo".
-...e tudo é muito estranho - continuou Jack. - Por um lado, dizem que as perdas e as dívidas são enormes, e um deles inclusive me mostrou uma conta que é quase o dobro do que possuo, ainda que tenha admitido que é um cálculo aproximado; porém, por outro lado, me pediu para que siga adiante, e dizem que, se forem feitas escavações um pouco mais profundas, transformaremos as perdas em enormes ganhos. Querem mais dinheiro e mais segurança, e vi como um dos advogados passeava pela habitação como se estivesse avaliando os móveis. Você teria se admirado ao ver-me, Stephen, porque estava impertérrito como um juiz e os deixava falar. Aqueles malditos me incomodaram muito porque tiveram a impertinência de me perguntar diretamente se havia investido em bônus do Estado, como eram o acordo matrimonial que Sophie e eu haviamos firmado, qual era a fortuna de Sophie e qual seria a herança de meu pai. Passaram dos limites, e provavelmente pensavam que tinham um filhote de pombo entre suas garras, que eu era um tipo que não sabia nada de negócios e que podiam persuadir-me ou assustar-me para que fizesse qualquer ação insensata e prejudicial. Mas lhes cortei bruscamente e disse que não pensava em investir nem mais um penique e lhes desejei que passassem um bom dia. Oh, Stephen, quanta vantagem temos ao envelhecer! Há dez anos, ou mesmo cinco, todos teriam terminado no bebedouro e teriam me processado por agressão.
- O que eles responderam?
- Fizeram muito ruído e aguns falaram bravatas e outros se mostraram conciliadores. Tratavam de dar uma de cal e uma de areia... Disseram que não esperavam que um cavalheiro descumprisse seus compromissos e que, de todas as formas, era inútil que o fizesse porque eles tinham direito sobre minha propriedade, já que em minha ausência a sociedade tivera que pedir dinheiro emprestado a um juro exorbitante. Disseram que tinham o direito de penhorar meu bem, que Kimber havia delegado para eles todos os poderes e que seria melhor contribuir em dinheiro efetivo do que descontar letras, mas que, desgraçadamente, a senhora Aubrey não achou conveniente entregar, e acrescentaram que isso não era uma crítica e que não podia esperar que as mulheres entendessem de negócios. Conforme eles, a única forma de proceder é seguir adiante, conseguir dinheiro para seguir adiante e satisfazer os credores mais urgentes. Acham que será fácil agora que regressei, porque poderiam conseguir dinheiro emprestado utilizando meu nome, que é por si só uma garantia, e necessitam de minha assinatura para cumprir uma simples formalidade. Dizem que se eu me opuser a isto, eles, contra sua vontade, terão que tomar medidas para salvaguardar seus própios interesses... Sabe Deus como vou sair desta situação! É o mesmo que navegar com a costa a sotavento.
Trocaram os cavalos em Petersfield, e quando a carruagem deixou para trás o povoado, Jack disse:
- Como estou contente que Sophie os tenha freiado, Stephen! Quando se deu conta que Kimber estava se excedendo, escreveu-lhe uma carta dizendo que parasse, e desde então se negou a assinar qualquer outro documento e a dar mais dinheiro. E quando as coisas pioraram, guardou a carruagem, vendeu os cavalos e disse a todos os serventes que procurassem outro emprego, bem, todos exceto Dray e Worlidge, porque eram aleijados. Ainda nos resta muito dinheiro investido em ações e no banco de Hoare, mas não sei se conseguirei conservá-lo. Acho que ela entende mais de negócios do que você e eu. Desde o início foi contra isto, sabia?, contra Kimber e de seu maldito projeto.
Stephen podia ter dito que ele também era contra o maldito projeto desde o princípio, que lhe parecera o típico engano do qual Jack era objeto quando se achava em terra, um engano que costumava vitimar os oficiais navais mais ricos, mas não disse nada e Jack continuou:
- É uma boa mulher... Bem, a Bíblia diz algo sobre isso que acho muito acertado, mas não lembro bem.
- Estou certo que você tem razão - disse Stephen. - E diga-me, o que aconteceu com a esposa de Killick, aquela mulher com um cabresto que ele comprou no mercado da última vez que estivemos na Inglaterra?
- Oh! - exclamou Jack e passou a rir. - Voltou para seu primeiro marido poucos dias depois que fomos para o mar. Parece que costumam fazer isso e que vão de um mercado para outro por toda a costa. A mãe de Sophie revistou seu quarto e encontrou os pertences de Killick e duas de nossas bandejas de prata. Eu nunca teria permitido esse registro se estivesse em casa, mas agora estou contente de que tenha feito, porque aprecio muito essas bandejas.
- A senhora Williams desempenha agora seu ministério no Ulster, né?
- Sim, graças a Deus. Está cuidando de Frances, que espera um filho. Teria sido horrível se estivesse aqui quando Sophie teve que cortar os gastos da casa.
- Temo que isso a privou de uma grande satisfação - disse Stephen, recordando o prazer que a senhora Williams sentia em economizar, seu ar triunfante ao poupar um cabo de vela e sua profunda e absurda devoção pela libra.
- A senhora Williams... - disse Jack com seu vozeirão, mas parou, pensou melhor no que ia dizer, tossiu, pegou um pacote envolto por um guardanapo que havia num canto da carruagem e continuou: - pegue um destes sanduíches. Sophie os fez e tive que prometer que comeríamos todos. Não ficará contente até que eu esteja gordo como um boi.
Terminaram de comê-los pouco depois de passar por Guildford, quando anoitecia. E depois que Jack sacudiu o guardanapo pela janela e o dobrou, disse:
- Vou dar um cochilo.
Então se acomodou num canto, apoiou o queixo contra o peito e, tão rapidamente como o Sol se põe no trópico, adormeceu. Essa era uma habilidade comum para a maioria dos homens do mar, o resultado de fazer a guarda ao longo de muitos, muitos anos, e Stephen, que padecia com insônia, olhava-o com inveja. Pelo seu lado, cada vez mais borrados, passavam com rapidez as cercas, as casas, os palheiros e as aldeias, e passou a diligência de Portsmouth, com os faróis já acesos e tocando a buzina, mas Jack seguia dormindo. Ainda dormia quando voltaram a trocar os cavalos, e quando já estavam atravessando Putney Heath ergueu-se por fim e perguntou:
- O que é um embargo?
- Um embargo? - repetiu Stephen e permaneceu pensativo por uns momentos. - Não há dúvida de que é um termo legal, mas não sei o que significa. Não sei quase nada sobre a lei, só que quando um homem comum se põe em contato com ela, ainda que sua causa seja justa, é provável que sua alma e seu bolso sofram grandes danos. Por isso, meu amigo, rogo-lhe que busque alguém que possa aconselhar-te bem e que o busque imediatamente. Este não é momento de aplicar panos quentes nem de consultar advogados provincianos. Deve contratar um dos homens de mais talento de Londres, deve contar com o assessoramento de um advogado eminente e experiente que esteja acostumado a tratar com sem-vergonhas como esses e a enfrentá-los em seu própio terreno. Necessita de outro Grotius, de outro Pufendorf.
- Sim, porém, onde posso encontrar a outro Pufendorf?
- Onde? Bem, eu conheço na cidade a um cavalheiro inteligente e discreto que conhece a maioria dos advogados e é a pessoa que melhor poderia indicar qual é o mais hábil e astuto de todos. Quer que lhe pergunte?
- Sim, agradeceria-lhe que o fizesse, Stephen, se não tiver que desviar-se de seu caminho para isso.
Stephen não teve que desviar-se nem uma jarda, pois o propósito de sua viagem a Londres era levar os documentos conseguidos em Boston para seu chefe, sir Joseph Blaine, o cavalheiro inteligente e discreto a que havia se referido. Os documentos estavam envoltos em um pedaço de tela e teve que levá-los sobre as pernas pelo fato de viajar numa carruagem pequena, mas ele havia preferido viajar assim desta vez porque numa ocasião se esqueceu de alguns documentos secretos numa carruagem, e já sofrera bastante por isso.
Sob o chuvisco, os cocheiros levaram-nos pelas ruas pouco transitadas, onde se viam cartazes alusivos à vitória com tantas frases engenhosas e versos como a imaginação e o espaço permitiam, e mesmo que alguns estivessem bastante deteriorados, as luzes mortiças tornavam possível distinguir dois barcos com os nomes de Shannon e Chesapeake escritos em letras enormes. Pararam diante de uma discreta casinha situada atrás do mercado Shepherd e o cocheiro de mais autoridade bateu fortemente na porta, na qual apareceu o própio sir Joseph com uma vela na mão.
- Querido Maturin! - exclamou e o fez entrar para o saguão enquanto olhava atentamente para o pacote que Stephen trazia. - Que agradável surpresa! Bem-vindo finalmente à casa!
Subiram para a biblioteca, um agradável quarto de solteiro com um tapete turco, poltronas cômodas, muitos livros perfeitamente ordenados, a maioria sobre entomologia, uma lâmpada de abajur verde, algumas esculturas de bronze e quadros eróticos muito bem realizados e um fogo que fazia brilhar a proteção de latão.
- Peço que me perdoe por ter-lhe pedido que me recebesse aqui, senhor, mas estive fora por tanto tempo que não sei como estão as coisas no Almirantado - disse Stephen. - Fiquei sabendo que houveram mudanças e pensei que seria melhor evitar a possibilidade de qualquer mal-entendido ou atraso.
- Não tenho nada que desculpar-lhe. Nada me haveria produzido mais satisfação. Ordenei que acendessem o fogo quando recebi sua mensagem, porque sei que o senhor é friorento. Por favor, aproxime a poltrona um pouco mais. Asseguro que me parece uma prova de confiança, e, como o senhor disse, houve mudanças no Almirantado. O pobre Warren já não está conosco, mas isso o senhor já sabia antes que o Leopard zarpasse. Que golpe deu o senhor então, Maturin! Chegou a receber minhas felicitações, né?
- Na própia Java. O senhor foi muito amável, muito amável.
- Em isso é no primeiro que estou em desacordo com o senhor. Em minha opinião, foi uma magnífica operação... O almirante Sievewright e uns poucos mais se hão ido, e há meia dúzia de homens novos, alguns dos quais são jovens muito competentes para o cargo que ocupam. Além disso, temos um novo vice-secretário, o senhor Wray, que antes trabalhava no ministério da Fazenda. Para ser mais preciso, é um vice-secretário suplente, ainda que estou quase certo de que logo receberá a nomeação para o cargo, a não ser que o pobre Barrow se recupere inesperadamente. É um homem que analisa detalhadamente as coisas e tem muita energia... Eu gostaria de ter pelo menos a metade... Trabalha mais duro do que todos nós e ainda encontra tempo para ter uma vida social muito ativa. Não vou a nenhum lugar onde não o encontre. Talvez o senhor conheça o senhor Wray, Edmundo Wray.
Stephen conhecera o senhor Wray em uma desafortunada ocasião, quando Jack Aubrey o acusara, se bem que veladamente, de fazer armadilhas no jogo de cartas. Wray não havia julgado conveniente exigir uma satisfação da maneira usual, talvez porque considerava que a acusação havia sido o suficientemente velada, e devido à comprida ausência de Jack, o caso fora esquecido. Mas Stephen pensou que esse não era o momento de dizer como e onde o havia conhecido, sobretudo porque percebera que sir Joseph não tinha o menor interesse nisso, já que seus brilhantes olhos estavam fixos no pacote envolto em tela.
- Estes documentos os consegui em Boston - disse Stephen, desenbrulhando-os por fim. - Na primeira folha encontrará um sucinto relato de como chegaram às minhas mãos e na seguinte um sumário de seu conteúdo. A maioria só tem importância para assuntos locais, e já foram examinados em Halifax pelo capitão Beck, mas acho que alguns têm importância para assuntos mais gerais.
Sir Joseph pôs os óculos e se sentou na mesa da biblioteca, perto da lâmpada.
- Meu Deus! - exclamou depois de aguns momentos. - Estes são documentos privados de Johnson!
- Exatamente - disse Stephen.
Então se levantou, ficou de costas para o fogo e puxou para a frente os espigões da jaqueta para que suas delgadas pernas recebessem melhor o calor. Observou sir Joseph, que, em meio do silencioso quarto, lia atentamente os papéis que estavam naquele círculo luminoso e estava impaciente para terminar de conhecer seu conteúdo. O único que se ouvia era o rumor das folhas ao passar e, de vez em quando, em voz muito baixa, a exclamação: "Astuto raposa...!". Depois de um tempo, Stephen se virou para as prateleiras. Ali havia obras de Malpighi, Swammerdam, Ray, Réaumur, Brisson, e os mais modernos escritores franceses, e tinha inclusive o último estudo do velho Cuvier, que não lera ainda. Então se sentou no braço da poltrona e leu os primeiros capítulos e depois se aproximou do gaveteiro de sir Joseph para buscar o inseto ao qual se referia o estudo. As gavetas estavam cheias de insetos mortos muito bem conservados e classificados, e na segunda havia um exemplar raríssimo, um verdadeiro ginandromorfo, com um lado feminino e o outro masculino, uma colias comum, sob cujo nome científico podia-se ler: Presente de meu estimado amigo o Dr. P. H. Essas eram as iniciais que ele usava nas comunicações que enviava ao departamento na época em que presenteara Blaine com a mariposa. Blaine sempre estava preparado para o imprevisto, e ninguém mais que ele podia decifrar as iniciais que havia debaixo de muitos dos espécimes de sua grande coleção, que precisamente eram os mais exóticos. Entre eles, Stephen reconheceu alguns exemplares de Java, Celebes, Índia, Ceilão e Arábia Feliz,{10} que, sem dúvida, eram presentes de membros dos Serviços Secretos que operavam naqueles lugares, membros que não conhecia e que tampouco o conheciam. Encontrou o estojo com o inseto que procurava, um horrível gorgulho, voltou a pegar o livro e o aproximou da luz junto com o estojo. Sir Joseph seguia lendo.
Stephen lia agora o argumento de Cuvier, que era persuasivo e estava escrito de forma elegante, mas que lhe parecia uma falácia. Retrocedeu duas páginas enquanto mantinha o dedo perto da cabeça do gorgulho, mas as referências à ilustração não estavam claras. Poderia haver detectado o erro se não houvesse passado todo o dia viajando e se parte de sua mente não se ocupasse de Diana. Sua mente era difícil de controlar, e se não lograva dominá-la, se formaria nela a idéia de que Diana havia morrido, ou de que o mito de Diana, criado por seu infinito amor, havia morrido, e isso lhe produziria um fundo pesar; contudo, esse pesar não seria muito fundo, já que pelos meios mais surpreendentes, o antigo mito tendia cada vez mais a coincidir com a realidade. Pensou que talvez aquilo se parecia com matrimônio: ambos haviam passado muito tempo juntos e, ainda que continuassem sendo quase como estranhos um para o outro, estavam inextricávelmente ligados. Cravou o olhar nas chamas pensando em Diana Villiers, e Cuvier passou a ser uma recordação que cada vez se fazia mais borrada e chegou a ser infinitamente remota.
Sir Joseph deu um suspiro, fazendo Stephen voltar para o quarto, e depois de pôr de novo os documentos na pasta, afastou-se da mesa.
- Querido Maturin - disse, apertando-lhe a mão. - Não sei o que dizer. Usei todos os superlativos ao meu alcance quando lhe escrevi felicitando-lhe pelo golpe que deu no Leopard e agora a única coisa que posso fazer é repeti-los. O senhor realizou um trabalho magnífico, magnífico; contudo, sinto arrepios, sim, asseguro-lhe que sinto arrepios quando penso nos riscos que correu para trazer estes documentos.
Seguiu louvando-lhe com generosidade e sinceridade e acrescentou:
- Não tem nada contra uma janta, né, estimado amigo? Tenho uma garrafa de vinho que queria compartilhar com o senhor para celebrar seu regresso, uma garrafa nata mecum consule Buteo, a última que me resta. Espero que ainda se encontre em bom estado.
Ainda se encontrava em bom estado. Era um vinho do porto excelente, e enquanto o bebiam, depois de comer ovos mexidos com manteiga, costelas em molho picante e queijo Stilton, sir Joseph deu umas palmadinhas na pasta e disse:
- O senhor Johnson deve ser um homem muito interessante. Estes documentos mostram seu progresso desde que era um jovem aficionado com talento até que se converteu em um profissional; um progresso extraordinariamente rápido. Parece que ele e seus colegas puderam condensar em poucos anos a experiência de várias gerações. A rede que organizou no Canadá o faz merecedor de elogios, e ainda que, indubtavelmente, foi enganado pelos franceses, isso poderia ter acontecido a qualquer um. Que tipo de homem é?
- É um homem bastante jovem e tem uma grande agilidade mental e um forte instinto animal. Poderia dizer que é um homem atraente e tem maneiras elegantes e gosta de insinuar-se. Acho que sua ambição de poder é seu traço mais característico, ainda que não tenha a desagradável aparência de uma pessoa ambiciosa, dominante, autoritária. Procede de uma família de considerável fortuna e possue uma grande inteligência. Não pretendo afirmar que existe uma relação causa-efeito neste caso, mas é uma pessoa que não suporta que o contradigam nem que lhe interponham obstáculos, e como é tão astuto, persistente e determinado e pode usar sua grande fortuna quando tarda em receber os fundos dos Serviços Secretos ou estes são insuficientes, é um oponente perigoso. Estou convencido de que alugou dois barcos corsários para que atacassem o bergantim correio em que viajávamos e que lhes ofereceu uma grande recompensa para capturar-nos. Se encontravam na rota por onde ia a corveta que levava o relatório original e a deixaram passar, e para nós, em troca, perseguiram-nos com uma incrível tenacidade, cuja única explicação seria que esperavam obter uma enorme quantidade de dinheiro. Ainda que, na verdade, neste caso, Johnson tinha um poderoso motivo para agir assim.
- Sim - disse sir Joseph, ainda que não podia saber-se se havia consentido porque sabia qual era o motivo de Johnson ou por cortesia, e, depois de encher as taças, olhou a vela através da sua, riu e acrescentou: - Que golpe, Meu Deus! Que golpe...!
- A verdade é que tive boa sorte, não vou ocultá-lo - disse Stephen. - Apesar de que ter conseguido dar esse golpe graças às circunstâncias e não a meus própios méritos, não lamento terminar minha carreira com um êxito fortuito.
- Terminar, Maturin? - perguntou sir Joseph assombrado. - Que quer dizer com isso?
Sir Joseph possuia todas as qualidades necessárias para ser um excelente chefe dos Serviços Secretos, mas não tinha senso de humor, e a ansiedade e o desalento comuns a sua profissão haviam acabado com o pouco que tinha por natureza. Não se deu conta de que Stephen falava com leveza, de que havia caído na tentação de arredondar uma frase, e, muito sério, prosseguiu:
- Maturin, Maturin, como pode ser tão débil? Estou certo que nesses lugares remotos leu nossos boletins e comunicados preparados para os países neutros e, sobretudo, para o povo russo, e que chegou à conclusão de que a guerra está a ponto de acabar. Acho que pensa que o fato de Wellington ter o controle de boa parte da Espanha, implica que Napoleão está derrotado e que por controlarmos sua querida Catalunha, o senhor já não tenha trabalho. Mas lhe asseguro que o controle que exercemos sobre a Espanha, particularmente sobre a Espanha mediterrânea, é muito débil, pois só contamos com a ajuda de poucos batalhões de soldados de reserva e de portugueses, e se os franceses fazem um movimento desde o Rosellón e atacam as tropas de Wellington pelo flanco direito, cortariam extensas linhas de comunicação. Sim, inclusive nessa região a situação é muito perigosa, por não falar do norte. As tropas de Wellington recebem as provisões pelo mar, por isso o domínio do mar é um fator decisivo, e considerando somente nossa esquadra do Canal... Aqui está o último comunicado de lorde Keith:
O inimigo tem doze barcos de linha, açém do Jemmapes, preparados para zarpar, e quinze fragatas... - quinze, Maturin... - e outras embarcações mais pequenas, enquanto que a esquadra que tenho sob meu comando atualmente é composta de catorze barcos de linha, oito fragatas, seis corvetas, dois bergantins, uma escuna e dois cúters alugados, e onze destas embarcações estão nos portos ou de regresso a eles para reabastecer.
Um terço delas não podem ser utilizadas no momento, enquanto que todas as dos franceses estão preparadas para o combate; e as outras esquadras estão na mesma situação. Como vê, se os franceses conseguissem sair, Wellington ficaria pendurado no ar e mudaria por completo a face da guerra, por isso ele se queixa constantemente de que não tem suficiente proteção naval nem provisões. Asseguro-lhe que a guerra se encontra em sua fase mais perigosa, Maturin. Estamos queimando nossos últimos cartuchos, não nos restam reservas, e se Napoleão conseguir uma vitória em terra ou no mar, duvido que nos recuperemos. Osenhor esteve fora por muito tempo e talvez não possa apreciar a imensa perda de recursos que este país sofreu. Subiram os impostos o mais alto possível e, contudo, não há dinheiro e apenas podemos apetrechar a Armada. O prestígio do Governo diminuiu muito. O desconto dos bônus do Tesouro é tão alto que o senhor poderia forrar o quarto com eles. O comércio está quase paralizado, o ouro não se encontra por nenhum lado, há papel moeda por todas as partes e na cidade há muito pouca atividade. Na cidade todos estão entristecidos, Maturin, entristecidos!
Para Stephen era indiferente o estado de ânimo da cidade, mas refletiu sobre as palavras de sir Joseph. Não possuia uma informação tão detalhada e atualizada como a de seu chefe, mas colaborara na redação de muitos documentos falsos para ter-se deixado enganar pelos que havia lido, e sabia muito bem que a situação era crítica, que a aliança contra Bonaparte era exageradamente frágil, que os dois lados estavam exaustos e uma única vitória francesa, bem aproveitada, poderia ter como consequência um final terrível para a guerra e o estabelecimento de uma tirania que duraria gerações e gerações. Sir Joseph estava dando um sermão, por assim dizer, para um homem que não necessitava de converção, e Stephen lamentava muito, sobretudo porque com os anos ele aumentara sua tendência de contar as coisas com muitos detalhes. Agora, por exemplo, dava muitos detalhes ao falar da Bolsa.
- Acredito que existem poucas coisas nas quais os homens pensam mais e cuidam com mais zelo que o dinheiro, e a Bolsa é um infalível indicador de seus pensamentos, dos pensamentos de um grande número de pessoas inteligentes e informadas que têm muito a perder e muito a ganhar. Inclusive a vitória conseguida pelos senhores, que há chegado como caída do céu, e a de Wellington em Vitória, praticamente o único que hão provocado na cidade é que se acendam fogueiras e luzes e se pronunciem discursos patrióticos. Esses cavalheiros sabem que sozinhos não podemos seguir adiante por muito tempo e que, na primeira ocasião que tenhamos má sorte, nossos aliados nos abandonarão, como nos abandonaram outras vezes. E se eu tivesse a metade da segurança que o senhor tem de que Napoleão está a ponto de ser derrotado, iria para a cidade amanhã e faria uma fortuna.
- Como a conseguiria, senhor?
- Comprando bônus do Estado, ações da Companhia das Índias e de qualquer outro tipo de companhia cujo valor dependa do comércio internacional. Compraria essas ações pelo baixíssimo preço que têm agora e assim que Bonaparte fosse derrotado ou se firmasse a paz, eu as venderia e obteria enormes ganhos. Enormes ganhos, senhor! Qualquer pessoa que estivesse informada de antemão e dispusesse de uma considerável soma, ou pudesse obter uma considerável soma emprestada, poderia fazer uma fortuna. Seria como apostar em uma corrida de cavalos sabendo de antemão qual será o vencedor. É desta forma que se fazem as fortunas na Bolsa, ainda que, em verdade, raras vezes seja possível obter benefícios tão grandes.
- O senhor me assombra- disse Stephen. - Não sei nada destas coisas.
- É o que eu supunha - disse sir Joseph em tom afetuoso, sorrindo-lhe. - Permita-me que lhe sirva um pouco de vinho. Apesar disso, eu não vou fazer uma fortuna, desgraçadamente, pela simples razão de que estou totalmente de acordo com os cavalheiros da cidade. Acredito que agem com acerto. Napoleão ainda é um poderoso chefe militar e, ainda que tenha se metido em uma confusão em Moscou, tem muitas probabilidades de se recuperar. Acaba de demostrar em Lucerna o que é capaz de fazer, e Berlim corre um grave perigo neste momento. Temo que faça outra de suas inesperadas e excelentes jogadas e divida os aliados e chegue a destruí-los, como já fez tantas vezes. Ainda tem situados na Alemanha duzentos e cinqüenta mil homens, e novas divisões estão sendo treinadas na França. Por outro lado, sua frota está intacta e tem barcos na desembocadura do Escalda, Brest e Toulon... O senhor sabia, Maturin, que só em Toulon ele tem vinte e um barcos de linha e dez potentes fragatas? Todas as suas embarcações são excelentes, estão bem equipadas e bem tripuladas, e nós lhes fazemos bloqueio com esquadras compostas por barcos velhos que a duras penas podem manter-se em seus postos durante todo o ano. Creia-me, Maturin, a Bolsa é como um barômetro, e posso assegurar-lhe que ainda nos falta muito para fazer antes que Boney{11} seja derrotado.
- Então brindemos por sua derrota - disse Stephen.
- Pela derrota de Boney - disse Blaine e saboreou seu vinho do porto e, alguns momentos depois, acrescentou: - Faz muito pouco que o Primeiro Lorde e eu lamentávamos amargamente sua ausência. Ainda que a zona mediterrânea seja realmente o seu terreno, se estivesse aqui, teríamos lhe pedido que aceitasse realizar uma missão no Báltico, uma missão muito adequada para o senhor. Ali há uma ilha fortificada e provida de um grande número de potentes canhões que se encontra sob o controle de uma brigada catalã a serviço dos franceses; uma brigada que pertencia a uma das grandes guarnições que a Espanha manteve ao longo da costa de Pomerânia até a rebelião. Fizeram com que acreditassem que sua presença na ilha é de vital importância para a independência de sua terra, uma condição necessária para conseguir a autonomia catalã. Não sei que invenções e que mentiras contaram para convencê-los de semelhante mentira, porém, apesar de que seja ilógico e apesar dos acontecimentos históricos, permanecem ali e serão um obstáculo para nós se nossas operações no norte seguirem seu curso provável, pois temos muitas esperanças de nos aliar com o rei de Saxônia... Napoleão não é o único que tem aliados pouco confiáveis. - Depois voltou a referir-se aos catalãos dizendo: - Foram mantidos totalmente isolados, o que é fácil em uma ilha, afinal de contas, ah, ah, ah! Parece que a única coisa que sabem do que ocorre no mundo exterior é o que os franceses lhes dizem. E se um homem de sua inteligência, Maturin, por achar-se distante do palco da guerra, pôde formar uma idéia da situação que, permita-me dizer, é errônea, não me admira que eles acretitem que Napoleão está vencendo em todas as partes e que devolverá a independência de seu país. Tampouco me estranha que estejam decididos a fazer saltar pelos ares seus inimigos, nós, quando passemos entre Memel e Danzig com nossos barcos de guerra e transportes para desembarcar atrás das linhas inimigas, como pensamos em fazer.
- Formam um grupo político coerente, uma só organização? Pertencem a um dos principais movimentos de Catalunha? Quais são seus objetivos com relaçã a Madri?
- O senhor me pegou desprevenido - disse sir Joseph. - Poderia ter-lhe informado todos os detalhes há alguns dias, mas este novo triunfo - dava palmadinhas nos documentos de Johnson - fez esquecer-me dos detalhes. Minha memória já não é o que era.
Terei que consultar os relatórios que estão no escritório. Lembro perfeitamente que o Primeiro Lorde disse que, em situações como esta, cinco minutos de explicações, esclarecimentos e frases persuasivas, ou como o senhor queira chamá-las, poderia conseguir mais do que um ataque de uma poderosa esquadra contra semelhante fortificação e em águas tão perigosas, pois não teria garantia de êxito. Uma batalha nessas condições acarretaria a perda de muitas vidas, barcos e dinheiro, seria como a batalha de Copenhague, ainda que em menor escala e sem contar com o fator surpresa nem com a presença de Nelson. Com cinco minutos de simples explicações se conseguiria que abrissem os olhos e se evitaria uma batalha sangrenta, custosa e de resultado incerto. Evidentemente, muito poucos homens seriam capazes de conseguir isto, o emissário devia ser alguém em quem eles acreditassem e em quem confiassem, e imediatamente seu nome nos veio à mente. O senhor seria a pessoa perfeita. E, baseando-me em seus trabalhos anteriores, estou certo de que não só os convenceria como os induziria a voltar seus canhões contra os franceses.
- Num caso assim, as coisas dependeriam em grande parte dos líderes - disse Stephen.
No movimento autônomo catalão havia muitas tendências, muitas correntes e diferentes organizações, cujos chefes às vezes disputavam entre si. Stephen conhecia quase todos, e alguns inclusive desde a infância. Muitos eram amigos seus e haviam trabalhado com ele, e mesmo que achasse que alguns estavam equivocados, respeitava-os; contudo, havia vários em quem não confiava.
- Sim, sem dúvida - disse Blaine. - Queria... Bem, darei todos os detalhes amanhã tão logo leia os relatórios. Naturalmente, terá todos os dados, mas espero e confio em que só terão valor histórico, e que a missão se resolverá com êxito dentro de uma semana aproximadamente, se já não tiver se resolvido, pois como não contávamos com o senhor e era fundamental agir com celeridade, confiamos ela a Ponsich.
- A Pompeu Ponsich?
Sir Joseph assentiu com a cabeça.
- Estudou a fundo o assunto, examinou toda a informação que tínhamos e, apesar de sua idade, decidiu ir. Disse que estava seguro de que teria êxito.
- Se Pompeu estava certo disso, estou tranqüilo - disse Stephen. - Não podiam haver escolhido melhor.
Pompeu Ponsich era um catalão erudito, poeta e filólogo e também um patriota. Era conhecido em toda Catalunha e respeitado por todos.
- É um alívio ouvir-lhe dizer isso - disse sir Joseph. - Às vezes duvidei que fosse acertado enviar um homem de letras e de certa idade, ainda que fosse um homem de grande valor. Porém, para a pessoa adequada, este assunto é simples, não requer grandes façanhas como as que o senhor realizou a bordo do Leopard e, mais recentemente, em Boston, senão palavras sinceras e argumentos convincentes ditos com certeza e, se for preciso, acompanhados de documentos fornecidos por nós. E Deus sabe que não são poucos os documentos que temos para demostrar que Bonaparte não deseja nada de bom para Catalunha... Nem para nenhum país.
- Alegro-me que o caso esteja em tão boas mãos - disse Stephen. - Ainda que eu teria gostado de ir, estou satisfeito de que tenha encontrado alguém melhor. Além disso, fui convidado para dar uma conferência no Instituto da França no dia dezessete e, a menos que minha presença aqui seja necessária, eu gostaria de dá-la.
- Vai dar uma conferência no Instituto da França? Felicito-lhe sinceramente. E sobre que tema?
- Sobre as espécies extintas da avifauna de Rodríguez. Mas talvez me desvie um pouco do tema e fale dos ratites{12} de Nova Holanda.{13}
- Deve ir, Maturin. Não pensávamos em pedir que fosse para o Mediterrâneo antes da volta de Fanshaw. Deve ir, ainda que só seja porque ali encontrará muitos homens importantes. Dê recordações de minha parte a Cuvier e a Saint-Hilaire. Além disso, isto chega como caído do céu, pois terá a oportunidade de ter contato direto com...
O olhar penetrante de Stephen o fez dar-se conta de que o vinho do porto, o entusiasmo e o zelo profissional estiveram a ponto de fazê-lo dizer uma grave indiscrição, de cometer um terrível erro, e rapidamente tratou de encontrar a forma de sair da situação com dignidade e por fim, vacilante, terminou a frase:
-... Antigos conhecidos.
- Sim, com cientistas que conhecemos há muito tempo - disse Stephen, mantendo ainda aquela olhar. - Sobretudo queria voltar a ver Dupuytren, pois lhe aprecio ainda que aceite Bonaparte como paciente, e tenho desejo de ouvir Covisart falar do ânus artificial e do estetoscópio, esse aparelho tão interessante, e também de adquirir novos conhecimentos científicos.
Apesar de terem mútua estima e confiança, houve um silêncio embaraçoso durante alguns momentos, e por fim Blaine rompeu o silêncio falando num tom completamente diferente.
- Ainda que faça esta viagem por motivos que não levantam suspeitas, não acha que há perigo de que o reconheçam? O senhor lhes fez muito dano, e não seria sensato confiar muito num salvo-conduto. Não há muitos espiões como o senhor, que têm escrúpulos.
- Levei isso em conta isso, mas me parece que na atualidade o perigo é insignificante. Os únicos franceses que realmente conheciam meu nome e meu aspecto físico eram Dubreuil e Pontet-Canet, e, como o senhor sabe, os dois estão mortos. Seus subordinados, que poderiam ter alguns dados sobre minha identidade, ainda se encontram nos Estados Unidos, e mesmo no improvável caso de que lhes tenham ordenado voltar imediatamente, o bergantim em que regressamos fez uma viagem tão rápida que provavelmente eles não chegarão à França até várias semanas depois de que eu regresse para a Inglaterra.
- Isso é certo - disse Blaine.
- Além disso - disse Stephen, - considero que esta viagem é também uma espécie de seguro, porque se alguém suspeita de mim, suas suspeitas se desvanecerão quando eu demostrar publicamente que sou um cientista (acho que posso gabar-me de que ninguém na Europa conhece melhor a anatomia do Pezophaps solitarius) e que não tenho má intenção, pois fui ao encontro do inimigo, e me meti voluntariamente na boca do leão.
- Isso também é certo - disse sir Joseph. - Não há dúvida de que seu estudo sobre o solitário dará muito o que falar e deixará claro que o senhor é uma autoridade nesse tema. Mas queria que regressasse assim que fosse possível, antes de que algum agente dos Serviços Secretos voltasse dos Estados Unidos. Suponho que quererá viajar sem demora. Faz falta agir com rapidez. Quer que eu lhe consiga uma licença oficial e um meio de transporte? No dia doze zarpa um barco com prisioneiros para trocar que poderia servir-lhe.
- Sim, por favor - respondeu Stephen. - E já que o senhor é tão amável, permita-me fazer-lhe outros dois petidos.
- Escuto-lhe com agrado - disse sir Joseph. - Nos deixou fazer muito poucas coisas pelo senhor e, contudo, nós lhe devemos muito pelo que conseguiu no Leopard e em Boston.
Stephen fez uma inclinação de cabeça, hesitou por um momento e disse:
- A primeira concerne à senhora Villiers. Como o senhor saberá por meu relatório, graças a ela consegui estes documentos, mas ela ignora minha conexão com o departamento. Por razões óbvias, acompanhava-me no bergantim, mas devido a teoricamente ser uma inimiga, foi detida quando chegamos.
- Ah, sim? - disse sir Joseph.
- Da última vez que falamos dela, como recordará, o senhor suspeitava que tinha relação com a senhora Wogan - disse Stephen intencionalmente.
- Lembro - disse sir Joseph. - E também recordo da dama. Tive o prazer de conhecê-la na casa de lady Jersey, e voltei a vê-la no Pavilion. Mas se não me equivoco, o senhor teve a mesma suspeita que eu quando ela partiu de improviso para os Estados Unidos.
- Foi, mas estou muito contente de poder dizer que estava completamente equivocado. Manteve sua lealdade a este país apesar de sua relação passageira com o senhor Johnson e de ter assinado uma série de documentos. Dou fé disso e peço que seja liberada.
- Muito bem - disse sir Joseph, escrevendo em um pedaço de papel. - Ocuparei-me pessoalmente do caso. Não haverá nenhum problema. A dama pode ficar tranqüila.
Fez uma pausa, porém, ao perceber que Stephen não tinha intenção de acrescentar nada mais, continuou:
- O senhor falou de um segundo pedido, né?
- Sim. É algo estritamente pessoal, não tem nada a ver com o departamento. Um amigo meu, um oficial naval que se encontrava em terra ao término de uma missão e em espera da seguinte, por dizê-lo assim, entrou num terreno pantanoso. Depois ficou ausente durante muito tempo e, ao voltar, se enterrou quase até a cabeça, e ficará totalmente sepultado a menos que um perito legal lhe indique como sair dali. Peço que me diga o nome de algum advogado eminente que exerça sua profissão atualmente.
- Poderia dizer-me que tipo de problema tem seu amigo? Isso me permitirá saber que tipo de conselheiro legal devo recomendar-lhe. No caso de uma disputa por um butim, o mais adequado seria Harding, certamente, a menos que já houvesse aceitado a representação da parte contrária. No caso de uma causa criminal ou matrimonial, não há dúvida de que deveria consultar Hicks.
- Explicarei o melhor que possa qual é o problema. Meu amigo caiu nas mãos de um projetista, um homem menos ambicioso que os típicos fraudadores, porque lhe assegurou que poderia converter em prata e não em ouro o chumbo das minas abandonadas que há em suas terras. Meu amigo simpatizou com esse homem e seu projeto lhe encantou, e foi tão ingênuo que assinou uma série de documentos sem lê-los.
- Assinou documentos sem lê-los? - inquiriu sir Joseph.
- Isso mesmo. Haviam lhe dado o comando de um barco e parece que não queria desperdiçar a maré.
- Meu Deus! Mas isso não deveria surpreender-me, porque a estupidez dos marinheiros quando estão em terra risca no incrível, e hei visto inumeráveis exemplos disso. O hei notado em marinheiros de todos as classes e inclusive em homens de grande valor que são capazes de estar ao comando de uma grande frota e de fazer negociações com grande habilidade. Precisamente na semana passada um destacado oficial que conheço recebeu seu meio pagamento anual e, com essa soma em forma de letras negociáveis metida nos bolsos, entrou num café. Ali manteve conversa com um estranho, e este lhe propôs um sistema infalível para multiplicar seu capital por 7,25 sem correr nenhum risco. Então o oficial lhe entregou as letras e, até algum tempo depois do estranho ter partido, não percebeu que não sabia onde ele vivia e nem sequer conhecia seu nome. Porém, voltando ao seu amigo, ele sabe que tipo de documentos assinou?
- Teme que um dos documentos seja uma procuração. Contudo, ele já havia dado uma para sua esposa. Ao regressar se encontrou com que o projetista, o taumaturgo, havia realizado enormes gastos e havia feito obras, fazendo inclusive o tradicional canal.
- Ah, sim, o canal, é claro! - exclamou sir Joseph com um olhar expressivo.
- Seria inútil fingir que não estou falando de Jack Aubrey - disse Stephen. - E suponho que viu a monstruosa vala que foi escavada em Hampshire.
- Sim, vi, sem dúvida - disse sir Joseph. - Com certeza causou muitos comentários.
- E isso não é tudo. Esse réptil, Kimber, porque Kimber é o nome do projetista, agora se esconde atrás de uma nuvem de sócios, isto é, de cúmplices para os quais transferiu seus ambíguos poderes. Alguns são advogados sem escrúpulos que ameaçaram processar meu amigo. Estou muito preocupado por Aubrey. Gosto muito dele, e também de sua esposa, e, como o senhor sabe, eu lhe sou muito agradecido.
- Se não me recordo mal, o senhor tem navegado quase sempre com ele.
- Desde que me fiz ao mar pela primeira vez. Mas há algo mais: ele me resgatou das garras dos franceses quando fui aprisionado em Mahón. Levou a cabo uma brilhante operação correndo um grande risco.
- Não há dúvida de que se merece toda sua gratidão - disse sir Joseph. - Não conheço ao cavalheiro, ainda que o senhor o tenha mencionado amiúde, mas sei que tem boa reputação, que é um capitão hábil, determinado e combativo. Lorde Keith tem um grande conceito dele. Além disso, tem tanta sorte no mar que na Armada lhe chamam de Jack Aubrey o Afortunado. Deve de haver conseguido muitíssimo dinheiro na Ilha da França e Reunião. Como é possível que um homem cuja inteligência lhe permite levar a cabo com êxito uma longa e difícil operação esbanje o dinheiro que ganhou com tanto esforço, embarque sem pensar em projetos quiméricos, firme documentos sem lê-los e confie cegamente em seus concidadãos? Isso é algo que escapa de minha compreensão.
Sir Joseph moveu a cabeça de um lado para o outro tratando de entender como uma pessoa podia confiar em seus concidadãos sem ter provas de sua integridade, e ainda sem entender, continuou:
- Talvez seja mais afortunado no mar do que em terra. E, naturalmente, não é afortunado por ter o pai que tem. O senhor conhece o general Aubrey, Maturin?
- Sim, por desgraça - disse Stephen.
- Agora que abraçou a causa radical, está pior do que nunca. Ele e esses homens de má reputação que tem por amigos são um incômodo para todos no ministério, e depois de seu discurso em Spitalfields, todos duvidam que seja acertado dar o comando de um barco a seu filho. Por certo que a Acasta, que havia sido designada ao capitão Aubrey, foi posta sob o comando de outro oficial. E é que, como disse senhor Wray, há muitos oficiais de mérito desempregados cuja nomeação reforçaria a posição do Governo. E o mesmo ocorre com as honras que vão conferir-lhe. Iam propor que lhe concedesse o título de cavalheiro, ou inclusive o de barão, por ter afundado o Waakzaamheid quando estava ao comando do Leopard, mas temo que não lhe concederão nada. Se o senhor aprecia a Aubrey, por favor, diga-lhe que mantenha o seu pai calado o maior tempo possível, se puder. Mas isso não vem ao caso. Agora nosso objetivo é escolher um advogado que evite que o capitão Aubrey sofra as consequências de sua insensatez. Deve ser um homem perspicaz, acostumado a tratar com pilantras e muito duro...
Sir Joseph foi trazendo para sua mente um atrás de outro os nomes dos melhores advogados da cidade e enquanto isso, com voz pastosa e grave, cantarolava: Coll'astuzia, coll'arguzia, col giudizio, col criterio… con un equivoco, con un sinónimo, qualche garbuglio si troverà.
- Sim - disse por fim. - Acho que encontrei o nosso Bartolo londrino, o advogado mais hábil de todos. Se chama Wilbraham Skinner e vive no Lincoln's Inn.
- Agradeço muito, sir Joseph - disse Stephen, levantando-se.
- Gostaria de jantar comigo amanhã? Convidarei a Craddock e a Erskine. Depois poderíamos ir ao Covent Garden para ver Cherubino. Atua uma jovem de excelente beleza e uma voz angelical.
Stephen disse que, infelismente, devia declinar do convite, pois tinha que pegar a carruagem de Holyhead porque ia à Irlanda para ocupar-se de alguns negócios. E sir Joseph, ao comprovar a firmeza de sua decisão, disse:
- Mandarei buscar esses documentos antes que parta. Onde se hospeda?
- No Grapes, no distrito de Savoy.
- Em sua antiga guarida - disse sir Joseph, sorrindo. - Antes das onze receberá a licença para viajar para Calais e o certificado de aduana firmado pelo Comissionado de transportes. Quer que lhe acompanhem um par de serventes?
- Sim, por favor - disse Stephen, encaminhando-se para a porta. Ao chegar a ela se deteve e acrescentou: - talvez leve a senhora Villiers a Paris. É conveniente que o faça por determinadas razões. Acha que haverá algum impedimento para que viaje?
- Absolutamente nenhum - disse sir Joseph. - Absolutamente nenhum por nossa parte e provavelmente nenhum pela outra, pois uma dama com nacionalidade norte-americana sempre será bem recebida em Paris. Deixarei um espaço em branco no certificado de aduana para que inclua os serventes e a sua possível acompanhante e para que escreva o que queira.
- Muitíssimo obrigado, meu estimado Blaine.
- Não há de que, não há de que. Desejo-lhe uma boa viagem, querido Maturin, e lhe rogo encarecidamente que cumprimente por mim os Cuvier.
CAPÍTULO 5
- Oh, Maturin, como estou contente de que tenha voltado! - exclamou Diana, atravessando o salão da casa da senhora Fortescue e pegando-lhe as mãos. - Teve uma boa viagem? Venha para o jardim e conte-me como foi... A senhora Fortescue descerá de um momento para outro com sua odiosa prole. Não, como está muito cansado. É melhor que nos sentemos.
Então, indicando um sofá, perguntou:
- Bem, querido, como foi a viagem?
- Como costumam ser as viagens deste tipo - respondeu Stephen. - Às vezes com muita pressa, às vezes com muito atraso, e no final se descobre que todas as coisas poderiam ter sido resolvidas da mesma forma ou até melhor pelo correio. Deixei minha escova de dentes em Tuam ou Athenry e um estupendo par de sapatilhas de riscas em Dublim, e na viagem de regresso, um barco corsário norte-americano nos perseguiu até Holyhead, e todos trememos dos pés à cabeça.
Acostumara-se com a Diana atual e só lamentava que não fosse como antes quando estava sozinhos. Estavam compenetrados e ele se encontrava a gosto sentado ali do seu lado. Diana lhe demonstrara afeto que eram como boas-vindas ao lar e ele teve de novo a sensação de que aquela situação se parecia com o matrimônio. Tinha bom aspecto e parecia estar bem fisicamente. Sua pele, como costumava ocorrer durante a gravidez, estava brilhante, e era evidente que não tinha prisão de ventre, um sofrimento freqüente nesse estado. Mas uma pessoa observadora podia perceber também que atrás da satisfação e da alegria de Diana havia algo que a incomodava, e muito. Não era possível determinar o motivo de seu desgosto, mas os sinais de que algo lhe incomodava e, sobretudo, de que era recente, eram inequívocos.
Se notou claramente qual era o motivo alguns momentos depois, quando a senhora Fortescue apareceu com as crianças. Eram cinco, e para Stephen não lhe pareceram mais odiosas que outras criaturas senão crianças comuns, crianças gorduchas e ignorantes com resfriado e com o hábito de olhar fixamente para os outros e de meter os dedos na boca, mas não de todo más. Por outro lado, sua mãe era uma dessas esposas de oficiais navais que amiúde o fizeram refletir sobre a profissão de marinheiro. Era uma mulher corpulenta e de pele rugosa, uma mulher sem atrativos e de aparência varonil, e ainda que se enfeitasse com muitas de fitas, grampos e broches, suas maneiras eram rudes e faziam seus adornos parecerem incongruentes. Além disso, empregava muitas expressões marinheiras, inclusive mais que a maioria dos marinheiros. Depois de um tempo Stephen notou que sua atitude para com Diana era hostil, ainda que ocultasse, e que lhe temia. A senhora Fortescue não lhe convidou para tomar parte na conversa, pois, como dava muita importância à hierarquia naval e a sua condição de esposa de um capitão de navio com antiguidade, quando soube que ele era um cirurgião, pensara que tinha muito pouco ou talvez nada para dizer-lhe. Por outro lado, ele quase nunca cuidava sua aparência e agora que chegara de uma longa viagem estava pior vestido do que nunca e, além disso, sujo, despenteado e sem se barbear.
Passou a pensar em Paris e no Pezophaps solitarius e prestou atenção à silenciosa batalha que dois pequenos Fortescue mantinham num canto junto a um jarro colocado num pedestal. Lutavam por um objeto que não podia distinguir, possivelmente um lenço, e suas irmãs lhes animavam. Ao mesmo tempo, a senhora Fortescue e Diana discutiam civilizadamente sobre algo que não havia podido ouvir. Pensou então que incluiria alguns comentários sobre os ratites de Nova Holanda... Viu que a disputa chegara ao seu fim, que Diana parecia haver ganhado e que a senhora Fortescue não desejava seguir enfrentando-se diretamente com ela e planejara molestá-la atacando a ele.
- E diga-me, senhor, é certo que na Armada prussiana os cirurgiões têm que barbear os oficiais? - perguntou, olhando-lhe compassivamente.
- Absolutamente certo, senhora - respondeu Stephen. - E na nossa as coisas são ainda piores. Meu Deus, quantas vezes tive que limpar-lhe os sapatos do capitão Aubrey!
A senhora Fortescue avermelhou de raiva, mas antes de que pudesse responder, o capitão Fortescue entrou no salão, e Stephen observou como ela o olhou com carinho e depois olhou para Diana com uma mistura de angústia e desprezo. Apenas alguns segundos depois voltou a sentir raiva (e seu avermelhamento se prolongou) porque o vaso caiu e quebrou. É que um dos meninos havia ficado petrificado ao ver seu pai entrar e havia soltado o objeto, e o outro se caíra para um lado. O salão se encheu de ruído, acusações, negações e descaradas delações, e quando tiraram dali os meninos gritando para dar-lhes alguns açoites, Stephen e Diana foram para o jardim.
- Como você está, querida? - inquiriu ele enquanto passeavam entre os lírios do capitão, que eram seu orgulho e sua alegria.
- Muito bem, Stephen, obrigada - respondeu ela. - Eu lhe obedeci em tudo. Fui muito boa. Só tomei um copo de vinho na hora de comer, apesar de que aqui sempre há muita gente e isso anima a beber, e não voltei a provar o tabaco, nem sequer o rapé. Stephen, por favor, poderia acender um charuto e me deixar fumar um pouco agora que não nos vêem da casa?
- Poderia - respondeu Stephen, e depois de fazer mais algumas perguntas sobre seu estado físico, perguntou: - Hás visto a Jack?
- Oh, sim! Vinha com Sophie todos os dias, exceto quando estava na cidade, até que teve que ir embora para Dorset porque seu pai adoeceu. Desde então Sophie tem vindo sempre que pode... É uma criatura encantadora, sabe, Stephen? E como as duas tinhamos longe nossos pares, nos sentávamos a falar como duas cotorras. A propósito, por que teve que viajar? Você não me disse.
Era estranho que Stephen pudesse responder uma pergunta como essa com absoluta sinceridade, mas agora podia fazê-lo e sentiu uma grande satisfação ao responder.
- Fui determinar formalmente os limites de uma propriedade na região de Joyce. A propriedade era de meu primo Kevin e foi confiscada na rebelião de 1798, mas devido a ele ter morrido lutando contra Bonaparte nas filas do exército austríaco, será restituída. Darei a boa notícia ao seu pai quando o vir na França. Também tenho uma boa notícia para você, Villiers.
Procurou em seus bolsos e por fim acrescentou:
- Aqui está a ordem de liberdade. É condicional, pois só pode viver em Londres e nos condados adjacentes, mas não acho que gostaria de viver em outros lugares. Não se alegra, Villiers?
- Oh, sim, alegra-me muito, Stephen! Agradeço que tenhas se preocupado tanto. Agradeço-lhe infinitamente, querido. A idéia de sair desta repugnante casa cheia de crianças repelentes... Por Deus, Stephen, acenda um charuto.
Aspirou lentamente a fumaça e, ao expeli-la, ficou pálida e se recostou em seu ombro.
- Já não estou acostumada com isto - disse, virando para ele seu rosto macilento, e depois acrescentou: - Não posso viver na Inglaterra, Stephen. Já é duro ter que suportar as fofocas sobre o que ocorreu na Índia, assim como será a situação quando começarem a chegar os comentários de Halifax? Conheço muitas pessoas. Conheço a vintenas aqui e a centenas na cidade. Já é bastante difícil poder manter a cabeça erguida em Hampshire, portanto imagine como será em Londres dentro de poucas semanas. Dirão: "olha a Diana Villiers, com a tripa grande e sem marido". Você sabe como o mundo é pequeno... Tenho ótimos, amigos e conhecidos em cada canto e não poderia ir ao teatro nem à ópera nem a nenhuma loja decente sem encontrar alguém conhecido. Por outro lado, acredita que poderia ficar encerrada em uma fazenda isolada para não encontrar-me com nenhum ser civilizado, nem sequer com o pastor, por medo de que me reconhecessem? Ou talvez em uma ruela do condado de Surrey? A melancolia terminaria deixando-me louca.
- Realmente, uma pessoa tão sociável como você precisa de companhia.
Isso era verdade. Diana languideceria se carecesse de companhia.
- Apesar disso - continuou, - deve levar em conta que uma cerimônia estritamente nominal acabaria com esses inconvenientes. Como a senhora Maturin poderia viver em uma zona decente da cidade e receber a visita de seus amigos.
- Stephen, prefiro ir para o inferno antes de casar-me com um homem quando espero um filho de outro - disse em tom mais enérgico. - Não me ajudou a desfazer-me da criatura quando lhe pedi, e eu prometi não fazer nada por minha conta. Eu respeitei seus desejos, respeite você os meus, querido Stephen. Por favor, querido Stephen, leve-me para Paris.
- Não acha que poderia dar no mesmo viver na França? Poderia viver tranqüilamente num país inimigo?
- Oh, nunca ninguém considerou Paris um território inimigo! Estamos em guerra com Napoleão, não com Paris. Fixa-te quanta gente foi ali tão logo começou o período de paz. Eu mesma estive ali com meu pobre primo Lowndes, aquele que se acreditava ser uma chaleira, lembra?, porque pensávamos que um hipnotizador poderia fazer algo por ele, e Paris estava então cheia de ingleses. Isso foi justamente antes de que nos conhecêssemos. Além disso, tenho muitos conhecidos na cidade, sobretudo émigrés que regressaram, e também tenho dúzias de amigos que conheci antes da guerra, quando vivia ali com meu pai. Não teria inconveniente em viver em Paris porque é um lugar no qual ninguém sabe exatamente o que se passou e nem se importam. Sou viúva, e em Paris não teria importância o fato de que tivesse uma aventura. Ali o ambiente é muito diferente. Além disso, a guerra terminará dentro de pouco e a França voltará a ser como antes porque o Rei regressará... D'Avaray me o apresentou em Hartwell, sabia? Peço que me leve contigo, Stephen.
- Muito bem - disse Stephen. - Virei pegá-la às dez e meia de amanhã. Aí vem o capitão Fortescue. Como está, senhor?
- Sinto muito que tenha havido essa tremendo confusão faz um momento, mas me parece que isto é inseparável da vida familiar - disse o capitão Fortescue. - E posto que é nosso dever multiplicar-nos, acho que temos que suportá-lo. Vejo que estão contemplando meus lírios. Não são esplêndidos? Esta espécie deve lhe interessar, doutor. É muito rara. Foi trazida de Cantão por um sobrinho meu que é tripulante da frota da Companhia das Índias.
Então, semicerrando os olhos, inclinou-se para o lírio, no qual havia vários insetos vermelhos copulando para multiplicar-se, e disse:
- Oh, Meu Deus, já estão aqui outra vez! Malditos vermes franceses! Também me parece que isto é inseparável da jardinagem. Desculpem-me, tenho que ir pegar o pulverizador.
Paris conservava todo o seu encanto e seu esplendor. Sob o luminoso céu se erguiam árvores cheias de folhas, o Sena estava azul e as ruas tinham um grande colorido. Boa parte desse colorido se devia à presença de inumeráveis uniformes, os uniformes do inimigo. Mas havia uma grande diferença entre o que realmente usavam as tropas napoleônicas e seus aliados nos úmidos e lodosos campos de batalha e esses vistosos uniformes que deleitavam a vista dos parisienses e que pareciam ter tão pouca relação com a guerra que não provocavam uma atitude hostil. Na verdade, a cidade parecia um imenso palco muito bem iluminado cheio de excelentes atores com uniformes de gala, alguns deles montados em magníficos cavalos. Diana contribuia para o grande colorido com seu vestido azul como a flor da vincapervinca - que havia comprado na loja de madame Delaunay, - seu chamativo chapéu - que havia comprado à pouca distância da Place Vendôme - e um xale de casimira preto, e sua roupa recebia muitos olhares de admiração de cavalheiros que usavam capacetes de latão adornados com crinas de cavalo ou gorros de pele de urso ou curiosos chapéus de copa quadrada ou redonda com fitas de cor escarlata, carmesim ou vermelho cereja, peitorais de prata, sabres e esporas brilhantes, mochilas e casacas curtas com fitas douradas num ombro. Aquelas esplêndidas figuras de botas reluzentes e bigode estirado para os lados lhe sorriam ou cravavam seus olhos nela retorcendo o bigode quando Stephen e ela passavam ao seu lado em seu percurso pela cidade para mostrar-se mutuamente os lugares onde haviam se hospedado, haviam vivido e haviam jogado.
- Aqui aprendi a jogar amarelinha com as meninas de Penfao - disse Diana ao chegar a Île des Cygnes. - Costumávamos traçar as linhas desde a balaustrada até este arbusto. Meu Deus, quanto há crescido! Quase oculta por completo a última praça, a que chamávamos de céu. Stephen, como se chama o jogo da amarelinha em inglês?
- Não sei - respondeu depois de pensaro por um momento.
Para não levantar suspeitas, falavam em francês desde que haviam descido do barco que ia de um lado para outro do Canal, com discrição, a intervalos freqüentes e que deliberadamente era ignorado pelas autoridades e pelas Armadas de ambas partes, um barco que não estava destinado oficialmente a transportar prisioneiros para ser trocados (Bonaparte não trocava prisioneiros) e tampouco era neutro, mas que amiúde levava informes sobre os prisioneiros de guerra e transportava negociadores semi-oficiais e destacados homens de letras e naturalistas. E quando o barco navegava em direção a Dover, levava bonecas com formosos vestidos sem os quais as mulheres inglesas não saberíam o que estava na moda. Falavam em francês desde que haviam desembarcado, e às vezes lhes escapavam algumas palavras inglesas, mas eram palavras muito pouco usadas.
Cruzaram a ponte e contemplaram um edifício alto e estreito da rua Gît-le-Coeur em cujo sótão Stephen havia vivido quando era estudante.
- Dupuytren vivia justamente debaixo - disse. - Costumávamos compartilhar os cadáveres... E agora, minha querida, se não está muito cansada, gostaria levá-la ao faubourg Saint - Germain. Ali vive um amigo meu, Adhémar da Mothe, em um palacete vazio, e acredito que você gostaria de viver com ele. Ele ficará encantado e lhe convidará para ficar em um dos pisos superiores. Além disso, suas tias poderão recomendar criadas de confiança.
- A madame da Mothe é amável?
- Não existe nenhuma madame da Mothe, e isso é o importante, Villiers. Adhémar não pode casar. Tentou há muito tempo, mas se saiu mal. A pobre senhora obteve a anulação do matrimônio em Roma, porém, por desgraça, teve trabalho para consegui-la inutilmente, pois foi levada à guilhotina cinco minutos depois de lhe entregarem. Sempre pinta as virgens mártires com uma palma na mão, sabia? Ele é um homem muito educado e vive para a música e a pintura. Gosta das mulheres, das mulheres bonitas que sabem se vestir com elegância, mas só como amigas. Acho que simpatizará com ele.
- Se você o acha simpático, eu também acharei - disse Diana com pouca convicção.
- Ele a manterá muito entretida, pois conhece pessoas de todo o tipo e de todos os gostos em Paris. Ainda é muito rico, e mesmo que não tenha nenhum cargo oficial e nem se ocupe de assuntos políticos, forma uma espécie de sociedade secreta muito parecida à franco-maçonaria junto com uma série de homens de gostos afins, uma sociedade cujos membros se conhecem e às vezes podem encontrar ajuda onde outros a buscaram em vão. Devido a isso pôde salvar a vida em 1794, quando a maior parte de sua família foi levada ao cadafalso. Por certo que essa é uma das razões pelas quais sua casa está vazia. No improvável caso de que tenha dificuldade ou alguém lhe moleste, sua proteção será inestimável. Digo isto, Villiers, porque sei que posso contar com sua discrição. Não seria conveniente que ele note que você sabe. Ele é muito perspicaz e pensa que ninguém pode descobri-lo. Além disso, tem muito medo do escândalo, e para enganar o mundo confessa amar apaixonadamente a madame Duroc, a casta esposa do banqueiro. O que foi, Villiers? Por que parou?
- Queria mostrar a casa onde vivi quando era menina.
- Mas é o hotel d'Arpajon! - exclamou Stephen, olhando atentamente o edifício que delimitava um grande pátio por três lados. - Sabia que falava muito bem o francês, mas ignorava que o havia aprendido quando vivia no hotel d'Arpajon... No hotel d'Arpajon!
- Talvez nunca tive a ocasião... Talvez nunca tenha me perguntado... Você não faz muitas perguntas, Stephen.
- Nunca acreditei que perguntar e responder fossem uma boa forma de conversar - disse ele.
- Então contarei tudo sem que me pergunte. Vivemos aqui durante vários anos. Meu pai saído da Inglaterra por causa de suas dívidas, sabe? Para mim pareceu uma eternidade, ainda que, só foram três anos. Tinha oito anos quando vim e onze quando fomos. Ele gostava muito de Paris, e eu também. Essa era minha janela, a terceira a partir da esquina - a assinalou. - Ocupávamos toda a ala esquerda. Mas Stephen, o que tem de raro que tenha aprendido francês quando vivia no hotel d'Arpajon?
- É que meu primo Fitzgerald, o coronel Fitzgerald, o pai de Kevin, também vivia aqui. É o cavalheiro que vamos ver amanhã. Porém, pensando bem, não é tão raro. Seu pai era um militar e meu primo também, e os militares tendem a juntar-se e é normal que alguns ocupem as casas que outros deixam.
- Talvez o tenha visto alguma vez, pois o meu pai era visitado por muitos oficiais ingleses. Em geral, usavam uniforme, e cheguei a conhecer a todos.
- É provável que o tenha visto. É um homem alto, com um só braço e com mais cicatrizes no rosto que Jack Aubrey. Tem o rosto tão longo que poderia confundir-se com um cavalo se não fosse pela falta de um braço. Mas não usava uniforme inglês porque pertencia à Brigada Irlandesa, que estava ao serviço do rei da França. Pertencia ao regimento de Dillon.
- Lembro de ter visto a alguns e recordo de seu uniforme, mas todos tinham os dois braços. O que lhe ocorreu?
- Estava muito velho e enfermo para ir a Coblenza com os outros quando a brigada foi dissolvida, pois, como recordará, os irlandeses não lutaram contra o Rei. Então se retirou para a Normandia, e desde então vive ali dedicado à criação de cavalos. Acredito que se simpatizará com ele.
Nesse momento vários carroças e carros com peças de artilharia desceram pela rua Grenelle.
- Espero que esses não sejam seus cavalos - sussurrou ao ouvido de Diana entre o ruído ensurdecedor das rodas e continuaram andando. - Odeia tanto ao sangrento tirano como eu. Estou certo de que simpatizará com ele. Como vê, dividi os dias de sua permanência aqui sem lhe dizer nada. Na cidade ficarás no hotel da Mothe, e além de ver seus antigos amigos, sempre terá algo para fazer, e, por outro lado, Adhémar dá um concerto a cada semana. Quando se cansar da cidade, poderá ir à casa de campo do coronel, que está rodeada de vários acres de bosque com ninfas e pastores. E para o parto pedi a colaboração de Baudelocque, que, indubtavelmente, é o melhor accoucheur da Europa. Somos velhos amigos, e lhe fará uma visita assim que tenha se instalado. Não poderia estar em melhores mãos. Sei muito pouco de obstetrícia e amiúde me preocupo sem nenhum motivo.
Aquele não era um tema agradável, e o brilho dos olhos de Diana, que aparecera por causa da alegria de recuperar a liberdade, a emoção de voltar a Paris e a satisfação de usar vestidos novos, apagou-se.
- É uma curiosa coincidência que ambos tenhamos vivido no hotel d'Arpajon, né? - disse ela.
- Sim, muito curiosa - disse Stephen. - Na verdade, poderia dizer que a vida está cheia de curiosas coincidências, como, por exemplo, que justo no momento em que vamos cruzar a rua passe esse carro acompanhado de outros seis (algo que era muito pouco provável mas que ocorreu) e que esse rosto lampinho seja o de monsieur de Talleyrand-Périgord.
Stephen tirou o chapéu e o homem respondeu ao seu cumprimento com uma inclinação de cabeça.
- E poderia dar-se a rara coincidência de que ao entrar no pátio da casa de Mothe, que está justamente aqui, na nossa direita, um comerciante entre em seu escritório em Estocolmo ou Jack Aubrey monte em seu cavalo para seguir a pista da raposa. Bem, pensando bem, é improvável que Jack possa seguir a pista da inocente raposa nesta época do ano, mas a idéia é o que conta. Poderia objetar que a maioria da coincidências passam desapercebidas, o que é absolutamente certo, mas elas existem. Por exemplo, agora que levanto este batente, um homem exala o último suspiro na China.
Jack não estava seguindo a pista da raposa, mas estava montado numa égua, a robusta égua cinza de seu pai, na qual iria a Blandford para pegar a carruagem que o levaria até sua casa. O geral Aubrey apareceu flanqueado por dois homens barrigudos e com o rosto avermelhado, enquanto outros os olhavam distraídos da sala de bilhar.
- Ainda não se foi, Jack? - perguntou. - Deve se apressar. Adeus. E procure não rachar a boca da égua.
O general disse isso porque nunca tivera uma boa opinião da habilidade de seu filho como jóquei.
- Jones, Brown, vamos, temos que voltar ao trabalho! - disse em tom urgente, e um momento depois, sem voltar-se de todo, acrescentou: - Dê um abraço de meu... Dê um abraço de meu em sua mulher e em seus filhos.
A senhora Aubrey, a madrastra de Jack, não apareceu ali. O general a havia tirado de uma vacaria ao casar-se com ela, e a vivaz jovem jurara que depois de converter-se em uma dama não se levantaria nunca antes do meio-dia, e pelo menos esse juramento havia cumprido religiosamente.
Jack cavalgou sem olhar para trás. Sentia uma profunda tristeza, mas a causa não era a doença de seu pai, pois o cavalheiro se recuperara tão rapidamente como adoecera e ainda conservava todo seu vigor; a causa era o estranho olhar de seu pai, um olhar que refletia uma mistura de astúcia e malícia, e seus companheiros. Tinham relação com a Cidade ou eram políticos ou ambas as coisas, e apesar de não saber exatamente do que tramavam, era óbvio que o assunto estava relacionado com o dinheiro, pois falavam de bônus do Estado, interesses e ações da Companhia das Índias, e ainda que ele não houvesse tido contato com investidores recentemente, desconfiara deles. A vila Woolcombe nunca destacara-se muito por sua elegância, e ainda menos depois da morte da primeira senhora Aubrey, a mãe de Jack. Os amigos do general eram libertinos, bebedores e jogadores - as mais precavidas senhoras do povoado não mandavam suas filhas para servir na casa, - mas Jack nunca vira ali a ninguém como Jones nem como Brown. Não somente lhe pareciam odiosas suas idéias políticas, como também eles mesmos por serem presunsosos, escandalosos e incômodos. Desconheciam o país e se comportavam com excessiva familiaridade, como ele nunca vira ninguém comportar-se em sua casa. Alguns dos políticos pareciam amar a humanidade, mas não apreciavam nem tratavam bem seus cavalos, eram cruéis com seus cachorros e grosseiros com seus serventes, e havia algo em sua voz e em sua roupa que o desagradava, ainda que não podia definir. Não duvidava que o general se beneficiara de sua associação com eles, pois fazia anos que não lhe pedia dinheiro emprestado e, além disso, havia iniciado uma ampla reforma na casa. Talvez fosse isso o que molestava mais a Jack. A casa onde nascera, que fora construída duzentos anos atrás, era tosca e às vezes chamativa porque tinha a fachada de tijolo vermelho e adornada com um grande número de empenas e coroas de louro e tinha altas chaminés em espiral, mas nenhum Aubrey desde o tempo de James tentara dar-lhe um estilo palaciano nem sequer mudar seu estilo arquitetônico por outro, e a casa se conservara perfeitamente. Mas agora chamava de novo a atenção, pois lhe haviam acrescentado falsos torreões e incongruentes janelas de guilhotina, o que fazia pensar que o general se contagiara da vulgaridade de seus novos amigos. Dentro era ainda pior, já que o velho e escuro revestimento de madeira, que, indubtavelmente, não era conveniente, mas que sempre estivera ali, fora substituído por papel pintado e espelhos dourados. Inclusive o seu quarto desaparecera e só se salvara a biblioteca - que não era utilizada - com suas solenes filas de livros sem abrir e seu elegante teto de gesso talhado. Jack havia passado várias horas ali folheando, entre outros livros, a primeira edição de uma obra de Shakespeare, um livro em folha que um Jack Aubrey anterior a ele pedira emprestado em 1623 e que nunca fora lido nem devolvido. Mas provavelmente a biblioteca também estava condenada, pois parecia que a intenção era fazer uma casa falsa, antiga por fora e ultramoderna por dentro. Ao chegar ao alto da colina, de onde sempre se virava para olhar pela última vez sua casa (Woolcombe estava situada em um úmido vale), dirigiu o olhar para o outro lado, para Woolhampton.
Mas ali também encontrou tristeza. Desceu até o povoado e passou em frente à escola aonde estudara quando era criança, a escola na qual aprendera a amar, além de poucas coisas mais, pois naquele tempo a mestra propietária da escola tinha como ajudante uma sobrinha, uma jovem muito bonita mas com tantas sardas como um tordo, e Jack menino se apaixonara perdidamente por ela e a seguia como um cachorro e lhe levava fruta roubada. Ela ficara ali como sucessora de sua tia e nesse momento estava na porta rodeada de seus alunos. Agora era uma sorridente e ingênua solteirona, mas ainda estava cheia de sardas, e tinha o cabelo mal pintado e um vestido curto. Murchara com os anos, mas continuava jovial. Perguntou a Jack pelo general e lhe recriminou por não ir tomar o chá com ela e que isso lhe parecia monstruoso, mas que perdoaria dessa vez, e acrescentou que perdoaria qualquer coisa dos simpáticos marinheiros.
Jack sentiu uma profunda tristeza. Dobrou para a direita e conduziu o cavalo por um caminho pouco freqüentado que passava ao lado do celeiro de Bulwer e depois atravessou campos e caminhos até chegar a Blandford, um lugar no coração da campina rodeado de campos com cultivos idênticos e de plantações de feno cortados nas quais só se viam lebres e perdizes, uma terra que ele conhecera criança. Não tinha tendência à introspecção e, além disso, seu modo de vida não deixava muito tempo para o exame de consciência, mas nesta ocasião, uma infinidade de tristes pensamentos, relacionados com as mudanças, a decadência e a deterioração do homem e com a velhice, a decrepitude e a morte, perseguiram-no até que subiu à carruagem e persistiram durante boa parte do caminho. "Devo estar envelhecendo", pensou enquanto estirava as pernas e as colocava obliquamente na carruagem. "Deve ser isso, porque me senti muito jovem quando estive com aquela mulher em Halifax e essa é a excessão que confirma a regra". Não havia pensado nela há muito tempo e demorou alguns momentos para recordar seu nome, mas recordou imediatamente a paixão de ambos em seus encontros, que se repetiram cinco vezes. E ainda que ao analisar racionalmente sua conduta, ele a desaprovasse e pensasse que fizera uma loucura e, provavelmente, um ato imoral com uma mulher solteira, adormeceu com um gesto comprazido e um alegre sorriso que lhe pareceríam desprezíveis em outro homem.
O alegre sorriso e inclusive a impressão de sua remota presença haviam desaparecido quando chegou a Ashgrove Cottage. Muitas cartas lhe esperavam, e, como era seu dever, abriu as do Almirantado primeiro.
- Acho que têm boas intenções e são muito corteses, mas isto não é muito - disse a Sophie, que estava do outro lado da mesa. - Tendo em conta minha ferida, que para mim não parece tão importante, propõem o comando do Orion temporariamente e perguntam se quero.
- Que tipo de barco é?
- Um velho barco recrutador de Plymouth de setenta e quatro canhões. Faria um percurso fixo, sem dúvida, e poderia dormir em terra e desfrutar de licenças. E, naturalmente, teria um pagamento completo.
- Nada podia ser melhor - murmurou Sophie.
Mas seu esposo, seguindo o curso de seus pensamentos, acrescentou:
- Não gosto de recusar nenhum trabalho em tempo de guerra. Nunca o fiz e, certamente, não deveria fazê-lo agora se consistisse em participar ativamente nela... Apressaria-me a subir a bordo de uma fragata na base naval da América do Norte, por exemplo. Mas acho que desta vez o recusarei, ainda que agradecerei encarecidamente a Suas Senhorias sua amabilidade e lhes assegurarei que poderão contar comigo assim que disponham de um barco de guerra, que com toda probabilidade será um barco de linha, sabe? O Orion não me convém porque iria e voltaria constantemente de Plymouth para Londres para falar com Skinner desse assunto legal. Não. É melhor me livrar desse problema o quanto antes e depois trate de conseguir um posto decente. Acredito que não podem me negar...
Fez uma pausa, ficou pensando alguns momentos e acrescentou:
- Não gosto de queixar-me, Sophie, mas me parece que poderiam haver sido um pouco mais generosos porque, afinal de contas, não são todos os dias que um homem ao comando de um desconjuntado barco de quarta classe afunda um navio como o Waakzaamheid. Poderá dizer que só se deveu a um disparo certeiro e que o enfurecido mar fez o resto, mas mesmo assim...
- Não vou dizer nada disso - protestou Sophie. - Deveriam ter-lhe dado o título de barão ou inclusive o de par e haver-lhe concedido imediatamente a medalha de mérito naval, como a sir Michael Seymour. Provavelmente vão dá-la, mas são muito lentos com estas coisas.
- Quanto a isso, querida, já sabe o que penso dos títulos, que não são mais que um cargo na maioria dos casos, sobretudo os hereditários. Um homem tem que ser duas vezes melhor que qualquer outro, e a menos que um seja um Nelson ou um Hood ou um Saint-Vincent ou inclusive um Keith, não pode ser duas vezes melhor que os outros durante as vinte e quatro horas do dia, só pode sê-lo quando tem sorte, quando tem tudo a seu favor. Contudo, pensava que me dariam um posto na Infantaria da marinha porque havia uma vaga.
- Na Infantaria da marinha, capitão Aubrey?
- Sim, e se o houvessem feito, seria o coronel Aubrey. Nunca lhe falei da Infantaria da marinha, querida? A entrada nela é a recompensa que dão a alguém por fazer as coisas muito bem quando não podem promovê-lo, já que entre os capitães de navio não pode haver promoção sem que lhe chegue a vez... Nem sequer o Rei pode nomear um almirante passando por em cima dos outros capitães da lista, e se o fizesse, metade dos oficiais de maior antiguidade se demitiriam... E como não podem dar-lhe uma promoção e não se pode comer o título de barão ou a medalha ao mérito naval, nomeiam-lhe coronel da Brigada real de Infantaria da marinha e ele recebe um pagamento de coronel sem haver feito nada para consegui-la.
- Porém, isso não é corrupção, Jack? Você era contra a corrupção quando era jovem, quero dizer, quando era mais jovem.
- E também sou contra agora: a corrupção dos outros me parece condenável. Mas não imagina o baixo que posso chegar a cair por mil libras ao ano, e o pagamento de coronel é maior que isso... Deixe-me ver... São oitenta libras, cinco xelins e quatro peniques multiplicados por treze, porque se regem por meses lunares, sabe? No total são mil e quarenta e três libras, três xelins e quatro peniques, que é melhor que um deslumbrante título. Não, querida, isso não é corrupção, isso é algo subentendido, um reconhecimento ao mérito conhecido por todos os marinheiros. Mas acho que não tenho méritos suficientes nem antiguidade suficiente para receber essa nomeação, ainda estou mais ou menos no meio da lista de capitães. A autêntica corrupção - acrescentou em tom grave enquanto pegava as outras cartas - está nos estaleiros, entre os contratistas sem escrúpulos e os armadores privados. Essa é a maldita praga da Armada... Esta carta é do amigo de Stephen, o senhor Skinner.
Passou a lê-la, fazendo um gesto de aprovação com a cabeça ao terminar cada parágrafo, e ao final, comentou:
- Estou muito contente com ele. É um excelente negociador, tem a mente clara e é trabalhador como uma abelha. Levou a guerra ao terreno desses malditos porcos, e é disso que eu gosto. Diz que um mandato judicial de duces tecum os obrigaria a mostrar-lhe o documento que firmei e que isso poria fim à incerteza. Também diz que processou um deles e assim conseguiu eliminar-lhe. Duces tecum... Isso mesmo!
- O que isso significa? - perguntou Sophie.
- Nunca me dei muito bem com o latim, pelo menos não tão bem como Philip Broke - respondeu Jack. - Mas lembro que dux significa "líder" e que o plural é duces, portanto, duces tecum se interpretaria como os almirantes que lhe apoiam. E não poderia pedir nada melhor que isso. O senhor Skinnner é extraordinário.
Entregou as folhas para Sophie e concentrou sua atenção nas cartas restantes.
- Esta é de Grant - disse, franzindo o cenho.
- Eu o odeio - disse Sophie.
Era estranho, quase inconcebível, ouvi-la dizer isso, mas o senhor Grant, um tenente velho e amargo, abandonara Jack no Leopard quando o desafortunado barco parecia estar a ponto de afundar, depois de chocar-se contra um iceberg em um lugar de alta latitude sul. Havia chegado ao Cabo em uma lancha e depois à Inglaterra num barco de guerra e escrevera para Sophie para dizer o mesmo que dissera a seus superiores, que não havia esperanças que o capitão Aubrey sobrevivesse, que o fato de se obstinar a permanecer a bordo de um barco que afundava teria consequências fatais para ele.
- Este homem ficou louco - disse Jack. - Diz que fiz correr o rumor de que se comportou mal, e isso é totalmente falso, Sophie. Asseguro-lhe que disse ao almirante Drury que Grant se foi com minha permissão e que eu estava satisfeito de sua conduta até então. Tive o incômodo de dizer. Este homem nunca gostou mim, apesar de ser um bom marinheiro, mas tive o incômodo de fazer essa observação porque pensei que ele merecia. Agora está desempregado, o que não me surpreende, porque o caso causou muitos comentários na Armada, e diz que eu sou o culpado. Pede que eu me retrate imediatamente para que se faça justiça e também que diga que o ordenei ir embora, o que não é verdade, já que apenas lhe dei permissão. E me ameaça que se não fizer, contará a verdade sobre o caso ao público e ao Almirantado, porque considera seu dever, e também falará de outras coisas, por exemplo, de minha incapacidade para o combate e de falsifiquei a lista. Pobre homem! Acho que está um pouco trastornado. Não vou responder porque não se pode responder com correção uma carta como esta. Não acredito que a escreveria se estivesse em seu juízo perfeito. Ou talvez estivesse bêbado nesse momento.
Então largou a carta de um lado.
- Esta é de Tom Pullings - disse. - Conheço sua letra. Sim, é sua. Ele, Mowett, Babbington e o jovem Henry James estiveram jantando juntos em Plymouth. Alegram-se de que tenha regressado e expressam seus mais sinceros desejos de que eu esteja. Pedem para que cumprimente você e Stephen e dizem que brindaram por nós dando três hurras por três vezes. Desejam que tenhamos mais... Dizem com boa intenção, estou certo, mas com o trigo a cento vinte e seis xelins o quarto de libra, três são suficientes - dizia enquanto virava a página. - Não, equivoquei-me. Desejam que tenhamos mais saúde, dinheiro e felicidade. Isso é melhor. São excelentes pessoas.
Esses jovens serviram sob as ordens de Jack como guardas-marinhas e oficiais e o seguiram de um barco para outro sempre que foi possível. Jack estava pensando neles e sorria quando passou para a carta seguinte. Não reconhecia a letra nem o selo, e mesmo depois de abri-la tardou vários segundos em dar-se conta de que realmente estava dirigida para ele, de que não era uma brincadeira nem um erro. A senhorita Smith aproveitava a oportunidade de que um transporte zarpava para Inglaterra para escrever para seu herói e dizia que um oficial ferido do 43º regimento de Infantaria mandaria a carta pelo correio quando desembarcasse... Acreditava que seu herói se alegraria em saber que seu amor ia dar fruto... Se fosse uma menina, a chamaria de Joanna... Estava segura de que seria uma menina... Correria para seus braços tão logo pudesse encontrar um lugar em um barco correio, ou se ele o preferisse, iria em um barco de guerra... Bastaria uma simples nota dirigida a algum de seus amigos da base naval da América do Norte... Esperava que a senhora Aubrey fosse mais compreensiva que lady Nelson... Ele devia dizer-lhe imediatamente se preferia o barco correio ou o barco de guerra... Achava de que ele tinha muita vontade de apertá-la contra seu peito e de que não o fazia porque o dever lhe impedia, mas o entendia perfeitamente e não lhe faria sensuras porque a Armada estava primeiro lugar, mesmo até que o amor... Queria que seu herói depositasse umas quinhentas libras no banco de Drummond porque não podia ir embora até que não pagasse suas dívidas em Halifax, que haviam alcançado uma assombrosa quantia, talvez porque nunca dera importância para as contas... Não queria pedir dinheiro para seu irmão, mas não tinha receio em pedir para seu herói, e o fazia sem falsa vergonha e como prova de que era integralmente sua... Se os papéis se invertessem, ela ficaria encantada que ele lhe desse uma prova de confiança como essa... Ele deveria escrever-lhe imediatamente... Ela se sentaria no cais a cada manhã e olharia o horizonte como Ariadna.
A débil luz do entardecer iluminava Stephen Maturin, que estava se barbeando e inclinava o rosto para que os raios do Sol chegassem perpendicularmente para ela. Estava mais pálido que o habitual e tinha uma expressão grave, pois dentro de uma hora ia dar uma conferência no Instituto da França, onde estariam alguns dos cientistas mais destacados da Europa. Seu paletó negro e seus calções de cetim recém arrumados e escovados estavam junto de sua imaculada camisa nova, sua gravata e suas meias de seda, e debaixo de tudo isso estavam seus reluzentes sapatos com fivelas de prata. Essa noite tinha que vestir-se com etiqueta, e ainda que havia ido à Royal Society{14} em calças, não era apropriado que um convidado estrangeiro fosse vestido dessa maneira ao Instituto da França numa ocasião assim.
- Entre! - disse em resposta a quem batia na porta.
- O senhor Fauvet pergunta se o doutor Maturin pode recebê-lo - disse o servente.
- O doutor Maturin lamenta infinitamente não poder receber-lhe neste momento, mas espera ter o prazer de ver-lhe na recepção - disse Stephen sem parar de barbear-se.
Fauvet não era um dos mais destacados intelectuais de Paris, mas era um dos mais elegantes, insistentes e indiscretos. Se havia aproveitado de que Dupuytren o apresentara a Stephen e essa era a quarta vez que o visitava para pedir que levasse uma carta para a Inglaterra, uma carta dirigida ao conde de Blacas. E posto que Blacas era o principal conselheiro do rei francês deposto, não precisava ser muito esperto para imaginar que Fauvet expressaria na carta sua lealdade para Luis XVIII, seu total apoio aos Borbones e sua recusa à atual tirania. Na verdade, praticamente chegara a dizê-lo em sua segunda visita. Mas Fauvet não era o único. Durante as últimas semanas aproximaram-se de Stephen outros intelectuais que também desejavam assegurar sua posição no caso de Napoleão ser derrubado e o Rei voltar. A maioria deles foram mais cautelosos e menos diretos que Fauvet, e alguns enviaram suas esposas porque estavam melhor dotadas para tratar desse tipo de assunto, mas ele não cedera nem aos pedidos das mulheres nem aos dos homens, nem os indiretos nem os diretos. Havia muita probabilidade de que algum deles fosse um agente que tratasse de provocar-lhe, e, por outro lado, esse não era um dos assuntos dos quais ia ocupar-se em Paris, já que no cais de Dover abandonara, no estrito sentido da palavra, todo o relacionado com a espionagem. Escutara-os cortesmente, dissera-lhes que lamentava não saber nada de política e que não conhecia a nenhum dos emigrantes franceses na Inglaterra e havia concretizado que, como convidado, era obrigado a comportar-se corretamente. E, em verdade, sua atitude foi a adequada, pois ainda que por vezes pensara em como estaria Ponsich no Báltico e lera o Moniteur com grande interesse em busca de notícias que se referiam àquela zona, controlara todos seus atos e se comportara simplesmente como um naturalista que estava ali de visita. Junto com Dupuytren realizara dissecações em três casos de calcificação da aponeuroses palmar, havia sido informado detalhadamente por Covisart de seu novo método de auscultação e assistira a três magníficos concertos no hotel de Mothe; fez tudo o que tinha pensado em fazer. Mas de vez em quando sentia curiosidade para saber que parte da população aquelas pessoas representavam. Talvez não representassem uma grande parte, mas entre elas havia algumas de excepcional inteligência e bem informadas. Apesar daqueles esperançosos sinais de que havia medo precisamente ali, havia chegado à conclusão de que Blaine tinha razão ao dizer que o império ainda não estava desmoronando - ainda que recebera alguns golpes muito duros, - que uma esmagadora vitória de Bonaparte ou as divergências entre os aliados poderiam fazer-lhe recuperar toda sua força, que seria necessário lutar duramente para derrubá-lo e que, devido ao tirano ter uma grande habilidade para dividir seus inimigos e a estar recrutando novas tropas com grande rapidez, qualquer atraso, por menor que fosse, poderia ser nefasto. E que era natural que aqueles que de repente haviam se dado conta de que queriam os Borbones, depois de ter suportado tão drásticos trocas de regime, tratassem de agarrar-se a uma corda de salvamento ao menor indício de que poderia haver mais outro. "Eu me informarei de mais coisas esta tarde", pensou enquanto amarrava cuidadosamente a gravata. Haviam corrido rumores de que em Moravia tinha lugar uma importante batalha que já durava três dias, e sabia que à conferência iria um variado grupo de pessoas, já que era um acontecimento tanto social como científico, ou talvez mais social, que congregava tanto a políticos, artistas e esnobes como a intelectuais; um tipo de acontecimento especialmente indicado para tomar o pulso da capital.
Pôs a jaqueta, apalpou o bolso para assegurar-se de que tinha as notas guardadas nele, meteu seus óculos verdes em seu estojo e, esforçando-se para reprimir sua emoção, dirigiu-se para a porta. "Devo começar com determinação e falar com convicção e em voz tão alta que possam me ouvir nos últimos lugares", pensou. Disse ao porteiro que chamasse uma carruagem.
- Chame uma carruagem, meu amigo - repetiu ao notar seu olhar inquisitivo. - E, por favor, diga-lhe que quero que me leve ao hotel de Mothe.
- Imediatamente, senhor - respondeu o porteiro, recuperando sua habitual serenidade.
Enquanto o carro chegava, Stephen observou o relógio da alta torre, que tinha um pêndulo ornamentado e um engenhoso sistema formado por barras cuja expansão compensava as variações de temperatura, o que garantia uma grande aproximação ao tempo real. Dispunha de muito tempo, mas como sabia que Diana nunca estava pronta na hora marcada, pensava chegar cedo para apressá-la mandando-lhe repetidas mensagens.
E chegou cedo, porém, para seu assombro, a encontrou pronta no salão. Era digna de se ver, pois usava um vestido de cor azul cinzento que lhe assentava muito bem, conforme a nova moda francesa, e os reluzentes diamantes, alguns dos quais colocados no cabelo, o que a fazia parecer mais alta e delgada do que nunca.
- Dou-lhe minha palavra de honra de que tem um aspecto magnífico, Villiers.
- Você também, meu querido- disse Diana, rindo com uma alegria tão grande que era estranho encontrá-la nela, com uma alegria que fez aparecer em seu rosto uma expressão mais doce que a habitual. - Você também... sua jaqueta é muito bonita e seus calções impecáveis, mas... - aproximou-lhe de um espelho - olhe-se aqui.
Stephen se olhou no espelho e viu refletida uma horrível imagem, viu sua pequena e redonda cabeça com seus escassos cabelos de ponta, que pareciam as cerdas de uma escova gasta.
- Jesus, Maria e José! - exclamou em voz muito baixa. - Esqueci minha peruca, que vou fazer?
- Não se preocupe, não se preocupe - disse ela. - Estará aqui dentro de um momento. Sente-se. Ainda falta muito tempo.
Então fez soar a campainha.
- Corra ao hotel Beauvillier tão rápido como possa e traga a peruca do senhor, que esqueceu ali - ordenou ao servente e se voltou para Stephen e disse: - Não se preocupe, meu amor. Chegará meia hora antes que comece. Sente e elogie meu vestido.
Ela o beijou com o carinho de uma irmã, e ele, sentado ali no divã egípcio, em meio à sua agitação, pensou: "Minha irmã... Minha esposa... Oh, meu Deus!".
- Tinha muito medo de que não ficasse pronto - continuou ela caminhando de um lado a outro para mostrar o vestido de todos os ângulos, - mas chegou há apenas uma hora. Adhémar de Mothe gostou muito. Tem muito bom gosto para roupa feminina. Disse que encurtasse o colar para que o diamante grande caísse justo aqui.
Ao dizer isto assinalou o centro de seu peito quase nu, de onde o diamante lançava lampejos formando uma fonte de luz que contrastava com a escuridão do salão.
- Pus os outros no cabelo, porque podem se soltar, sabe? E ele me deu sua aprovação. Confio muito em de Mothe. Nunca conheci ninguém que tenha melhor gosto. Além disso, ficou encantado com o vestido.
- Eu também gostei, Villiers. Está com um aspecto soberbo. Parece etérea... É como uma voluta de fumaça azul.
- Pensei que devia pôr toda a carne no forno, lhe porc inentamé, porque hoje era seu grande dia. Além disso, é provável que esta seja a última vez que possa parecer etérea ou quase etérea em muito tempo.
Uma vez mais aquele desagradável pensamento voltou à sua mente, e em seu rosto apareceu uma expressão sombria. Mas depois de contemplar a grande pedra preciosa por alguns momentos, voltou a ficar radiante de alegria e a ter um ar tão satisfeito que era comovente vê-la.
- Você tem muito carinho por esses diamantes, Villiers - disse em tom afetuoso.
- Sim, tenho muito carinho por eles, sobretudo o maior - disse e desprendeu a pesada pedra preciosa e a pôs na mão de Stephen, e a pedra, ao menor movimento, lançava inumeráveis lampejos que pareciam sair de um prisma. - Não me importa de onde vêm - disse, alçando o queixo. - Gosto muito, e não me separaria deles por nada do mundo. Queria que me enterrassem com eles. Você se lembrará disso Stephen? Se as coisas não correrem bem neste outono, devem enterrar-me com eles. Posso confiar em você?
- Claro que sim.
- Eu gostava de minhas pérolas... - continuou ela depois de uma pausa. - Recorda-se das pérolas que o nababo me presenteou? Mas sentia algo muito diferente por elas. Eu as vendi para pagar ao modista quase sem remorso. De Mothe me levou para a casa Charon e me pagaram um valor justo... Irá com os Clermont e depois todos viremos aqui para jantar. Ah! Além disso avaliaram aqueles rubis desmontados que eu lhe mostrara, os que nunca gostei, os que pareciam grandes gotas de sangue, e me deixavam realmente assombrada...
Stephen deixou de prestar atenção e cravou os olhos no relógio, e muito antes que o servente chegasse, ouviu seus passos apressados. Imediatamente pôs a peruca e os óculos, metendo os ganchos por debaixo dos cachos dos lados.
- Devemos ir - disse.
- Ainda falta muito tempo - acrescentou Diana. - Este relógio está meia hora adiantado. Não serviria de nada chegar cedo. Sente-se outra vez, Stephen. Oh, meu Deus, como seu rosto fica mudado com esses óculos azuis! Nunca teria lhe reconhecido com eles.
- São verdes.
- Bem, quer sejam azuis ou verdes, tire-os, por favor. Deixam-me nervosa porque eu acho estranho.
- Não - disse Stephen. - Depois de prendê-los sob a peruca, não posso tirá-los sem alterar sua simetria.
- Por que os usa? Fazem com que pareça muito mais velho, querido, e lhe dão um aspecto vulgar. Pode ver perfeitamente sem eles.
- Nem sempre vejo bem quando tenho que ler notas sob a forte luz de uma lâmpada. Mas a principal razão para usá-los é que estou nervoso e eles me dão segurança.
- Está nervoso, Stephen? - perguntou ela. - Nunca achei que isso fosse possível. Ainda que, pensando bem, esteve todo o tempo sentado na borda da cadeira e olhando o relógio como um homem que vão enforcar. Por favor, não seja ridículo... Você é um homem destacado e todos dizem que tem uma prodigiosa inteligência, e eu sempre soube disso. Venha, tome um copo de conhaque para tranquilizar-se. Bebamos os dois um copo de conhaque.
- Você é muito boa, Diana, mas a verdade é que não estou acostumado a dirigir-me a um público numeroso... E que público! Estarão ali os Cuvier, Argenson, Saint-Hilaire... Ou pelo menos é isso que espero.
- Estou certa de que estarão ali. Sei que o cardeal também irá, Mothe me disse.
- Oh! - exclamou Stephen.
- Pensei que gostaria, querido. É católico, e um cardeal está muito próximo ao Papa.
- Há cardeais e cardeais, e inclusive alguns papas não foram exatamente como era desejável. Não obstante, obrigado por me dizer, Villiers, porque devo começar dirigindo-me a Sua Eminência. Está relacionado com os desprezíveis Bonaparte, ainda que pelo que sei esteja mal com o chefe desses malfeitores, porém, de qualquer maneira, é um príncipe da Igreja. Vamos, Villiers, temos que ir.
A grande sala estava cheia, inclusive mais cheia do que esperava. Estava cheia de pessoas e de animada conversa sobre a batalha de Moravia ou, conforme alguns, de Boêmia. Diziam que atacaram o exército russo pelo flanco direito e que haviam aniquilado as tropas desse flanco... Os prussianos foram derrotados em Polobsk... As tropas de Vandamme sofreram um duro golpe...; pelo contrário, faltava ainda um dia para Vandamme chegar e os prussianos mantinham o controle de seu território... O Imperador não havia estado presente... O Imperador havia dirigido todas as operações. O ruído cessou quando o secretário vitalício conduziu Stephen à tribuna. Stephen colocou suas notas do lado da jarra de água, aspirou profundamente, olhou para o silencioso e expectante público e começou a falar.
- Sua Eminência... - disse em tom seguro e com uma voz tão potente que seu própio eco lhe produziu uma forte impressão, uma impressão quase de consequências fatais.
Sem embargo, deu a maior parte da conferência em tom muito baixo. Os que estavam muito interessados no Pezophaps solitarius puseram as mãos ao redor das orelhas e inclinaram a cabeça para a frente, e as restantes pessoas, aproximadamente quinhentas, pouco a pouco reiniciaram a conversa, que a princípio era somente um burburinho e depois chegou a ser perfeitamente audível. Seus amigos estavam muito envergonhados, pois havia começado mal e havia continuado pior. Era evidente que Stephen não via nem ouvia o público. Desde o desafortunado princípio, seguiu estritamente suas notas com a cabeça baixa e os olhos fixos nas folhas de 1/4 de papel. De vez em quando fazia um gesto mecânico com a mão direita e Diana temia que fizesse cair a jarra ao solo; e em uma ocasião passou duas páginas juntas, de maneira que pareceu que as observações sobre o dodo se referiam ao uombat da Nova Holanda.
Apenas havia começado a falar dos ratites quando um oficial entrou de na ponta dos pés e sussurrou algo ao ministro do Interior, e este se foi imediatamente, também na ponta dos pés e fazendo reverências, e todos notaram que sorria maliciosamente. A conversa subiu de tom e Stephen continuou lendo uma depois de outra as páginas de uma bem razoada exposição. Havia acabado de falar da anastomose da carótida no Didus ineptas e agora começava a falar do acasalamento do solitário.
- Com objeto de fazer uma comparação, consideremos o órgão introdutor do corvo - disse, tirando os óculos e olhando para o público pela primeira vez.
Seu olhar se cruzou com a de madame d'Uzès, que estava sentada na primeira fila, e ela se inclinou para frente e perguntou em voz baixa:
- Que é um órgão introdutor?
A pessoa que estava sentada ao seu lado lhe respondeu, e ela, rindo alegremente, disse:
- Ah, como o de um semental! Não tinha idéia de... tanto melhor...
Então Stephen, pregando seus olhos nela, repetiu:
- Consideremos o órgão introdutor do corvo.
Ela baixou a vista e juntou as mãos no colo, e ele, voltando para suas notas, fez uma descrição detalhada do órgão com voz mais forte e em tom mais grave que antes enquanto movia ritmicamente no ar um exemplar dissecado. Os ajudantes do ministro, que estavam sentados na fila detrás da sua, inclinaram-se sobre o lugar vazio e se puseram a conversar em voz baixa.
- Se esse homem tem algo a ver com a espionagem, eu sou o Papa - disse um.
- Não, além do mais era um vago rumor - disse outro.
- O Exército vê espiões por todas as partes. Tratei de comprová-lo, é claro, mas nem Fauvet nem madame Dangeau puderam fazer-lhe mover-se de sua posição sequer uma polegada. Ele lhes disse que era um simples naturalista, que não sabia nada de política e tampouco se importava e que devia respeitar as regras. Madame Dangeau pensa que é um pederasta, e acho que tem razão. É amigo de Adhémar de Mothe.
- Que relação tem com a mulher que está sentada junto a de Mothe, a que usa esses esplêndidos diamantes? Cruzaram juntos, porém, indubtavelmente, não pode haver nenhuma relação entre semelhante indivíduo e essa maravilhosa criatura.
- É seu médico, e sua criada conta que, quando ele a examina, é muito respeitoso e não parece sentir nenhuma emoção. Não sentir emoção ante uma mulher assim!
- Pobre imbecil... Finalmente está chegando ao final.
- Que conferência horrível!
Havia sido horrível, porém, no que se referia aos convidados estrangeiros, amiúde o nível da exposição era inversamente proporcional aos conhecimentos científicos do orador, e era normal que quem não estava acostumado com as conferências de nível universitário falassem em voz baixa. O secretário vitalício havia assistido a conferências piores, e também os cientistas que haviam ido ali para escutar ao doutor Maturin e não os fofoqueiros da cidade. Stephen não havia deixado cair ao solo suas notas nem seus desenhos nem seus espécimes; não parou no meio da conferência, angustiado, como o distinto Schmidt de Gottingen; tampouco desmaiara, como Izibicki. Por outro lado, os que estavam sentados nas filas dianteiras aprenderam muito das espécies de aves extintas das Ilhas Mascarenhas, e suas sinceras felicitações, um café forte e saber que o mau momento já passara conseguiram reanimá-lo. Diana, de Mothe e seus amigos lhe disseram que falara muito bem e asseguraram que haviam ouvido absolutamente tudo. Além disso, mencionaram o Pezophaps solitarius uma ou duas vezes e o dodo muitas mais.
- Não foi brilhante, nem muito menos - disse ele, sorrindo timidamente. - Não sou nenhum Demóstenes... Mas acho que fiz o pouco que podia e que agora todos conhecemos melhor o sistema digestivo e reprodutor do solitário.
Os esnobes se foram e os intelectuais ficaram. Muitos deles se aproximaram de Stephen para o conhecer ou saudar, e ele, por sua vez, transmitiu a alguns as saldações de seus amigos comuns da Inglaterra e lhes prometeu transmitir os seus, no seu regresso, pois não tinha inconveniente em se fazer de mensageiro. Georges Cuvier lhe entregou uma cópia de sua obra Ossements fossiles para o distinto sir Blaine e Latreille lhe deu, para o mesmo cavalheiro, um presente mais apropriado, uma abelha fossilizada em um pedaço de âmbar. Larrey, o cirurgião do Imperador, foi muito amável com ele; Gay-Lussac pediu que ele levasse algumas piritas muito curiosas para sir Humphry Davy; outro químico lhe deu um frasco com uma substância cuja exata composição desconhecia... Muito rapidamente os bolsos de seu elegante paletó se encheram de presentes para os membros da Royal Society.
Também havia alguns intelectuais estrangeiros presentes, e Stephen se alegrou ao ver a Beckendorff, a Pobst e a Cerutti. A maioria desses intelectuais eram eminentes naturalistas, porém, além disso, havia entre eles matemáticos, historiadores e filólogos. Stephen distinguiu claramente a Schlendrian, o erudito alemão que era uma autoridade em línguas modernas derivadas do latim, por sua longa barba negra. Schlendrian estava afastado do grupo com um copo da típica limonada do Instituto na mão e uma expressão pouco habitual, uma expressão triste.
Seus olhares se encontraram e ambos se cumprimentaram com a cabeça. Stephen se fastou de um grupo que mantinha uma insípida conversa sobre o cloro e ambos se cumprimentaram cordialmente. Schlendrian se alegrou, felicitou-lhe efusivamente e fez muitas perguntas, mas depois voltou a entristecer-se. Então fez uma pausa e dirigiu para Stephen um olhar inquisitivo e depois perguntou:
- Não ouviu a notícia?
- Da batalha que tem lugar neste momento?
- Não, do que aconteceu a Ponsich.
- O que aconteceu a Ponsich?
- Não desejaria dizer-lhe hoje, no dia de seu triunfo.
- Não me atormente, Schlendrian. O senhor já sabe o quanto gosto dele.
- Eu também gostava - disse Schlendrian com lágrimas nos olhos. - Ele morreu.
Stephen o levou até um lugar afastado junto à porta.
- Como o sabe? Quando ocorreu? - perguntou em voz baixa.
- Grauf me escreveu de Leyden. Parece que Ponsich se encontrava perto da Suécia ou em algum outro lugar do Báltico quando ocorreu uma desgraça com o barco em que navegava. Muitos cadáveres foram arrastados até as costas de Pomerânia e um antigo aluno seu reconheceu o dele. Oh, Maturin, que perda para as letras catalãs!
- Escute, querida - disse Stephen para Diana, tirando-a da sala de concertos do hotel de Mothe. - Tenho que ir. Vou dormir e amanhã tenho que viajar até Calais. Apresente minhas desculpas para Adhémar.
- Já vai, Stephen? - perguntou e de imediato perdeu a alegria. - Já vai regressar? Pensei que ficaria pelo menos até o fim do mês.
- Já fiz o que tinha que fazer e devo ir. Mas antes tenho que dizer-lhe algumas coisas.
Ela o olhou com preocupação, e seu gesto grave contrastava com a alegria da sala que acabavam de abandonar.
- Escute - disse ele. - Poderei saber de você por meus amigos e virei de vez em quando para este tipo de atos. Com relação à atenção médica, está nas melhores mãos. Deve escutar a Baudelocque com muita atenção e seguir suas instruções ao pé da letra, pois uma gravidez pode ser um assunto delicado. E se tiver algum problema, ainda que seja improvável já que seus documentos estão em ordem e legalmente pertence a um país amigo, repito, se tiver algum problema, tanto em Paris como na Normandia, aqui tem o endereço de um amigo meu de toda confiança. Aprenda-o de memória, Villiers, entendeu? Aprenda-o de memória e queime o papel. E agora escute: se alguma vez lhe perguntarem algo sobre mim, tem que dizer que somos simplesmente velhos amigos, que lhe aconselho como médico e que não existe nada entre nós, absolutamente nada.
Então notou que no rosto de Diana se refletia a raiva porque se sentia ferida em seu amor própio e, pegando-lhe a mão, disse:
- Tem que mentir, querida. Tem que dizer uma mentira.
A expressão dos olhos de Diana voltou a ser doce.
- Eu direi, Stephen, mas será difícil ser convincente - disse, tentado sorrir.
Diana estava ereta e tinha o queixo erguido, e Stephen, ao contemplá-la, emocionou-se como há tempos não ocorria.
- Deus lhe abençoe, minha querida. Tenho que ir.
- Deus abençoe a você também, Stephen - disse ela. - Dê saldações de minha parte para Jack e Sophie e, por favor, cuide-se muito.
CAPÍTULO 6
Jack Aubrey recolhia pessoalmente o correio de Ashgrove Cottage já fazia algum tempo, que para ele parecia muito longo. Temia ser descoberto e sempre estava intranqüilo porque de Halifax não só chegavam cartas nos barcos que levavam ocorreio com regularidade, com assombrosa regularidade, senão que um surpreendente número delas eram trazidas por amáveis oficiais de barcos de guerra, transportes e mercantes, e todas falavam de um iminente retorno.
Nunca havia sido um modelo de continência, mas todas suas relações amorosas ocasionais haviam sido apaixonadas e felizes, carentes de promessas e protestos, quase exclusivamente carnais e sem importância, e, além disso, as havia mantido com mulheres que pensavam como ele, que não pretendiam seduzir nem se deixavam arrastar pelo romantismo. Haviam sido relações sem complicações e passageiras, quase tão efêmeras como os sonhos e com resultados tão pouco perceptíveis como os deles, mas esta era completamente diferente.
Os necessários subterfúgios e enganos lhe desagradavam, e a idéia da possível e inclusive provável aparição de uma senhorita Smith histérica, eufórica e escandalosa se convertera em um pesadelo, mas o que mais lhe penalizava era a mudança que produzira em sua relação com Sophie. Não podia falar com ela com a sinceridade costumeira, já que sua traição e suas pequenas mas desprezíveis mentiras se interpunham entre ambos, e tinha a sensação de estar sozinho e às vezes se sentia muito triste. Além disso, mentir não lhe fazia bem e lhe produzia muita raiva.
Mais de uma vez pensara em Stephen Maturin. Sabia que as atividades de Stephen o obrigavam a levar uma vida solitária e a controlar seus atos constantemente e não lhe permitiam ser totalmente sincero com ninguém, mas pensava que seus segredos tinham uma causa digna, que eram um ardil muito conhecido e admissível que não pioraria a opinião que tinha de si mesmo.
Estava em uma das construções de tijolo vazias situadas junto de sua inativa mina de chumbo, no meio do bosque profanado e quase deserto, e lia as últimas cartas efusivas da senhorita Smith (chegaram três de uma vez) quando apareceu uma sombra na entrada. Guardou rapidamente as cartas no bolso e se voltou para ali com uma expressão grave, que de imediato se transformou em outra, de alegre.
- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou. - Estava pensando em você faz apenas cinco minutos. Como chegou até aqui? Como está? Fazia mais de duas semanas que não tinhamos notícias suas.
- Sophie me disse que lhe acharia aqui - respondeu Stephen. - Dirigia-me para Londres e parei para visitá-los. Estive falando com ela e me disse que está preocupada com seu estado de saúde. Indubtavelmente, está com uma cor ruím. Posso ver o braço?
- Ela sabia que eu estava aqui? - perguntou Jack, já sem alegria.
- Meu amigo, a julgar pela mistura de consternação e culpabilidade que se reflete em seu semblante, qualquer um pensaria que recebe a visita das ninfas locais nesta construção abandonada - disse Stephen com inoportuna ironia.
- Nada disso! - exclamou Jack. - Oh, não!
Então perguntou para Stephen de sua viagem, por Diana, pela sua acolhida em Paris e pela situação atual da França e acrescentou:
- Quere vir para casa? Ia agora mesmo para lá com o correio. Espero que fique conosco. Será estupendo que se some ao nosso tête a tête, e, além disso, poderemos tocar música.
- Infelizmente, tenho que ir voando. Quero chegar à cidade esta noite e a carruagem está me esperando na porta. Interrompido minha viagem para ver-lhe e com esse propósito decidi passar por Portsmouth. Queria saber qual era sua situação.
- Estou com a água no pescoço, Stephen. De um lado estão esses assuntos legais, apesar de ser um grande alívio para mim contar com o senhor Skinner, a quem estou muito agradecido; de outro, o problema com o Almirantado, que é resistente a pagar-me pelo Waakzaamheid. E também há outras coisas...
- Sinto muito. Porém, na realidade, referia-me à sua situação com relação à designação de um barco. A última vez que lhe vi não tinha planos.
- Não tenho nenhum. Tiveram a amabilidade de oferecer-me o Orion, que era como oferecer-me uma licença com pagamento completo, mas recuzei, e por isso não posso pedir outro imediatamente, ainda que as coisas se hão posto de tal maneira que daria um olho do rosto para que me ordenassem ir para longe do país, para que me dessem uma missão no estrangeiro.
- Isso é o que queria saber, e me parece que nossos objetivos são similares. É possível que me encomendem uma missão nos mares do norte. Não é mais que uma possibilidade, porém, se vou, prefiro ir contigo que com outro. Nós dois nos conhecemos muito bem, e contigo não tenho que representar uma chata farsa. Além disso, sei que é muito discreto. Vim por isso, porque queria investigar o terreno e saber o que devia sugerir em Londres. Posso considerar que não teria inconveniente em me acompanhar se me encomendassem a missão?
- Gostaria muito de o acompanhar. Gostaria muito, de verdade, Stephen.
- Mas devo advertir que provavelmente, além do perigo de estar expostos aos elementos, teremos que afrontar alguns mais. Está ciente do que sucedeu a Daphne?
- Naturalmente que sim. Todo mundo fala disso. Ainda não foi publicado nos jornais, ao menos que eu saiba, quem vem do Báltico é que conta.
- O que dizem? Não conheço os detalhes.
- Os detalhes variam, mas todos concordam em assinalar que se aproximou muito da ilha Groper.
- Não se chama Grimsholm?
- A chamamos Groper pela mesma razão que dizemos Hogland, Belt, Sleeve, Passages e Groyne.{15} Parece que se aproximou muito, talvez porque havia pouca calmaria e a corrente ia em direção da terra, como costuma ocorrer naquelas águas, e que ninguém se deu conta de que estava ao alcance dos canhonaços, pois, do contrário, como era tão ligeira, a teriam levado para o alto mar remando ou rebocando. O certo é que lhe dispararam e a afundaram. Têm canhões de quarenta e duas libras colocados no alto do rochedo e forjas muito próximas deles... Lembro que víamos seu resplendor de muito longe... É provável que uma bala vermelha{16} tenha alcançado o paiol, fazendo saltar em pedaços a embarcação instantaneamente, já que não há restos dela nem sobreviventes, ao menos que eu saiba. Só temos o testemunho dos pescadores.
- Sim, acho que foi isso o que aconteceu. A propósito, provavelmente Grimsholm seja o nosso destino.
Jack deu um assobio e disse:
- Um destino espantoso: águas pouco profundas, fortes marejadas, e quando um chega ali, tem essas baterias. É como um pequeno Gibraltar, mas não muito mais pequeno, e eles se hão situado no alto e deali dominam uma vasta zona do mar. Se manejassem bem os canhões, poderiam desafiar uma frota. As baterias de um barco não servem muito frente a peças de artilharia situadas no alto de uma montanha, bem manejadas e com a possibilidade de lançar balas vermelhas. Já sabe o que fez a torre Mortella.
- Não o sei.
- É claro que sim, Stephen. A torre Mortella, da Córsega, ou a torre Martello, como dizem alguns. É essa torre redonda da qual fizemos montes de cópias em toda a costa. Deram ordem de tomá-la em 1794, e ainda que só tivesse dois canhões de dezoito libras e um de seis e estar a cargo de vinte e dois homens e um jovem oficial somente, lorde Hood ordenou que a Juno e a Fortitude enfrentassem ela enquanto mil quatrocentos soldados desembarcavam. As fragatas dispararam por mais de duas horas, e depois de transcorrido esse tempo, na Fortitude haviam morrido ou sofrido feridas sessenta e dois homens, havia três canhões desmontados, o mastro maior estava cheio de buracos de bala, os outros mastros estavam rachados e havia começado um fogo por causa de uma bala vermelha, assim que teve que afastar-se, e por sorte não encalhou. Portanto, se a torre Martello pode fazer isso a dois barcos de guerra enquanto mantém mil quatrocentos soldados afastados, imagine o que Grimsholm poderia fazer, já que além de ser mais alta e cinqüenta vezes mais potente, não tem que enfrentar nenhum grupo de soldados. Não será um passeio.
- Acho que o plano não é reduzir os homens dessa praça pela força bruta senão por meios mais delicados e, como espero, sem derramamento de sangue - disse Stephen. - Esses meios devem ser utilizados pelo menos a princípio. Mas agora que penso, tem uma família, tem muitas responsabilidades, e esta missão é mais apropiada para um jovem solteiro e sem compromisso. Compreendo perfeitamente que seja resistente a...
- Se insinua que não tenho coragem para... - começou a dizer Jack. - Tenho certeza que fala brincando. Perdoe-me, Stephen. Em geral, capto uma brincadeira tão rápido como qualquer um, mas não me encontro muito bem ultimamente.
Seguiram caminhando sob as árvores em silêncio e após um tempo acrescentou:
- Você se dirige para a cidade e eu tenho que ir para Whitehall depois de amanhã pelo assunto do Waakzaamheid, assim que o acompanharei, se não se importa. Gostaria de falar contigo depois de tanto tempo sem nos comunicar. Além disso, pagaremos a carruagem pela metade e ficaremos os dois no Grapes. Assim matarei três pássaros com um só tiro.
Stephen tivera sorte, pois alugara uma carruagem silenciosa e com boas molas, e enquanto esta passava suavemente por cima do largo, rodeada pela escuridão, ele e Jack falavam sem parar. Aquele espaço fechado e, por assim dizer seguro, fora do tempo, que atravessava um mundo exterior que não se via e estava completamente separado dele, era ideal para fazer confissões, e imediatamente Jack disse:
- Espero que tenhamos que levar a cabo esse plano, Stephen. Tenho muitos motivos para desejar ir embora para o estrangeiro, isto é, para desejar que me ordenem ir embora para o estrangeiro.
Stephen pensou nessas palavras. Quando Jack era mais jovem e mais pobre, havia desejado amiúde sair do país para escapar de seus credores e de ir para a prisão por não pagar as dívidas, mas era quase impossível que estivesse nessa situação agora. Ainda que teria dificuldade para converter boa parte de seus bens em dinheiro, ainda lhe restava muito de sua fortuna, e no improvável caso de que se comprovasse que suas dívidas eram superiores, só um tribunal poderia tomar uma decisão com relaçã a essa questão, e ao final de um longo, longo processo. Além disso, agora administrava seus interesses um hábil homem de negócios que nunca permitiria que seu cliente fosse encarado, nem que o prendessem na casa de um oficial de justiça.{17}
- Mas Sophie me disse que a primeira audiência, a primeira parte, não ocorreria até meados do próximo período de sessões - disse Stephen.
- Não é por esse maldito caso legal - disse Jack. - Eu lhe asseguro que às vezes quase me alegra ter que me ocupar da interminável papelada, porque é como um... A verdade é que..., bem..., a verdade é que...
Então fez um breve relato do que havia ocorrido e ao final disse:
- Acho que, se me ordenam ir embora para o estrangeiro, ela não regressará para a Inglaterra, sabe?, e que se o fizer, pelo menos não se instalará muito perto. Em sua última carta falava de Winchester. Não necessita dizer que sou um homem desprezível.
- Não me preocupa o aspecto moral do assunto senão o que pode fazer para solucioná-lo - disse Stephen.
Estava surpreendido de ver que um homem cuja coragem era indiscutível em situações que requeriam força física pudesse ter uma conduta abjeta e ser tão covarde quando devia afrontar questões morais, mas pensou que ele não era casado e que não conhecia de primeira mão as lutas domésticas nem o que estava em jogo nelas, ainda que soubesse que podiam provocar sentimentos muito intensos e que tanto a vitória como a derrota eram prejudiciais. Gostava muito de Sophie, mas sabia que era muito ciumenta, e esse era um traço de seu caráter que ele desgostava. A carruagem seguiu avançando e ele começou a refletir sobre o matrimônio. Pensou em suas vantagens e desvantagens em comparação com outros sistemas, no provável equilíbrio entre felicidade e infelicidade que havia neles e em que conhecia muito poucas uniões que tiveram êxito.
"Acho que a monogamia é a única solução, por desgraça, ainda que seja tão absurda como a monarquia", pensou. "Queira Deus que não caiamos nos mesmos erros dos judeus e dos muçulmanos".
- Só quero dizer uma coisa, ainda que não acho que importe muito - disse Jack, interrompendo o fio de seus pensamentos. - Eu lhe mandei tudo o que pude, de forma que ao menos não lhe faltará dinheiro.
E depois de uma pausa, acrescentou:
- Por isso me incomoda tanto que se adie o pagamento do dinheiro do Waakzaamheid, porque precisamente agora tudo o que tenho está imobilizado. Isso afeta a você também, Stephen. Você tem direito a uma parte da recompensa pelos tripulantes e os canhões que tinha o navio, e posto que, além de você, quase não há oficiais sobreviventes, deve de ser uma grande soma.
- Tenho que fazer algumas observações com relaçã a esse assunto - disse Stephen, deixando de lado a questão do Waakzaamheid. - Acho que vale a pena fazê-las porque são adequadas para este caso e poderiam melhorar seu ânimo. Em primeiro lugar, deve saber que entre as mulheres com tendência ao histerismo, como a jovem em questão... É que seria inútil e pouco ético fingir que não sei quem é...
- Eu não disse seu nome - disse Jack. - Que Deus me amaldiçoe se sequer insinuei algo que tenha permitido descobrir sua nome, Stephen.
- Bobeira! - exclamou Stephen, agitando a mão - Como dizia, entre as mulheres com tendência ao histerismo, não são raros as falsas gravidezes. Têm os mais claros sintomas que realmente aparecem durante os nove meses de gravidez, como o ventre inchado, a supressão da menstruação e inclusive a produção de leite; tudo é igual, exceto o resultado. Em segundo lugar, devo dizer o mesmo que disse a outro amigo não faz muito tempo, que inclusive em uma gravidez real, mais de doze de cada cem mulheres abortam. E em terceiro lugar, deve ter em conta a possibilidade de que não haja gravidez, nem real nem falsa. Pode ser que a dama engane a si mesma ou queira enganar a você. Não seria o primeiro homem a quem enganam dessa forma. Na minha opinião, ela não fez um grande esforço para regressar, apesar dos vários barcos correio que foram e voltaram dali. E não se pode negar que um pedido de dinheiro não sugere nada de bom.
- Oh, vamos, Stephen! Como pode dizer algo tão mau? Eu a conheço. Talvez seja bastante... Talvez não seja muito astuta, mas é incapaz de fazer isso. Além disso, pedi para que não viesse... Ainda. Eu lhe asseguro que a conheço, Stephen.
- Com relação a conhecer uma mulher... Se nos dizem entre e conheça a mulher, isso é muito bom. É possível que nos entendamos e que haja comunicação entre nós enquanto estejamos juntos, porém, o que acontece depois? Admito que disse algo muito mau, mas há muita maldade no mundo. Além disso, nunca o diria se não tivesse motivos para achar que pudesse ser verdade. Não afirmo nada, Jack, mas a reputação dessa dama está muito longe de ser boa, conforme a informação que obtive de outra fonte, e aconselho que não tome nenhuma decisão até que não consiga por outros meios a prova irrefutável de seu estado e tenha analisado realmente o caso.
- Sei que sua intenção é boa, Stephen, mas peço que não diga coisas como essa, porque me fazem sentir ainda mais desprezível - disse Jack. - Não posso me comportar como um policial com uma pessoa que... Já estamos na ponte de Londres! - exclamou olhando pela janela.
Poucos minutos depois chegavam ao Grapes, onde se hospedaram juntos há muitos anos, quando Jack fugia de seus credores, porque o Grapes está situado no distrito de Savoy, o distrito mais liberal que era um paraíso para os devedores fugitivos. Stephen era um homem pobre e, além disso abstêmio, mas se permitia alguns excessos, e um deles era ter alugado durante todo o ano um quarto naquela pequena e confortável hospedaria. Quem trabalhava ali estava acostumado ao seu modo de ser e lhe dispensavam uma boa acolhida desde que chegava. Havia curado a dona, a senhora Broad, uma excelente cozinheira, de adinamia e de outra doença menos digna. Podia fazer o que quizesse no Grapes, e mais de uma vez havia levado para ali um órfão (um órfão morto) para fazer a dissecação e o havia guardado em seu armário sem que ninguém comentasse nada a respeito. E ninguém fez nenhum comentário tampouco agora, quando terminou de comer os pequenos bacalhaus e o pastel de vísceras de veado da tardia janta e fez o inoportuno pedido de que chamassem um carro.
- Não se levante, Jack. Nos veremos no café da manhã, se Deus quiser. Boa noite.
Enquanto punha o abrigo, observou com satisfação que, apesar de Jack haver defendido a senhorita Smith e ter assegurado que ela era inocente, pelo menos estava digerindo algumas de suas palavras junto com três quartos do pastel. Agora parecia mais animado e muito menos envergonhado e passou a comer vorazmente o queijo Stilton.
Outra vez foi sir Joseph quem abriu a porta.
- Finalmente chegou! - exclamou. -entre, entre. - Então, indicando-lhe a escada, perguntou: - Está ciente do que aconteceu com Ponsich?
- Foi por isso que regressei - disse Stephen.
- Eu lhe esperava. Estive esperando desde que recebi sua mensagem através do telégrafo. Venha, sente-se junto ao fogo. Tirarei estes papéis... Perdoe a desordem... Há muito trabalho que fazer. Os norte-americanos estão causando muitos problemas, apesar de seu esplêndido trabalho; a metade dos espanhóis que estão na retaguarda das tropas de Wellington são partidários dos franceses; as coisas não vão bem. E agora essa horrível notícia que chegou do Báltico. Se deixarmos o Imperador respirar, saltará como um boneco de uma caixa surpresa e teríamos que fazer tudo de novo. Desde que chegou a notícia desejávamos que o senhor viesse.
- Sabe o que ocorreu?
- Sim. Temo que foi por falta de precaução. Recordo muito bem que Ponsich dizia que ia pegar o touro pelos cornos... A corveta se aproximou da costa, ou porque seu capitão calculou mal o alcance daqueles enormes canhões, ou porque confiava muito por levar içada uma bandeira dinamarquesa, e antes que os homens pudessem jogar na água um bote com uma bandeira branca, começaram os disparos, muito precisos e com balas vermelhas. Uma acertou na santa-bárbara e a corveta se fez pedaços. Deveríamos ter mandado um capitão com mais experiência.
- Era um homem jovem?
- Sim. Acabava de ser nomeado capitão para tomar o comando da Daphne. Era um oficial muito valente, mas só tinha vinte e dois anos. Contudo, antes de que a notícia do desastre fosse confirmada e inclusive antes de que chegassem os primeiros rumores, já estávamos intranqüilos. No momento em que a Prússia decidiu entrar na guerra, a ilha adquiriu grande importância, mas agora que a situação política mundial muda tão rapidamente, sua importância é muito maior: poderia ser o preço da deserção da Saxônia. Se conseguíssemos que o Rei passasse para o nosso lado, desferiríamos um duro golpe nos franceses, talvez um golpe mortal, mas uma das principais condições que impõe é que desembarquemos na costa de Pomerânia para proteger ele e a Prússia, já que assim poderíamos cortar a passagem das tropas francesas que estão em Danzig e atacar seu flanco esquerdo por trás. Mas não podemos fazer isso sem Grimsholm. O senhor conhece os países bálticos, Maturin?
- Não, mas faz muito tempo que desejo conhecê-los - respondeu Stephen.
- Então observe este mapa, por favor. Inumeráveis dunas ao longo das costas. Vê? - perguntou assinalando a parte leste. - O mar é pouco profundo. Sempre sopra o vento do oeste, pelo que a costa está a sotavento, e isso não é bom. Há poucos lugares bons para desembarcar, além dos estuários, e os melhores são dominados pela maldita ilha. Em uma reunião que os almirantes celebraram, todos concordaram que mesmo sem a proteção dos bancos de areia, sem maus lugares para desembarcar e sem o vento fixo do oeste, não haveria possibilidade de tomar Grimsholm pelo oeste, pelo lado mais próximo do alto mar. O oficial de Infantaria de marinha de maior antiguidade propôs um plano para atacá-la pelo leste, um plano que requeria a participação de uma grande esquadra integrada por barcos de linha que apoiassem o ataque com seus canhões, além de incontáveis transportes e balas. Calculou o número de prováveis baixas e era exageradamente alto. Porém, mesmo que o número de baixas fosse aceitável e as probabilidades de ganhar fossem maiores do que ele pensava, seríamos obrigados a recusar o plano porque não temos nem barcos de guerra nem transportes para levá-lo a cabo. A verdade é que não sabemos de onde tirar mais barcos. A maldita guerra com os Estados Unidos está fazendo diminuir nossos recursos, e a cada dia recebemos queixas de lorde Wellington. Reclama de que não cooperamos com ele na costa norte da Espanha, de que a Armada apenas aparece por ali, e de que as esquadras francesas que estão no porto de Burdeos e mais ao norte podem cortar suas extensas e vulneráveis linhas de comunicação a qualquer momento. Estamos com escassez de barcos, Maturin, e nesta guerra tudo depende deles.
- Disso se deduz que nossos novos aliados não nos ajudam muito.
- Não no mar. Os suecos e os russos são muito bons soldados, mas é no mar onde se decide esta questão. Por outro lado, neste momento é quase impossível considerar Bernadotte um aliado. Como o senhor sabe, é um tipo muito variável, um tipo que poderia ensinar a Judas uma ou duas coisas, e agora seu principal objetivo é apoderar-se da inofensiva Noruega aproveitando-se de nossa ajuda. De todas maneiras, os suecos não têm uma armada eficiente, e tampouco os russos; quer dizer, possuem alguns barcos, mas não sabem como governá-los. Desde que seus países se converteram em nossos inimigos e os oficiais ingleses se foram dali, são incapaces de governá-los. Além disso, são muito desajeitados e estúpidos. Um almirante russo que participou da reunião sugeriu que matássemos de fome a esses homens. Dissemos que tinham provisões para seis meses, mas ele repetiu, em um francês execrável, que deveríamos manter o bloqueio durante esse tempo para matá-los de fome. Manter o bloqueio por seis meses para matá-los de fome quando carecemos de barcos para fazê-lo e cada dia que passa tem grande importância! Em uma semana poderia mudar o aspecto da guerra nos mares do norte! Contudo, nem todos os estrangeiros são estúpidos. Encontra-se entre nós um jovem oficial da cavalaria lituana que enviado pelo exército sueco que nos proporcionou muita informação sobre os fatos mais recentes, que espero que sirvam para, se me permite usar essa expressão comum, fazer outra tentativa com uma idéia mais clara da situação.
- Por favor, diga-me a idéia que tem da situação.
- É uma situação muito curiosa. Nas últimas semanas houve profundas mudanças por causa das diferenças entre os distintos grupos que há na ilha. Parece que nessa pasta amarela que está ao seu lado estão todos os detalhes. Tenha a bondade... - Então pôs os óculos e disse: - Sim, estão aqui. Lembro que a última vez que me perguntou por esses grupos ou organizações não pude dar detalhes, mas agora estão aqui, agora os tenho. As forças catalãs que se encontram na ilha são integradas por três grandes organizações: a Liga, a Confederação e a Germandat.
Stephen assentiu com a cabeça. Ele as conhecia muito bem.
- Sim, a Liga, a Confederação e a Germandat - continuou. - Desculpe minha pronúncia, Maturin. Cada uma está sob o comando de um chefe diferente, que, por sua vez, está sob o comando de um coronel de artilharia francês. O coronel foi chamado para tomar parte no sítio de Riga, e havia tanta confusão nesse momento que não foi substituído imediatamente. Então surgiram divergências entre as organizações, e o chefe da mais forte, aproveitando a ausência do coronel, tomou o comando e enviou os oficiais que estavam em desacordo com ele para terra firme, onde foram recrutados para a Legião espanhola. Agora nega-se a pôr-se sob as ordens do coronel substituto, um tal Lesueur, alegando que Lesueur tem uma categoria inferior e que Macdonald desobedeceu as regras ao dar-lhe essa nomeação. Escreveu uma carta para o general Oudinot na qual dizia que era tenente coronel, pois parece que promoveu a si mesmo, e que preferiria morrer a suportar essa afronta. Temos a carta.
- Por favor, sir Joseph, diga-me o nome da organização dominante agora e de seu chefe.
- A organização se chama Germandat - disse sir Joseph dando-lhe a carta. - E o nome do chefe poderá saber mais facilmente vendo a assinatura do que se eu pronunciar. Além disso, tem má letra.
Ramón d'Ullastret i Casademont. Stephen tinha motivos para esperar que esse fosse o nome. A palavra Germandat lhe dera esperanças, e talvez o fato de ver a letra - ainda que não houvesse prestado muita atenção - havia lhe preparado para encontrar-se com ele. Apesar de tudo, ficou olhando fixamente aquela firma tão rara e ao mesmo tempo tão familiar, a firma de seu padrinho, durante um longo momento, até que se converteu em algo real, até que a idéia coincidiu com a realidade.
- O senhor conhece esse cavalheiro? - perguntou Blaine.
Seria estranho que Stephen não o conhecesse. Esse tipo de relação era tomada muito a sério na Catalunha de sua infância, e ele havia passado muitos dias na casa de seu padrinho. Naquela época Ramón lhe parecia um herói. Descendia pela linha materna de Wifredo o Lanoso e era um fervoroso patriota e se negava a falar castelhano exceto quando estava, como dizia ele, no estrangeiro, quer dizer, em Aragão ou Castelo. Era um excelente jóquei e adorava caçar, e tanto nas montanhas como nos bosques se sentia como em casa, como qualquer outro predador, e graças a ele o Stephen criança havia tido seu primeiro lobo, seu primeiro urso, seu primeiro ninho de águia imperial e, além disso, um rato almiscarado e uma gineta. Também era um orador incansável. Mas sua auréola de herói foi esfumando-se à medida que Stephen crescia. Stephen notou que o orgulho de Ramón tinha uma grande parte de vaidade; julgou menos subjetivamente e percebeu que seu enorme desejo de destacar-se, de guiar em vez de ser guiado, era um obstáculo para o movimento autônomo catalão; observou mais detalhadamente e detectou nele bastante obstinação e estupidez. Apesar disso, ainda sentia um grande afeto pelo seu padrinho, e pensava que seu gosto pelo espetáculo, seu afã por ter supremacia e inclusive seus mais graves defeitos não tinham muita importância se comparados com sua coragem, seu sentido do honra, sua generosidade, e a amabilidade com que sempre tratava o seu afilhado. Stephen podia vê-lo agora caminhando de uma ponta a outra da fria casa solarenga de Ullastret, com uma comprida capa como a que usavam os cavalheiros de Malta, movendo-se de um lado a outro, enquanto recitava um poema sobre o sítio de Barcelona no tempo de seu avô, quando os espanhóis foram derrotados pelos catalãos e ingleses sob o comando de lorde Peterborough e fugiram em debandada; um poema que causaria maior impressão, ainda que não seria mais comovente, se o sobrenome Peterborough, que se repetia com frequência, não rimasse quase sempre com a mesma palavra.
- Eu o conheço - respondeu sorridente. - Como as provisões chegam à guarnição?
- Em barcos dinamarqueses procedentes de Danzig ou mais longe. Aprisionamos um há pouco, no dia em que enviaram os despachos, mas o único carregamento que levava era vinho e tabaco. Não necessitam de munições nem de alimentos básicos porque têm os armazéns cheios de bolachas e carne salgada e toda a água que possam desejar. Em caso de necessidade, com isso poderiam resistir mais de seis meses.
- Pode ser que o vinho e o tabaco não sejam essenciais, mas são um grande consolo para os homens mediterrâneos - disse Stephen. - Suponho que este é o plano da fortificação.
- Exatamente. E nestes lugares estão localizadas as baterias. Esse jovem lituano que acabo de mencionar nos proporcionou o mapa. É uma das pessoas com mais facilidade para os idiomas que já conheci. Fala todas as línguas do Báltico, ainda que diz que seu estoniano e seu finlandês deixam muito a desejar; seu inglês é perfeito, e, pelo que pude apreciar, seu francês também. Tem brio e é muito simpático, e estou certo de que lhe será útil, caso o senhor concorde de ir ali apesar do desafortunado início da operação. Verdadeiramente, a tarefa não é tão simples como supunha.
- Naturalmente que vou - disse Stephen. - Não há dúvida disso. Inclusive tomei a liberdade de dizer ao meu amigo Aubrey que havia essa possibilidade. Por isso me atrasei, porque fui à sua casa para dizer-lhe. Preferiria navegar com ele, preferiria ter seu apoio em vez do de um estranho. Tem muita experiência, o que, como o senhor muito acertadamente assinalou, é fundamental para levar a cabo uma operação deste tipo; seja o que for em terra, é um Ulisses na mar. Além disso, pode e quer acompanhar-me.
- Estamos muito agradecidos, estimado Maturin - disse sir Joseph apertando-lhe a mão. - Muito agradecidos. E quanto a Aubrey, será o companheiro ideal, se não surgirem dificuldades pela questão da classe. O senhor já sabe que os oficiais navais se aferram de suas prerrogativas, e o barco que pensamos enviar é uma simples corveta... Mas esse é um pequeno detalhe, e estou certo de que poderemos contorná-lo.
- Diga-me, Ponsich pôs algumas condições quando concordou em ir para Grimsholm? - perguntou Stephen depois de uma pausa.
- Sim.
- Talvez sejam as mesmas que as minhas. Quero que todos saibam que, em caso de que tenha êxito nas negociações, os soldados catalãos não deverão ser considerados prisioneiros de guerra senão ser tratados com grande respeito e enviados para a Espanha como homens livres, com suas armas e sua bagagem. É necessário que possa prometer isso, e desejaria que não se negassem a me dar autoridade para fazê-lo. Além do mais, insisto em que me dêem uma garantia de que assim será.
- Eu lhe compreendo perfeitamente. Certamente, eu não posso dar essa garantia, porque a confirmação vem de cima, mas não há dúvida de que lhe darão, já que para Ponsich fizeram uma promessa quase idêntica.
- Bem. Muito bem. Tem mais documentos que eu deveria ver?
- Planos e mais planos e observações sobre a distribuição das tropas: nada de verdadeiro interesse para o senhor nem para mim. Talvez devessemos estudá-los amanhã, para que o jovem de quem lhe falei nos esclaressa as notas, porque tem muitas habilidades, mas entre elas não está escrever com letra clara. Agora bebamos um café. Estou desejoso de saber o que ocorreu em Paris e a acolhida que lhe dispensaram.
x
x
x
CONTINUA
X
X
X
Quando sir Joseph saiu do quarto, Stephen olhou ao seu redor. O quarto havia mudado um pouco, e depois de alguns momentos se deu conta de que as esculturas de bronze e os quadros eróticos haviam desaparecido e que havia jarros com flores por todos os lados. Abaixo, na rua, o vigia gritou: "Três da madrugada, faz uma noite horrível e parece que haverá tormenta!". E nesse momento, Blaine regressou.
Tomaram o café, quase uma garrafa de conhaque e falaram de Paris. Stephen transmitiu os cumprimentos de seus amigos e entregou seus presentes. Sir Joseph perguntou cortesmente pelo andamento dos assuntos legais do capitão Aubrey e se alegrou muito ao saber que sua recomendação havia servido de algo. E no momento que Stephen ia se levantar, inquiriu:
- Poderia pedir sua opinião como médico?
Stephen assentiu com a cabeça, voltou a acomodar-se na poltrona e disse que a daria com muito gosto.
- Já faz algum tempo... já faz algum tempo estou pensando em me casar - disse sir Joseph com o olhar fixo na cafeteira.
X
X
X
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/7.2_O_AJUDANTE_DE_CIRURGI_O.jpg
X
X
X
- Matrimônio? - perguntou Stephen com indiferença, pois parecia que seu paciente não podia seguir adiante e supunha que isso era suficiente para descrever sua dolência.
- Sim, matrimônio - disse Blaine por fim. - É bom ter namoricos, e às vezes são muito prazeirosos, mas são relações, por assim dizer, estéreis. Além disso, a dama em questão é virtuosa. Mas talvez haja esperado muito tempo. Nos últimos meses hei notado com grande pena certa... Como direi...?, certa falta de vigor, certa fraqueza, e me parece que eu também deveria cantar vixi puellis nuper idoneus. A medicina pode fazer algo em um caso como este, ou é inevitável que isto ocorra na minha idade? Passei do que Horácio chama lustra decem; contudo, ouvi falar de elixires e gotas...
- Não é inevitável - respondeu Stephen. - Pense nesse homem tão velho, o velho Parr. Se casou outra vez aos cento e vinte e dois anos e sua união, conforme acredito, foi frutífera, e, se não me equivoco, inclusive foi processado por estupro posteriormente. Meu colega Beauprin, a quem tive o gosto de conhecer na França, tinha apenas oitenta anos quando voltou a casar-se, e sua mulher teve dezesseis filhos. Mas antes de falar como médico, quero preguntar como amigo se pensou detalhadamente na conveniência de reavivar esse fogo. Quando um homem olha ao seu redor, no geral encontra mais dor do que prazer. Inclusive Horácio rogava a Vênus que lhe deixasse livre... parce, precor, precor. Não é a paz o bem mais apreciado? Não é melhor a calmaria do que a tormenta? Uma vez naveguei com um jovem que sabia chinês e lembro que citou uma passagem do Analectus de Confúcio no qual o sábio se congratulava de haver chegado à idade das orelhas obedientes, à idade em que podia seguir o ditado de seu coração sem faltar à moral. E Orígenes, como o senhor recordará, cortou o membro pecador e...O doutor Stephen Maturin tem que empreender uma arriscada missão no mar Báltico, e Aubrey será o encarregado de levá-lo a seu destino. Espera-lhes uma difícil navegação, um dura climatologia e, ainda pior, a dura vingança dos franceses.
Os grandes homens podem permitir-se cometer anacronismos e, na verdade, não é desagradável ver à Criseida ler as vidas dos santos ou ao Hamlet ir para a escola em Wittenberg; contudo, o escritor comum não deveria tomar muitas liberdades com o passado, porque se o faz, sacrifica sua autenticidade e o voluntário abandono da incredulidade do leitor e provavelmente receberá cartas daqueles que dão mais importância do que ele à precisão. Faz muito pouco recebi uma carta de um instruído holandês que me repreendia haver polvilhado com água de Colônia a bodega de proa da fragata Shannon em meu último livro, porque, conforme dizia, citando o Oxford Dictionary, a primeira referência à água de Colônia na língua inglesa aparece em uma carta de Byron de 1830, mas acredito que se equivoca ao supor que nenhum inglês havia falado da água de Colônia até então. Apesar disso, sua carta me preocupou, sobretudo porque neste livro mantive deliberadamente a sir James Saumarez no Báltico alguns meses depois de seu regresso no Victory à Inglaterra e de haver deixado o comando do navio. Quando fiz o primeiro rascunho, peguei os dados do Dictionary of National Biography, que afirmava que o almirante ainda estava ao comando no período escolhido por mim, mas depois, ao compará-los com as memórias de um de seus subordinados, descobri que, na realidade, outro homem havia ocupado seu lugar. Contudo, queria falar de Saumarez, que é um magnífico exemplo de um peculiar tipo de oficial naval da época, profundamente religioso e muito competente além de hábil diplomático, e como já não podia reordenar as datas, decidi deixar as coisas como estavam, mas por um sentimento de respeito pelo Victory, esse nobre navio, omiti todas as referências a ele. Portanto, a seqüência histórica não tem uma ordem cronológica exata, mas confio em que o benevolente leitor me aceitará esta licença.
X
X
X
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/7_O_AJUDANTE_DE_CIRURGI_O_.jpg
X
X
X
CAPÍTULO 1
Era um longo dia de verão, e no amplo porto de Halifax, Nova Escócia, entravam duas fragatas só com as gáveas desdobradas com a subida da maré. A primeira, que tinha içada uma bandeira com barras e estrelas debaixo de uma bandeira branca, havia pertencido à Armada norte-americana até pouco tempo; a segunda, que tinha içada uma bandeira descolorida, era a Shannon, vencedora no combate curto mas sangrento que havia mantido com a Chesapeake.
Na Shannon todos tinham uma idéia da recepção que lhes aguardavam, já que a notícia da vitória havia se propagado e numerosos pesqueiros, barcos de recreio, botes de barcos corsários e pequenas embarcações de diversos tipos se haviam aproximado da fragata muito antes de que chegasse na entrada do porto, e haviam seguido navegando em sua companhia enquanto seus homens agitavam no ar seus chapéus e gritavam: "Bravo! Hurra! Muito bem, Shannon! Hurra!". Os tripulantes da Shannon olharam com pouco interesse para aqueles homens e seus barcos, e somente os marinheiros da coberta inferior lhes cumprimentaram com a mão, ainda que sem entusiasmo; em troca, eles olharam a Shannon com grande interesse. Os que eram pouco observadores apenas observaram irregularidades na fragata, já que conservava intactos a maioria dos aparelhos, usava velas novas e a pintura estava quase igual ao dia em que havia zarpado daquele mesmo porto, há várias semanas; porém, os corsários, que eram muito observadores, notaram que no gurupés e nos mastros havia profundas fendas, que o pau da mezena havia sido reparado com barras do cabrestante e que no costado havia algumas balas incrustadas e alguns espigões tapando os buracos que outras haviam feito. Contudo, mesmo alguém que não fosse observador haveria visto o enorme buraco que havia da popa até a alheta de bombordo da Chesapeake, no lugar onde as balas da Shannon, uns cinco quintais de ferro, a haviam alcançado e a haviam atravessado longitudinalmente. Mas o que ninguém viu foi o sangue derramado naquela encarniçada batalha, tanto que havia saído aos jorros pelos embornais, pois os tripulantes da Shannon limparam ambas fragatas e fizeram o possível para deixar a coberta reluzente. Apesar disso, a julgar pelas condições em que se encontravam os mastros e as vergas da Shannon e o casco da Chesapeake, qualquer um que houvesse estado em uma batalha haveria pensado que ao final do combate as fragatas tinham o mesmo aspecto de um matadouro.
Na Shannon todos sabiam como iam ser recebidos, e por isso os marinheiros da coberta inferior haviam se apressado para pôr a melhor roupa que tinham para desembarcar: jaqueta azul com botões dourados, amplas calças brancas com fitas laterais, chapéu de palha de aba larga com uma cinta com o nome de Shannon bordado e brilhantes sapatos negros. Não obstante, surpreendeu-hes o barulho que ouviram quando se aproximavam do cais: primeiro os vivas de alguns grupos cujas vozes se sobrepunham e depois outros muito mais fortes e muito mais apreciados por eles, o coro dos marinheiros dos barcos de guerra ancorados no porto, quando a fragata passava pelo seu lado. E enquanto a fragata se aproximava de seu ancoradouro habitual e a maré subia, os marinheiros, desde as vergas e a exárcia, gritavam em uníssono: "Shannon, hurra, hurra, hurra!", fazendo estremecer o ar e o mar. Todo Halifax havia saído para dar-lhes as boas-vindas e para aclamar-lhes por sua vitória, a primeira vitória da Armada real em uma guerra desastrosa para ela desde o princípio, já que os norte-americanos haviam aprisionado três de suas fragatas mais potentes em batalhas em que só duas naves inimigas haviam se enfrentado, além de haver capturado outras embarcações menores. Obviamente, os marinheiros eram os que davam mais vivas, e sua alegria era tão grande como profunda havia sido a pena que essas derrotas lhes haviam causado, mas os milhares e milhares de jaquetas vermelhas e civis estavam muito contentes também, assim que quando o jovem Wallis, ao comando da Shannon, deu a ordem de carregar as velas, muito poucos puderam ouvir.
Ainda que os tripulantes da Shannon estivessem impressionados e satisfeitos, tinham uma expressão grave, já que seu querido capitão se debatia entre a vida e a morte em sua cabine e haviam sepultado ao primeiro oficial e a vinte e dois companheiros de tripulação. Além disso, na enfermaria e no rancho havia cinqüenta e nove feridos, muitos dos quais estavam à beira da morte, e entre eles se encontravam alguns dos homens mais populares da tripulação.
De forma que, quando o comandante do porto subiu pelo costado, observou que os tripulantes, muito esmerados mas muito sérios, formavam um reduzido grupo, e que no castelo de popa havia muito poucos oficiais para dar-lhe as boas-vindas. Havia gritado: "Muito bem! Muito bem, Shannon!" enquanto lhe subiam a bordo, tratando de fazer-se ouvir entre as ordens do contramestre, e ao chegar, perguntou:
- Onde está o capitão?
- Abaixo, senhor - respondeu o senhor Wallis -. Lamento dizer-lhe que está ferido. Tem uma profunda ferida na cabeça e apenas pode falar.
- Sinto muito... Sinto muito. Está muito grave? Uma ferida na cabeça... Conserva sua capacidade de razoamento? Sabe que conseguiu uma grande vitória?
- Sim, senhor. Acho que é precisamente isso o que lhe mantém vivo.
- O que diz o cirurgião? Está permitido ver-lhe?
- Não me deixaram entrar para ver-lhe esta manhã, senhor, mas mandarei perguntar como se encontra.
- Sim, por favor - disse o almirante e, depois de uma pausa, quis saber o que havia sido do primeiro oficial, que havia servido sob suas ordens como guarda-marinha, e perguntou -: Onde está o senhor Watt?
- Morreu, senhor - respondeu Wallis.
- Morreu! - exclamou o almirante, baixando os olhos -. O sinto muitíssimo... Era um excelente marinheiro. Tiveram muitas baixas, senhor Falkiner?
- Morreram vinte e três homens e há cinqüenta e nove feridos, senhor, um número de homens que representa a quarta parte da tripulação. Na Chesapeake houve mais de sessenta mortos e noventa feridos, e seu capitão morreu em nossa fragata na quarta-feira. - E em um tom mais baixo, acrescentou -: Permita-me dizer-lhe que meu nome é Wallis, senhor. O senhor Falkiner está ao comando da presa.
- Claro, claro - disse o almirante -. Foi uma sangrenta batalha, senhor Wallis, uma horrível batalha, mas valeu a pena. Sim, valeu a pena.
Então deu uma espiada pela coberta, muito limpa e ordenada mas cheia de marcas, depois pelos botes, dois dos quais já estavam reparados, depois pelos aparelhos, e em continuação observou durante uns momentos o pau da mezena, que também havia sido reparado.
- Assim que o senhor e Falkiner e os poucos marinheiros que lhes restaram trouxeram as embarcações. O senhor e seus companheiros de tripulação fizeram um bom trabalho, senhor Wallis. Agora queria que me fizesse um breve relato da batalha. Mais adiante, se o capitão Broke ainda não estiver recuperado quando cheguar o momento de entregar-me um relatório detalhado, será o senhor que o fará. Mas agora quero ouvir de seus lábios o relato.
- Pois bem, senhor... - disse Wallis e se interrompeu.
Era capaz de lutar com desenvoltura, mas não era um bom orador. Além disso, estava perturbado por achar-se frente a um almirante e em uma audiência junto da qual estava o único oficial norte-americano sobrevivente que podia manter-se em pé apesar de suas feridas. Fez um relato incompleto e deslavazado, mas o almirante lhe escutava com visível agrado, pois coincidia com o que havia ouvido e incluía muitos mais detalhes que os rumores chegados até ele. O que Wallis disse confirmou tudo o que ele conhecia: Broke, ao descobrir que a Chesapeake estava sozinha no porto de Boston, ordenou aos barcos que lhe acompanhavam que se afastassem e havia desafiado ao seu capitão para sair e lutar com ele em alto mar, e a Chesapeake havia saído do porto e havia enfrentado eles com valentia. Estavam em igualdade de condições e haviam lutado lado a lado e limpamente, sem estratagemas. Durante os primeiros minutos a Shannon havia arrasado o castelo de popa da Chesapeake com seus canhonaços, por consequência dos quais morreram ou ficaram feridos a maioria dos oficiais, depois havia disparado numerosas descargas contra a popa, e seus homens passaram para a abordagem e aprisionaram a fragata.
- E transcorreram só quinze minutos entre o primeiro disparo e o último, senhor.
- Meu Deus! Quinze minutos! Isso eu não sabia - disse o almirante.
Depois de fazer mais algumas perguntas, juntou as mãos atrás das costas e, cheio de satisfação, começou a dar passos em silêncio. De repente viu uma figura alta com um uniforme de capitão de navio junto aos oficiais de Infantaria de Marinha e exclamou:
- Aubrey! Sim, é Aubrey, estou certo!
Então avançou com a mão extendida, e o capitão Aubrey colocou o chapéu debaixo do braço esquerdo, tirou a mão direita da tipóia e deu ao almirante um aperto de mãos tão forte como pôde.
- Estava certo de que não podia confundir esse cabelo loiro, ainda que faz anos que... - disse o almirante -. Tem o braço ferido? Sabia que se encontrava em Boston, mas como chegou aqui?
- Escapei, senhor - respondeu Jack Aubrey.
- Muito bem! - voltou a exclamar o almirante -. Então estava a bordo quando se conseguiu essa grande vitória! Valia a pena perder um braço ou inclusive os dois para estar ali! Felicito-lhe de todo coração! Quanto gostaria de ter estado com os senhores! Lamento muito a morte do pobre Watt e o que ocorreu a Broke. Queria falar com Broke, se o cirurgião...
E assinalando a tipóia com a cabeça, acrescentou:
- Tem feridas de importância no braço?
- Não. A ferida foi causada por uma bala de mosquete quando a Java lutava com o inimigo. Se quer falar com os doutores, senhor, aí os tem.
- Como está, senhor Fox? - perguntou o almirante, virando-se para o cirurgião da Shannon, que acabava de sair pela escotilha principal com um acompanhante que, como ele, estava vestido com roupa de trabalho -. Como se encontra seu paciente? Está em condições de receber uma visita, ainda que só seja por alguns momentos?
- Bem, senhor, acho que em seu estado seria prejudicial que se excitasse ou fizesse um esforço mental... - respondeu o senhor Fox, com tom indeciso, movendo a cabeça de um lado para o outro -. Não lhe parece, colega?
Seu colega, um homem baixinho de tez azeitonada, que usava uma jaqueta negra manchada de sangue, uma camisa suja e uma peruca mal posta, respondeu:
- Sem dúvida, sem dúvida. - E com certa impaciência, acrescentou -: Não podem permitir-se visitas até que a poção faça efeito.
Então, sem dizer mais uma palavra, começou a afastar-se, porém o capitão Aubrey lhe pegou pelo cotovelo e, em voz muito baixa, disse:
- Espera, Stephen! Esse é o almirante, sabia?
Stephen virou para Aubrey seus olhos claríssimos, agora rodeados de um círculo vermelho porque havia passado muitos dias e noites quase sem descansar, e disse:
- Escute bem, Jack, tenho que fazer uma amputação e não me deteria nem para falar com o mesmíssimo arcanjo Gabriel. Só subi para pegar meu pequeno retrator, que está na cabine. E diga a esse homem que não fale tão alto.
Imediatamente se afastou dali e deixou atrás de si sorrisos nervosos e olhares ansiosos que iam dirigidos para o almirante, mas aquele homem tão importante não parecia haver-se ofendido. Depois de percorrer a fragata com a vista, o almirante olhou para a Chesapeake, e imediatamente notou-se que atrás de sua preocupação pelo capitão da Shannon e de sua pena pela perda de alguns oficiais e marinheiros, assomava uma grande satisfação. Então pediu a Wallis a lista de prisioneiros de guerra e, enquanto iam buscá-la, permaneceu com Jack Aubrey junto ao toldo improvisado que haviam colocado sobre a clarabóia da cabine do capitão e lhe disse:
- Estou certo de que já vi esse homem antes, mas não consigo lembrar de seu nome.
- É o doutor... - começou a dizer o capitão Aubrey.
- Espere! Espere! Já o tenho! É o doutor Saturnin. O almirante Bowes e eu fomos ao palácio para perguntar pela saúde do duque e ele saiu para dizer-nos como se encontrava. Saturnin... Estava convencido de que o recordaria.
- É ele mesmo, senhor. Stephen Maturin foi chamado para atender ao príncipe William e, pelo que sei, salvou-lhe quando tudo havia fracassado. É um médico extraordinário, senhor, e meu amigo íntimo. Navegamos juntos desde 1802. Contudo, acho que ainda não se acostumou com as normas da Armada, e às vezes, sem pretender, falta com o respeito.
- Realmente, não é muito respeitoso, mas não estou ofendido. Apesar de ter chegado a almirante, não me considero um Deus, sabe, Aubrey? Além disso, custaria muito conseguir que me pusesse de mau humor hoje... Que triunfo, Aubrey! Deve de ser um grande médico para que lhe hajam pedido que atendesse ao duque. Quanto desejo que possa salvar ao pobre Broke! - Então, olhando com admiração para uma jovem muito elegante que havia saído de trás do gorro provisório, disse -: Seu servidor, senhora.
A jovem levava uma bacia e ia seguida de um ajudante de cirurgião extenuado e manchado de sangue. Estava pálida, porém, naquele ambiente, sua palidez lhe favorecia, dava-lhe distinção.
- Diana - disse o capitão Aubrey, - permita-me que lhe apresente ao almirante Colpoys. Minha prima, a senhora Villiers. A senhora Villiers estava em Boston e escapou com Maturin e comigo.
- Seu mais humilde servidor, senhora - disse o almirante, fazendo uma reverência com a cabeça -. Quanto a invejo por haver presenciado uma ação de guerra tão notável!
Diana pôs a bacia no solo e fez uma reverência.
- Na realidade, fizeram-me permanecer sob a coberta, senhor... - disse e, com um intenso brilho nos olhos, acrescentou -: Mas gostaria de ter sido um homem para participar da abordagem com os demais!
- Não tenho dúvida de que teria matado os inimigos - disse o almirante -. Mas agora que se encontra aqui, pode ficar conosco. Lady Harriet ficará encantada. Minha falua está a sua disposição. Pode descer para terra agora mesmo, se o deseja.
- O senhor é muito amável, almirante - disse Diana, - e eu gostaria muito de visitar lady Harriet, mas ainda tardarei algumas horas em terminar o que estou fazendo.
- A admiro por fazer esse trabalho, senhora - disse o almirante, quem havia compreendido que tipo de trabalho era ao dar uma espiada para a bacia -. Mas quando terminar, deve vir para nossa casa. Aubrey, quando a senhora Villiers terminar, leve-a para nossa casa.
Seu radiante sorriso desapareceu quando um espantoso grito de dor, um grito que não parecia humano, chegou da enfermaria penetrando no ruído das alegres vozes como um faca. Mas o almirante havia estado em muitas batalhas e sabia o preço que havia que pagar.
- É uma ordem, Aubrey, ouviu? - acrescentou um pouco desgostoso e depois, voltando-se para o jovem tenente, disse -: Senhor Wallis, vamos ao nosso assunto.
As horas haviam passado. O capitão Broke fora levado para a casa do comissionado, e os tripulantes feridos, para o hospital. Ali todos, com excessão dos que estavam atormentados pela dor, descansavam tranqüilamente junto aos feridos da Chesapeake e às vezes trocavam com eles tabaco e rum de contrabando. Todos os prisioneiros de guerra norte-americanos foram tirados do barco, os poucos oficiais sobreviventes foram postos em liberdade sob palavra e muitos marinheiros enviados para o quartel. Os desertores britânicos capturados na Chesapeake haviam tido pior sorte que todos os demais, porque foram encerrados no cárcere, de onde não tinham nenhuma possibilidade de sair salvo para ir para a forca. Já não se via o lado obscuro da guerra, e a alegria e a ilusão haviam começado a dissipar a preocupação e a tristeza na fragata. Os tripulantes da Shannon poderiam descer para terra graças aos capitães dos outros barcos terem enviado voluntários suficientes para completar uma guarda, e a alegria dos recém chegados junto com os gritos procedentes dos cais arrancavam risadas dos mais jovens, que, aglomerados no corrimão, pisoteando-se uns aos outros, observavam como seus companheiros desciam para os botes com cuidado para evitar manchar de alcatrão suas reluzentes calças de dril.
- Prima Diana, quer descer para a terra? - perguntou Jack Aubrey -. Avisarei à Tenedos para que o capitão mande seu esquife.
- Obrigada, Jack, mas prefiro esperar por Stephen - respondeu Diana -. Não tardará muito.
Estava sentada sobre um pequeno baú adornado com rebites dourados, o único que havia levado consigo ao fugir de Boston, e olhava para Halifax por cima de um destroçado canhão de nove libras. Jack estava junto dela com um pé apoiado na carreta e também olhava para ali, mas sem prestar muita atenção, porque sua mente se ocupava de outras coisas. Estava cheio de gozo, pois apesar de não ter sido ele quem havia conseguido aquela vitória, era um oficial honesto, unido à Armada real desde sua infância, e as derrotas sofridas no ano anterior lhe afetaram tanto que eram muito difíceis de suportar. Agora já não tinha aquela carga. As duas fragatas haviam lutado um bom combate, a Armada real havia ganhado, no universo as coisas haviam voltado a ser como deviam, as estrelas haviam recuperado seu movimento natural, e havia muitas probabilidades de que assim que ele chegasse à Inglaterra lhe dessem o comando da Acasta, fragata de quarenta canhões, o que contribuiria para prolongar esse movimento. Além disso, quando desembarcasse correria ao correio em busca de suas cartas. Durante o tempo que estivera prisioneiro em Boston não havia tido notícias de Sophie, sua esposa, prima irmã de Diana, e ansiava saber dela, de seus filhos, de seus cavalos, de seu jardim, de sua casa... Mas atrás desses sentimentos havia uma pitada de ansiedade, ou talvez mais que uma pitada. Ainda que era um capitão extraordinariamente rico, que havia conseguido mais butins que a maioria dos capitães de sua mesma antiguidade - e mais que muitos almirantes também - havia deixado atrás de si um negócio com muitos problemas e sua solução dependia de um homem do qual não se fiavam em absoluto seu amigo Maturin nem Sophie. Esse homem, um tal senhor Kimber, havia assegurado ao capitão Aubrey que a escória das minas de chumbo que havia em suas terras poderia produzir mais chumbo e, além disso, mediante um procedimento que só ele conhecia, uma assombrosa quantidade de prata, o que permitiria obter grandes benefícios com um pequeno desembolso inicial. Contudo, as três últimas cartas que sua esposa lhe enviara e que Jack havia recebido nas índias Orientais, antes de ser capturado pelos norte-americanos em sua viagem de regresso para a Inglaterra, não falavam de benefícios senão de ações pouco claras que Kimber havia realizado sem autorização e a inversão de grandes somas na construção de caminhos, a escavação de poços profundos, ferramentas para trabalhar nas minas, uma máquina de vapor... Estava ansioso para que aquilo se esclaressesse e confiava em que assim fosse, porque Stephen Maturin e Sophie não sabiam nada de negócios e ele, em troca, tomou sua decisão baseando-se em cifras e fatos concretos, não por intuição, e conhecia melhor que eles o mundo que lhes rodeava. Desejava com veemência ter notícias de seus filhos: as gêmeas e o menino. Provavelmente George já falava... enquanto esteve prisioneiro não havia recebido nem uma só carta, e a falta de notícias foi uma das coisas mais duras que havia tido que suportar. Mas sobretudo desejava poder pegar a mão de Sophie e ouvir sua voz o quanto antes. Suas cartas, que tinham data anterior à guerra com Estados Unidos, chegaram a suas mãos quando estava em Java, e as havia lido tantas vezes que se rasgaram nas dobras, mas depois se haviam perdido no mar, junto com quase tudo o que possuia. Desde então, nem uma palavra. Desde os 110° de longitude leste até os 60 ° de longitude oeste, quase meio mundo, nem uma palavra. Ainda que sabia que esse era o destino dos homens do mar, pois tanto os barcos correio como outros meios de transporte eram inseguros, às vezes achava que a sorte lhe havia abandonado.
Tal vez a sorte lhe havia abandonado, mas Sophie não. Seu matrimônio se apoiava em uma base firme, em um carinho profundo e mútuo respeito, e era melhor que a maioria, ainda que em um de seus aspectos não era plenamente satisfatório para um homem como Jack Aubrey, cujos instintos básicos eram muito fortes. Já que Sophie era possessiva e um pouco ciumenta, fazia parte de seu ser. Certamente, ela não carecia de defeitos, mas tampouco ele, e às vezes lhe parecia que os seus eram mais fáceis de tolerar que os dela, mas esqueceu tudo isso quando em sua mente apareceu a imagem do pacote de cartas que encontraria ao atravessar as tranqüilas águas de Halifax.
- Diga-me, Jack, Sophie passou mal quando teve a última criança? - inquiriu Diana.
- Que? - perguntou Jack como se houvesse chegado de muito longe -. Se passou mal ao ter George? Oxalá não... Não me disse nada. Eu estava em Mauricio então. Contudo, acredito que às vezes se passa muito mal.
- Isso me hão dito - afirmou Diana e fez uma pausa -. Aí vem Stephen.
Poucos minutos depois o esquife se abordou com a Shannon e eles se despediram, mas da fragata, não dos tripulantes, posto que voltariam a ver-lhes nas festas que dariam na costa para celebrar a vitória, entre elas um baile que o almirante já havia anunciado. Diana não aceitou a guindola que o senhor Wallis lhe oferecia e desceu atrás de Stephen com a agilidade de um menino, e os tripulantes do esquife cravaram os olhos no mar para não ver-lhe as pernas. Depois, gritando, rogou aos homens que estavam na coberta que cuidassem de seu baú e, olhando sorridente para Wallis, que estava radiante de alegria, acrescentou:
- É o único que tenho, o pouco que tenho, sabe?
Sentaram-se no banco da popa e o esquife começou a navegar em direção à costa. Formavam um curioso grupo, já que entre eles existiam relações muito estreitas e diversas. Em outro tempo os dois homens se haviam disputado o carinho de Diana, e a amizade que os unia havia estado a ponto de romper-se. Diana havia sido o grande amor de Stephen, sua grande ilusão; contudo, na Índia lhe abandonara por um norte-americano muito rico chamado Johnson, com quem as relações haviam se deteriorado depois de sua chegada aos Estados Unidos, sendo insustentáveis depois de começar a guerra. Quando Maturin chegou a Boston como prisioneiro de guerra, haviam voltado a encontrar-se, e ainda que ele ainda a admirava por seu beleza e seu ímpeto, parecia-lhe que seu coração já não sentia nada. Não sabia se isso era devido a ela ter mudado ou a ter sido ele que mudara, mas sabia que a menos que seu coração voltasse a sentir, havia perdido definitivamente o motivo principal de sua existência. Não obstante, ambos haviam escapado juntos e haviam chegado à Shannon em uma lancha; Além disso, haviam se comprometido, mas Stephen só adquiriu esse compromisso porque acreditava que era seu dever ajudá-la, porque era um meio para que recuperasse a nacionalidade, e surpreendera-se por ela ter aceito de bom grado, sobretudo porque até então pensava que era a mulher mais intuitiva e perspicaz que conhecia. E se não houvesse sido pela batalha, agora seriam marido e mulher, ao menos conforme o Código Civil da Inglaterra, não conforme o Código Canônico (Stephen Maturin era católico), pois o capitão Philip Broke, a quem seu posto lhe conferia atribuições para casar-lhes no mar, esteve a ponto de fazê-lo, e agora Diana seria de novo súdita britânica em vez de ser nominalmente cidadã norte-americana.
Apesar de todos os sentimentos que se entremesclavam em seu íntimo, foram conversando animadamente até que desembarcaram no cais e assim continuaram até que chegaram à casa do almirante, onde se separaram. Jack foi entrevistar-se com o comissionado e depois iria buscar o correio e alojamento para ele e seu amigo; Stephen afastou-se sem dizer para onde ia, com sua única bagagem, um pacote envolto num pedaço de tecido, metido sob o braço; e Diana ficou em companhia de lady Colpoys, uma mulher bondosa e de pernas curtas.
Stephen não havia dito para onde ia, mas se seus acompanhantes se houvessem posto a pensar nisso, não teria sido difícil adivinhá-lo. O capitão Aubrey, pelo fato de haver navegado junto com o doutor Maturin durante muitos anos, sabia que o doutor, além de ser um médico excelente, que havia decidido fazer-se ao mar como cirurgião naval porque assim teria a oportunidade de fazer descobertas no campo da história natural (sua grande paixão, só superada em intensidade pelo seu desejo de derrotar Bonaparte), era um dos espiões mais apreciados no Almirantado; e Diana, pouco antes de sua fuga de Boston, vira-lhe pegar os documentos que continha aquele pacote de um dos quartos que ela e Johnson ocupavam, e ele justificou sua ação dizendo que os documentos seriam de interesse para um alto cargo dos Serviços Secretos que conhecia e que casualmente estava destinado em Halifax. Stephen sabia muito bem disso, mas conforme um velho costume e uma tendência inata de agir com muita discrição (o que lhe havia permitido seguir vivo), sempre era muito reservado. Conforme esse costume também, foi para o escritório de seu enlace dando uma volta e parando para olhar as vitrinas das lojas, e posto que em algumas delas se refletia a rua, podia ver o que estava atrás dele. Ainda que costumasse tomar esse tipo de precauções mecanicamente, agora as considerava mais necessárias do que nunca, pois sabia melhor do que ninguém que em Halifax havia alguns espiões norte-americanos, e provavelmente Johnson, furioso por ele lhe haver roubado sua amante e seus documentos, faria todo o possível para vingar-se.
Chegou ao escritório muito tranqüilo, sem que ninguém o seguisse, e se apresentou. Imediatamente foi recebido pelo capitão Beck, oficial da Infantaria da Marinha, que era o chefe dos Serviços Secretos na América do Norte. Nunca se haviam visto, e Beck o olhou com grande curiosidade, já que o doutor Maturin gozava de uma excelente reputação no departamento por ser um dos poucos membros que trabalhava voluntariamente e que era eficiente. Ainda que Maturin fosse metade irlandês e metade catalão e, por esse motivo, era um grande conhecedor dos assuntos catalães, Beck sabia que recentemente havia logrado dizimar os Serviços Secretos franceses fazendo chegar a Paris, através dos incautos norte-americanos, certa informação falsa e comprometedora. Como esse era um assunto que lhe concernia, Beck foi informado oficialmente dele, mas também havia ouvido relatos não oficiais de outras ações também notáveis que Maturin havia realizado na Espanha e na França, e inexplicavelmente Beck se sentiu decepcionado ao ver-lhe. Esse homem que agora se sentava do outro lado da mesa e tratava de desatar um pacote envolto em um pedaço de tela era magro, estava mal vestido e tinha um aspecto comum, e Beck, sem razão alguma, esperava que tivesse a figura de herói, e, naturalmente, não esperava que usasse óculos com cristais azuis para proteger-se do sol.
O que Stephen pensava dele também era pouco bajulador. Havia observado que Beck era um homem deforme, de gesto austero, olhos esbugalhados e lacrimejantes, cabelo grisalho e ralo, sem queixo, com o pomo-de-adão proeminente. Pelo tamanho de sua testa parecia inteligente, mas por seu aspecto não parecia capacitado para nada. "Talvez todos nós sejamos muito raros", pensou Stephen enquanto recordava de outros colegas seus.
Falaram da vitória durante um tempo. Beck falou com tanto entusiasmo que seu rosto macilento ficou corado e Stephen repetiu que não havia tido uma participação notável na batalha, já que esteve sob a coberta desde o primeiro canhonaço até o último, e assegurou que não sabia como se havia desenrolado nem quantos desertores britânicos formavam parte da tripulação do barco norte-americano nem quais métodos foram empregados para induzir-lhes a isso. Ao final Beck parecia decepcionado.
- Recebi seu aviso de que os franceses estavam em Boston - disse Stephen, esforçando-se para desfazer um nó -. Obrigado, pois quando me encontrei com eles já estava preparado.
- Espero que não tenha tido nenhum desgosto. Dizem que Durand é um homem decidido e sem escrúpulos.
- Pontet-Canet era pior. Era muito desagradável e me causou muitos incômodos durante certo tempo, mas eu soltei as braças e logrei que se detivesse.
O doutor Maturin se sentia orgulhoso de saber expressões da gíria marinheira. Às vezes as usava corretamente, mas tanto quando acertava como quando errava, sempre as dizia com certa ênfase para expressar sua satisfação, tal como outras pessoas o fariam ao dizer uma citação em grego ou latim no momento oportuno.
- Depois o fiz mudar de bordo em redondo - prosseguiu -. Tem uma faca? Verdadeiramente, não vale a pena conservar esta corda intacta.
- Como o conseguiu, senhor? - inquiriu Beck enquanto lhe dava uma tesoura.
- Cortei-lhe a cabeça - respondeu Maturin, tratando de cortar a corda.
O capitão Beck estava acostumado a ver sangue e morte tanto na guerra como na luta clandestina, mas sentiu um arrepio ao ouvir o tom indiferente de seu visitante, que havia tirado os óculos e lhe olhava fixamente com seus inexpressivos olhos claros, o única coisa que chamava atenção nele.
- Estou certo de que o senhor sabe da posição que Harry Johnson ocupa nos Serviços Secretos norte-americanos, não é verdade, senhor? - perguntou Stephen, desembrulhando por fim os documentos.
- Oh, sim, sem dúvida!
Não era possível que Beck desconhecesse as atividades de seu principal oponente no Canadá, pois desde que começou a desempenhar o seu cargo tivera que lutar contra a rede de espionagem ampla e bem organizada criada por Johnson.
- Muito bem. Peguei estes documentos em seu escritório e de sua caixa forte em Boston. Os franceses os consultavam, mas eu pus fim às suas maquinações.
Pôs os documentos um a um sobre a mesa do capitão. Entre eles havia uma lista dos espiões norte-americanos no Canadá e nas Antilhas e alguns comentários sobre eles; cartas dirigidas ao Secretário de Estado onde Johnson falava com todo detalhe das relações entre os Serviços Secretos franceses e os norte-americanos no passado e na atualidade; algumas folhas com códigos para usar em distintas ocasiões e com comentários sobre o caráter, a formação e as intenções de seus colegas franceses; projetos para o futuro; uma avaliação da situação dos britânicos nos Grandes Lagos...
Quando Stephen colocou o último documento sobre a mesa do capitão, já havia alcançado a talha de herói, havia chegado mais lá do que se esperava. O capitão Beck o olhou por cima da pilha de papéis com profundo respeito, como se o venerasse.
- É uma informação amplíssima, a mais ampla que alguém jamais reuniu. Nós lhes tiramos tudo, meu Deus! Esta lista sozinha bastará para manter ocupado durante semanas a um pelotão de execução. Tenho que refletir sobre todas essas coisas. Estes documentos me acompanharão no leito durante muitas noites.
- Estes documentos não, senhor, com sua permissão. Devem ser enviados para sir Joseph e sua equipe de criptógrafos.
Quando mencionou sir Joseph, o capitão fez uma reverência com a cabeça.
- Proponho enviar a maior parte deles para Londres no primeiro barco que possa levá-los. Podem-se fazer cópias, é claro, ainda que isso também represente alguns problemas, como o senhor bem sabe. Mas antes de falar das cópias ou de qualquer outra coisa, queria fazer uma sugestão e um pedido. Já ouviu falar da senhora Villiers?
- Diana Villiers, a amante de Johnson, essa inglesa que renegou de sua pátria?
- Não, senhor - respondeu Stephen, olhando-lhe fixamente e sem pestanejar -. Não, senhor. A senhora Villiers não era a amante de Johnson, simplesmente aceitou sua proteção em um país estrangeiro. Tampouco renegou a sua pátria. Não só o enfrentou energicamente quando tentou que ela tomasse parte na guerra contra seu própio país, como que foi ela quem fez o possível para que eu conseguisse estes documentos. Lamentaria muito que a julgassem equivocadamente.
- Sim, senhor - disse Beck depois de uns momentos de vacilação -. Não é minha intenção faltar com o respeito por essa dama, senhor, mas se não me equivoco, tornou-se cidadã norte-americana.
- Foi um ato irrefletido. Pensava que cumpria uma simples formalidade e que isso não afetaria em absoluto a lealdade ao seu país. Disseram que esse era um aspecto que facilitaria o divórcio do senhor Johnson.
Observou que o capitão o olhava com benevolência e inclusive simpatia e franziu o cenho. Depois, em um tom mais calmo, prosseguiu:
- Sem embargo, ela é nominalmente uma estrangeira inimiga, e a respeito disso queria dizer que, em minha opinião, deveria-lhe dar a apropiada certificação, como a qualquer cidadão de nosso país. Por outro lado, quero destacar que ela desconhece minha relação com o departamento. Eu a trouxe comigo, e exceto que hajam outros motivos, não seria correto molestá-la nem causar-lhe nenhum desgosto.
- Agora mesmo lhe darei, senhor - disse o capitão Beck enquanto tocava uma campainha -. Alegra-me que me o tenha dito, pois provavelmente Archbold haveria começado a segui-la antes do anoitecer. Tem havido muitas mulheres... mas a dama em questão é de uma categoria muito diferente.
Nesse momento entrou o ajudante do capitão Beck. Era quase tão feio como o velho e tinha um aspecto mais desagradável e menos inteligente que ele.
- Senhor Archbold, uma certificação X em nome da senhora Villiers, por favor - disse o capitão.
Logo o documento foi preparado, e Beck lhe pôs um selo oficial, o assinou e entregou para Stephen enquanto dizia:
- Mas permita-me advertir-lhe, senhor, que este documento só é válido em minha zona. Se a dama tivesse que regressar para a Inglaterra, possivelmente teria muitas dificuldades.
Stephen poderia haver acrescentado que pensava evitar essas dificuldades casando-se com Diana, pois assim ela recuperaria a cidadania britânica, mas preferiu reservar-se seus pensamentos. Além disso, estava muito, muito cansado pelo grande esforço que havia feito para escapar e por haver realizado seu trabalho como cirurgião em duas fragatas quase ininterrumpidamente desde o começo da batalha. Assim, não disse nada, e depois de um curto silêncio, Beck prosseguiu:
- Parece-me que o senhor queria fazer uma petição, não é certo?
- Sim. Queria pedir que autorize ao pagador a aceitar uma letra devedora contra um banco de Londres. Necessito de dinheiro urgentemente.
- Se necessita de dinheiro, doutor Maturin, rogo-lhe que não se preocupe com os sete e meio porcentos do pagador nem com toda essa papelada. Tenho fundos à minha disposição e com eles posso solucionar qualquer problema desse tipo imediatamente. Estão destinados a conseguir informação, e um só destes documentos seria suficiente para justificar que eu...
- O senhor é muito amável, senhor - disse Stephen, - mas devo dizer que desde que comecei a colaborar com o departamento, nunca aceitei nem sequer meio penique de Brummagem{1} por nada do que fiz ou consegui. Bastará com que escreva uma NOTA para o pagador, se não for inconveniente. Também queria que dois de seus homens que sejam muito fortes e discretos me acompanhassem, pois a fronteira não está muito longe e enquanto o senhor não acabe com os agentes citados na lista de Johnson não deveria andar sozinho por Halifax.
Precedido por um homem discreto de seis pés de altura, seguido de outro e acompanhado por um terceiro, Stephen foi até o escritório do pagador, fez a transação, saiu com um pequeno pacote no bolso e ficou pensando uns momentos. Depois, seguido de seu acompanhante, avançou pela rua com passo vacilante e parou na esquina.
- Estou perdido - disse.
- O que foi, senhor? - perguntou seu guarda.
- Estou perdido. Não recordo onde estou hospedado.
A rua estava quase vazia, porque todos os que tiveram a oportunidade de ir ao porto para ver a Shannon e a Chesapeake haviam partido. Naquele lugar quase deserto, os outros dois homens faziam o possível para passar desapercebidos e caminhavam sem pressa a considerável distância e às vezes adotavam uma postura negligente, porém, viram o sinal que seu colega fez com a cabeça e se reuniram com ele na esquina.
- O cavalheiro se perdeu - disse -. Não sabe onde está hospedado.
Todos olharam para Stephen.
- Esqueceu o nome de seu hotel? - inquiriu um.
- Esqueceu o nome de seu hotel, senhor? - perguntou o primeiro, que havia se inclinado para Stephen para poder falar-lhe ao ouvido.
Stephen, tentando sobrepor-se ao cansaço, esforçou-se para recordar enquanto passava a mão pela mandíbula coberta pela barba incipiente.
- Provavelmente está hospedado no hotel Bailey - disse outro -. Aí é onde se alojam a maioria dos médicos.
- É o Bailey, senhor? - inquiriu o primeiro, inclinado para ele outra vez.
- É o White? O Brown? O Goat and Compasses? - perguntaram os outros, dirigindo-se não ao doutor Maturin mas a seus companheiros.
- Já sei! - exclamou Stephen -. Já tenho a solução! Por favor, levem-me ao lugar onde se recebe a correspondência dos oficiais.
- Então temos que apressar-nos - disse o primeiro -. Inclusive temos que correr, senhor, porque se não o encontraremos fechado.
Alguns minutos mais tarde, depois de percorrer umas centenas de jardas de distância, o mesmo homem, ofegando, disse:
- Aí está! Como eu temia. As persianas já estão fechadas.
As persianas já estavam fechadas, mas a porta estava entreaberta. E ainda que a porta estivesse fechada, ainda assim se poderia ouvir em toda a rua a potente voz de marinheiro do capitão Aubrey dizendo: "Que diabos quer dizer com "depois da hora", folgado? Por Deus que...!".
Stephen abriu a porta, e a voz aumentou de volume. Então viu que Jack tinha agarrado o jovem pelo peitilho da camisa e que o sacudia e o chamava de "maldito bastardo".
O peitilho da camisa se desprendeu e Jack se voltou para Stephen.
- Diz que cheguei "depois da hora" - gritou.
- Não é só isso, senhor - disse o empregado para Stephen, como se falasse com seu salvador -. O senhor Gittins tem as chaves. Não há nada nas caixas postais e não posso abrir a caixa forte sem a chave, isso é óbvio.
Limpou as lágrimas com a manga e continuou:
- Além do mais, dentro não há nada para o capitão Aubrey, dou minha palavra de honra. Sempre estamos dispostos a comprazer aos cavalheiros que nos tratam com cortesia...
Stephen observou a caixa forte. Era um modelo antigo, com um fecho comum que provavelmente não resistiria mais que uns poucos minutos ao seu requerimento, mas nem aquele lugar nem aquele momento eram os adequados para demostrar suas habilidades.
- Alegro-me por encontrar-lhe - disse -. Esqueci o nome da pousada, isto é, do hotel onde nos hospedamos e estou morto de cansaço. Daria tudo o que tenho para meter-me na cama.
- Verdadeiramente, parece muito cansado - disse Jack, deixando cair o peitilho -. Sim, parece esgotado. Nos hospedamos no Goat, e vou levar-lhe lá imediatamente.
Então, ainda furioso pela decepção sofrida, voltou-se para o empregado e lhe espetou:
- Escute-me, senhor. Voltarei amanhã na primeira hora da manhã. Está me ouvindo?
Ao sair para a rua, Stephen agradeceu ao seu acompanhante, disse que podia ir e o encarregou de cumprimentar o capitão Beck em seu nome. Depois Jack e ele partiram sozinhos.
- Que tarde espantosa! - lamentou-se Jack -. Decepções a cada passagem... nehuma boas-vindas como merecem os heróis. A cidade está cheia de oficiais do Exército, e só pude conseguir um quarto para os dois no Goat.
- Que lástima...! - exclamou Stephen, que amiúde havia compartilhado a cabine com o capitão Aubrey, possivelmente a pessoa que mais roncava na Armada.
- E quando subi a colina para dar o relatório ao comissionado, ele não estava. Havia muitos homens esperando-lhe, e falei com eles por um tempo e me informei de algumas coisas desagradáveis. Harte está outra vez na Junta de Chefes do Almirantado, e esse tipo, Wray, é o vice-secretário interino.
"Virgem santíssima!", disse Stephen para si, e não sem motivo. Jack havia corneado o senhor Harte quando estava em Menorca e ainda era solteiro, e, para o general, os cornudos seguiam usando os cornos até muito depois de que lhe punham. Além disso, fazia algum tempo, quando o senhor Wray já tinha um alto cargo no Governo, Jack o havia acusado pública e justificadamente de fazer armadilhas jogando cartas. Wray não respondeu então a acusação da maneira costumeira, mas era provável que não suportasse aquele agravo toda a vida.
- Esperei todo o tempo que pude e depois fui até o escritório dos correios correndo... E lhe asseguro que correr, na minha idade, já não é o que era antes... Mas ao chegar tive outra decepção. Que tarde espantosa!
- Vem, esposo! - disse uma bonita prostituta na penumbra -. Vem comigo e lhe darei um beijo!
Jack sorriu e negou com a cabeça, e seguiu andando.
- Percebeu que ela me chamou de esposo? - perguntou depois de ter dado alguns passos -. Todas costumam fazê-lo. Suponho que é porque tomar parte de um matrimônio é o estado natural do homem e assim lhes parece que o que fazem não é tão... tão mau.
A palavra "matrimônio" recordou a Stephen que havia planejado levar para um sacerdote a certificação de Diana, aquele documento tão necessário, e fixar a data do casamento, mas apenas podia andar, e agora que o interminável período crítico havia passado, o cansaço acumulado durante os últimos dias, como uma espessa névoa, propagava-se por seu interior entorpecendo-lhe. Só o seu espírito de contradição seguia intacto.
- Não, não o é; pelo contrário, como disse um grande homem de uma época passada, é tão pouco natural que uma mulher e um homem formem um matrimônio que todos seus motivos para permanecerem juntos e todas as travas impostas pela sociedade civilizada para evitar sua separação apenas são suficientes para manter-lhes unidos.
- Silêncio! - exclamou Jack, detendo-se.
Perto do porto uma banda havia começado a tocar Heart of Oak e se ouviam muitas vozes cantando-a ou dando vivas. Por cima dos telhados se via a fumaça e o resplendor avermelhado de umas tochas, e pouco depois puderam ver-se as chamas no final da rua estreita, por onde atravessava uma procissão de marinheiros e civis fazendo cambalhotas. De todas as partes, muitas pessoas iam unir-se ao grupo, entre elas a bonita prostituta.
Aubrey recuperou imediatamente seu bom humor.
- Assim está melhor - disse -. Essa sim é uma recepção merecida pelos heróis. Apesar dos desgostos que tive, estou muito contente, Stephen. E amanhã quando tiver as cartas de Sophie, estarei mais contente ainda. Escute! Outra banda começou a tocar!
- A única coisa que peço é que dêem as boas-vindas aos heróis com bastante distância do Goat, que não toquem a menos de um estadio{2} do hotel - acrescentou Maturin -. Ainda que Deus sabia que poderia dormir mesmo que dez bandas estivessem tocando no corredor.
Daria no mesmo se tocassem ali ou debaixo de sua janela, porque os tripulantes da Shannon celebravam sua vitória com o mesmo ânimo com que a haviam conseguido, e seus alegres gritos foram ouvidas por todo Halifax até depois do amanhecer. Apesar disso, o doutor Maturin dormiu como um tronco até que um raio de sol entrou por entre as cortinas da colgadura da cama e lhe molestou tanto que o fez despertar finalmente. Tinha a mente limpa e estava muito cômodo e completamente relaxado. Haveria se afastado do raio de luz e ficaria ali abstraído em seus pensamentos, e talvez inclusive teria adormecido de novo, se não houvesse ouvido uma tosse forçada, a tosse de alguém que não quer despertar seu companheiro mas advertir-lhe de sua presença se já está acordado.
Afastou as cortinas e seu olhar se cruzou com o de Jack, que era muito triste. Jack estava de pé junto à janela e parecia muito mais alto, exageradamente alto, e Stephen notou que a causa era que havia tirado o braço da tipóia e agora o tinha estendido junto ao corpo e isso mudava suas proporções. Sorriu ao ver Stephen, desejou-lhe bom dia, isto é, boa tarde, e depois disse:
- Tenho algumas cartas para você.
Stephen ficou pensando por uns momentos. A visível tristeza de Jack, ao menos em parte, estava associada com a larga bandagem negra que tinha ao redor do braço, mas em parte com outras coisas também.
- Que horas são? - perguntou.
- Acabam de dar as doze, e tenho que ir - respondeu Jack, entregando-lhe um pequeno pacote de cartas.
- Faz muito tempo que você levantou, não é? - inquiriu Stephen e deu um espiada nos envelopes sem muito interesse.
- Sim. Cheguei a esse maldita escritório quando abriram as portas, e ainda que o chefe não estivesse, fiz com que o revistassem de cima abaixo... Não pode imaginar a desordem que há... Mas não encontraram nada para mim.
- Alguns barcos correio foram aprisionados ou afundados pelos norte-americanos, meu amigo.
- Eu sei, eu sei - disse Jack -. Mesmo assim... Bem, queixar-se não serve de nada. Depois fui dar meu informe ao comissionado. Recebeu-me com amabilidade e cortesia e me deu boas notícias de Broke: que havia podido passar uma hora sentado, que já falava com coerência e que talvez poderia fazer seu relatório. Além disso, me convidou para comer depois do funeral. Observei que algo o preocupava, e depois de um bom momento soube o que era: não pegarei o comando da Acasta, senão que terei que voltar para a Inglaterra. Estive fora do país por muito tempo e a deram para Robert Kerr.
A Acasta era uma excelente fragata de quarenta canhões, uma das poucas equiparáveis às potentes fragatas norte-americanas, e Stephen sabia o quanto Jack desejava estar ao comando dela naquelas águas. Tratou de encontrar algumas palavras que mitigassem o efeito daquele golpe, mas não encontrou nenhuma e se limitou a dizer:
- Sinto muito, Jack. Ouve, se tem dor no braço, ainda que seja muito pouco, deve subi-lo e colocá-lo contra o peito. - Então se estirou, bocejou e, tirando o gorro de dormir, acrescentou -: Você falou de um funeral, não foi?
- Sim, claro. Parece que ainda não está acordado, Stephen. Enterraremos o pobre Lawrence, da Chesapeake.
- Eu também devo ir? Posso arrumar-me em um momento... Gostaria de expressar o respeito que sinto por ele, se os costumes permitirem.
- Não, o costume é que somente os que têm a mesma classe assistam, além daqueles que têm a obrigação de ir e de seus própios oficiais. Tenho que ir, Stephen. Conseguiu dinheiro? Entre o funeral e a janta não terei tempo de ocupar-me disso, ainda que quisesse fazê-lo o quanto antes.
- Está no bolso de minha jaqueta, que está pendurada no armário.
Jack sacou o rolo de notas e pegou o que necessitava.
- Obrigado, Stephen - disse, e apertou o sabre e desceu a escada correndo.
Todos os capitães de navio que havia em Halifax estavam agrupando-se no cais da pólvora. Conhecia a maioria deles, mas só teve tempo de cumprimentar a um ou dois antes do relógio dar a hora. O caixão chegou pontualmente ao cais, escoltado por infantes de marinha, e o seguiu um cortejo integrado pelos poucos oficiais norte-americanos que podiam caminhar, os oficiais do Exército, os capitães formados de dois em dois, os generais e o almirante.
Andavam no rítmo de um débil toque de tambor e as animadas ruas ficavam silenciosas quando passavam. Jack havia tomado parte de muitas cerimônias desse tipo (o enterro de companheiros de tripulação, amigos íntimos, um primo seu e seus própios oficiais e guardas-marinhas), algumas delas muito comoventes, porém, nunca havia lamentado tanto a morte de um oficial inimigo como a de Lawrence. Simpatizava com ele e achava que havia levado sua fragata para combate com decisão e que lutou valentemente. O repetitivo toque de tambor e os passos que dava a intervalos o fizeram esquecer as amargas decepções sofridas naquela manhã; e a rigorosa ordem da cerimônia, as palavras rituais pronunciadas pelo pastor e o ruído da terra ao cair sobre o caixão lhe causaram uma profunda impressão. Depois as salvas, as últimas honras militares, tiraram-lhe de seus pensamentos, mas não apagaram essa impressão. Apesar da morte ser algo inerente a sua profissão, não podia esquecer a imagem do capitão Lawrence ocupando seu posto no castelo de popa justo antes das primeiras descargas devastadoras, e lhe molestava que seus companheiros houvessem começado a expressar sua alegria de novo. Isso não significava que houvessem fingido respeitar ao defunto nem que houvessem estado muito sérios até o final da cerimônia por hipocrisia, pois, em realidade, respeitavam ao capitão valente e competente que era um desconhecido para eles, a um oficial inimigo que havia atuado como lhe correspondia.
- O senhor o conhecia, não é? - perguntou Hyde Parker, da Tenedos, que estava ao seu lado.
- Sim - respondeu Jack -. Veio visitar-me em Boston. Capturou um de meus oficiais quando aprisionou a Peacock e o tratou muito bem. Estava então ao comando da Hornet, sabe? Era um homem valente, muito valente.
- É uma pena - disse Hyde Parker -. Mas não se pode fazer uma fritada sem romper os ovos, sabe? É impossível conseguir uma grande vitória sem derramamento de sangue, e esta foi uma grande vitória. Acredito que nunca me senti mais feliz que ao ver a Shannon com sua presa, e, sem dúvida, nunca gritei mais nem mais alto em toda minha vida. Ainda estou rouco como um rei de codornas.
A alegria que enchia a base naval se notou muito mais na esplêndida janta oferecida pelo comissionado, e Jack voltou a senti-la quando, depois de recolhida a mesa, contou para seus entusiasmados companheiros da Armada a memorável batalha repetindo todos os movimentos das fragatas com duas maquetes que havia pegado do estaleiro e especificando que velas e que partes do aparelho haviam sido derrubadas em cada momento.
Também se notou na janta oferecida pelo comandante do porto. Colpoys estava muito contente e cantou enquanto ele subia a escada, e a dona da casa estava radiante de alegria e falava muito, apesar de sua preocupação por ter que preparar um grande baile com pouca antecedência. Diana havia se contagiado daquela alegria (poucas mulheres gostavam mais de bailes do que Diana) e recebeu Stephen muito carinhosamente, beijando-lhe nas bochechas.
- Quanto me alegra que tenha vindo! - exclamou -. Agora posso dar-lhe o convite em vez de enviar-lhe. Estive ajudando lady Harriet a fazê-los desde o café da manhã. Virão a metade dos oficiais da Armada e um grande número de oficiais do Exército.
- Meu convite? - perguntou Stephen, olhando-a de certa distância com receio.
- Seu convite para o baile, querido. Sabe o que é isso, não? É uma grande festa onde a gente baila. Você sabe dançar, Stephen, não é mesmo?
- A minha maneira. A última vez que bailei foi em Melbury Lodge durante a paz. Tiveste a amabilidade de ser minha companheira e bailamos um minueto bastante bem. Espero que volte a ser amável comigo.
- Sinto muito, Stephen, mas não posso ir porque não tenho nada para vestir. Contudo, eu o verei da sacada, e poderá levar-me um refresco de vez em quando. Já verá como rimos dos que bailam.
- Não trouxeste nada em seu baú?
- Não tive tempo para escolher a roupa e estava trastornada. Além das jóias, só peguei algumas anáguas e meias e alguma outra coisa que tinha a mão. De qualquer forma, não podia advinhar que me convidariam para um baile.
- Há modistas em Halifax, Villiers.
- Ah, as modistas de Halifax...! - disse Diana e riu com vontade.
Era a primeira vez que ele a ouvia rir desde que haviam se encontrado nos Estados Unidos e isso lhe causou uma estranha impressão.
- Não... - prosseguiu -. Neste deserto só há uma esperança. Uma francesa muito astuta que lady Harriet conhece traz coisas de Paris de contrabando, e nesta manhã veio para mostrar-nos um monte delas, entre elas havia um vestido de lustrina azul que nós duas gostamos. Lady Harriet não pode colocá-lo, sem dúvida... Tem mangas curtas e é muito decotado pela frente e por trás, e, como ela mesma reconheceu, a faria parecer uma grande estátua. Escolheu um vestido de musselina cor merde d'oie que é espantoso, mas ao menos a cobre por completo, e lhe estão alargando. Eu teria comprado o azul, mas madame Chose pede uma barbaridade, e necessito que o pouco dinheiro que pude trazer dure muito. Sabe que cerzi um par de meias ontem à noite? Se estivesse em Londres ou em Paris ou inclusive na Filadélfia, desataria a enfiada de pérolas e venderia um par delas, mas neste deserto só compram imitações e filigranas. Eu entendo de jóias, e sei que seria uma estupidez vendê-las em Halifax. As pérolas de um nababo em Halifax! Pode conceber que ocorra algo assim?
Essas palavras teriam sido um pedido direto e sem delicadeza se qualquer outra mulher que não fosse Diana as tivesse dito. Desde que haviam se conhecido, ela sempre falava a Stephen com absoluta franqueza, com confiança, sem segunda intenção, como se fossem companheiros ou inclusive cúmplices, e se assombrou muito ao ouvir-lhe dizer:
- Temos dinheiro. Saquei dinheiro da conta de Londres, assim que pode comprar o vestido de lustrina. Mandaremos buscá-lo imediatamente.
Trouxeram-no e recebeu sua aprovação; e madame Chose se retirou com uma imensa soma. Diana pôs o vestido em frente de si e se olhou ao espelho que estava sobre a chaminé. Não tinha bom aspecto, mas ter um vestido novo lhe proporcionava um prazer idêntico ao dos anos em que vivia rodeada de luxos e avivava sua expressão. Então semicerrou os olhos e franziu os lábios.
- A parte de cima tem pouca graça - disse olhando-se ao espelho e assentindo com a cabeça -. Foi pensada para enfeitá-la com algo, talvez com umas pérolas... Colocarei os diamantes.
Stephen baixou a vista. Ela se referia a um colar de diamantes de cujo centro pendia um extraordinariamente formoso de cor azul claro. Era um colar que Johnson lhe havia presenteado no início de sua relação, e mediante um curioso processo mental ela o havia separado de sua origem, mas Stephen não. Contudo, sua dor não era por ciúmes mas porque lhe desgostava que houvesse dito uma imprudência. Sempre havia acreditado que Diana atuaria com tato, fizesse o que fizesse, e que não seria capaz de dizer nada ofensivo sem propor-se. Talvez havia se equivocado ou talvez a longa permanência de Diana nos Estados Unidos, entre os amigos ricos e libertinos de Johnson, combinada com sua profunda aflição, levara-a a converter-se em uma pessoa ordinária, refúgiada na vulgaridade, além de fazer-lhe adquirir um pouco de sotaque colonial e o gosto por bourbon{3} e tabaco. Mas Stephen recordava que Johnson tirara os diamantes de Diana e pensou que talvez ela, por havê-los recuperado e escapado com eles expondo-se a um grande perigo, considerava que havia conseguido o título de propriedade daquelas pedras preciosas. Parecia-lhe que havia atuado como um pirata que, ao vencer, havia se apropriado sem remorsos de seu butim sem importar-se com a sua procedência. Então levantou a vista e perguntou:
- Não acha que parecerão um pouco exagerados em uma festa provinciana?
- Não, em absoluto, Maturin - respondeu ela -. Aqui há algumas mulheres distintas, muito diferentes das demais. Muitas das esposas dos oficiais do Exército as têm imitado; vi os nomes de pelo menos uma dúzia delas quando estava fazendo os convites. E também há algumas esposas de marinheiros, por exemplo, a senhora Wodehouse, Charlotte Leveson-Gower e a própia lady Harriet.
Depois de sua primeira tentativa, Stephen não se ocupou mais do caso. Não tinha dúvida de que Diana sabia mais do que ele dessas coisas; Além disso, em Londres e na Índia ela havia mantido relações sociais com pessoas muito distitas e influentes. Colocou a mão no bolso e pegou alguns papéis. O primeiro não era o que estava buscando, mas sorriu ao vê-lo, e em vez de guardá-lo de novo, disse:
- Isto me chegou esta manhã, e é curioso que meia hora antes de recebê-lo eu estivesse sonhando com Paris.
Entregou a ela.
- Pedem que você dê uma conferência no Instituto da França. Oh, Stephen, não sabia que era um homem tão importante! Querem que lhes fale das espécies extintas da avifauna de Rodríguez. Que é avifauna?
- Aves.
- Que lástima que não possa ir! Teria gostado tanto! Talvez achem que é neutro ou que é norte-americano.
- Acredito que poderei ir. Como vê, ainda falta muito para esse dia, e se conseguirmos embarcar em um barco o bastante rápido, poderei ir. É seu segundo convite, da vez anterior senti muito não ter ido. Possivelmente esta seja a distinção mais importante que hajam outorgado. Além disso, poderei conhecer alguns dos homens mais brilhantes da Europa; os Cuvier provavelmente estarão, e algumas das coisas que observei nos cetáceos da região antártica assombrariam a Frédéric.
- Porém, como é possível que vá? Como é possível que vá a Paris em meio a uma guerra?
- Isso não é difícil desde que se tenha uma licença e um salvo-conduto. Os naturalistas não têm em conta esta guerra nem nenhuma outra, e a comunicação entre eles é freqüente. Por exemplo, Humphry Davy foi ali para dar uma conferência sobre o cloreto de nitrogênio e teve uma calorosa acolhida. Mas era esse o assunto de que queria falar-te.
Pegou outro envelope e, um pouco perturbado, o pôs em cima da mesa, justo frente a ela, dizendo:
- Isto é para grampos.
- Grampos? - perguntou ela surpresa.
- Sempre ouvi que as mulheres necessitam de uma considerável soma para grampos.
- Stephen, você ficou corado! - disse, rindo alegremente -. você ficou corado! Nunca pensei vê-lo assim, garanto-lhe. É muito amável, mas teve muita atenção comigo. Tenho vinte e cinco dólares, mais do que suficiente para comprar grampos. Fique com o dinheiro, querido. Prometo que lhe avisarei quando eu ficar sem um penique.
- Bem - disse Stephen, pegando outro documento -. Esta é uma certificação na qual consta que, apesar de ser uma estrangeira inimiga, pode entrar em território canadense e permanecer nele enquanto tenha bom comportamento.
- Eu me comportarei muito bem - disse, rindo de novo -. Mas isso é uma bobeira, Stephen, porque já estou em território canadense. As formalidades e os documentos oficiais sempre me pareceram uma grande bobeira, mas nunca havia visto um documento tão ridículo como este. Por graça de Sua Majestade, diz, e Sua Majestade, pobrezinho, não sabe que estou aqui. Quanta sandice!
- Não, mas seus servidores sabem. Este é um documento muito importante, Villiers, falo sério. Sem ele poderiam tirá-la daqui, tenha ou não tenha a proteção do almirante. Sabe-se que legalmente é cidadã norte-americana, e por isso poderia ser presa e inclusive repatriada.
- A quem importa a lei e todas essas sutilezas? Qualquer um pode ver perfeitamente que sou inglesa, sempre fui e sempre serei. Porém, diga-me, como você o conseguiu?
- Fui ao lugar adequado e falei com o oficial que se ocupa desta tipo de assuntos.
- Agradeço-lhe que tenha pensado nisto - disse ela.
E de repente gritou:
- Ah, Stephen, havia me esquecido...! Ficaram contentes ao ver os documentos que trouxe de Boston? Recordo que me disse que ia dá-los a um oficial dos Serviços Secretos do Exército. Espero que lhe tenham sido úteis.
- Por desgraça, parece que tinham mais informação política do que militar. Ainda que dizem que têm algum valor, penso que poderia ter escolhido outros muito melhores. Acho que não seria um bom espião.
- Não, não posso imaginar ninguém pior dotado para ser um espião do que você - disse Diana rindo e, olhando-lhe afetuosamente, acrescentou -: Não é que não seja inteligente, querido Maturin. Na realidade, é um dos homens mais inteligentes que conheço, mas se sentiria muito mais à vontade entre os pássaros. Quando penso como seria como espião...! Oh, meu Deus!
A alegria tingiu sua tez de rosa. Rara vezes Stephen a vira tão alegre.
- Você me dá a certificação? - perguntou Stephen -. Tenho que levá-la para o sacerdote. Não poderá casar-nos sem ela. O que acha de sexta-feira, muito cedo para amanhã? Suponho que não quer uma cerimônia muito complicada, mas Jack poderia levá-la até o altar. Por fim voltará a ser uma súdita britânica.
Toda a alegria de Diana desapareceu, e seu rosto empalideceu e depois tomou uma cor terroso que lhe dava um aspecto doentio. Levantou-se, caminhou de um lado para o outro da sala e por fim parou junto ao janelão e, retorcendo o papel, olhou para o jardim.
- Agora que tenho a certificação, para que tanta pressa? - inquiriu ela -. Que importância têm todas essas formalidades? Não pense que não quero casar contigo..., o que ocorre é... Por favor, Stephen, prepare-me um desses cigarros que faz com papel.
Stephen pegou um charuto, o cortou em dois e os envolveu em uma folha de seu caderno formando dois pequenos rolos, um para ela e outro para ele. Depois lhe aproximou uma brasa, mas ela, em vez de acendê-lo, disse:
- Não. Não posso fumar aqui. Lady Harriet poderia vir, e não quero que pense, isto é, que saiba que deu alojamento a uma mulher dissoluta que gosta de tomar uma taça de vez em quando e fumar tabaco. Acenda o seu e nos iremos para o jardim... Ali poderei fumar. - E, ao abrir a porta, acrescentou -: Sabe uma coisa, Stephen? Desde que me falou do efeito do bourbon na pele, não tomei nenhuma bebida alcoólica exceto vinho, e muito pouco; mas Deus sabe que agora eu adoraria tomar uma taça.
Passeavam muito juntos, ocultos pelos arbustos e seguidos por uma nuvem de fumaça pouco densa.
- Com tanta pressa - disse, - os preparativos do baile, as conversas com lady Harriet e a preocupação com o que ia usar estava um pouco trastornada. Esqueci onde estava. Maturin, tenho que dizer-lhe que gostaria de esperar, mas não quero que se desanime com isso... De todos os homens que conheço, é o único que nunca faz perguntas, que nunca é indiscreto, nem sequer quando tem o direito de sê-lo.
Tinha a cabeça baixa e olhava para o solo. Stephen nunca a vira tão aflita e perturbada, apesar de a conhecer há tantos anos e de que a havia visto em diferentes estados de ânimo. Ela estava de pé e o sol a atingia de cheio, e ele olhava seu rosto atentamente. Mas antes de que ele tivesse tempo de dizer "Não tem importância" ou "É muito benévola", apareceu um criado no final do caminho de cascalho. Que proximou-se coxeando e, com voz forte, disse:
- A honorável senhora Wodehouse e a senhorita Smith desejam vê-la, senhora.
Diana olhou para Stephen de tal maneira que parecia pedir-lhe desculpas e correu para a casa. Ainda que seu estado de ânimo era muito estranho, seus movimentos seguiam tendo a naturalidade e a graça que sempre agradaram a Stephen, e sentiu em seu íntimo uma onda de ternura, talvez a mesma que acompanhava ao seu antigo amor apaixonado ou talvez o fantasma daquele amor.
O criado ficou ali esperando Stephen, com a perna de madeira perfeitamente apoiada no cascalho. Em verdade, quem esperava por Stephen era um homem com um uniforme de criado de cor laranja e vermelho violáceo como o fígado, as horríveis cores da insígnia do almirante; seu ar despreocupado, sua longa trança e as cicatrizes de seu velho rosto de expressão alegre, que podiam notar desde um cabo{4} de distância, revelavam qual era sua verdadeira profissão.
- Espero que esteja bem, senhor - disse, tocando-se a sobrancelha com o nó dos dedos do dedo indicador.
- Muito bem, obrigado - disse Stephen, olhando-lhe com atenção.
A última vez que o havia visto tinha a cara pálida, suada e contraída para não gritar enquanto ele lhe cortava com o bisturi na Surprise, quando a fragata, destroçada pelos disparos de um navio francês de setenta e quatro canhões, navegava lentamente para o oeste com destino a Fort William.
- Mas você não era amputado - acrescentou.
- Não, senhor, sou Bullock, marinheiro do castelo e membro da guarda de estibordo da velha Surprise.
- Claro! - exclamou Stephen, apertando-lhe a mão -. O que queria dizer é que lhe salvei a perna, que não a cortei.
- Não, senhor - disse Bullock, - mas quando estava no Benbow perto dos abrolhos e uma bala me fez uma ferida tremenda, como o cirurgião não era o doutor Maturin, cortou-me a perna sem sequer pedir permissão.
- Certamente foi necessário - disse Stephen.
E era necessário dar apoio ao seu colega com um comentário, mas não parecia ter feito com convicção, talvez porque o cirurgião do Benbow quase sempre estava bêbado e quando estava sóbrio era exageradamente desajeitado.
O criado o olhou afetuosamente e disse:
- Espero que o capitão Aubrey também esteja bem. Ouvi que desembarcou da Shannon mais contente que o Papa e que parecia mais alto que antes.
- Está muito bem, Bullock, muito bem. Eu o verei dentro de pouco no hospital.
- Peço que lhe apresente meus respeitos, senhor. Sou John Bullock, marinheiro do castelo da velha Surprise.
Enquanto estaiveram em Boston como prisioneiros de guerra, Aubrey e Maturin haviam sido muito bem tratados por seus captores, e como não tinham dinheiro nem roupa de inverno, os oficiais da fragata norte-americana Constitution se ocuparam de proporcionar-lhes o quanto necessitavam. Agora nenhum dos dois queria deixar de corresponder a essas ações, e como Stephen esperava, encontrou Jack junto a um tenente norte-americano ferido.
- Recorda-se de um homem de sobrenome Bullock que navegava na Surprise?
- Sim - respondeu Jack -. Era marinheiro do castelo, e muito bom.
- Pediu-me que apresentasse seus respeitos ao seu velho capitão.
- Oh, que amável! - exclamou Jack -. John Bullock... Disparava seu canhão com a maior precisão que se possa desejar, acertava exatamente no alvo, mas era um pouco lento. Estava ao comando da brigada do canhão de proa de estibordo. Mas quero que saiba, Stephen, que o velho capitão também pode acertar no alvo, ainda que por causa dos funerais, da melancolia e da natural decrepitude, sinto-me como se fosse o avô de Matusalém.
- Come e bebe muito, meu amigo, e se preocupa muito. Caminhar dez milhas com passo ligeiro pelos úmidos bosques do Novo Mundo, que provocam tanto interesse, ajudará a deixar para trás a melancolia e se restabelecer, e Além disso, fortalecerá seus instintos básicos. Ponce de León pensava que a Fonte da Juventude se encontrava nestas terras... Por outro lado, deve ter em conta que em qualquer momento pode chegar um barco correio da Inglaterra.
- Acho que tem razão com respeito à Fonte da Juventude, Stephen, mas se equivoca com relaçã ao barco correio. Nenhum zarpará antes do dia treze, e com este vento do oeste soprando constantemente, tão cedo não poderão chegar. Além disso, não poderia caminhar hoje, ainda que ao final do percurso houvesse uma dúzia de Fontes da Juventude e uma sala onde beber suas águas. Tenho que fazer um trabalho muito desagradável na prisão, tenho que identificar os desertores ingleses que foram capturados na Chesapeake, quase todos marinheiros que fugiram de nossos barcos de guerra. Mas antes vou ver o ajudante do oficial de derrota norte-americano, o único oficial que não está ferido. Quer vir?
- Não. Os oficiais que combatem são assunto seu, naturalmente, os que não combatem, assunto meu. Preocupa-me sobretudo o cirurgião, um homem de extraordinária cultura.
O homem de extraordinária cultura estava sentado na deserta sala de operações com uma jarra de cerveja de pícea na mão. Parecia estar muito triste e cansado, mas sereno. Aceitou com agrado o oferecimento de Stephen e logo esteve falando com ele sobre alguns casos durante um tempo, sorvendo a bebida de vez em quando. Disse que a cerveja de pícea era um "duvidoso antiescorbútico" mas "um bom carminativo" e que era uma bebida que se agradecia em um dia como aquele. Quando terminou de beber, Stephen disse:
- Parece-me que o senhor me disse que antes de fazer-se ao mar se dedicava principalmente a atender as damas de Charleston, não é certo, senhor?
- Sim, senhor. Era um parteiro ou, se preferor, um accoucheur.
- Exatamente. Portanto, tem muito mais experiência que eu nessa matéria, e lhe agradeceria sua colaboração. Além dos sintomas mais comuns e claros, quais outros aparecem no princípio da gravidez?
O cirurgião franziu os lábios e ficou pensativo.
- Bem - disse, - não há nenhum totalmente confiável, sem dúvida, mas as faces raras vezes me enganam. A pele do rosto fica mais grossa e perde cor justamente ao princípio, e depois segue perdendo com rapidez; as pálpebras e a parte que rodeia as comissuras ficam cinzentos, e os lacrimais, esbranquiçados. E não podemos desprezar o método que nossas avós usavam, que consistia em examinar as unhas e o cabelo. Por outro lado, um médico que conheça bem a sua paciente pode guiar-se por suas variações de comportamento, sobretudo se é uma paciente jovem. Os mudanças repentinas e sem razão aparente, por exemplo, da tristeza e da ansiedade para a alegria, ou inclusive a exultação, são muito significativos.
- Agradeço-lhe muito por suas observações, senhor - disse Stephen.
CAPÍTULO 2
Durante os anos que havia servido na Armada real, Stephen Maturin havia refletido amiúde sobre as diferenças entre seus oficiais. Em suas viagens havia visto oficiais descendentes de família nobre e oficiais de origem humilde; navegara com alguns que nunca abriam um livro e com recitadores amantes de poesia; conhecera capitães que citavam os clássicos e outros que apenas podiam escrever um relatório oficial coerente sem ajuda de seu escrevente. Apesar da maioria provir da classe média, dentro desta havia tal quantidade de subníveis e subdivisões locais que somente um observador que se houvesse criado no seio da sociedade inglesa e conhecesse seu intrincado sistema classista poderia dizer com exatidão qual era sua origem e sua posição social atual. Também havia entre eles diferenças econômicas, sobretudo entre os capitães, pois os que tinham a oportunidade de encontrar-se com barcos mercantes, se eram decididos ou tinham sorte, podiam conseguir uma fortuna com butim ao cabo de várias horas de perseguição, enquanto que outros não tinham mais dinheiro que o de seu pagamento e viviam angustiados, com aperto, e sua situação era verdadeiramente difícil. Não obstante, todos tinham a marca de sua profissão: ricos ou pobres, rudes ou corteses, todos haviam sofrido o embate dos elementos e muitos deles o dos inimigos do Rei. Inclusive os tenentes recém nomeados para seu cargo haviam passado toda sua juventude no mar, e a maioria dos capitães de navio que ocupavam um lugar tão alto como Jack Aubrey no escalão haviam estado navegando quase ininterrumpidamente desde 1792. Todos tinham em comum a participação em uma longa, longa guerra, com períodos de interminável espera no vasto oceano e breves lapsos de furiosa atividade.
Suas esposas não tinham isso em comum com eles, certamente, e as diferenças entre elas eram muito maiores. Alguns marinheiros, empurrados por suas receiosas famílias, casavam-se com mulheres de sua mesma classe ou de classes superiores, mas outros, ao regressar ao seu país depois de estar longo tempo fazendo o bloqueio a Brest e Toulon, entre o tédio e os perigos, ou de passar três anos em uma missão nas Antilhas ou nas índias Orientais, jogavam-se nos braços das mais estranhas mulheres; e em muitos casos os matrimônios eram felizes, pois os marinheiros eram excelentes esposos devido a passarem muito tempo longe e a permanecerem no lar quando estavam em terra. Porém, indubtavelmente, quando suas esposas eram convidadas para um baile, formavam um conjunto que chamava a atenção.
Stephen os contemplava atrás de um grupo de plantas semeadas em vasos. Ainda que os marinheiros fossem de muito diversas compleições, o uniforme lhes fazia parecer um conjunto homogêneo, e o mesmo ocorria com os oficiais do Exército, apesar de que entre eles havia mais diferenças; contudo, as mulheres haviam escolhido sua própia roupa e o resultado era muito curioso. Entre elas havia reconhecido a uma antiga camareira da pousada Keppel's Head de Portsmouth que agora estava envolta em musselina rosa e enfeitava sua mão com um anel de casamento, e havia muitos mais rostos que lhe eram familiares, que talvez havia visto em outras pousadas ou em teatros ou em tabacarias.
Havia uma notável diferença entre seus vestidos, o que permitia distinguir às mulheres que podiam escolher e comprar os bons das que não podiam, mas havia uma diferença ainda maior entre suas jóias, cuja gama abarcava desde o pingente feito de granada da jovem esposa de um tenente que só recebia um pagamento de cem libras anuais até os rubis de lady Leveson-Gower, com os quais teria sido possível construir uma fragata de trinta e dois canhões e enchê-la de provisões para seis meses, ou as enormes esmeraldas de lady Harriet. Mas o que Stephen se interessava em observar naquela multidão não era isso, senão o comportamento das mulheres, em parte porque aprenderia algo sobre a adaptação da mulher a um grupo onde, aberta ou implicitamente, dava-se grande importância à classe, e em parte porque comprovaria sua teoria de que quanto mais licenciosa havia sido a conduta delas no passado, mais discreta, mais correta e mais prudente era no presente.
De vez em quando interrompia a observação e se voltava para o alto da escada para ver se Diana havia terminado de vestir-se por fim, assim que não lhe foi possível comprovar sua teoria. Somente chegou à conclusão de que as que tinham elegância a conservavam fossem quais fossem suas origens e as que não, atuavam com torpeza ou afetação ou ambas as coisas de uma vez, e notou que todas, inclusive estas últimas, divertiam-se. A imensa alegria pela vitória da Shannon havia se estendido a todos os ali reunidos e por isso quase todas as mulheres tinham um aspecto atraente e davam à diferença de seus vestidos e à classe de seus respectivos esposos muito menos importância do que o habitual. Em resumo, a alegria compartilhada e a fraternidade haviam borrado as diferenças que marcavam a divisão hierárquica da Armada, a origem social, a riqueza e a beleza e que às vezes eram fonte de conflito.
Mas essa não era um descoberta que valesse a pena ficar um longo tempo atrás daquelas plantas - que nem sequer provocavam interesse porque eram em sua maioria filicíneas e bromeliáceas - assim que Stephen avançou até o lugar por onde as pessoas iam e vinham, e quase imediatamente se encontrou com Jack, que estava acompanhado de um homem tão alto como ele, mas muito mais robusto, com o uniforme vermelho e dourado dos oficiais da Infantaria.
- Ah, está aqui! - exclamou Jack -. Estava lhe procurando. Conhece ao meu primo Aldington? O doutor Maturin... O coronel Aldington...
- Como está, senhor? - perguntou o oficial num tom que lhe pareceu adequado para dirigir-se a um homem vestido com o escuro uniforme de cirurgião naval.
Stephen se limitou a fazer uma inclinação de cabeça.
- Este vai ser um baile estupendo, pressinto - disse o coronel, voltando-se para Jack -. O último a que assisti foi o dos paroquianos de Winchester... Por certo que havia me esquecido de dizer-lhe que bailei com Sophie... Foi um baile horrível porque havia apenas trinta pares e não havia nenhuma jovem que valesse a pena olhar. Busquei refúgio na sala de jogo, mas perdi quatro libras e quatro peniques.
- Sophie estava no baile? - perguntou Jack.
- Sim, estava com sua irmã. Tinha muito bom aspecto. Bailamos juntos duas vezes e lhe asseguro que nos... - Então, olhando para o alto da escada exclamou -: Meu Deus! Que mulher mais bonita!
Diana começou a descer pela escada. Usava um vestido azul e seus deslumbrantes diamantes, que eclipsaram todas as outras jóias que haviam na grande sala cheia a transbordar. Sempre fora e tivera um porte elegante, e agora, ao descer devagar muito erguida, tinha um aspecto soberbo.
- Gostaria de dançar com ela - acrescentou.
- Eu lhe a apresentarei, se quiser - disse Jack -. É prima de Sophie.
- Se ela é prima sua, também é prima minha, de certa forma - disse o oficial -. Porém... Que me crucifiquem se essa não é Diana Villiers! Que demônios está fazendo aqui? A conheci em Londres faz anos. Não necessito que me a apresente.
Passou a andar imediatamente e foi abrindo passagem entre a gente como um boi, seguido de Stephen. Jack os contemplava enquanto se afastavam. Sentia uma grande pena ao pensar que Sophie havia ido àquele baile. Em qualquer outro momento lhe haveria alegrado ouvir que não se havia ficado em casa triste e melancólica, mas nesse momento a notícia se somava ao seu amargo desencanto por não haver recebido cartas suas e haver perdido a Acasta, e ainda que não fosse propenso a enfadar-se, agora estava ofuscado pela indignação e pensava que Sophie nunca lhe escrevia e se passava o tempo bailando apesar de que a última notícia que havia sabido dele era que estava prisioneiro nos Estados Unidos, ferido, enfermo e sem dinheiro. Geralmente ela escrevia pouco, mas nunca havia dado amostras de ser uma desalmada.
O coronel Aldington chegou aonde se encontrava Diana e, depois de lançar para Stephen um olhar de desaprovação, voltou-se para ela com uma expressão completamente distinta e disse:
- Talvez a senhora não se recorde de mim, senhora Villiers. Meu nome é Aldington. Sou amigo de Edward Pitt. Tive a honra de levá-la para jantar ao Hertford House e bailamos juntos na festa de Almack. Suplico-lhe que me permita acompanhá-la esta noite.
Enquanto dizia isto havia desviado o olhar do rosto de Diana e o havia cravado em seus diamantes, e depois voltou a dirigi-la para seu rosto, com uma expressão que denotava muito mais respeito.
- Désolée, coronel - disse -. Já estou comprometida com o doutor Maturin, e acho que também bailarei com o almirante e os oficiais da Shannon.
A princípio Aldington não pareceu entender o que ela havia dito, mas depois, como não era um homem bem educado, não podia encontrar uma forma de sair dessa situação garbosamente. Então ela acrescentou:
- Mas se me trouxesse um refresco em recordação dos velhos tempos, ficaria muito agradecida.
Antes do oficial do Exército voltar, a música havia começado. Formou-se uma comprida fila e o almirante abriu o baile com a noiva mais bonita de Halifax, uma jovem de dezessete anos loira e de imensos olhos azuis e tão alegre e cheia de vida que todos sorriam ao vê-la avançar para o centro movendo-se com agilidade.
- Não teria dançado com esse homem por nada do mundo - disse Diana quando ela e Stephen esperavam sua vez -. É um imaturo e um fátuo e o homem mais fofoqueiro que conheço. Olha! Encontrou um par, a senhorita Smith. Espero que ela goste de mexericos.
Stephen olhou ao redor e viu o coronel colocar-se na fila com uma jovem alta vestida de vermelho. Ainda que fosse muito magra, tinha seios abundantes e seu aspecto era elegante. Tinha o cabelo e os olhos negros, e ainda que não possuisse uma grande beleza, seu rosto era muito expressivo e sua tez estava rosada de excitação.
- Está com um vestido um pouco extravagante e se pinta muito, mas parece que se diverte bastante - continuou -. Este vai ser um baile magnífico, Stephen. Você gostou do meu vestido de lustrina?
- Ele lhe cai muito bem. E a cinta preta que lhe pôs ficou ótima.
- Estava segura de que notaria. Ocorreu-me no último momento, por isso me atrasei tanto.
Chegou sua vez e fizeram as evoluções da dança com a deviada formalidade, Diana com a graça de sempre e Stephen corretamente ao menos, e depois voltaram a unir-se. Diana, alçando a voz para ser ouvida entre o ruído das inumeráveis vozes e da música da orquestra, disse:
- Você dança muito bem, Stephen. Como estou contente!
Tinha a cara avermelhada pelo exercício e pelo calor da sala, e, sem dúvida, pela alegria que havia no ambiente como consequência da vitória, mas talvez também pela satisfação de ter conseguido as jóias e de usar um maravilhoso vestido. Contudo, Stephen a conhecia bem e sabia que era possível que atrás daquela felicidade aparecesse logo um sentimento completamente distinto. Quando voltaram a fazer as evoluções da dança, Stephen viu o ajudante do capitão Beck falando com o ajudante do almirante e se surpreendeu de que o horrível homenzinho já estivesse bêbado. Cambaleava e tinha o rosto coberto de manchas vermelhas, que contrastavam com o branco de seu uniforme. Cravou seus olhos vidrosos em Stephen e, depois de uns momentos, olhou para Diana e lambeu os lábios.
- Parece que todo mundo está muito contente - disse Diana -. Bem, todo mundo exceto Jack. Está ali, apoiado naquela coluna, com uma cara como se houvesse chegado a hora do julgamento final.
Nesse momento tiveram que fazer evoluções de novo, e quando a música terminou, Jack havia desaparecido daquele lugar. Afastaram-se dali de braços dados e se sentaram em uma conversadeira situada perto da porta, e até eles chegou uma brisa quente que trazia o agradável odor do mar.
Jack aproximara-se de uma mesa cheia de copos e garrafas à qual muitos ainda não haviam se aproximado. E depois de beber certa quantidade de champanhe, disse:
- Isto está muito bom, Bullock, mas quero que me prepare um copo de grogue.
- Sim, sim, senhor - disse Bullock -. Um copo de grogue. O que o senhor necessita é algo explosivo. Um homem pode cair-se ao solo de um enjôo com esse horrível líquido espumoso.
A mistura que Bullock preparou era verdadeiramente explosiva, e Jack afastou-se dali com a sensação de que o fogo lhe queimava as entranhas. Falou com vários oficiais em meio ao barulho, pondo sempre gesto sorridente, como requeria a ocasião, e depois parou perto da orquestra. Aquele lugar era mais tranqüilo, e pôde distinguir claramente a nota fora de tom que um músico gordo deu para que seus companheiros afinassem seus instrumentos. Pensou que fazia tempo que não tinha um violino debaixo do queixo e se perguntou se ainda teria agilidade nos dedos da mão do braço ferido. Nesse momento ouviu atrás dele uma voz que perguntava:
- Quem é esse homem tão bonito que está perto da janela?
Olhou para a janela, mas perto dela só havia dois guardas-marinhas desengonçados e com a cara cheia de espinhas, e depois ouviu que a voz dizia:
- Não, perto da orquestra.
Então pensou assombrado que provavelmente se referia a ele. E sua idéia se confirmou quando lady Harriet, em voz mais baixa mas ainda audível, disse:
- Esse é o capitão Aubrey, querida, um de nossos melhores capitães de navio. Quer que lhe o apresente?
- Oh, sim, por favor! Estava a bordo da Shannon, né?
Nesse momento passou entre eles um grupo de pessoas que tentava desesperadamente alcançar os sorvetes recém trazidos, e Jack cravou a vista na orquestra. Era um homem bonito, mas não se dera conta disso nem ninguém nunca lhe havia dito, e estava encantado de ficar ciente e de saber que alguém lhe achava atraente. Era bonito, sim, mas para alguém que não apreciasse muito a esbelteza e a juventude, que considerasse atraente um homem de costas largas e de pele muito branca, olhos azuis e cabelo loiro, e que não desse importância a que tivesse no rosto a cicatriz de uma ferida causada por um alfanje, que se estendia desde a orelha direita até a bochecha, e a de uma ferida causada por um pontiagudo pedaço de madeira, que descia desde a outra orelha até a mandíbula e continuava ao longo desta. Evidentemente, a senhorita Smith era alguém assim, pois quando ele se virou e foram apresentados, o olhar dela expressava tanta admiração que inclusive o homem mais vaidoso se sentiria satisfeito. Jack tinha predisposição para julgá-la com benevolência, e a olhou do mesmo modo e mostrou uma grande deferência por ela, mas realmente viu uma mulher jovem, bonita, alegre e impetuosa, como lhe agradava, e sobretudo se fixou em seu peito.
Imediatamente Jack lhe pediu que bailasse com ele a música que tocavam, e depois a seguinte. E na metade da segunda música, ela perguntou:
- Não acha que este é um baile estupendo?
- O melhor baile ao qual já fui - respondeu ele com convicção.
A atmosfera já não lhe era asfixiante, o ruído já não lhe parecia a conversa insossa de um grupo de tontos senão a de pessoas sensatas e agradáveis que celebravam alegremente uma vitória... e que vitória! Agora recordava com viveza a glória que havia alcançado. A orquestra lhe parecia muito boa, e sua forma de interpretar o minueto, excelente. Além disso, sua companheira bailava muito bem, e ele estava encantado em ter como companheira de baile uma mulher tão ágil e alegre como ela. Sim, o baile era estupendo. Aquela noite a alegria de ambos se nublou só por uns momentos, quando a senhorita Smith, assinalando para Diana e para Stephen, perguntou:
- Quem é essa mulher que está de vestido azul e com esses magníficos diamantes?
- É Diana Villiers, a prima de minha esposa.
- E quem é esse homem tão baixinho que está dançando com ela? Parece muito raro... Dançaram juntos várias vezes. De que é o uniforme que está usando? Não o conheço.
- Essa é a jaqueta do uniforme de cirurgião naval... Deve de ter esquecido os calções regulamentares. É o doutor Maturin e vai casar-se com ela.
- Mas não é possível que uma mulher tão bela e elegante se jogue nos braços de um simples cirurgião! - protestou ela.
Com tom convincente, mas não isento de amabilidade, disse:
- Nenhuma mulher que esteja nos braços de Stephen Maturin se arrojou para eles. Havemos navegado juntos durante anos e somos amigos íntimos. Tenho um grande conceito dele.
No momento em que terminou de falar, tinham que ir até o final da fila com as mãos dadas, e ela lhe apertou fortemente a mão. E quando chegaram ao lugar que lhes correspondia, ela disse:
- Certamente o senhor tem razão. Seguramente há muito mais nele do que podemos ver. E os cirurgiões navais devem de ser melhores que os de terra. O que ocorre é que ela é tão bela e elegante que... Não sabe senhor quanto admiro a beleza em uma mulher.
Jack disse imediatamente que ele também admirava a beleza em uma mulher e que estava muito contente porque sua companheira de baile era o melhor exemplo dessa beleza em toda a sala. A senhorita Smith não se ruborizou nem baixou a cabeça, aliás exclamou:
- Por Deus, capitão Aubrey!
Sem embargo, quando ele voltou a pegá-la na mão para dar-lhe uma volta, ela pegou a sua sem mostrar reprovação.
Quando ele a levou à mesa para jantar, já sabia muitas coisas sobre ela. Criara-se em Rutland e seu pai tinha uma matilha. Encantava-se com a caça à raposa, mas lamentava que muitos dos caçadores fossem uns libertinos. Estivera prometida, mas rompeu seu compromisso ao informar-se de que seu noivo tinha um considerável número de filhos naturais. E havia passado várias temporadas em Londres, na casa de uma tia que vivia na praça Hannover. Pelo que disse, Jack calculou que teria uns trinta anos, o que lhe surpreendeu. Agora vivia com seu irmão Henry e cuidava da casa. Ainda que seu irmão fosse membro do Exército, por ser curto de vista lhe haviam dado um posto como ajudante do delegado, um posto ignominioso, e agora se encontrava em Kingston ocupando-se do suprimento de apetrechos. Ela pensava que nem sequer os soldados que combatiam estavam muito melhor, pois marchavam em uma direção e logo em direção contrária sem conseguir quase nada, e que não podiam comparar-se com os membros da Armada. Nunca se emocionara tanto como no dia que vira a Shannon entrar no porto com a Chesapeake. Havia sentido uma grande admiração pela Armada e havia gritado. E Jack, ao ver seu rosto avermelhado e ouvir seu tom veemente, acreditou nela.
Enquanto jantavam, ela pediu que lhe contasse a batalha com todos os detalhes, e ele lhe contou com muito gosto. Havia sido uma batalha bastante simples porque somente dois barcos se enfrentaram e durou quinze minutos. Ela seguia seu relato com grande atenção, e para ele parecia que ela tinha muito senso comum e uma facilidade de compreensão infreqüente.
- Quanta alegria deve ter sentido ao ver que arriavam a bandeira! E que orgulhoso de sua vitória! Estou segura de que meu coração teria saltado dentro do peito - disse juntando as mãos e apoiando-as no peito, que cedeu sob sua pressão.
- Estava muito contente - disse -. Mas a vitória não foi minha, sabe?, foi de Philip Broke.
- Porém, não estavam os dois ao comando da fragata? São capitães os dois.
- Oh, não! Eu era simplesmente um passageiro, uma pessoa sem importância.
- Acho senhor é muito modesto. Estou segura de que passou para a abordagem com o sabre na mão.
- Bem, arrisquei-me a passar para a outra coberta e lutei ali durante uns minutos, mas a vitória foi de Broke e só de Broke. Brindemos a ele.
Encheram suas taças até a borda, e ao brinde se uniram os outros comensais, que eram casacas vermelhas, mas tinham boa vontade. Um deles já havia desejado tantas vezes uma pronta recuperação ao capitão Broke que poucos minutos depois deste brinde seus companheiros lhe levaram, deixando-os sozinhos na mesa. A senhorita Smith voltou a falar da Armada. Disse que não sabia quase nada dela, desgraçadamente, porque sempre havia vivido longe do mar, mas que adorava ao pobre Nelson e que havia usado luto durante vários meses depois da batalha de Trafalgar. Perguntava-se se se o capitão Aubrey compartilhava de sua admiração e se havia conhecido esse grande homem.
- Sim, compartilho. E o conheci - disse sorridente e a olhou com benevolência, pois o caminho mais curto para chegar ao seu coração era expressar amor pela Armada e admiração por Nelson -. Tive a honra de jantar com ele quando era um simples tenente. Na primeira vez me disse apenas: "Se importaria de passar-me o sal?", mas o disse com grande amabilidade. A segunda vez disse: "Não importam as táticas, o que importa é atacar com decisão".
- Era um homem admirável! - exclamou entusiasmada -. "Não importam as táticas, o que importa é atacar com decisão". Isso é exatamente o que eu penso. Essa é a única forma de alguém com brio agir. Compreendo tão bem a lady Hamilton!
E depois de uma pausa, durante a qual comeram lagosta fria, inquiriu:
- Mas, por que ia de passageiro na Shannon?
- Essa é uma longa história - respondeu Jack.
- Não será muito longa para mim - disse a senhorita Smith.
- Um pouco mais de vinho? - perguntou Jack, pegando a garrafa.
- Não, obrigada. Para ser-lhe franca, a cabeça me dá voltas. Ainda que provavelmente seja pelo baile ou a música ou por estar encerrada ou por estar sentada junto de um herói. Nunca antes havia me sentado junto de um herói. Quando acabar de comer a lagosta, talvez possamos dar um passeio ao ar livre.
Jack assegurou que já havia acabado de comer e que somente estava brincando com a comida, e acrescentou que ele tampouco podia suportar estar encerrado ali.
- Então saiamos por essa porta de vidro. Alegro-me de ir porque assim posso escapar do odioso coronel Aldington, com quem estava meio comprometida para dançar a próxima música.
No jardim, ela agarrou seu braço e disse:
- O senhor se dispunha a contar-me por que ia de passageiro na Shannon. Por favor, comece do princípio.
- Para começar do princípio terei que falar do Leopard, o velho Leopard, um navio de cinqüenta canhões distribuídos em duas cobertas. Quando terminaram de reconstruí-lo, deram-me o comando e me ordenaram ir para Botany Bay e depois seguir até as Ìndias Orientais. Teria sido uma viagem simples, mas tivemos má sorte. Tivemos uma epidemia quando estávamos na zona de calmas equatoriais; depois um navio holandês de setenta e quatro canhões nos perseguiu, obrigando-nos a desviar-nos para sudeste do Cabo e a penetrar em uma zona de altas latitudes, onde, rodeados de uma espessa névoa, chocamos com uma montanha de gelo e nosso leme quebrou. Estávamos meio afundados e tivemos que seguir avançando para sudeste para tentar chegar a alguma das ilhas próximas, mas não estávamos seguros de poder consegui-lo porque os marinheiros estavam bombeando água dia e noite. Mas conseguimos, e para não fazer o relato muito detalhado, direi que reparamos o Leopard, pusemos um leme novo e fomos para Nova Holanda e depois atravessamos o estreito Endeavour e nos reunimos com o almirante Drury nas imediações de Java.
- Java! Fica nas Índias Orientais, né? Que romântico! Especiarias e gente passeiando em palanquins! E aposto que também há elefantes. Quanto o senhor tem viajado! Quantos lugares do mundo já viu! As mulheres de Java são tão bonitas como dizem?
- Havia algumas mulheres bonitas, realmente, mas nenhuma podia comparar-se com as de Halifax. O almirante teve grande satisfação em saber o que havia ocorrido com o navio holandês de setenta e quatro canhões...
- Por que? O que lhe ocorreu?
- Nós o afundamos. Nessa zona, quando uma embarcação tem o vento em popa, um canhonaço acertado pode fazer maravilhas. Estou falando da zona dos 40° de latitude, já sabe, onde os ventos são muito fortes. Quando lhe derrubamos o mastro do traquete, virou para barlavento e afundou. Mas o almirante não ficou satisfeito com o estado em que se encontrava o Leopard. Não tinha canhões, porque os haviamos jogado pela borda, e tinha as balizas tão deterioradas por causa do gelo que não poderia suportar o peso nem de um só, assim que já não servia para nada exceto para usar como transporte. Mas isso não me preocupava, pois me haviam designado outro barco, uma fragata chamada Acasta. Então ele me ordenou voltar para a Inglaterra na Flèche, e a viagem foi estupenda...
A senhorita Smith deu um grito e se refugiou em seus braços. Um sapo cruzava devagar a vereda e sua pele brilhava com a luz que saía pelas janelas.
- Ah, quase o toco! - gritou ela.
Jack ajudou o sapo a cruzar com o pé, ainda que com certa dificuldade porque ela o rodeava com seus braços. Quando o sapo passou, ela disse que os répteis e as arranhas lhe produziam uma grande repugnância e não podia suportá-los. Depois riu de tal maneira que Jack teria pensado que isso era uma amostra de superficialidade se ela houvesse sido uma mulher estúpida, e sugeriu que procurassem um assento entre as árvores. Contudo, não havia nem um lugar vazio entre os louros, já que a alegria da vitória, o vinho, a boa comida e talvez também o calor da sala de baile haviam feito muitos outros convidados pensarem igual; tampouco o havia na estufa, e retrocederam justo a tempo de cometer uma grave indiscrição. Tiveram que contentar-se com um banco próximo ao relógio de sol, e dali, entre o calor daquela noite de verão e do odor das plantas e das flores que exalam seu perfume à noite, Jack observou a Ursa Menor e, sobre tudo, os guardiães do pólo para saber as horas, e ao ver que de vez em quando ficavam quase ocultos pelos bancos de névoa que a brisa trazia do mar, disse:
- Acho que cairá um aguaceiro muito breve.
Mas ela não prestou atenção a sua observação e disse:
- O senhor estava dizendo que a viagem havia sido estupenda.
- Sim. Avançávamos pelo menos duzentas milhas por dia, e navegávamos sem dificuldade até que dobramos O Cabo e cruzamos o trópico. Mas então um maldito..., um horrível sucesso ocorreu: aconteceu um incêndio, o fogo se estendeu até a linha de flutuação e a fragata explodiu.
- Oh, capitão Aubrey!
- Então nossos botes se separaram na escuridão, e posto que não levávamos provisões, passamos muito mal até que fomos recolhidos pela Java nas imediações do Brasil. Contudo, nossos problemas não haviam terminado, pois alguns dias depois a Java se encontrou com o barco norte-americano Constitution, e como a senhorita recordará, os norte-americanos a destruiram.
- Lembro muito bem! Todos choraram ao ouvir a notícia. Mas diziam que isso não era justo porque a Constitution não era realmente uma fragata ou tinha mais; canhões ou algo assim.
- Sem dúvida alguma, é uma fragata, uma potente fragata, e ganhou a batalha em bom combate, asseguro-lhe. Em quaisquer circunstâncias teria sido um osso duro de roer, e nessa ocasião utilizou seus canhões melhor do que nós e nos capturou.
- Mas a bonita e nobre Shannon compensou isso - disse ela, pondo-lhe a mão no joelho.
- Claro! - exclamou Jack, rindo satisfeito -. E agora me custa recordar a tristeza que estávamos todos naquele momento. Mas os norte-americanos nos trataram bem depois que acabou a batalha. Enviaram para a Inglaterra em um barco com bandeira branca a maioria dos tripulantes da Java, e os feridos foram levados para Boston. Maturin teve a amabilidade de oferecer-se voluntariamente para acompanhar a mim e aos outros pacientes...
- O senhor foi ferido? - inquiriu ela.
- Bem, só tinha uma ferida que me causara uma bala de mosquete - disse -. Mas a ferida piorou, como costuma ocorrer, e se não houvesse sido por ele, haveria perdido o braço. Assim que nos retiveram em Boston como prisioneiros de guerra, compreende? E como tardavam em trocar-nos, por uma ou outra razão, e a situação não nos parecia boa, Maturin e eu pegamos uma lancha junto com Diana Villiers...
- Mas, o que estava fazendo ela ali?
- Estava passando uma temporada com uns amigos quando estourou a guerra. Nos fizemos ao mar com o fim de encontramos com a Shannon quando chegasse na entrada do porto para fazer um reconhecimento. Broke nos recebeu amavelmente a bordo e se ofereceu para trazer-nos a Halifax, por isso...
A chuva que ele prognosticou, e que também havia sido anunciada pelo sapo, começou a cair, e ambos entraram na sala correndo. Não foram muitos os que se fixaram neles, pois eram um casal a mais entre tantos outros e, além disso, foram precedidos por uma jovem que provocava muito mais comentários porque seu vestido branco tinha a parte de trás cheia de pequenos pedaços de musgo e verdes manchas de grama; contudo, não passaram desapercebidos. O coronel Aldington lhes olhou com uma mistura de ira e rancor, e depois, durante uma breve ausência da senhorita Smith, quando Jack bebia um copo de ponche feito com rum para eliminar a sensação que a umidade lhe produzia, disse:
- Olha, Jack, acho muito bom que se divirta, mas me tirou a minha acompanhante. Eu lhe vi levá-la justo no momento em que ia pegá-la para dançar... E tive que ficar ali de pé como um imbecil enquanto durou essa música, e também a seguinte. Isso não é justo. Não, isso não é justo.
- Somente os valentes merecem o justo - disse Jack.
E posto que gostou da frase, com voz grave, mas incrivelmente melodiosa, cantou:
Somente os valentes,
somente os valentes
merecem o justo.
- Ah, ah, ah! Que dize disso, Tom? - perguntou.
- Não sei o que insinua com "os valentes", mas se essa é sua idéia de "o justo", direi que não é igual à minha - respondeu furioso o coronel -. Isso é tudo, ainda que poderia dizer mais coisas. Poderia dizer que o que ouvi não é muito diferente do que esperava ouvir. Poderia falar da reputação e advertir-lhe que tenha cuidado de não queimar os dedos, mas não o farei. E poderia aconselhar-te que largasse esse copo e não bebesse mais porque já bebeu bastante, mas tampouco o farei. Sempre foi muito teimoso...
O regresso da senhorita Smith impediu que Jack seguisse pensando na resposta que ia dar-lhe. A música começou outra vez, e quando ambos começaram a dançar, ele se pôs a pensar nas diferentes formas com que o álcool afetava os homens. Uns ficavam tristes e criticavam os outros, outros se tornava brigões e chorões... Ele, por exemplo, não lhe afetava em nada exceto em que lhe fazia achar os outros mais simpáticos e desejar que o mundo fosse muito mais feliz. "Mas não acho que possa ser muito mais feliz do que já é", pensou sorrindo enquanto olhava para a multidão, entre a qual bailava a jovem do vestido manchado de verde, que não notava que estava revelando seu segredo e contribuia para aumentar a alegria geral.
- Jack e a senhorita Smith se fazem notar, não lhe parece Maturin? - disse Diana na metade da noite -. Bailam juntos todo o tempo exceto quando se escondem nos cantos.
- Espero que estejam se divertindo - disse Stephen.
- Porém, Stephen, não acha que deveria falar como amigo e advertir-lhe que tenha cuidado com o que faz?
- Não.
- Não, claro. Mas lhe asseguro que essa mulher me indigna. Seduzir ao pobre Aubrey é como tirar os peniques do chapéu de um cego! Olha-o, tem o rosto radiante e se move como se fosse um touro jovem. Se fosse uma jovem como a do vestido manchado de verde, eu não diria nada, mas Amanda é uma coquete.
- Uma coquete, Villiers?
- Sim. A conheci na Índia quando eu era uma menina. Chegou com a frota pesqueira e ficou para viver com sua tia, uma mulher de nariz tão comprido como ela e que também se pinta muito. Pertencem a uma família vulgar originária de Rutland, onde os cavalos são lentos e as mulheres audazes. Tentou ali e também aqui, mas os membros do Exército são muito cautelosos quando chega a hora de falar de matrimônio, sabe?, não se parecem em nada aos da Armada. E agora tem uma reputação... Não muito melhor que a minha. Jack deveria ter cuidado.
- Realmente, parece muito complacente. Porém, não acha que é um pouco tonta e que se deixa arrastar pelo entusiasmo?
- Não. Pode ser histérica, leviana e volúvel, mas quando surge uma boa oportunidade, discorre com extraordinária claridade. Todos sabem que é muito rico... Os marinheiros o chamam Jack O Afortunado... Direi uma coisa, Stephen: a menos que o teto se venha abaixo, ao final da noite ele cairá nos braços dessa mulher, e então terá se metido em um boa confusão. Não poderia preveni-lo do que pode suceder?
- Não, senhora.
- Não, claro. Você não é o guarda de seu amigo, certamente. E de toda forma, isto será simplesmente uma passade.
- Diga-me, querida, o que ocorreu que lhe pôs de mal humor?
Ela parou e, ao compasso da música, deu três passos para a esquerda e depois três para a direita, e então respondeu como ele esperava.
- Nada... Só que quando estava falando com lady Harriet e com a senhora Wodehouse, Anne Keppel se aproximou e me olhou com muita atenção e elogiou meus diamantes. Não recordava havê-los visto em Londres e estava segura de que nunca esqueceria um colar e um pingente como esses. Perguntou-me se os havia adquirido nos Estados Unidos e o que estivera fazendo durante todo este tempo. É uma impertinente. Mas já havia notado frieza antes. Juraria que qualquer outra velha ou o coronel Aldington estiveram murmurando.
Stephen fez um comentário sobre os diamantes e os ciúmes, mas ela seguiu pensando igual e acrescentou:
- Mas em uma noite como esta não me pareceria muito desagradável nem o mais intolerante puritano, ainda que Deus sabe que Anne Keppel não poderia jogar a primeira pedra. Espero que consigamos um barco logo, pois, apesar de lady Harriet ser muito boa, com pessoas malévolas e desprezíveis como Aldington e Arme Keppel espalhando fofocas a torto e a direito, a vida neste lugar se converterá rapidamente num inferno... Bah! Vamos, Stephen.
Foram dançando até o centro, e quando ele a afastou de si e a recebeu de novo em seus braços, percebeu que seu estado de ânimo havia mudado. Já não tinha aquele brilho atemorizador nem a cabeça erguida com gesto desafiante, agora desfrutava do baile e da companhia daquela alegre multidão extasiada com a música e a lembrança da vitória. Diana lhe parecia tão bonita como sempre, e voltou a assombrar-se por não sentir nada. Então ela olhou para os pares que bailavam seu redor redor e com muita alegria comentou:
- Quanta graça me faz essa jovem do vestido manchado de verde!
E ele se assombrou ainda mais, porque quando Diana estava alegre, o que não era freqüente, era encantadora. Talvez sua insensibilidade não fosse mais do que uma proteção que já se habituara a usar, uma forma de fazer mais tolerável seu vazio interior... Não havia dúvida que sentia algo que, por assim dizer, era independente de sua vontade. Por outro lado, ele também estava divertindo-se mais do que o esperado, apesar de que em seu íntimo ainda experimentava um grande vazio comparável às páginas finais em branco de um livro, era um vazio muito profundo, ainda que nesse momento apenas podia observá-lo. A orquestra estava tocando um minueto de Clementi em dó maior, o mesmo que Jack e ele haviam feito um arranjo para violino e violoncelo. Era uma das peças que interpretavam com mais frequência, mas agora que a dançava pela primeira vez, aquela música tão conhecida tinha um significado diferente, agora ele fazia parte da música, estava imerso nela como aquelas figuras que se moviam seguindo o compasso, vivia em um mundo totalmente novo, no presente.
- Quanta graça me faz essa jovem do vestido manchado de verde! - repetiu ela quando o violoncelo deixava escapar suas graves notas -. Como está se divertindo! Oh, Stephen, quanto eu gostaria que esta noite fosse eterna!
Em realidade, a noite somente durou algumas horas a mais, suficientes para que o capitão Aubrey cumprisse a profecia de que dormiria na cama da senhorita Smith. Quando começaram a aparecer as primeiras luzes no leste, ela o despertou e, com tom urgente, disse:
- Você tem que ir! Os criados já se levantaram! Rápido! Aqui está a camisa.
Apenas havia limpado a mente quando notou que ela estava chorando. Então ela o abraçou.
- Não devemos voltar a fazê-lo nunca, nunca - disse, e depois, mais calma, acrescentou -: Aqui estão os calções.
Posto que ainda não podia mover bem o braço, custava-lhe fazer o nó da gravata. Ela lhe amarrou rindo nervosamente, de um modo que ele se assombrou, e, entre outros comentários incoerentes, disse que lady Hamilton havia feito igual a Nelson. Depois lembrou:
- Não interessam as táticas, o que importa é atacar com decisão. Ah, ah, ah! - E quando ele já tinha a jaqueta posta e o cabelo arrumado, ela sussurrou -: Saia pela porta do jardim, que só está fechada com um trinco. A deixarei aberta esta noite.
Stephen viu Jack entrar no quarto que compartilhavam e, apesar do rangido das tábuas, que era quase impossível não ouvir, teria deixado que chegasse até a cama sem dizer que o havia visto se Jack, agindo com excessiva cautela, não houvesse derramado a velha bacia que tinham para lavar-se, a qual soou como um sino, rodou descrevendo uma espiral e se deteve ao chocar com a mesinha de noite que estava junto à cama de Stephen. Isso era algo que não podia passar despercebido, assim que se sentou na cama.
- Sinto muito tê-lo despertado - disse Jack com um sorriso radiante-. Fui dar um passeio.
- Por seu aspecto, parece que encontrou a Fonte da Juventude, meu amigo... Espero que tenha levado uma capa ou ao menos um colete de flanela, pois na sua idade e com essa ferida, o orvalho da manhã pode ser muito prejudicial. Não se devem alterar nem um pouco os humores do corpo, Jack. mostre-me o braço. Justamente o que pensava: inflamação, avermelhamento e dor. Parece-me que fez muito exercício com ele. Deve usá-lo na tipóia outra vez. Não sente que a articulação está um pouco rígida? Não sente?
- Dói um pouco, mas tirando isso me sinto muito bem - disse Jack -. Apesar do que hás dito da idade e do colete de flanela, Stephen, sinto-me tão jovem como quando fui nomeado capitão, ou talvez mais ainda. Um passeio matutino faz recuperar as forças, é a verdadeira Fonte da Juventude. Acho que darei outro esta madrugada.
- Você viu muitas pessoas na rua?
- Vi um grande número delas, inclusive alguns oficiais que conhecia, caminhando em todas as direções.
- O que dizes confirma minha suposição: Halifax é uma cidade madrugadora. O deduzo pelo ruído da rua e pelo fato de que veio um menino adoentado, um evidente caso de escoliose, o pobre, para trazer uma nota do senhor Gittings.
- Quem é o senhor Gittings?
- O encarregado do correio.
Jack abriu rapidamente a nota, aproximou-se da janela e leu:
Há havido um lamentável erro... As cartas do capitão Aubrey estavam separadas... os subordinados estavam mal informados... pode recolhê-las quando quizer...
- Bendito seja Deus! Louvado seja Deus! Nunca havia... Já volto, Stephen.
- Antes de ir, porei o seu braço na tipóia - disse Stephen -. E sugiro que se lave enquanto o preparo. Se lhe vêem assim à luz do dia, pensarão que travou algum tipo de batalha.
Jack se olhou no espelho. Na escuridão do dormitório da senhorita Smith não havia visto a grotesca mancha de batom que tinha no rosto, uma mancha que parecia mais grotesca agora que sua expressão era grave. Lavou-se muito bem, armou-se de paciência e esperou em silêncio que Stephen lhe pusesse a tipóia e depois saiu da pousada.
Parecia que apenas haviam transcorrido uns momentos quando subiu as escadas outra vez com dois pacotes de cartas que estavam envoltos em tela e alguns envelopes com data mais recente.
- Desculpe-me, Stephen - disse -. Quase todas as cartas são de Sophie, e não posso lê-las em um lugar público.
Quando Stephen terminou de vestir-se para ir ao hospital, Jack ainda tinha diante de si uma pilha de cartas e estava classificando-as e colocando-as de maneira que pudesse lê-las em ordem, e sua expressão culpada havia dado passagem a outra ansiosa e alegre. E quando Stephen regressou, a pilha de cartas havia se transformado em uma perfeita seqüência e Jack as havia lido todas duas vezes. As cartas estavam debaixo de uma garrafa de água, e junto delas havia algumas folhas com contas, e no semblante de Jack se refletia uma estranha mistura de alegria e preocupação.
- Sophie lhe manda um cumprimento muito carinhoso em todas estas cartas - disse -. Em casa tudo vai bem, exceto pelo maldito Kimber. George já veste os calções e as meninas estão aprendendo etiqueta e francês. E pensar que essas pequenas criaturas que tinham cabeça de pepino estão aprendendo francês!
- Recebeu alguma carta sua de Boston?
- Sim, duas. Pela reprodução do relatório oficial do almirante Drury sabia que o Leopard havia se salvado. Depois o bom Chads, quando foi julgado pelo Conselho de guerra, foi até New Hampshire para contar-lhe que a Java havia nos recolhido e o ocorrido entre a Java e a Constitution. Falou-lhe de minha ferida com muito tato, disse que não era nada que me mantivesse afastado da ação durante muito tempo, mas que haviam pensado que era melhor que eu fosse para a América do Norte contigo e ser trocado ali em vez de arriscar-me a passar por uma zona tórrida em um barco abarrotado de prisioneiros. Estou muito agradecido, porque ela acreditou no que ele contou ao pé da letra e não se preocupou.
- Certamente que o acreditou... Certamente que acreditou...
- Vão tomar o café da manhã agora, senhores? - perguntou uma donzela do outro lado da porta.
- Sim, por favor - respondeu Stephen -. E outra coisa, querida jovem, poderia dizer-lhes para fazer o café duplamente forte?
- É claro que acreditou - disse, bebendo a tragos aquela infusão clara -. Um provérbio latino, que provavelmente conhecerá, diz que os homens acreditam no que querem acreditar. Estava pensando nisso outro dia... - E enquanto via pela janela lady Harriet e Diana passando pelo outro lado da rua seguidas de um criado carregado de pacotes, continuou -: Estava pensando nisso outro dia, e em seu corolário, de saber, que os homens não vêem o que não querem ver. São realmente incapazes de vê-lo. E o pensava porque encontrei em mim mesmo uma prova evidente. Há várias semanas tinha ante minha vista os claros sintomas de uma determinada alteração do organismo e, contudo, não os via. O médico que há em mim deveria ter notado alguns pelo menos, e ainda que cada um separadamente fosse suficiente para chegar a uma conclusão, deveria ter percebido que o conjunto de todos eles era significativo; o homem não viu nenhum, e se assombrou muito quando lhe fizeram compreender que existia essa alteração de que falei. Gnosce te ipsum... Isso é muito bom, porém, como lográ-lo? Somos seres imperfeitos, Jack, e com tendência a enganar a nós mesmos.
- Isso dizia minha velha ama-de-leite - disse Jack.
Como ocorria em algumas ocasiões, Jack achava Stephen chato, por isso havia deixado de atender-lhe e agora prestava atenção às contas que tinha junto com as cartas de Sophie.
- Antes falou do maldito Kimber... - disse Stephen.
- Sim. Ainda está fazendo das suas. Segue pressionando-a para que lhe dê dinheiro porque, conforme afirma, uns quantos milhares de libras mais nos permitirão salvar o que investimos e transformar as quantiosas perdas em grandes ganhos... Agora fala de milhares como se fosse uma quantidade comum... Não entendo as contas que lhe apresentou, ainda que me dê bem com os cálculos numéricos... Quer que ela venda Delderwood... Não acho que esse documento que firmei antes de partirmos seja uma procuração, sabe?, porque se não poderia atuar sem seu consentimento.
- Quais são os termos do contrato matrimonial que você subscreveu?
- Não tenho idéia. Limitei-me a aceitar o que a mãe de Sophie propôs, isto é, seu agente de negócios, e depois assinei onde me indicaram: J. Estúpido, capitão da Armada real.
Stephen sentiu um grande alívio, pois conhecia a senhora Williams há muito tempo e estava seguro de que pelo fato de ser uma mulher sumamente avara teria assegurado os bens de Jack amparando-se em todas as leis arrevesadas e diamantinas que pode.
- Meu amigo - disse, - faz muito, muito tempo, quando navegávamos pelos distantes mares do Oriente e você se informou do comportamento desse homem, eu lhe disse que intentaras não pensar nisso até que A Flèche nos levasse até a Inglaterra. Pedi que não desperdiçasse seu tempo e sua energia em fazer conjeturas e recriminações senão que deixasse o assunto de lado até que pudesse analizá-lo com todos os dados necessários na mão, até que pudesse consultar a um advogado e encontrar-se com esse tipo em companhia de alguém que entenda tanto de negócios como ele. Esse conselho era o melhor que podia dar-lhe então e também é o melhor agora. Só faltam poucas semanas ou dias para que cheguemos à Inglaterra, e seria um absurdo que os passasse enfurecido por não poder fazer nada, já que chegaria com a mente trastornada. Só faltam alguns dias. O relatório oficial do capitão Broke será enviado assim que esteja pronto, pois a notícia vai agradar muito ao Governo.
- Oh, sim! - exclamou Jack e seu rosto se iluminou ao recordar da vitória -. E feliz do homem que a leve! Seguirei seu conselho, Stephen, e me comportarei como um estóico: conservarei a serenidade e não me preocuparei com Kimber.
E com um brilho menos intenso nos olhos, em um tom mais grave, acrescentou:
- Além do mais, acho que já tenho bastantes preocupações em Halifax.
Nunca havia dito nada mais certo, pois, ainda que usar o braço na tipóia, como insistia Stephen, e a ferida, a dieta e os remédios lhe serviam de desculpa para não ir ver a senhorita Smith pela noite, ela solicitava insistentemente sua companhia durante o dia, e às vezes seu corpo. Parecia sentir um prazer mórbido em comprometer-se e em expor seu relacionamento. Quando Jack se refugiava em seu leito de convalescente, ela ia à pousada e lhe lia em voz alta; e quando ele ia respirar ar fresco e fazer exercício porque já não suportava ouvir nem uma linha mais de Childe Harold em tom enfático, ela passeava com ele pelos lugares públicos de Halifax agarrada em seu braço ou dava voltas e voltas pela cidade na carruagem de seu irmão, conduzindo-o torpemente. Jack se deu conta de que outros homens, especialmente seu primo Aldington, não lhe invejavam, e teve que admitir que a companhia de uma jovem exageradamente ativa, leviana, superficial, insensata e ridícula não era invejável, que o coragem que a senhorita Smith se atribuia não era proporcionada por seus encantos nem por sua inteligência... e que às vezes desejava que lorde Nelson nunca tivesse conhecido lady Hamilton.
Mas nunca o desejou tanto como no dia em que levou a senhorita Smith para visitar a Shannon, porque ela falou do casal com tanto entusiasmo que ele teve a impressão de que inclusive a pessoa mais estúpida podia dar-se conta de sua intenção. Sabia que nenhum dos oficiais da Shannon era estúpido e notou que Wallis e Etough se olharam com perspicácia. Então, apesar dela protestar aos gritos que desejava ardentemente ver onde o herói havia jazido, ele a levou de volta para terra. Quando se achava num barco, recuperava em parte sua autoridade inata, mas em terra era muito débil, não podia ser severo ou descortês com ninguém deliberadamente, e estava quase indefenso, pois ainda que conhecesse as mulheres, as quais, indubtavelmente, não lhe eram indiferentes, havia passado a maior parte de sua vida no mar. No Mediterrâneo, sendo muito jovem, ganhara fama de farrista, mas não era, e nunca havia feito nenhuma estratégia para esse tipo de encontro; contudo, agora estava assombrado; assombrado e preocupado, porque lhe parecia que era necessária uma estratégia.
Costumavam encontrar-se nos jantares que ele devia participar obrigatoriamente, e ela o molestava e o punha em evidência com suas insinuações inoportunas, até o ponto que ele chegou a ausentar-se do baile oferecido pelo comissionado, apesar disso ser uma grave falta de respeito para a etiqueta da Armada. Por outro lado, cada vez havia mais probabilidade do capitão Smith voltar, e ainda que poucos homens fossem mais valentes do que Jack Aubrey, não lhe agradava a idéia de ter que dar explicações de sua conduta.
Os dias passaram. O bergantim correio Diligence chegou da Inglaterra, com mais cartas e meias grossas, e permaneceu ancorado com uma só âncora cerca da corveta Nova Scotia durante dias e dias, mas o pobre capitão Broke não podia fazer o relatório oficial.
- Ele se distrai poucos minutos depois de conseguir se concentrar - disse Stephen -. A ferida da cabeça, a fratura do crânio, é mais grave do que pensávamos, e seria uma crueldade forçá-lo a fazer um relatório detalhado da vitoriosa batalha.
- Pergunto-me por que não pedem para que Wallis o redija - disse Jack.
- Já lhe pediram, mas ele se recusou a fazê-lo porque não quer tirar os méritos nem arrebatar a glória de seu capitão.
- Muito bem - disse aborrecido -. Isso lhe honra, não há dúvida, mas acho que é muito escrupuloso. Contudo, estou certo que o oficial de mais antiguidade e o comissionado procurarão uma solução se Broke não se recuperar dentro de um ou dois dias. Devem de estar ansiosos para fazer chegar a notícia à Inglaterra, eu mesmo estou. Morro de vontade de estar a bordo do bergantim correio, de vê-lo sair do canal balançado pelas ondas e com vento favorável. Não sei como puderam esperar tanto tempo.
- Porém, por que no bergantim correio? O que levará a bordo, além das cartas, será a cópia do relatório oficial, enquanto que na Nova Scotia, Wallis ou Falkiner levarão o informe oficial original, e é lógico que o original chegue antes que sua réplica.
- Isso é o que qualquer um acharia, mas o bergantim correio é muito rápido e a corveta não. Além do mais, o Diligence não é um barco correio oficial e não vai para Falmouth, é um barco alugado e vai para Portsmouth, justo ao lado de casa, e aposto três contra um que chega primeiro, apesar de que Capel provavelmente deixará que a corveta zarpe duas marés antes, ainda que só seja em prova de respeito.
- Uma dama deseja ver-lhe, senhor - disse um servente.
- Oh, meu Deus! - exclamou Jack e se meteu na cama rapidamente.
Como todas as pessoas que viviam fora da cidade já haviam visto a Chesapeake, a pousada não estava tão cheia e eles dispunham agora de uma salinha. E fizeram Diana entrar ali.
- Tem um aspecto estupendo, querida - disse Stephen.
- Alegro-me - disse ela, olhando-lhe nos olhos.
E ele soube imediatamente o que se passava por sua mente. Amiúde havia se comunicado mediante essa transferência silenciosa, mas não com tanta frequência como com Diana. Isso não ocorria com regularidade nem ele podia controlar, mas acontecia, era totalmente confiável. A comunicação se estabelecia em ambas as direções, e depois já não era possível mentir, o que podia ser um inconveniente para ele quando atuava como médico ou espião. Pensava que era propiciada, ou talvez inclusive originada, pela interação dos dois olhares, e por essa razão às vezes usava óculos de cristais verdes ou azuis. Mas a primeira coisa que disse para Diana foi que iam zarpar quase imediatamente.
- Lady Harriet me confiou o segredo de que o capitão Capel e o comissionado haviam redigido o relatório oficial do capitão Broke e que iam mandar imediatamente o original na Nova Scotia e a cópia no bergantim correio. Mas como todo mundo vai ficar sabendo assim que as ordens forem enviadas, pensei que não tinha nada de mau que lhe contasse.
A segunda notícia que lhe deu foi que a carruagem da senhorita Smith havia virado ao dobrar uma esquina rápido demais.
- Passei por ali um pouco depois e ainda estava metida em um monte de palha e havia um homem sentado em cima da cabeça do cavalo. Quanto desprezo a uma mulher que não é capaz de cair sem ficar histérica!
- Então, houve muitos danos, não?
- Não. Só se soltou uma roda e ela rasgou a anágua. A acompanhei até sua casa andando... Diga-me, Stephen, quem é Dido?
- Se não me equivoco, era a rainha de Cartago. Enéias gozou de seu favor e ela sofreu muito quando ele a abandonou, quando pendurou o croque, como nós dizemos.
- Bem, então deixou de comparar-se com lady Hamilton. Como ela também sabia o segredo, não parava de exclamar: "Sou outra Dido!". Não entendo como Jack pode ser tão tonto. Com uma mulher como Amanda Smith! Eu poderia ter-lhe dito como ia terminar este caso.
- Isso teria sido uma grande satisfação para você, Villiers.
Antes de que ela pudesse responder, Jack entrou.
- Como está, prima? - perguntou Jack -. Ouvi sua voz e pensei que devia dar-lhe bom dia antes de sair. Tem muito bom aspecto.
- Obrigada, Jack. Estava dizendo a Stephen que a carruagem da senhorita Smith virou e que nós vamos zarpar dentro de pouco na Nova Scotia ou no bergantim correio.
- Que vamos zarpar? - perguntou Jack e depois acrescentou -: Espero que não tenha se ferido, que não tenha quebrado nenhum braço, nenhuma perna, nem nada.
- Só passou um susto e rasgou a anágua. Bem, já que vamos partir logo, acho que agora é o momento de se despedir e fazer as malas.
- Por que se refere a isso, não tenho nada mais que o que estou vestindo. Irei pedir que nos autorizem a viajar no bergantim correio e depois irei a bordo para conseguir que nos dêem cabines decentes.
Duvidou por um momento se lhes perguntava se queriam uma cabine para os dois ou não. Eles haviam pedido ao capitão Broke que os casasse a bordo da Shannon, e ainda que a batalha e a ferida de Broke o tivessem impedido, ele tinha entendido que a cerimônia ia ser celebrada em Halifax. Contudo, desde então nenhum dos dois havia dito uma palavra, e para ele parecia uma falta de delicadeza falar do assunto agora, assim que não disse nada.
Houve um comprido silêncio quando ele se foi. Ao fim Diana, assinalando os restos do café da manhã, perguntou:
- O que é isso?
- É conhecido tecnicamente como café - respondeu Stephen -. Quer uma xícara? Para dizer a verdade, não o recomendo, a menos que goste do sabor de cevada torrada e bolotas fervidas em água salgada.
E depois de outro silêncio, continuou:
- Já faz algum tempo que falamos de nosso matrimônio, querida, e posto que vamos fazer-nos ao mar muito em breve, não acha que deveríamos ir à igreja agora? Ainda não é meio-dia, e como tenho excelentes relações com o padre Costello, sei que não terá inconveniente em oficiar o casamento.
Ao ouvir isso, ela mudou de cor, levantou-se e, visivelmente nervosa, começou a caminhar de um lado para o outro da sala. E quando passou junto da mesa onde Stephen havia posto seus charutos, pegou um. Ele acendeu e ela, rodeada de uma nuvem de fumaça, disse:
- Stephen, gosto muito de você, e se alguma vez tivesse que implorar caridade para um homem, seria para você. Sei muito bem que não deseja casar-se comigo, o soube desde o momento que recuperei a sensatez que havia perdido ao passar aqueles horríveis momentos em Boston. Eu teria percebido no mesmo momento em que voltei a vê-lo se não estivesse completamente destroçada e aterrorizada por aquele homem. Não, não minta, Maturin. É muito bondoso, mas não pode ser. Não pode ser... - Então o olhou com um gesto desafiante e, ruborizando-se, acrescentou -: De qualquer maneira, nunca me casarei com um homem sabendo que espero um filho de outro. Deus sabe que não. Nem para salvar minha vida. E agora me dê uma bebida, Stephen. Estas confissões são exageradamente cansativas.
- Só tem rum - disse Stephen e olhou ao seu redor procurando um copo limpo -. Mas é a última coisa que deveria tomar. Havia pensado em dizer-lhe há várias semanas: não deve tomar álcool. Também deve evitar o tabaco e usar roupa apertada.
- Você sabia? - perguntou ela.
Ele assentiu com a cabeça e respondeu:
- Sem dúvida, exagera a importância disto, querida. Mas não é estranho que o faça, porque, como é sabido, e agora falo como médico, Villiers, o estado físico em que se encontra afeta a capacidade de raciocinar, e Além disso, porque os intensos sentimentos que tem experimentado recentemente, a fuga, o resgate e a batalha com a Chesapeake, como era inevitável, agravaram essa alteração e fizeram a sua mente cometer graves erros. Por exemplo, equivoca-se ao julgar meus sentimentos. Talvez não me pareça aquele jovem suplicante e trêmulo de outro tempo, mas isso se deve unicamente à idade. Demostrar as emoções quando se tem o cabelo grisalho é indecoroso. Contudo, dou minha palavra de que meu carinho não mudou.
Ela pôs a mão sobre seu braço sem dizer uma palavra, e seu sorriso era tão triste que Stephen se desconcertou e antes de continuar falando foi até a janela e voltou, pôs os óculos de lentes azuis e acendeu um charuto.
- E ainda que tivesse razão, o que nego redondamente, deve buscar sua conveniência, deve ter em conta seu estado civil. Um matrimônio, ainda que seja nominal, fará com que recupere de imediato a nacionalidade e, o que talvez seja mais importante que tudo, dará um nome ao seu filho. Carinho, pense no que significa ser um bastardo. Sua existência é em si mesma uma ofensa. Por seu nascimento, tem desvantagens em todos os sistemas legais que conheço; está castigado desde que nasce. É impedido de exercer muitas profissões, e se a sociedade o admite, é só para não fazer o esforço de recusar-lhe. Escuta a mesma censura a cada passo, durante toda sua vida, e inclusive de lábios de qualquer tipo que pertença à décima geração de uma família e haja herdado o rosto de tonto de seus membros ou qualquer tolo que seja filho legal, e não pode replicar. Sou um bastardo, como provavelmente saberá, e sei muito bem o que digo quando afirmo que é uma crueldade obrigar uma criança levar essa carga.
- Sem dúvida o é, Stephen - disse ela profundamente emocionada, pegando sua mão.
Permaneceram calados uns momentos, e por fim ela, com voz muito baixa, disse:
- Por isso recorri a você, a única pessoa em quem posso confiar. Você entende destas coisas... É médico... Stephen, não poderia suportar ter um filho desse homem. Seria um monstro. Sei que na Índia as mulheres usam a raiz de uma planta chamada holi...
- Aí está! Essa é uma prova evidente de que está com a razão turbada, pois do contrário não teria pensado em algo assim nem me o diria. Meu dever é proteger a vida, não. O juramento que fiz e minhas convicções...
- Stephen, por favor, não me falhe - suplicou ela.
Depois, retorcendo-se as mãos, começou a murmurar:
- Stephen... Stephen...
- Diana, deve casar-se comigo.
Diana negou com a cabeça. Ambos sabiam que a postura do outro era inamovível e guardaram silêncio. Permaneceram assim até que a porta se escancarou e entrou um oficial rosado, muito jovem e muito alegre.
- Ah, aqui está a senhora, senhora! - exclamou -. E aqui está o senhor, senhor! Encontrei os dois ao mesmo tempo! Transmitirei a minha mensagem imediatamente.
E maquinalmente, em tom solene, disse:
- O almirante Colpoys apresenta seus respeitos à senhora Villiers e se compraz em comunicar-lhe que o bergantim correio zarpará dentro de pouco, e lhe roga que suba a bordo o quanto antes. - Então pegou ar e continuou -: O comandante do porto informa ao doutor Maturin que o Diligence zarpará dentro de duas marés e lhe ordena apresentar-se a bordo do navio urgentemente.
Depois, desta vez apontando para o porto, em tom coloquial, acrescentou:
- Alí está, senhor. É o bergantim que está ao lado da Chesapeake. Tem içada a bandeira de saída.
CAPÍTULO 3
O Diligence avançou pelo amplo porto durante a noite, e já havia passado Little Thrumcap antes do amanhecer. E quando o Sol, ainda borrado, começou a iluminar o céu pelo leste, já estava em alto mar, navegando com todas as velas desdobradas e com o vento pelo través de estibordo, e fez rumo para o noroeste para deixar par trás, muito longe e ao sul, a ilha Sable. Pela popa não se podia ver nada, pois, mesmo que a névoa não fosse tão espessa, o cabo Sambro já não era visto do barco; contudo, a uns 70° pela amura de estibordo, a umas cinco milhas de distância, via-se a escura figura de uma embarcação, uma escuna, destacando-se sobre o fundo iluminado. Não era uma corveta, não era um navio de guerra, era, sem dúvida, uma escuna; e, pelo outro lado, a Nova Scotia, que havia partido uma maré antes, já devia estar pelo menos a quarenta milhas da linha do horizonte.
Não estava em movimento e suportava o embate das ondas com a vela maior ondeada, mas estava claro que não era um barco pesqueiro, em primeiro lugar, porque não haviam botes ao seu ao redor, e em segundo lugar, porque nenhum capitão que fizesse uma longa viagem para pescar bacalhau usaria uma escuna comprida e estreita, com pouco espaço para as capturas, nem iria a um lugar onde havia poucos peixes.
O segundo em comando, que estava encarregado da guarda, a viu ao mesmo tempo que o serviola do castelo, e depois de olhá-la atentamente por entre os lampejos do mar, desceu à cabine onde o capitão e Jack Aubrey estavam comendo um bife.
- Acredito que a Liberty se encontra a barlavento, senhor - anunciou.
- Ah, sim? - disse o capitão -. E a que distância, senhor Crosland?
- A umas cinco milhas, senhor.
- Então vire e largue a joanete de proa. Já subirei para a coberta.
O senhor Dalgleish, o dono - nominalmente o dono - do Diligence esvaziou sua xícara imediatamente, pegou seu telescópio da prateleira e subiu a escada seguido de Jack.
Da alheta de bombordo, ambos observaram a embarcação estranha, que já havia desdobrado mais velame, havia virado e seguia a mesma direção deles, e nesse momento apareceram bandeiras de sinais no topo de um mastro e disparou um canhonaço para barlavento.
Quando Jack a viu, pensou que provavelmente era um barco corsário norte-americano, já que nenhuma outra embarcação se deteria em meio da rota marítima que ligava a Inglaterra ao Canadá, e não se surpreendeu quando Dalgleish, passando-lhe o telescópio, disse:
- Sim, é a Liberty, e pelo que vejo, o senhor Henry lhe deu uma mão de tinta. - Voltou-se então para seu filho, um jovem alto e magro, e disse -: Tom, suba ao tope e diga-me se o sinal do senhor Henry tem algum significado ou se é outro de seus malditos sinais falsos. Senhor Crosland, largue a bujarrona volante...
Enquanto Dalgleish dava ordens para que abrissem mais velas, Jack observou a Liberty. Era uma escuna longa pintada de preto, de uns setenta e cinco pés de comprimento por vinte de largura e um arqueio de umas cento e cinqüenta toneladas, construída para navegar muito velozmente. Pelo que podia apreciar, em cada costado levava uma bateria de oito canhões, provavelmente de doze libras, e na proa, uma caronada, e a coberta estava abarrotada de homens. Tinha desdobrada a redonda no traquete e as outras velas aferradas em calções; contudo, nenhuma escuna podia navegar com grande rapidez com o vento em popa com as velas aferradas em calções e durante o longo tempo que Jack ficou observando-a, pareceu-lhe que ela não avançava muito, se é que realmente avançava.
- Bom dia, senhor - disse uma voz ao seu lado.
- Bom dia, senhor Humphreys - disse Jack secamente.
O oficial Humphreys fora escolhido para levar a cópia do relatório oficial no lugar dos suboficiais que haviam lutado contra a Chesapeake. Todos na Armada pensavam que isso era uma trapaça feita com o propósito de Humphreys conseguir uma promoção. Naturalmente, os oficiais da Shannon seriam promovidos, e, sem dúvida alguma, Falkiner, agora a bordo da Nova Scotia, ia ao encontro da nomeação de capitão; apesar disso, todos pensavam que os jovens suboficiais deviam compartilhar com eles a glória ao chegar à Inglaterra.
- O que vê, Tom? - gritou o senhor Dalgleish.
- Então, vejo algo parecido com o velame de um barco a 20° ou 30° pela alheta, papai, mas ainda não se vê o casco - respondeu Tom -. Contudo, não o distingo bem porque o sol me dá de frente, e pode ser que seja uma montanha de gelo.
- Há algo a sotavento?
- Nada a sotavento, papai, exceto um grupo de baleias... Agora essa volta a ofegar...! E ao norte posso ver até o horizonte.
Logo, depois de uma pausa, gritou:
- Escute, papai, há um barco a barlavento, outra escuna.
- Graças a Deus! - murmurou o capitão do bergantim correio e, virando-se para Jack, exclamou -: Como estou contente de ter dito que passaríamos pelo sul da ilha Sable! Se a outra escuna se aproximasse pelo sotavento, as duas juntas poderiam pegar-nos como...
Enquanto olhava atentamente a Liberty com o telescópio, tentava encontrar um símile com que expressar a idéia da lenta aproximação de dois barcos separados por uma grande distância para pegar um outro entre eles. Mas não encontrou, e então, imitando o movimento das pinças de uma lagosta com a mão, repetiu:
- Poderiam pegar-nos como...
- O senhor acha que tinham informação sobre sua rota?
- Certamente - respondeu o senhor Dalgleish -. Em Halifax não se pode nem urinar em uma parede sem que os ianques saibam no dia seguinte. Enquanto esperava as comunicações oficiais, estive no King's Head, que estava cheio de gente, e comentei que quando tivesse todas as sacas a bordo zarparia e faria rumo ao sul. Ah, ah, ah!
- Assim que não se surpreendeu em ver as goletas esperando-lhe na rota do sul, né?
- Não, senhor - respondeu -. Bem, não me surpreendeu ver a Liberty. O senhor Henry - assinalou para o alto mar com a cabeça - me há esperado muitas vezes com o propósito de aproximar-se por sotavento, aproveitando que sua escuna é extraordinariamente rápida quando navega de bolina, e passar para a abordagem e capturar meu barco. Foi assim que capturou o Lady Albermale e o Probus, dois magníficos e rápidos barcos correio, além de outras embarcações. O senhor Henry é um marinheiro excelente. Eu o conheço de muito tempo antes do início da guerra. Antes de ser corsário, ele também era capitão de um bergantim correio. Contudo, me surpreendeu ver a outra escuna, sua companheira. Eles nunca navegam em pares, a menos que persigam um mercante de grande valor, e nenhum mercante, nem de muito nem de pouco valor, passará por esta rota antes de umas duas semanas. A captura de um barco correio é para eles como pôr uma pluma no chapéu, e para o rei Jorge, como ter uma palha no olho, e não vale a pena fazer o gasto que isso comporta, pois têm que pagar conforme a tabela de salários da América do Norte para aproximadamente cem marinheiros que, além disso, comem vorazmente, sem contar o risco de perder paus e os danos que podem sofrer os homens e as fendas do casco pouco antes do abordagem.
- Acho que o senhor poderia fazer muitas fendas em seu casco, capitão Dalgleish - disse Jack enquanto observava as caronadas de doze libras do bergantim, distribuidas em uma fila de cinco em cada costado.
- Poderia, e as farei se se abordar com o meu barco. Mas não tema, capitão, pois navegamos mais rápido que eles com o vento em popa, e isso porque ainda não larguei as alas. Estas gotas de água no ar indicam que haverá névoa no Banco do Meio ou no Banquereau, e ali os deixaremos para trás e depois voltaremos a navegar com o mesmo rumo que antes, se eles não deixarem de perseguir-nos antes, como me parece que sucederá. Um barco correio não é um grande butim, não tem um carregamento valioso e os Estados Unidos não é um bom mercado para vendê-lo; não vale a pena persegui-lo a toda vela, durante todo o dia, sem levar em conta que é verão e os blocos de gelo desprendidos podem chegar a estas águas.
Depois de um curto silêncio, Jack perguntou:
- Já pensou alguma vez em usar a estratagema do barco que tem dificuldades, capitão Dalgleish? Soltar um pouco as escotas, dar solavancos, pôr uma arrastraculo{5} debaixo da espicha, mandar a metade da tripulação para baixo... Se lograsse atrair a escuna antes de que transcorresse uma hora, poderia lutar com ela antes de que sua amiga chegasse. Poderia tomar a liberdade de tomar a Liberty, ah, ah!
Dalgleish riu, mas Jack compreendeu que foi igual a cantar salmos ao coroamento do barco, porque o capitão do bergantim correio não havia mudado de opinião aliás estava muito satisfeito de sua forma de atuar. Era um homem decidido, seguro de si mesmo, que confiava que sua conduta era a correta.
- Não, senhor - disse -. Não serviria de nada usar essa estratagema com o senhor Henry. Eu o conheço e ele me conhece, e logo perceberia que há gato escondido. E ainda que não fosse assim, capitão Aubrey, ainda que não fosse assim, tomar a Liberty, como o senhor disse com engenho, não é parte de meu trabalho. Não faço a guerra nem meu bergantim é um barco de guerra senão um barco que transporta o correio por um tempo limitado - ainda que o tempo já se estendeu por mais de doze anos - ou, como dizemos, um barco contratado. Os senhores, os cavalheiros que procuram por glória, estão em uma situação diferente; os senhores têm que responder para o rei Jorge, enquanto que eu tenho que responder para a senhora Dalgleish, e ambos vêem as coisas de diferente maneira. Além disso, os senhores podem ir ao estaleiro o dia que queiram e pedir meia dúzia de mastaréus, grande quantidade de paus e inclusive todo o velame de seu barco novo, mas se eu fosse à associação de capitães de barcos correio e lhes pedisse sequer meio rolo de tela do número três, ririam em minha cara e me recordariam que firmei um contrato. E de acordo com o contrato, devo armar um barco a minhas expensas para transportar o correio de Sua Majestade, que, também de acordo com o contrato, devo levar e trazer da forma mais rápida e mais segura possível, já que o correio é sagrado, senhor. As cartas e os informes oficiais são sagrados, sobretudo esse bendito relatório que fala da vitória.
Ao dizer isto lançou um olhar perspicaz para Humphreys, que fez uma reverência com a cabeça. Contudo, este não disse nada, porque Jack tinha uma patente muito superior à sua e era um homem por quem sentia devoção, e, além disso, porque apesar de nunca, por nada do mundo, teria renunciado ao seu posto, percebia qual era a sua situação e pensava que possivelmente os outros o consideravam um intruso que tinha conexões, e alguns deles, inclusive, um miserável.
- E mais - continuou o senhor Dalgleish, - este bergantim é meu meio de vida, e ninguém me dará outro se for capturado.
- E é um magnífico bergantim - disse Jack -. Nunca vi outro de melhores características.
A atitude de Dalgleish não lhe incomodava. Ainda que ele sentia todo seu ser vibrar de emoção ao pensar na possibilidade de sustentar um combate, um combate que requeresse grande astúcia e terminasse com extraordinária violência e, muito provavelmente, com a captura da Liberty, pareciam respeitáveis as razões que o capitão do barco tinha para mostrar-se tranqüilo e seguro.
E assim disse para Stephen quando se reuniram para tomar café ao meio da manhã.
- Nunca pensei que me simpatizaria um tipo que confessa sem rodeios que vai correr como uma lebre para fugir de outro... Apesar de ter uma pequena mas potente bateria que pode fazer com que o capitão da escuna reze o Eu pecador, se sabe rezá-lo.
- Meu amigo, fala de uma lebre, uma fuga, uma escuna, e não entendo nada - disse Stephen.
- Não sabia que nos perseguem?
- Não.
- Onde esteve toda a manhã?
- Sentado junto de Diana. Subi uma vez para a coberta, mas estavam desdobrando velas e me pediram que voltasse a descer, e ao ver que estava falando com o senhor Dalgleish, voltei para o lado de Diana.
- Como ela está?
- Prostrada. Sem dúvida alguma, é a pessoa que pior suporta navegar de todas as que conheço.
- Pobre Diana! - exclamou Jack, movendo a cabeça de um lado para o outro, mas sua compaixão era puramente teórica, pois fazia trinta anos que havia sentido um enjôo pela última vez, e havia sido leve, assim que um momento depois continuou -: Bem, o que ocorreu é que ao amanhecer avistamos um barco corsário norte-americano, uma escuna, a cinco milhas de distância, e depois outro, ao qual ainda não se via o casco, muito mais longe por barlavento, e Dalgleish mudou o rumo e agora fugimos de ambos correndo como lebres, tal como disse antes. Acho que navegamos quase a onze nós. Quer subir para a coberta e ver como estão as coisas?
- Sim, certamente.
A uma simples vista parecia que as coisas não haviam mudado muito. A Liberty ainda estava situada pela alheta de estibordo do bergantim correio, e a escuna mais distante seguia navegando com rumo este-sudeste pelas águas cinzentas e agitadas. Mas no Diligence havia uma atmosfera completamente diferente, havia uma grande tensão, e no semblante do senhor Dalgleish se refletia uma preocupação maior. O bergantim já tinha desdobradas as alas de cima e de abaixo e navegava a grande velocidade enquanto sussurro da água ao passar pelos costados provocava no casco uma ressonância apenas audível. A Liberty havia largado muito mais velame e avançava perceptivelmente, enquanto que sua distante companheira, cujo casco já podia ser visto, avançava ainda mais rápido e estava a ponto de passar pela frente de um enorme iceberg com a borda dentada que se destacava sobre o fundo cinzento e se assemelhava ao conjunto de velas de uma esquadra de barcos de linha.
Dalgleish estava falando com o segundo em comando e o senhor Humphreys, o qual media com muito cuidado o ângulo subtendido entre os perseguidores.
- Nunca havia visto o senhor Henry agir com tanta determinação - disse Dalgleish, voltando-se para Jack -. Navega com grande rapidez, como se pensasse que as velas e os paus são grátis ou que persegue a um maldito galeão espanhol. Por favor, senhor, pegue meu telescópio e diga-me o que pensa da outra escuna.
Jack apoiou a mão nos amantilhos, dirigiu o telescópio para a distante escuna e se pôs a observá-la justo quando passava pela frente do iceberg.
- Largou as alas de cada lado - disse -. Nunca vira fazer isso com esse tipo de exárcia. Deve de ter muita pressa.
- Foi o que pensei quando me pareceu vê-las - disse Dalgleish -. Durante todo o tempo que estou ao comando deste bergantim correio, nas numerosas viagens que fiz, nunca vi nada parecido, nem sequer depois que começou a guerra. Qualquer um diria que levamos um carregamento de ouro.
Stephen viu alguns alcatrazes ao longe, a sotavento, e se pôs a observar como pescavam, como entravam na água verticalmente fazendo saltar a branca espuma, e apenas prestava atenção aos marinheiros. Eles falaram da possibilidade de que o vento amainasse e rolasse para noroeste, da pressão barométrica e das sossobres, que, na opinião de Dalgleish, eram velas desnecessárias, custavam um olho da cara e provavelmente se desprenderiam com um vento como aquele. Falaram de um método que o capitão Aubrey utilizava para segurá-las em casos de emergência, consistente em pôr-lhes gradis duplos que passavam por uma polia fixada mais acima e eram controlados por um marinheiro muito hábil, mas que deviam esticar-se no último momento, se é que chegavam a usar-se. Então Stephen ouviu Dalgleish dizer que, diferente de outros capitães de barcos correio, ele não pensava que não tinha nada que aprender com os cavalheiros da Armada real, que alguém podia aprender algo novo a cada dia, apesar de ser velho, e que provaria o método do capitão Aubrey.
Nesse momento Stephen dedicou toda sua atenção a um grupo de baleias, baleias boas, que apareceram pela amura de bombordo. Pediu emprestado um telescópio e as observou até que a rota que seguiam convergiu com a do bergantim, quando estiveram tão perto que lhe foi impossível vê-las com nitidez pelo telescópio e podia ouvir como lançavam os enormes jorros de água e inclusive o ruído que faziam ao aspirar o ar. Notou que em dado momento o bergantim aumentou de velocidade, como movido por um forte impulso, e que a música da exárcia subiu meio tom, e quando levantou a vista viu que as sossobres estavam desdobradas, que a Liberty estava muito mais longe e que todos os marinheiros estavam satisfeitos de si mesmos.
- Agora poderemos comer em paz - disse Dalgleish muito comprazido -. Sua idéia é muito boa, senhor, verdadeiramente boa. Não obstante, acho que deveria usar duas vinhateiras para segurar as perchas...
As baleias haviam desaparecido depois de dar um desses longos saltos seguidos de um mergulho com os quais fazem suas misteriosas viagens; os marinheiros falavam de ganchos e sapatilhos, das vantagens e das desvantagens do uso de ganchos e sapatilhos e vinhateiras com os gradis em comparação com o uso de trincas; e Stephen voltou para o lado de Diana. Estava convencido da eficácia do láudano, a tintura de ópio, e desta vez Diana havia retido a quantidade que ele lhe havia administrado por tempo suficiente para que fizesse efeito, de modo que, apesar de estar exausta e meio adormecida, já não tinha enjôos.
Diana emitiu um sussurro quando Stephen entrou, e ele lhe falou das baleias. E ainda que ela não parecesse prestar muita atenção, acrescentou:
- Parece que dois barcos corsários nos perseguem, mas estão muito longe e não representam uma ameaça. O senhor Dalgleish está muito contente porque confia que poderemos deixá-los para trás.
Diana não respondeu. Stephen a olhou atentamente. Estava deitada na maca com o cabelo úmido e alvoroçado, tinha o rosto verdoso e um gesto de dor, provavelmente por causa de uma incipiente náusea, e tinha um aspecto tão descuidado que não era agradável olhá-la, e menos ainda se quem a olhava era seu apaixonado amante. Tratou de encontrar o nome adequado do que sentia por ela, mas não encontrou nenhuma palavra ou combinação de palavras satisfatórias. Não era a paixão que havia sentido em seus anos jovens nem nada parecido; tampouco se parecia ao afeto em que se baseava a amizade, como o que sentia por Jack Aubrey, por exemplo. Sentia carinho, sem dúvida, e ternura, e tinha a sensação de que entre os dois havia cumplicidade, de que haviam iniciado uma busca em comum há muito tempo, talvez a absurda busca da felicidade. Isso o fez evocar dolorosas lembranças, mas, descendo a voz para que não a despertasse, se é que estava adormecida, continuou:
- Parece que essas goletas estavam na rota que todos acreditavam que íamos seguir. Encontravam-se ao sul de uma ilha, mas o prudente senhor Dalgleish passou pelo norte. É quase impossível que sua presença ali tenha sido fruto da casualidade.
Podia haver sido fruto do trabalho dos espiões norte-americanos; ou podia dever ao fato da lista dos agentes norte-americanos não ser correta, pois ele não achava que Beck houvesse deixado nenhum cabo solto. Contudo, tinha que levar em conta o pessoal de Beck... E enquando pensava naquele tipo que estava bêbado no baile, Diana saiu do aparente coma e disse:
- Certamente que não foi fruto da casualidade. Johnson faria, e gastaria, o que fosse necessário para fazer-nos regressar. É capaz de contratar barcos corsários, custe o que custar. Gastaria o dinheiro como água e moveria céu e terra para pegar a mim... e aos meus diamantes.
Fez uma pausa e se virou com dificuldade, mexendo os lençóis.
- São tudo o que tenho - murmurou por fim, e depois acrescentou -: Nunca escaparei desse horrível homem. - Fez outra pausa e depois disse -: Mas não os terá nunca, não os terá enquanto eu tiver fôlego, Deus o sabe.
Stephen observou que apertava o estojo fortemente contra o peito. Sabia que os estimava muito, mas não que chegasse a esse extremo.
- Acredito sinceramente que não tem por que preocupar-se. Estamos muito na frente delas, e o senhor Dalgleish, que conhece estas águas muito bem, assegurou-me que encontraremos névoa nos bancos e que ali não poderão ver-nos nem seguir-nos. Alegro -me muito de que seja assim, porque se há algo que detesto mais que a violência em terra, é a violência no mar, porque é muito mais perigosa e sempre vai acompanhada de frio e umidade.
Ela havia caído num profundo sono induzido pelo láudano, estava ausente, mas as lágrimas seguiam saindo por entre as pálpebras fechadas.
Stephen pensou que era quase certo que ela tinha razão. Johnson era poderoso, rico, influente e, além disso, vingativo, e o ocorrido lhe havia ferido em seu orgulho. Diana o conhecia intimamente (quem poderia conhecê-lo melhor, então?) e não podia equivocar-se ao julgar seu caráter. Por outro lado, era significativo que os barcos corsários tivessem deixado a Nova Escotia passar e houvessem perseguido somente o Diligence. Era provável que ela também tivesse razão com respeito ao colar. Realmente era um adorno magnífico. Tal era sua magnificência que a pedra central tinha nome, talvez Nababo ou Mogol ou algo parecido, e ele havia comprovado que inclusive os homens muito ricos tinham apego a determinados objetos que possuiam. Era o apego o que dava valor a diamantes como o Pitt, o Sancy, o Orloff... De repente se recordou do nome do de Diana e também de que tinha forma de pêra e um formosíssimo cor, uma cor azul muito parecida ao da safira, mas mais clara, e um brilho muito mais intenso que este. Um marinheiro ímpio o havia roubado de um templo em tempos de Aurangzeb e lhe havia dado nome, um nome que havia mantido desde então e que Stephen gostava muito. Sua cor lhe recordava o da bandeira de saída, a que içavam os barcos quando estavam a ponto de zarpar, a única que podia reconhecer, que, além da iminente partida, anunciava-lhe a descoberta de novas regiões do mundo, novas criaturas, novas vidas ou talvez nova vida. Como o senhor Dalgleish havia profetizado, puderam comer em paz, pois o bergantim correio seguia avançando, apesar do vento ter amainado, e os perseguidores não eram mais que uma remota ameaça. E como havia profetizado, havia névoa no Banco do Meio. Ao subir para a coberta, Stephen a viu ao longe, ao norte, formando um arco tão baixo que parecia uma distante faixa de terra; e viu que havia quatro embarcações ao redor do bergantim correio, a uma distância não muito grande, navegando lentamente na mesma direção, para o norte. Por um momento pensou que o senhor Johnson havia mobilizado a maior parte da Armada Norte-Americana e que esta tinha rodeado o bergantim correio; contudo, percebeu que aquelas embarcações tinham as cobertas desordenadas e uma vela latina em no mastro mezena e careciam de portalós, e ainda que não fosse um grande marinheiro, estava certo de que não eram barcos de guerra. Além disso, ninguém parecia estar preocupado, e os homens do Diligence inclusive estavam cumprimentando os do barco mais próximo. E Jack, Dalgleish e o contramestre, trepados na exárcia como se fossem macacos, estavam fazendo um trabalho.
- O que faz o capitão Aubrey alí em cima? -perguntou ao segundo em comando.
- Entre todos estão trocando as vinhateiras por estrobos, senhor - disse o segundo em comando -. Se deixassem o capitão Aubrey fazer tudo o que quer, teríamos o aspecto de um barco de guerra.
- Deve cuidar do braço. É uma loucura estar em mangas de camisa com este frio penetrante. Tenho vontade de chamá-lo, porém... Esses barcos têm uma exárcia estranha, né, senhor?
- São os barcos que costumam pescar nos bancos, senhor, barcos portugueses. Nós os chamamos terra-novas. Verá muitos mais como esses no banco, senhor, se é que pode ver algo, porque a névoa é muito espessa, como o dono disse.
- Terra-novas... Já ouvi falar deles. E essa é Terra-nova, suponho.
- Não exatamente, senhor. Esse é o banco, isto é, a névoa que cobre o banco. Como quase sempre há névoa sobre o banco, às vezes o chamamos de o banco de nevoeiro, sabe o que eu quero dizer...
O segundo em comando duvidava que o doutor Maturin tivesse muita inteligência, já que um homem capaz de confundir as varredoras e as alas dificilmente poderia distinguir o bom do mau, o bem do mal, um ovo de uma castanha... Mas era um jovem de bom coração e respondeu amavelmente para Stephen quando este lhe perguntou por que se formava a névoa, por que não se dissipava com aquele vento e por que os portugueses se agrupavam ali. Explicou o mais simplesmente que pôde que os portugueses iam aonde estava o bacalhau e que esse ano havia muito mais bacalhau ali que no banco Saint-Pierre e inclusive o Grande Banco. Depois lhe perguntou se sabia como era o bacalhau. Disse que era um peixe com uma barbicha sob a mandíbula que gosta de quase todas as iscas, mas sobre tudo da lula e do eperlano. Os papistas eram obrigados a comê-lo seco e salgado nas sextas-feiras e durante a quaresma, se não, iam ao inferno. Por isso os espanhóis e os portugueses, e também os franceses em tempo de paz, que eram papistas em sua maioria, iam aos bancos a cada ano, ainda que também iam ali os habitantes da Nova Escócia e de Terra-nova. Todos iam aonde estava o bacalhau, e o bacalhau estava nos bancos, onde o fundo do mar tinha bruscas trocas de nível e às vezes chegava a elevar-se a apenas quinze braças da superfície... O mesmo havia visto muitas vezes montanhas de gelo encalhadas ali... Porém, em geral, o fundo se elevava a quarenta ou cinqüenta braças. Os portugueses ancoravam e desciam os botes, e em cada um iam dois marinheiros que pescavam com redes de cânhamo. Quando ele era pequeno, havia ido pescar com um tio seu de Nova Escócia, precisamente de Halifax, e em onze horas havia capturado setenta e nove bacalhaus, alguns com um peso em torno de cinqüenta libras. Com relação à névoa, ela se formava porque a fria corrente do Labrador, em sua descida para o sul, passava pelos bancos e se encontrava com a quente corrente do Golfo, da qual o doutor provavelmente ouvira falar. A névoa se formava com grande rapidez e quase continuamente, e havia dias em que o mar jogava vapor como uma chaleira. Por isso o vento não a dissipava, porque estava se formando continuamente. Contudo, em algumas épocas do ano a corrente se desviava para o leste e a névoa não se formava, e durante dias e inclusive semanas os bancos ficavam limpos. De toda forma, um sempre sabia onde estavam os bancos, mesmo sem sondar, pela presença dos pássaros. Nos bancos, com névoa ou sem ela, sempre havia pássaros, pássaros muito curiosos.
- Que tipo de pássaros?
- Araus-comuns, fradezinhos, pássaros bobos, mergulhões, petréis, fulmares, salteadores, todo tipo de gaivotas, pardelas, pingüins...
- Pingüins, estimado senhor? - perguntou Stephen.
- Sim, doutor. Uma ave muito rara. Não pode voar, somente nadar. Alguns o chamam de outra forma, mas nós o chamamos de pingüim. É que é lógico: uma ave que não sabe voar é um pingüim. Pode perguntar a qualquer baleeiro que tenha navegado pelo sul.
- Tem aproximadamente uma jarda de altura, é branco e preto e com o bico volumoso e pontiagudo?
- É assim mesmo. E tem uma mancha branca entre o bico e os olhos.
Sem dúvida alguma, aquela ave era o Alca impennis que Linneo havia descrito e que outros autores de menor categoria chamavam de arau-gigante, uma ave que Stephen sempre desejara ver. Eram tão escassos os exemplares que, de todos seus colegas, somente Covisart assegurava ter visto um, e Covisart tinha tendência a mentir.
- E o senhor realmente viu algum desses pingüins? - inquiriu.
- Oh, sim! Muitos, muitas vezes - respondeu o jovem rindo. - Então, assinalando para Terra-nova com a cabeça, disse -: Ali há uma ilha na qual se criam aos montes, e meu tio da Nova Escócia costumava ir até ela quando pescava no Grande Banco. Um dia fui com ele e matamos muitíssimos. Acredito que o senhor teria achado divertido vê-los retos e imóveis como bolos que iam ser derrubados. Nós os esquartejamos para usá-los como cebo e comemos os ovos.
"Maldito seja esse tio da Nova Escócia! Godo! Vândalo! Huno!", disse Stephen para si, e depois, usando o tom mais amável que podia, em voz alta perguntou:
- Acha que há probabilidade de que veja algum neste banco?
- Acho que sim, doutor, se ficar alerta. Eles lhe interessam? Eu lhe emprestarei meu telescópio.
Stephen ficou alerta, ainda que por causa do frio as extremidades se entorpeciam e punham azuis e se embaçava o telescópio, e quando o bergantim correio, já a grande distância das goletas, deslizava para o limite meridional do banco e atravessava a capa de névoa, ele já havia visto não apenas os araus-comuns e os fradezinhos senão também dois arau-gigante. A névoa ficou mais espessa e ocultou o Diligence por completo. O senhor Dalgleish mandou arriar as sossobres, as sobrejoanetes, as joanetes, as maiores... Todas menos o velacho (que fez descer para debaixo do tamborete) e uma bujarrona, as necessárias para que o barco tivesse velocidade suficiente para poder manobrar naquela turbulenta escuridão. Chegou a noite, e Stephen ainda seguia ali de pé, tremendo, com a esperança de ver outro arau-gigante.
O Diligence avançava devagar. A sino soava continuamente, havia dois vigias na proa e dois na popa e a âncora de leva estava preparada e pendia do serviola de estibordo, porque o senhor Dalgleish não sabia o que poderia ocorrer-lhe ao navegar de noite por aquele lugar entre tantas embarcações e com o perigo de encontrar os blocos de gelo que chegavam até ali porque o verão os havia desprendido. De perto e de longe chegavam apitadas e toques de tambor em resposta, e também de todo o redor, o som dos caracóis dos botes invisíveis. A névoa deixou de ser branca e tomou uma cor cinza que, a medida que avançavam, tornava-se mais escura. Por fim, a umas duzentas jardas, viram através da névoa os reflexos dourados das luzes do farol de popa e os paus de uma embarcação. Era uma embarcação que, por meio de uma manivela, emitia um apito peculiar, exageradamente agudo.
- Ei, Leviathan! - gritou o senhor Dalgleish.
- Que barco vai? - perguntaram do Leviathan.
- O Diligence, sem dúvida. Que profundidade há, William?
- Trinta braças.
O senhor Dalgleish virou o leme para bombordo e o barco pôs a proa contra o vento e retrocedeu um pouco. Então jogou a âncora.
- O senhor Henry está furioso outra vez - disse com voz forte, mas com tom tranqüilo.
- Maldito sem-vergonha! - gritaram desde o Leviathan, agora pelo través de estibordo do bergantim correio.
- Há muito bacalhau, William?
- Bastante, bastante, Jamie - responderam do Leviathan com uma gargalhada -. Não há eperlanos, mas os atraímos com lulas. Mande um bote e terá pescado para jantar.
Imediatamente zarpou um bote sob o comando do segundo a bordo e ao fim regressou, avançando lentamente pelas fumegantes águas enquanto seus tripulantes riam. A bordo trazia dois bacalhaus do tamanho de um homem e, além disso, um pássaro branco e preto de enorme tamanho, já morto, que o segundo em comando manteve apertado contra seu peito quando subiu pelo costado.
- Aqui tem, doutor - disse -. Iam usá-lo como cebo, mas tinham muitas lulas e pensei que o senhor gostaria de ficar com ele.
Todas as profecias do senhor Dalgleish haviam se cumprido até esse momento. E na janta, depois que comeram o melhor bacalhau do mundo ligeiramente fervido em água do mar, profetizou que a Liberty e sua companheira desistiriam de perseguir-lhes naquela noite. Disse que o senhor Henry não podia permitir-se permanecer ali dias e dias com tantos homens a bordo e que não valia a pena fazer um gasto assim por um simples bergantim correio. Era um corsário que atacava melhor perto da costa que em alto mar, e de improviso. Provavelmente já havia mudado de rumo e se dirigia agora para Marblehead tão rápido como podia, já que o vento não mudaria até que a lua estivesse em quarto minguante. O senhor Dalgleish tinha razão no que disse sobre o vento, pois seguiu soprando do sudoeste, de maneira que favoreceu o deslocamento do Diligence quando atravessou cautelosamente o Banco do Meio entre a penumbra da madrugada e a pálida luz do nascer do dia, rodeado de barcos espanhóis, portugueses, da Nova Escócia e de Terra-nova cujas sirenes não cessavam de soar. Mas se equivocou com respeito ao senhor Henry. Apenas o barco saiu da névoa, avistaram as goletas, com seus inconfundíveis paus inclinados, ainda que, por sorte, estavam ainda muito longe, ao sul.
- Nunca havia visto com uma atitude tão obstinada - disse o senhor Dalgleish.
Voltou a dizer que a julgar pela forma como o perseguiam, qualquer um diria que seu barco levava um carregamento de ouro; e o Diligence voltou a rumar para o noroeste, e com a maior quantidade de velame desdobrado que podia usar, dirigiu-se para os bancos de Misaine e Artimon.
Não obstante, fosse qual fosse o ardil que Dalgleish utilizasse - e foram muitos - o condenado senhor Henry o descobria. Quando cruzou o banco Misaine, ali estava de novo; e depois de sair do Artimon, onde havia permanecido ao pairo por toda a noite, voltou a vê-lo à luz do amanhecer, a umas três milhas de distância. A única coisa que o senhor Henry não podia fazer era mudar a direção do vento. Tinham ainda o vento em popa, e posto que o Diligence era um barco com exárcia de cruz, tinha vantagem sobre as goletas. Mas essa vantagem só podia mantê-la atendendo ao velame em cada momento daquela interminável corrida, e se largavam e arriavam as bujarronas, as alas e as sossobres uma e outra vez, e a escassa tripulação estava cada vez mais cansada. Por fim Dalgleish decidiu fazer rumo para o leste, para o Grande Banco, onde a névoa era notoriamente mais espessa, e na longa rota que levava até ele, seu barco deixou de ter a vantagem, porque as goletas navegavam tão rápido como o bergantim com o vento pela alheta, apesar de seu dono cuidar do leme em todos os turnos de guarda e as escotas estarem esticadas como se fossem de ferro. As três embarcações navegavam velozmente, com os pescantes de bombordo quase sempre cobertos pela água e pela branca espuma e com a coberta inclinada como o teto de uma casa. Seus mastros lançavam lamúrias, o vento passava com força arrasadora pelo corrimão de estibordo e assobiava ao passar entre a tensa exárcia, tão tensa que parecia que podia romper-se de um momento a outro.
Não havia névoa no Grande Banco, não servia como refúgio. Havia aves, centenas de milhares de aves, e montes de barcos e inumeráveis botes pescando o bacalhau, mas não havia névoa. Algum estranho fenômeno havia se produzido nas correntes e aquela vasta zona estava tão limpa como a do Mediterrâneo. Além disso, esse dia havia lua cheia, assim que o banco tampouco serviria como refúgio durante a noite. O senhor Dalgleish maldice a hora em que não havia feito rumo para Saint John's, Terra-nova, e virou de novo o bergantim para ter o vento em popa, um vento que era forte, mas instável. E quando virou, se ouviu um rangido no mastaréu de velacho e apareceu uma fenda em sentido longitudinal no terço superior deste. Em uma perseguição como essa não podiam pôr-se em pairo durante o tempo suficiente para colocar outro, assim que de imediato o repararam colocando umas barras do cabrestante diante da fenda e fazendo depois uma arreata. Mas um mastaréu com uma fenda tão profunda não podia suportar a pressão de muitas velas desdobradas, assim que o bergantim correio perdeu a vantagem. Agora, apesar de ter o vento em popa, como era frouxo, só podia alcançar a mesma velocidade que as goletas, e quando teve que tomar rizos nas gáveas, as goletas superaram sua velocidade.
E seguiram navegando velozmente para o noroeste - mais para o norte que para o leste a maior parte do tempo - durante luminosos dias azul claro e brilhantes noites nas quais uma enorme lua iluminava tudo de um lado a outro do horizonte. Fazia tempo que Jack, Humphreys e seu ajudante estavam preparando os canhões e as armas leves do bergantim, e obrigavam a fazer práticas com os canhões aos poucos marinheiros que podiam largar as árduas tarefas do barco. Porém, no que se referia ao armamento do Diligence, Jack não tinha ilusões e pensava que por levar aquelas caronadas de tão curto alcance e de tão pouca precisão, o barco podia definir-se com a frase: cachorro ladrador, pouco mordedor. Além disso, ainda que os marinheiros fossem homens dispostos, eram muito poucos e estavam pouco treinados.
Na quinta-feira pela noite o vento quase se acalmou, e havia muita probabilidade de que rolasse para oeste ou para noroeste e voltasse a soprar com a mesma força de antes, a julgar pela descida do barômetro, a acumulação de nuvens pela popa e o grande aumento da marejada. O vento instável trouxe consigo o odor do gelo, e ao final da guarda de prima, quando a lua estava quase no mais alto do céu, viram como uma gigantesca montanha de gelo (quebrada pela ação da corrente quente) caia para um lado jogando para o ar enormes blocos, que, ao cair no mar, faziam saltar a mais de cem pés de altura um sem-fim de gotas de água que brilhavam à luz da lua, e poucos segundos depois ouviram o ruído estrondoso do portentoso impacto.
Ao passar pelos bancos puseram no Diligence defesas contra o gelo, uma série de paus que cobriam as amuras e diminuiam o efeito do choque com blocos de gelo, desprendidos por causa do verão, ainda que também fizessem diminuir a velocidade, e os tiraram desde que o mastaréu rachara-se, sobre tudo porque já haviam entrado numa zona onde não era usual encontrá-los. O senhor Dalgleish ordenou que voltassem a pôr as defesas e apenas comentou:
- Antinatural.
Era uma medida necessária, ainda que possivelmente inútil para evitar a fatalidade da captura, pois aqueles blocos de gelo dentados, que apenas podiam ver-se porque estavam quase completamente cobertos pela água, podiam perfurar a proa de um barco ainda que não navegasse mais que a cinco nós, e muito mais facilmente se navegava à extraordinária velocidade de catorze nós, a velocidade que o bergantim correio navegava; e ao norte, em seu campo visual, havia outros três brilhantes icebergs.
Dalgleish mal se ausentar da coberta desde que a verdadeira perseguição começara. Não se barbeara e parecia muito cansado e muito velho, e agora, ao pensar na probabilidade de que soprasse um vento favorável para as goletas, estava abatido. Contudo, em seus avermelhados olhos apareceu um intenso brilho na sexta-feira pela manhã, quando avistou um barco ao leste, onde se via um dourado resplendor e começava a aparecer o nimbo do Sol, de um intensa cor vermelha, e havia sinais que pressagiavam uma forte tormenta. Subiu torpemente até a cruzeta com o telescópio, e quando desceu disse para Jack:
- Pode parecer uma crueldade dizer isto, mas acho que esse barco será nossa salvação. Suba com meu telescópio, senhor, e diga-me se pensa o mesmo que eu.
Jack subiu até o tope com a agilidade de um menino - um menino gordo - e posto que o sol nascente lhe impedia de ver bem o barco desconhecido, passou a observar primeiro a Liberty e sua companheira, situadas respectivamente pelo través e pela alheta do bergantim correio. Aproximaram-se durante a noite, e ainda que ainda se encontrassem a uma distância superior ao alcance de um canhão longo, já haviam sentido as primeiras rachas do vento do noroeste, que chegaria ao sair o Sol. Seus capitães sabiam que o vento chegava com pontualidade, por isso já haviam preparado os canhões de proa, e para Jack pareceu que o do senhor Henry era um canhão longo de bronze de nove libras, uma arma que podia ser muito perigosa em boas mãos. Então se voltou para o barco desconhecido, que já se separara daquela luz cegante. Navegava de bolina, com as velas amuradas a estibordo e parecia levar uma carga muito pesada porque estava bastante afundado na água. Sem dúvida alguma, era um mercante, e de tamanho e valor consideráveis, e se estava ali naquela fase da guerra, só podia ser britânico. Avançava sem pressa e sem dificuldade, com as maiores desdobradas e as gáveas rizadas, e seguia um rumo que o levaria diretamente ao encontro com as goletas, as quais somente teriam que mudar de bordo um pouco o leme para aproximar-se dele e poder abordá-lo pelos dois costados e capturá-lo antes que despertasse.
Mas teriam que mudar de rumo muito logo, pois, com aquele vento tão forte e naquela direção, o mercante não tardaria a ficar a barlavento deles, e então, mesmo navegando de bolina, já não poderiam aprisioná-lo.
Todos os que estavam a bordo do bergantim correio os olhavam com grande atenção. Três badaladas... Quatro badaladas... Todos os telescópios enfocavam a Liberty para ver o primeiro indício de que ia aproximar-se do mercante. Havia tanta claridade que podiam ver seus tripulantes. Provavelmente o senhor Henry estava ali no abarrotado corrimão de estibordo olhando para o mercante, a resposta às fervorosas orações de todo corsário. Contudo, parecia que o mercante ainda dormia. E seguia avançando como se o mar estivesse deserto. Jack havia notado que em muitos mercantes os serviolas ficavam distraídos, mas nenhum tanto como o desse mercante.
- Devemos avisá-lo com um canhonaço! - gritou com indignação -. Com sua permissão, senhor, dispararei um canhonaço.
- Dispare uma dúzia, se quer, capitão Aubrey - disse Dalgleish com um sorriso amargo-. Mas lhe asseguro que o mercante não corre perigo. O senhor Henry não tem intenção de tocá-lo.
Jack disparou dois canhonaços, e estava contente de poder esquentar as caronadas. Estava quase certo de que Dalgleish tinha razão, porque um homem como o senhor Henry, um corsário feroz e um excelente marinheiro, não deixaria passar uma atrás de outra aquelas preciosas milhas tendo semelhante butim à vista. Preferia o bergantim correio ao mercante, e dentro de pouco dispararia seus canhões furiosamente.
Quando Stephen foi informado do que ocorria, subiu correndo para a coberta, e ainda que inclusive o mais inexperto marinheiro poderia dar-se conta da situação, pois as goletas manobravam com a facilidade de um barco de recreio com aquele vento, o segundo em comando expressou claramente a situação com uma frase grosseira. Depois do segundo canhonaço, Stephen se aproximou de Jack e perguntou:
- Que posso fazer?
- Desça à santa-bárbara e encha os cartuchos de pólvora com o senhor Hope - disse Jack -. E depois pode disparar esta caronada comigo.
Passaram vários minutos. O mercante despertou, respondeu com um canhonaço, içou a bandeira, a desceu um pouco em sinal de cumprimento e voltou a içá-la. Os barcos corsários responderam imediatamente disparando cada um um canhonaço por sotavento e içaram a bandeira britânica. Jack decidiu disparar as caronadas restantes da bateria de estibordo, convencido de que o mercante perceberia que ocorria algo. O odor da pólvora, que recordava tão bem, propagou-se pela coberta; as pequenas caronadas rodaram suavemente para fora e depois para dentro; as trincas fizeram um agradável rangido. Depois ele e seus companheiros voltaram a carregá-las com metralha e balas.
O mercante tirou os rizos das gáveas e seguiu avançando como se se jogasse nos braços de seus amigos. Ainda que há tempo o Diligence içara bandeiras de sinais para advertir-lhe do perigo, ele não parecia fazer caso. Mas o certo era que não estava em perigo.
Talvez os corsários desejassem capturá-lo, mas não restava dúvida de que sua única presa era o bergantim correio. Haviam orçado, e nesses momentos se aproximavam do Diligence e se afastavam do rumo do mercante. Acabava de passar o momento crucial, e o mercante, agora seguro, cruzou a esteira dos barcos corsários.
- Não há que dar-se por vencido - disse Dalgleish com um triste sorriso.
Deu ordem de que largassem as joanetes e as sobrejoanetes, apesar do mastaréu rachado, e ele mesmo pegou o leme, orçou e desviou um pouco a proa. Tinha afeto pelo Diligence e o conhecia muito bem; pedia-lhe tudo o que podia dar e ele respondia de maneira magnífica. Mas apenas a perseguição entrou nessa nova fase, o vento amainou, e era evidente que o barco não poderia deixar para trás as goletas navegando de bolina; mas agora não podia mudar de bordo para colocar-se com o vento em popa, porque as goletas situaram-se a sotavento desde que afastaram-se do rumo do mercante. Avançavam muito juntas, a uma velocidade de sete nós, enquanto que o bergantim correio navegava a seis nós, e provavelmente a perseguição ia terminar em contenda ao redor do meio-dia. Já haviam trazido para a coberta as sacas de correio, três grandes sacas de pele fina, e a cada uma haviam atado dois lingotes de ferro para que pudessem afundá-las quando chegasse o momento de jogá-las ao mar.
Hora após hora seguiram navegando velozmente pelas agitadas águas cinzentas. As nuvens se acumulavam no oeste escurecendo todo o horizonte; o vento e as ondas aumentavam. Os tripulantes olhavam uma e outra vez para o mastaréu reparado porque, apesar da arreata, as bordas da fenda se separavam e voltavam a juntar-se devido ao forte balanço. Ainda que o contramestre tenha reforçado ainda mais as velas, Dalgleish não podia orçar para situar-se a barlavento das goletas com aquela marejada porque o mastaréu tinha uma fenda muito profunda, e se virasse em redondo cairia em suas mãos.
- Deixo a glória para o senhor, senhor - disse para Jack com o olhar fixo na borda de barlavento da gávea maior -. Quando começarem a disparar virarei e passarei entre elas. - Então, com um gesto iracundo em seu rosto enrugado e quase coberto por uma barba cinza, acrescentou -: vamos lhes dar uma boa surra, ainda que isso seja a última coisa que façamos.
Jack assentiu com a cabeça. Era o único que podiam fazer, a excessão de render-se, e era melhor que render-se sem lutar, ainda que as probabilidades de ganhar à plena luz do dia eram infinitamente remotas.
Entre Jack e Humphreys e sua pequena brigada, seguindo uma rigorosa ordem, destrincaram as caronadas de bombordo, as dispararam e voltaram a carregá-las, e Jack se sentiu satisfeito, porque gostava de usar os canhões quentes e com pólvora recém colocada. Disparou a última caronada e, no momento em que esta retrocedia, ouviu uma gritaria na popa e se virou para ali. Os homens davam saltos para a coberta, gritavam de alegria e se davam palmadas na costas. Ao correr, alguém fez que se soltasse a bolina da vela maior, e o Diligence se abateu para sotavento. Então a Liberty pôde ser vista pelo través. O mastaréu do velacho se partira justo acima dos malhetes e, com todo o velame que levava, havia caído sobre a borda da amura de estibordo. E quando Jack olhou para ela, o mastaréu maior se partiu também. Imediatamente a proa da escuna se desviou para onde vinha o vento, e a vela maior, agora flácida, começou a dar fortes golpes.
Então Dalgleish, em tom furioso, gritou que todos eram uns malditos marinheiros de água doce e ordenou:
- Soltar as adriças das sobrejoanetes, as adriças das sobrejoanetes! Tom e Joe, soltem as condenadas braças de barlavento! Carregar as velas de proa! Esses brioles, esses brioles, malditos filhos da puta! Açoite esses maricas, senhor Harvey! Dê um chute neles! Ei, Joe! Quer atar essa condenada escota antes que se rompa a cabeça?
A confusão era terrível. Jack recebeu dois chutes e o extremo de um cabo lhe deu um forte golpe justo quando acabava de perder a voz. O Diligence ficou somente com as maiores desdobradas, a pressão no mastaréu do velacho diminuiu, a ordem foi restabelecida. O senhor Dalgleish cedeu o leme a outro e, com tranqüilidade, passou a observar a Liberty junto com Jack. A escuna chocara-se de frente contra um bloco de gelo e este a havia perfurado, e a julgar pelo afundamento da proa, a roda estava partida por debaixo da linha de flutuação. Seus tripulantes tratavam de descer os botes, e enquanto isso, a outra escuna se dirigia para ela e se afastava do bergantim correio perdendo em cinco minutos a vantagem que havia conseguido em uma hora.
Depois de dar outra bordada para o norte, o bergantim correio começou a navegar com o vento em popa deixando as goletas cada vez mais longe.
- Acha que a outra escuna continuará nos perseguindo sozinha? - inquiriu Stephen.
- Não, senhor - disse Dalgleish, bocejando -. Pode ir para sua maca e dormir tranqüilo. Assim como eu vou dormir, sem dúvida. A escuna recolherá todos os homens do senhor Henry, se puder... Olhe quantos se dirigem para ela...! Olhe aquele estúpido que se jogou ao mar, ah, ah, ah! Isto é tão divertido como uma obra teatral! Depois a escuna regressará para seu país. A viagem será difícil porque terá que navegar rumo ao leste dia e noite, e posto que as provisões da Liberty não se salvaram e há tantos homens a bordo, terão comido os cinturões e os sapatos antes de regressar a Marblehead.
- Há algo na desgraça dos outros que não nos desgosta de todo - disse Stephen.
Mas ninguém o escutou porque então todos gritaram "Aí vai!" ao ver a distante Liberty afundar sob a superfície do cinzento oceano.
- Não, senhor - repetiu o senhor Dalgleish -. Pode dormir tranqüilo agora. E também a senhora... sua noiva, sua prometida. Esqueci o nome da dama. Espero que o ruído e os gritos não a tenham perturbado.
- Acho que não, mas descerei para vê-la - disse Stephen.
Estava equivocado. Perturbaram-na muito. A primeira descarga havia acabado com seus enjôos, que já eram menos fortes, mas havia mal interpretado os últimos disparos e os gritos que ouvira na coberta. E Stephen a encontrou vestida, sentada em um escaninho, com uma pistola em cada mão apontando para o vácuo e com um olhar feroz como o de um gato montês preso em uma armadilha.
- Largue essas pistolas agora mesmo - disse secamente -. Não vê que é de muito mau gosto apontar com uma pistola para uma pessoa a quem não pensa matar? Deveria ter vergonha, Villiers! Onde a educaram?
- Perdoe-me - disse ela, impressionada com sua severidade -. Pensei que havia uma batalha, que eles haviam nos abordado...
- Nada disso! Nada disso! A mais notável nave corsária, a Liberty, destruiu a si mesma: chocou contra um bloco de gelo e se afundou faz menos de cinco minutos. E a outra, carregada como a arca de Noé, dirige-se para seu país. Felicidades por haver escapado, querida! Acho que está melhor - pegou-lhe o pulso -. Sim, está muito melhor. Quer tomar ar fresco e ver como derrotamos os nossos inimigos?
Stephen conduziu Diana à coberta, onde ainda se ouviam risos e perdera-se a noção de hierarquia, e todos a cumprimentaram com um espontâneo viva. Alguns marinheiros a seguiram até o corrimão e lhe assinalaram a escuna, que agora se achava muito longe, ao oeste. O cozinheiro, colado a ela, contou-lhe detalhadamente todos os movimentos que haviam feito desde o amanhecer sussurrando e com voz enrouquecida, cujo som quase era afogado pelas explicações dos dois ajudantes do capitão e um garoto franzino que queria que ela soubesse que ele havia previsto o que ia acontecer desde o princípio. O senhor Dalgleish se aproximou, tirou o chapéu e a cumprimentou cerimoniosamente:
- Todos estamos muito contentes de vê-la na coberta, senhora - disse -. E espero que nos faça a honra de vir aqui todos os dias enquanto dure a viagem. Ainda que não serão muitos dias, se este vento seguir soprando. Esses vilãos nos obrigaram a percorrer com rapidez uma grande distância para o leste, assim que não me surpreenderia que avistássemos Rockall na quarta-feira.
E ao notar que Rockall não tinha nenhum significado para ela, acrescentou:
- Não me surpreenderia que nossa viagem fosse a mais rápida que já se fez, excetuando o do Clytie, em 1794. E todos ficarão muito contentes ao ver-nos, senhora, pelas notícias que levamos! Eu mesmo comecei a rir quando ouvi pela primeira vez que a Shannon havia capturado a Chesapeake.
CAPÍTULO 4
Finalmente com o novo mastaréu, o Diligence rumou para sudoeste com o vento pela alheta de estibordo. O vento era de moderada intensidade, o melhor que um marinheiro poderia desejar, e, apesar de trazer consigo a chuva com frequência, soprava com a mesma força e na mesma direção dia após dia, como os ventos alísios. Era realmente apropriado para usar as joanetes desdobradas, mas quando diminuiu ligeiramente de intensidade, o senhor Dalgleish abriu também as sobrejoanetes, pois estava decidido a obter o máximo proveito de seu impulso. Ainda que tivessem se detido nos bancos, havia probabilidade de que fizessem uma viagem extraordinariamente rápida, já que os corsários os obrigaram a navegar a grande velocidade em direção leste. O senhor Dalgleish estava convencido de que o Diligence estava muito mais adiantado do que a Nova Escócia, uma corveta muito lenta, pela rota do sul, e de que chegaria primeiro à Inglaterra, e, como todos os que iam a bordo, morria de vontade de dar a notícia da vitória.
O vento seguia soprando com força. O Diligence navegava a toda vela e percorria 269 milhas marítimas de meio-dia ao meio-dia seguinte, e ao cabo de dezessete dias chegou a uma zona de menos de cem braças de profundidade, próxima ao canal da Mancha. E nas turbulentas águas do canal, em meio da chuva, Dalgleish gritou com todas suas forças: "Shannon capturou a Chesapeake!", quando passou a barlavento de um mercante que ia de regresso à Inglaterra, um dos barcos que faziam o comércio com a África, e seus tripulantes se puseram a gritar como loucos. Depois deu a notícia a um sardinero de Cornualhenses, a um cúter nas imediações de Dodman, a uma fragata perto de Eddystone e a muitas outras embarcações, a maioria das quais saíam do Canal.
Se por casualidade a notícia já houvesse chegado à Inglaterra, era lógico pensar que somente se haveria difundido pelo extremo sudoeste dessa úmida ilha e que o Diligence, navegando velozmente pelo Canal com vento do sudoeste e a favor da corrente, chegaria a Portsmouth antes dela. Mas não foi assim. Quando o Diligence içou as bandeiras de sinais para indicar que levava mensagens oficiais e começou a entrar no porto, com Haslar pela amura de bombordo e o castelo Southsea pelo través de estibordo, veio a seu encontro a falua do almirante, com o dobro de remadores, avançando com grande rapidez.
- É verdade? - inquiriu o tenente do navio insígnia.
- Sim - respondeu Humphreys, que levava a comunicação oficial guardada no peito e já tinha um pé posto na escada.
Quando a falua se abordou com o barco, Humphreys saltou para ela, e o vento lhe levou o chapéu. Caiu longe, mas ele riu, e a falua zarpou imediatamente para levar-lhe até a carruagem de quatro cavalos que o conduziria ao Almirantado a dez milhas por hora, uma carruagem adornada com galhos de carvalho, pois o loureiro escasseava desde que havia começado a guerra contra os Estados Unidos.
Apesar da notícia já ser conhecida, o barco correio não atracou no momento de anticlímax, já que a confirmação do rumor aumentou o entusiasmo e os desejos de conhecer todos os detalhes. Os passageiros tiveram que suportar as curiosas perguntas, mas não a inspeção, dos oficiais da aduana, e quando desceram a terra por fim, a gente lhes rodeou para preguntar-lhes como, onde, quando... As ruas de Portsmouth estavam abarrotadas, e todos abandonavam seu trabalho para correr para reunir-se com a multidão. Perto da entrada do estaleiro, muitos de seus empregados e marinheiros de licença estavam empilhando madeira para fazer uma enorme fogueira, e os tendeiros, acompanhados pelos aprendizes, abriam passagem entre eles para acrescentar caixas, barris e, em ocasiões, curiosos objetos, como por exemplo, um sofá com três patas e uma carruagem com uma só roda. E por todas as partes se ouviam gritos de alegria; parecia que a Portsmouth havia chegado a notícia de que toda uma esquadra era que havia alcançado a vitória, uma grande vitória.
Indubtavelmente, essa reação dava uma idéia do profundos que eram a dor, a raiva, o desalento, a frustração e o assombro dos cidadãos ingleses porque os norte-americanos lhes haviam infligido uma série de derrotas, e talvez refletia também seu amor pela Armada real, mas para Jack lhe parecia um pouco exagerada. Por outro lado, as chatas formalidades que eram requisitos prévios para poder ocupar-se de sua vida privada o retardavam, e posto que pensava em sua mulher como um amante apaixonado e desejava estar de novo em sua casa e ver seus filhos e seus cavalos, esses obstáculos enturvaram sua alegria. A hostilidade não era um traço notável de seu caráter, mas ficou visível agora, enquanto caminhava para o escritório do almirante. Não se incomodava que os marinheiros dessem vivas e rissem o quanto quisessem, porque sabiam o que era uma batalha, mas os civis com ar triunfante não lhe agradavam, nem tampouco seus gritos: "Aos ianques vamos vencer, uma e outra vez!". Ao passar em frente ao Blue Posts, teve que ir para a borda da rua para dar passagem a um grupo de entusiasmadas jovens, e ali se encontrou frente a frente com um prestamista que se chamava Abse, um tipo adulador que havia conhecido tempos atrás, quando era simplesmente o guarda-marinha Aubrey e apenas tinha um pouco de valor para empenhar. Abse quase não havia mudado. Ainda estava mal barbeado e tinha as bochechas penduradas, como as dos tipos de Bath, e o nariz bulboso; e tanto as suas faces como o seu nariz estavam vermelhos pela excitação. Imediatamente reconheceu ao seu velho cliente e gritou:
- Capitão Aubrey! Ouviu a notícia? A Shannon capturou a Chesapeake!
E depois que se separaram, Jack ouviu que seguia gritando:
- Vamos vencer-lhes, uma e outra vez!
Se apresentou ante o almirante e contou a batalha com detalhe pela centésima vez, e quando saiu do escritório, as chamas da fogueira já eram muito altas e havia mais alvoroço.
"Não me incomodava ouvir os vivas e os risos em Halifax, aliás gostava muito", pensou Jack. "Parecia-me algo natural, algo correto, porque esses homens estavam perto do lugar da batalha e os norte-americanos os haviam atacado e haviam aprisionado seus barcos, e porque realmente viram a Shannon e a Chesapeake". Além disso, pensou que pouco antes de chegar a Halifax havia comido, mas não antes de chegar aqui, pois o cozinheiro do bergantim estava tão excitado pensando em descer para terra e comunicar a estupenda notícia e ver outra vez a sua noiva (uma jovem de Gosport) que se esquecera. Não houve janta a bordo, e Jack tinha o estômago vazio e parecia que havia se aderido à coluna. Então foi até o Crown e pediu pão e queijo e uma jarra de cerveja.
- E quero que mande um moço astuto ao estábulo de Davis para buscar um cavalo, um cavalo de carga - disse ao hospedeiro -. Que diga que é para o capitão Aubrey. E se o moço voltar antes de que termine de tomar a cerveja, darei meia coroa a ele. Não há nem um minuto a perder.
Nenhum jovem comum teria podido ganhar meia coroa, pois nas ruas havia uma grande multidão e o capitão Aubrey tinha enorme desejo de beber cerveja (aquela era a primeira cerveja inglesa que tomava em muito tempo), mas o moço do Crown, que se criara bebendo as últimas gotas de álcool das garrafas, tragos de genebra e do que podia encontrar, apesar de ser franzino, era muito astuto, e trouxe a égua de Davis pelas ruelas traseiras da hospedaria. Saltou o postigo que dava para o imóvel de Parker e depois o de saída, correndo um grande perigo, e depois deixou a égua ofegando no pátio e, justo no momento em que Jack empinava a jarra pela última vez, entrou tranqüilamente para avisar que acabava de trazê-la.
- Desculpem-me, cavalheiros, mas tenho que dar a notícia a minha família e não posso ficar mais tempo - disse Jack ao grupo de oficiais que o rodeava.
A égua de Davis havia levado no lombo muitos oficiais navais gordos e com pressa (o que a havia feito envelhecer antes do tempo e havia mudado seu temperamento) mas nenhum mais gordo nem com mais pressa que o capitão Aubrey e quando subia a colina Portsdown, suando copiosamente, já estava descontente, por isso tinha as orelhas inclinadas para trás e um olhar furioso. Jack se deteve um momento para que a égua tomasse fôlego e se pôs a observar o manipulador do telégrafo, que se movia sem parar, provavelmente enviando para Londres mais detalhes da vitoriosa batalha através de seus fios. A égua escolheu esse momento para tratar de desfazer-se dele e deu um par de coices com uma agilidade enorme para seu tamanho, levantando as patas de tal maneira que parecia um cavalinho de gangorra vivo. Mas Jack, ainda que não fosse um bom jóquei, era muito decidido, e fazendo uma enorme pressão com os joelhos lhe tirou quase todo o ar e o mal-humor. Puxou as rédeas e, como sua força era superior à dela, a obrigou a andar de novo e a fez descer a galope a verde colina. Depois saiu do caminho principal e seguiu pelo outro que desviava para a direita, e a fez percorrer os atalhos cobertos de grama que conhecia tão bem. Subiu e desceu montanhas e atravessou vales, e por fim subiu a a colina desde onde começavam a estender-se suas terras e observou que haviam sido derrubadas muitas árvores. Cruzou o formoso bosquezinho chamado Delderwood, seguiu o caminho construído por Kimber, onde a égua esteve a ponto de cair, e depois, segurando fortemente as rédeas, passou entre as galerias de uma mina abandonada, uma chaminé de aspecto fantasmagórico e edificações vazias; contudo, apenas se fixou nessas coisas, pois conduzia a égua entre elas com rapidez e quase instintivamente, como se governasse um barco em um intrincado canal, porque havia visto assomar entre as árvores o teto de sua casa e o coração pulava dentro do peito.
Havia chegado a Ashgrove Cottage por trás, pelo caminho mais curto, e agora atravessava o pátio e se aproximava das cocheiras. Quando havia partido, apenas haviam começado a construí-las, mas agora estavam quase terminadas e tinham um formoso aspecto, com suas paredes de tijolo rosado, suas fileiras de portinholas brancas e uma vereda com uma arcada que as separava do jardim, e ao lado estava a cocheira, sobre a qual se alçava uma torre com um relógio que dava uma aparência elegante ao conjunto. Freou a égua e, ao olhar ao seu ao redor, viu muitas coisas que lhe produziram grande satisfação: as novas alas (feitas com a recompensa pelo êxito obtido numa operação bélica nas ilhas Mascarenhas e a recuperação de numerosos mercantes da Companhia das Índias), que, agregadas à antiga casinha de campo, a haviam transformado em uma ampla casa; a enredadeira, que ele havia plantado em forma quando pequenos estacas e já se havia estendido por cima das janelas baixas da casa; e as maçãs que coroavam o muro da horta. Mas tudo estava tranqüilo e silencioso como num sonho. As portinholas estavam fechadas e não havia cavalos assomando a cabeça por cima delas nem se viam moços de estábulopor ali. Não havia nem um alma nas limpíssimas cocheiras e tampouco atrás das reluzentes janelas de cristal da casa; não se ouvia nenhum som exceto o canto do cuco, que, mudando uma e outra vez de tom, chegava de um lugar distante, do outro lado das macieiras. Um estranho pressentimento escureceu sua felicidade e lhe pareceu estar em um mundo irreal; mas nesse momento se ouviu na torre um clique e um zumbido porque o relógio se preparava para marcar o quarto de hora. Ali havia vida, ali estava ele montado em uma égua empapada de suor que necessitava ser atendida imediatamente. Voltou-se para a casa e gritou:
- Ei!
E pouco depois, desde Delderwood, chegou o débil eco: "Ei!".
Outra vez se fez um profundo silêncio, e voltou a ter a sensação de um mundo ao seu redor e ele mesmo eram uma ilusão. Seu sorriso desapareceu, e quando estava a ponto de desmontar, viu no outro lado da arcada duas meninas que, com um menino gordinho no meio, marchavam em fila com bandeiras na mão e gritavam: "Wilkes e liberdade! Hurra! Hurra! Viva a direita! Hurra! Hurra!".
As meninas eram muito bonitas, tinham cabelos encaracolados e pernas compridas, porém Jack, que as olhava amorosamente, ainda podia ver em suas filhas gêmeas algo daquelas pequenas criaturas de cabeça de pepino e pouco cabelo que havia deixado ao ir embora. Tinham uma semelhança assombrosa, mas muito provavelmente a que era um pouco mais alta, a que dirigia o grupo, era Charlotte; e o menino gordinho provavelmente era seu filho George, a quem não vira quando era um bebê rosado muito parecido com as meninas. Então lhe deu um aperto no coração e gritou:
- Olá!
Mas a corrente de afeto se movia em uma só direção. Charlotte virou a cabeça e se limitou a dizer:
- Volte amanhã. Todos foram para Pompey.{6}
Depois reiniciou sua marcha fanática e pomposa, seguida pelas outras crianças, e todos voltaram a corear: "Wilkes e liberdade!".
Desceu da égua e começou a buscar um compartimento onde poder metê-la. Quase todos estavam completamente vazios e muito limpos, mas por fim encontrou um que estava em uso. Desaparelhou a égua, a escovou e a cobriu com um cobertor, e nesse momento o relógio marcou o quarto de hora. Atravessou o pátio, entrou na casa pela porta da cozinha, passou porsuas brilhantes panelas de cobre e chegou ao corredor silencioso e inundado de luz. Apesar de conhecer tão bem a casa que podia encontrar sem olhar as maçanetas das portas, reinava tanto silêncio que não se atrevia a chamar, e ainda que não fosse um homem imaginativo, parecia que havia regressado da morte e que voltava a encontrá-la ali esperando por ele, iluminada pelo Sol. Entrou no refeitório, onde o silêncio era absoluto. Depois entrou na sala de jantar, onde havia limpeza e claridade, mas nenhum som nem nenhum movimento, e instintivamente olhou para o relógio magistral, o relógio de grande precisão com o qual comprovava suas observações astronômicas. O relógio havia parado. Depois abriu seu própio quarto, e ali estava Sophie, sentada ante a escrivaninha com um monte de papéis. E um instante antes de que Sophie alçasse a vista da soma que fazia, ele notou que estava triste e preocupada e mais magra do que antes.
Uma imensa alegria a invadiu e sentiu tanto prazer como ele. Ambos fizeram inumeráveis perguntas - que, em sua maioria, ficaram sem resposta - e relatos incoerentes e fragmentários constantemente interrompidos por beijos e exclamações de júbilo e assombro. Depois ela, ao informar-se de que ele não havia comido, levou-lhe até a cozinha.
- Então é verdade? - perguntou -. Oh, Jack, como estou contente que esteja em casa!
- O que é verdade, querida?
- Que a Shannon capturou a Chesapeake. Ouvimos o rumor esta manhã e o carteiro o repetiu quando passou por aqui. Bonden e Killick me pediram permissão para ir a Portsmouth e eu deixei que pegassem a carruagem e fossem com os outros. Estranho que ainda não tenham regressado, porque se foram faz muitas horas.
- Sim, é verdade, graças a Deus. Isso é o que estava tratando de dizer-te. Stephen, Diana e eu estávamos a bordo da fragata... Foi um combate tão simples como é de desejar, pois só transcorreram quinze minutos desde o primeiro canhonaço até o último... Nós três regressamos juntos para a Inglaterra em um bergantim correio. A viagem foi muito boa depois que conseguimos desfazer-nos dos corsários. Resta mais pão, meu amor?
- Como está Stephen? - perguntou Sophie -. Por que não veio? Por favor, come um pouco mais de presunto, querido. Está muito magro. Sinto muito que não haja restado pastel de carne; as crianças comeram tudo no jantar. Onde está Stephen?
- Está em Portsmouth, mas amanhã irá para Londres em uma carruagem e é possível que nos visite. Diana teve algumas dificuldades por causa de sua nacionalidade e não pode sair de onde está até que as autoridades permitam. Está na casa dos Fortescue, e Stephen, Fortescue e eu somos seus fiadores e teremos que pagar cinco mil libras cada um se sair dali. Mas não irá. Ela e Stephen vão finalmente se casar.
- Vão se casar?
- Sim. Foi uma surpresa para mim. Fiquei sabendo quando pediu para Philip Broke que celebrasse a cerimônia. Um capitão pode casar as pessoas que vão a bordo de seu barco sabe? Mas Broke não pôde casá-los naquele dia, pois a Chesapeake já estava saindo da enseada de Nantucket, e tampouco depois da batalha, porque estava ferido, ainda que sei que gostaria de fazê-lo. Nem sequer pôde redigir o relatório oficial que estava obrigado a fazer... Sim, vão casar-se, e talvez isso seja o melhor, porque ele suspira por ela há muitos anos. Ela se comportou muito bem quando fugimos e também depois da batalha... É uma pessoa pouco comum, eu lhe asseguro. Nunca lhe faltou brio. Sempre lhe estarei agradecido porque lhe deu notícias sobre o Leopard.
- Eu também. E lhe farei uma visita amanhã mesmo. Gosto de Diana e espero que seja feliz.
Havia falado com sinceridade, e se Jack houvesse refletido sobre suas palavras, a haveria aplaudido, porque indicavam o triunfo de seus sentimentos sobre seus princípios ou sobre o que poderia chamar-se sua concepção da moral. Sophie pertencia a uma família tradicional e provinciana na qual, até onde podiam rastrear-se suas origens, nunca houvera um escândalo por assuntos amorosos, uma família de moral estrita que havia sido puritana em tempo de Cromwell e que ainda agora qualificava de detestável inclusive uma mínimo desvio de conduta. Apesar da forma em que a havia educado sua mãe, Sophie era muito bondosa e amável para ser uma falsa moralista; porém, por outro lado, não aprovava nem compreendia um comportamento desenfreado no terreno amoroso (para ela não tinha muito interesse o aspecto físico do amor nem sequer nas relações amorosas lícitas), e as irregularidades cometidas por Diana nesse terreno estavam muito longe de ser mínimas e haviam dado lugar a fofoca inclusive numa sociedade tão liberal como a londrina, na qual havia podido manter sua posição somente graças a sua beleza, seu brio e sua relação com alguns homens que pertenciam ao círculo de amizades do Príncipe de Gales. Mas Jack não refletiu. Estava aturdido por causa de tanta alegria e só havia se fixado em que ela havia mencionado os nomes de Bonden e Killick, seu timoneiro e seu despenseiro respectivamente.
- Como é possível que Bonden e Killick estejam aqui? - inquiriu.
- O capitão Kerr os mandou com uma nota muito amável. Dizia que, em vista de que seria ele que assumiria a Acasta em seu lugar, achou justo que seus homens fossem contigo quando lhe dessem o comando de outro barco.
- Robert Kerr foi muito amável, sem dúvida alguma, muito amável. O comando de outro barco... Ah, ah, ah! Sabe uma coisa, Sophie? Antes de que voltasse a fazer-me ao mar, encherei a casa de relógios. Em uma habitação não há vida sem um relógio fazendo tiquetaque. Há alguns que podem funcionar até doze meses seguidos sem necessidade de dar-lhes corda em todo esse tempo.
- O comando de outro barco... - começou a dizer Sophie, mas parou.
Sabia que não devia dizer-lhe quais eram seus desejos: que nunca lhe dessem o comando de outro barco e que nunca voltasse a afastar-se de casa nem a expor-se a naufragar e a ser preso e aos perigos de tormentas e batalhas. Sabia que uma condição implícita de seu matrimônio era que ela ficasse ali sentada esperando-lhe enquanto ele se expunha a tudo isso. E por essa razão, terminou assim:
-... porém, querido Jack, acredito em que a corda dos relógios durem um ano, todo um ano... Sinto muito o que ocorreu ao relógio magistral: o arganaz de Charlotte se meteu dentro e vai ter crias.
- Bom, com relaçã ao outro barco, não tenho muita pressa, a não ser que me ofereçam a fragata Belvidera ou a Egyptienne, de nossa base naval da América do Norte. Tenho esperanças de conseguir uma das fragatas com canhões de vinte e quatro libras que estão contruindo atualmente, e não acredito que isso seja pedir demais, pois nem todos os dias um navio de quarta classe{7} afunda por causa de um de setenta e quatro canhões. Isso me permitirá passar vários meses em terra, vigiar para que a constuíssem do meu gosto e ocupar-me dos assuntos de casa...
A frase assuntos de casa fez embaçar a alegria de ambos, pois incluia necessariamente ao malévolo senhor Kimber, e eles sabiam muito bem. E sabiam que por causa de Kimber teriam uma infinidade de complicações e possivelmente também grandes perdas, mas agora davam muito mais importância ao arganaz de Charlotte.
- Mas já passei muito tempo ao comando de fragatas - continuou. - É mais provável que me designem um barco de linha, e não tenho pressa para que o façam.
Tinham tantas coisas que se falar! Tinham que falar de tantas cartas que haviam trocado! E falaram do jasmim, do magnífico resultado que havia dado pôr treliça no damasqueiro, e pouco depois ficaram silenciosos, com as mãos agarradas por em cima da mesa da cozinha, olhando-se extasiados, como dois tontos. O silêncio foi rompido pelas vozes que gritavam: "Wilkes e liberdade!". A partir de então se ouviu a mesma frase uma vez depois da outra e cada vez mais perto.
- Aí estão as crianças - disse Sophie.
- Sim - disse Jack. - Eu os vi marchando como se fossem soberanos e dominantes. De que brincam?
- Brincam sobre eleições de Westminster. Seu pai é um candidato. - E depois de hesitar uns momentos, acrescentou -: Um candidato dos radicais.
- Santo Deus! - exclamou Jack.
Durante sua mutável carreira política, o general Aubrey havia lutado às vezes contra a corrupção e outras estivera entre os corruptos, e isso o levara com frequência a uma posição contrária ao governo, ainda que nunca chegara a este extremo. Desde que o general fora eleito representante do horrível distrito de Gripe, propriedade de um amigo seu, havia sido um tory quando o Primeiro Lorde do Almirantado era um whig e um representante das diversas correntes dos whig quando o Primeiro Lorde era um tory. O general, um homem de uma endiabrada energia que aumentava com os anos, tinha a pompa e a eloqüência própias dos militares e as evidenciara no Parlamento, pelo qual, como oponente, havia sido para os governantes como uma espinha cravada, e como partidário, uma vergonha. Alguma ou outra vez fizera para ajudar ao seu filho utilizando sua influência política, mas sempre fora mal interpretado e, em ocasiões, inclusive obtivera um resultado quase desastroso, e ainda que, em verdade, pensara muito poucas vezes em seu filho, Jack teria chegado a ser capitão de navio muito antes se não fosse por seu pai.
- Digo para que entrem? - perguntou Sophie.
- Sim, por favor, querida - respondeu Jack. - Gostaria de conhecer George.
- Crianças, venham dar boas-vindas ao seu pai - disse Sophie, temendo que não o reconhecessem. - Acaba de regressar da América.
Apesar das precauções de Sophie, as crianças não o reconheceram. Olharam-no atentamente e depois olharam ao seu redor para ver se viam a outro homem que fosse familiar. Foram uns momentos muito dolorosos, mas por fim eles recordaram suas boas maneiras e, com semblante grave, deram um passo adiante, fizeram uma reverência e disseram:
- Boa tarde, senhor. Bem-vindo à casa.
Depois olharam para a mãe para ver se haviam feito o correto.
- George, onde estão suas maneiras? - murmurou Sophie.
O pequeno ruborizou e baixou a cabeça, e depois, tomando coragem, aproximou-se dele desde a porta, fez uma inclinação de cabeça e lhe estendeu a mão dizendo:
- Espero que esteja bem, senhor.
- Bem-vindo à casa - sussurraram suas irmãs.
- Bem-vindo à casa - disse George, olhando-lhe fixamente, e depois, sem transição, acrescentou -: Eles chegarão imediatamente. Ouvi a carruagem no caminho da entrada. Bonden me prometeu que traria uma braçadeira de ferro se a notícia fosse verdadeira. Um braçadeira de ferro, senhor!
- Acho que ele vai trazer, George - disse o pai sorrindo.
Depois houve um silêncio, e posto que a Charlotte lhe pareceu embaraçoso, cortesmente, disse:
- O avô esteve aqui no outro dia com sir Francis Burdett e nos falou das eleições de Westminster e de Wilkes e a liberdade. Desde então estamos votando por ele. Não lhe agradaria que fosse eleito?
- Crianças, crianças, devem trocar os sapatos e lavar o rosto - disse Sophie. - E vocês, Fanny e Charlotte, ponham aventais limpos. Nós nos sentaremos no refeitório.
- Sim, mamãe - disseram.
Nesse momento a carruagem entrou no pátio. As crianças saíram correndo e regressaram uns segundos depois gritando:
- É verdade! Conseguimos uma grande vitória! A Shannon capturou a Chesapeake! Hurra! Hurra!
Desapareceram, e pouco depois se podia ouvir como gritavam com todas as suas forças no pátio, como suas vozes se destacavam entre as dos homens. Então Jack notou que ali usavam o tom e as expressões grosseiras dos marinheiros. Fanny chamou Bonden de "maldito tonto", mas de brincadeira, sem intenção de ofender, e Charlotte disse que apesar de Worlidge estar bêbado como um gambá, qualquer grupo de "malditos sodomitas" teria aparelhado o pônei melhor do que eles. Isso era certo, pois três dos quatro homens que se ocupavam das tarefas de Ashgrove Cottage se haviam criado no mar e não sabiam nada de cavalos, e o quarto, o atordoado Worlidge, que trabalhava em uma fazenda quando foi recrutado à força para a Armada, vinte anos atrás, jazia no piso da carroça desde antes de que iniciassem a viagem de regresso e não pudera mover nem um dedo desde então. Os outros três, ao ver que haviam perdido a coalheira e que Worlidge estava mudo e imóvel como se houvesse sofrido uma paralisia, haviam amarrado o pônei às varas com nós marinheiros, e dessa forma o animal não tinha nenhuma possibilidade de soltar-se, mas cada vez que dava um passo para frente, o cabo que tinha ao redor do pescoço lhe cortava a respiração, assim que tiveram que empurrar a carroça desde que saíram de Hand and Racquet, onde haviam celebrado a vitória.
Sem embargo, haviam suado tanto com o exercício que já estavam sóbrios outra vez, ou pelo menos bastante sóbrios em relação ao que era usual na Armada, e quando Bonden (o mais astuto de todos) foi ao refeitório para receber novas ordens, deu mostras de alegria que não eram causadas pelo dog's nose{8} nem pelo flip{9} nem o sumo de framboesa com rum.
Deu as boas-vindas ao seu capitão, felicitou-lhe por haver conseguido a vitória e escutou com grande atenção o relato que Jack fez da batalha, cujos movimentos compreendeu perfeitamente.
- Se não houvesse ocorrido isso ao capitão Broke, tudo teria sido perfeito. Servi sob suas ordens no Druid, e já então era um fora de série com os grandes canhões. Ele se recuperará, senhor?
- Espero que sim, Bonden - respondeu Jack, sacodindo a cabeça ao recordar sua profunda ferida. - Mas o doutor poderá dizer mais do que eu. É provável que nos visite amanhã e há que ter seu quarto muito limpo e arrumado para se recolha. Agora vá cumprimentar Kimber de minha parte e diga-lhe que eu gostaria de vê-lo amanhã muito cedo, antes que eu viaje.
- Sim, sim, senhor - disse Bonden. - Arrumar o quarto do doutor e dizer a Kimber que venha depois do café da manhã.
- Vai viajar, querido? - inquiriu Sophie quando a porta se fechou atrás de Bonden. - Não acho que tenha que ir ao Almirantado imediatamente. Acredito que o almirante tenha lhe dado algum tempo de licença.
- Oh, sim! Foi muito amável... Fez o que correspondia... ele lhe mandou muitas lembranças. Mas não é o Almirantado que me preocupa mas Louisa Broke. Há que dizer-lhe como está seu esposo o quanto antes, e se saio amanhã cedo, posso ir e voltar no Harwich Flyer e estar de regresso aqui na sexta-feira.
- Uma carta... Uma carta urgente serviria da mesma forma. Está tão cansado, querido Jack, e tão magro! O que deve fazer é descansar, e passar vinte e quatro horas em uma carruagem lhe esgotará, para não falar de cavalgar até a cidade. Além disso, como disse para Bonden, você não pode dizer nada sobre a ferida de Broke. Uma carta urgente com bons desejos, frases de consolo e a opinião de Stephen será muito melhor.
- Sophie, Sophie... - disse, sorrindo.
Em seu íntimo, Sophie sabia que era habitual que os membros da Armada percorressem grandes distâncias para consolar as famílias de seus companheiros de tripulação e que a ela a haviam consolado em várias ocasiões, por exemplo, dois meses atrás, quando o primeiro oficial da Java havia vindo de Plymouth para assegurar-lhe que ainda tinha esposo; contudo, não podia evitar opor-se à repentina viagem de Jack. Um pouco ciumenta e mal-humorada murmurou: "Louisa Broke", e lhe ocorreram outros argumentos, porém, pelo brilho que havia nos olhos de Jack e a forma com que havia inclinado a cabeça, sabia que, por mais sensatos que fossem, seria inútil expô-los. Pouco depois voltaram a ficar tão alegres como antes e deram um passeio pelo jardim para ver as plantas que tanto apreciavam, sobretudo as que estavam perto da casa original, as que eles mesmos plantaram. Nenhum dos dois tinha dotes para a jardinagem, nem muito gosto, e as plantas que haviam sobrevivido (uma pequena parte) formavam grupos isolados e estavam raquíticas, mas eram suas própias plantas e por isso as queriam muito tal como estavam. Quando Sophie teve que entrar de novo na casa para atender às crianças, ele entrou também, e ouviu seus fortes passos por toda a casa. Pouco depois ele foi para a sala de música e se sentou ao piano de Sophie, que, apesar dela utilizar pouco, havia sido afinado recentemente para as lições das meninas. Tocou uma série de alegres acordes, mais e mais agudos a cada vez, e depois outros que foram descendo de tom até que entroncaram delicadamente com as notas da sonata de Hummel, que ele interpretava amiúde e que Sophie havia aprendido há muito tempo. Pegou seu violino, um violino adequado para alguém com conhecimentos musicais muito superiores aos seus, um Amati nem mais nem menos, que tomara parte de um butim obtido no oceano índico e que ele comprara fazia algum tempo. Então interpretou a mesma melodia adaptada para o violino. Não tocava bem, porque fazia tempo que não tinha um violino nas mãos e, além disso, porque os dedos da mão do braço ferido ainda não haviam recuperado sua agilidade, mas para Sophie dava no mesmo se fosse Paganini, o que importava era que a casa tinha vida outra vez, que estavam nela todos seus habitantes.
Sophie acertara com relaçã à postura inamovível de Jack. No dia seguinte, ele e Stephen subiram na carruagem logo depois do jantar, e esta, dando solavancos e com grande estrondo, afastou-se de Ashgrove Cottage por um caminho secundário tão rapidamente como podiam movê-la seus quatro cavalos.
- Na verdade, não gosto de viajar assim - disse Jack quando chegaram ao caminho principal e foi possível conversar de novo. - Prefiro uma carruagem comum ou a diligência.
- Falou com Kimber, né? - perguntou Stephen,
- Não. Kimber disse que não podia vir ver-me porque ia para Birmingham, mas mandou um grupo de homens que, conforme ele, são novos sócios em nosso negócio. E alguns eram uns tipos raríssimos. Além disso, havia um par de advogados com gravatas sujas que não cessavam de tomar notas...
- Diga-me, meu amigo, as coisas vão mal?
- Bem, o que está claro é que Kimber descumpriu minhas instruções e fez mil vezes mais coisas do que disse. Construiu longas galerias e poços profundos, comprou maquinaria de todo tipo e fez que a sociedade, como eles a chamam, participe em outros negócios, incluindo um canal navegável.
"O canal era a única coisa que faltava", disse Stephen para si. "Agora, deixando à parte o movimento perpétuo e a pedra filosofal, o quadro está completo".
-...e tudo é muito estranho - continuou Jack. - Por um lado, dizem que as perdas e as dívidas são enormes, e um deles inclusive me mostrou uma conta que é quase o dobro do que possuo, ainda que tenha admitido que é um cálculo aproximado; porém, por outro lado, me pediu para que siga adiante, e dizem que, se forem feitas escavações um pouco mais profundas, transformaremos as perdas em enormes ganhos. Querem mais dinheiro e mais segurança, e vi como um dos advogados passeava pela habitação como se estivesse avaliando os móveis. Você teria se admirado ao ver-me, Stephen, porque estava impertérrito como um juiz e os deixava falar. Aqueles malditos me incomodaram muito porque tiveram a impertinência de me perguntar diretamente se havia investido em bônus do Estado, como eram o acordo matrimonial que Sophie e eu haviamos firmado, qual era a fortuna de Sophie e qual seria a herança de meu pai. Passaram dos limites, e provavelmente pensavam que tinham um filhote de pombo entre suas garras, que eu era um tipo que não sabia nada de negócios e que podiam persuadir-me ou assustar-me para que fizesse qualquer ação insensata e prejudicial. Mas lhes cortei bruscamente e disse que não pensava em investir nem mais um penique e lhes desejei que passassem um bom dia. Oh, Stephen, quanta vantagem temos ao envelhecer! Há dez anos, ou mesmo cinco, todos teriam terminado no bebedouro e teriam me processado por agressão.
- O que eles responderam?
- Fizeram muito ruído e aguns falaram bravatas e outros se mostraram conciliadores. Tratavam de dar uma de cal e uma de areia... Disseram que não esperavam que um cavalheiro descumprisse seus compromissos e que, de todas as formas, era inútil que o fizesse porque eles tinham direito sobre minha propriedade, já que em minha ausência a sociedade tivera que pedir dinheiro emprestado a um juro exorbitante. Disseram que tinham o direito de penhorar meu bem, que Kimber havia delegado para eles todos os poderes e que seria melhor contribuir em dinheiro efetivo do que descontar letras, mas que, desgraçadamente, a senhora Aubrey não achou conveniente entregar, e acrescentaram que isso não era uma crítica e que não podia esperar que as mulheres entendessem de negócios. Conforme eles, a única forma de proceder é seguir adiante, conseguir dinheiro para seguir adiante e satisfazer os credores mais urgentes. Acham que será fácil agora que regressei, porque poderiam conseguir dinheiro emprestado utilizando meu nome, que é por si só uma garantia, e necessitam de minha assinatura para cumprir uma simples formalidade. Dizem que se eu me opuser a isto, eles, contra sua vontade, terão que tomar medidas para salvaguardar seus própios interesses... Sabe Deus como vou sair desta situação! É o mesmo que navegar com a costa a sotavento.
Trocaram os cavalos em Petersfield, e quando a carruagem deixou para trás o povoado, Jack disse:
- Como estou contente que Sophie os tenha freiado, Stephen! Quando se deu conta que Kimber estava se excedendo, escreveu-lhe uma carta dizendo que parasse, e desde então se negou a assinar qualquer outro documento e a dar mais dinheiro. E quando as coisas pioraram, guardou a carruagem, vendeu os cavalos e disse a todos os serventes que procurassem outro emprego, bem, todos exceto Dray e Worlidge, porque eram aleijados. Ainda nos resta muito dinheiro investido em ações e no banco de Hoare, mas não sei se conseguirei conservá-lo. Acho que ela entende mais de negócios do que você e eu. Desde o início foi contra isto, sabia?, contra Kimber e de seu maldito projeto.
Stephen podia ter dito que ele também era contra o maldito projeto desde o princípio, que lhe parecera o típico engano do qual Jack era objeto quando se achava em terra, um engano que costumava vitimar os oficiais navais mais ricos, mas não disse nada e Jack continuou:
- É uma boa mulher... Bem, a Bíblia diz algo sobre isso que acho muito acertado, mas não lembro bem.
- Estou certo que você tem razão - disse Stephen. - E diga-me, o que aconteceu com a esposa de Killick, aquela mulher com um cabresto que ele comprou no mercado da última vez que estivemos na Inglaterra?
- Oh! - exclamou Jack e passou a rir. - Voltou para seu primeiro marido poucos dias depois que fomos para o mar. Parece que costumam fazer isso e que vão de um mercado para outro por toda a costa. A mãe de Sophie revistou seu quarto e encontrou os pertences de Killick e duas de nossas bandejas de prata. Eu nunca teria permitido esse registro se estivesse em casa, mas agora estou contente de que tenha feito, porque aprecio muito essas bandejas.
- A senhora Williams desempenha agora seu ministério no Ulster, né?
- Sim, graças a Deus. Está cuidando de Frances, que espera um filho. Teria sido horrível se estivesse aqui quando Sophie teve que cortar os gastos da casa.
- Temo que isso a privou de uma grande satisfação - disse Stephen, recordando o prazer que a senhora Williams sentia em economizar, seu ar triunfante ao poupar um cabo de vela e sua profunda e absurda devoção pela libra.
- A senhora Williams... - disse Jack com seu vozeirão, mas parou, pensou melhor no que ia dizer, tossiu, pegou um pacote envolto por um guardanapo que havia num canto da carruagem e continuou: - pegue um destes sanduíches. Sophie os fez e tive que prometer que comeríamos todos. Não ficará contente até que eu esteja gordo como um boi.
Terminaram de comê-los pouco depois de passar por Guildford, quando anoitecia. E depois que Jack sacudiu o guardanapo pela janela e o dobrou, disse:
- Vou dar um cochilo.
Então se acomodou num canto, apoiou o queixo contra o peito e, tão rapidamente como o Sol se põe no trópico, adormeceu. Essa era uma habilidade comum para a maioria dos homens do mar, o resultado de fazer a guarda ao longo de muitos, muitos anos, e Stephen, que padecia com insônia, olhava-o com inveja. Pelo seu lado, cada vez mais borrados, passavam com rapidez as cercas, as casas, os palheiros e as aldeias, e passou a diligência de Portsmouth, com os faróis já acesos e tocando a buzina, mas Jack seguia dormindo. Ainda dormia quando voltaram a trocar os cavalos, e quando já estavam atravessando Putney Heath ergueu-se por fim e perguntou:
- O que é um embargo?
- Um embargo? - repetiu Stephen e permaneceu pensativo por uns momentos. - Não há dúvida de que é um termo legal, mas não sei o que significa. Não sei quase nada sobre a lei, só que quando um homem comum se põe em contato com ela, ainda que sua causa seja justa, é provável que sua alma e seu bolso sofram grandes danos. Por isso, meu amigo, rogo-lhe que busque alguém que possa aconselhar-te bem e que o busque imediatamente. Este não é momento de aplicar panos quentes nem de consultar advogados provincianos. Deve contratar um dos homens de mais talento de Londres, deve contar com o assessoramento de um advogado eminente e experiente que esteja acostumado a tratar com sem-vergonhas como esses e a enfrentá-los em seu própio terreno. Necessita de outro Grotius, de outro Pufendorf.
- Sim, porém, onde posso encontrar a outro Pufendorf?
- Onde? Bem, eu conheço na cidade a um cavalheiro inteligente e discreto que conhece a maioria dos advogados e é a pessoa que melhor poderia indicar qual é o mais hábil e astuto de todos. Quer que lhe pergunte?
- Sim, agradeceria-lhe que o fizesse, Stephen, se não tiver que desviar-se de seu caminho para isso.
Stephen não teve que desviar-se nem uma jarda, pois o propósito de sua viagem a Londres era levar os documentos conseguidos em Boston para seu chefe, sir Joseph Blaine, o cavalheiro inteligente e discreto a que havia se referido. Os documentos estavam envoltos em um pedaço de tela e teve que levá-los sobre as pernas pelo fato de viajar numa carruagem pequena, mas ele havia preferido viajar assim desta vez porque numa ocasião se esqueceu de alguns documentos secretos numa carruagem, e já sofrera bastante por isso.
Sob o chuvisco, os cocheiros levaram-nos pelas ruas pouco transitadas, onde se viam cartazes alusivos à vitória com tantas frases engenhosas e versos como a imaginação e o espaço permitiam, e mesmo que alguns estivessem bastante deteriorados, as luzes mortiças tornavam possível distinguir dois barcos com os nomes de Shannon e Chesapeake escritos em letras enormes. Pararam diante de uma discreta casinha situada atrás do mercado Shepherd e o cocheiro de mais autoridade bateu fortemente na porta, na qual apareceu o própio sir Joseph com uma vela na mão.
- Querido Maturin! - exclamou e o fez entrar para o saguão enquanto olhava atentamente para o pacote que Stephen trazia. - Que agradável surpresa! Bem-vindo finalmente à casa!
Subiram para a biblioteca, um agradável quarto de solteiro com um tapete turco, poltronas cômodas, muitos livros perfeitamente ordenados, a maioria sobre entomologia, uma lâmpada de abajur verde, algumas esculturas de bronze e quadros eróticos muito bem realizados e um fogo que fazia brilhar a proteção de latão.
- Peço que me perdoe por ter-lhe pedido que me recebesse aqui, senhor, mas estive fora por tanto tempo que não sei como estão as coisas no Almirantado - disse Stephen. - Fiquei sabendo que houveram mudanças e pensei que seria melhor evitar a possibilidade de qualquer mal-entendido ou atraso.
- Não tenho nada que desculpar-lhe. Nada me haveria produzido mais satisfação. Ordenei que acendessem o fogo quando recebi sua mensagem, porque sei que o senhor é friorento. Por favor, aproxime a poltrona um pouco mais. Asseguro que me parece uma prova de confiança, e, como o senhor disse, houve mudanças no Almirantado. O pobre Warren já não está conosco, mas isso o senhor já sabia antes que o Leopard zarpasse. Que golpe deu o senhor então, Maturin! Chegou a receber minhas felicitações, né?
- Na própia Java. O senhor foi muito amável, muito amável.
- Em isso é no primeiro que estou em desacordo com o senhor. Em minha opinião, foi uma magnífica operação... O almirante Sievewright e uns poucos mais se hão ido, e há meia dúzia de homens novos, alguns dos quais são jovens muito competentes para o cargo que ocupam. Além disso, temos um novo vice-secretário, o senhor Wray, que antes trabalhava no ministério da Fazenda. Para ser mais preciso, é um vice-secretário suplente, ainda que estou quase certo de que logo receberá a nomeação para o cargo, a não ser que o pobre Barrow se recupere inesperadamente. É um homem que analisa detalhadamente as coisas e tem muita energia... Eu gostaria de ter pelo menos a metade... Trabalha mais duro do que todos nós e ainda encontra tempo para ter uma vida social muito ativa. Não vou a nenhum lugar onde não o encontre. Talvez o senhor conheça o senhor Wray, Edmundo Wray.
Stephen conhecera o senhor Wray em uma desafortunada ocasião, quando Jack Aubrey o acusara, se bem que veladamente, de fazer armadilhas no jogo de cartas. Wray não havia julgado conveniente exigir uma satisfação da maneira usual, talvez porque considerava que a acusação havia sido o suficientemente velada, e devido à comprida ausência de Jack, o caso fora esquecido. Mas Stephen pensou que esse não era o momento de dizer como e onde o havia conhecido, sobretudo porque percebera que sir Joseph não tinha o menor interesse nisso, já que seus brilhantes olhos estavam fixos no pacote envolto em tela.
- Estes documentos os consegui em Boston - disse Stephen, desenbrulhando-os por fim. - Na primeira folha encontrará um sucinto relato de como chegaram às minhas mãos e na seguinte um sumário de seu conteúdo. A maioria só tem importância para assuntos locais, e já foram examinados em Halifax pelo capitão Beck, mas acho que alguns têm importância para assuntos mais gerais.
Sir Joseph pôs os óculos e se sentou na mesa da biblioteca, perto da lâmpada.
- Meu Deus! - exclamou depois de aguns momentos. - Estes são documentos privados de Johnson!
- Exatamente - disse Stephen.
Então se levantou, ficou de costas para o fogo e puxou para a frente os espigões da jaqueta para que suas delgadas pernas recebessem melhor o calor. Observou sir Joseph, que, em meio do silencioso quarto, lia atentamente os papéis que estavam naquele círculo luminoso e estava impaciente para terminar de conhecer seu conteúdo. O único que se ouvia era o rumor das folhas ao passar e, de vez em quando, em voz muito baixa, a exclamação: "Astuto raposa...!". Depois de um tempo, Stephen se virou para as prateleiras. Ali havia obras de Malpighi, Swammerdam, Ray, Réaumur, Brisson, e os mais modernos escritores franceses, e tinha inclusive o último estudo do velho Cuvier, que não lera ainda. Então se sentou no braço da poltrona e leu os primeiros capítulos e depois se aproximou do gaveteiro de sir Joseph para buscar o inseto ao qual se referia o estudo. As gavetas estavam cheias de insetos mortos muito bem conservados e classificados, e na segunda havia um exemplar raríssimo, um verdadeiro ginandromorfo, com um lado feminino e o outro masculino, uma colias comum, sob cujo nome científico podia-se ler: Presente de meu estimado amigo o Dr. P. H. Essas eram as iniciais que ele usava nas comunicações que enviava ao departamento na época em que presenteara Blaine com a mariposa. Blaine sempre estava preparado para o imprevisto, e ninguém mais que ele podia decifrar as iniciais que havia debaixo de muitos dos espécimes de sua grande coleção, que precisamente eram os mais exóticos. Entre eles, Stephen reconheceu alguns exemplares de Java, Celebes, Índia, Ceilão e Arábia Feliz,{10} que, sem dúvida, eram presentes de membros dos Serviços Secretos que operavam naqueles lugares, membros que não conhecia e que tampouco o conheciam. Encontrou o estojo com o inseto que procurava, um horrível gorgulho, voltou a pegar o livro e o aproximou da luz junto com o estojo. Sir Joseph seguia lendo.
Stephen lia agora o argumento de Cuvier, que era persuasivo e estava escrito de forma elegante, mas que lhe parecia uma falácia. Retrocedeu duas páginas enquanto mantinha o dedo perto da cabeça do gorgulho, mas as referências à ilustração não estavam claras. Poderia haver detectado o erro se não houvesse passado todo o dia viajando e se parte de sua mente não se ocupasse de Diana. Sua mente era difícil de controlar, e se não lograva dominá-la, se formaria nela a idéia de que Diana havia morrido, ou de que o mito de Diana, criado por seu infinito amor, havia morrido, e isso lhe produziria um fundo pesar; contudo, esse pesar não seria muito fundo, já que pelos meios mais surpreendentes, o antigo mito tendia cada vez mais a coincidir com a realidade. Pensou que talvez aquilo se parecia com matrimônio: ambos haviam passado muito tempo juntos e, ainda que continuassem sendo quase como estranhos um para o outro, estavam inextricávelmente ligados. Cravou o olhar nas chamas pensando em Diana Villiers, e Cuvier passou a ser uma recordação que cada vez se fazia mais borrada e chegou a ser infinitamente remota.
Sir Joseph deu um suspiro, fazendo Stephen voltar para o quarto, e depois de pôr de novo os documentos na pasta, afastou-se da mesa.
- Querido Maturin - disse, apertando-lhe a mão. - Não sei o que dizer. Usei todos os superlativos ao meu alcance quando lhe escrevi felicitando-lhe pelo golpe que deu no Leopard e agora a única coisa que posso fazer é repeti-los. O senhor realizou um trabalho magnífico, magnífico; contudo, sinto arrepios, sim, asseguro-lhe que sinto arrepios quando penso nos riscos que correu para trazer estes documentos.
Seguiu louvando-lhe com generosidade e sinceridade e acrescentou:
- Não tem nada contra uma janta, né, estimado amigo? Tenho uma garrafa de vinho que queria compartilhar com o senhor para celebrar seu regresso, uma garrafa nata mecum consule Buteo, a última que me resta. Espero que ainda se encontre em bom estado.
Ainda se encontrava em bom estado. Era um vinho do porto excelente, e enquanto o bebiam, depois de comer ovos mexidos com manteiga, costelas em molho picante e queijo Stilton, sir Joseph deu umas palmadinhas na pasta e disse:
- O senhor Johnson deve ser um homem muito interessante. Estes documentos mostram seu progresso desde que era um jovem aficionado com talento até que se converteu em um profissional; um progresso extraordinariamente rápido. Parece que ele e seus colegas puderam condensar em poucos anos a experiência de várias gerações. A rede que organizou no Canadá o faz merecedor de elogios, e ainda que, indubtavelmente, foi enganado pelos franceses, isso poderia ter acontecido a qualquer um. Que tipo de homem é?
- É um homem bastante jovem e tem uma grande agilidade mental e um forte instinto animal. Poderia dizer que é um homem atraente e tem maneiras elegantes e gosta de insinuar-se. Acho que sua ambição de poder é seu traço mais característico, ainda que não tenha a desagradável aparência de uma pessoa ambiciosa, dominante, autoritária. Procede de uma família de considerável fortuna e possue uma grande inteligência. Não pretendo afirmar que existe uma relação causa-efeito neste caso, mas é uma pessoa que não suporta que o contradigam nem que lhe interponham obstáculos, e como é tão astuto, persistente e determinado e pode usar sua grande fortuna quando tarda em receber os fundos dos Serviços Secretos ou estes são insuficientes, é um oponente perigoso. Estou convencido de que alugou dois barcos corsários para que atacassem o bergantim correio em que viajávamos e que lhes ofereceu uma grande recompensa para capturar-nos. Se encontravam na rota por onde ia a corveta que levava o relatório original e a deixaram passar, e para nós, em troca, perseguiram-nos com uma incrível tenacidade, cuja única explicação seria que esperavam obter uma enorme quantidade de dinheiro. Ainda que, na verdade, neste caso, Johnson tinha um poderoso motivo para agir assim.
- Sim - disse sir Joseph, ainda que não podia saber-se se havia consentido porque sabia qual era o motivo de Johnson ou por cortesia, e, depois de encher as taças, olhou a vela através da sua, riu e acrescentou: - Que golpe, Meu Deus! Que golpe...!
- A verdade é que tive boa sorte, não vou ocultá-lo - disse Stephen. - Apesar de que ter conseguido dar esse golpe graças às circunstâncias e não a meus própios méritos, não lamento terminar minha carreira com um êxito fortuito.
- Terminar, Maturin? - perguntou sir Joseph assombrado. - Que quer dizer com isso?
Sir Joseph possuia todas as qualidades necessárias para ser um excelente chefe dos Serviços Secretos, mas não tinha senso de humor, e a ansiedade e o desalento comuns a sua profissão haviam acabado com o pouco que tinha por natureza. Não se deu conta de que Stephen falava com leveza, de que havia caído na tentação de arredondar uma frase, e, muito sério, prosseguiu:
- Maturin, Maturin, como pode ser tão débil? Estou certo que nesses lugares remotos leu nossos boletins e comunicados preparados para os países neutros e, sobretudo, para o povo russo, e que chegou à conclusão de que a guerra está a ponto de acabar. Acho que pensa que o fato de Wellington ter o controle de boa parte da Espanha, implica que Napoleão está derrotado e que por controlarmos sua querida Catalunha, o senhor já não tenha trabalho. Mas lhe asseguro que o controle que exercemos sobre a Espanha, particularmente sobre a Espanha mediterrânea, é muito débil, pois só contamos com a ajuda de poucos batalhões de soldados de reserva e de portugueses, e se os franceses fazem um movimento desde o Rosellón e atacam as tropas de Wellington pelo flanco direito, cortariam extensas linhas de comunicação. Sim, inclusive nessa região a situação é muito perigosa, por não falar do norte. As tropas de Wellington recebem as provisões pelo mar, por isso o domínio do mar é um fator decisivo, e considerando somente nossa esquadra do Canal... Aqui está o último comunicado de lorde Keith:
O inimigo tem doze barcos de linha, açém do Jemmapes, preparados para zarpar, e quinze fragatas... - quinze, Maturin... - e outras embarcações mais pequenas, enquanto que a esquadra que tenho sob meu comando atualmente é composta de catorze barcos de linha, oito fragatas, seis corvetas, dois bergantins, uma escuna e dois cúters alugados, e onze destas embarcações estão nos portos ou de regresso a eles para reabastecer.
Um terço delas não podem ser utilizadas no momento, enquanto que todas as dos franceses estão preparadas para o combate; e as outras esquadras estão na mesma situação. Como vê, se os franceses conseguissem sair, Wellington ficaria pendurado no ar e mudaria por completo a face da guerra, por isso ele se queixa constantemente de que não tem suficiente proteção naval nem provisões. Asseguro-lhe que a guerra se encontra em sua fase mais perigosa, Maturin. Estamos queimando nossos últimos cartuchos, não nos restam reservas, e se Napoleão conseguir uma vitória em terra ou no mar, duvido que nos recuperemos. Osenhor esteve fora por muito tempo e talvez não possa apreciar a imensa perda de recursos que este país sofreu. Subiram os impostos o mais alto possível e, contudo, não há dinheiro e apenas podemos apetrechar a Armada. O prestígio do Governo diminuiu muito. O desconto dos bônus do Tesouro é tão alto que o senhor poderia forrar o quarto com eles. O comércio está quase paralizado, o ouro não se encontra por nenhum lado, há papel moeda por todas as partes e na cidade há muito pouca atividade. Na cidade todos estão entristecidos, Maturin, entristecidos!
Para Stephen era indiferente o estado de ânimo da cidade, mas refletiu sobre as palavras de sir Joseph. Não possuia uma informação tão detalhada e atualizada como a de seu chefe, mas colaborara na redação de muitos documentos falsos para ter-se deixado enganar pelos que havia lido, e sabia muito bem que a situação era crítica, que a aliança contra Bonaparte era exageradamente frágil, que os dois lados estavam exaustos e uma única vitória francesa, bem aproveitada, poderia ter como consequência um final terrível para a guerra e o estabelecimento de uma tirania que duraria gerações e gerações. Sir Joseph estava dando um sermão, por assim dizer, para um homem que não necessitava de converção, e Stephen lamentava muito, sobretudo porque com os anos ele aumentara sua tendência de contar as coisas com muitos detalhes. Agora, por exemplo, dava muitos detalhes ao falar da Bolsa.
- Acredito que existem poucas coisas nas quais os homens pensam mais e cuidam com mais zelo que o dinheiro, e a Bolsa é um infalível indicador de seus pensamentos, dos pensamentos de um grande número de pessoas inteligentes e informadas que têm muito a perder e muito a ganhar. Inclusive a vitória conseguida pelos senhores, que há chegado como caída do céu, e a de Wellington em Vitória, praticamente o único que hão provocado na cidade é que se acendam fogueiras e luzes e se pronunciem discursos patrióticos. Esses cavalheiros sabem que sozinhos não podemos seguir adiante por muito tempo e que, na primeira ocasião que tenhamos má sorte, nossos aliados nos abandonarão, como nos abandonaram outras vezes. E se eu tivesse a metade da segurança que o senhor tem de que Napoleão está a ponto de ser derrotado, iria para a cidade amanhã e faria uma fortuna.
- Como a conseguiria, senhor?
- Comprando bônus do Estado, ações da Companhia das Índias e de qualquer outro tipo de companhia cujo valor dependa do comércio internacional. Compraria essas ações pelo baixíssimo preço que têm agora e assim que Bonaparte fosse derrotado ou se firmasse a paz, eu as venderia e obteria enormes ganhos. Enormes ganhos, senhor! Qualquer pessoa que estivesse informada de antemão e dispusesse de uma considerável soma, ou pudesse obter uma considerável soma emprestada, poderia fazer uma fortuna. Seria como apostar em uma corrida de cavalos sabendo de antemão qual será o vencedor. É desta forma que se fazem as fortunas na Bolsa, ainda que, em verdade, raras vezes seja possível obter benefícios tão grandes.
- O senhor me assombra- disse Stephen. - Não sei nada destas coisas.
- É o que eu supunha - disse sir Joseph em tom afetuoso, sorrindo-lhe. - Permita-me que lhe sirva um pouco de vinho. Apesar disso, eu não vou fazer uma fortuna, desgraçadamente, pela simples razão de que estou totalmente de acordo com os cavalheiros da cidade. Acredito que agem com acerto. Napoleão ainda é um poderoso chefe militar e, ainda que tenha se metido em uma confusão em Moscou, tem muitas probabilidades de se recuperar. Acaba de demostrar em Lucerna o que é capaz de fazer, e Berlim corre um grave perigo neste momento. Temo que faça outra de suas inesperadas e excelentes jogadas e divida os aliados e chegue a destruí-los, como já fez tantas vezes. Ainda tem situados na Alemanha duzentos e cinqüenta mil homens, e novas divisões estão sendo treinadas na França. Por outro lado, sua frota está intacta e tem barcos na desembocadura do Escalda, Brest e Toulon... O senhor sabia, Maturin, que só em Toulon ele tem vinte e um barcos de linha e dez potentes fragatas? Todas as suas embarcações são excelentes, estão bem equipadas e bem tripuladas, e nós lhes fazemos bloqueio com esquadras compostas por barcos velhos que a duras penas podem manter-se em seus postos durante todo o ano. Creia-me, Maturin, a Bolsa é como um barômetro, e posso assegurar-lhe que ainda nos falta muito para fazer antes que Boney{11} seja derrotado.
- Então brindemos por sua derrota - disse Stephen.
- Pela derrota de Boney - disse Blaine e saboreou seu vinho do porto e, alguns momentos depois, acrescentou: - Faz muito pouco que o Primeiro Lorde e eu lamentávamos amargamente sua ausência. Ainda que a zona mediterrânea seja realmente o seu terreno, se estivesse aqui, teríamos lhe pedido que aceitasse realizar uma missão no Báltico, uma missão muito adequada para o senhor. Ali há uma ilha fortificada e provida de um grande número de potentes canhões que se encontra sob o controle de uma brigada catalã a serviço dos franceses; uma brigada que pertencia a uma das grandes guarnições que a Espanha manteve ao longo da costa de Pomerânia até a rebelião. Fizeram com que acreditassem que sua presença na ilha é de vital importância para a independência de sua terra, uma condição necessária para conseguir a autonomia catalã. Não sei que invenções e que mentiras contaram para convencê-los de semelhante mentira, porém, apesar de que seja ilógico e apesar dos acontecimentos históricos, permanecem ali e serão um obstáculo para nós se nossas operações no norte seguirem seu curso provável, pois temos muitas esperanças de nos aliar com o rei de Saxônia... Napoleão não é o único que tem aliados pouco confiáveis. - Depois voltou a referir-se aos catalãos dizendo: - Foram mantidos totalmente isolados, o que é fácil em uma ilha, afinal de contas, ah, ah, ah! Parece que a única coisa que sabem do que ocorre no mundo exterior é o que os franceses lhes dizem. E se um homem de sua inteligência, Maturin, por achar-se distante do palco da guerra, pôde formar uma idéia da situação que, permita-me dizer, é errônea, não me admira que eles acretitem que Napoleão está vencendo em todas as partes e que devolverá a independência de seu país. Tampouco me estranha que estejam decididos a fazer saltar pelos ares seus inimigos, nós, quando passemos entre Memel e Danzig com nossos barcos de guerra e transportes para desembarcar atrás das linhas inimigas, como pensamos em fazer.
- Formam um grupo político coerente, uma só organização? Pertencem a um dos principais movimentos de Catalunha? Quais são seus objetivos com relaçã a Madri?
- O senhor me pegou desprevenido - disse sir Joseph. - Poderia ter-lhe informado todos os detalhes há alguns dias, mas este novo triunfo - dava palmadinhas nos documentos de Johnson - fez esquecer-me dos detalhes. Minha memória já não é o que era.
Terei que consultar os relatórios que estão no escritório. Lembro perfeitamente que o Primeiro Lorde disse que, em situações como esta, cinco minutos de explicações, esclarecimentos e frases persuasivas, ou como o senhor queira chamá-las, poderia conseguir mais do que um ataque de uma poderosa esquadra contra semelhante fortificação e em águas tão perigosas, pois não teria garantia de êxito. Uma batalha nessas condições acarretaria a perda de muitas vidas, barcos e dinheiro, seria como a batalha de Copenhague, ainda que em menor escala e sem contar com o fator surpresa nem com a presença de Nelson. Com cinco minutos de simples explicações se conseguiria que abrissem os olhos e se evitaria uma batalha sangrenta, custosa e de resultado incerto. Evidentemente, muito poucos homens seriam capazes de conseguir isto, o emissário devia ser alguém em quem eles acreditassem e em quem confiassem, e imediatamente seu nome nos veio à mente. O senhor seria a pessoa perfeita. E, baseando-me em seus trabalhos anteriores, estou certo de que não só os convenceria como os induziria a voltar seus canhões contra os franceses.
- Num caso assim, as coisas dependeriam em grande parte dos líderes - disse Stephen.
No movimento autônomo catalão havia muitas tendências, muitas correntes e diferentes organizações, cujos chefes às vezes disputavam entre si. Stephen conhecia quase todos, e alguns inclusive desde a infância. Muitos eram amigos seus e haviam trabalhado com ele, e mesmo que achasse que alguns estavam equivocados, respeitava-os; contudo, havia vários em quem não confiava.
- Sim, sem dúvida - disse Blaine. - Queria... Bem, darei todos os detalhes amanhã tão logo leia os relatórios. Naturalmente, terá todos os dados, mas espero e confio em que só terão valor histórico, e que a missão se resolverá com êxito dentro de uma semana aproximadamente, se já não tiver se resolvido, pois como não contávamos com o senhor e era fundamental agir com celeridade, confiamos ela a Ponsich.
- A Pompeu Ponsich?
Sir Joseph assentiu com a cabeça.
- Estudou a fundo o assunto, examinou toda a informação que tínhamos e, apesar de sua idade, decidiu ir. Disse que estava seguro de que teria êxito.
- Se Pompeu estava certo disso, estou tranqüilo - disse Stephen. - Não podiam haver escolhido melhor.
Pompeu Ponsich era um catalão erudito, poeta e filólogo e também um patriota. Era conhecido em toda Catalunha e respeitado por todos.
- É um alívio ouvir-lhe dizer isso - disse sir Joseph. - Às vezes duvidei que fosse acertado enviar um homem de letras e de certa idade, ainda que fosse um homem de grande valor. Porém, para a pessoa adequada, este assunto é simples, não requer grandes façanhas como as que o senhor realizou a bordo do Leopard e, mais recentemente, em Boston, senão palavras sinceras e argumentos convincentes ditos com certeza e, se for preciso, acompanhados de documentos fornecidos por nós. E Deus sabe que não são poucos os documentos que temos para demostrar que Bonaparte não deseja nada de bom para Catalunha... Nem para nenhum país.
- Alegro-me que o caso esteja em tão boas mãos - disse Stephen. - Ainda que eu teria gostado de ir, estou satisfeito de que tenha encontrado alguém melhor. Além disso, fui convidado para dar uma conferência no Instituto da França no dia dezessete e, a menos que minha presença aqui seja necessária, eu gostaria de dá-la.
- Vai dar uma conferência no Instituto da França? Felicito-lhe sinceramente. E sobre que tema?
- Sobre as espécies extintas da avifauna de Rodríguez. Mas talvez me desvie um pouco do tema e fale dos ratites{12} de Nova Holanda.{13}
- Deve ir, Maturin. Não pensávamos em pedir que fosse para o Mediterrâneo antes da volta de Fanshaw. Deve ir, ainda que só seja porque ali encontrará muitos homens importantes. Dê recordações de minha parte a Cuvier e a Saint-Hilaire. Além disso, isto chega como caído do céu, pois terá a oportunidade de ter contato direto com...
O olhar penetrante de Stephen o fez dar-se conta de que o vinho do porto, o entusiasmo e o zelo profissional estiveram a ponto de fazê-lo dizer uma grave indiscrição, de cometer um terrível erro, e rapidamente tratou de encontrar a forma de sair da situação com dignidade e por fim, vacilante, terminou a frase:
-... Antigos conhecidos.
- Sim, com cientistas que conhecemos há muito tempo - disse Stephen, mantendo ainda aquela olhar. - Sobretudo queria voltar a ver Dupuytren, pois lhe aprecio ainda que aceite Bonaparte como paciente, e tenho desejo de ouvir Covisart falar do ânus artificial e do estetoscópio, esse aparelho tão interessante, e também de adquirir novos conhecimentos científicos.
Apesar de terem mútua estima e confiança, houve um silêncio embaraçoso durante alguns momentos, e por fim Blaine rompeu o silêncio falando num tom completamente diferente.
- Ainda que faça esta viagem por motivos que não levantam suspeitas, não acha que há perigo de que o reconheçam? O senhor lhes fez muito dano, e não seria sensato confiar muito num salvo-conduto. Não há muitos espiões como o senhor, que têm escrúpulos.
- Levei isso em conta isso, mas me parece que na atualidade o perigo é insignificante. Os únicos franceses que realmente conheciam meu nome e meu aspecto físico eram Dubreuil e Pontet-Canet, e, como o senhor sabe, os dois estão mortos. Seus subordinados, que poderiam ter alguns dados sobre minha identidade, ainda se encontram nos Estados Unidos, e mesmo no improvável caso de que lhes tenham ordenado voltar imediatamente, o bergantim em que regressamos fez uma viagem tão rápida que provavelmente eles não chegarão à França até várias semanas depois de que eu regresse para a Inglaterra.
- Isso é certo - disse Blaine.
- Além disso - disse Stephen, - considero que esta viagem é também uma espécie de seguro, porque se alguém suspeita de mim, suas suspeitas se desvanecerão quando eu demostrar publicamente que sou um cientista (acho que posso gabar-me de que ninguém na Europa conhece melhor a anatomia do Pezophaps solitarius) e que não tenho má intenção, pois fui ao encontro do inimigo, e me meti voluntariamente na boca do leão.
- Isso também é certo - disse sir Joseph. - Não há dúvida de que seu estudo sobre o solitário dará muito o que falar e deixará claro que o senhor é uma autoridade nesse tema. Mas queria que regressasse assim que fosse possível, antes de que algum agente dos Serviços Secretos voltasse dos Estados Unidos. Suponho que quererá viajar sem demora. Faz falta agir com rapidez. Quer que eu lhe consiga uma licença oficial e um meio de transporte? No dia doze zarpa um barco com prisioneiros para trocar que poderia servir-lhe.
- Sim, por favor - respondeu Stephen. - E já que o senhor é tão amável, permita-me fazer-lhe outros dois petidos.
- Escuto-lhe com agrado - disse sir Joseph. - Nos deixou fazer muito poucas coisas pelo senhor e, contudo, nós lhe devemos muito pelo que conseguiu no Leopard e em Boston.
Stephen fez uma inclinação de cabeça, hesitou por um momento e disse:
- A primeira concerne à senhora Villiers. Como o senhor saberá por meu relatório, graças a ela consegui estes documentos, mas ela ignora minha conexão com o departamento. Por razões óbvias, acompanhava-me no bergantim, mas devido a teoricamente ser uma inimiga, foi detida quando chegamos.
- Ah, sim? - disse sir Joseph.
- Da última vez que falamos dela, como recordará, o senhor suspeitava que tinha relação com a senhora Wogan - disse Stephen intencionalmente.
- Lembro - disse sir Joseph. - E também recordo da dama. Tive o prazer de conhecê-la na casa de lady Jersey, e voltei a vê-la no Pavilion. Mas se não me equivoco, o senhor teve a mesma suspeita que eu quando ela partiu de improviso para os Estados Unidos.
- Foi, mas estou muito contente de poder dizer que estava completamente equivocado. Manteve sua lealdade a este país apesar de sua relação passageira com o senhor Johnson e de ter assinado uma série de documentos. Dou fé disso e peço que seja liberada.
- Muito bem - disse sir Joseph, escrevendo em um pedaço de papel. - Ocuparei-me pessoalmente do caso. Não haverá nenhum problema. A dama pode ficar tranqüila.
Fez uma pausa, porém, ao perceber que Stephen não tinha intenção de acrescentar nada mais, continuou:
- O senhor falou de um segundo pedido, né?
- Sim. É algo estritamente pessoal, não tem nada a ver com o departamento. Um amigo meu, um oficial naval que se encontrava em terra ao término de uma missão e em espera da seguinte, por dizê-lo assim, entrou num terreno pantanoso. Depois ficou ausente durante muito tempo e, ao voltar, se enterrou quase até a cabeça, e ficará totalmente sepultado a menos que um perito legal lhe indique como sair dali. Peço que me diga o nome de algum advogado eminente que exerça sua profissão atualmente.
- Poderia dizer-me que tipo de problema tem seu amigo? Isso me permitirá saber que tipo de conselheiro legal devo recomendar-lhe. No caso de uma disputa por um butim, o mais adequado seria Harding, certamente, a menos que já houvesse aceitado a representação da parte contrária. No caso de uma causa criminal ou matrimonial, não há dúvida de que deveria consultar Hicks.
- Explicarei o melhor que possa qual é o problema. Meu amigo caiu nas mãos de um projetista, um homem menos ambicioso que os típicos fraudadores, porque lhe assegurou que poderia converter em prata e não em ouro o chumbo das minas abandonadas que há em suas terras. Meu amigo simpatizou com esse homem e seu projeto lhe encantou, e foi tão ingênuo que assinou uma série de documentos sem lê-los.
- Assinou documentos sem lê-los? - inquiriu sir Joseph.
- Isso mesmo. Haviam lhe dado o comando de um barco e parece que não queria desperdiçar a maré.
- Meu Deus! Mas isso não deveria surpreender-me, porque a estupidez dos marinheiros quando estão em terra risca no incrível, e hei visto inumeráveis exemplos disso. O hei notado em marinheiros de todos as classes e inclusive em homens de grande valor que são capazes de estar ao comando de uma grande frota e de fazer negociações com grande habilidade. Precisamente na semana passada um destacado oficial que conheço recebeu seu meio pagamento anual e, com essa soma em forma de letras negociáveis metida nos bolsos, entrou num café. Ali manteve conversa com um estranho, e este lhe propôs um sistema infalível para multiplicar seu capital por 7,25 sem correr nenhum risco. Então o oficial lhe entregou as letras e, até algum tempo depois do estranho ter partido, não percebeu que não sabia onde ele vivia e nem sequer conhecia seu nome. Porém, voltando ao seu amigo, ele sabe que tipo de documentos assinou?
- Teme que um dos documentos seja uma procuração. Contudo, ele já havia dado uma para sua esposa. Ao regressar se encontrou com que o projetista, o taumaturgo, havia realizado enormes gastos e havia feito obras, fazendo inclusive o tradicional canal.
- Ah, sim, o canal, é claro! - exclamou sir Joseph com um olhar expressivo.
- Seria inútil fingir que não estou falando de Jack Aubrey - disse Stephen. - E suponho que viu a monstruosa vala que foi escavada em Hampshire.
- Sim, vi, sem dúvida - disse sir Joseph. - Com certeza causou muitos comentários.
- E isso não é tudo. Esse réptil, Kimber, porque Kimber é o nome do projetista, agora se esconde atrás de uma nuvem de sócios, isto é, de cúmplices para os quais transferiu seus ambíguos poderes. Alguns são advogados sem escrúpulos que ameaçaram processar meu amigo. Estou muito preocupado por Aubrey. Gosto muito dele, e também de sua esposa, e, como o senhor sabe, eu lhe sou muito agradecido.
- Se não me recordo mal, o senhor tem navegado quase sempre com ele.
- Desde que me fiz ao mar pela primeira vez. Mas há algo mais: ele me resgatou das garras dos franceses quando fui aprisionado em Mahón. Levou a cabo uma brilhante operação correndo um grande risco.
- Não há dúvida de que se merece toda sua gratidão - disse sir Joseph. - Não conheço ao cavalheiro, ainda que o senhor o tenha mencionado amiúde, mas sei que tem boa reputação, que é um capitão hábil, determinado e combativo. Lorde Keith tem um grande conceito dele. Além disso, tem tanta sorte no mar que na Armada lhe chamam de Jack Aubrey o Afortunado. Deve de haver conseguido muitíssimo dinheiro na Ilha da França e Reunião. Como é possível que um homem cuja inteligência lhe permite levar a cabo com êxito uma longa e difícil operação esbanje o dinheiro que ganhou com tanto esforço, embarque sem pensar em projetos quiméricos, firme documentos sem lê-los e confie cegamente em seus concidadãos? Isso é algo que escapa de minha compreensão.
Sir Joseph moveu a cabeça de um lado para o outro tratando de entender como uma pessoa podia confiar em seus concidadãos sem ter provas de sua integridade, e ainda sem entender, continuou:
- Talvez seja mais afortunado no mar do que em terra. E, naturalmente, não é afortunado por ter o pai que tem. O senhor conhece o general Aubrey, Maturin?
- Sim, por desgraça - disse Stephen.
- Agora que abraçou a causa radical, está pior do que nunca. Ele e esses homens de má reputação que tem por amigos são um incômodo para todos no ministério, e depois de seu discurso em Spitalfields, todos duvidam que seja acertado dar o comando de um barco a seu filho. Por certo que a Acasta, que havia sido designada ao capitão Aubrey, foi posta sob o comando de outro oficial. E é que, como disse senhor Wray, há muitos oficiais de mérito desempregados cuja nomeação reforçaria a posição do Governo. E o mesmo ocorre com as honras que vão conferir-lhe. Iam propor que lhe concedesse o título de cavalheiro, ou inclusive o de barão, por ter afundado o Waakzaamheid quando estava ao comando do Leopard, mas temo que não lhe concederão nada. Se o senhor aprecia a Aubrey, por favor, diga-lhe que mantenha o seu pai calado o maior tempo possível, se puder. Mas isso não vem ao caso. Agora nosso objetivo é escolher um advogado que evite que o capitão Aubrey sofra as consequências de sua insensatez. Deve ser um homem perspicaz, acostumado a tratar com pilantras e muito duro...
Sir Joseph foi trazendo para sua mente um atrás de outro os nomes dos melhores advogados da cidade e enquanto isso, com voz pastosa e grave, cantarolava: Coll'astuzia, coll'arguzia, col giudizio, col criterio… con un equivoco, con un sinónimo, qualche garbuglio si troverà.
- Sim - disse por fim. - Acho que encontrei o nosso Bartolo londrino, o advogado mais hábil de todos. Se chama Wilbraham Skinner e vive no Lincoln's Inn.
- Agradeço muito, sir Joseph - disse Stephen, levantando-se.
- Gostaria de jantar comigo amanhã? Convidarei a Craddock e a Erskine. Depois poderíamos ir ao Covent Garden para ver Cherubino. Atua uma jovem de excelente beleza e uma voz angelical.
Stephen disse que, infelismente, devia declinar do convite, pois tinha que pegar a carruagem de Holyhead porque ia à Irlanda para ocupar-se de alguns negócios. E sir Joseph, ao comprovar a firmeza de sua decisão, disse:
- Mandarei buscar esses documentos antes que parta. Onde se hospeda?
- No Grapes, no distrito de Savoy.
- Em sua antiga guarida - disse sir Joseph, sorrindo. - Antes das onze receberá a licença para viajar para Calais e o certificado de aduana firmado pelo Comissionado de transportes. Quer que lhe acompanhem um par de serventes?
- Sim, por favor - disse Stephen, encaminhando-se para a porta. Ao chegar a ela se deteve e acrescentou: - talvez leve a senhora Villiers a Paris. É conveniente que o faça por determinadas razões. Acha que haverá algum impedimento para que viaje?
- Absolutamente nenhum - disse sir Joseph. - Absolutamente nenhum por nossa parte e provavelmente nenhum pela outra, pois uma dama com nacionalidade norte-americana sempre será bem recebida em Paris. Deixarei um espaço em branco no certificado de aduana para que inclua os serventes e a sua possível acompanhante e para que escreva o que queira.
- Muitíssimo obrigado, meu estimado Blaine.
- Não há de que, não há de que. Desejo-lhe uma boa viagem, querido Maturin, e lhe rogo encarecidamente que cumprimente por mim os Cuvier.
CAPÍTULO 5
- Oh, Maturin, como estou contente de que tenha voltado! - exclamou Diana, atravessando o salão da casa da senhora Fortescue e pegando-lhe as mãos. - Teve uma boa viagem? Venha para o jardim e conte-me como foi... A senhora Fortescue descerá de um momento para outro com sua odiosa prole. Não, como está muito cansado. É melhor que nos sentemos.
Então, indicando um sofá, perguntou:
- Bem, querido, como foi a viagem?
- Como costumam ser as viagens deste tipo - respondeu Stephen. - Às vezes com muita pressa, às vezes com muito atraso, e no final se descobre que todas as coisas poderiam ter sido resolvidas da mesma forma ou até melhor pelo correio. Deixei minha escova de dentes em Tuam ou Athenry e um estupendo par de sapatilhas de riscas em Dublim, e na viagem de regresso, um barco corsário norte-americano nos perseguiu até Holyhead, e todos trememos dos pés à cabeça.
Acostumara-se com a Diana atual e só lamentava que não fosse como antes quando estava sozinhos. Estavam compenetrados e ele se encontrava a gosto sentado ali do seu lado. Diana lhe demonstrara afeto que eram como boas-vindas ao lar e ele teve de novo a sensação de que aquela situação se parecia com o matrimônio. Tinha bom aspecto e parecia estar bem fisicamente. Sua pele, como costumava ocorrer durante a gravidez, estava brilhante, e era evidente que não tinha prisão de ventre, um sofrimento freqüente nesse estado. Mas uma pessoa observadora podia perceber também que atrás da satisfação e da alegria de Diana havia algo que a incomodava, e muito. Não era possível determinar o motivo de seu desgosto, mas os sinais de que algo lhe incomodava e, sobretudo, de que era recente, eram inequívocos.
Se notou claramente qual era o motivo alguns momentos depois, quando a senhora Fortescue apareceu com as crianças. Eram cinco, e para Stephen não lhe pareceram mais odiosas que outras criaturas senão crianças comuns, crianças gorduchas e ignorantes com resfriado e com o hábito de olhar fixamente para os outros e de meter os dedos na boca, mas não de todo más. Por outro lado, sua mãe era uma dessas esposas de oficiais navais que amiúde o fizeram refletir sobre a profissão de marinheiro. Era uma mulher corpulenta e de pele rugosa, uma mulher sem atrativos e de aparência varonil, e ainda que se enfeitasse com muitas de fitas, grampos e broches, suas maneiras eram rudes e faziam seus adornos parecerem incongruentes. Além disso, empregava muitas expressões marinheiras, inclusive mais que a maioria dos marinheiros. Depois de um tempo Stephen notou que sua atitude para com Diana era hostil, ainda que ocultasse, e que lhe temia. A senhora Fortescue não lhe convidou para tomar parte na conversa, pois, como dava muita importância à hierarquia naval e a sua condição de esposa de um capitão de navio com antiguidade, quando soube que ele era um cirurgião, pensara que tinha muito pouco ou talvez nada para dizer-lhe. Por outro lado, ele quase nunca cuidava sua aparência e agora que chegara de uma longa viagem estava pior vestido do que nunca e, além disso, sujo, despenteado e sem se barbear.
Passou a pensar em Paris e no Pezophaps solitarius e prestou atenção à silenciosa batalha que dois pequenos Fortescue mantinham num canto junto a um jarro colocado num pedestal. Lutavam por um objeto que não podia distinguir, possivelmente um lenço, e suas irmãs lhes animavam. Ao mesmo tempo, a senhora Fortescue e Diana discutiam civilizadamente sobre algo que não havia podido ouvir. Pensou então que incluiria alguns comentários sobre os ratites de Nova Holanda... Viu que a disputa chegara ao seu fim, que Diana parecia haver ganhado e que a senhora Fortescue não desejava seguir enfrentando-se diretamente com ela e planejara molestá-la atacando a ele.
- E diga-me, senhor, é certo que na Armada prussiana os cirurgiões têm que barbear os oficiais? - perguntou, olhando-lhe compassivamente.
- Absolutamente certo, senhora - respondeu Stephen. - E na nossa as coisas são ainda piores. Meu Deus, quantas vezes tive que limpar-lhe os sapatos do capitão Aubrey!
A senhora Fortescue avermelhou de raiva, mas antes de que pudesse responder, o capitão Fortescue entrou no salão, e Stephen observou como ela o olhou com carinho e depois olhou para Diana com uma mistura de angústia e desprezo. Apenas alguns segundos depois voltou a sentir raiva (e seu avermelhamento se prolongou) porque o vaso caiu e quebrou. É que um dos meninos havia ficado petrificado ao ver seu pai entrar e havia soltado o objeto, e o outro se caíra para um lado. O salão se encheu de ruído, acusações, negações e descaradas delações, e quando tiraram dali os meninos gritando para dar-lhes alguns açoites, Stephen e Diana foram para o jardim.
- Como você está, querida? - inquiriu ele enquanto passeavam entre os lírios do capitão, que eram seu orgulho e sua alegria.
- Muito bem, Stephen, obrigada - respondeu ela. - Eu lhe obedeci em tudo. Fui muito boa. Só tomei um copo de vinho na hora de comer, apesar de que aqui sempre há muita gente e isso anima a beber, e não voltei a provar o tabaco, nem sequer o rapé. Stephen, por favor, poderia acender um charuto e me deixar fumar um pouco agora que não nos vêem da casa?
- Poderia - respondeu Stephen, e depois de fazer mais algumas perguntas sobre seu estado físico, perguntou: - Hás visto a Jack?
- Oh, sim! Vinha com Sophie todos os dias, exceto quando estava na cidade, até que teve que ir embora para Dorset porque seu pai adoeceu. Desde então Sophie tem vindo sempre que pode... É uma criatura encantadora, sabe, Stephen? E como as duas tinhamos longe nossos pares, nos sentávamos a falar como duas cotorras. A propósito, por que teve que viajar? Você não me disse.
Era estranho que Stephen pudesse responder uma pergunta como essa com absoluta sinceridade, mas agora podia fazê-lo e sentiu uma grande satisfação ao responder.
- Fui determinar formalmente os limites de uma propriedade na região de Joyce. A propriedade era de meu primo Kevin e foi confiscada na rebelião de 1798, mas devido a ele ter morrido lutando contra Bonaparte nas filas do exército austríaco, será restituída. Darei a boa notícia ao seu pai quando o vir na França. Também tenho uma boa notícia para você, Villiers.
Procurou em seus bolsos e por fim acrescentou:
- Aqui está a ordem de liberdade. É condicional, pois só pode viver em Londres e nos condados adjacentes, mas não acho que gostaria de viver em outros lugares. Não se alegra, Villiers?
- Oh, sim, alegra-me muito, Stephen! Agradeço que tenhas se preocupado tanto. Agradeço-lhe infinitamente, querido. A idéia de sair desta repugnante casa cheia de crianças repelentes... Por Deus, Stephen, acenda um charuto.
Aspirou lentamente a fumaça e, ao expeli-la, ficou pálida e se recostou em seu ombro.
- Já não estou acostumada com isto - disse, virando para ele seu rosto macilento, e depois acrescentou: - Não posso viver na Inglaterra, Stephen. Já é duro ter que suportar as fofocas sobre o que ocorreu na Índia, assim como será a situação quando começarem a chegar os comentários de Halifax? Conheço muitas pessoas. Conheço a vintenas aqui e a centenas na cidade. Já é bastante difícil poder manter a cabeça erguida em Hampshire, portanto imagine como será em Londres dentro de poucas semanas. Dirão: "olha a Diana Villiers, com a tripa grande e sem marido". Você sabe como o mundo é pequeno... Tenho ótimos, amigos e conhecidos em cada canto e não poderia ir ao teatro nem à ópera nem a nenhuma loja decente sem encontrar alguém conhecido. Por outro lado, acredita que poderia ficar encerrada em uma fazenda isolada para não encontrar-me com nenhum ser civilizado, nem sequer com o pastor, por medo de que me reconhecessem? Ou talvez em uma ruela do condado de Surrey? A melancolia terminaria deixando-me louca.
- Realmente, uma pessoa tão sociável como você precisa de companhia.
Isso era verdade. Diana languideceria se carecesse de companhia.
- Apesar disso - continuou, - deve levar em conta que uma cerimônia estritamente nominal acabaria com esses inconvenientes. Como a senhora Maturin poderia viver em uma zona decente da cidade e receber a visita de seus amigos.
- Stephen, prefiro ir para o inferno antes de casar-me com um homem quando espero um filho de outro - disse em tom mais enérgico. - Não me ajudou a desfazer-me da criatura quando lhe pedi, e eu prometi não fazer nada por minha conta. Eu respeitei seus desejos, respeite você os meus, querido Stephen. Por favor, querido Stephen, leve-me para Paris.
- Não acha que poderia dar no mesmo viver na França? Poderia viver tranqüilamente num país inimigo?
- Oh, nunca ninguém considerou Paris um território inimigo! Estamos em guerra com Napoleão, não com Paris. Fixa-te quanta gente foi ali tão logo começou o período de paz. Eu mesma estive ali com meu pobre primo Lowndes, aquele que se acreditava ser uma chaleira, lembra?, porque pensávamos que um hipnotizador poderia fazer algo por ele, e Paris estava então cheia de ingleses. Isso foi justamente antes de que nos conhecêssemos. Além disso, tenho muitos conhecidos na cidade, sobretudo émigrés que regressaram, e também tenho dúzias de amigos que conheci antes da guerra, quando vivia ali com meu pai. Não teria inconveniente em viver em Paris porque é um lugar no qual ninguém sabe exatamente o que se passou e nem se importam. Sou viúva, e em Paris não teria importância o fato de que tivesse uma aventura. Ali o ambiente é muito diferente. Além disso, a guerra terminará dentro de pouco e a França voltará a ser como antes porque o Rei regressará... D'Avaray me o apresentou em Hartwell, sabia? Peço que me leve contigo, Stephen.
- Muito bem - disse Stephen. - Virei pegá-la às dez e meia de amanhã. Aí vem o capitão Fortescue. Como está, senhor?
- Sinto muito que tenha havido essa tremendo confusão faz um momento, mas me parece que isto é inseparável da vida familiar - disse o capitão Fortescue. - E posto que é nosso dever multiplicar-nos, acho que temos que suportá-lo. Vejo que estão contemplando meus lírios. Não são esplêndidos? Esta espécie deve lhe interessar, doutor. É muito rara. Foi trazida de Cantão por um sobrinho meu que é tripulante da frota da Companhia das Índias.
Então, semicerrando os olhos, inclinou-se para o lírio, no qual havia vários insetos vermelhos copulando para multiplicar-se, e disse:
- Oh, Meu Deus, já estão aqui outra vez! Malditos vermes franceses! Também me parece que isto é inseparável da jardinagem. Desculpem-me, tenho que ir pegar o pulverizador.
Paris conservava todo o seu encanto e seu esplendor. Sob o luminoso céu se erguiam árvores cheias de folhas, o Sena estava azul e as ruas tinham um grande colorido. Boa parte desse colorido se devia à presença de inumeráveis uniformes, os uniformes do inimigo. Mas havia uma grande diferença entre o que realmente usavam as tropas napoleônicas e seus aliados nos úmidos e lodosos campos de batalha e esses vistosos uniformes que deleitavam a vista dos parisienses e que pareciam ter tão pouca relação com a guerra que não provocavam uma atitude hostil. Na verdade, a cidade parecia um imenso palco muito bem iluminado cheio de excelentes atores com uniformes de gala, alguns deles montados em magníficos cavalos. Diana contribuia para o grande colorido com seu vestido azul como a flor da vincapervinca - que havia comprado na loja de madame Delaunay, - seu chamativo chapéu - que havia comprado à pouca distância da Place Vendôme - e um xale de casimira preto, e sua roupa recebia muitos olhares de admiração de cavalheiros que usavam capacetes de latão adornados com crinas de cavalo ou gorros de pele de urso ou curiosos chapéus de copa quadrada ou redonda com fitas de cor escarlata, carmesim ou vermelho cereja, peitorais de prata, sabres e esporas brilhantes, mochilas e casacas curtas com fitas douradas num ombro. Aquelas esplêndidas figuras de botas reluzentes e bigode estirado para os lados lhe sorriam ou cravavam seus olhos nela retorcendo o bigode quando Stephen e ela passavam ao seu lado em seu percurso pela cidade para mostrar-se mutuamente os lugares onde haviam se hospedado, haviam vivido e haviam jogado.
- Aqui aprendi a jogar amarelinha com as meninas de Penfao - disse Diana ao chegar a Île des Cygnes. - Costumávamos traçar as linhas desde a balaustrada até este arbusto. Meu Deus, quanto há crescido! Quase oculta por completo a última praça, a que chamávamos de céu. Stephen, como se chama o jogo da amarelinha em inglês?
- Não sei - respondeu depois de pensaro por um momento.
Para não levantar suspeitas, falavam em francês desde que haviam descido do barco que ia de um lado para outro do Canal, com discrição, a intervalos freqüentes e que deliberadamente era ignorado pelas autoridades e pelas Armadas de ambas partes, um barco que não estava destinado oficialmente a transportar prisioneiros para ser trocados (Bonaparte não trocava prisioneiros) e tampouco era neutro, mas que amiúde levava informes sobre os prisioneiros de guerra e transportava negociadores semi-oficiais e destacados homens de letras e naturalistas. E quando o barco navegava em direção a Dover, levava bonecas com formosos vestidos sem os quais as mulheres inglesas não saberíam o que estava na moda. Falavam em francês desde que haviam desembarcado, e às vezes lhes escapavam algumas palavras inglesas, mas eram palavras muito pouco usadas.
Cruzaram a ponte e contemplaram um edifício alto e estreito da rua Gît-le-Coeur em cujo sótão Stephen havia vivido quando era estudante.
- Dupuytren vivia justamente debaixo - disse. - Costumávamos compartilhar os cadáveres... E agora, minha querida, se não está muito cansada, gostaria levá-la ao faubourg Saint - Germain. Ali vive um amigo meu, Adhémar da Mothe, em um palacete vazio, e acredito que você gostaria de viver com ele. Ele ficará encantado e lhe convidará para ficar em um dos pisos superiores. Além disso, suas tias poderão recomendar criadas de confiança.
- A madame da Mothe é amável?
- Não existe nenhuma madame da Mothe, e isso é o importante, Villiers. Adhémar não pode casar. Tentou há muito tempo, mas se saiu mal. A pobre senhora obteve a anulação do matrimônio em Roma, porém, por desgraça, teve trabalho para consegui-la inutilmente, pois foi levada à guilhotina cinco minutos depois de lhe entregarem. Sempre pinta as virgens mártires com uma palma na mão, sabia? Ele é um homem muito educado e vive para a música e a pintura. Gosta das mulheres, das mulheres bonitas que sabem se vestir com elegância, mas só como amigas. Acho que simpatizará com ele.
- Se você o acha simpático, eu também acharei - disse Diana com pouca convicção.
- Ele a manterá muito entretida, pois conhece pessoas de todo o tipo e de todos os gostos em Paris. Ainda é muito rico, e mesmo que não tenha nenhum cargo oficial e nem se ocupe de assuntos políticos, forma uma espécie de sociedade secreta muito parecida à franco-maçonaria junto com uma série de homens de gostos afins, uma sociedade cujos membros se conhecem e às vezes podem encontrar ajuda onde outros a buscaram em vão. Devido a isso pôde salvar a vida em 1794, quando a maior parte de sua família foi levada ao cadafalso. Por certo que essa é uma das razões pelas quais sua casa está vazia. No improvável caso de que tenha dificuldade ou alguém lhe moleste, sua proteção será inestimável. Digo isto, Villiers, porque sei que posso contar com sua discrição. Não seria conveniente que ele note que você sabe. Ele é muito perspicaz e pensa que ninguém pode descobri-lo. Além disso, tem muito medo do escândalo, e para enganar o mundo confessa amar apaixonadamente a madame Duroc, a casta esposa do banqueiro. O que foi, Villiers? Por que parou?
- Queria mostrar a casa onde vivi quando era menina.
- Mas é o hotel d'Arpajon! - exclamou Stephen, olhando atentamente o edifício que delimitava um grande pátio por três lados. - Sabia que falava muito bem o francês, mas ignorava que o havia aprendido quando vivia no hotel d'Arpajon... No hotel d'Arpajon!
- Talvez nunca tive a ocasião... Talvez nunca tenha me perguntado... Você não faz muitas perguntas, Stephen.
- Nunca acreditei que perguntar e responder fossem uma boa forma de conversar - disse ele.
- Então contarei tudo sem que me pergunte. Vivemos aqui durante vários anos. Meu pai saído da Inglaterra por causa de suas dívidas, sabe? Para mim pareceu uma eternidade, ainda que, só foram três anos. Tinha oito anos quando vim e onze quando fomos. Ele gostava muito de Paris, e eu também. Essa era minha janela, a terceira a partir da esquina - a assinalou. - Ocupávamos toda a ala esquerda. Mas Stephen, o que tem de raro que tenha aprendido francês quando vivia no hotel d'Arpajon?
- É que meu primo Fitzgerald, o coronel Fitzgerald, o pai de Kevin, também vivia aqui. É o cavalheiro que vamos ver amanhã. Porém, pensando bem, não é tão raro. Seu pai era um militar e meu primo também, e os militares tendem a juntar-se e é normal que alguns ocupem as casas que outros deixam.
- Talvez o tenha visto alguma vez, pois o meu pai era visitado por muitos oficiais ingleses. Em geral, usavam uniforme, e cheguei a conhecer a todos.
- É provável que o tenha visto. É um homem alto, com um só braço e com mais cicatrizes no rosto que Jack Aubrey. Tem o rosto tão longo que poderia confundir-se com um cavalo se não fosse pela falta de um braço. Mas não usava uniforme inglês porque pertencia à Brigada Irlandesa, que estava ao serviço do rei da França. Pertencia ao regimento de Dillon.
- Lembro de ter visto a alguns e recordo de seu uniforme, mas todos tinham os dois braços. O que lhe ocorreu?
- Estava muito velho e enfermo para ir a Coblenza com os outros quando a brigada foi dissolvida, pois, como recordará, os irlandeses não lutaram contra o Rei. Então se retirou para a Normandia, e desde então vive ali dedicado à criação de cavalos. Acredito que se simpatizará com ele.
Nesse momento vários carroças e carros com peças de artilharia desceram pela rua Grenelle.
- Espero que esses não sejam seus cavalos - sussurrou ao ouvido de Diana entre o ruído ensurdecedor das rodas e continuaram andando. - Odeia tanto ao sangrento tirano como eu. Estou certo de que simpatizará com ele. Como vê, dividi os dias de sua permanência aqui sem lhe dizer nada. Na cidade ficarás no hotel da Mothe, e além de ver seus antigos amigos, sempre terá algo para fazer, e, por outro lado, Adhémar dá um concerto a cada semana. Quando se cansar da cidade, poderá ir à casa de campo do coronel, que está rodeada de vários acres de bosque com ninfas e pastores. E para o parto pedi a colaboração de Baudelocque, que, indubtavelmente, é o melhor accoucheur da Europa. Somos velhos amigos, e lhe fará uma visita assim que tenha se instalado. Não poderia estar em melhores mãos. Sei muito pouco de obstetrícia e amiúde me preocupo sem nenhum motivo.
Aquele não era um tema agradável, e o brilho dos olhos de Diana, que aparecera por causa da alegria de recuperar a liberdade, a emoção de voltar a Paris e a satisfação de usar vestidos novos, apagou-se.
- É uma curiosa coincidência que ambos tenhamos vivido no hotel d'Arpajon, né? - disse ela.
- Sim, muito curiosa - disse Stephen. - Na verdade, poderia dizer que a vida está cheia de curiosas coincidências, como, por exemplo, que justo no momento em que vamos cruzar a rua passe esse carro acompanhado de outros seis (algo que era muito pouco provável mas que ocorreu) e que esse rosto lampinho seja o de monsieur de Talleyrand-Périgord.
Stephen tirou o chapéu e o homem respondeu ao seu cumprimento com uma inclinação de cabeça.
- E poderia dar-se a rara coincidência de que ao entrar no pátio da casa de Mothe, que está justamente aqui, na nossa direita, um comerciante entre em seu escritório em Estocolmo ou Jack Aubrey monte em seu cavalo para seguir a pista da raposa. Bem, pensando bem, é improvável que Jack possa seguir a pista da inocente raposa nesta época do ano, mas a idéia é o que conta. Poderia objetar que a maioria da coincidências passam desapercebidas, o que é absolutamente certo, mas elas existem. Por exemplo, agora que levanto este batente, um homem exala o último suspiro na China.
Jack não estava seguindo a pista da raposa, mas estava montado numa égua, a robusta égua cinza de seu pai, na qual iria a Blandford para pegar a carruagem que o levaria até sua casa. O geral Aubrey apareceu flanqueado por dois homens barrigudos e com o rosto avermelhado, enquanto outros os olhavam distraídos da sala de bilhar.
- Ainda não se foi, Jack? - perguntou. - Deve se apressar. Adeus. E procure não rachar a boca da égua.
O general disse isso porque nunca tivera uma boa opinião da habilidade de seu filho como jóquei.
- Jones, Brown, vamos, temos que voltar ao trabalho! - disse em tom urgente, e um momento depois, sem voltar-se de todo, acrescentou: - Dê um abraço de meu... Dê um abraço de meu em sua mulher e em seus filhos.
A senhora Aubrey, a madrastra de Jack, não apareceu ali. O general a havia tirado de uma vacaria ao casar-se com ela, e a vivaz jovem jurara que depois de converter-se em uma dama não se levantaria nunca antes do meio-dia, e pelo menos esse juramento havia cumprido religiosamente.
Jack cavalgou sem olhar para trás. Sentia uma profunda tristeza, mas a causa não era a doença de seu pai, pois o cavalheiro se recuperara tão rapidamente como adoecera e ainda conservava todo seu vigor; a causa era o estranho olhar de seu pai, um olhar que refletia uma mistura de astúcia e malícia, e seus companheiros. Tinham relação com a Cidade ou eram políticos ou ambas as coisas, e apesar de não saber exatamente do que tramavam, era óbvio que o assunto estava relacionado com o dinheiro, pois falavam de bônus do Estado, interesses e ações da Companhia das Índias, e ainda que ele não houvesse tido contato com investidores recentemente, desconfiara deles. A vila Woolcombe nunca destacara-se muito por sua elegância, e ainda menos depois da morte da primeira senhora Aubrey, a mãe de Jack. Os amigos do general eram libertinos, bebedores e jogadores - as mais precavidas senhoras do povoado não mandavam suas filhas para servir na casa, - mas Jack nunca vira ali a ninguém como Jones nem como Brown. Não somente lhe pareciam odiosas suas idéias políticas, como também eles mesmos por serem presunsosos, escandalosos e incômodos. Desconheciam o país e se comportavam com excessiva familiaridade, como ele nunca vira ninguém comportar-se em sua casa. Alguns dos políticos pareciam amar a humanidade, mas não apreciavam nem tratavam bem seus cavalos, eram cruéis com seus cachorros e grosseiros com seus serventes, e havia algo em sua voz e em sua roupa que o desagradava, ainda que não podia definir. Não duvidava que o general se beneficiara de sua associação com eles, pois fazia anos que não lhe pedia dinheiro emprestado e, além disso, havia iniciado uma ampla reforma na casa. Talvez fosse isso o que molestava mais a Jack. A casa onde nascera, que fora construída duzentos anos atrás, era tosca e às vezes chamativa porque tinha a fachada de tijolo vermelho e adornada com um grande número de empenas e coroas de louro e tinha altas chaminés em espiral, mas nenhum Aubrey desde o tempo de James tentara dar-lhe um estilo palaciano nem sequer mudar seu estilo arquitetônico por outro, e a casa se conservara perfeitamente. Mas agora chamava de novo a atenção, pois lhe haviam acrescentado falsos torreões e incongruentes janelas de guilhotina, o que fazia pensar que o general se contagiara da vulgaridade de seus novos amigos. Dentro era ainda pior, já que o velho e escuro revestimento de madeira, que, indubtavelmente, não era conveniente, mas que sempre estivera ali, fora substituído por papel pintado e espelhos dourados. Inclusive o seu quarto desaparecera e só se salvara a biblioteca - que não era utilizada - com suas solenes filas de livros sem abrir e seu elegante teto de gesso talhado. Jack havia passado várias horas ali folheando, entre outros livros, a primeira edição de uma obra de Shakespeare, um livro em folha que um Jack Aubrey anterior a ele pedira emprestado em 1623 e que nunca fora lido nem devolvido. Mas provavelmente a biblioteca também estava condenada, pois parecia que a intenção era fazer uma casa falsa, antiga por fora e ultramoderna por dentro. Ao chegar ao alto da colina, de onde sempre se virava para olhar pela última vez sua casa (Woolcombe estava situada em um úmido vale), dirigiu o olhar para o outro lado, para Woolhampton.
Mas ali também encontrou tristeza. Desceu até o povoado e passou em frente à escola aonde estudara quando era criança, a escola na qual aprendera a amar, além de poucas coisas mais, pois naquele tempo a mestra propietária da escola tinha como ajudante uma sobrinha, uma jovem muito bonita mas com tantas sardas como um tordo, e Jack menino se apaixonara perdidamente por ela e a seguia como um cachorro e lhe levava fruta roubada. Ela ficara ali como sucessora de sua tia e nesse momento estava na porta rodeada de seus alunos. Agora era uma sorridente e ingênua solteirona, mas ainda estava cheia de sardas, e tinha o cabelo mal pintado e um vestido curto. Murchara com os anos, mas continuava jovial. Perguntou a Jack pelo general e lhe recriminou por não ir tomar o chá com ela e que isso lhe parecia monstruoso, mas que perdoaria dessa vez, e acrescentou que perdoaria qualquer coisa dos simpáticos marinheiros.
Jack sentiu uma profunda tristeza. Dobrou para a direita e conduziu o cavalo por um caminho pouco freqüentado que passava ao lado do celeiro de Bulwer e depois atravessou campos e caminhos até chegar a Blandford, um lugar no coração da campina rodeado de campos com cultivos idênticos e de plantações de feno cortados nas quais só se viam lebres e perdizes, uma terra que ele conhecera criança. Não tinha tendência à introspecção e, além disso, seu modo de vida não deixava muito tempo para o exame de consciência, mas nesta ocasião, uma infinidade de tristes pensamentos, relacionados com as mudanças, a decadência e a deterioração do homem e com a velhice, a decrepitude e a morte, perseguiram-no até que subiu à carruagem e persistiram durante boa parte do caminho. "Devo estar envelhecendo", pensou enquanto estirava as pernas e as colocava obliquamente na carruagem. "Deve ser isso, porque me senti muito jovem quando estive com aquela mulher em Halifax e essa é a excessão que confirma a regra". Não havia pensado nela há muito tempo e demorou alguns momentos para recordar seu nome, mas recordou imediatamente a paixão de ambos em seus encontros, que se repetiram cinco vezes. E ainda que ao analisar racionalmente sua conduta, ele a desaprovasse e pensasse que fizera uma loucura e, provavelmente, um ato imoral com uma mulher solteira, adormeceu com um gesto comprazido e um alegre sorriso que lhe pareceríam desprezíveis em outro homem.
O alegre sorriso e inclusive a impressão de sua remota presença haviam desaparecido quando chegou a Ashgrove Cottage. Muitas cartas lhe esperavam, e, como era seu dever, abriu as do Almirantado primeiro.
- Acho que têm boas intenções e são muito corteses, mas isto não é muito - disse a Sophie, que estava do outro lado da mesa. - Tendo em conta minha ferida, que para mim não parece tão importante, propõem o comando do Orion temporariamente e perguntam se quero.
- Que tipo de barco é?
- Um velho barco recrutador de Plymouth de setenta e quatro canhões. Faria um percurso fixo, sem dúvida, e poderia dormir em terra e desfrutar de licenças. E, naturalmente, teria um pagamento completo.
- Nada podia ser melhor - murmurou Sophie.
Mas seu esposo, seguindo o curso de seus pensamentos, acrescentou:
- Não gosto de recusar nenhum trabalho em tempo de guerra. Nunca o fiz e, certamente, não deveria fazê-lo agora se consistisse em participar ativamente nela... Apressaria-me a subir a bordo de uma fragata na base naval da América do Norte, por exemplo. Mas acho que desta vez o recusarei, ainda que agradecerei encarecidamente a Suas Senhorias sua amabilidade e lhes assegurarei que poderão contar comigo assim que disponham de um barco de guerra, que com toda probabilidade será um barco de linha, sabe? O Orion não me convém porque iria e voltaria constantemente de Plymouth para Londres para falar com Skinner desse assunto legal. Não. É melhor me livrar desse problema o quanto antes e depois trate de conseguir um posto decente. Acredito que não podem me negar...
Fez uma pausa, ficou pensando alguns momentos e acrescentou:
- Não gosto de queixar-me, Sophie, mas me parece que poderiam haver sido um pouco mais generosos porque, afinal de contas, não são todos os dias que um homem ao comando de um desconjuntado barco de quarta classe afunda um navio como o Waakzaamheid. Poderá dizer que só se deveu a um disparo certeiro e que o enfurecido mar fez o resto, mas mesmo assim...
- Não vou dizer nada disso - protestou Sophie. - Deveriam ter-lhe dado o título de barão ou inclusive o de par e haver-lhe concedido imediatamente a medalha de mérito naval, como a sir Michael Seymour. Provavelmente vão dá-la, mas são muito lentos com estas coisas.
- Quanto a isso, querida, já sabe o que penso dos títulos, que não são mais que um cargo na maioria dos casos, sobretudo os hereditários. Um homem tem que ser duas vezes melhor que qualquer outro, e a menos que um seja um Nelson ou um Hood ou um Saint-Vincent ou inclusive um Keith, não pode ser duas vezes melhor que os outros durante as vinte e quatro horas do dia, só pode sê-lo quando tem sorte, quando tem tudo a seu favor. Contudo, pensava que me dariam um posto na Infantaria da marinha porque havia uma vaga.
- Na Infantaria da marinha, capitão Aubrey?
- Sim, e se o houvessem feito, seria o coronel Aubrey. Nunca lhe falei da Infantaria da marinha, querida? A entrada nela é a recompensa que dão a alguém por fazer as coisas muito bem quando não podem promovê-lo, já que entre os capitães de navio não pode haver promoção sem que lhe chegue a vez... Nem sequer o Rei pode nomear um almirante passando por em cima dos outros capitães da lista, e se o fizesse, metade dos oficiais de maior antiguidade se demitiriam... E como não podem dar-lhe uma promoção e não se pode comer o título de barão ou a medalha ao mérito naval, nomeiam-lhe coronel da Brigada real de Infantaria da marinha e ele recebe um pagamento de coronel sem haver feito nada para consegui-la.
- Porém, isso não é corrupção, Jack? Você era contra a corrupção quando era jovem, quero dizer, quando era mais jovem.
- E também sou contra agora: a corrupção dos outros me parece condenável. Mas não imagina o baixo que posso chegar a cair por mil libras ao ano, e o pagamento de coronel é maior que isso... Deixe-me ver... São oitenta libras, cinco xelins e quatro peniques multiplicados por treze, porque se regem por meses lunares, sabe? No total são mil e quarenta e três libras, três xelins e quatro peniques, que é melhor que um deslumbrante título. Não, querida, isso não é corrupção, isso é algo subentendido, um reconhecimento ao mérito conhecido por todos os marinheiros. Mas acho que não tenho méritos suficientes nem antiguidade suficiente para receber essa nomeação, ainda estou mais ou menos no meio da lista de capitães. A autêntica corrupção - acrescentou em tom grave enquanto pegava as outras cartas - está nos estaleiros, entre os contratistas sem escrúpulos e os armadores privados. Essa é a maldita praga da Armada... Esta carta é do amigo de Stephen, o senhor Skinner.
Passou a lê-la, fazendo um gesto de aprovação com a cabeça ao terminar cada parágrafo, e ao final, comentou:
- Estou muito contente com ele. É um excelente negociador, tem a mente clara e é trabalhador como uma abelha. Levou a guerra ao terreno desses malditos porcos, e é disso que eu gosto. Diz que um mandato judicial de duces tecum os obrigaria a mostrar-lhe o documento que firmei e que isso poria fim à incerteza. Também diz que processou um deles e assim conseguiu eliminar-lhe. Duces tecum... Isso mesmo!
- O que isso significa? - perguntou Sophie.
- Nunca me dei muito bem com o latim, pelo menos não tão bem como Philip Broke - respondeu Jack. - Mas lembro que dux significa "líder" e que o plural é duces, portanto, duces tecum se interpretaria como os almirantes que lhe apoiam. E não poderia pedir nada melhor que isso. O senhor Skinnner é extraordinário.
Entregou as folhas para Sophie e concentrou sua atenção nas cartas restantes.
- Esta é de Grant - disse, franzindo o cenho.
- Eu o odeio - disse Sophie.
Era estranho, quase inconcebível, ouvi-la dizer isso, mas o senhor Grant, um tenente velho e amargo, abandonara Jack no Leopard quando o desafortunado barco parecia estar a ponto de afundar, depois de chocar-se contra um iceberg em um lugar de alta latitude sul. Havia chegado ao Cabo em uma lancha e depois à Inglaterra num barco de guerra e escrevera para Sophie para dizer o mesmo que dissera a seus superiores, que não havia esperanças que o capitão Aubrey sobrevivesse, que o fato de se obstinar a permanecer a bordo de um barco que afundava teria consequências fatais para ele.
- Este homem ficou louco - disse Jack. - Diz que fiz correr o rumor de que se comportou mal, e isso é totalmente falso, Sophie. Asseguro-lhe que disse ao almirante Drury que Grant se foi com minha permissão e que eu estava satisfeito de sua conduta até então. Tive o incômodo de dizer. Este homem nunca gostou mim, apesar de ser um bom marinheiro, mas tive o incômodo de fazer essa observação porque pensei que ele merecia. Agora está desempregado, o que não me surpreende, porque o caso causou muitos comentários na Armada, e diz que eu sou o culpado. Pede que eu me retrate imediatamente para que se faça justiça e também que diga que o ordenei ir embora, o que não é verdade, já que apenas lhe dei permissão. E me ameaça que se não fizer, contará a verdade sobre o caso ao público e ao Almirantado, porque considera seu dever, e também falará de outras coisas, por exemplo, de minha incapacidade para o combate e de falsifiquei a lista. Pobre homem! Acho que está um pouco trastornado. Não vou responder porque não se pode responder com correção uma carta como esta. Não acredito que a escreveria se estivesse em seu juízo perfeito. Ou talvez estivesse bêbado nesse momento.
Então largou a carta de um lado.
- Esta é de Tom Pullings - disse. - Conheço sua letra. Sim, é sua. Ele, Mowett, Babbington e o jovem Henry James estiveram jantando juntos em Plymouth. Alegram-se de que tenha regressado e expressam seus mais sinceros desejos de que eu esteja. Pedem para que cumprimente você e Stephen e dizem que brindaram por nós dando três hurras por três vezes. Desejam que tenhamos mais... Dizem com boa intenção, estou certo, mas com o trigo a cento vinte e seis xelins o quarto de libra, três são suficientes - dizia enquanto virava a página. - Não, equivoquei-me. Desejam que tenhamos mais saúde, dinheiro e felicidade. Isso é melhor. São excelentes pessoas.
Esses jovens serviram sob as ordens de Jack como guardas-marinhas e oficiais e o seguiram de um barco para outro sempre que foi possível. Jack estava pensando neles e sorria quando passou para a carta seguinte. Não reconhecia a letra nem o selo, e mesmo depois de abri-la tardou vários segundos em dar-se conta de que realmente estava dirigida para ele, de que não era uma brincadeira nem um erro. A senhorita Smith aproveitava a oportunidade de que um transporte zarpava para Inglaterra para escrever para seu herói e dizia que um oficial ferido do 43º regimento de Infantaria mandaria a carta pelo correio quando desembarcasse... Acreditava que seu herói se alegraria em saber que seu amor ia dar fruto... Se fosse uma menina, a chamaria de Joanna... Estava segura de que seria uma menina... Correria para seus braços tão logo pudesse encontrar um lugar em um barco correio, ou se ele o preferisse, iria em um barco de guerra... Bastaria uma simples nota dirigida a algum de seus amigos da base naval da América do Norte... Esperava que a senhora Aubrey fosse mais compreensiva que lady Nelson... Ele devia dizer-lhe imediatamente se preferia o barco correio ou o barco de guerra... Achava de que ele tinha muita vontade de apertá-la contra seu peito e de que não o fazia porque o dever lhe impedia, mas o entendia perfeitamente e não lhe faria sensuras porque a Armada estava primeiro lugar, mesmo até que o amor... Queria que seu herói depositasse umas quinhentas libras no banco de Drummond porque não podia ir embora até que não pagasse suas dívidas em Halifax, que haviam alcançado uma assombrosa quantia, talvez porque nunca dera importância para as contas... Não queria pedir dinheiro para seu irmão, mas não tinha receio em pedir para seu herói, e o fazia sem falsa vergonha e como prova de que era integralmente sua... Se os papéis se invertessem, ela ficaria encantada que ele lhe desse uma prova de confiança como essa... Ele deveria escrever-lhe imediatamente... Ela se sentaria no cais a cada manhã e olharia o horizonte como Ariadna.
A débil luz do entardecer iluminava Stephen Maturin, que estava se barbeando e inclinava o rosto para que os raios do Sol chegassem perpendicularmente para ela. Estava mais pálido que o habitual e tinha uma expressão grave, pois dentro de uma hora ia dar uma conferência no Instituto da França, onde estariam alguns dos cientistas mais destacados da Europa. Seu paletó negro e seus calções de cetim recém arrumados e escovados estavam junto de sua imaculada camisa nova, sua gravata e suas meias de seda, e debaixo de tudo isso estavam seus reluzentes sapatos com fivelas de prata. Essa noite tinha que vestir-se com etiqueta, e ainda que havia ido à Royal Society{14} em calças, não era apropriado que um convidado estrangeiro fosse vestido dessa maneira ao Instituto da França numa ocasião assim.
- Entre! - disse em resposta a quem batia na porta.
- O senhor Fauvet pergunta se o doutor Maturin pode recebê-lo - disse o servente.
- O doutor Maturin lamenta infinitamente não poder receber-lhe neste momento, mas espera ter o prazer de ver-lhe na recepção - disse Stephen sem parar de barbear-se.
Fauvet não era um dos mais destacados intelectuais de Paris, mas era um dos mais elegantes, insistentes e indiscretos. Se havia aproveitado de que Dupuytren o apresentara a Stephen e essa era a quarta vez que o visitava para pedir que levasse uma carta para a Inglaterra, uma carta dirigida ao conde de Blacas. E posto que Blacas era o principal conselheiro do rei francês deposto, não precisava ser muito esperto para imaginar que Fauvet expressaria na carta sua lealdade para Luis XVIII, seu total apoio aos Borbones e sua recusa à atual tirania. Na verdade, praticamente chegara a dizê-lo em sua segunda visita. Mas Fauvet não era o único. Durante as últimas semanas aproximaram-se de Stephen outros intelectuais que também desejavam assegurar sua posição no caso de Napoleão ser derrubado e o Rei voltar. A maioria deles foram mais cautelosos e menos diretos que Fauvet, e alguns enviaram suas esposas porque estavam melhor dotadas para tratar desse tipo de assunto, mas ele não cedera nem aos pedidos das mulheres nem aos dos homens, nem os indiretos nem os diretos. Havia muita probabilidade de que algum deles fosse um agente que tratasse de provocar-lhe, e, por outro lado, esse não era um dos assuntos dos quais ia ocupar-se em Paris, já que no cais de Dover abandonara, no estrito sentido da palavra, todo o relacionado com a espionagem. Escutara-os cortesmente, dissera-lhes que lamentava não saber nada de política e que não conhecia a nenhum dos emigrantes franceses na Inglaterra e havia concretizado que, como convidado, era obrigado a comportar-se corretamente. E, em verdade, sua atitude foi a adequada, pois ainda que por vezes pensara em como estaria Ponsich no Báltico e lera o Moniteur com grande interesse em busca de notícias que se referiam àquela zona, controlara todos seus atos e se comportara simplesmente como um naturalista que estava ali de visita. Junto com Dupuytren realizara dissecações em três casos de calcificação da aponeuroses palmar, havia sido informado detalhadamente por Covisart de seu novo método de auscultação e assistira a três magníficos concertos no hotel de Mothe; fez tudo o que tinha pensado em fazer. Mas de vez em quando sentia curiosidade para saber que parte da população aquelas pessoas representavam. Talvez não representassem uma grande parte, mas entre elas havia algumas de excepcional inteligência e bem informadas. Apesar daqueles esperançosos sinais de que havia medo precisamente ali, havia chegado à conclusão de que Blaine tinha razão ao dizer que o império ainda não estava desmoronando - ainda que recebera alguns golpes muito duros, - que uma esmagadora vitória de Bonaparte ou as divergências entre os aliados poderiam fazer-lhe recuperar toda sua força, que seria necessário lutar duramente para derrubá-lo e que, devido ao tirano ter uma grande habilidade para dividir seus inimigos e a estar recrutando novas tropas com grande rapidez, qualquer atraso, por menor que fosse, poderia ser nefasto. E que era natural que aqueles que de repente haviam se dado conta de que queriam os Borbones, depois de ter suportado tão drásticos trocas de regime, tratassem de agarrar-se a uma corda de salvamento ao menor indício de que poderia haver mais outro. "Eu me informarei de mais coisas esta tarde", pensou enquanto amarrava cuidadosamente a gravata. Haviam corrido rumores de que em Moravia tinha lugar uma importante batalha que já durava três dias, e sabia que à conferência iria um variado grupo de pessoas, já que era um acontecimento tanto social como científico, ou talvez mais social, que congregava tanto a políticos, artistas e esnobes como a intelectuais; um tipo de acontecimento especialmente indicado para tomar o pulso da capital.
Pôs a jaqueta, apalpou o bolso para assegurar-se de que tinha as notas guardadas nele, meteu seus óculos verdes em seu estojo e, esforçando-se para reprimir sua emoção, dirigiu-se para a porta. "Devo começar com determinação e falar com convicção e em voz tão alta que possam me ouvir nos últimos lugares", pensou. Disse ao porteiro que chamasse uma carruagem.
- Chame uma carruagem, meu amigo - repetiu ao notar seu olhar inquisitivo. - E, por favor, diga-lhe que quero que me leve ao hotel de Mothe.
- Imediatamente, senhor - respondeu o porteiro, recuperando sua habitual serenidade.
Enquanto o carro chegava, Stephen observou o relógio da alta torre, que tinha um pêndulo ornamentado e um engenhoso sistema formado por barras cuja expansão compensava as variações de temperatura, o que garantia uma grande aproximação ao tempo real. Dispunha de muito tempo, mas como sabia que Diana nunca estava pronta na hora marcada, pensava chegar cedo para apressá-la mandando-lhe repetidas mensagens.
E chegou cedo, porém, para seu assombro, a encontrou pronta no salão. Era digna de se ver, pois usava um vestido de cor azul cinzento que lhe assentava muito bem, conforme a nova moda francesa, e os reluzentes diamantes, alguns dos quais colocados no cabelo, o que a fazia parecer mais alta e delgada do que nunca.
- Dou-lhe minha palavra de honra de que tem um aspecto magnífico, Villiers.
- Você também, meu querido- disse Diana, rindo com uma alegria tão grande que era estranho encontrá-la nela, com uma alegria que fez aparecer em seu rosto uma expressão mais doce que a habitual. - Você também... sua jaqueta é muito bonita e seus calções impecáveis, mas... - aproximou-lhe de um espelho - olhe-se aqui.
Stephen se olhou no espelho e viu refletida uma horrível imagem, viu sua pequena e redonda cabeça com seus escassos cabelos de ponta, que pareciam as cerdas de uma escova gasta.
- Jesus, Maria e José! - exclamou em voz muito baixa. - Esqueci minha peruca, que vou fazer?
- Não se preocupe, não se preocupe - disse ela. - Estará aqui dentro de um momento. Sente-se. Ainda falta muito tempo.
Então fez soar a campainha.
- Corra ao hotel Beauvillier tão rápido como possa e traga a peruca do senhor, que esqueceu ali - ordenou ao servente e se voltou para Stephen e disse: - Não se preocupe, meu amor. Chegará meia hora antes que comece. Sente e elogie meu vestido.
Ela o beijou com o carinho de uma irmã, e ele, sentado ali no divã egípcio, em meio à sua agitação, pensou: "Minha irmã... Minha esposa... Oh, meu Deus!".
- Tinha muito medo de que não ficasse pronto - continuou ela caminhando de um lado a outro para mostrar o vestido de todos os ângulos, - mas chegou há apenas uma hora. Adhémar de Mothe gostou muito. Tem muito bom gosto para roupa feminina. Disse que encurtasse o colar para que o diamante grande caísse justo aqui.
Ao dizer isto assinalou o centro de seu peito quase nu, de onde o diamante lançava lampejos formando uma fonte de luz que contrastava com a escuridão do salão.
- Pus os outros no cabelo, porque podem se soltar, sabe? E ele me deu sua aprovação. Confio muito em de Mothe. Nunca conheci ninguém que tenha melhor gosto. Além disso, ficou encantado com o vestido.
- Eu também gostei, Villiers. Está com um aspecto soberbo. Parece etérea... É como uma voluta de fumaça azul.
- Pensei que devia pôr toda a carne no forno, lhe porc inentamé, porque hoje era seu grande dia. Além disso, é provável que esta seja a última vez que possa parecer etérea ou quase etérea em muito tempo.
Uma vez mais aquele desagradável pensamento voltou à sua mente, e em seu rosto apareceu uma expressão sombria. Mas depois de contemplar a grande pedra preciosa por alguns momentos, voltou a ficar radiante de alegria e a ter um ar tão satisfeito que era comovente vê-la.
- Você tem muito carinho por esses diamantes, Villiers - disse em tom afetuoso.
- Sim, tenho muito carinho por eles, sobretudo o maior - disse e desprendeu a pesada pedra preciosa e a pôs na mão de Stephen, e a pedra, ao menor movimento, lançava inumeráveis lampejos que pareciam sair de um prisma. - Não me importa de onde vêm - disse, alçando o queixo. - Gosto muito, e não me separaria deles por nada do mundo. Queria que me enterrassem com eles. Você se lembrará disso Stephen? Se as coisas não correrem bem neste outono, devem enterrar-me com eles. Posso confiar em você?
- Claro que sim.
- Eu gostava de minhas pérolas... - continuou ela depois de uma pausa. - Recorda-se das pérolas que o nababo me presenteou? Mas sentia algo muito diferente por elas. Eu as vendi para pagar ao modista quase sem remorso. De Mothe me levou para a casa Charon e me pagaram um valor justo... Irá com os Clermont e depois todos viremos aqui para jantar. Ah! Além disso avaliaram aqueles rubis desmontados que eu lhe mostrara, os que nunca gostei, os que pareciam grandes gotas de sangue, e me deixavam realmente assombrada...
Stephen deixou de prestar atenção e cravou os olhos no relógio, e muito antes que o servente chegasse, ouviu seus passos apressados. Imediatamente pôs a peruca e os óculos, metendo os ganchos por debaixo dos cachos dos lados.
- Devemos ir - disse.
- Ainda falta muito tempo - acrescentou Diana. - Este relógio está meia hora adiantado. Não serviria de nada chegar cedo. Sente-se outra vez, Stephen. Oh, meu Deus, como seu rosto fica mudado com esses óculos azuis! Nunca teria lhe reconhecido com eles.
- São verdes.
- Bem, quer sejam azuis ou verdes, tire-os, por favor. Deixam-me nervosa porque eu acho estranho.
- Não - disse Stephen. - Depois de prendê-los sob a peruca, não posso tirá-los sem alterar sua simetria.
- Por que os usa? Fazem com que pareça muito mais velho, querido, e lhe dão um aspecto vulgar. Pode ver perfeitamente sem eles.
- Nem sempre vejo bem quando tenho que ler notas sob a forte luz de uma lâmpada. Mas a principal razão para usá-los é que estou nervoso e eles me dão segurança.
- Está nervoso, Stephen? - perguntou ela. - Nunca achei que isso fosse possível. Ainda que, pensando bem, esteve todo o tempo sentado na borda da cadeira e olhando o relógio como um homem que vão enforcar. Por favor, não seja ridículo... Você é um homem destacado e todos dizem que tem uma prodigiosa inteligência, e eu sempre soube disso. Venha, tome um copo de conhaque para tranquilizar-se. Bebamos os dois um copo de conhaque.
- Você é muito boa, Diana, mas a verdade é que não estou acostumado a dirigir-me a um público numeroso... E que público! Estarão ali os Cuvier, Argenson, Saint-Hilaire... Ou pelo menos é isso que espero.
- Estou certa de que estarão ali. Sei que o cardeal também irá, Mothe me disse.
- Oh! - exclamou Stephen.
- Pensei que gostaria, querido. É católico, e um cardeal está muito próximo ao Papa.
- Há cardeais e cardeais, e inclusive alguns papas não foram exatamente como era desejável. Não obstante, obrigado por me dizer, Villiers, porque devo começar dirigindo-me a Sua Eminência. Está relacionado com os desprezíveis Bonaparte, ainda que pelo que sei esteja mal com o chefe desses malfeitores, porém, de qualquer maneira, é um príncipe da Igreja. Vamos, Villiers, temos que ir.
A grande sala estava cheia, inclusive mais cheia do que esperava. Estava cheia de pessoas e de animada conversa sobre a batalha de Moravia ou, conforme alguns, de Boêmia. Diziam que atacaram o exército russo pelo flanco direito e que haviam aniquilado as tropas desse flanco... Os prussianos foram derrotados em Polobsk... As tropas de Vandamme sofreram um duro golpe...; pelo contrário, faltava ainda um dia para Vandamme chegar e os prussianos mantinham o controle de seu território... O Imperador não havia estado presente... O Imperador havia dirigido todas as operações. O ruído cessou quando o secretário vitalício conduziu Stephen à tribuna. Stephen colocou suas notas do lado da jarra de água, aspirou profundamente, olhou para o silencioso e expectante público e começou a falar.
- Sua Eminência... - disse em tom seguro e com uma voz tão potente que seu própio eco lhe produziu uma forte impressão, uma impressão quase de consequências fatais.
Sem embargo, deu a maior parte da conferência em tom muito baixo. Os que estavam muito interessados no Pezophaps solitarius puseram as mãos ao redor das orelhas e inclinaram a cabeça para a frente, e as restantes pessoas, aproximadamente quinhentas, pouco a pouco reiniciaram a conversa, que a princípio era somente um burburinho e depois chegou a ser perfeitamente audível. Seus amigos estavam muito envergonhados, pois havia começado mal e havia continuado pior. Era evidente que Stephen não via nem ouvia o público. Desde o desafortunado princípio, seguiu estritamente suas notas com a cabeça baixa e os olhos fixos nas folhas de 1/4 de papel. De vez em quando fazia um gesto mecânico com a mão direita e Diana temia que fizesse cair a jarra ao solo; e em uma ocasião passou duas páginas juntas, de maneira que pareceu que as observações sobre o dodo se referiam ao uombat da Nova Holanda.
Apenas havia começado a falar dos ratites quando um oficial entrou de na ponta dos pés e sussurrou algo ao ministro do Interior, e este se foi imediatamente, também na ponta dos pés e fazendo reverências, e todos notaram que sorria maliciosamente. A conversa subiu de tom e Stephen continuou lendo uma depois de outra as páginas de uma bem razoada exposição. Havia acabado de falar da anastomose da carótida no Didus ineptas e agora começava a falar do acasalamento do solitário.
- Com objeto de fazer uma comparação, consideremos o órgão introdutor do corvo - disse, tirando os óculos e olhando para o público pela primeira vez.
Seu olhar se cruzou com a de madame d'Uzès, que estava sentada na primeira fila, e ela se inclinou para frente e perguntou em voz baixa:
- Que é um órgão introdutor?
A pessoa que estava sentada ao seu lado lhe respondeu, e ela, rindo alegremente, disse:
- Ah, como o de um semental! Não tinha idéia de... tanto melhor...
Então Stephen, pregando seus olhos nela, repetiu:
- Consideremos o órgão introdutor do corvo.
Ela baixou a vista e juntou as mãos no colo, e ele, voltando para suas notas, fez uma descrição detalhada do órgão com voz mais forte e em tom mais grave que antes enquanto movia ritmicamente no ar um exemplar dissecado. Os ajudantes do ministro, que estavam sentados na fila detrás da sua, inclinaram-se sobre o lugar vazio e se puseram a conversar em voz baixa.
- Se esse homem tem algo a ver com a espionagem, eu sou o Papa - disse um.
- Não, além do mais era um vago rumor - disse outro.
- O Exército vê espiões por todas as partes. Tratei de comprová-lo, é claro, mas nem Fauvet nem madame Dangeau puderam fazer-lhe mover-se de sua posição sequer uma polegada. Ele lhes disse que era um simples naturalista, que não sabia nada de política e tampouco se importava e que devia respeitar as regras. Madame Dangeau pensa que é um pederasta, e acho que tem razão. É amigo de Adhémar de Mothe.
- Que relação tem com a mulher que está sentada junto a de Mothe, a que usa esses esplêndidos diamantes? Cruzaram juntos, porém, indubtavelmente, não pode haver nenhuma relação entre semelhante indivíduo e essa maravilhosa criatura.
- É seu médico, e sua criada conta que, quando ele a examina, é muito respeitoso e não parece sentir nenhuma emoção. Não sentir emoção ante uma mulher assim!
- Pobre imbecil... Finalmente está chegando ao final.
- Que conferência horrível!
Havia sido horrível, porém, no que se referia aos convidados estrangeiros, amiúde o nível da exposição era inversamente proporcional aos conhecimentos científicos do orador, e era normal que quem não estava acostumado com as conferências de nível universitário falassem em voz baixa. O secretário vitalício havia assistido a conferências piores, e também os cientistas que haviam ido ali para escutar ao doutor Maturin e não os fofoqueiros da cidade. Stephen não havia deixado cair ao solo suas notas nem seus desenhos nem seus espécimes; não parou no meio da conferência, angustiado, como o distinto Schmidt de Gottingen; tampouco desmaiara, como Izibicki. Por outro lado, os que estavam sentados nas filas dianteiras aprenderam muito das espécies de aves extintas das Ilhas Mascarenhas, e suas sinceras felicitações, um café forte e saber que o mau momento já passara conseguiram reanimá-lo. Diana, de Mothe e seus amigos lhe disseram que falara muito bem e asseguraram que haviam ouvido absolutamente tudo. Além disso, mencionaram o Pezophaps solitarius uma ou duas vezes e o dodo muitas mais.
- Não foi brilhante, nem muito menos - disse ele, sorrindo timidamente. - Não sou nenhum Demóstenes... Mas acho que fiz o pouco que podia e que agora todos conhecemos melhor o sistema digestivo e reprodutor do solitário.
Os esnobes se foram e os intelectuais ficaram. Muitos deles se aproximaram de Stephen para o conhecer ou saudar, e ele, por sua vez, transmitiu a alguns as saldações de seus amigos comuns da Inglaterra e lhes prometeu transmitir os seus, no seu regresso, pois não tinha inconveniente em se fazer de mensageiro. Georges Cuvier lhe entregou uma cópia de sua obra Ossements fossiles para o distinto sir Blaine e Latreille lhe deu, para o mesmo cavalheiro, um presente mais apropriado, uma abelha fossilizada em um pedaço de âmbar. Larrey, o cirurgião do Imperador, foi muito amável com ele; Gay-Lussac pediu que ele levasse algumas piritas muito curiosas para sir Humphry Davy; outro químico lhe deu um frasco com uma substância cuja exata composição desconhecia... Muito rapidamente os bolsos de seu elegante paletó se encheram de presentes para os membros da Royal Society.
Também havia alguns intelectuais estrangeiros presentes, e Stephen se alegrou ao ver a Beckendorff, a Pobst e a Cerutti. A maioria desses intelectuais eram eminentes naturalistas, porém, além disso, havia entre eles matemáticos, historiadores e filólogos. Stephen distinguiu claramente a Schlendrian, o erudito alemão que era uma autoridade em línguas modernas derivadas do latim, por sua longa barba negra. Schlendrian estava afastado do grupo com um copo da típica limonada do Instituto na mão e uma expressão pouco habitual, uma expressão triste.
Seus olhares se encontraram e ambos se cumprimentaram com a cabeça. Stephen se fastou de um grupo que mantinha uma insípida conversa sobre o cloro e ambos se cumprimentaram cordialmente. Schlendrian se alegrou, felicitou-lhe efusivamente e fez muitas perguntas, mas depois voltou a entristecer-se. Então fez uma pausa e dirigiu para Stephen um olhar inquisitivo e depois perguntou:
- Não ouviu a notícia?
- Da batalha que tem lugar neste momento?
- Não, do que aconteceu a Ponsich.
- O que aconteceu a Ponsich?
- Não desejaria dizer-lhe hoje, no dia de seu triunfo.
- Não me atormente, Schlendrian. O senhor já sabe o quanto gosto dele.
- Eu também gostava - disse Schlendrian com lágrimas nos olhos. - Ele morreu.
Stephen o levou até um lugar afastado junto à porta.
- Como o sabe? Quando ocorreu? - perguntou em voz baixa.
- Grauf me escreveu de Leyden. Parece que Ponsich se encontrava perto da Suécia ou em algum outro lugar do Báltico quando ocorreu uma desgraça com o barco em que navegava. Muitos cadáveres foram arrastados até as costas de Pomerânia e um antigo aluno seu reconheceu o dele. Oh, Maturin, que perda para as letras catalãs!
- Escute, querida - disse Stephen para Diana, tirando-a da sala de concertos do hotel de Mothe. - Tenho que ir. Vou dormir e amanhã tenho que viajar até Calais. Apresente minhas desculpas para Adhémar.
- Já vai, Stephen? - perguntou e de imediato perdeu a alegria. - Já vai regressar? Pensei que ficaria pelo menos até o fim do mês.
- Já fiz o que tinha que fazer e devo ir. Mas antes tenho que dizer-lhe algumas coisas.
Ela o olhou com preocupação, e seu gesto grave contrastava com a alegria da sala que acabavam de abandonar.
- Escute - disse ele. - Poderei saber de você por meus amigos e virei de vez em quando para este tipo de atos. Com relação à atenção médica, está nas melhores mãos. Deve escutar a Baudelocque com muita atenção e seguir suas instruções ao pé da letra, pois uma gravidez pode ser um assunto delicado. E se tiver algum problema, ainda que seja improvável já que seus documentos estão em ordem e legalmente pertence a um país amigo, repito, se tiver algum problema, tanto em Paris como na Normandia, aqui tem o endereço de um amigo meu de toda confiança. Aprenda-o de memória, Villiers, entendeu? Aprenda-o de memória e queime o papel. E agora escute: se alguma vez lhe perguntarem algo sobre mim, tem que dizer que somos simplesmente velhos amigos, que lhe aconselho como médico e que não existe nada entre nós, absolutamente nada.
Então notou que no rosto de Diana se refletia a raiva porque se sentia ferida em seu amor própio e, pegando-lhe a mão, disse:
- Tem que mentir, querida. Tem que dizer uma mentira.
A expressão dos olhos de Diana voltou a ser doce.
- Eu direi, Stephen, mas será difícil ser convincente - disse, tentado sorrir.
Diana estava ereta e tinha o queixo erguido, e Stephen, ao contemplá-la, emocionou-se como há tempos não ocorria.
- Deus lhe abençoe, minha querida. Tenho que ir.
- Deus abençoe a você também, Stephen - disse ela. - Dê saldações de minha parte para Jack e Sophie e, por favor, cuide-se muito.
CAPÍTULO 6
Jack Aubrey recolhia pessoalmente o correio de Ashgrove Cottage já fazia algum tempo, que para ele parecia muito longo. Temia ser descoberto e sempre estava intranqüilo porque de Halifax não só chegavam cartas nos barcos que levavam ocorreio com regularidade, com assombrosa regularidade, senão que um surpreendente número delas eram trazidas por amáveis oficiais de barcos de guerra, transportes e mercantes, e todas falavam de um iminente retorno.
Nunca havia sido um modelo de continência, mas todas suas relações amorosas ocasionais haviam sido apaixonadas e felizes, carentes de promessas e protestos, quase exclusivamente carnais e sem importância, e, além disso, as havia mantido com mulheres que pensavam como ele, que não pretendiam seduzir nem se deixavam arrastar pelo romantismo. Haviam sido relações sem complicações e passageiras, quase tão efêmeras como os sonhos e com resultados tão pouco perceptíveis como os deles, mas esta era completamente diferente.
Os necessários subterfúgios e enganos lhe desagradavam, e a idéia da possível e inclusive provável aparição de uma senhorita Smith histérica, eufórica e escandalosa se convertera em um pesadelo, mas o que mais lhe penalizava era a mudança que produzira em sua relação com Sophie. Não podia falar com ela com a sinceridade costumeira, já que sua traição e suas pequenas mas desprezíveis mentiras se interpunham entre ambos, e tinha a sensação de estar sozinho e às vezes se sentia muito triste. Além disso, mentir não lhe fazia bem e lhe produzia muita raiva.
Mais de uma vez pensara em Stephen Maturin. Sabia que as atividades de Stephen o obrigavam a levar uma vida solitária e a controlar seus atos constantemente e não lhe permitiam ser totalmente sincero com ninguém, mas pensava que seus segredos tinham uma causa digna, que eram um ardil muito conhecido e admissível que não pioraria a opinião que tinha de si mesmo.
Estava em uma das construções de tijolo vazias situadas junto de sua inativa mina de chumbo, no meio do bosque profanado e quase deserto, e lia as últimas cartas efusivas da senhorita Smith (chegaram três de uma vez) quando apareceu uma sombra na entrada. Guardou rapidamente as cartas no bolso e se voltou para ali com uma expressão grave, que de imediato se transformou em outra, de alegre.
- Ah, está aqui, Stephen! - exclamou. - Estava pensando em você faz apenas cinco minutos. Como chegou até aqui? Como está? Fazia mais de duas semanas que não tinhamos notícias suas.
- Sophie me disse que lhe acharia aqui - respondeu Stephen. - Dirigia-me para Londres e parei para visitá-los. Estive falando com ela e me disse que está preocupada com seu estado de saúde. Indubtavelmente, está com uma cor ruím. Posso ver o braço?
- Ela sabia que eu estava aqui? - perguntou Jack, já sem alegria.
- Meu amigo, a julgar pela mistura de consternação e culpabilidade que se reflete em seu semblante, qualquer um pensaria que recebe a visita das ninfas locais nesta construção abandonada - disse Stephen com inoportuna ironia.
- Nada disso! - exclamou Jack. - Oh, não!
Então perguntou para Stephen de sua viagem, por Diana, pela sua acolhida em Paris e pela situação atual da França e acrescentou:
- Quere vir para casa? Ia agora mesmo para lá com o correio. Espero que fique conosco. Será estupendo que se some ao nosso tête a tête, e, além disso, poderemos tocar música.
- Infelizmente, tenho que ir voando. Quero chegar à cidade esta noite e a carruagem está me esperando na porta. Interrompido minha viagem para ver-lhe e com esse propósito decidi passar por Portsmouth. Queria saber qual era sua situação.
- Estou com a água no pescoço, Stephen. De um lado estão esses assuntos legais, apesar de ser um grande alívio para mim contar com o senhor Skinner, a quem estou muito agradecido; de outro, o problema com o Almirantado, que é resistente a pagar-me pelo Waakzaamheid. E também há outras coisas...
- Sinto muito. Porém, na realidade, referia-me à sua situação com relação à designação de um barco. A última vez que lhe vi não tinha planos.
- Não tenho nenhum. Tiveram a amabilidade de oferecer-me o Orion, que era como oferecer-me uma licença com pagamento completo, mas recuzei, e por isso não posso pedir outro imediatamente, ainda que as coisas se hão posto de tal maneira que daria um olho do rosto para que me ordenassem ir para longe do país, para que me dessem uma missão no estrangeiro.
- Isso é o que queria saber, e me parece que nossos objetivos são similares. É possível que me encomendem uma missão nos mares do norte. Não é mais que uma possibilidade, porém, se vou, prefiro ir contigo que com outro. Nós dois nos conhecemos muito bem, e contigo não tenho que representar uma chata farsa. Além disso, sei que é muito discreto. Vim por isso, porque queria investigar o terreno e saber o que devia sugerir em Londres. Posso considerar que não teria inconveniente em me acompanhar se me encomendassem a missão?
- Gostaria muito de o acompanhar. Gostaria muito, de verdade, Stephen.
- Mas devo advertir que provavelmente, além do perigo de estar expostos aos elementos, teremos que afrontar alguns mais. Está ciente do que sucedeu a Daphne?
- Naturalmente que sim. Todo mundo fala disso. Ainda não foi publicado nos jornais, ao menos que eu saiba, quem vem do Báltico é que conta.
- O que dizem? Não conheço os detalhes.
- Os detalhes variam, mas todos concordam em assinalar que se aproximou muito da ilha Groper.
- Não se chama Grimsholm?
- A chamamos Groper pela mesma razão que dizemos Hogland, Belt, Sleeve, Passages e Groyne.{15} Parece que se aproximou muito, talvez porque havia pouca calmaria e a corrente ia em direção da terra, como costuma ocorrer naquelas águas, e que ninguém se deu conta de que estava ao alcance dos canhonaços, pois, do contrário, como era tão ligeira, a teriam levado para o alto mar remando ou rebocando. O certo é que lhe dispararam e a afundaram. Têm canhões de quarenta e duas libras colocados no alto do rochedo e forjas muito próximas deles... Lembro que víamos seu resplendor de muito longe... É provável que uma bala vermelha{16} tenha alcançado o paiol, fazendo saltar em pedaços a embarcação instantaneamente, já que não há restos dela nem sobreviventes, ao menos que eu saiba. Só temos o testemunho dos pescadores.
- Sim, acho que foi isso o que aconteceu. A propósito, provavelmente Grimsholm seja o nosso destino.
Jack deu um assobio e disse:
- Um destino espantoso: águas pouco profundas, fortes marejadas, e quando um chega ali, tem essas baterias. É como um pequeno Gibraltar, mas não muito mais pequeno, e eles se hão situado no alto e deali dominam uma vasta zona do mar. Se manejassem bem os canhões, poderiam desafiar uma frota. As baterias de um barco não servem muito frente a peças de artilharia situadas no alto de uma montanha, bem manejadas e com a possibilidade de lançar balas vermelhas. Já sabe o que fez a torre Mortella.
- Não o sei.
- É claro que sim, Stephen. A torre Mortella, da Córsega, ou a torre Martello, como dizem alguns. É essa torre redonda da qual fizemos montes de cópias em toda a costa. Deram ordem de tomá-la em 1794, e ainda que só tivesse dois canhões de dezoito libras e um de seis e estar a cargo de vinte e dois homens e um jovem oficial somente, lorde Hood ordenou que a Juno e a Fortitude enfrentassem ela enquanto mil quatrocentos soldados desembarcavam. As fragatas dispararam por mais de duas horas, e depois de transcorrido esse tempo, na Fortitude haviam morrido ou sofrido feridas sessenta e dois homens, havia três canhões desmontados, o mastro maior estava cheio de buracos de bala, os outros mastros estavam rachados e havia começado um fogo por causa de uma bala vermelha, assim que teve que afastar-se, e por sorte não encalhou. Portanto, se a torre Martello pode fazer isso a dois barcos de guerra enquanto mantém mil quatrocentos soldados afastados, imagine o que Grimsholm poderia fazer, já que além de ser mais alta e cinqüenta vezes mais potente, não tem que enfrentar nenhum grupo de soldados. Não será um passeio.
- Acho que o plano não é reduzir os homens dessa praça pela força bruta senão por meios mais delicados e, como espero, sem derramamento de sangue - disse Stephen. - Esses meios devem ser utilizados pelo menos a princípio. Mas agora que penso, tem uma família, tem muitas responsabilidades, e esta missão é mais apropiada para um jovem solteiro e sem compromisso. Compreendo perfeitamente que seja resistente a...
- Se insinua que não tenho coragem para... - começou a dizer Jack. - Tenho certeza que fala brincando. Perdoe-me, Stephen. Em geral, capto uma brincadeira tão rápido como qualquer um, mas não me encontro muito bem ultimamente.
Seguiram caminhando sob as árvores em silêncio e após um tempo acrescentou:
- Você se dirige para a cidade e eu tenho que ir para Whitehall depois de amanhã pelo assunto do Waakzaamheid, assim que o acompanharei, se não se importa. Gostaria de falar contigo depois de tanto tempo sem nos comunicar. Além disso, pagaremos a carruagem pela metade e ficaremos os dois no Grapes. Assim matarei três pássaros com um só tiro.
Stephen tivera sorte, pois alugara uma carruagem silenciosa e com boas molas, e enquanto esta passava suavemente por cima do largo, rodeada pela escuridão, ele e Jack falavam sem parar. Aquele espaço fechado e, por assim dizer seguro, fora do tempo, que atravessava um mundo exterior que não se via e estava completamente separado dele, era ideal para fazer confissões, e imediatamente Jack disse:
- Espero que tenhamos que levar a cabo esse plano, Stephen. Tenho muitos motivos para desejar ir embora para o estrangeiro, isto é, para desejar que me ordenem ir embora para o estrangeiro.
Stephen pensou nessas palavras. Quando Jack era mais jovem e mais pobre, havia desejado amiúde sair do país para escapar de seus credores e de ir para a prisão por não pagar as dívidas, mas era quase impossível que estivesse nessa situação agora. Ainda que teria dificuldade para converter boa parte de seus bens em dinheiro, ainda lhe restava muito de sua fortuna, e no improvável caso de que se comprovasse que suas dívidas eram superiores, só um tribunal poderia tomar uma decisão com relaçã a essa questão, e ao final de um longo, longo processo. Além disso, agora administrava seus interesses um hábil homem de negócios que nunca permitiria que seu cliente fosse encarado, nem que o prendessem na casa de um oficial de justiça.{17}
- Mas Sophie me disse que a primeira audiência, a primeira parte, não ocorreria até meados do próximo período de sessões - disse Stephen.
- Não é por esse maldito caso legal - disse Jack. - Eu lhe asseguro que às vezes quase me alegra ter que me ocupar da interminável papelada, porque é como um... A verdade é que..., bem..., a verdade é que...
Então fez um breve relato do que havia ocorrido e ao final disse:
- Acho que, se me ordenam ir embora para o estrangeiro, ela não regressará para a Inglaterra, sabe?, e que se o fizer, pelo menos não se instalará muito perto. Em sua última carta falava de Winchester. Não necessita dizer que sou um homem desprezível.
- Não me preocupa o aspecto moral do assunto senão o que pode fazer para solucioná-lo - disse Stephen.
Estava surpreendido de ver que um homem cuja coragem era indiscutível em situações que requeriam força física pudesse ter uma conduta abjeta e ser tão covarde quando devia afrontar questões morais, mas pensou que ele não era casado e que não conhecia de primeira mão as lutas domésticas nem o que estava em jogo nelas, ainda que soubesse que podiam provocar sentimentos muito intensos e que tanto a vitória como a derrota eram prejudiciais. Gostava muito de Sophie, mas sabia que era muito ciumenta, e esse era um traço de seu caráter que ele desgostava. A carruagem seguiu avançando e ele começou a refletir sobre o matrimônio. Pensou em suas vantagens e desvantagens em comparação com outros sistemas, no provável equilíbrio entre felicidade e infelicidade que havia neles e em que conhecia muito poucas uniões que tiveram êxito.
"Acho que a monogamia é a única solução, por desgraça, ainda que seja tão absurda como a monarquia", pensou. "Queira Deus que não caiamos nos mesmos erros dos judeus e dos muçulmanos".
- Só quero dizer uma coisa, ainda que não acho que importe muito - disse Jack, interrompendo o fio de seus pensamentos. - Eu lhe mandei tudo o que pude, de forma que ao menos não lhe faltará dinheiro.
E depois de uma pausa, acrescentou:
- Por isso me incomoda tanto que se adie o pagamento do dinheiro do Waakzaamheid, porque precisamente agora tudo o que tenho está imobilizado. Isso afeta a você também, Stephen. Você tem direito a uma parte da recompensa pelos tripulantes e os canhões que tinha o navio, e posto que, além de você, quase não há oficiais sobreviventes, deve de ser uma grande soma.
- Tenho que fazer algumas observações com relaçã a esse assunto - disse Stephen, deixando de lado a questão do Waakzaamheid. - Acho que vale a pena fazê-las porque são adequadas para este caso e poderiam melhorar seu ânimo. Em primeiro lugar, deve saber que entre as mulheres com tendência ao histerismo, como a jovem em questão... É que seria inútil e pouco ético fingir que não sei quem é...
- Eu não disse seu nome - disse Jack. - Que Deus me amaldiçoe se sequer insinuei algo que tenha permitido descobrir sua nome, Stephen.
- Bobeira! - exclamou Stephen, agitando a mão - Como dizia, entre as mulheres com tendência ao histerismo, não são raros as falsas gravidezes. Têm os mais claros sintomas que realmente aparecem durante os nove meses de gravidez, como o ventre inchado, a supressão da menstruação e inclusive a produção de leite; tudo é igual, exceto o resultado. Em segundo lugar, devo dizer o mesmo que disse a outro amigo não faz muito tempo, que inclusive em uma gravidez real, mais de doze de cada cem mulheres abortam. E em terceiro lugar, deve ter em conta a possibilidade de que não haja gravidez, nem real nem falsa. Pode ser que a dama engane a si mesma ou queira enganar a você. Não seria o primeiro homem a quem enganam dessa forma. Na minha opinião, ela não fez um grande esforço para regressar, apesar dos vários barcos correio que foram e voltaram dali. E não se pode negar que um pedido de dinheiro não sugere nada de bom.
- Oh, vamos, Stephen! Como pode dizer algo tão mau? Eu a conheço. Talvez seja bastante... Talvez não seja muito astuta, mas é incapaz de fazer isso. Além disso, pedi para que não viesse... Ainda. Eu lhe asseguro que a conheço, Stephen.
- Com relação a conhecer uma mulher... Se nos dizem entre e conheça a mulher, isso é muito bom. É possível que nos entendamos e que haja comunicação entre nós enquanto estejamos juntos, porém, o que acontece depois? Admito que disse algo muito mau, mas há muita maldade no mundo. Além disso, nunca o diria se não tivesse motivos para achar que pudesse ser verdade. Não afirmo nada, Jack, mas a reputação dessa dama está muito longe de ser boa, conforme a informação que obtive de outra fonte, e aconselho que não tome nenhuma decisão até que não consiga por outros meios a prova irrefutável de seu estado e tenha analisado realmente o caso.
- Sei que sua intenção é boa, Stephen, mas peço que não diga coisas como essa, porque me fazem sentir ainda mais desprezível - disse Jack. - Não posso me comportar como um policial com uma pessoa que... Já estamos na ponte de Londres! - exclamou olhando pela janela.
Poucos minutos depois chegavam ao Grapes, onde se hospedaram juntos há muitos anos, quando Jack fugia de seus credores, porque o Grapes está situado no distrito de Savoy, o distrito mais liberal que era um paraíso para os devedores fugitivos. Stephen era um homem pobre e, além disso abstêmio, mas se permitia alguns excessos, e um deles era ter alugado durante todo o ano um quarto naquela pequena e confortável hospedaria. Quem trabalhava ali estava acostumado ao seu modo de ser e lhe dispensavam uma boa acolhida desde que chegava. Havia curado a dona, a senhora Broad, uma excelente cozinheira, de adinamia e de outra doença menos digna. Podia fazer o que quizesse no Grapes, e mais de uma vez havia levado para ali um órfão (um órfão morto) para fazer a dissecação e o havia guardado em seu armário sem que ninguém comentasse nada a respeito. E ninguém fez nenhum comentário tampouco agora, quando terminou de comer os pequenos bacalhaus e o pastel de vísceras de veado da tardia janta e fez o inoportuno pedido de que chamassem um carro.
- Não se levante, Jack. Nos veremos no café da manhã, se Deus quiser. Boa noite.
Enquanto punha o abrigo, observou com satisfação que, apesar de Jack haver defendido a senhorita Smith e ter assegurado que ela era inocente, pelo menos estava digerindo algumas de suas palavras junto com três quartos do pastel. Agora parecia mais animado e muito menos envergonhado e passou a comer vorazmente o queijo Stilton.
Outra vez foi sir Joseph quem abriu a porta.
- Finalmente chegou! - exclamou. -entre, entre. - Então, indicando-lhe a escada, perguntou: - Está ciente do que aconteceu com Ponsich?
- Foi por isso que regressei - disse Stephen.
- Eu lhe esperava. Estive esperando desde que recebi sua mensagem através do telégrafo. Venha, sente-se junto ao fogo. Tirarei estes papéis... Perdoe a desordem... Há muito trabalho que fazer. Os norte-americanos estão causando muitos problemas, apesar de seu esplêndido trabalho; a metade dos espanhóis que estão na retaguarda das tropas de Wellington são partidários dos franceses; as coisas não vão bem. E agora essa horrível notícia que chegou do Báltico. Se deixarmos o Imperador respirar, saltará como um boneco de uma caixa surpresa e teríamos que fazer tudo de novo. Desde que chegou a notícia desejávamos que o senhor viesse.
- Sabe o que ocorreu?
- Sim. Temo que foi por falta de precaução. Recordo muito bem que Ponsich dizia que ia pegar o touro pelos cornos... A corveta se aproximou da costa, ou porque seu capitão calculou mal o alcance daqueles enormes canhões, ou porque confiava muito por levar içada uma bandeira dinamarquesa, e antes que os homens pudessem jogar na água um bote com uma bandeira branca, começaram os disparos, muito precisos e com balas vermelhas. Uma acertou na santa-bárbara e a corveta se fez pedaços. Deveríamos ter mandado um capitão com mais experiência.
- Era um homem jovem?
- Sim. Acabava de ser nomeado capitão para tomar o comando da Daphne. Era um oficial muito valente, mas só tinha vinte e dois anos. Contudo, antes de que a notícia do desastre fosse confirmada e inclusive antes de que chegassem os primeiros rumores, já estávamos intranqüilos. No momento em que a Prússia decidiu entrar na guerra, a ilha adquiriu grande importância, mas agora que a situação política mundial muda tão rapidamente, sua importância é muito maior: poderia ser o preço da deserção da Saxônia. Se conseguíssemos que o Rei passasse para o nosso lado, desferiríamos um duro golpe nos franceses, talvez um golpe mortal, mas uma das principais condições que impõe é que desembarquemos na costa de Pomerânia para proteger ele e a Prússia, já que assim poderíamos cortar a passagem das tropas francesas que estão em Danzig e atacar seu flanco esquerdo por trás. Mas não podemos fazer isso sem Grimsholm. O senhor conhece os países bálticos, Maturin?
- Não, mas faz muito tempo que desejo conhecê-los - respondeu Stephen.
- Então observe este mapa, por favor. Inumeráveis dunas ao longo das costas. Vê? - perguntou assinalando a parte leste. - O mar é pouco profundo. Sempre sopra o vento do oeste, pelo que a costa está a sotavento, e isso não é bom. Há poucos lugares bons para desembarcar, além dos estuários, e os melhores são dominados pela maldita ilha. Em uma reunião que os almirantes celebraram, todos concordaram que mesmo sem a proteção dos bancos de areia, sem maus lugares para desembarcar e sem o vento fixo do oeste, não haveria possibilidade de tomar Grimsholm pelo oeste, pelo lado mais próximo do alto mar. O oficial de Infantaria de marinha de maior antiguidade propôs um plano para atacá-la pelo leste, um plano que requeria a participação de uma grande esquadra integrada por barcos de linha que apoiassem o ataque com seus canhões, além de incontáveis transportes e balas. Calculou o número de prováveis baixas e era exageradamente alto. Porém, mesmo que o número de baixas fosse aceitável e as probabilidades de ganhar fossem maiores do que ele pensava, seríamos obrigados a recusar o plano porque não temos nem barcos de guerra nem transportes para levá-lo a cabo. A verdade é que não sabemos de onde tirar mais barcos. A maldita guerra com os Estados Unidos está fazendo diminuir nossos recursos, e a cada dia recebemos queixas de lorde Wellington. Reclama de que não cooperamos com ele na costa norte da Espanha, de que a Armada apenas aparece por ali, e de que as esquadras francesas que estão no porto de Burdeos e mais ao norte podem cortar suas extensas e vulneráveis linhas de comunicação a qualquer momento. Estamos com escassez de barcos, Maturin, e nesta guerra tudo depende deles.
- Disso se deduz que nossos novos aliados não nos ajudam muito.
- Não no mar. Os suecos e os russos são muito bons soldados, mas é no mar onde se decide esta questão. Por outro lado, neste momento é quase impossível considerar Bernadotte um aliado. Como o senhor sabe, é um tipo muito variável, um tipo que poderia ensinar a Judas uma ou duas coisas, e agora seu principal objetivo é apoderar-se da inofensiva Noruega aproveitando-se de nossa ajuda. De todas maneiras, os suecos não têm uma armada eficiente, e tampouco os russos; quer dizer, possuem alguns barcos, mas não sabem como governá-los. Desde que seus países se converteram em nossos inimigos e os oficiais ingleses se foram dali, são incapaces de governá-los. Além disso, são muito desajeitados e estúpidos. Um almirante russo que participou da reunião sugeriu que matássemos de fome a esses homens. Dissemos que tinham provisões para seis meses, mas ele repetiu, em um francês execrável, que deveríamos manter o bloqueio durante esse tempo para matá-los de fome. Manter o bloqueio por seis meses para matá-los de fome quando carecemos de barcos para fazê-lo e cada dia que passa tem grande importância! Em uma semana poderia mudar o aspecto da guerra nos mares do norte! Contudo, nem todos os estrangeiros são estúpidos. Encontra-se entre nós um jovem oficial da cavalaria lituana que enviado pelo exército sueco que nos proporcionou muita informação sobre os fatos mais recentes, que espero que sirvam para, se me permite usar essa expressão comum, fazer outra tentativa com uma idéia mais clara da situação.
- Por favor, diga-me a idéia que tem da situação.
- É uma situação muito curiosa. Nas últimas semanas houve profundas mudanças por causa das diferenças entre os distintos grupos que há na ilha. Parece que nessa pasta amarela que está ao seu lado estão todos os detalhes. Tenha a bondade... - Então pôs os óculos e disse: - Sim, estão aqui. Lembro que a última vez que me perguntou por esses grupos ou organizações não pude dar detalhes, mas agora estão aqui, agora os tenho. As forças catalãs que se encontram na ilha são integradas por três grandes organizações: a Liga, a Confederação e a Germandat.
Stephen assentiu com a cabeça. Ele as conhecia muito bem.
- Sim, a Liga, a Confederação e a Germandat - continuou. - Desculpe minha pronúncia, Maturin. Cada uma está sob o comando de um chefe diferente, que, por sua vez, está sob o comando de um coronel de artilharia francês. O coronel foi chamado para tomar parte no sítio de Riga, e havia tanta confusão nesse momento que não foi substituído imediatamente. Então surgiram divergências entre as organizações, e o chefe da mais forte, aproveitando a ausência do coronel, tomou o comando e enviou os oficiais que estavam em desacordo com ele para terra firme, onde foram recrutados para a Legião espanhola. Agora nega-se a pôr-se sob as ordens do coronel substituto, um tal Lesueur, alegando que Lesueur tem uma categoria inferior e que Macdonald desobedeceu as regras ao dar-lhe essa nomeação. Escreveu uma carta para o general Oudinot na qual dizia que era tenente coronel, pois parece que promoveu a si mesmo, e que preferiria morrer a suportar essa afronta. Temos a carta.
- Por favor, sir Joseph, diga-me o nome da organização dominante agora e de seu chefe.
- A organização se chama Germandat - disse sir Joseph dando-lhe a carta. - E o nome do chefe poderá saber mais facilmente vendo a assinatura do que se eu pronunciar. Além disso, tem má letra.
Ramón d'Ullastret i Casademont. Stephen tinha motivos para esperar que esse fosse o nome. A palavra Germandat lhe dera esperanças, e talvez o fato de ver a letra - ainda que não houvesse prestado muita atenção - havia lhe preparado para encontrar-se com ele. Apesar de tudo, ficou olhando fixamente aquela firma tão rara e ao mesmo tempo tão familiar, a firma de seu padrinho, durante um longo momento, até que se converteu em algo real, até que a idéia coincidiu com a realidade.
- O senhor conhece esse cavalheiro? - perguntou Blaine.
Seria estranho que Stephen não o conhecesse. Esse tipo de relação era tomada muito a sério na Catalunha de sua infância, e ele havia passado muitos dias na casa de seu padrinho. Naquela época Ramón lhe parecia um herói. Descendia pela linha materna de Wifredo o Lanoso e era um fervoroso patriota e se negava a falar castelhano exceto quando estava, como dizia ele, no estrangeiro, quer dizer, em Aragão ou Castelo. Era um excelente jóquei e adorava caçar, e tanto nas montanhas como nos bosques se sentia como em casa, como qualquer outro predador, e graças a ele o Stephen criança havia tido seu primeiro lobo, seu primeiro urso, seu primeiro ninho de águia imperial e, além disso, um rato almiscarado e uma gineta. Também era um orador incansável. Mas sua auréola de herói foi esfumando-se à medida que Stephen crescia. Stephen notou que o orgulho de Ramón tinha uma grande parte de vaidade; julgou menos subjetivamente e percebeu que seu enorme desejo de destacar-se, de guiar em vez de ser guiado, era um obstáculo para o movimento autônomo catalão; observou mais detalhadamente e detectou nele bastante obstinação e estupidez. Apesar disso, ainda sentia um grande afeto pelo seu padrinho, e pensava que seu gosto pelo espetáculo, seu afã por ter supremacia e inclusive seus mais graves defeitos não tinham muita importância se comparados com sua coragem, seu sentido do honra, sua generosidade, e a amabilidade com que sempre tratava o seu afilhado. Stephen podia vê-lo agora caminhando de uma ponta a outra da fria casa solarenga de Ullastret, com uma comprida capa como a que usavam os cavalheiros de Malta, movendo-se de um lado a outro, enquanto recitava um poema sobre o sítio de Barcelona no tempo de seu avô, quando os espanhóis foram derrotados pelos catalãos e ingleses sob o comando de lorde Peterborough e fugiram em debandada; um poema que causaria maior impressão, ainda que não seria mais comovente, se o sobrenome Peterborough, que se repetia com frequência, não rimasse quase sempre com a mesma palavra.
- Eu o conheço - respondeu sorridente. - Como as provisões chegam à guarnição?
- Em barcos dinamarqueses procedentes de Danzig ou mais longe. Aprisionamos um há pouco, no dia em que enviaram os despachos, mas o único carregamento que levava era vinho e tabaco. Não necessitam de munições nem de alimentos básicos porque têm os armazéns cheios de bolachas e carne salgada e toda a água que possam desejar. Em caso de necessidade, com isso poderiam resistir mais de seis meses.
- Pode ser que o vinho e o tabaco não sejam essenciais, mas são um grande consolo para os homens mediterrâneos - disse Stephen. - Suponho que este é o plano da fortificação.
- Exatamente. E nestes lugares estão localizadas as baterias. Esse jovem lituano que acabo de mencionar nos proporcionou o mapa. É uma das pessoas com mais facilidade para os idiomas que já conheci. Fala todas as línguas do Báltico, ainda que diz que seu estoniano e seu finlandês deixam muito a desejar; seu inglês é perfeito, e, pelo que pude apreciar, seu francês também. Tem brio e é muito simpático, e estou certo de que lhe será útil, caso o senhor concorde de ir ali apesar do desafortunado início da operação. Verdadeiramente, a tarefa não é tão simples como supunha.
- Naturalmente que vou - disse Stephen. - Não há dúvida disso. Inclusive tomei a liberdade de dizer ao meu amigo Aubrey que havia essa possibilidade. Por isso me atrasei, porque fui à sua casa para dizer-lhe. Preferiria navegar com ele, preferiria ter seu apoio em vez do de um estranho. Tem muita experiência, o que, como o senhor muito acertadamente assinalou, é fundamental para levar a cabo uma operação deste tipo; seja o que for em terra, é um Ulisses na mar. Além disso, pode e quer acompanhar-me.
- Estamos muito agradecidos, estimado Maturin - disse sir Joseph apertando-lhe a mão. - Muito agradecidos. E quanto a Aubrey, será o companheiro ideal, se não surgirem dificuldades pela questão da classe. O senhor já sabe que os oficiais navais se aferram de suas prerrogativas, e o barco que pensamos enviar é uma simples corveta... Mas esse é um pequeno detalhe, e estou certo de que poderemos contorná-lo.
- Diga-me, Ponsich pôs algumas condições quando concordou em ir para Grimsholm? - perguntou Stephen depois de uma pausa.
- Sim.
- Talvez sejam as mesmas que as minhas. Quero que todos saibam que, em caso de que tenha êxito nas negociações, os soldados catalãos não deverão ser considerados prisioneiros de guerra senão ser tratados com grande respeito e enviados para a Espanha como homens livres, com suas armas e sua bagagem. É necessário que possa prometer isso, e desejaria que não se negassem a me dar autoridade para fazê-lo. Além do mais, insisto em que me dêem uma garantia de que assim será.
- Eu lhe compreendo perfeitamente. Certamente, eu não posso dar essa garantia, porque a confirmação vem de cima, mas não há dúvida de que lhe darão, já que para Ponsich fizeram uma promessa quase idêntica.
- Bem. Muito bem. Tem mais documentos que eu deveria ver?
- Planos e mais planos e observações sobre a distribuição das tropas: nada de verdadeiro interesse para o senhor nem para mim. Talvez devessemos estudá-los amanhã, para que o jovem de quem lhe falei nos esclaressa as notas, porque tem muitas habilidades, mas entre elas não está escrever com letra clara. Agora bebamos um café. Estou desejoso de saber o que ocorreu em Paris e a acolhida que lhe dispensaram.


x
x
x
                                                        CONTINUA
X
X
X


Quando sir Joseph saiu do quarto, Stephen olhou ao seu redor. O quarto havia mudado um pouco, e depois de alguns momentos se deu conta de que as esculturas de bronze e os quadros eróticos haviam desaparecido e que havia jarros com flores por todos os lados. Abaixo, na rua, o vigia gritou: "Três da madrugada, faz uma noite horrível e parece que haverá tormenta!". E nesse momento, Blaine regressou.
Tomaram o café, quase uma garrafa de conhaque e falaram de Paris. Stephen transmitiu os cumprimentos de seus amigos e entregou seus presentes. Sir Joseph perguntou cortesmente pelo andamento dos assuntos legais do capitão Aubrey e se alegrou muito ao saber que sua recomendação havia servido de algo. E no momento que Stephen ia se levantar, inquiriu:
- Poderia pedir sua opinião como médico?
Stephen assentiu com a cabeça, voltou a acomodar-se na poltrona e disse que a daria com muito gosto.
- Já faz algum tempo... já faz algum tempo estou pensando em me casar - disse sir Joseph com o olhar fixo na cafeteira.


X
X
X

X
X
X


- Matrimônio? - perguntou Stephen com indiferença, pois parecia que seu paciente não podia seguir adiante e supunha que isso era suficiente para descrever sua dolência.
- Sim, matrimônio - disse Blaine por fim. - É bom ter namoricos, e às vezes são muito prazeirosos, mas são relações, por assim dizer, estéreis. Além disso, a dama em questão é virtuosa. Mas talvez haja esperado muito tempo. Nos últimos meses hei notado com grande pena certa... Como direi...?, certa falta de vigor, certa fraqueza, e me parece que eu também deveria cantar vixi puellis nuper idoneus. A medicina pode fazer algo em um caso como este, ou é inevitável que isto ocorra na minha idade? Passei do que Horácio chama lustra decem; contudo, ouvi falar de elixires e gotas...
- Não é inevitável - respondeu Stephen. - Pense nesse homem tão velho, o velho Parr. Se casou outra vez aos cento e vinte e dois anos e sua união, conforme acredito, foi frutífera, e, se não me equivoco, inclusive foi processado por estupro posteriormente. Meu colega Beauprin, a quem tive o gosto de conhecer na França, tinha apenas oitenta anos quando voltou a casar-se, e sua mulher teve dezesseis filhos. Mas antes de falar como médico, quero preguntar como amigo se pensou detalhadamente na conveniência de reavivar esse fogo. Quando um homem olha ao seu redor, no geral encontra mais dor do que prazer. Inclusive Horácio rogava a Vênus que lhe deixasse livre... parce, precor, precor. Não é a paz o bem mais apreciado? Não é melhor a calmaria do que a tormenta? Uma vez naveguei com um jovem que sabia chinês e lembro que citou uma passagem do Analectus de Confúcio no qual o sábio se congratulava de haver chegado à idade das orelhas obedientes, à idade em que podia seguir o ditado de seu coração sem faltar à moral. E Orígenes, como o senhor recordará, cortou o membro pecador e...

 

 

                                                                                                  

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades