Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ÁLIBI
Primeira Parte
SÁBADO
Um grito rasgou o silêncio refrigerado do corredor do hotel. Tendo acabado de entrar na suíte segundos antes, a camareira saiu trôpega do quarto pedindo socorro, aos prantos, e batendo nas portas dos outros apartamentos ao acaso. Mais tarde o supervisor ia repreendêla por aquela reação, mas naquele momento ela realmente estava tomada pela mais completa histeria. Infelizmente para ela, poucos hóspedes estavam em seus apartamentos naquela tarde. A maioria tinha saído para curtir o charme exclusivo do bairro histórico de Charleston. Mas, finalmente, ela conseguiu chamar a atenção de um hóspede, um homem de Michigan que, sofrendo com o calor ao qual não estava habituado, tinha retornado ao quarto do hotel para tirar um cochilo. Apesar de meio grogue por ter despertado assim de repente, ele imediatamente concluiu que apenas uma catástrofe gigantesca poderia provocar aquele nível de pânico que dominava a camareira. Antes mesmo de entender o que ela dizia entre soluços, ele ligou para a recepção e alertou o pessoal do hotel que havia uma emergência no último andar. Dois policiais de Charleston, cuja ronda incluía o recém-inaugurado Charles Towne Plaza, atenderam imediatamente ao chamado. Um guarda da segurança do hotel, todo alvoroçado, levou-os à suíte do último andar, onde a camareira tinha entrado para arrumar a cama e descobriu que não seria mais necessário. O ocupante estava caído no chão da sala da suíte, morto. O policial abaixou-se ao lado do corpo.
Ela chamou sua atenção no minuto em que entrou no pavilhão. Mesmo no meio de uma multidão de mulheres, quase todas usando mínimas roupas de verão, ela definitivamente se sobressaía. E, surpreendentemente, estava sozinha. Parou para se familiarizar com o ambiente, seus olhos examinaram por um breve tempo o tablado onde a banda se apresentava, depois a pista de dança, então olhou para a disposição casual de cadeiras e mesas em volta. Avistou uma mesa vazia, foi até ela e sentou-se. O pavilhão era redondo, com cerca de trinta metros de diâmetro. Apesar de ser uma estrutura aberta, com um telhado cónico de onde pendiam lâmpadas brancas de Natal, o teto inclinado não permitia que o som se espalhasse e a cacofonia era incrível. O que faltava de talento musical na banda era compensado pelo volume, obviamente convencidos de que os decibéis a mais tornariam as notas erradas menos perceptíveis. Mas eles tocavam com um entusiasmo exuberante e tinham presença de palco. Nos teclados e na guitarra, os músicos pareciam estar arrancando as notas à força dos seus instrumentos. A barba trançada do que tocava gaita balançava a cada movimento abrupto que ele fazia com a cabeça. Enquanto serrava as cordas com o arco, o violinista dançava com uma ginga enérgica, exibindo suas botas amarelas de vaqueiro. O baterista parecia conhecer apenas um ritmo, mas se concentrava nele com verve. A multidão parecia não se importar com o som desarmonioso. E por sinal, Hammond Cross também não. Ironicamente, a barulheira da feira era até confortante. Ele absorvia o barulho – os gritos que vinham da rua principal, assobios dos rapazes adolescentes desordeiros no alto da roda-gigante, o choro dos bebés cansados, os sinos, apitos e cornetas, a gritaria e as risadas. Ira uma feira municipal não constava da agenda dele naquele dia. Deviam ter feito alguma publicidade antecipada sobre o evento no jornal local e na televisão, mas ele não tinha tomado conhecimento. Ele chegara à feira a cerca de meia hora do Centro de Charleston, por acidente. Nunca saberia o que o fez parar ali. Não era um grande entusiasta de eventos assim. Seus pais certamente nunca o levaram a um. Eles evitavam atrações públicas como aquela a qualquer custo. Não era exatamente a tribo deles. Não eram pessoas do tipo deles. Normalmente Hammond teria evitado aquele programa também. Não por ser esnobe, mas porque trabalhava demais, era egoísta com seu tempo de lazer e muito seletivo na maneira de aproveitá-lo. Uma partida de golfe, umas duas horas pescando, um bom filme, um jantar tranquilo num bom restaurante. Mas uma feira municipal? Isso não estaria em evidência na lista das suas atividades prazerosas. Mas naquela tarde especificamente, a multidão e o barulho o atraíram. Se tivesse ficado sozinho no seu canto, ele só pensaria nos seus problemas. Acabaria ficando abatido, e quem ia querer isso em um dos últimos fins de semana do verão? Por isso, quando teve de reduzir a velocidade e quase parar, preso no tráfego que se arrastava para o estacionamento provisório – na verdade um pasto que um fazendeiro empreendedor transformara em estacionamento -, ele permaneceu na fila com os outros carros, vans e veículos semi-utilitários. Ele pagou dois dólares para o jovem mascando tabaco que cobrava pelo fazendeiro, e teve a sorte de encontrar uma vaga para o carro à sombra de uma árvore. Antes de descer, ele tirou o paletó e a gravata e arregaçou as mangas da camisa. Foi desviando dos montes de esterco pelo caminho, desejando estar de jeans e botas em vez da calça social e mocassins, mas já sentindo a animação crescer. Ninguém ali o conhecia. Não tinha de conversar com ninguém, se não quisesse. Não tinha de cumprir obrigação nenhuma, não precisava comparecer a reuniões, nem responder a telefonemas. Naquele lugar ele não era um profissional, nem colega de ninguém. Nem filho. A tensão, a raiva e o peso da responsabilidade começaram a se desfazer. A sensação de liberdade era inebriante. O terreno da feira era demarcado por uma corda de plástico cheia de galhardetes multicoloridos que pendiam imóveis no calor da tarde. O ar denso pesava com os aromas torturantes da comida – a menos saudável possível. De longe a música não parecia ruim. Hammond ficou contente de ter parado. Ele precisava daquele isolamento. Porque, apesar de todas aquelas pessoas que passavam pela roleta, ele se sentia, num sentido bem concreto, isolado. Ser absorvido por uma grande multidão barulhenta subitamente pareceu preferível a passar uma noite solitária em sua casa de campo, que era seu plano original quando saiu de Charleston. A banda tinha tocado duas canções desde que a mulher ruiva sentara do outro lado do pavilhão onde ele estava. Hammond continuou olhando para ela e especulando. Provavelmente estava à espera de alguém, talvez o marido e vários filhos. Aparentava ter menos idade do que ele, talvez trinta e poucos. Mais ou menos da idade das mães que faziam revezamento de transporte dos filhos. Mães de lobinhos. Representantes da associação de pais e mestres. Donas de casa preocupadas com vacinas tríplices, ortodontia e com a brancura das roupas brancas e com o brilho das coloridas. O que ele sabia sobre essas mulheres tinha aprendido nos comerciais da televisão, mas ela parecia pertencer a esse grupo demográfico generalizado. Só que ela parecia estar... nervosa demais. Não parecia mãe de crianças pequenas curtindo alguns minutos de trégua enquanto papai levava os filhos para dar uma volta no carrossel. Ela não tinha aquele ar competente e tranquilo das mulheres dos conhecidos dele que eram membros da liga infantil e de outros clubes cívicos, que compareciam a almoços só de salada e organizavam festas de aniversário para os filhos e jantares para os sócios do marido e que jogavam golfe ou ténis em seus respectivos clubes de campo uma ou duas vezes por semana, entre as aulas de aeróbica e os círculos de estudo da Bíblia. Ela também não tinha o corpo macio e acomodado de uma mulher que gerara dois ou três filhos. Suas formas eram firmes e atléticas. As pernas eram bem-feitas – não, maravilhosas -, musculosas, elegantes e bronzeadas, expostas sob uma saia curta e sandálias de salto baixo. A blusa sem mangas tinha um decote cavado, como uma camiseta regata, e um cardigã combinando estava amarrado ao pescoço com uma volta solta, até que ela o retirasse. A roupa era moderna e chique, um ponto acima da maioria dos shorts e ténis que a multidão usava. A bolsa, que ela pusera sobre a mesa, só comportava um chaveiro, lenços de papel e possivelmente um batom, mas não chegava nem perto do tamanho de uma bolsa de jovem mãe, cheia de garrafas de água mineral, lenços umedecidos, guloseimas naturais e equipamento suficiente para sobreviver dias no deserto caso surgisse uma situação de emergência. Hammond tinha mente analítica. Raciocínio dedutivo era seu forte. Por isso ele concluiu, com o que achava ser um grau razoável de precisão, que aquela mulher não devia ser mãe. O que não queria dizer que não fosse casada, ou comprometida de alguma forma, à espera do cara-metade, quem quer que fosse e qualquer que fosse a natureza do relacionamento deles. Ela podia ser uma mulher dedicada a uma carreira profissional. Um membro requisitado e influente na comunidade empresarial. Uma vendedora bem-sucedida. Uma empresária de bom senso. Uma operadora da Bolsa. Uma analista financeira. Bebericando sua cerveja, que já estava morna naquele calor, Hammond continuou a examinar a mulher, muito interessado. Então, subitamente, ele percebeu que seu olhar era correspondido. Quando os olhares dos dois se encontraram, o coração dele deu um pulo, talvez de constrangimento por ter sido flagrado olhando. Mas ele não desviou o olhar. Apesar dos dançarinos que passavam entre os dois, interrompendo intermitentemente a linha de visão, ambos mantiveram o contato visual por alguns segundos. Então, ela desistiu de repente, como se também se sentisse embaraçada de tê-lo escolhido no meio da multidão. Contrariado de ter uma reação tão juvenil com algo tão insignificante quanto o contato visual com alguém, Hammond cedeu sua mesa para dois casais que esperavam alguma mesa vagar. Ele abriu caminho no meio das pessoas para chegar ao bar provisório. Tinha sido montado durante a feira para atender aos dançarinos sedentos. Era um ponto muito procurado. O pessoal das diversas bases militares das redondezas formava três linhas em pé diante do bar. Mesmo sem uniforme, era fácil identificá-los pelas cabeças raspadas. Eles bebiam, admiravam as moças, avaliavam suas chances de conseguir alguma coisa, apostavam em quem ia ou não se dar bem, cada um querendo ser mais esperto do que o outro. Os atendentes do bar serviam cerveja o mais rápido que podiam, mas não acompanhavam a demanda. Hammond tentou diversas vezes chamar a atenção de um deles, mas finalmente desistiu e resolveu esperar a massa de gente rarear para pedir outra bebida. Ele se sentia um pouco menos patético do que quando estava sentado sozinho à mesa, e olhou para a mesa dela do outro lado da pista de dança. Foi uma ducha de água fria. Três homens ocupavam as cadeiras extras da mesa em que ela estava. Na verdade, os ombros largos de um deles escondiam a mulher da vista de Hammond. O trio não usava uniforme, mas a julgar pela severidade dos cortes de cabelo e pela pose arrogante, ele adivinhou que eram fuzileiros navais. Bom, ele não ficou surpreso. Desapontado, mas não surpreso. Ela era atraente demais para ficar sozinha num sábado à noite. Estava apenas matando o tempo até o namorado aparecer. Mesmo tendo ido para a feira sozinha, não ficaria sem par por muito tempo. Não num mercado de carne como aquele. Um soldado solteiro com um passe de fim de semana tinha o instinto e o propósito único de um tubarão. Tinha apenas uma ideia na cabeça, que era arranjar uma companheira para a noite. E mesmo sem fazer qualquer esforço, aquela chamaria atenção.
Não que ele tivesse pensado em paquerá-la, Hammond concluiu. Estava velho demais para isso. Não ia voltar para aquela mentalidade de rato de fraternidade por nada neste mundo. Além do mais, não seria correto, seria? Ele não era exatamente comprometido, mas também não era exatamente «comprometido. De repente ela se levantou, pegou o cardigã, pendurou a alça da pequena bolsa no ombro e virou-se para sair. Na mesma hora os três homens sentados com ela ficaram em pé e a cercaram. Um deles, que parecia feito a martelo, passou o braço nos ombros dela e encostou o rosto no dela. Hammond conseguiu ver os lábios dele se mexendo. O que ele disse para ela fez seus companheiros caírem na gargalhada. Ela não achou graça. Desviou o rosto, e Hammond teve a impressão de que ela tentava escapar daquela situação constrangedora sem provocar um escândalo. Segurou o braço do soldado e tirou de cima dos ombros e, com um sorriso, disse algo para ele antes de tentar dar meia-volta de novo para ir embora. Sem se dar por vencido, e instigado pelos dois amigos, o rejeitado foi atrás dela. Quando ele segurou o seu braço e a puxou para trás, Hammond entrou em ação. Mais tarde ele não se lembraria de ter atravessado a pista de dança, apesar de ter praticamente atropelado os casais que naquela hora se embalavam com uma música lenta, porque em segundos já passava entre dois fuzileiros navais musculosos com abdómens de pedra e empurrava o persistente, dizendo ao mesmo tempo:
Hammond passou o braço na cintura dela e a levou para a pista de dança.
Depois de enfatizar suas ordens, o detetive Rory Smilow cumprimentou o policial uniformizado com um aceno de cabeça e entrou no Charles Towne Plaza pela porta principal do hotel. A escada tinha sido apresentada por diversas revistas especializadas como um triunfo arquitetônico. Já era a principal assinatura do novo complexo. Epítome da hospitalidade sulista, duas alas de degraus bem largos partiam do saguão. Pareciam abraçar o incrível candelabro de cristal antes de se unir doze metros acima da recepção, formando a galeria do segundo andar. Nos dois níveis do saguão, policiais se misturavam aos hóspedes e aos empregados do hotel e, àquela altura, todos já tinham ouvido dizer que acontecera o que parecia ser um assassinato no quinto andar. Nada criava aquele tipo de atmosfera ansiosa como um assassinato, pensou Smilow observando a cena. Queimados de sol, transpirando, turistas com suas câmeras fotográficas andavam de um lado para outro fazendo perguntas a qualquer pessoa com autoridade, conversando entre eles, especulando a identidade da vítima e o que havia provocado o crime. Com seu terno feito sob medida e camisa de punhos dobrados com abotoaduras, Smilow estava conspicuamente bem-vestido. Apesar do calor abafado lá fora, sua roupa estava fresca e seca, nem um pouco úmida. Um subordinado irritado certa vez tinha perguntado com os dentes cerrados se Smilow não suava nunca.
Smilow caminhou com determinação para o conjunto de elevadores. O policial com quem tinha conversado à entrada do hotel devia ter comunicado a chegada dele, porque já havia um outro no elevador, segurando a porta para ele. Sem agradecer a cortesia, Smilow entrou na cabine.
O homem que todos só conheciam pelo primeiro nome operava três cadeiras de engraxate numa alcova num canto do saguão do hotel. Durante décadas tinha sido um acessório permanente de outro hotel no Centro da cidade. Recentemente fora atraído pelo Charles Towne Plaza, e sua clientela mudou-se com ele. Recebia excelentes gorjetas até de pessoas que não eram da cidade, porque Smitty sabia melhor do que o porteiro do hotel o que fazer, aonde ir e onde encontrar qualquer coisa em Charleston. Rory Smilow era um dos clientes assíduos de Smitty. Normalmente ele teria parado para trocar amabilidades, mas estava com pressa e, na verdade, um pouco irritado de ter de parar.
Ele e o policial de uniforme subiram até o último andar em silêncio. Smilow nunca fazia camaradagem com os companheiros, nem mesmo com os da mesma patente, mas certamente não com os subalternos. Nunca iniciava uma conversa, a não ser que se relacionasse com algum caso em que estivesse trabalhando. Os homens do departamento, temerários a ponto de tentar bater papo com ele, logo descobriam que tais tentativas eram inúteis. A pose dele desencorajava camaradagem. Até a sua aparência alinhada era eficiente como corda de sanfona no que dizia respeito à facilidade de abordagem. Quando as portas do elevador se abriram no quinto andar, Smilow teve a sensação que já conhecia. Tinha visitado inúmeras cenas de crime, algumas bem-comportadas e nada espetaculares, outras extraordinariamente medonhas. Algumas eram esquecíveis e rotineiras. Outras ele lembraria para sempre, graças à imaginação criativa do matador, ao ambiente estranho em que o corpo tinha sido encontrado, ao bizarro método de execução, à exclusividade da arma ou à idade e situação da vítima. Mas a primeira visita a uma cena de crime invariavelmente provocava uma descarga de adrenalina, da qual ele jamais se envergonhara. Tinha nascido para fazer aquilo. Gostava do seu trabalho. Quando ele saiu do elevador, a conversa dos policiais à paisana no corredor silenciou. Por respeito, ou medo, eles se afastaram para dar passagem para ele até a porta aberta da suíte do hotel onde um homem tinha morrido naquele dia. Ele gravou o número do quarto e então deu uma espiada lá dentro. Ficou satisfeito de ver que os sete policiais que formavam a Unidade da Cena do Crime já estavam lá, cumprindo suas diversas funções. Verificou que eles estavam fazendo um trabalho minucioso e virou-se para os três detetives que tinham sido enviados pela Divisão de Investigação Criminal. Um deles, que fumava um cigarro, apagouo rapidamente num cinzeiro próximo. Smilow lançou-lhe um olhar frio, sem piscar.
O detetive enfiou as mãos nos bolsos como um menino repreendido por não ter lavado as mãos depois de ir ao banheiro.
Ele olhou nos olhos de cada homem. E então disse:
Entraram em fila no quarto, calçando luvas de borracha. Cada homem tinha uma tarefa específica. Cada um tratou de cumpri-la, pisando com cuidado, sem tocar em nada que não dissesse respeito à sua função. Smilow se aproximou dos dois policiais que tinham chegado primeiro. Sem preâmbulo, ele perguntou:
O policial olhou para o parceiro, que falou pela primeira vez:
Até aquele ponto Smilow tinha ignorado o corpo. Então foi até ele.
Smilow registrou a resposta, mas olhava intensamente para o homem morto. Até ver com os próprios olhos, não acreditava que a suposta vítima de assassinato não fosse outro senão Lute Pettijohn. Um tipo de celebridade local, homem de grande reputação, Pettijohn era, entre outras coisas, presidente-executivo da construtora que havia convertido o armazém de algodão em ruínas no espetacular e novo Charles Towne Plaza.
E também era cunhado de Rory Smilow.
Ela sorriu, e então Hammond ficou duplamente satisfeito de ter obedecido ao seu impulso cavalheiresco e idiota de salvá-la. Tinha se sentido atraído por ela no momento em que a viu, mas vê-la do outro lado da pista de dança não era nada se comparado com aquela visão tão próxima e sem restrições. Ela desviou os olhos do olhar intenso de Hammond e ficou olhando para um ponto qualquer acima do ombro dele. Ela mantinha a calma sob pressão. Sem dúvida, ela era tranquila.
Conversa brilhante, Cross, pensou ele. Cintilante.
Ela nem se dignou a responder à última afirmação inane, e ele não a culpou por isso. Se continuasse assim, ela ia dar o fora antes de a música acabar. Ele a conduziu rodopiando em volta de outro casal que executava passos intrincados, e então, com voz bem neutra, ele fez a pergunta mais cliché de todas as paqueras:
Ela entendeu a piada e sorriu, aquele sorriso que podia reduzi-lo ao mais completo idiota se não tomasse cuidado.
E dito e feito, o trio de fuzileiros estava bem na linha divisória da pista de dança, tomando cerveja e olhando para eles furiosos.
Hammond deu um sorriso convencido para os homens, firmou o braço em volta da cintura dela e passou rodando por eles.
Ela olhou para ele.
Mas o fato de ter concordado em continuar dançando não reduziu a tensão dela. Não estava exatamente virando rápido para olhar para trás, mas Hammond sentiu que era isso que ela queria fazer. O que o fez imaginar o que ela faria quando a dança acabasse. Ele esperava um fora. Um fora gentil, mas mesmo assim um fora. Felizmente a banda tocava uma balada triste e melada. A voz do cantor não era refinada, era metálica, mas ele conhecia a letra de todos os versos. No que dizia respeito a Hammond, quanto mais demorasse aquela dança, melhor. A parceira encaixava bem nele. O topo da cabeça dela ficava na altura do queixo dele. Hammond não tinha ultrapassado a barreira imaginária que ela estabeleceu entre eles no momento em que ele a puxou para os seus braços, mas a simples ideia de segurá-la contra seu corpo era muito excitante. Por enquanto ele se contentava com isso, com a parte interna do seu braço encostando na parte inferior das costas dela, com a mão dela sem aliança – no ombro dele, os pés para lá e para cá, no ritmo da música lenta.
De vez em quando as coxas dos dois encostavam de raspão e ele sentia um latejar de desejo, mas era controlável. Ele tinha a visão de cima do decote da blusa dela, mas era bastante cavalheiro para não espiar. Só que a sua imaginação corria solta, adejando aqui e ali, ricocheteando nas paredes da mente dele como uma varejeira enlouquecida com o calor.
- Eles foram embora.
A voz dela tirou Hammond daquele devaneio. Quando entendeu o que ela queria dizer, ele olhou em volta e viu que os fuzileiros não estavam mais lá. Na verdade, a música tinha terminado, os músicos estavam deixando os instrumentos no chão e o líder da banda pedia a todos “fiquem onde estão”, prometendo que voltariam para tocar mais depois de um breve intervalo. Outros casais voltavam para suas mesas ou iam para o bar.
Ela abaixou os braços. Hammond percebeu que ainda a segurava pela cintura e não teve alternativa senão soltá-la. Quando ele fez isso, ela deu um passo para trás, afastando-se dele.
Quando chegaram ao perímetro do tablado do pavilhão, ele desceu e segurou a mão dela para ajudá-la a descer, um gesto cortês e desnecessário, já que a altura não passava de uns quarenta centímetros. Ele foi andando ao lado dela.
Ela sorriu, mas balançou a cabeça, indicando que não.
Ela não desacelerou, mas olhou para ele com uma expressão de mágoa.
Ela parou de repente e virou de frente para ele. Inclinou a cabeça e olhou diretamente para Hammond. O sol poente criava linhas de luz através das íris verdes. Ela semicerrou os olhos e os protegeu com cílios bem mais escuros que o cabelo. Olhos maravilhosos, ele pensou. Diretos e cândidos, mas sensuais. E naquele momento, curiosos e penetrantes, perguntando como ele sabia a que hora ela havia chegado.
abaixou a cabeça. A multidão parecia um redemoinho. Um grupo de jovens passou correndo e por pouco não esbarrou nos dois, levantando uma nuvem de poeira sufocante que ficou rodopiando em torno deles. Uma criança começou a berrar quando seu balão cheio de hélio escapou da mãozinha minúscula e flutuou em direção à copa das árvores. Uma dupla de adolescentes tatuadas transformava em espetáculo todo produzido os cigarros que acendiam, e passaram falando alto com linguagem aviltante.
Não reagiram a nada disso. A cacofonia da feira parecia não penetrar no silêncio particular dos dois.
Ela levantou um ombro num gesto discreto de concessão.
Ela levantou a cabeça e deu um olhar de quem bate em retirada.
Ele abriu um enorme sorriso, porque ela era tremendamente atraente e não se importava de ele estar flertando com ela como não flertava havia vinte anos.
O médico-legista, um homem franzino e atencioso, com ar sensível e muito educado, tinha conquistado uma coisa raríssima: o respeito de Smilow. O dr. John Madison era um negro do Sul que fizera por merecer sua autoridade e posição numa cidade consumadamente sulista. Smilow admirava qualquer pessoa que atingia esse tipo de realização pessoal diante da adversidade. Madison havia estudado meticulosamente o corpo do modo que tinha sido encontrado, de barriga para baixo. O morto foi delineado e depois fotografado de diversos ângulos. Examinou as mãos e os dedos da vítima, especialmente embaixo das unhas. Testou a rigidez movendo os pulsos. Usou uma pinça para tirar uma partícula não identificável da manga do paletó de Pettijohn, depois guardou-a com todo o cuidado num saco especial para provas. Só depois de completar o exame inicial e de pedir ajuda para virar a vítima foi que tiveram a primeira surpresa – um ferimento bem feio na têmpora de Pettijohn, na linha do cabelo.
Madison ajeitou os óculos e disse, apreensivo:
Smilow sabia apreciar a relutância do médico-legista de se comprometer com uma teoria ou outra antes da autópsia.
Smilow deu uma rápida olhada em volta. Tapete. Sofá. Poltronas. Superfícies macias, a não ser pelo tampo de vidro da mesa de centro. Ele caminhou de cócoras até a mesa e abaixou a cabeça até ficar com os olhos na altura do tampo. Tinham encontrado um copo e uma garrafa do minibar sobre a mesa. Já haviam sido recolhidos e ensacados pela Unidade da Cena do Crime. Sob aquela perspectiva, Smilow pôde ver algumas rodelas de líquido, já secas, onde Pettijohn tinha posto seu copo sem um portacopos por baixo. Moveu os olhos lentamente pela superfície de vidro, examinando um centímetro de cada vez. O técnico em datiloscopia tinha descoberto o que parecia ser a marca de uma mão na beirada da mesa.
Smilow ficou em pé e procurou reconstruir mentalmente o que podia ter acontecido. Recuou para o lado mais distante da mesa e andou na direção dela.
-Vamos supor que Lute ia pegar seu drinque – disse ele, pensando em voz alta – e caiu para a frente.
Smilow era temido, em geral não gostavam dele, mas ninguém da Divisão de Investigação Criminal discutia seu talento para recriar um crime. Todos no quarto pararam para ouvi-lo atentamente.
Smilow encenou a queda, com cuidado para não encostar em nada, especialmente no corpo.
Smilow olhou para o detetive que disse isso e fez sinal para ele continuar.
Quando ele ia para a porta, um dos detetives resmungou:
para verificar o sistema de segurança do hotel.
-Ah, confusão. Uma trapalhada geral. A fita está temporariamente desaparecida.
Os detetives saíram em fila para começar a questionar os hóspedes e os empregados do hotel. Em geral as pessoas não gostavam de passar por esse interrogatório porque implicava culpa, por isso aquela ia ser uma tarefa desagradável e cansativa. E Smilow, eles sabiam por experiência própria, era um chefe inclemente e implacável quando cobrava o cumprimento dessas tarefas. Ele aproximou-se do dr. Madison outra vez.
Depois que removeram o corpo, Smilow dirigiu-se a um dos técnicos da Unidade da Cena do Crime.
Quando a suíte ficou vazia, Smilow caminhou por ela sozinho. Verificou tudo pessoalmente, abriu cada gaveta, examinou o armário e o cofre embutido, entre os colchões, embaixo da cama, dentro do armário do banheiro, no vaso sanitário, à procura de qualquer coisa que Lute Pettijohn pudesse ter deixado que servisse de pista para a identidade do assassino. A soma total de descobertas de Smilow foi uma Bíblia protestante e a lista telefónica de Charleston. Não encontrou nada pessoal que pertencesse a Lute Pettijohn, nenhuma agenda, recibos, bilhetes, anotações, embalagens de alimentos, nada. Smilow viu que faltavam duas garrafas de uísque no minibar, mas que apenas um copo tinha sido usado, a menos que o assassino tivesse sido esperto e levado o dele quando saiu. Mas Smilow ficou sabendo, depois de se informar na copa, que o número normal de copos altos de uma suíte era quatro, e restavam três limpos. Em se tratando de cenas de crime, aquela era praticamente estéril... a não ser pela mancha de sangue no carpete.
Smilow, que estava pensativo, olhando para o sangue no carpete, levantou a cabeça.
O policial em pé na porta do quarto acenou com o polegar para o corredor.
-Eu.
Uma mulher passou ao lado do patrulheiro como se ele não tivesse importância nenhuma, tirou a fita da cena do crime da porta e entrou na suíte. Quando ela viu a mancha escura de sangue, bufou desapontada e revoltada.
Smilow levantou o braço para ver as horas no seu relógio de pulso.
Ela não mordeu a isca que Hammond lançou, continuou lambendo seu picolé. Só falou quando o palito ficou completamente seco.
Rindo, eles chegaram a uma escada com degraus irregulares de madeira que levava a um cais. A plataforma ficava aproximadamente a um metro da água e tinha mais ou menos dez metros quadrados de área. A água batia suavemente nas estacas por baixo das tábuas gastas. Bancos de madeira formavam o perímetro do píer, e os encostos serviam de balaustrada. Hammond pegou o palito e o papel do sorvete dela e jogou-os na lata de lixo junto com os dele, depois apontou para um dos bancos. Em cada canto do píer havia um poste de luz, mas as lâmpadas eram fracas e não incomodavam. Luzes brancas de Natal como as que pendiam do teto do pavilhão tinham sido postas entre os postes. Elas suavizavam a rusticidade, transformando o píer comum e feioso num lugar romântico. A brisa era suave mas suficientemente forte para afastar os mosquitos. Sapos coaxavam nas folhagens densas que cresciam nas margens do rio. Cigarras cantavam nos galhos mais baixos e cheios de musgo ao abrigo generoso das copas dos carvalhos.
Ela deu uma risada. Os dois tinham rido bastante nas últimas horas enquanto experimentavam as guloseimas altamente calóricas das barraquinhas de comida e andavam a esmo de uma para outra. Tinham admirado conservas domésticas de pêssego e de vagem, tiveram uma aula sobre o mais moderno equipamento de musculação e experimentaram os assentos estofados de tratores da mais alta tecnologia. Hammond ganhou um ursinho em miniatura para ela jogando uma bola de beisebol. Ela se recusou a experimentar uma peruca, apesar da vendedora ter sido muito persuasiva. Deram uma volta na roda-gigante. Quando o banco deles parou lá em cima e balançou precariamente, Hammond se sentiu completamente eufórico. Foi um dos momentos mais despreocupados que ele conseguia se lembrar desde... Não era capaz de se lembrar de nenhum momento mais alegre. As amarras que mantinham seus pés bem presos ao chão, às pessoas, ao trabalho, às obrigações pareciam ter sido cortadas. Por alguns minutos ele ficou flutuando, livre. Sentiu-se livre para curtir a emoção de uma leveza de espírito que não lembrava mais. Livre para aproveitar a companhia de uma mulher que tinha conhecido havia menos de duas horas. Espontaneamente, ele virou para ela e perguntou:
Ela deu uma risada e abaixou a cabeça, balançando-a de um lado para outro ao mesmo tempo.
Então eles pararam de rir e ficaram só olhando um para o outro. Esse olhar se estendeu alguns segundos, depois minutos, e por um tempo ainda mais longo, calmo por fora, mas estrepitoso no campo emocional. Para Hammond foi um daqueles momentos que só se tem uma vez na vida, quando se tem sorte. Do tipo que até os diretores e atores mais talentosos do cinema não conseguem captar num filme. O tipo de momento de união que os poetas e compositores tentam descrever em suas obras, mas que não chegam a passar por completo. Até aquele instante Hammond nutria a noção equivocada de que eles tinham feito um bom trabalho. Mas estava entendendo que eles tinham fracassado terrivelmente. Como é que uma pessoa, qualquer pessoa, podia descrever aquele momento em que tudo se encaixa? Como descrever aquela explosão de clareza quando sabemos que a nossa vida só começou agora, que tudo que aconteceu antes não se compara a isso, e que nada será a mesma coisa daqui para a frente? As respostas ilusórias para todas as perguntas deixaram de ter importância, e ele compreendeu que a única verdade que realmente precisava saber estava no aqui e no agora. Neste momento. Ele nunca se sentira assim em toda a sua vida. Ninguém jamais sentiu isso. Ele ainda estava balançando no banco, lá em cima na roda-gigante, e não queria descer nunca mais. Assim que ele disse “Dança comigo outra vez?”, ela disse: “Eu preciso mesmo ir”. “Ir?” “Dançar?” Eles falaram ao mesmo tempo de novo, mas Hammond atropelou a voz dela:
Ela virou a cabeça e olhou na direção do estacionamento, do outro lado da feira.
Ele não queria pressioná-la. Qualquer tentativa de coerção provavelmente a faria fugir. Mas ele não podia deixá-la ir. Ainda não.
Ela olhou para ele com cara de dúvida, e então deu-lhe um pequeno sorriso.
Eles se levantaram e ela se dirigiu para a escada, mas Hammond segurou a mão dela e a puxou de volta.
Ela respirou fundo e soltou o ar bem devagar, meio trémula.
Ele não tinha tocado nela desde a última dança, só encostou a mão de leve nas costas para guiá-la por uma passagem estreita no meio da multidão. Tinha oferecido a mão para ajudá-la quando subiram e desceram da roda-gigante. Ficaram com os braços e os quadris encostados na gôndola da roda-gigante enquanto rodavam. Mas exceto poucas ocasiões, ele havia controlado todas as tentações de tocála, sem querer afugentá-la, passar por tarado ou ofendê-la. Mas naquele momento ele a puxou gentilmente, porém com firmeza, até bem perto. Passou o braço na cintura dela e puxou-a mais. Mais perto do que antes. Contra seu corpo. Ela cedeu com um pouco de hesitação, mas não tentou se afastar. Pôs o braço no ombro dele. Ele sentiu a pressão da mão dela na nuca. A banda tinha parado de tocar. A música estava a cargo de um DJ que tocava uma variedade que ia de Creedence Clearwater até Barbra Streisand. Estava ficando tarde, os dançarinos estavam mais calmos, por isso ele tocava músicas mais lentas. Hammond reconheceu a canção mas não conseguia se lembrar do nome do cantor nem da música que soava no pavilhão. Não tinha importância. A balada era lenta, suave e romântica. No início ele tentou fazer com que os pés executassem uma sequência de passos que tinha aprendido quando jovem nos bailes que frequentava a contragosto, levado pela mãe. Mas quanto mais tempo ele ficava segurando seu par, mais difícil era concentrar-se em outra coisa que não fosse ela. Uma melodia era seguida por outra, e eles não perdiam o ritmo, apesar de ela ter dito que só queria dançar uma música. Na verdade, eles nem notavam quando a música mudava. Seus olhos e mentes estavam presos um no outro. Ele encostou as mãos dadas dos dois no peito dele, a dela espalmada e a dele por cima. Ela inclinou a cabeça para a frente e para baixo até encostar a testa na clavícula dele. Ele roçou o pescoço no cabelo dela. Hammond não ouvia, mas sentia o pequeno ruído do desejo que vibrava na garganta dela. E o dele fez eco. Os pés dos dois deslizavam cada vez mais devagar até que pararam por completo. Ficaram imóveis, e a única coisa que se movia era uma mecha do cabelo dela que a brisa fazia acariciar o rosto dele. O calor que emanava de cada ponto de contato parecia forjá-los juntos. Hammond abaixou a cabeça para o beijo que ele achava que seria inevitável.
Por alguns segundos, Hammond ficou atónito demais para reagir. Depois de pegar suas coisas, ela passou por ele e disse apressadamente:
Ela desviou da mão dele e subiu rapidamente os degraus, tropeçando uma vez por causa da pressa.
Ela jogou as palavras por cima do ombro enquanto corria na direção do estacionamento. Seguiu a fileira de flâmulas, evitando a rua principal, evitando o pavilhão e a atividade que já diminuía nos estandes. Algumas atrações já estavam fechadas. Os expositores desmontavam suas barracas e empacotavam seus equipamentos. Famílias carregadas de lembranças e prémios caminhavam lentamente para suas vans. O barulho não era mais tão alegre, nem tão alto como antes. A música no pavilhão agora soava mais triste do que romântica. Hammond foi andando o tempo todo ao lado dela.
Desesperado para detê-la, ele segurou seu braço. Ela parou, respirou fundo várias vezes e virou-se de frente para ele, apesar de não olhar diretamente para Hammond.
Hammond soltou o braço dela e recuou, levantando as mãos em sinal de rendição.
-Até logo – foi tudo que ela disse antes de virar de costas para ele e seguir pela terra seca até o estacionamento.
Stefanie Mundell jogou as chaves do seu Acura para Smilow.
Tinham saído do hotel pela entrada da rua East Bay e andavam apressados pela calçada que estava congestionada, não só com a multidão habitual de sábado à noite, mas com curiosos atraídos para o novo complexo pelos veículos de emergência estacionados ao longo da rua. Passaram pelos observadores curiosos sem chamar atenção porque nenhum aparentava ser “funcionário público”. O terno de Smilow continuava impecável, os punhos da camisa limpos. Apesar da confusão em torno do assassinato de Pettijohn, ele não tinha se abalado. Ninguém suspeitaria também que Steffi era assistente do promotor público. Ela estava de short de corrida e top de ginástica, ambos ainda molhados de suor, que nem o sistema de refrigeração de ar do hotel tinha sido capaz de secar. Os mamilos rijos, assim como as pernas magras e musculosas, atraíram a atenção de vários homens, mas ela nem se deu conta dos olhares de admiração enquanto levava Smilow para o seu carro, estacionado ilegalmente numa rua de mão dupla. Ele apertou o botão do controle remoto para destrancar as portas, mas não deu a volta para abrir a porta do lado dela. Ela teria feito pouco caso do gesto se ele o fizesse. Ela entrou no banco de trás. Smilow pôs-se ao volante. Deu partida no motor e esperou os outros carros passarem para sair.
Smilow tinha dito para eles manterem a boca fechada quando os repórteres aparecessem fazendo perguntas. Já convocara uma entrevista coletiva para as onze horas. Marcar essa hora significava ter as estações locais ao vivo com a reportagem nos últimos noticiários da noite, o que ampliava a sua exposição na televisão. Impaciente com a interminável fila de carros se arrastando pela avenida, ele enfiou o carro de Steffi na pista estreita de sentido contrário e recebeu uma buzinada escandalosa de um veículo de frente para ele. Demonstrando a mesma impaciência que Smilow exibia dirigindo, Steffi arrancou o top esportivo pela cabeça.
Sem constrangimento algum, ela secou as axilas com uma toalha de mão que tirou da sua sacola de ginástica.
Para alguém que renegava sua origem pobre, Steffi se referia a ela com frequência, em geral para justificar seu comportamento grosseiro.
Steffi vestiu um sutiã normal, em seguida tirou o short e procurou uma calcinha na sacola.
-A cena de crime mais limpa que já tive em muito tempo. Talvez a mais limpa que já vi.
Ele olhou para ela outra vez. Steffi abotoava um vestido sem mangas, mas não prestava atenção no que fazia. Olhava para o espaço e ele quase conseguia ver as engrenagens do seu cérebro inteligente rodando. Stefanie Mundell trabalhava na Promotoria Pública havia pouco mais de dois anos, mas nesse tempo ela fez diferença – nem sempre no bom sentido. Alguns a consideravam uma verdadeira praga, e ela sabia ser uma. Tinha uma língua ferina e não se opunha a usá-la. Ela nunca, mas nunca mesmo, recuava numa argumentação, o que fazia dela uma excelente advogada de tribunal e uma tortura para os advogados de defesa, mas isso não contribuía em nada para a sua reputação entre os colegas de trabalho. Mas pelo menos a metade dos homens, e talvez algumas mulheres, que trabalhavam no departamento de polícia e no prédio judicial do município, eram apaixonados por ela. Alianças fantasiosas com ela muitas vezes eram comentadas com os detalhes mais crus, regados pelos drinques depois do expediente. Sem que ela ouvisse, claro, porque ninguém queria ser alvo de um processo de assédio sexual por parte de Stefanie Mundell. Se ela sabia de todo esse tesão enrustido por ela, fingia não saber. Não porque pudesse aborrecê-la ou deixá-la sem graça saber que os homens usavam os termos mais chulos em relação a ela. Simplesmente acharia que era um comportamento juvenil, idiota e trivial demais para gastar seu tempo e energia com isso. Rory observava Steffi secretamente pelo espelho retrovisor enquanto ela afivelava um cinto fino de couro na cintura e depois passava as mãos no cabelo para penteá-lo. Ele não sentia atração física por ela. Vê-la operar não acendia nele nenhum desejo louco, carnal, apenas uma profunda admiração por sua inteligência privilegiada e pela ambição que lhe servia de combustível. Essas qualidades o faziam lembrar de como ele era.
recebeu os tiros. De qualquer forma, não representava ameaça nenhuma. O matador simplesmente queria vê-lo morto.
Mas olhando para ela pelo espelho e vendo fogo nos seus olhos, ele não tinha dúvida de que para ela isso seria uma prioridade. Ele parou o carro perto do meio-fio.
Desceram na frente da mansão de Lute Pettijohn. O exterior grandioso, condizente com o endereço de prestígio na South Battery, era uma mistura arquitetônica. O estilo georgiano original tinha dado lugar aos toques federativos que surgiram depois da Guerra Revolucionária. Em cima disso, adicionaram a revitalização das colunas gregas quando eram símbolo da oposição à Guerra da Secessão. Mais tarde a estrutura imponente foi atualizada com salpicos de vulgaridade vitoriana. Essa colcha de retalhos de arquitetura era típica do Bairro Histórico e, ironicamente, tornava Charleston ainda mais pitoresca. A casa de três andares tinha varandas duplas e profundas, com colunas majestosas e arcos graciosos. Uma cúpula coroava a cumeeira do telhado. Por dois séculos a casa tinha resistido a guerras, a crises económicas debilitantes e a furacões antes de sofrer seu último ataque – de Lute Pettijohn. A restauração bem documentada que ele fez demorou anos. O primeiro arquiteto que supervisionou o projeto pediu demissão porque teve um esgotamento nervoso. O segundo sofreu um enfarte. O cardiologista dele obrigou-o a abandonar o projeto. O terceiro chegou ao fim da restauração, mas custou-lhe seu casamento. Desde o portão da frente, com seu elaborado trabalho em ferro fundido e luminárias historicamente catalogadas, até as cópias das dobradiças das portas dos fundos, Lute não tinha economizado nada para sua casa ser a mais comentada em toda Charleston. Isso ele tinha conseguido. Não era necessariamente a restauração mais admirada, mas certamente tinha sido a mais falada. Ele travou uma batalha contra a Sociedade de Preservação de Charleston, a Fundação Histórica de Charleston e a Associação de Arquitetos com sua proposta de converter o antigo armazém em ruínas no que agora era o Charles Towne Plaza. Essas organizações, cujo propósito era preservar com todo zelo o que Charleston tinha de exclusivo, fiscalizar as construções e limitar a expansão comercial, inicialmente vetaram a proposta dele. Ele não recebeu as licenças até todos terem certeza de que a integridade do exterior de tijolos original do prédio não seria drasticamente alterada nem comprometida, que suas cicatrizes bem vividas não seriam camufladas e que jamais seria desfigurada com marquises ou outros letreiros contemporâneos designando o que era. As sociedades de preservação tinham nutrido reservas semelhantes quanto à renovação da casa dele, mas ficaram satisfeitas porque a propriedade, que tinha caído num triste estado de decadência, fora comprada por alguém que tinha meios para reformá-la do jeito que merecia. Pettijohn tinha obedecido às diretrizes rígidas porque não teve escolha. Mas o consenso geral era que a reforma que ele fez na casa, especialmente no interior, era um exemplo claro de até que ponto se pode ser vulgar quando se tem mais dinheiro do que bom gosto. Mas todos concordavam que os jardins não tinham igual em toda a cidade. Smilow notou que o jardim da frente era exuberante e que estava muito bem cuidado quando apertou o botão do interfone no portão principal. Steffi olhou para ele.
Smilow estava esperando que alguém dentro da casa atendesse à campainha e respondeu pensativo:
Mas nem mesmo Rory Smilow era tão insensível e cínico assim. Quando Davee Pettijohn olhou para o vestíbulo lá embaixo, ao pé da escada, viu o detetive parado, com as mãos para trás, olhando fixamente para seus sapatos muito lustrosos ou para o piso italiano em que eles pisavam. De qualquer modo, parecia totalmente concentrado na área em volta dos seus pés. A última vez que Davee tinha visto o ex-cunhado do marido fora num evento em homenagem ao departamento de polícia. Smilow tinha recebido um prémio aquela noite. Depois da cerimónia, Lute o procurou para dar-lhe os parabéns. Smilow apertou a mão de Lute, mas só porque Lute o forçou a isso. Foi cortês com eles, mas Davee percebeu que o detetive preferia rasgar a garganta de Lute com os dentes em vez de apertar-lhe a mão. Rory Smilow demonstrava o mesmo controle rígido daquela última ocasião. Sua postura e aparência eram perfeitamente militares. O cabelo estava rareando no topo da cabeça, mas só dava para notar porque Davee estava no alto da escada. Não conhecia a mulher que estava com ele. Davee sempre teve o hábito de avaliar qualquer outra mulher que encontrava, por isso teria lembrado se já tivesse visto a companheira de Smilow. Smilow não olhou para cima, mas a mulher parecia avidamente curiosa. Sua cabeça se movia constantemente, girando, observando tudo que havia na entrada da casa. Não perdia nenhum item importado da Europa. Seus olhos eram ligeiros e predatórios. Davee sentiu aversão por ela à primeira vista. Nada menos importante do que uma catástrofe teria levado Smilow à casa de Lute, mas Davee resolveu ignorar isso até onde fosse possível. Bebeu de um gole tudo que tinha no seu copo alto e, com cuidado para não fazer barulho com as pedras de gelo, o deixou numa mesa de canto. Só então ela anunciou sua presença:
Seguindo o som da voz dela, os dois viraram juntos e a viram lá em cima, no topo da escada. Ela esperou os olhos se fixarem nela para iniciar a descida. Estava descalça e um pouco despenteada, mas desceu a escada, com a mão no corrimão, como se estivesse de vestido de baile, a princesa da noite, com seus humildes súditos prestando homenagem em adoração. Era de uma família do epicentro da sociedade de Charleston. Por ambos os lados ela pertencia à noblesse oblige. Jamais esquecia disso, e também fazia questão de não deixar ninguém esquecer.
Davee estendeu a mão. A dele estava seca e quente. A dela levemente úmida e muito fria, e ela ficou imaginando se ele adivinhara que tinha segurado um copo de vodca. Smilow soltou a mão dela e apontou para a mulher que estava com ele.
Ela era mignone, cabelo escuro curtinho e olhos escuros. Olhos intensos. Olhos famintos. Não estava de meias, apesar dos sapatos de salto alto. Para Davee isso era uma quebra de etiqueta mais ofensiva do que seus pés descalços.
A empregada, que tinha aberto a porta para os dois antes de avisar Davee que tinha visita, andava pela sala acendendo as luzes.
A mulher, que era gorda e negra como um armário de mogno, aceitou com um movimento de cabeça o agradecimento de Davee e saiu por uma porta lateral.
O rosto de Steffi ficou vermelho de raiva.
Davee ficou encarando Smilow alguns segundos, deu uma olhada rápida para Steffi e então, com um gesto brusco, indicou o sofá mais perto deles. Ela sentou-se numa poltrona ao lado. Ele começou explicando que aquela não era uma visita casual.
Davee manteve a expressão sob controle. Não se podia demonstrar muita emoção em público. Simplesmente não se fazia isso. Esconder as emoções era uma habilidade que se adquiria naturalmente quando papai era um mulherengo e mamãe uma alcoólatra, e todo mundo sabia por que ela bebia, mas todo mundo também fingia que não havia problema algum. Não na família deles. Maxine e Clive Burton tinham sido um casal perfeito. Ambos descendiam de famílias da elite de Charleston. Ambos eram absolutamente lindos. Ambos frequentaram escolas exclusivas. O casamento deles era padrão de comparação para todos os outros, até hoje em dia. Eram um par sublime. As três filhas adoráveis tinham recebido nomes de menino, porque Maxine estava bêbada sempre que entrava em trabalho de parto, ou porque estava tão entorpecida que se confundia com o sexo das recém-nascidas, ou então por despeito pelo volúvel Clive, que desejava filhos homens e a culpava por produzir apenas filhas. Não levava em conta a ausência de cromossomos Y. Então as pequenas Clancy, Jerri e Davee foram criadas num lar em que problemas domésticos sérios eram varridos para debaixo dos valiosíssimos tapetes persas. As meninas aprenderam logo cedo a controlar suas reações diante de qualquer situação, por mais perturbadora que fosse. Era mais seguro assim. Era impossível confiar e difícil de avaliar a atmosfera em casa quando pai e mãe eram voláteis e dados a crises de mau-humor, que resultavam em brigas que estilhaçavam qualquer aparência de paz e tranquilidade. Consequentemente, as irmãs ficaram com cicatrizes emocionais. Clancy tinha curado as suas morrendo com trinta e poucos anos de câncer cervical, que os boatos mais venenosos afirmavam ter sido consequência de inúmeras doenças venéreas. Jerri tinha seguido na direção oposta, convertendo-se a um grupo fundamentalista cristão no primeiro ano da faculdade. Dedicava-se a uma vida de sacrifícios e abstinência de tudo que significasse prazer, especialmente álcool e sexo. Plantava legumes e pregava o Evangelho numa reserva indígena de Dakota do Sul. Davee, a mais nova, foi a única que continuou morando em Charleston, desafiando a vergonha e a maledicência, mesmo depois de Clive morrer de parada cardíaca na cama da amante do momento, entre a reunião da diretoria pela manhã e a partida de golfe à tarde, logo depois de Maxine ter sido internada numa clínica com o “mal de Alzheimer” embora todos soubessem que a verdade era que seu cérebro estava conservado no álcool da vodca. Davee, que parecia suave e maleável como caramelo quente, na verdade era dura como pedra. Teve resistência suficiente para passar por cima de tudo. Ela sobrevivia a qualquer coisa. Tinha provado isso.
No carrinho de bebidas, ela pôs alguns cubos de gelo num copo de cristal e jogou vodca em cima deles. Bebeu quase a metade em um gole só, depois encheu o copo de novo e voltou para junto dos dois.
Davee bebeu mais um pouco.
Davee abriu os braços e derramou um pouco da bebida no tapete.
Davee dominou a raiva, ergueu calmamente o copo para tomar mais um trago e levou algum tempo para responder.
Ela foi até uma mesa de canto e apertou um único botão num telefone de mesa. A voz da empregada soou no alto-falante:
Os três aguardaram em silêncio. Lançando um olhar frio, de desprezo, para a promotora, Davee ficou brincando com o colar – de um único fio de pérolas exatamente do mesmo tamanho – que usava. Tinha sido um presente do pai, que ela amava e odiava ao mesmo tempo. A terapeuta tinha dito que as pérolas eram um símbolo da desconfiança dela, porque o pai tinha traído a mãe e as filhas. Davee não sabia se isso era verdade ou se simplesmente gostava do colar. Mas fosse o que fosse, ela usava as pérolas com tudo, inclusive com o short bem curto e a camiseta branca de algodão tamanho grande que vestia aquela noite. Davee tinha herdado a empregada da mãe. Sarah trabalhava para a família desde antes de Clancy nascer e vivenciara todas as tribulações deles. Quando ela entrou na sala, olhou com hostilidade para Smilow e Steffi Mundell. Davee apresentou Sarah formalmente: :« ,
A reação de Sarah não foi mais visível do que a de Davee tinha sido. Davee continuou:
Steffi Mundell quase xingou.
Davee olhou para ele com ar inocente.
Os olhos dele pareciam de gelo, mas ele se virou para a empregada e disse educadamente:
Smilow ignorou Steffi e agradeceu à empregada. Sarah Birch se aproximou de Davee e segurou a mão dela.
Davee sorriu para ela e Sarah passou a mão afetuosamente no cabelo louro despenteado de Davee, depois deu meia-volta e saiu da sala. Davee terminou seu drinque, olhando disfarçadamente para Steffi por cima da borda do copo.
Steffi estava soltando fumaça de raiva e nem se deu o trabalho de responder. Indo de novo até o carrinho de bebidas, Davee perguntou:
-Até o corpo ser liberado – disse Smilow, terminando a frase para ela.
Ela serviu-se de mais uma dose de vodca e depois voltou para perto dos dois.
É claro que Smilow conhecia as circunstâncias da morte do pai dela. Todos em Charleston sabiam muito bem dos detalhes escandalosos. Ela gostou de Smilow parecer meio constrangido e penalizado quando ele respondeu à sua pergunta.
Ela pôs o copo na mesa de centro e, quando recuou, endireitou as costas.
Davee que ainda estava ali e que era alguém importante, alguém que devia ser levado em consideração.
Ela fez uma pausa, mas Davee não ia perdoar suas muitas infrações das regras tácitas do decoro. Davee se manteve impassível.
Steffi não gostou da interrupção de Davee, mas persistiu assim mesmo.
Davee deu o seu sorriso mais bonito e mais falso.
E então, de frente para Smilow, a ex-debutante ordenou como seriam as coisas:
O homem deu um tapa no feltro verde manchado e um sorriso antipático de quem bebeu cerveja demais que fez Bobby Trimble estremecer de nojo. Bobby pegou sua carteira no bolso de trás da calça, tirou duas notas de cinquenta e deu-as para o cretino do filho-da-mãe, um pé rapado.
O homem embolsou as notas e, então, esfregou as mãos ansioso.
Bobby piscou o olho, deu um tiro com o dedo na enorme barriga do outro cara e se afastou saltitando, levando sua bebida. Na verdade, ele adoraria tentar de novo e recuperar o que tinha perdido, mas infelizmente estava sem um tostão. A última série de jogos, que perdeu todos, o deixou algumas centenas de dólares mais pobre. Até resolver seu problema de caixa não podia apostar nada. Tampouco podia usufruir das melhores coisas da vida. Aqueles últimos cem dólares teriam contribuído muito para resolver sua fissura. Nada de mais, apenas algumas fileiras. Ou uns dois comprimidos... Ainda bem que tinha o cartão de crédito falsificado. Podia cobrir suas despesas diárias com ele, mas para qualquer extra precisava de dinheiro em espécie. Que era mais difícil de arranjar. Não impossível. Só exigia mais trabalho. E a vocação de Bobby era menos trabalho e mais boa vida.
Quando seu investimento gerasse dividendos, teria anos de recreação pela frente. Mas o sorriso dele não durou muito. Uma nuvem de incertezas cobriu a fantasia do seu futuro ensolarado. Infelizmente, o sucesso do seu esquema de ganhar dinheiro dependia da sua parceira e ele estava começando a duvidar da lealdade dela. Para dizer a verdade, a dúvida queimava suas entranhas com a mesma força do uísque barato que estava bebendo a noite toda. No frigir dos ovos, não confiava mesmo nela, nem um pouco. Ele se sentou num banquinho no fundo do bar e pediu outro drinque. O assento de vinil avermelhado um dia já tivera um relevo imitando couro, mas estava praticamente liso, tendo suportado décadas de beberrões contumazes. Se não tivesse de viver com discrição, não teria escolhido uma taverna de classe baixa como aquela. Tinha vivido muito desde o tempo em que frequentava lugares daquele calibre. Tinha progredido de onde começara. Lá para o alto. Emergente ascendente, esse era Bobby Trimble. Bobby tinha cultivado uma nova imagem para ele e não ia desistir dela. Não podia modificar o berço em que tinha nascido, mas se não gostava dele, se sabia instintivamente que seu destino era maior, com coisas melhores, então podia muito bem descartar uma imagem e criar outra. E foi isso que fez. Foi esse interesse adquirido pela urbanidade que proporcionou o confortável emprego em Miami. O dono da boate precisava de um cara com os talentos de Bobby para operar como recepcionista e relações públicas. Ele tinha boa aparência e sua lábia atraía as damas. Agarrou-se ao emprego como um pato à água. Os negócios cresceram significativamente. Em pouco tempo, o Cock’n’Bull passou a ser um dos pontos noturnos mais badalados de Miami, uma cidade famosa por suas casas noturnas. A boate lotava todas as noites com mulheres que sabiam como se divertir. Bobby tinha cultivado, e depois alimentado, a reputação de lugar vulgar e obsceno para competir com os outros clubes de mulheres. O Cock’n’Bull não se desculpava por apresentar um espetáculo de sexo explícito que atraía mulheres, não damas, que não tinham medo de cair na gandaia. Na maioria das noites, os dançarinos tiravam tudo e ficavam completamente nus. Bobby permanecia de smoking, mas seu discurso levava as mulheres ao frenesi sexual. Seus engodos verbais eram mais eficientes do que os quadris projetados para a frente dos dançarinos. Elas adoravam seus diálogos sacanas. Então, uma noite, uma fã muito entusiasmada subiu no palco com um dos dançarinos, ficou de joelhos e começou a praticar aquele ato libidinoso com ele. As espectadoras enlouqueceram. Adoraram. Mas o esquadrão antivício que se misturava ao público à paisana não gostou. Secretamente, pediram reforços e, antes de qualquer pessoa entender o que estava acontecendo, o lugar ficou cheio de policiais. Bobby conseguiu escapar pela porta dos fundos, mas antes tratou de raspar toda a féria do cofre do escritório. Devido a uma queda pelas pistas de corrida e uma maré recente de má sorte, ele devia dinheiro para um agiota, que não compreendia que o fechamento do clube representava uma interrupção temporária dos seus rendimentos, que seria corrigida em breve. “Em breve” não constava do vocabulário do agiota. Por isso, com o proprietário do clube, a polícia e o agiota na sua cola, ele fugiu do Estado Ensolarado com quase dez mil dólares nos bolsos do seu smoking. Mandou pintar seu Mercedes conversível de uma cor diferente e trocou as placas. Por algum tempo ele viajou tranquilo subindo a costa, esbanjando o dinheiro roubado. Mas não durou para sempre. Teria de pôr mãos à obra, fazendo o único negócio que conhecia. Fazendo-se passar por hóspede dos hotéis luxuosos, ele ficava nas piscinas onde aplicava seu charme em turistas solitárias. O dinheiro que roubava delas ele considerava uma troca justa pela felicidade que lhes proporcionava na cama. Então, uma noite, enquanto bebia champanhe e cantava uma relutante divorciada para que lhe desse a chave do quarto, Bobby viu um conhecido de Miami do outro lado do restaurante. Pediu licença para ir ao banheiro, voltou para o seu hotel, pôs apressadamente tudo que tinha no Mercedes e tratou de sair voando da cidade.
Ficou escondido algumas semanas, e até renunciou às conquistas. Suas reservas de dinheiro encolheram e se reduziram a uma quantia pífia. Apesar de todos os trejeitos e maneirismos afetados, quando Bobby olhava no espelho ele se via como era anos antes – um malandro imprudente e incompetente que competia com trapaceiros de quinta categoria. Essa insegurança crescia muito quando estava quebrado, dominava Bobby violentamente. Uma noite, desesperado e com um certo medo, ele se embebedou num bar e acabou se metendo numa briga com outro freguês. Foi a melhor coisa que podia acontecer. Aquela disputa de bar foi observada pela pessoa certa. Determinou o curso que ele seguia agora. E o resultado já era visível. Se tudo funcionasse do jeito que ele planejara, faria uma fortuna. Teria todo o dinheiro que o Bobby Trimble que era agora merecia. Não voltaria a ser o perdedor que fora antes. No entanto – e esse era um “no entanto” gigantesco -, seu sucesso dependia da parceira. Como havia estabelecido antes, das mulheres não se podia confiar que fossem qualquer outra coisa senão mulheres. Ele esvaziou o copo e levantou a mão para o atendente do bar.
Mas o barman estava entretido com a televisão. A imagem era cheia de chuvisco, mas, mesmo de onde estava sentado, Bobby conseguia ver um cara falando para os microfones apontados para ele. Não era alguém que Bobby conhecia. Só sabia que o homem era antipático e muito sério. Só tinha pose, como os assistentes sociais que costumavam xeretar a casa de Bobby quando ele era pequeno, fazendo perguntas pessoais sobre ele e sua família, invadindo sua vida particular. O homem na televisão era um cara tranquilo, mesmo com uma dúzia de repórteres se atropelando para chegar perto dele.
Bobby perdeu o interesse, e disse mais alto:
A reclamação morreu nos lábios de Bobby quando a imagem na tela da televisão mudou do cara de olhos frios para um rosto que Bobby reconheceu e que conhecia bem. Lute Pettijohn. Ele se esforçou para ouvir cada palavra.
A reportagem especial ao vivo terminou e voltaram a apresentar o noticiário das onze horas nos estúdios. Mais uma vez confiante, com um sorriso de orelha a orelha, Bobby ergueu seu novo drinque num brinde silencioso à parceira. Evidentemente, ela subira no seu conceito.
Smilow se afastou dos microfones, mas descobriu que havia outros atrás dele.
Ele ignorou as perguntas aos gritos e continuou abrindo caminho entre os repórteres até eles entenderem que não iam conseguir arrancar mais nada dele e se dispersarem. Smilow fingia detestar a atenção da mídia, mas a verdade era que gostava de entrevistas coletivas ao vivo como aquela. Não por causa das luzes e das câmeras, apesar de saber que parecia ameaçador nas fotos. Nem mesmo pela atenção e pela publicidade que resultava disso. Seu emprego estava garantido e ele não precisava de aprovação pública para mantê-lo. Ele gostava mesmo era da sensação de poder gerada pelo fato de estar sendo filmado e citado.
Mas quando se aproximou da equipe de detetives reunida perto da recepção no saguão do hotel, ele resmungou:
Os outros balançaram a cabeça concordando com o sumário de Mike Collins.
Smilow tinha calculado seu retorno da casa dos Pettijohn para o Charles Towne Plaza de modo a coincidir com o noticiário das onze horas. E como previra, todas as emissoras locais, assim como as outras de lugares distantes, como Savannah e Charlotte, tinham montado uma transmissão ao vivo no saguão do hotel, onde ele revelou os fatos rudimentares para os repórteres e espectadores em casa. Não dourou a pílula. Primeiro porque só conhecia mesmo os fatos rudimentares. Pelo menos naquela vez ele não estava se esquivando ao se recusar a dar-lhes mais informação. Estava tão aflito quanto a mídia para obter informações. Por isso, o lacónico sumário do sucesso dos detetives só fez desanimá-lo.
Collins estava com olheiras escuras embaixo dos olhos fundos, evidência da dureza que tinha sido sua noite. Ele se virou para Steffi Mundell, que o tinha interrompido, e olhou para ela como se quisesse estrangulá-la, depois a ignorou educadamente e continuou seu relatório verbal para Smilow:
Smilow levantou a mão para impedir uma discussão acalorada entre seu desanimado detetive e a promotora sem papas na língua.
Smilow hesitou um pouco, mas deu ordem para os hóspedes do hotel voltarem para seus quartos. Então, reuniu seus detetives em uma das salas de reunião no mezanino e pediu pizzas para todos. Enquanto dizimavam as pizzas, ele repassou as poucas informações que tinham conseguido depois de horas de exaustivos interrogatórios.
Smilowleu a lista, feita às pressas, dos hóspedes registrados. Todos pareciam acima de qualquer suspeita. Todos afirmaram que não conheciam Lute Pettijohn, mas alguns o tinham visto na cobertura da mídia na inauguração do Charles Towne Plaza alguns meses antes. A maioria era gente comum, de férias com a família. Três casais em lua-de-mel. Alguns outros fingiam ser recém-casados, mas era óbvio que eram amantes secretos passando um fim de semana clandestino numa cidade romântica. Esses responderam às perguntas dos detetives com nervosismo, mas não por serem culpados de um assassinato, apenas de adultério. Todos os quartos do quarto andar, menos três, estavam ocupados por um grupo de professoras da Flórida. Duas suítes acomodavam amontoados meninos de um time de basquete que tinham terminado o segundo grau na primavera e estavam curtindo aquele programa juntos antes de partir cada um para a sua respectiva universidade. O único crime que tinham cometido era o consumo de bebida alcoólica, sendo menores de idade. Para desespero dos colegas, um deles entregou voluntariamente um porta-moedas com maconha dentro para o detetive que o interrogou. O consenso geral era o de que, se Lute Pettijohn não tivesse sido assassinado naquela tarde, teria sido um sábado de verão bem rotineiro.
Depois de outra rodada de risos, Collins sugeriu que Smilow desse uma espiada, e até convidou Steffi para assistir ao vídeo com eles.
Com uma ostentação desnecessária, Collins apresentou o vídeo:
Smilow sabia, por experiência própria, que câmeras de observação em geral eram acopladas a gravadores de tempo que exibiam uma tela a cada cinco ou dez segundos, dependendo da vontade do usuário. Por isso os filmes pareciam pular quando eram rodados de novo. Costumavam gravar vários dias antes de rebobiná-los automaticamente.
Smilow assentiu com a cabeça, e Collins apertou o play no aparelho de vídeo. Mesmo que não tivessem imagem alguma, a trilha sonora era indiscutivelmente a de um filme pornográfico. Os suspiros e gemidos eram pano de fundo de uma imagem granulada de um casal fazendo sexo.
Os outros riram, mas Collins pigarreou, sem se deixar abater pela crítica.
Smilow dirigiu-se ao grupo como um todo.
Smilow olhou zangado para ele.
Steffi inclinou o corpo para a frente.
Smitty estava à porta aberta. Smilow olhou para o seu relógio de pulso. Já passava da meia-noite.
A letra E maiúscula no painel de instrumentos do carro dela brilhou com uma luz vermelha.
Ela gemeu frustrada. A última coisa que queria fazer era parar para abastecer ela mesma o carro, mas sabia que, quando o marcador indicava vazio, costumava ser perigosamente correto. Os postos de gasolina eram raros naquela estrada rural, por isso, quando viu ums poucos quilómetros depois de avistar a luz vermelha, ela parou e saiu do carro cheia de preguiça. Normalmente, quando ela mesma punha gasolina no carro, pagava com cartão de crédito na própria bomba. Mas a tecnologia não tinha chegado àquele lugar onde Judas tinha perdido as botas. Por questão de princípio, não gostava de ter de pagar adiantado. Por isso, ela tirou a mangueira da bomba e abaixou a manivela. Desenroscou a tampa do tanque de gasolina do carro e pôs na capota, enfiou o bico da mangueira no buraco e acenou para o atendente na cabine, indicando com um gesto para ele ligar a bomba. Ele estava assistindo a uma luta na sua televisão em preto e branco. Ela mal conseguia vê-lo atrás das placas de cerveja em néon e dos cartazes pregados na janela anunciando eventos que já tinham acontecido e animais de estimação perdidos. Ele não a viu, ou então estava pondo em prática o próprio princípio de não ligar a bomba se o freguês não pagasse adiantado, especialmente depois de escurecer.
A gasolina saía gota a gota, mas a bomba finalmente desligou. Ela tirou a mangueira do tanque e pendurou-a de novo na bomba. Quando ia pegar a tampa do tanque na capota, outro carro saiu da estrada e entrou no posto. Ela ficou na linha dos faróis e semicerrou os olhos, ofuscada. O carro parou lentamente, apenas a centímetros do pára-choque traseiro do carro dela. O motorista apagou os faróis mas não desligou o motor antes de abrir a porta e descer. Ela ficou boquiaberta e muda quando o viu. Mas não se mexeu, nem disse nada. Não reclamou de ele ter ido atrás dela. Nem exigiu saber por que tinha feito isso. Tampouco insistiu para ele ir embora e deixá-la em paz. Ela não fez nada. Só ficou olhando para ele. O cabelo dele parecia mais escuro agora que o sol tinha desaparecido, não tão dourado como ficava de dia. Ela sabia que os olhos dele eram cinza-azulados, apesar de estarem escondidos da luz. Uma sobrancelha era um pouco mais alta e mais arqueada que a outra, mas as feições assimétricas só lhe aumentavam o charme. O queixo tinha uma reentrância rasa e vertical. A sombra dele era comprida porque era bem alto. O peso jamais seria um problema. Ele não tinha estrutura para carregar quilos a mais. Por vários segundos eles ficaram olhando um para o outro por cima do capo do carro dele, e então ele saiu de trás da porta aberta. Ela seguiu com o olhar os passos dele, vindo na direção dela. A determinação que via no maxilar dele dizia muita coisa sobre o seu caráter. Ele não desistia com facilidade e não tinha medo de correr atrás de alguma coisa que queria. Ele só parou quando estava bem na frente dela. Então segurou o rosto dela com as duas mãos, levantou-o um pouco, abaixou o seu rosto e beijou-a. E ela pensou: Oh, meu Deus! Os lábios dele eram carnudos e sensuais e provocavam o que sugeriam. O beijo era quente, doce e ávido. Ele aplicava a pressão perfeita, sem deixar dúvida de que ela estava sendo firmemente beijada, mas sem fazer com que se sentisse dominada ou ameaçada. Era um beijo tão perfeito que os lábios dela se abriram naturalmente. Quando a língua dele encostou na dela, seu coração se expandiu e ela abraçou a cintura dele. Ele abaixou as mãos e ficou com um braço nos ombros dela, a outra mão abaixo da cintura dela, puxando-a para que seus corpos ficassem colados um no outro. Ele inclinou a cabeça. Ela inclinou a dela para outro lado. O beijo ficou mais profundo, a língua dele mais agressiva. Quanto mais tempo durava o beijo, mais ardente ficava. Então, de repente, ele se afastou. Estava ofegante. As mãos voltaram para a posição inicial, segurando o rosto dela.
Ela balançou a cabeça até onde as mãos dele permitiam.
O protesto morreu nos lábios dela antes de conseguir reunir forças para pronunciá-lo.
-Não diga que não-a voz dele, num sussurro, estava entrecortada, cheia de paixão. Ele apertou mais o rosto dela. - Não diga que não.
Ela examinou os olhos dele, depois fez um movimento leve e positivo com a cabeça. Ele a soltou imediatamente, deu meia-volta e voltou para o carro com passos largos. Ela deixou cair a tampa do tanque na pressa de atarraxá-la. Finalmente conseguiu prendê-la, deu a volta no carro e entrou. Ela deu partida no motor e ele encostou seu carro no dela. Ele olhava para ela como se quisesse se certificar de que ela estava tão decidida quanto ele, que não ia desistir e desaparecer na primeira oportunidade. Ela sabia que era isso que devia fazer. Mas sabia com a mesma certeza que não faria. Agora não. Hammond não respirou com tranquilidade até o carro dela parar completamente ao lado do dele. Ele desceu do seu e foi abrir a porta para ela.
Ele segurou a mão dela e levou-a por um caminho de conchas quebradas até a cabana. Uma pequena luminária na entrada oferecia exatamente a luz necessária para ele destrancar o cadeado com a chave que tinha trazido de Charleston. Abriu a porta e levou-a para dentro. Uma senhora que morava ali perto fazia a faxina na casa sempre que ele precisava. Tinha combinado que ela iria mais cedo aquele dia. Em vez de cheirar a mofo como uma casa vazia que não era muito usada, a cabana estava com cheiro de limpa, como lençóis recém-lavados. A pedido de Hammond, ela também tinha deixado o condicionador de ar ligado, por isso a temperatura estava fresca e bem agradável. Ele fechou a porta da frente, separando-os da luz do pórtico e fazendo com que mergulhassem na mais completa escuridão. Ele tinha intenção de ser um bom anfitrião e um cavalheiro, de mostrar a casa para ela, de oferecer-lhe algo para beber, de contar mais a seu respeito e de dar-lhe tempo para se acostumar com o fato de estar sozinha com ele poucas horas depois de terem se conhecido. Em vez disso, ele a agarrou. Ela correspondeu ao abraço dele e queria seu beijo também. Sua boca reagiu com paixão às investidas da língua dele, que acariciava, experimentava e saboreava até ter de parar para recuperar o fôlego. Ele abaixou o rosto e encostou no pescoço dela, enquanto ela punha as mãos na cabeça dele e enfiava os dedos no seu cabelo. Ele foi beijando o pescoço dela até a orelha.
Os lábios dele rasparam nos dela num beijo que não chegou a ser um beijo.
Qualquer receio que ele pudesse ter do desejo ser unilateral desapareceu quando ela deixou a cabeça cair para trás, oferecendo o pescoço para os lábios dele enquanto era acariciada. Ficou sem ar e parou de respirar quando ele se atrapalhou com o fecho frontal do sutiã, mas deu um suave gemido de prazer quando as pontas dos dedos dele encostaram na sua pele nua. As mãos dela se moviam nas costas dele. Ele sentiu os dez dedos dela apertando os músculos e explorando as costelas e a espinha. As palmas das mãos dela rasparam no cinto dele, desceram para as nádegas e o puxaram para dentro dela. Eles se beijaram mais uma vez, um beijo longo, profundo e provocante. Então ele pegou a mão dela outra vez e a puxou atrás dele enquanto tateava no escuro para chegar ao quarto. A casa não era nada luxuosa, mas ele não tinha sacrificado todos os confortos. Num quarto pequeno demais, ele tinha enfiado uma enorme cama de casal. Foi em cima dela que os dois caíram, unidos bem no centro e entrelaçados um no outro com o desejo cego e irracional dos novos amantes. Ela estava deitada de lado, de costas para ele. Hammond pensava em alguma coisa adequada para dizer, mas descartava as possibilidades antes de estarem formadas. Tudo que vinha à cabeça parecia falso, piegas, cliché ou uma combinação dos três. Ele até pensou em contar-lhe a verdade. Meu Deus, isso foi incrível, , Você é incrível. Nunca senti isso em toda a minha vida. Não quero que esta noite termine nunca. Mas ele sabia que ela não ia acreditar em nada disso, por isso não disse nada. O longo e constrangedor silêncio ficou ainda mais longo mais constrangedor. Ele acabou rolando de lado e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Ela reagiu à luz, puxando os joelhos para mais perto do peito, ficando mais distante e intocável.
Desanimado, Hammond sentou-se na cama. Sua camisa estava amassada e desabotoada, o zíper da calça aberto, mas ainda vestia as duas peças. Ele se levantou e tirou tudo, menos a cueca. Quando olhou de novo para a cama, viu que ela estava de costas e olhando para ele, com os olhos arregalados e apreensivos.
Ela umedeceu os lábios, apertou-os para dentro, desviou os olhos de Hammond e balançou a cabeça.
Ele percebeu que ela gostara daquilo. Os olhos dela encontraram os dele novamente. Ela sorriu com timidez. Ainda afogueada por causa do sexo, com os lábios um pouco inchados dos beijos, o cabelo despenteado em volta do rosto, roupas mais desarrumadas do que as dele, ela parecia incrivelmente sedutora. Seus seios, livres do sutiã, pousavam macios contra o peito por baixo da camiseta. Mas os mamilos eram bem visíveis sob o tecido. Ele começou a ter uma nova ereção.
Os dois ignoraram a calcinha largada em cima da colcha no pé da cama.
Ele retribuiu o sorriso dela.
Ele apontou com o queixo para a porta do banheiro.
Ela parecia hesitar em sair da cama enquanto ele continuava no quarto, por isso ele sorriu de novo para ela e deixou-a sozinha. Ainda bem que a faxineira tinha abastecido a geladeira com bebidas engarrafadas, inclusive água. Na cozinha, ele fez um inventário dos suprimentos. Meia dúzia de ovos. Meio quilo de bacon. Pãezinhos de minuto ingleses. Café. Creme? Não. Torceu para que ela gostasse de café puro. Suco de laranja? Sim. Uma lata de 200ml de suco de laranja concentrado no congelador. Ele raramente tomava café da manhã, a não ser em reuniões de trabalho. Mas no campo, onde as manhãs de fim de semana eram mais longas e preguiçosas, gostava de saborear um farto café da manhã bem tarde. Ele cozinhava bem, especialmente algo tão básico quanto ovos com bacon. Talvez pudessem fazer juntos o café da manhã, dividindo as tarefas, esbarrando um no outro durante os preparativos. Dando risadas. Beijos. Podiam levar seus pratos para a varanda e comer lá. Ele sorriu de pensar na manhã seguinte.
O dia anterior tinha sido péssimo. Havia saído de Charleston aborrecido e com raiva, frustrado com muitas coisas. Nada na vida dele tinha dado certo. Nunca, nem em um milhão de anos, teria adivinhado que um dia tão ruim terminaria na cama com uma mulher que poucas horas antes ele nem sabia que existia. E tampouco que seria uma experiência tão marcante. Ele ainda estava maravilhado com os caprichos do destino quando ouviu a torneira do banheiro fechar. Controlou-se para esperar mais dois minutos, sem querer reaparecer rápido demais ou numa hora inoportuna. Então pegou duas garrafas de água e voltou para o quarto.
Ele parou de falar quando ela se virou rapidamente da penteadeira, com o telefone na mão. Ela desligou na mesma hora e gaguejou. Espero que não se importe.
Na verdade ele se importava, sim. E se importava muito. Não de ela ter usado seu telefone sem antes pedir. Mas de ter alguém na vida que era suficientemente importante para ela ter de ligar de madrugada, minutos depois de fazer amor com ele. Hammond ficou espantado ao perceber que aquilo tinha tanta importância para ele. Tinha brincado na cozinha, fantasiando o café da manhã com ela, contando os minutos para poder voltar no momento adequado. Agora ele estava lá parado, com cara de bobo e uma semi-ereção espetando a cueca. Tudo isso enquanto ela dava um telefonema para outra pessoa. Ele deixou as garrafas de água na mesa-de-cabeceira. Ele se sentia burro, ridículo, sentimentos estranhos para Hammond Cross. Em geral muito confiante e dominando qualquer situação, a sensação naquele momento era da mais completa estupidez, e ele detestou isso.
Se não era importante, então por que diabos estava tentando telefonar para alguém a essa hora da noite?, ele queria perguntar, mas não perguntou.
Ela passou a mão pela frente da velha camiseta desbotada. Ele reconheceu a camiseta de uma festa da fraternidade dos tempos de faculdade. Chegava à metade das coxas dela.
Ela ficou com o olhar parado provavelmente mais tempo do que pretendia. Os lençóis amarfanhados eram uma lembrança comovente do que tinha acontecido ali, do quanto tinha sido envolvente e gratificante. Palavras sussurradas sem censura pareciam ecoar de volta para eles naquele momento. Quando estava no banheiro, ela havia se lavado. Hammond sentia o cheiro de água e sabão na pele dela. Mas ele não tinha se lavado. Cheirava a sexo. Tinha o cheiro dela.
-vou vestir a minha roupa e ir embora – disse ela, apressada, tentando passar por ele, mas Hammond estendeu o braço e segurou-a pela cintura. Ela parou, mas não virou de frente para ele. Ficou olhando para a porta.
Então ela olhou para ele, virando apenas a cabeça.
com que virasse de frente para ele.
Ele a abraçou e puxou-a mais para perto. Só isso. E ficou assim um longo tempo, com o rosto apoiado na cabeça dela, os dedos dos pés tocando nos dela, compartilhando o calor dos corpos. Descalça, engolida pela camiseta dele, ela parecia menor e mais delicada do que antes. Ele se sentia viril e protetor quando a abraçava daquele jeito. Na verdade, desde que a conhecera, tinha se sentido como um maldito Conan.
Deu uma risadinha quando pensou nisso. Ela levantou a cabeça do peito dele.
Ela inclinou a cabeça, confusa.
Ele mantinha uma caixa de camisinhas na gaveta da mesa-de-cabeceira. Mas, de todas, aquela tinha sido a mais difícil de abrir e de colocar. Envergonhado com sua briga desajeitada com o diabo da coisa, num momento em que desejava ser o mais amável, ele resmungou:
Ela o surpreendeu pondo as mãos no peito dele e fazendo carinho de leve.
O desejo se manifestou num gemido surdo quando ele segurou o queixo dela e inclinou sua cabeça para beijá-la. A paixão reacendeu. Pegou fogo. Ardeu. Mais quente do que antes.
Os sussurros incrementavam a intimidade.
-Jesus. Olhe só para você. Isso é lindo. Você já está...
Perdoe-me, sinto muito. Sente muito? Bem, quero dizer... você... Não se desculpe. Deixe-me tocar em você. Não, deixe que eu toco em você.
Steffi dirigia o carro, e Smilow e ela chegaram ao hospital Roper em tempo recorde.
Steffi tinha perdido os detalhes quando saiu da sala de conferência para pegar o carro. Apanhara Smilow na entrada principal do Charles Towne Plaza.
» -A gente nunca esquece de uma intoxicação alimentar quando se teve uma. Eu tive uma vez. Sopa de creme de cogumelos de uma delicatessen famosa.
Quase correndo, eles entraram no pronto-socorro do hospital. Para uma noite de sábado, a sala de espera estava relativamente calma, mas havia alguns pacientes. Um policial uniformizado vigiava um homem algemado. O homem tinha uma toalha de banho ensanguentada enrolada na cabeça como um turbante. Estava de olhos fechados e gemendo, enquanto a mulher dele dava respostas lacónicas para as perguntas padronizadas da enfermeira sobre seu histórico médico. Uma jovem mãe e um jovem pai tentavam em vão acalmar o bebé que chorava. Havia um homem mais velho sentado sozinho, chorando com um lenço no rosto, sem motivo aparente. Uma mulher estava inclinada para a frente, quase dobrada em duas na cadeira, com a cabeça quase encostando no colo. Parecia dormir. Ainda era um pouco cedo para as emergências sérias começarem a chegar. Smilow e Steffi não prestaram atenção nas pessoas da sala de espera e foram diretamente para a mesa de admissão, onde Smilow se apresentou para a enfermeira, mostrou seu distintivo e perguntou se as pessoas transportadas do Charles Towne Plaza ainda estavam na sala de emergência ou se tinham sido levadas para os quartos.
Smilow era o primeiro a criticar se um investigador criminal fizesse besteira. Mas se a crítica partisse de alguém de fora, isso era outra história. Os lábios dele ficaram finos e esticados de raiva.
Ela deu a Smilow alguns segundos para se acalmar.
-Algumas só apresentaram os sintomas mais tarde – argumentou ele. - O gerente do hotel confessou que tirou algumas delas às escondidas do hotel por volta das oito horas da noite.
Steffi e Smilow viraram para trás. O médico era tão jovem que ainda tinha acne, mas os olhos atrás dos óculos de armação metálica pareciam velhos, cansados e privados de sono. O colete verde e o jaleco branco estavam amassados e com manchas de suor. O crachá de identificação com foto dizia RODNEY C. ARNOLD.
Smilow apresentou novamente seu distintivo.
-Até o médico-legista poder dar uma hora mais definida, a nossa estimativa é que a vítima morreu entre quatro e seis horas da tarde.
O residente deu um sorriso triste.
Steffi se adiantou e se identificou.
Ele deu meia-volta e já ia embora.
“Estão sendo hidratados com soro na veia. Os que tiveram a sorte de superar a crise estão descansando e, depois da provação que passaram por causa dos intestinos, eles bem que precisam. Voltem amanhã. Possivelmente no início da tarde. De preferência à noite. Até lá...
Dito isso, ele deu meia-volta e passou pelas portas que separavam a entrada do hospital das salas de exames.
Steffi olhou para ele com um sorriso malicioso.
Ela tirou a tampinha da lata de refrigerante.
Ambos ficaram calados algum tempo, perdidos em seus pensamentos. Finalmente, Steffi perguntou:
Os olhos dele ficaram frios.
-Eu?
-Admito a primeira e nego a segunda. Além do mais, se Pettijohn fosse o tapete vermelho para me levar ao cargo, por que eu ia matá-lo?
Ele sabia a resposta, que apontava para uma pessoa.
Ela ergueu os ombros como se a conclusão falasse por si mesma. Depois de pensar um pouco, ele franziu a testa.
Steffi formou com os lábios, silenciosamente, vai se foder, Smilow! Ela então terminou de beber o refrigerante e levantou-se para jogar a lata vazia num recipiente de lixo reciclável de metal. O barulho que fez assustou todo mundo na sala de espera, menos a mulher adormecida.
Ele apontou para a porta. Os dois saíram para o ar quente e úmido. O céu a leste estava adquirindo um tom rosa-acinzentado, anunciando
a aurora.
Smilow refletiu um pouco e disse:
Ela chegou à porta do motorista, mas não entrou no carro. Em vez disso, parou e olhou para ele por cima da capota.
Loretta Boothe, que estava toda curvada, levantou a cabeça e observou Rory Smilow e Stefanie Mundell atravessando o estacionamento e chegando a um carro onde pararam para conversar antes de entrar nele e partir. Tinham entrado na emergência do hospital com uma explosão de energia e determinação, que Loretta sabia que ambos possuíam abundantemente. Parecia que sugavam todo o oxigénio da atmosfera. Não gostava de nenhum dos dois. Mas por motivos diferentes. Tinha uma rixa pessoal contra Rory Smilow havia alguns anos. Quanto a Steffi Mundell, só conhecia a reputação dela. A assistente do promotor público era considerada por todos uma megera perfeita, que se achava dona da verdade. Loretta não sabia por que não tinha falado com eles, ou se identificado. Alguma coisa fez com que mantivesse a cabeça abaixada, o rosto escondido, fingindo estar dormindo. Não que um deles desse a mínima para ela, de qualquer maneira. Smilow olharia para ela com desprezo. Steffi Mundell possivelmente não ia reconhecê-la, ou então, se reconhecesse, não se lembraria do seu nome. O mais provável é que eles dissessem qualquer coisa razoavelmente educada e depois a ignorassem. Então, por que não tinha dito nada? Devia ter sido a sensação de superioridade de poder ouvir toda a conversa sem ser vista ou observada, primeiro com o médico, depois entre eles. Naquela noite mesmo, antes de começar a sentir náuseas e ter de ir para o pronto-socorro do hospital, tinha sabido do assassinato de Lute Pettijohn pela televisão. Tinha assistido à entrevista coletiva de Smilow. Ele havia se conduzido com sua habitual eficiência e postura inabalável. Steffi Mundell já estava se intrometendo onde não era querida nem necessária, ultrapassando suas fronteiras, no que diziam que ela era muito boa. Loretta deu uma risadinha. Fazia bem ao seu velho coração vê-los correndo atrás de pistas e seguindo as que acabavam num beco sem saída. A investigação não podia estar indo muito bem se as únicas testemunhas possíveis eram as pessoas com intoxicação alimentar. De uma coisa tinha certeza: Smilow não tinha um suspeito viável, senão não estaria perseguindo pacientes na emergência do hospital. Loretta olhou para o relógio na parede. Estava esperando havia mais de duas horas, e piorava a cada minuto. Esperava que o socorro viesse logo.
Para passar o tempo e distrair a mente dos seus problemas pessoais, ela ficou olhando através da janela de vidro laminado para o lugar, agora vazio, onde o carro deles estava estacionado. Rory Smilow e Steffi Mundell. Cristo, que combinação perigosa! Que Deus ajude o pobre criminoso quando eles o pegarem.
Loretta virou-se ao ouvir a voz da filha. Bev estava diante dela, com as mãos nas cadeiras, olhar crítico, nada feliz de vê-la. Ela tentou sorrir, mas sentiu os lábios secos rachando quando os esticou sobre os dentes.
Bev era enfermeira da UTI, mas Loretta achava que ela podia ter pedido para alguém substituí-la por cinco minutos, se quisesse. É claro que ela não quis.
Nervosa, Loretta molhou os lábios descascados com a língua.
-Oh.
Aquilo não estava indo como Loretta esperava, nem tinha muita esperança de que funcionasse mesmo. Ficou mexendo nos botões da blusa suja.
Loretta abaixou a cabeça para evitar o olhar furioso e inclemente da filha.
Loretta concordou com a cabeça, engolindo seu orgulho e a vergonha. As solas de borracha do sapato de Bev guincharam no piso quando ela deu meia-volta para ir embora. Loretta ouviu as portas do elevador se abrindo, levantou a cabeça e chamou, com a voz entrecortada.
As portas se fecharam antes de Loretta terminar a frase, mas só depois de notar que Bev desviou o olhar, como se não suportasse ver a própria mãe.
Simplesmente não fazia sentido. Inesperadamente, completamente ao acaso, você conhece alguém. É como receber um presente sem motivo. A atração é instantânea, forte e mútua. Vocês gostam da companhia um do outro. Riem, dançam, comem milho cozido e tomam sorvete. Fazem sexo, e é de um jeito que você conclui que antes não tinha a menor ideia do que era sexo. Adormecem nos braços um do outro e se sentem mais satisfeitos do que nunca. Então você acorda sozinho. Ela foi embora. Nem até logo, nem adeus. Nem um hasta la vista, baby. Nada. Hammond tamborilava na direção do carro, com raiva dela, mas com mais raiva dele mesmo por se importar. Por que se importaria de ela ter fugido? Ei, ele teve uma noite de sábado sensacional. Fez um sexo ótimo com uma estranha linda, que convenientemente foi para a cama com ele, e depois, mais conveniente ainda, desapareceu, sem nenhuma cobrança. Programa de sonho, certo? Não podia ser melhor. Pergunte para qualquer homem solteiro qual é sua fantasia principal, a número um, e ele dirá que é essa. Então aceite tudo do jeito que foi, seu idiota, ele se repreendeu. Não dê importância demais. E não tenha lembranças melhores do que o que realmente aconteceu.
Mas não estava imaginando que tinha sido melhor do que realmente foi. Foi fantástico, e a lembrança era exatamente essa. Xingando, ele desviou de um motorista que punha à prova a sua paciência, dirigindo devagar demais. Hoje tudo era irritante. Desde que acordara aquela manhã, andava descarregando sua decepção e frustração nos objetos inanimados. Primeiro na escrivaninha, quando deu nela uma topada com o dedão do pé, pulando da cama e correndo para a sala da cabana, com a esperança frenética de vê-la mexendo na cozinha à procura de um pote para servir o cereal, ou folheando uma revista na sala de estar, ou sentada na cadeira de balanço na varanda, vendo o rio fluir languidamente enquanto bebia café e esperava Hammond acordar. As fantasias dele tinham adquirido o brilho sem foco dos comerciais de cartão-postal. Mas não passavam disso mesmo... fantasias. Porque não havia ninguém na sala de estar e na cozinha, o carro dela não estava mais lá e a única ocupante da cadeira de balanço na varanda era uma aranha que se empenhava em tecer uma teia que ia de um braço a outro, cobrindo o assento. Sem se importar de estar nu, ele espantou a aranha e sentou-se na cadeira de balanço, tirando o cabelo da testa com os dez dedos, gesto de um homem desesperado, à beira de perder completamente o controle. A que horas ela fora embora? Que horas eram agora? Há quanto tempo tinha ido? Talvez ela fosse voltar. Talvez ele estivesse se preocupando à toa. Por meia hora ele se iludiu, acreditando que ela havia saído para comprar sonhos e manteiga. Ou creme para o café. Ou o jornal de domingo. Mas ela não voltou. Depois de um tempo, ele cedeu a cadeira de balanço para a aranha e entrou na casa. Quando tentou fazer café, derramou borra de café em cima do aparador. Furioso, ele rachou o bule de vidro e acabou jogando a cafeteira inteira no chão, que se espatifou e espalhou a água que ele tinha posto para ferver. Havia vasculhado a casa toda à procura de alguma coisa que ela podia ter deixado ou esquecido, torcendo para encontrar um cartão de apresentação ou, melhor ainda, um bilhete. Não achou nada. No banheiro, tinha inspecionado o cesto de papel embaixo da pia, mas não havia nada além do saco plástico descartável. Ao levantar, bateu com a cabeça na porta aberta do armário. Com raiva, Hammond bateu a porta com força e xingou com mais ferocidade ainda porque espremeu o dedo quando fez isso. Finalmente, apesar da cama ser a lembrança mais marcante da presença dela, ele se deitou com o braço dobrado em cima dos olhos, fazendo força para recuperar o controle. O que havia de errado com ele? Ficou pensando. Ninguém que o conhecia teria reconhecido Hammond aquela manhã, andando nu e com a barba por fazer pela casa, sem dar a mínima, com a aparência e o comportamento de um louco, um lunático perigosamente desequilibrado. Hammond Cross, agindo como um imbecil, como um adolescente com dor-de-cotovelo. O nosso Hammond Cross? Você deve estar brincando! Espere um minuto, você disse dor-de-cotovelo? Lentamente ele tirou o braço de cima do rosto e virou para o travesseiro dela. Pôs a mão na depressão formada pela cabeça dela. Aos pouquinhos foi ficando de lado, segurou o travesseiro contra o peito e enfiou a cara nele, aspirando profundamente o perfume dela. Foi tomado pelo desejo, mas não era sexo. Tudo bem, era sexo sim, mas não só sexo. Não era um tesão comum. Tinha sentido esse milhares de vezes. Era capaz de reconhecer. Aquilo era diferente. Mais profundo. Mais envolvente. Ele estava dominado por uma... necessidade de estar com ela.
Rolou na cama e ficou de costas de novo, olhou para o teto e, desolado, reconheceu que não conhecia uma palavra que descrevesse o que estava sentindo. Era estranho para ele. Nunca sentira isso antes, como é que podia dar um nome? Só sabia que era abrangente e muito debilitante, que nunca se sentira assim antes, apesar de ter estado com muitas mulheres lindas, cativantes e sensuais. Daí em diante seus pensamentos vagaram da sua história sexual para a dela. E foi então que se lembrou do telefonema. Franziu a testa e olhou para o telefone sobre a mesa do outro lado do quarto. Quando a surpreendera usando o aparelho, ela parecera assustada e culpada. Para quem estava telefonando? Subitamente ele pulou da cama. Com o coração aos saltos, inclinou-se sobre o telefone e passou o dedo pelos botões emborrachados no painel. Nem tinha certeza se aquele modelo tinha aquilo que procurava, mas então, sim!, lá estava. Auto Redial, rediscagem automática.
Hesitou apenas um segundo, e apertou o botão. O telefone emitiu uma série de tons e discou automaticamente o número, que apareceu na mesma hora no mostrador. Ele pegou um lápis e o único papel que tinha ao seu alcance – o exemplar da última temporada da Sports Illustrated-, edição de trajes de banho. Escreveu o número do telefone na barriga da menina da capa.
Hammond não sabia o que esperar e, depois de tocar duas vezes, quando a sua ligação foi atendida por uma voz feminina bem profissional, ele foi pego desprevenido.
Ele desligou rapidamente, mas ficou muito tempo lá sentado, na beirada da cama, imaginando que clínica seria aquela, e por que ela havia telefonado para lá no meio da noite. Tinha passado uma agenda inteira de nomes e rostos no seu banco de memória. Convivia socialmente com diversos médicos. Era sócio de dois clubes de campo, onde médicos de todas as especialidades se acotovelavam. Mas não se lembrava de jamais ter encontrado um dr. Ladd. Mas será que tinha conhecido a mulher do dr. Ladd? Será que conhecia intimamente a mulher do dr. Ladd? Irritado com essa possibilidade triste mas muito concreta, esforçou-se para levantar da cama e tomar uma chuveirada. Não que uma ducha quente significasse alguma coisa. Não que estivesse se sentindo culpado, precisando de uma limpeza. Se ela era casada e tinha mentido sobre isso, a culpa não era dele. Certo? Certo. Depois de se vestir, ele foi se arrastando até a cozinha, onde tomou duas xícaras de café desidratado, congelado e descafeinado. Forçou-se até a comer metade de um pãozinho, mastigando e ruminando em sincronia. Ela disse que não era casada, mas que diabos, como podia acreditar numa mulher que nem tinha dito seu nome para ele? Por Deus, ele nem sabia o nome dela! Ela contou uma porção de coisas. Por exemplo, que não costumava ir para a cama com homens que acabava de conhecer. Nem casual, nem habitualmente. Essas eram as palavras exatas? Mas como ele ia saber se isso era verdade? Como saber se ela não era uma mentirosa compulsiva e uma vadia, que por acaso era casada com um pobre-diabo com diploma de médico? Ela podia ser uma esposa volúvel que tinha traído o marido tantas vezes que ele não se surpreendia mais com telefonemas no meio da noite. Quanto mais Hammond pensava, mais mal-humorado ficava.
Enquanto arrumava a cozinha ele tinha olhado para o relógio de parede e se surpreendido ao ver que já eram quase três horas. Como podia ter dormido tanto? Fácil. Eles não pararam de fazer amor... Não tinham dormido até quase seis da manhã. Ele não pretendia voltar para Charleston até a noite. Tinha planejado passar um domingo tranquilo, pescando, ou sentado na varanda, apreciando a paisagem, basicamente sem fazer nada que exigisse pensar muito. Mas ficar na cabana não tinha muita graça. Nem pensar. Por isso ele trancou a casa e voltou antes do programado. Agora ele estava atravessando a ponte Memorial e entrando na cidade, e imaginando se ela era de Charleston e se tinha voltado para casa por aquele mesmo caminho. E se dessem de cara um com o outro uma noite, numa festa qualquer? Comentariam a noite que passaram juntos ou apenas se cumprimentariam como desconhecidos bem-educados e fingiriam que jamais tinham se visto? Isso talvez dependesse de estarem ou não com outras pessoas neste momento. Como se sentiria se fosse apresentado ao casal aparentemente feliz, dr. E sra. Ladd, e tivesse de olhar bem nos olhos do marido, apertar a mão dele, jogar conversa fora e agir como se não conhecesse intimamente a mulher ao lado dele? Por inúmeros motivos, ele esperava que nunca tivesse de enfrentar uma situação como essa, mas se tivesse ia se comportar com um grau razoável de compostura. Esperava não ficar parecendo um simplório. Esperava conseguir dar as costas para ela e ir embora. Não tinha certeza se podia fazer isso. Era isso que o deixava mais preocupado. Quando tinha de encarar um dilema moral, Hammond normalmente escolhia o lado do bem. Fora as brigas normais da infância, maldades da adolescência e as farras da faculdade, sua conduta era irrepreensível. Não importava se tinha sido amaldiçoado com uma dose extra de virtude, ou se era apenas covarde, ele costumava seguir as regras. Nem sempre era fácil. Na verdade, o sentido inabalável que tinha de certo ou errado estivera sempre no cerne da maioria dos seus conflitos com amigos e colegas, até com seus pais. Especialmente com o pai. O pai e ele não obedeciam as mesmas regras de comportamento. Preston Cross acharia graça dessa perplexidade toda a respeito de uma mulher. Entrando no condomínio onde morava, Hammond se perguntou o que teria acontecido se tivesse entrado no quarto segundos antes e ouvido ela dizer ao telefone uma coisa assim: “Querido, já que é muito tarde, resolvi passar a noite com a minha amiga. Isto é, se você não se importar. Achei que podia ser perigoso voltar dirigindo, sozinha, a essa hora. Tudo bem, então, vejo você de manhã. Também te amo.” A porta automática se abriu e Hammond entrou com o carro na garagem estreita. Mas depois de desligar o motor ele ficou alguns minutos lá sentado, olhar parado para a frente, avaliando se passaria ou não naquele teste específico da sua fibra moral. Finalmente, aborrecido com ele mesmo por alimentar especulação tão sem sentido, ele desceu do carro e entrou na casa pela porta que ligava a garagem à cozinha. Por força do hábito, foi direto para o telefone checar os recados na secretária. Pensou melhor e ignorou o telefone. Haveria pelo menos um recado do seu pai. Não estava a fim de recomeçar o confronto da véspera. Não estava a fim de falar com ninguém. Talvez saísse para velejar um pouco. Ainda faltavam algumas horas para o anoitecer. O barco de dezesseis pés, presente dos pais quando foi inscrito como advogado no foro, estava apoitado do outro lado da rua, no City Marina. Por isso tinha comprado a casa naquele condomínio. Era uma caminhada curta até a marina. Hoje era um dia perfeito para sair de barco. Podia ajudar a clarear sua cabeça. Apressando o passo, ele atravessou a cozinha, passou pelo corredor, pela sala de estar, e estava indo para a escada quando ouviu alguém enfiando a chave na porta da frente. Mal teve tempo de se virar e Steffi Mundell entrou, com um telefone celular na orelha.
A colega nunca parava de trabalhar. Numa pasta enorme, ela carregava uma miniatura do escritório. Quando passou a fazer parte da Procuradoria Municipal de Charleston, ela mandou instalar um rastreador da polícia no carro e ouvia as transmissões como os outros motoristas ouviam música ou entrevistas no rádio. No meio dos outros advogados e oficiais de polícia, era piada corrente que, para a promotoria, Steffi era o equivalente a um advogado de defesa que perseguia ambulâncias. Ela largou seus inúmeros pertences numa cadeira, tirou o sapato de salto alto e tirou a blusa de dentro da saia. Abanou a barriga com a fralda da blusa.
Porque eu estava totalmente envolvido com uma mulher e não queria ser perturbado, pensou ele.
O drama que ela estava fazendo não impressionou Hammond. Era sempre dramática.
Lá se foi o passeio de barco. Ele não queria convidar Steffi para velejar com ele, e era difícil livrar-se dela, especialmente quando ficava agitada daquele jeito. Ele subitamente sentiu um cansaço enorme.
Ele tirou duas garrafas da geladeira, abriu a primeira e entregou-a para ela. Ela pegou a garrafa, mas continuou olhando para ele como se a cara dele tivesse acabado de se desmanchar em feridas purulentas. Ele abriu a segunda cerveja e aproximou o gargalo da boca.
A garrafa de cerveja não chegou à boca de Hammond. Ele abaixou o braço lentamente, olhando incrédulo para Steffi. Segundos foram se passando.
Depois de um tempo imobilizado pelo choque, ele se mexeu. Passou a mão na nuca, onde a tensão já tinha se concentrado. Funcionando no piloto automático, ele deixou a cerveja na pequena mesa de bistrô, puxou a cadeira e sentou-se nela. Quando Steffi se sentou na frente dele, ele piscou e conseguiu focalizá-la.
Ele olhou para ela como se não entendesse mais a língua e, então, balançou a cabeça, distraído.
Ele baixou os olhos para o tampo de granito da mesa e ficou olhando, sem ver, para a condensação que se formava na garrafa de cerveja gelada, tentando assimilar a notícia espantosa.
Ele ouviu Steffi descrever o que a camareira tinha encontrado.
Nos cinco minutos seguintes, Hammond ouviu Steffi explicar os detalhes conhecidos do caso.
Quando ela contou a história das câmeras de segurança falsas, ele balançou a cabeça consternado.
A afirmação caiu entre os dois como uma luva jogada no chão. A rivalidade não era articulada, mas estava sempre lá. Hammond reconhecia humildemente que costumava levar vantagem sobre ela, e não porque era mais inteligente. Tinha tirado segundo lugar na turma da faculdade de direito, mas Steffi tirou o primeiro na dela. O que os distinguia eram suas personalidades. A dele representava uma grande vantagem para ele, mas a de Steffi funcionava contra ela. As pessoas não reagiam bem à sua causticidade nem às suas abordagens agressivas. Ele admitia que sua maior vantagem era o declarado favoritismo de Monroe Mason por ele. Uma posição tinha ficado vaga logo depois que Steffi se juntou a eles. Ambos eram qualificados. Ambos foram avaliados. Mas, na verdade, nunca houve nenhuma disputa quanto a quem seria promovido. Hammond agora era promotor assistente especial. A decepção de Steffi ficou muito clara, apesar de ter enfrentado a situação com brio. Ela não era má perdedora e não tinha guardado rancor. O relacionamento profissional dos dois continuou a ser mais de cooperação do que de rivalidade. Mesmo assim, como estava acontecendo naquele momento, às vezes despontavam desafios silenciosos. Naquela hora, nenhum dos dois quis aceitar. Hammond mudou de assunto:
Steffi, então contou para Hammond a ida dela com Smilow à mansão Pettijohn e por que considerava a viúva uma provável suspeita.
Depois de ouvir a história, Hammond refutou a teoria de Steffi.
-Já fiz a minha pesquisa. O dinheiro dos Burton jorra pelo ladrão. O tom malicioso dela não passou despercebido.
Ela se levantou da cadeira, pôs as mãos nas costas e se espreguiçou com gosto, depois deu a volta na mesa para se sentar no colo de Hammond. Passou os braços em volta do pescoço dele e o beijou.Depois de alguns beijos rápidos, Steffi se endireitou e despenteou o cabelo dele.
Especial? Muito especial. Até as conversas bobas tinham sido extraordinárias.
-Joguei futebol americano na Liga Nacional de Futebol, sabia? -Jogou?
-Joguei. Mas depois que ganhei meu segundo campeonato fui trabalhar para a CIA.
-Foi legal. Até um certo ponto. Mas depois que recebi o Prémio Nobel por ter alimentado todas as crianças famintas da África e da Ásia, comecei a procurar outra coisa para fazer.
-Não!
Hammond se lembrou do toque da mão dela, de ficar excitado...
Ele estava com ereção, mas não motivada pela mulher sentada no seu colo que o acariciava por cima da calça. Ele afastou a mão dela.
Ela chegou para a frente e beijou-o com agressividade. Levantou a saia acima dos quadris, montou em cima dele e o continuou beijando, enquanto atacava a fivela do cinto.
-Detesto correria-disse ela, ofegante, entre beijos. - Mas quando Smilow ligar, vou ter de correr. Temo que isso terá de ser rápido.
Hammond agarrou as mãos atarefadas dela.
Ágil e enérgica, ela pulou do colo dele e foi para a porta, desabotoando a blusa no caminho.
Ela virou de frente para ele e ficou atónita ao ver Hammond levantar-se e fechar o zíper da calça. Ela riu um pouco.
Ele foi para outro canto da cozinha e apoiou os braços na bancada de granito. Ficou olhando para a pia imaculada alguns segundos antes de encará-la de novo.
Assim que conseguiu dizer isso, ele se sentiu enormemente aliviado. Tinha saído da cidade na tarde anterior, sobrecarregado por diversos motivos. Um deles – na verdade o menos importante – era sua indecisão quanto ao caso com Steffi. Não tinha certeza se queria terminar. O esquema deles era confortável. Nenhum dos dois cobrava quase nada do outro. Compartilhavam muitos interesses comuns. Eram sexualmente compatíveis. No entanto, a ideia de morar juntos nunca tinha aflorado nas conversas e Hammond estava feliz por causa disso. Se tivesse, ele teria feito uma lista de desculpas apropriadas para explicar por que morar no mesmo endereço seria uma má ideia, mas o verdadeiro motivo era que o nível de energia de Steffi ia cansá-lo rapidamente. E, aparentemente, ela também demonstrava que não queria tê-lo por perto o tempo todo. O caso deles era mantido em segredo. Os dois se viam regularmente e quando queriam. Por quase um ano tinha sido um arranjo perfeito. Mas ultimamente ele andava sentindo que, afinal de contas, não era tão perfeito assim. Não gostava da clandestinidade e dos subterfúgios, especialmente no que diziam respeito a relacionamentos pessoais, pois se agarrava à crença antiquada de que a honestidade devia ser um pré-requisito. Também estava insatisfeito com o nível de intimidade deles. Para ser mais exato, não existia intimidade nenhuma. De verdade, não. Steffi era uma amante ardente e capaz, mas eles não estavam mais próximos emocionalmente do que da primeira vez que ela o convidou para jantar e eles acabaram arrancando as roupas no sofá da sala. Depois de pesar todos os prós e contras, de pensar semanas no assunto, Hammond tinha resolvido que o relacionamento chegara a um ponto que fazia com que ele quisesse e precisasse de mais. Em vez de aguardar com ansiedade as noites que eles passavam juntos, passara a temê-las. Passou a responder às ligações dela com atraso e não assim que podia. Mesmo na cama, quando faziam sexo, ele se surpreendia distraído e pensando em outras coisas, tendo um desempenho adequado, mas rotineiro, físico, mas sem emoção. Antes da indiferença decair para o ressentimento, era melhor terminar tudo. O que queria e precisava de um relacionamento ele não sabia ao certo. Mas tinha certeza de que o que quer que fosse não ia encontrar em Stefanie Mundell. Tinha chegado mais perto dessa descoberta na noite anterior, com uma mulher da qual nem sabia o nome. Essas eram observações tristes sobre seu relacionamento com Steffi, mas indicavam a plena confirmação de que era hora de acabar. Chegar a essa decisão era apenas a metade do problema. Agora tinha de enfrentar o ato em si. Queria terminar o caso da forma mais civilizada possível, de preferência evitando o equivalente temperamental da Guerra dos Cem Anos. O melhor que podia esperar era que terminasse com os mesmos fogos de artifício com que tinha começado. A probabilidade disso acontecer era nula. Uma cena era praticamente garantida. Ele tinha provocado, e agora ela estava chegando. O que ele tinha dito levou algum tempo para ser registrado. Quando Steffi entendeu, ela engoliu em seco, cruzou os braços por cima da blusa aberta e então, num gesto de desafio, descruzou-os e os deixou caídos ao lado do corpo.
-Ah, é?
Ela inclinou a cabeça para um lado e ergueu as sobrancelhas de um modo familiar demais. Era a expressão que ela fazia quando estava furiosa, quando estava prestes a estraçalhar alguém, em geral um estagiário ou funcionário que não tivesse feito um bom trabalho no preparo de uma minuta para ela, ou um policial que tivesse deixado de incluir um fato completo de um caso em seu relatório, ou qualquer um que ousasse irritá-la quando estava determinada a ter tudo a seu modo.
Ela sorriu e deu de ombros.
Ele balançou a cabeça.
Ele abaixou a cabeça e balançou-a de um lado para outro.
Sem nada para dizer, Steffi ficou lá parada, soltando fogo pelas ventas, em silêncio.
Ele continuou com voz mais calma:
Ele parou de falar para recuperar o fôlego. Ela continuou a olhar fixamente para ele, furiosa.
Ele se aproximou da mesa, pegou sua cerveja e deu um longo gole. Finalmente, olhou para ela.
Mais uma vez ele sabia que ela estava mais zangada do que magoada. Mesmo assim, nenhuma mulher gostava de ser rejeitada. Ele a respeitava o suficiente para dar-lhe o fora com gentileza.
Então sorriram um para o outro, porque, além da atração física, sempre tinham admirado a sagacidade um do outro.
-Você é generoso e atencioso na cama, nunca recebe mais que dá. Resumindo, tudo que desejo num homem. Ele pôs a mão no coração.
-Não estou querendo elogios. Deixo esse tipo de manha feminina para as Davee Pettijohn do mundo. Ele deu uma risadinha.
Ele a fez parar de falar balançando a cabeça vigorosamente.
-Acho que uma separação tranquila seria melhor, você não acha? Ela deu um sorriso amargo.
Ele deu uma gargalhada.
Com a pontinha da língua no meio do lábio superior, Steffi abriu a blusa. Ele não se surpreendeu de ver que os mamilos dela estavam duros e escuros de desejo. O que mais excitava Steffi era uma discussão. Nada a estimulava mais que uma briga aos gritos. Quase sempre o sexo mais violento que eles faziam era depois de algum tipo de confronto. Naquele momento ele descobriu que ela garantia assim uma vitória final para todas as disputas. O clímax dele sempre foi a vitória dela. E isso bastaria para tornar válida sua decisão. Ela deu um sorriso malicioso para ele.
Enquanto ele ainda avaliava a situação, o telefone tocou.
Steffi deu uma risada sem graça, fechou a blusa e abotoou-a de novo.
Ela deu meia-volta e foi para a sala recolher suas coisas. Hammond atendeu o telefone.
-Alo?
Não que o procurador municipal Monroe Mason precisasse se identificar. Só conhecia um tom de voz, que era retumbante. As cordas vocais do homem pareciam equipadas com um megafone embutido. Na mesma hora Hammond ajustou o volume do telefone.
Hammond olhou para a sala de estar, onde Steffi calçava os sapatos e enfiava a blusa na saia. Hammond ficou de costas para a porta e baixou a voz.
Hammond percebeu que sua camisa estava grudada no peito. Quando tinha começado a suar? Esfregou a testa e descobriu que estava molhada também. Havia um motivo para aquela transpiração nada habitual: ele tinha encontrado Lute Pettijohn na véspera, à tarde, no Charles Towne Plaza. Monroe Mason devia saber disso. A hora para contar para ele era aquela. Mas por que dar tanta importância a isso? Não tinha relação com o assassinato de Pettijohn. O encontro tinha sido breve. Aconteceu antes da hora estimada da morte. Logo antes, mas mesmo assim... Ele não via motivo para contar para Mason, assim como não tinha achado necessário contar para Steffi quando ela lhe deu a espantosa notícia do homicídio. Não teria nada a ganhar se informasse essa coincidência, só muito a perder. Ele secou a testa com a manga da camisa e disse:
Seu mentor deu uma risadinha.
-Aviúva. . .
Esse caso provocaria um impacto na carreira dele como nenhum outro seria capaz. Uma vítima famosa de assassinato. Saturação da mídia. Tinha todos os elementos que fazem promotores ambiciosos ficarem com água na boca. É claro que ele se sentiria melhor se Mason tivesse dado o caso para ele sem a intervenção de Davee, mas não ia ficar se importando com um detalhe tão pequeno como esse. Não fazia mal de que forma tinha acontecido, o caso era dele. Ele o queria, precisava dele e era definitivamente o homem para a função. Tinha levado cinco casos de assassinato a julgamento antes e conseguiu condenações em todos, menos um, porque o acusado tinha feito um acordo. Desde o dia em que havia ingressado no lado da acusação, ele vinha se preparando para um caso daquela magnitude. Tinha apetite para isso e tinha competência para sair vencedor. O julgamento do assassinato de Lute Pettijohn ia alavancar sua carreira para onde queria chegar... o cargo de promotor municipal. Como o caso era dele, já tinha a confiança do seu superior e o apoio da viúva, imaginou se devia contar para Mason sobre seu encontro com Pettijohn. Detestava a ideia de entrar num projeto daquele calibre com qualquer desvantagem, por menor que fosse. Uma ambiguidade insignificante como aquela podia se tornar crucialmente danosa se fosse descoberta mais tarde.
Depois de um momento de hesitação, ele disse:
Ele deu uma risadinha. Monroe Mason adorava política, mais que a lei. Hammond não gostava da política necessária que acompanhava o trabalho para o governo municipal, mas fazia parte do trabalho com que Mason se deleitava.
Hammond fez uma careta como fazia quando o dentista se aproximava com a injeção de anestesia e dizia que ia sentir uma picadinha.
Hammond não fazia promessas quanto a Rory Smilow, mas uma trégua de cessar-fogo era uma concessão relativamente fácil. Então Mason acrescentou a segunda condição:
Mesmo assim, Monroe Mason berrou mais uma vez:
Parecia que seus pulmões iam explodir. Os músculos pegavam fogo. As articulações berravam para ela parar. Mas em vez de ir mais devagar ela acelerou o ritmo, correu mais que nunca, mais que a saúde permitia. Tinha algumas centenas de calorias de comida para queimar. E a consciência culpada para deixar para trás. O suor pingava em seus olhos, prejudicando a visão e provocando ardência. A respiração estava ofegante e ruidosa. A boca seca. Os batimentos do coração acompanhavam as passadas rápidas. Mesmo quando achava que não ia conseguir dar mais um passo, continuava, obstinadamente. Certamente havia superado a melhor velocidade e nível de resistência anteriores. Mesmo assim, nunca conseguiria escapar do que tinha feito na véspera. Correr era seu exercício aeróbico preferido. Ela corria alguns dias da semana. Frequentemente participava de corridas para arrecadar fundos. Tinha ajudado a organizar uma para levantar doações para a pesquisa do câncer de mama. Mas aquela noite não estava correndo por nenhum motivo altruísta, nem pelos benefícios físicos proporcionados pelo exercício, tampouco para aliviar a tensão de um dia de trabalho. A corrida daquela noite era uma autoflagelação. Claro que não era nada lógico supor que o esforço físico de hoje repararia as transgressões da noite anterior. O perdão só viria para alguém sincera e profundamente arrependido. Ela lamentava que o encontro deles tivesse sido calculado, não fruto de um capricho. Não tinha sido o encontro casual que ele pensava. Num arroubo de consciência, ela tentara pôr um fim naquilo antes que culminasse em sexo, mas não sentia remorso algum de ter evoluído daquela forma. Em nenhum momento ela se arrependeu da noite que passara com ele.
Civilizadamente, ela chegou para a direita para deixar o outro corredor passar. O trânsito de pedestres na Battery estava intenso aquela noite. Era uma alameda popular, que atraía atletas, patinadores e pessoas que saíam para passear. Aquela ponta histórica da península onde os rios Ashley e Cooper convergiam e desaguavam no Atlântico constava da agenda de todos os turistas que visitavam Charleston. A Battery, que incluía o White Point Gardens e o quebra-mar, tinha cicatrizes de guerras, desgraças e das intempéries, assim como toda a Charleston. Tendo sido o local dos enforcamentos públicos, depois um posto estratégico de defesa, a principal função da Battery hoje era oferecer uma paisagem e prazer. No parque que ficava do outro lado da rua do quebra-mar, os antigos e imponentes carvalhos que tinham desafiado tempestades violentas, até o furacão Hugo, davam sombra para os monumentos, canhões confederados e para casais empurrando carrinhos de bebé. O calor opressivo e úmido não tinha arrefecido nem um pouco, mas pelo menos no quebra-mar, com vista para o porto de Charleston e para o forte Sumter à distância, havia uma brisa que era quase um bálsamo para as pessoas que queriam admirar o fim de um lindo entardecer que encerrava o fim de semana. Desacelerando até um passo mais prudente, ela resolveu que era hora de voltar. Ao refazer seu caminho, cada impacto no calçamento projetava uma pontada de dor nas canelas, que subia para as coxas e chegava à região lombar, mas pelo menos dava para aguentar. Os pulmões continuavam sacrificados, mas a sensação dos músculos pegando fogo tinha diminuído. No entanto, sua consciência a continuava incomodando. Lembranças dele e da noite que passaram juntos promoviam ataques de surpresa o dia inteiro. Não tinha se permitido curtir essas lembranças muito tempo porque parecia que isso daria mais peso à ofensa original, como um intruso que, além de invadir a propriedade da vítima, ainda violava seus bens mais pessoais. Mas não podia mais manter aqueles pensamentos afastados. Reduziu o esforço, acolheu as lembranças e deixou-as ficar. Saboreou outra vez o que tinham comido na feira, sorriu ao lembrar da piada boba que ele contou, imaginou a respiração dele na sua orelha, as pontas dos dedos encostando-lhe na pele. Ele dormia tão profundamente que nem acordou quando ela desceu da cama e se vestiu no quarto escuro. Ela havia parado na porta para olhar para ele. Estava deitado de costas. Uma perna descoberta. O lençol cobria a cintura dele. Ele tinha mãos maravilhosas. Pareciam fortes e másculas, mas bem cuidadas. Uma delas segurava de leve o lençol. A outra estava em cima do travesseiro dela. Os dedos estavam um pouco curvados para dentro, e até segundos antes tinham estado no cabelo dela. Vendo o peito dele subindo e descendo com a respiração tranquila, ela teve de lutar contra a tentação de despertá-lo e confessar tudo. Será que ele entenderia? Teria agradecido por ela ter sido honesta com ele? Talvez tivesse dito que não tinha importância, talvez a tivesse puxado de volta para o lado dele, talvez a beijasse de novo. Ele acharia bom ou ruim se ela admitisse o que tinha feito? O que ele tinha pensado quando acordou e descobriu que ela fora embora? Sem dúvida, no início, deve ter entrado em pânico, achando que tinha sido roubado. Recém-saído da cama, ele provavelmente verificou se a sua carteira ainda estava na escrivaninha. Será que dispôs seus cartões de crédito em leque para se certificar de que nenhum deles estava faltando? Será que ficou surpreso de ver que todo o seu dinheiro estava intacto na carteira? Será que ele sentiu um alívio imenso? Depois desse alívio, será que ficou confuso com o desaparecimento dela? Zangado? Provavelmente zangado. Podia ter considerado a saída às escondidas como uma afronta. Ela esperava que, no mínimo, quando acordou e viu que ela não estava mais lá, ele não tivesse simplesmente dado de ombros, rolado para o lado e voltado a dormir. Essa era uma possibilidade triste, mas bem concreta, que a fez pensar se ele tinha ou não pensado nela naquele dia. Será que ele também tinha repassado a noite toda na cabeça, a partir do momento em que seus olhos se encontraram, cada um de um lado da pista de dança, até a última vez...? Ele beijava todo o rosto dela.
Ela apertou as coxas nos quadris dele, abraçou-o com mais força, ela o prendeu.
De repente, para não tropeçar, ela parou de correr e dobrou o corpo da cintura para cima, apoiou as mãos nos joelhos e sugou o ar insuficiente e abafado. Piscou para tirar o suor salgado dos olhos e tentou secá-los com as costas da mão, que, no entanto, também estava pingando. Precisava parar de pensar nisso. A noite que passaram juntos, apesar de terrivelmente romântica para ela, provavelmente não tinha sido nada fora do comum para ele, independentemente de todas as coisas poéticas que ele tinha dito. Não fazia diferença, de um jeito ou de outro, ela lembrou. Não fazia diferença o que ele pensava dela ou se pensava nela. Eles nunca mais poderiam se encontrar. Depois de um tempo, ela recuperou o fôlego e o coração passou a bater mais devagar, e então desceu os degraus do quebra-mar. Mais que a corrida exaustiva, a certeza de nunca mais vê-lo sugava sua energia. Ela morava a poucos quarteirões da Battery, mas caminhar esse trecho parecia mais penoso do que toda a distância que havia corrido. Continuava perdida no desalento daqueles pensamentos quando abriu o portão de ferro da frente da casa. O som estridente da buzina de um carro a assustou, ela se virou e viu um Mercedes conversível cantando os pneus e parando junto ao meio-fio. O motorista baixou os óculos escuros e olhou para ela por cima da armação.
O sorriso de censura dele provocou-lhe arrepios.
Ele deu um sorriso largo, aparentemente achando graça da sua teimosia.
Com o corpo inclinado por cima do banco, ele abriu a porta do lado do passageiro. Quando a porta abriu, ela teve de dar um pulo para trás para que não batesse na sua perna.
Ele pôs a mão na chave, na ignição.
Ele deu uma risadinha.
Ela sabia que ele não ia desistir com facilidade e desaparecer. Mais cedo ou mais tarde ela teria de enfrentar aquilo, por isso era melhor acabar com isso de uma vez por todas. Ela entrou no carro e bateu a porta com raiva. Hammond resolveu não adiar sua apresentação de condolências para a viúva de Lute Pettijohn. Depois de concluir a conversa com Mason e de se despedir de Steffi, ele tomou uma ducha e trocou de roupa. Em poucos minutos já estava no carro a caminho da mansão Pettijohn. Esperando alguém atender a campainha no portão, ele ficou observando, distraído, as pessoas que aproveitavam a noite de domingo na Battery. Dois turistas do outro lado da rua do parque tiravam fotografias da mansão dos Pettijohn, apesar da presença dele no primeiro plano. O número habitual de corredores e caminhantes parecia o de silhuetas móveis ao longo do quebra-mar. Quem abriu a porta para ele foi Sarah Birch. A empregada pediu para ele esperar no hall de entrada enquanto ia anunciá-lo. Ela retornou logo.
A mulher corpulenta levou-o para o andar de cima, atravessando o balcão, passando por um largo corredor, depois por um enorme quarto de dormir, até um banheiro que não se parecia com nenhum que Hammond já tinha visto. Sob a clarabóia de vitral, havia uma banheira redonda num plano mais baixo onde caberia um time inteiro de vôlei. Estava cheia de água, mas as torneiras estavam fechadas. Brotos de magnólias creme, do tamanho de pratos, flutuavam na superfície imóvel. O que parecia ser quilómetros de paredes espelhadas refletia velas perfumadas que tremeluziam sobre castiçais elaborados espalhados por todo o banheiro. Num canto havia uma espreguiçadeira forrada de seda, cheia de almofadas decorativas. A pia de ouro era do tamanho de uma banheira. As torneiras eram de cristal, combinando com os inúmeros vidros de cosméticos e perfumes dispostos na bancada. Hammond entendeu que os boatos deviam ser acanhados na avaliação de quanto Lute tinha gasto na reforma da casa. Apesar de já ter estado lá diversas vezes em vários eventos sociais, aquela era a primeira vez que subia ao segundo andar. Tinha ouvido falar da opulência, mas não esperava nada parecido com aquele luxo todo. E também não esperava encontrar a viúva recente nua e gemendo de prazer enquanto um massagista sarado alisava a parte de trás da sua coxa.
Hammond segurou e apertou a mão que ela lhe estendeu.
Ela apoiou o queixo nas duas mãos abertas e suspirou quando o massagista apalpou suas nádegas.
-Antes ou depois de ser assassinado? - Hammond franziu a testa e ela riu. - Só estava brincando. Por que não se serve de um pouco de champanhe?
Com um gesto indolente, ela apontou para o balde de gelo de prata perto da penteadeira. A rolha já tinha sido tirada, mas na bandeja de prata ao lado do balde havia uma flute que não tinha sido usada. Passou pela cabeça de Hammond que Davee já devia estar esperando a visita dele aquela noite. Era uma ideia perturbadora.
A flúte de champanhe que ela usava estava no chão, ao lado da mesa de massagem. Sabendo que em geral era inútil discutir com Davee, Hammond encheu o copo dela, depois serviu-se de meia flúte. Quando levou o champanhe para ela, ela bateu com sua flute na dele.
Ela passou a língua nos lábios para saborear o gosto do vinho.
Quando ela olhou para ele, Hammond sentiu o rosto ficar quente. Adivinhando exatamente o que ele estava pensando, ela deu risada. Era a mesma risada que ele lembrava que ela dera numa noite de julho, anos antes, quando os dois eram convidados de um casamento de um amigo mútuo. Tinham usado gardênias, lírios Casa Blanca, peônias e outras flores perfumadas para decorar o jardim da casa da noiva onde deram a recepção. O cheiro forte das flores era penetrante e tão intoxicante quanto o champanhe que ele tinha bebido, num esforço para se refrescar um pouco, apertado dentro do seu smoking. Como se tivessem sido escolhidas por uma agência de modelos, as oito damas de honra eram louras lindíssimas. Com o vestido comprido rosa-claro e um decote profundo, Davee estava ainda mais estonteante que as outras.
Mais tarde, na recepção, quando os dois saíram da pista de dança depois de uma música animada, “Shout”, de Otis Day e os Knights, ela abanou o rosto e reclamou:
-Além de esse vestido ter frufrus demais, é a merda de roupa mais quente que já pus no corpo.
Os Burton e os Cross eram amigos antes de Davee ou Hammond nascerem. Consequentemente, as primeiras lembranças que ele tinha das festas de Natal e churrascos na praia incluíam Davee. Quando as crianças eram levadas para suas camas no segundo andar da casa enquanto os adultos continuavam se divertindo lá embaixo, Davee e ele pregavam peças nas babás que tinham a má sorte de estarem encarregadas de tomar conta deles. Fumaram o primeiro cigarro da vida juntos. Com ar de superioridade, ela confidenciou para ele quando teve sua primeira menstruação. Na primeira vez que ela tomou um porre, foi no carro dele que vomitou. Na noite em que perdeu a virgindade, Davee telefonou para Hammond assim que chegou em casa, para dar um relatório detalhado sobre o acontecimento. Desde quando eram pequenos, trocando o vocabulário de palavrões, por toda a adolescência, falavam sacanagens um para o outro. Primeiro porque era divertido, e porque ninguém ficava sabendo. Nenhum dedurava o outro, nem se sentia ofendido. Quando passaram a ser jovens adultos, a brincadeira adquiriu um tom mais sexual e de flerte, mas continuava sem sentido e, portanto, segura. Mas antes daquele casamento em julho, eles estavam cada um na sua respectiva universidade – ele na Clemson e ela na Vanderbilt – e não se viam havia bastante tempo. Estavam mais que um pouquinho bêbados de champanhe e afetados pelo romantismo da ocasião. Por isso, quando Hammond fez aquele desafio malvado, Davee olhou para ele com os olhos enevoados e respondeu:
Enquanto todos se reuniam em círculo para ver os noivos cortando o bolo do casamento, Hammond roubou uma garrafa de champanhe de um dos bares e puxou Davee pela mão. Esgueiraram-se até o quintal da casa vizinha, sabendo que o vizinho estava na recepção. Os gramados das duas casas eram divididos por uma sebe espessa e alta cultivada havia décadas para garantir o tipo de privacidade que Hammond e Davee procuravam. O espoucar da rolha da garrafa de champanhe soou como um tiro de canhão quando Hammond a tirou. Isso fez com que os dois começassem a rir histericamente. Ele serviu uma taça para cada um e beberam tudo. Depois uma segunda. Num certo ponto da terceira taça, Davee pediu para ele ajudá-la a desabotoar os botões das costas do vestido de dama de honra, e tirou tudo, inclusive o sutiã sem alças, a cinta-liga e as meias. Ela hesitou quando enfiou os polegares no elástico da cintura da calcinha, mas ele sussurrou:
Davee nunca recuava quando recebia um desafio. E aquela noite não foi exceção.
Ela tirou a calcinha e deixou Hammond olhar bem para o recheio dela, depois desceu de costas os degraus da piscina e entrou na água fria. Hammond tirou o smoking numa fração do tempo que tinha levado para vesti-lo, isolando as abotoaduras que nunca mais seriam encontradas... pelo menos por ele. Ele ficou em pé na beira da piscina e Davee arregalou os olhos de espanto e admiração.
Ele mergulhou.
Fora os beijos experimentais da adolescência, quando concordavam que era “nojento” demais até pensar em abrir a boca e encostar a língua, eles jamais tinham se beijado. E naquela noite também não se beijaram. Não perderam tempo com isso. O perigo de serem pegos aumentava a excitação deles a tal ponto que as preliminares nem eram necessárias. No momento em que ele a alcançou, puxou-a para cima das suas coxas e penetrou-a. Foi escorregadio. Foi rápido. Os dois riram o tempo todo. Depois daquela noite ele não a viu mais por uns dois anos. Quando se reencontraram, ele fingiu que a escapada na piscina nunca acontecera, e ela fez a mesma coisa. Provavelmente nenhum dos dois queria que aquela única experiência sexual estragasse a amizade de uma vida inteira. Nunca tinham mencionado o fato até aquele momento. Ele nem se lembrava como se vestiram de novo aquela noite, ou como se explicaram para as outras pessoas na recepção do casamento, ou se tiveram de dar explicações para alguém. Mas ele se lembrava muito bem da risada de Davee, escandalosa e forte, sedutora e sensual. A sua risada não tinha mudado. Mas o sorriso dela era quase triste.
-Nós nos divertimos bastante quando éramos crianças, não acha?
Então ela olhou para as bolhas na sua taça e ficou pensativa um instante antes de beber.
Ela deixou o braço cair sem vida ao lado da mesa. Hammond tirou aflúte da mão dela antes que caísse e se espatifasse no chão de mármore.
Davee notou a mudança no tom de voz dele, rolou de lado, puxou a toalha para a frente do corpo e sentou, balançando as pernas na beirada da mesa.
Ela respirou fundo.
Ela deu um sorriso brilhante como na noite do seu baile de debutante.
Desde o momento em que ela se sentou, ele ficou encostado na parede espelhada, os braços cruzados sobre o peito musculoso. Sandro era bonito e muito forte. O cabelo preto e liso estava penteado para trás com muito gel. Os olhos eram negros como azeitonas maduras. Quando ele se aproximou de Davee por trás e pôs as mãos nos ombros dela, seus olhos mediterrâneos e intensos olharam fixamente para Hammond, como se avaliasse um competidor. Era óbvio que seus serviços iam além da massagem. Hammond queria dizer para ele relaxar, que Davee e ele eram velhos amigos, nada mais, e que ele não precisava ter ciúme nenhum. Ao mesmo tempo, ele queria avisar Davee que aquela não era hora de afrontar as convenções trepando com o massagista. Pelo menos uma vez na vida ela devia exercitar a discrição. A não ser que Hammond estivesse enganado, e levando em conta as observações de Steffi, o nome dela estaria no topo da lista de suspeitos de Rory Smilow. Tudo que ela fizesse seria acompanhado muito de perto.
Ele sorriu.
Ela pôs o braço atrás da cabeça e levantou o cabelo para Sandro ter acesso livre. Era uma pose muito provocante, expondo o lado de baixo do braço e parte do seio. Hammond entendeu que ela sabia que era provocante e imaginou se Davee estava querendo distraí-lo de propósito.
Não sei se ele se metia com elas porque elas são, de modo geral, as mulheres mais desejáveis de Charleston, ou se eram desejáveis para ele só porque eram minhas amigas. Provavelmente essa última hipótese, porque o rabo de Georgia Arendale é tão grande quanto um navio de guerra, e isso não o impediu de levá-la para Kiawah para passarem um dia na praia. Aposto que ela sofreu uma queimadura séria porque precisaria de um tubo inteiro de Coppertone para cobrir aquela celulite toda. “Emily Southerland tem uma pele que faria parar um relógio, apesar de ter feito inúmeros peelings químicos, mas Lute transou com ela assim mesmo, naquele horrendo toalete do primeiro andar da casa dela, tem uma capa no vaso que imita pele, na festa de ano-novo que ela deu.” Hammond riu, apesar de Davee não estar tentando ser engraçada.
Ela deixou a toalha cair um ou dois centímetros e piscou os olhos para ele, enfatizando a mentira.
Ela abaixou o braço e soltou o cabelo enquanto Sandro começava a trabalhar sua espinha lombar.
Ele olhou para ela de um jeito que dizia Ah, é sim.
Hammond franziu a testa.
Ele desejou que ela não tivesse dito isso. O promotor municipal Mason tinha informado à equipe que ia se aposentar logo. O assistente do promotor, Wallis, tinha uma doença fatal e não podia concorrer ao cargo máximo na eleição de novembro. Hammond era o terceiro a pleitear o cargo. E tinha praticamente garantido o apoio de Mason como sucessor dele.
Mas o fato de Davee ter intercedido a seu favor junto a Mason deixava Hammond aflito. Ele apreciava sua recomendação; porém, mais tarde, podia se transformar num conflito de interesses se ela fosse julgada pelo assassinato do marido.
Ela jogou a cabeça para trás e deu uma risada.
Ela deslizou da mesa de massagem e se aproximou dele, segurando a toalha na frente do corpo e deixando-a aberta atrás. Ficou na ponta dos pés e beijou o rosto de Hammond.
Ele ficou aliviado ao ouvi-la negar com tanta convicção. Então ela estragou tudo, completando o raciocínio:
Davee estava deitada de costas, de olhos fechados, satisfeita e relaxada com a massagem de Sandro seguida de sexo que não exigiu nenhuma participação dela, a não ser curtir o próprio orgasmo. Ela sentiu a pressão da ereção insaciada dele contra sua coxa, mas ignorou. Ele acariciou de leve o mamilo dela com a língua.
Ela o empurrou e olhou para ele.
do ombro dele, e ela sem querer disse em voz alta o que estava pensando.
Quando Hammond se afastou da mansão Pettijohn, ele pediu a Deus para nunca ter de chamar Davee para testemunhar no tribunal, por dois motivos muito sérios. O primeiro, porque Davee e ele eram amigos. Ele gostava dela. Ela não era nenhum pilar de virtude, mas ele a respeitava por não fingir que era. Quando ela afirmava que não era hipócrita, não era uma afirmação vazia. Ele conhecia dúzias de mulheres que fofocavam maldosamente sobre ela, e que não eram mais íntegras do que ela. A diferença é que elas pecavam em segredo. Davee pecava às claras. Ela era considerada vaidosa e egoísta, e era mesmo. Mas essa reputação quem cultivava era ela. Deliberadamente, dava motivos para seus críticos estremecerem com o seu comportamento. Nenhum deles percebia que a persona que eles censuravam não era a verdadeira Davee. Os melhores aspectos da sua personalidade Davee mantinha escondidos. Hammond concluiu que a charada era o mecanismo de autodefesa dela para não se machucar ainda mais do que tinha sido na infância. Ela afastava as pessoas antes que tivessem oportunidade de rejeitá-la. Maxine Burton foi uma péssima mãe. Davee e as irmãs foram privadas da sua atenção e do seu afeto. Ela não fez nada para merecer o amor ou a dedicação das filhas. No entanto, Davee visitava religiosamente a mãe toda semana na clínica de elite onde estava confinada. Além de financiar e supervisionar o seu tratamento, Davee se envolvia diretamente com ela, cuidando das necessidades pessoais da mãe nas suas visitas rotineiras. Provavelmente Hammond era a única pessoa que sabia disso e não teria descoberto se Sarah Birch não tivesse feito essa confidência para ele. O segundo motivo que fazia Hammond não querer interrogar Davee no julgamento era que ela mentia muito bem. Ouvi-la falar era um prazer tão grande que a pessoa deixava de se importar se ela dizia ou não a verdade. Os jurados achavam testemunhas como Davee divertidas. Se ela fosse chamada para testemunhar, iria para o tribunal vestida para matar. Só a aparência dela já faria o júri se empertigar nas cadeiras e notá-la. Eles podiam cochilar durante o testemunho de outras pessoas, mas ouviriam com atenção e esperariam com ansiedade cada palavra coberta de açúcar que sairia dos lábios de Davee. Se ela dissesse que, apesar de não ter matado Lute, não sentia a morte dele, que ele era um marido infiel, que a enganava tantas vezes que nem dava para contar, que ele era basicamente mau e cruel e que merecia morrer, os jurados de ambos os sexos provavelmente concordariam. Ela teria persuadido a todos que o caráter e as trapaças do filho-da-mãe justificavam o crime. Não, ele não ia querer expor Davee ao julgamento pelo assassinato do marido. Mas se tivesse de fazer isso, ele faria. Receber esse caso tinha sido a melhor coisa que podia acontecer na carreira de Hammond. Ele esperava que a equipe de Smilow lhe desse bastante material com que trabalhar, que o acusado não se declarasse culpado para que o caso fosse julgado pelo tribunal do júri. Esse era um caso em que ele podia enfiar os dentes. Certamente seria um desafio. Ia exigir toda a sua concentração. Mas também seria uma excelente prova. Ele pretendia definitivamente concorrer ao cargo de promotor público em novembro. Queria vencer. Mas não queria vencer porque era mais bonito, ou por ter um pedigree melhor, ou por ter mais recursos do que o outro ou os outros candidatos. Ele queria merecer o cargo. Raramente acontecia um caso com o peso do assassinato de Lute Pettijohn. Era por isso que precisava dele. Por isso tinha omitido revelar seu encontro com Pettijohn para Monroe Mason. Ele simplesmente tinha de ter esse caso, e não estava disposto a deixar que qualquer coisa o impedisse de levá-lo a julgamento. Era o veículo perfeito para dar-lhe a exposição pública que precisava antes de novembro. Era também o veículo perfeito para afrontar o pai dele.
Aquele era o motivo mais atraente de todos. Alguns anos antes, Hammond tinha tomado uma decisão na carreira, de mudar de defensor para promotor. Preston Cross se opôs violentamente à decisão do filho, citando as diferenças do potencial de ganhos financeiros e dizendo para Hammond que ele era louco de se contentar com o salário de um funcionário público. Pouco tempo atrás, Hammond tinha descoberto que o nível de renda de um promotor público não era o maior problema para o pai dele. A mudança pôs os dois em lados opostos. Como Preston era sócio de Lute Pettijohn em alguns negócios de terras inescrupulosos, ele temia ser processado pelo próprio filho. Só recentemente Hammond tinha feito essa descoberta. Ele ficou enojado. O confronto que tiveram sobre o assunto foi amargo e acrescentou uma nova dimensão à inimizade entre os dois. Mas ele não podia pensar nisso agora. Sempre que pensava no pai, ele ficava com a mente entorpecida. Tirar camada após camada do relacionamento deles para examinar mais a fundo consumia tempo, era emocionalmente extenuante e acabava sendo improdutivo. Ele não tinha muita esperança de chegar a uma reconciliação. Por hora ele resolveu arquivar esse problema e se concentrar no que tinha imediatamente se tornado prioritário: o caso. O momento que tinha escolhido para romper com Steffi foi feliz. Estava livre de uma responsabilidade que o deixava infeliz e que poderia ter prejudicado a sua concentração. Ela ficaria furiosa de saber que tinha sido designada para o posto de co-piloto, mas ele saberia lidar com o mau humor dela se fosse necessário. Para Hammond Cross aquele dia significava um novo começo que, na verdade, tinha começado na noite anterior. Dirigindo o carro para longe da mansão Pettijohn, com apenas uma das mãos, ele pegou no bolso da frente da camisa o pedaço de papel que tinha posto ali mais cedo e verificou o endereço escrito nele. Ofegante, Steffi entrou correndo no quarto do hospital.
casa de Hammond. Como prometera, ele tinha telefonado assim que o médico encarregado dera permissão para interrogar os pacientes.
O bairro do condomínio de Hammond não ficava longe do complexo hospitalar. Mesmo assim, ela excedeu todos os limites de velocidade para chegar lá. Estava muito ansiosa para saber se os pacientes com intoxicação alimentar tinham visto alguém perto da suíte de cobertura do hotel de Pettijohn. Logo que chegou assim apressada, ela parou um pouco na porta e depois cruzou o piso de cerâmica até o leito do hospital. O paciente nele era um homem com cerca de cinquenta anos, cujo rosto tinha a cor da farinha de trigo, os olhos afundados no crânio e emoldurados por círculos escuros. A mão direita estava presa a uma agulha de soro. Havia uma comadre e um patinho ao alcance dele na mesa ao lado da cama. Uma mulher que Steffi concluiu que devia ser a esposa dele estava sentada numa cadeira ao lado. Ela não parecia doente, apenas exausta. Ainda usava a roupa de turista, ténis, short de caminhada e uma camiseta onde se lia com letras cintilantes: GIRLS RAISED IN THE SOUTH [mulheres criadas no Sul, e grits – as iniciais – significa espírito indómito] .Smilow, em pé ao lado da cama, fez as apresentações:
Sem parecer muito contente com isso, o homem no leito resmungou:
Sem conseguir conter sua impaciência, Steffi insistiu para que ele fosse mais preciso:
Steffi percebeu seu erro no mesmo instante e fez força para desacelerar.
Depois desse discurso ela não teve coragem de olhar para Smilow, sabendo que veria escárnio na expressão dele. Mordendo o lábio, a sra. Daniels consultou o marido:
haveria disputa entre o QI dela e o deles. Aproveitou a vantagem da indecisão do casal para manipulá-los um pouco.
Todos ficaram atónitos com a inesperada declaração do sr. Daniels. Smilow foi o primeiro a recuperar a voz:
Steffi e Smilow trocaram olhares.
A sra. Daniels confirmou isso balançando a cabeça solenemente, sem dizer nada.
Daniels franziu a testa e passou a mão na barriga.
Ele empurrou a bacia.
A sra. Daniels interrompeu de novo. Steffi e Smilow se desculparam por ter de incomodá-lo, agradeceram a informação, desejaram que ele se recuperasse logo e foram embora.
No corredor do hospital, Smilow parecia abatido.
Então eles olharam um para o outro e caíram na risada, e ainda estavam rindo quando a sra. Daniels saiu do quarto do marido.
Eles agradeceram a cooperação dela e a disposição para ajudar, então Steffi levou Smilow para a sala de espera, que estava vazia naquele momento. Depois que se sentaram de frente um para o outro, Smilow informou, sem rodeios, que Hammond Cross seria o promotor do caso Pettijohn.
Sem fazer nenhum esforço para mascarar a decepção ou o ressentimento, Steffi perguntou quando ele tinha sabido disso.
Hammond não sabia do assassinato de Pettijohn até ela contar para ele. Deve ter sido o telefonema de Mason que ele recebeu quando ela ainda estava na casa dele. Foi um tormento duplo ele ter tirado dela um caso que faria a sua carreira, segundos depois de terminar o namoro deles.
Depois de um momento refletindo em silêncio, Steffi levantou e pendurou a alça da sua pesada valise no ombro.
Smilow fez um sinal para ela se sentar novamente.
Ela ficou frustrada de Smilow não ter prometido contar. Gostaria de conhecer as circunstâncias por trás daquele ódio tão virulento que havia entre Hammond e Smilow. É claro que eram personalidades completamente diferentes. A insociabilidade de Smilow repelia as pessoas e, a não ser que ela estivesse completamente enganada, era proposital. Hammond era carismático. Amizades íntimas com ele tinham de ser merecidas, mas ele era simpático e afável. Smilow era fastidioso e estava sempre impecavelmente arrumado, enquanto que o charme de Hammond era natural e espontâneo. Na faculdade, Smilow seria o único cara na classe a gabaritar a prova e arruinar a curva de classificação para todos os outros. As notas de Hammond eram excelentes também, mas ao mesmo tempo ele tinha sido um aluno muito popular, líder e atleta completo. Os dois eram superempreendedores, mas as conquistas de um eram obtidas com dificuldade, e para o outro vinham fáceis. Steffi se identificava mais com Smilow. Entendia e era capaz de simpatizar com o ressentimento que ele sentia em relação a Hammond, ressentimento que crescia com a própria atitude de Hammond em relação às suas vantagens. Ele não as explorava. Além do mais, ele as rejeitava. Desdenhando o dinheiro da família, ele vivia com o que ganhava. O condomínio onde morava era bom, mas poderia morar muito melhor. Suas únicas extravagâncias eram o veleiro e a cabana, mas nunca fazia propaganda de nenhum dos dois. Seria muito mais fácil odiá-lo se ele usufruísse dos seus privilégios. Seria interessante, para não dizer útil, conhecer a origem da antipatia que havia entre ele e Smilow. Eles estavam do mesmo lado da lei, trabalhavam por um objetivo comum, e, no entanto, pareciam desprezar ainda mais um ao outro do que aos criminosos incorrigíveis.
Pela primeira vez Steffi foi pega de surpresa. Ela olhou fixamente para ele, muda de espanto.
A presunção dele era insuportável, mas ela se recusou a demonstrar raiva ou aborrecimento, o que teria deixado Smilow imensamente satisfeito. Em vez disso, ela não mudou a expressão do rosto e manteve a voz calma.
Sem se perturbar, ele continuou:
Ela consultou o relógio de pulso.
O tom de voz dele indicava mais que aquelas três palavras. Steffi olhou bem para ele.
Antes da enfermeira terminar de falar, os dois já estavam em pé. Hammond consultou o endereço que tinha rabiscado no papel e guardado no bolso da camisa antes de sair de casa para visitar Davee. Sem saber se o número de telefone do serviço de recados da clínica era de Charleston, Hammond passara o dedo, aflito, por uma lista de clínicas médicas nas Páginas Amarelas até encontrar a clínica A. E. Ladd. Na mesma hora soube que era aquela mesma, porque o número para ligações fora do horário de expediente era o mesmo que ele tinha chamado da cabana aquela manhã. A clínica era a única pista que ele tinha para a mulher com quem tinha estado aquela noite. É claro que conversar com ele estava fora de questão. O objetivo de Hammond no curto prazo era apenas localizar o consultório dele e ver o que podia descobrir com isso, se é que poderia mesmo descobrir alguma coisa. Mais tarde ele pensaria num modo de abordá-lo. Apesar de estar preocupado com o fim do namoro com Steffi, com a conversa perturbadora que tinha tido com Davee, e com o assassinato de Pettijohn e com tudo que aquilo significava, a lembrança da mulher que havia seguido na saída da feira rural e beijado no posto de gasolina não lhe dava trégua. Seria inútil tentar ignorá-la. Hammond Cross não aceitava perguntas sem respostas. Mesmo quando era menino, não se contentava com respostas apenas convenientes. Perturbava os pais até eles darem uma explicação que satisfizesse a sua curiosidade. Tinha mantido essa característica na idade adulta. Esse desejo de saber mais que apenas generalidades, de conhecer as particularidades, beneficiava o trabalho dele. Hammond cavava para ir mais fundo, e continuava cavando até chegar à verdade, às vezes para a suprema frustração dos seus colegas. Às vezes, até ele mesmo ficava frustrado com a própria teimosia. A lembrança dela ia persistir até ele descobrir quem ela era e por que, depois da noite incrível que passaram juntos, resolveu sair da cabana e, conseqúentemente, da vida dele. Localizar a clínica Ladd era uma tentativa, apesar de juvenil patética e desesperada, de descobrir alguma coisa sobre ela. Especificamente, se ela era ou não a sra. Ladd. Se fosse, terminaria ali. Se não fosse... Ele não se permitiu considerar os diversos “se não”. Tendo sido criado em Charleston, Hammond sabia mais ou menos onde ficava a rua, e era apenas a alguns quarteirões da mansão de Davee. Chegou lá em poucos minutos. Era uma rua curta e estreita, onde os prédios se cobriam de trepadeiras e história. Era uma das várias ruas assim que ficavam próximas do movimentado bairro comercial e que pareciam pertencer a um outro mundo. A maioria das casas e prédios naquela área entre a rua Broad e a Battery era repleta de marcos históricos. Alguns números das casas terminavam com ½, indicando que uma estrutura externa do prédio principal, como uma cocheira ou cozinha separada, tinha sido convertida numa outra residência. Os imóveis eram valiosíssimos. Era um bairro muito caro. O acrónimo para qualquer pessoa que morava ao sul da Broad era S.O.B. [south of Broad, mas também son ofbitch filho-da-puta]. Hammond não se surpreendeu ao ver que a clínica ficava numa área basicamente residencial. Muitos profissionais liberais tinham convertido casas mais antigas em escritórios, e muitas vezes moravam nos andares de cima, o que era uma tradição em Charleston havia séculos. Ele deixou o carro estacionado numa rua mais larga e entrou na ruazinha de paralelepípedos a pé. Já era noite. O fim de semana tinha terminado. As pessoas já estavam em suas casas. Ele era o único pedestre na rua. O lugar era escuro e silencioso, mas, apesar disso, simpático e hospitaleiro. Janelas abertas revelavam cómodos iluminados que pareciam convidativos. Sem exceção, as propriedades eram luxuosas e bem cuidadas. Parecia que o proprietário da clínica estava se dando bem na vida. O ar da noite era pesado e denso. Tão tangível quanto um cobertor de algodão enrolado claustrofobicamente nele. Em questão de minutos, a camisa grudou no corpo. Até uma caminhada lenta era aflitiva, especialmente quando um dos fatores era o nervosismo.
Ele foi forçado a respirar fundo e captou perfumes florais exóticos e o pungente aroma de sémen salgado da maresia no porto, que ficava a poucos quarteirões de distância. Sentiu o cheiro do resto de fumaça de carvão com o qual alguém tinha assado o jantar de domingo. Aquele aroma lhe deu água na boca e o fez lembrar que não tinha comido nada o dia inteiro, só aquele pãozinho na cabana. A caminhada deu-lhe tempo para pensar como ia se sair naquele primeiro contato com a clínica. E se simplesmente chegasse lá e tocasse a campainha? Se o médico proprietário atendesse, podia fingir que obviamente tinha anotado errado o endereço, dizer que estava procurando outra pessoa, pedir desculpas por incomodá-lo e ir embora. Mas e se ela abrisse a porta... que opção ele teria? A pergunta mais inquietante seria respondida. Ele daria meia-volta e iria embora, sem olhar para trás, e continuaria sua vida. Todas essas contingências eram baseadas na probabilidade de ela ser casada com um médico. Para Hammond, essa era a explicação lógica para ela ter de fazer uma ligação para a clínica furtivamente e depois parecer culpada quando flagrada no ato. Ela era a imagem da saúde, e certamente não tinha apresentado nenhum sintoma visível de doença. Por isso nunca passou pela cabeça dele o fato de ela poder ser uma paciente. Nunca, até ele chegar à casa com aquele número. No pequeno quadrado de grama demarcado por uma cerca de ferro havia uma discreta placa de madeira branca com letras cursivas em preto. A clínica A. E. Ladd era uma clínica de terapia psicológica. Será que ela era uma paciente? Se era, a ideia de ela ter sentido necessidade de consultar o psicólogo segundos depois de levantar-se da cama dele era um pouco perturbadora. Ele se consolou reconhecendo que atualmente era comum se ter um terapeuta. Como confidentes, eles tinham substituído cônjuges dedicados, parentes mais velhos e religiosos. Hammond tinha amigos e colegas que se consultavam toda semana, às vezes apenas para aliviar o estresse da vida moderna. Ter um psicólogo não representava nenhum estigma e certamente não era motivo para ninguém se envergonhar. De fato, ele sentiu um alívio imenso. Ir para a cama com a paciente da clínica Ladd era aceitável. O inaceitável era dormir com a mulher do dono da clínica. Mas uma nuvem cobriu aquele pequeno raio de esperança. E daí se ela era paciente? Seria quase impossível descobrir a identidade dela.
A clínica não daria nenhuma informação sobre seus pacientes. Mesmo se Hammond se rebaixasse a ponto de usar o cargo de promotor para se insinuar, eles provavelmente fariam valer o privilégio profissional e se recusariam a abrir seus arquivos, a menos que recebessem uma intimação, e Hammond jamais chegaria tão longe assim. Seus padrões profissionais não permitiriam. Além do mais, como poderia pedir informação sobre ela se nem sabia o seu nome? Do outro lado da rua, Hammond ruminava esse dilema enquanto estudava a estrutura elegante de tijolos em que o consultório se instalara. Era típica de um estilo único de arquitetura – uma casa única, chamada assim porque da rua parecia ter apenas um cómodo na largura, mas tinha vários cómodos para trás. Essa tinha dois andares, com largas varandas laterais, oupiazzas, que ocupavam toda a extensão da casa, da frente até os fundos, nos dois andares. Atrás de um portão enfeitado, o passeio da frente da casa ia reto até o lado direito do jardim, onde havia uma porta dianteira pintada de verde Charleston – quase só tinta preta com apenas uma porção pequena de verde, misturado. A porta tinha uma aldrava de bronze bem no centro e, como as portas da frente da maior parte das casas únicas, não se abria para a casa em si, mas para a plazza, de onde se entrava na casa. Uma figueira trepadeira se agarrava à grande parte da fachada, mas tinha sido bem podada em torno das quatro janelas altas que serviam de contrapeso à porta da frente. Embaixo de cada uma dessas janelas havia uma jardineira transbordante de samambaias e balsâminas brancas. Não havia nenhuma luz acesa. Quando Hammond ia pôr o pé na rua para atravessá-la e dar uma olhada mais de perto, a porta da casa às suas costas se abriu e um enorme cão pastor cinza e branco saiu galopando, arrastando o dono atrás dele.
Mas ninguém segurava Winthrop. Ele estava louco para sair, e puxava a correia quando chegou ao fim do caminho da casa, levantou-se nas patas traseiras e se jogou contra o portão. Instintivamente, Hammond deu dois passos para trás. Rindo da reação dele, o dono do cachorro abriu o portão e Winthrop saiu pulando.
Hammond sorriu.
Winthrop, sem demonstrar interesse nenhum nele, tinha levantado a perna e estava mijando numa cerca.
Hammond devia estar parecendo inofensivo, mas perdido, porque o homem perguntou:
O homem olhou para ele com a testa franzida, sem entender.
-Alex? -Alex Ladd.
Winthrop estava ruçando embaixo de um arbusto de camélias.
Torcendo para o vizinho nunca associar o idiota inarticulado com o assistente do promotor público que era sempre visto falando com repórteres na televisão, Hammond deu um tapinha na cabeça do cachorro peludo e partiu na direção de onde tinha chegado.
Daniels olhou para Steffi, que tinha interrompido. ???
Smilow compartilhava a óbvia impaciência de Steffi com a longa confissão de Daniels. Queria que o homem fosse direto ao ponto. Mas ele avisou Steffi, com um olhar muito sério, para respeitar o ritmo de Daniels contar a sua história.
“Mas pode ser uma coisa insignificante, até uma palavra gentil para uma mulher, e ela já começa. Sabem o que quero dizer? Ela começa a chorar. E a dizer que não me satisfaz como mulher. Que não é capaz de satisfazer as minhas necessidades – ele olhou para Smilow com olhos cansados. - O senhor sabe como elas ficam.” Mais uma vez Smilow lançou um olhar para Steffi, indicando que ela não podia estragar tudo fustigando o editorial sexual do homem:
Ele deu um sorriso largo para os dois, mas então o sorriso murchou como se alguém tirasse o ar de uma máscara de borracha.
Ele olhou para Smilow.
Lentamente ele puxou a velha camiseta por cima da cabeça dela. Antes tinha tocado nela no escuro. Sabia como ela era pelo tato, mas queria ver o que suas mãos tinham tocado.
Não se decepcionou. Ela era linda. Gostava de ver suas mãos sobre os seios dela, gostava de vê-los reagindo às suas carícias, gostava de ouvi-la murmurando de prazer quando encostava os lábios neles.
Ele envolveu o mamilo com a boca e sugou. Ela segurou a cabeça dele e gemeu baixinho.
Mas ele ficou preocupado, especialmente quando notou arranhões da barba na pele clara dela. Passou o dedo no lugar.
Ela olhou para o pequeno arranhão, encostou o dedo dele nos lábios e beijou.
Ela pôs a mão no pescoço dele e tentou puxar sua cabeça para ela. . Mas ele hesitou.
Eles deitaram sem se dar ao trabalho de arrumar os lençóis. Ele se inclinou sobre ela, segurou seu rosto com as duas mãos e beijou-a com tanta paixão que o corpo dela se arqueou na cama para encostar no dele.
As mãos dele deslizaram sobre os seios dela, as costelas e a barriga macia.
Ele chegou o corpo para cima para beijá-la de novo. Foi um beijo sedoso e sensual, que só terminou quando ela deu um grito abafado e gozou com os dedos dele, sob a pressão do polegar. Alguns segundos depois ela abriu os olhos e viu que ele sorria para ela.
Os lábios dele mal encostaram nos dela. O sussurro dele foi suave e urgente.
Ele tossiu e deu um grito rouco de surpresa quando ela o segurou. Quase protestou, quase disse para ela que não precisava se sentir obrigada a nada, quase disse que não era necessário retribuir, que ele não ia ficar mais rijo do que estava. Mas quando ela começou a explorar e a massagear, os únicos sons que ele conseguiu emitir foram suaves gemidos de extremo prazer. Sem consciência plena do que estava fazendo, ele pôs a mão sobre a dela e incentivou os movimentos. Ela passou o nariz no pescoço dele, beijou os pêlos do peito dele e mordiscou apele. Sem querer- ou talvez por querer-, o mamilo ereto dela roçou no dele. Foi excitante. Foi tremendamente erótico. E ele quase gozou. Quando ele tirou a mão dela, ela elevou o corpo e beijoufreneticamente o maxilar dele, o rosto, os lábios, murmurando:
Mas era tarde demais. Ele se posicionou e mergulhou nela. Recuou. Avançou. Fundo. Mais fundo. Então encostou a testa na dela, cerrou os dentes, fechou os olhos bem apertados e sentiu um prazer maior do que todos os seus encontros sexuais juntos...
... ele gozou.
A campainha do telefone arrancou Hammond daquela lembrança fumegante. Ficou constrangido ao ver que estava com ereção e banhado em suor. Quanto tempo tinha perdido com aquela lembrança específica? Verificou o relógio do painel. Vinte minutos, um pouco mais, um pouco menos. O telefone tocou pela terceira vez. Ele o atendeu.
Ela estava insinuando que ele explicasse para ela aonde tinha ido e por quê, mas ele não lhe devia mais satisfações do que fazia. Ela provavelmente estava com o orgulho ferido com o fato de Hammond ter saído na noite em que eles terminaram seu relacionamento.
Ela ia ficar realmente ferida se soubesse que ele estava escondido numa rua escura como um pervertido, tomando um suador de excitação sexual e esperando para ver se a dra. A. E. Ladd era a mulher que, mais ou menos àquela mesma hora, na véspera, tinha estado deitada e nua ao lado dele, com o órgão sexual dele bem confortável, ensanduichado entre a barriga dos dois, as mãos dele acariciando as nádegas dela, e ela perguntando se ele sabia que seus olhos eram da cor de nuvens de tempestade. Ele sentiu um ímpeto maligno de contar para Steffi. Mas é claro que não contou. Ele secou o rosto na manga da camisa.
-Amigo uma ova. Ele contou para você porque não é amigo meu. E agora, vai me dizer o que está havendo?
O carro parou na frente do consultório da dra. Ladd. Ela saiu com um cara num carro conversível, o dono de Winthrop tinha dito para ele.
Dirigindo bem devagar, Hammond chegou suficientemente perto para ver que o carro era um conversível.
O brilho dos faróis do conversível ofuscou Hammond, e ele não conseguia ver nada atrás deles. Mas quando ficou lado a lado com o carro, ele virou a cabeça a tempo de ver os ocupantes. Um homem no lugar do motorista. Uma mulher no lugar do passageiro. A mulher dele. Sem sombra de dúvida.
Hammond se desligou de Steffi. Depois que passou pelo outro carro, ele olhou para o espelho retrovisor externo a tempo de ver o homem estender o braço por cima do console e pôr a mão na nuca da mulher, puxando o rosto dela para ele. Hammond meteu o pé no acelerador, dobrou a esquina rápido demais e fez cantar os pneus. Claro que foi uma reação de ciúme imatura, mas sentiu vontade de fazer isso. Estava com vontade de bater em alguém. Realmente queria dizer para Steffi calar a boca.
Confusa, ela se assustou:
Ele não sabia. Não estava prestando muita atenção, mas não queria admitir isso. Ela estava falando de uma possível testemunha. Alguém que tinha visto uma pessoa perto da suíte de Pettijohn e que poderia dar uma descrição razoavelmente correta.
Steffi também podia ter sugerido um retrato falado. Tinha mencionado isso na hora que Hammond passou pelo conversível, e a voz dela foi abafada pelo sangue que subiu à cabeça dele. Ele tinha registrado o teor do relato de Steffi, mas quase tudo que ela dizia foi obscurecido por uma necessidade violenta e primitiva de voltar e agarrar o sujeito no conversível pelo pescoço.
De uma coisa ele tinha certeza. Precisava fazer alguma coisa, senão ia explodir. Agora. Imediatamente. Tinha de determinar que existia alguma coisa sobre a qual Hammond Cross ainda tinha controle.
Ele sabia que horas eram. Tinha ficado horas sentado naquele forno de automóvel, alimentando fantasias sexuais. E todo aquele sacrifício só tinha servido para ver a dra. Lad na. Companhia de outro homem.
Às sete e meia da manhã seguinte, Hammond entrou no hospital com a sua pasta e o Postand Courier. Parou no balcão de informações para perguntar o número do quarto, que Steffi não havia dito. Parou também numa máquina para comprar uma xícara de café. Estava de gravata, mas, atendendo à promessa de um dia muito quente, tinha deixado o paletó no carro, arregaçado as mangas da camisa e desabotoado o colarinho. A postura era de um militante e a expressão fechada como uma nuvem negra. Para crédito de Steffi, os outros já estavam lá quando ele chegou. Ela estava lá, junto com Rory Smilow, uma mulher mal-ajambrada com um uniforme de polícia que não lhe caía bem e o homem no leito do hospital. Steffi estava com os olhos inchados, como se não tivesse dormido bem. Depois de uma rodada mal-humorada de cumprimentos, ela disse:
Ele largou a pasta e o jornal numa cadeira para apertar a mão da artista da polícia.
Steffi, então, apresentou o sr. Daniels, em visita à cidade vindo de Macon, Geórgia, que naquele momento mordiscava a comida insossa que havia na bandeja do café da manhã.
Daniels parecia preocupado.
-vou ter de testemunhar no tribunal? Quero dizer, se vocês pegarem essa mulher, e descobrirem que foi ela que matou aquele homem, terei de apontá-la no julgamento?
Fora o negligente bom-dia, até aquele momento Smilow tinha ficado calado e imóvel como um lagarto tomando sol. Muitas vezes a postura de Smilow parecia indolente, mas, para Hammond, ele dava a impressão de ser um réptil à espera, atento o tempo todo a uma oportunidade de atacar. Hammond reconheceu que comparar Smilow a uma serpente se devia unicamente ao fato de detestar o homem. Sem mencionar a injustiça com as serpentes. O terno cinza de Smilow era impecável e estava perfeitamente passado. A camisa branca era tão lisa que uma moeda quicaria nela, a gravata bem presa. Não havia um fio de cabelo fora do lugar. Os olhos estavam claros e alertas. Depois da noite tumultuada que Hammond tinha tido, virando de um lado para outro na cama, estava com raiva da aparência e da pose inabalável de Smilow.
Podia contar com Smilow para provocar uma briga numa manhã em que ele mesmo sentia vontade de morder alguém.
“E, Smilow, se Hammond também pensou no retrato falado, isso só significa que grandes cabeças pensam da mesma forma, e esse caso precisa mesmo de todas as mentes brilhantes que puder reunir. Por isso vamos tratar de começar e não prender essas pessoas aqui por mais tempo do que será necessário. O sr. Daniels está com uma certa pressa, e todos nós temos mais o que fazer. Falando por mim, eu não me importaria de ouvir essa história mais uma vez.” Smilow assentiu movendo um pouco a cabeça. Daniels contou outra vez sua experiência de sábado à tarde. Quando terminou, Hammond perguntou se ele tinha certeza de não ter visto mais alguém.
Ignorando a expressão de “eu não disse?”, de Smilow, Hammond deixou Daniels a cargo de Mary Endicott. Smilow pediu licença para dar alguns telefonemas. Steffi ficou espiando por cima do ombro da artista e acompanhou as perguntas que ela fazia para Daniels. Hammond levou sua xícara de café morno até a janela e observou o dia ensolarado demais para o seu humor. Depois de um tempo, Steffi se aproximou dele.
Entendendo o significado por trás daquela pergunta, ele virou a cabeça e olhou para ela.
Ele sorriu, mas o tom de voz era sério:
-A mulher que ele viu também não era loura-relembrou Smilow.
Hammond não se surpreendeu de saber que a leal empregada de Davee teria mentido por ela. Mas ficou abalado com o comentário maldoso de Steffi e aflito de pensar que a amiga de infância estava sendo seriamente considerada suspeita, com um álibi que não era tão perfeito como tinha dito.
Ele balançou a cabeça, discordando.
para perto da cama. Havia um bloco de desenho no colo de Daniels com o que parecia uma variedade infinita de formatos de olhos. Hammond deu uma olhada no desenho de Endicott, mas até ali ela ainda estava trabalhando para conseguir acertar a forma do rosto.
assim.
Quando passaram para as sobrancelhas e os olhos, Hammond voltou para o lado de Steffi e Smilow.
Exceto os casos que tinham sido passados para a jurisdição federal, Hammond havia ajudado a pôr alguns daqueles criminosos de colarinho branco atrás das grades. Lute Pettijohn tinha burlado bastante as leis e muitas vezes chegava perto demais de delitos criminais. Flertava com eles, mas nunca cruzava a fronteira.
Steffi bufou com desprezo.
O coração de Hammond afundou como uma bola de chumbo no peito dele. Smilow não estava dizendo nada sobre o empreendimento na ilha Speckle que ele já não soubesse. Sabia muito mais, muito mais do que queria saber.
Cerca de seis meses antes, o procurador-geral da Carolina do Sul tinha pedido para ele fazer uma investigação sigilosa da tentativa de Pettijohn de lotear a ilha. As descobertas que fez foram alarmantes, mas nenhuma tão séria quanto encontrar o nome do próprio pai na lista de investidores. Até saber qual a ligação da ilha Speckle com o assassinato de Pettijohn, se é que havia alguma, ele manteria segredo dessa informação. Assim como o detetive tinha dito para ele com grosseria, ele daria esses detalhes para o detetive quando chegasse o momento certo.
Se Smilow estava cavando, então Hammond sabia que o nome de Preston Cross estava lá como um tesouro enterrado, à espera para ser desenterrado. Era apenas uma questão de tempo para a aliança do seu pai com Pettijohn ser descoberta.
Mentalmente Hammond xingou o pai por deixá-lo naquela posição comprometedora. Logo ele talvez fosse forçado a escolher entre o dever e a lealdade para com a família. No mínimo o negócio sujo de Preston custaria para Hammond o caso Pettijohn. Se chegasse a isso, Hammond jamais o perdoaria.
Olhou para a cama do hospital onde a desenhista parecia estar fazendo progresso.
Daniels franziu a testa e olhou nervoso para o relógio, mas obedeceu e começou a virar aflito as páginas da revista de penteados.
Hammond se sentiu atraído pelas palavras de Daniels, como se elas segurassem uma corda que o puxava inexoravelmente.
Hammond tomou um gole de café que subitamente ficou amargo na boca. Chegou mais perto da cama do hospital com a insegurança de um acrófobo que se aproxima da beirada do Grand Canyon. O cabo Endicott riscava rapidamente com o lápis na sua prancheta. Risca, risca, risca.
Daniels disse para Endicott que o cabelo estava perfeito.
Ele levantou a cabeça, olhou aflito para a porta, como se temesse que a sra. Daniels estivesse lá ouvindo tudo.
Endicott consultou o desenho e copiou no outro que estava fazendo.
Enquanto observava, Daniels acrescentou:
Como quando os olhos se encontram através de uma pista de dança.
Hammond não tinha coragem suficiente para espiar o esboço de Endicott, mas mentalmente ele viu um sorriso de boca fechada muito atraente, que tinha ficado profundamente marcado em sua memória.
Smilow e Steffi estavam entretidos numa conversa. Quando ouviram a exclamação de Daniels, correram para o lado da cama. Hammond deixou Steffi ocupar seu lugar porque ele não precisava mais ver nada.
Acho que ela tinha uma espécie de sinal – disse Daniels. - Não era feio. Parecia mais uma pinta. Embaixo do olho.
Verdes, salpicados de castanho. Bem afastados um do outro. Cílios escuros.
Saia, branca. Blusa de malha marrom e casaco combinando. Sandália de couro marrom. Sem meias. Sutiã bege de renda com fecho na frente. Calcinha fazendo conjunto. Endicott começou a recolher seu material e a guardar na mochila preta cheia demais. Smilow pegou o desenho da mão dela e apertou a mão do sr. Daniels.
Sem voz, Hammond simplesmente se despediu do sr. Daniels com um movimento de cabeça. No corredor, Smilow e Steffi agradeceram muito à artista antes que ela entrasse no elevador. Eles ficaram para estudar o desenho e parabenizar um ao outro.
Ele devia estar parecendo tão nauseado quanto se sentia.
A sede temporária do fórum ficava ao norte da cidade de Charleston. Era um prédio sem graça, de dois andares, situado num bairro industrial. Os vizinhos mais próximos eram uma loja de conveniência e uma padaria que acabara de abrir. Esse local fora de mão ia servir até que uma extensa reforma do imponente velho prédio no Centro da cidade terminasse. Ele já precisava de atenção quando o furacão Hugo tornou o prédio perigoso e impraticável, forçando a mudança. Era uma viagem de carro de dez minutos do Centro. Hammond não se lembrava de ter ido para lá aquela manhã. Ele estacionou o carro e entrou. Respondeu automaticamente para o guarda que operava o detector de metais na entrada. Virou à esquerda e entrou na sala do procurador municipal, passando pela mesa da recepcionista sem diminuir o passo. Pediu bruscamente para ela segurar todas as ligações.
Bateu a porta da sua sala depois que entrou. Jogou o paletó e a pasta sobre a papelada que o esperava em cima da mesa, caiu na cadeira de couro preto de espaldar alto e apertou a palma das mãos nos olhos. Simplesmente não podia ser. Aquilo tinha de ser um sonho. Em breve ele ia acordar assustado e alarmado, ofegante, os lençóis molhados de suor. Depois de se localizar e reconhecer o ambiente familiar, ele ia descobrir, aliviado, que tinha dormido profundamente e que aquele pesadelo não era a realidade. Mas era. Ele não estava sonhando, estava vivendo aquilo. Por incrível que parecesse, a artista tinha desenhado a dra. Alex Ladd, que dividira a cama com Hammond horas depois de ser vista no local de um assassinato. Coincidência? Pouco provável. Ela devia ter alguma ligação com Lute Pettijohn. Hammond não tinha certeza se queria saber que ligação era aquela. Na verdade, tinha certeza absoluta de que não queria saber. Passou a mão no rosto, apoiou os cotovelos na mesa e olhou para o vazio, tentando arrumar seus pensamentos caóticos de uma forma que ao menos parecesse ordenada. Primeiro, sem dúvida nenhuma, o cabo Endicott havia desenhado o rosto da mulher com quem tinha dormido na noite de sábado. Mesmo se não tivesse visto a mulher tão pouco tempo atrás, como na noite anterior, ele não esqueceria seu rosto tão cedo. Tinha se sentido atraído por ele logo no início. E passara horas na noite de sábado e na madrugada de domingo estudando, admirando, acariciando e beijando aquele rosto.
Ele ficou conhecendo o rosto dela intimamente. O desenho da artista era bidimensional, em preto e branco. Dadas essas limitações, não podia de jeito nenhum captar a essência da mulher por trás daquele rosto, mas era uma representação tão aproximada que não havia dúvida de que a dra. Ladd tinha estado perto do quarto da vítima logo antes de se pôr no caminho de um funcionário da procuradoria municipal, especificamente um tal de Hammond Cross, que também tinha estado com Pettijohn aquela tarde.
Hammond passou os dedos no cabelo, segurou a cabeça com as mãos e quase se rendeu à incredulidade e desespero que se apossaram dele. Que diabos ia fazer? Bem, não podia desmoronar por dentro, que era o que tinha vontade de fazer. Que luxo seria esgueirar-se do escritório, sair de Charleston, deixar o estado, fugir e se esconder, deixar toda a confusão estourar sozinha e se poupar de ter de enfrentar o fluxo de lava incendiária do escândalo que inevitavelmente aconteceria. Mas ele era mais resistente que isso. Tinha nascido com um indómito senso de responsabilidade, e seus pais tinham alimentado essa característica todos os dias da sua vida. Pensar em fugir daquilo tudo era o mesmo que imaginar que estava criando asas. Por isso ele se forçou a encarar um segundo ponto que parecia indiscutível. Esconder o nome dele não era o toque de charme sedutor em que tinha pensado. Eles ficaram juntos na feira pelo menos uma hora antes de Hammond pensar em perguntar o nome dela. Deram risadas porque levaram tanto tempo para o que costumava ser a primeira coisa a fazer quando duas pessoas se conheciam e se apresentavam.
-Nomes não são importantes, não acha? Não quando o encontro é tão amigável assim.
Ele concordou.
E ele citou o que conseguiu lembrar de uma passagem de Romeu e Julieta.
O que era inquietante, mas bem provável, era que Alex Ladd devia saber o nome dele o tempo todo. O encontro não tinha sido casual. Não foi à toa que ela chegou ao pavilhão de dança logo depois dele. O encontro dos dois foi planejado. O resto da noite foi orquestrado para constrangê-lo ou comprometê-lo totalmente e/ou a procuradoria municipal. Até que ponto ele ainda ia ver. Mas mesmo um pouco só poderia ser uma calamidade para a sua carreira que desmanchava. Até uma ameaça de escândalo seria uma pedra no caminho. E um escândalo daquelas proporções certamente provocaria danos, se não destruísse de vez todas as suas esperanças de ocupar o lugar de Monroe Mason e de se destacar como o sumo mantenedor da lei do município de Charleston. Inclinado sobre a mesa, Hammond cobriu novamente o rosto com as mãos. Bom demais para ser verdade. Um adágio banal mas verdadeiro. Nos tempos da faculdade de direito, ele e os amigos frequentavam um bar chamado Tanstaafl, acrónimo para “There ain’t no such thing as a free lunch” [Não existe almoço grátis]. A fantasia dele de passar uma noite com a mulher mais excitante que tinha conhecido vinha acompanhada de pauzinhos e cordinhas, e provavelmente essas cordinhas formariam um laço que ia acabar enforcando-o. Que idiota tinha sido de não reconhecer a armadilha e a isca tão bem elaboradas. Ironicamente, ele não considerava culpada a pessoa, ou as pessoas – se ela estivesse mancomunada com Pettijohn – que lhe armara a armadilha. O maior culpado era ele, por ter sido tão imaturo. Com os dois olhos bem abertos, Hammond tinha caído no mais antigo conto do vigário que a humanidade conhece. Sexo era um método seguro para comprometer um homem. Inúmeras vezes em toda a história tinha provado que era oportuno, confiável e eficiente. Ele não pensava que era tão ingénuo, mas obviamente era. Ingenuidade era perdoável. Obstrução da justiça, não. Por que não tinha admitido imediatamente para Smilow e Steffi que reconheceu a mulher do desenho? Porque ela podia não ter culpa nenhuma. Aquele Daniels podia ter se enganado. Se ele realmente tinha visto Alex Ladd no hotel, a hora exata desse encontro poderia ser crítica. Hammond sabia quase o minuto em que ela aparecera no pavilhão de dança. Dada à distância que ela teria de ter percorrido em seu carro para chegar lá, levando em consideração o congestionamento de trânsito, ela não teria conseguido se saísse do hotel... Ele fez um cálculo rápido. Digamos, às cinco e meia. Se o médico-legista determinasse a hora da morte depois disso, ela não poderia ser a assassina. bom argumento, Hammond. A posteriori. Uma racionalização sensacional. Mas o fato era que nunca tinha passado pela cabeça dele identificar Alex Ladd. Desde o momento em que seu coração parou quando viu o desenho e soube com absoluta certeza quem era a pessoa retratada, ele sabia, com a mesma certeza, que não ia revelar o nome dela. Quando ele viu o rosto no bloco de desenho da artista e se lembrou do rosto que tinha visto tão de perto no seu travesseiro, ele nem pesou as opções, não deliberou sobre os prós e os contras de ficar calado. Seu segredo foi selado imediatamente. Pelo menos por enquanto ele ia proteger a identidade dela. Desse modo estava quebrando todas as regras da ética que advogava. O silêncio dele era uma violação deliberada da lei que tinha jurado manter, e uma tentativa intencional de prejudicar uma investigação de homicídio. Nem imaginava a severidade das consequências que teria de pagar. Mesmo assim, não ia entregá-la para Smilow e Steffi. A forte batida soou um milésimo de segundo antes da porta se abrir. Ele já ia repreender a secretária por incomodá-lo, depois de ter pedido expressamente para não ser incomodado, mas não chegou a dizer aquelas palavras duras.
Como sempre acontecia quando estava na presença do pai, Hammond fazia uma espécie de inspeção pré-vôo. Como- estava? Todos os sistemas e partes estavam em perfeitas condições de funcionamento? Havia qualquer defeito que necessitasse de correção imediata? Ele ia passar no teste? Esperava que seu pai não o examinasse muito de perto aquela manhã.
O Álibi_Sandra Brown_II
Hammond ficou em pé e eles apertaram as mãos formalmente por cima da mesa. Se o pai algum dia lhe dera um abraço, Hammond devia ser jovem demais para se lembrar.
Ele pegou o paletó e pendurou-o num cabide de parede, pôs a pasta no chão e convidou o pai para se sentar na única cadeira vaga na sala sem espaço para mais nada. Preston Cross era consideravelmente mais corpulento e mais baixo que o filho. Mas a altura de menos não reduzia o impacto que ele provocava nas pessoas, no meio de uma multidão ou frente a frente. A pele corada estava sempre bronzeada por causa das atividades ao ar livre que praticava, e que incluíam ténis, golfe e vela. Como se tivesse obedecido uma ordem, o cabelo dele tinha ficado precocemente branco quando ele completou cinquenta anos. Usava o cabelo branco como um acessório para garantir que recebesse o devido respeito.
Nunca ficou um só dia doente e, na verdade, desprezava a pouca saúde como um sinal de fraqueza. Tinha parado de fumar havia dez anos, mas fumava charuto. Não bebia menos que três doses de uísque por dia. Considerava um sacrilégio jantar sem beber vinho. Sempre tomava um cálice de conhaque antes de dormir. Apesar desses vícios, ele vendia saúde. Com sessenta e cinco anos, Preston era mais robusto e estava em melhor forma do que a maioria dos homens com a metade da sua idade. Mas não era apenas seu físico imponente que criava aquela aura tão poderosa. Era também sua personalidade dinâmica. Considerava sua boa aparência como um direito. Intimidava os homens que costumavam ser sempre seguros. As mulheres o adoravam. Tanto na vida profissional quanto na pessoal, raramente era superado e jamais alguém o contradizia. Trinta anos antes, ele havia combinado diversas pequenas firmas de seguro médico e transformado numa grande que, sob a liderança dele, tinha ficado enorme e agora possuía vinte e uma filiais em todo o estado. Oficialmente, ele era parcialmente aposentado. No entanto, continuava sendo diretorexecutivo da companhia e era mais que uma posição passiva. Ele monitorava tudo, até o preço dos lápis no atacado. Nada escapava à sua observação. Servia a diversas diretorias e comités. Ele e a sra. Cross constavam de todas as listas de convites que tinham alguma importância. Ele conhecia todos que eram alguém no Sudeste dos Estados Unidos. Preston Cross era muito bem relacionado.Hammond desejava amar, admirar e respeitar o pai, mas sabia que Preston tinha tirado vantagem das qualidades concedidas por Deus para fazer coisas perversas. Preston iniciou sua visita inesperada.
Essas palavras em geral serviam de prefácio para condolências. Hammond se encheu de medo. Como é que o pai podia ter descoberto tão cedo sua indiscrição com Alex Ladd?
Hammond procurou esconder o alívio que sentiu.
Ignorando a explicação de Hammond, Preston continuou:
Um exemplo perfeito de atenuação dos fatos.
Preston tirou um fiapo invisível da dobra bem passada da calça.
Preston Cross abanou a mão num gesto de impaciência e pouco caso.
Hammond tinha deixado cair uma bomba, mas Preston nem se mexeu.
Hammond nem tentou esconder seu desprezo.
O sangue misturado com uísque subiu para os capilares do rosto de Preston.
Hammond não sabia se acreditava nele ou não. O semblante do pai era calmo, implacável, não dava nenhum sinal aparente de desonestidade. Ele tinha esse talento.
Hammond sentiu o rosto esquentar de vergonha. Pettijohn tinha dito para ele no sábado à tarde que Preston estava metido até o pescoço na ilha Speckle. Tinha mostrado documentos assinados em que a assinatura do pai era prontamente reconhecida. Será que Pettijohn estava jogando com ele?
Hammond ignorou a pergunta.
O café amargo no estômago de Hammond ficou indigesto.
Preston deu de ombros.
Hammond olhou furioso para o pai. Preston estava praticamente desafiando o filho a transformar aquilo num caso... literalmente. Mas Hammond sabia que seria inútil fazer isso. Provavelmente até Lute Pettijohn sabia que Preston teria todos os seus patos enfileirados. Tinha usado a associação temporária de Preston no projeto da ilha Speckle para manipular Hammond.
Aquele território era bem familiar. Os dois tinham pisado nele milhares de vezes. Quando Hammond tinha idade suficiente para questionar a infalibilidade do pai e para ir contra alguns dos seus princípios, logo ficou claro que eles eram diferentes. Uma linha foi traçada na areia. Aquelas eram discussões que nenhum dos dois podia vencer porque nenhum dos dois se dispunha a ceder nem um milímetro sequer. Agora que Hammond tinha visto provas por escrito do envolvimento do pai em um dos esquemas mais nefandos de Pettijohn, ele compreendia a imensa diferença entre seus pontos de vista. Não acreditava, nem por um segundo, que Preston não soubesse o que estava acontecendo naquela ilha no meio do mar. A consciência não teve papel nenhum na sua decisão de sair do negócio na hora que ele saiu. Simplesmente esperou uma oportunidade de lucrar com o próprio investimento. Hammond percebeu que o abismo entre os dois estava se aprofundando. Não via como superá-lo.
À porta, Preston parou e se virou para ele.
O cumprimento não suavizou o que Hammond sentia, porque ele não dava mais valor à opinião do pai. Além disso, o elogio de Preston sempre vinha acompanhado de um qualificativo.
Era sempre assim, desde a infância dele. E o pai não quebrou a tradição aquela manhã.
Ela usava esse dia para atualizar sua papelada e negócios pessoais. Aquela era uma segunda-feira especial. Ia saldar sua dívida com Bobby Trimble e livrar-se dele, se possível para sempre. Aquele tinha sido o trato que os dois fizeram na noite anterior. Ela daria o que ele tinha exigido, e ele desapareceria. Mas ela já tinha aprendido com experiências concretas que as promessas de Bobby não valiam nada. Enquanto destrancava a porta do consultório, imaginava quantas vezes no futuro seria forçada a abrir o cofre para tirar dinheiro em espécie. Pelo resto da vida? Essa era uma perspectiva desanimadora, mas válida. Agora que Bobby a tinha encontrado de novo, não era provável que a deixasse em paz. O consultório bem decorado fazia lembrar tudo que tinha a perder se Bobby a entregasse. Com o conforto dos pacientes em mente, ela havia escolhido uma mobília discreta mas cara. Como os outros cómodos da casa, era uma mistura do estilo tradicional com algumas poucas peças de antiquário dando um toque pessoal. O tapete oriental abafou seus passos. O sol entrava pelas janelas que davam para a varanda do primeiro andar e, mais adiante, para o jardim murado, que ela mantinha muito bem cuidado nas quatro estações. As plantas e flores que cresciam no clima semi tropical de Charleston estavam no máximo de sua exuberância. Curtindo a umidade, elas criavam retalhos de cores vibrantes nos seus canteiros cultivados. Teve sorte de encontrar a casa já reformada e renovada com conveniências modernas. Só precisou dar alguns toques pessoais para torná-la dela. Um tempo atrás aquele cómodo do canto, na frente, tinha sido a única sala formal da casa. O cómodo idêntico contíguo a ela, originalmente a sala de jantar, agora funcionava como sala de estar. Quando recebia convidados, ela os levava para o jardim. As refeições em casa eram feitas na cozinha, o cómodo dos fundos no primeiro andar. Lá em cima havia duas grandes suítes. Cada cómodo da casa se abria para uma das duas piazzas sombreadas. O muro coberto de jasmim que cercava o jardim garantia a privacidade. Alex puxou para o lado o quadro que escondia seu cofre de parede. Com habilidade, ela girou o mostrador com a combinação da tranca e, quando ouviu as linguetas encaixando, abaixou a alavanca e abriu a porta pesada. Dentro havia várias pilhas de dinheiro, presos com elástico de acordo com o valor. Talvez por ter conhecido a necessidade, até a fome, quando era pequena, jamais ficava sem dinheiro vivo à mão. O hábito era infantil e irracional, mas se dava esse direito, levando em conta a origem dele. Não era seguro, economicamente, manter o dinheiro num cofre, onde não rendia juros. Mas dava uma sensação de segurança saber que estava lá, à disposição se surgisse alguma emergência. Como agora. Ela contou a quantia que tinha combinado pagar e pôs o dinheiro numa sacola com zíper. Devido ao que representava, a sacola parecia extraordinariamente pesada na mão dela. O ódio que sentia por Bobby Trimble era tão intenso que ela ficava até com medo. Não lamentava ter de dar aquele dinheiro para ele. Ficaria feliz de dar até mais se significasse que nunca mais teria de vê-lo. Não era da quantia que ela não gostava, mas da intromissão na vida que ela havia construído para ela. Duas semanas antes, ele tinha se materializado na sua frente, saído do nada. Sem imaginar o que havia à sua espera, ela atendeu alegremente à campainha da porta e o encontrou lá. Por um momento não o reconheceu. As mudanças eram surpreendentes. As roupas vulgares e baratas tinham sido substituídas por uma moda mais cara e chamativa. Havia um pouco de branco no cabelo das têmporas, que faria qualquer outro homem parecer distinto. Bob, contudo, só parecia mais sinistro, como se a maldade da juventude tivesse amadurecido e virado puro mal. Mas o sorriso sarcástico era familiar demais. Era um sorriso triunfante, cheio de volúpia e sugestivo, que ela passara anos tentando erradicar da memória. Quando inúmeras sessões de terapia e mares de lágrimas não lograram livrá-la dele, ela implorou a Deus para fazê-lo desaparecer. Agora, apenas em raras ocasiões, ele reaparecia num pesadelo, do qual ela despertava banhada em suor e tremendo de pavor. Porque aquele sorriso representava o controle que ele havia exercido sobre ela.
desastre, especialmente porque as mudanças sutis pelas quais tinha passado atenuavam a ameaça que ele representava.
Ela não sabia se acreditava nele ou não. O destino podia ter pregado essa peça cruel nela. Por outro lado, Bobby era cheio de recursos. Ele podia estar atrás dela estes anos todos. De qualquer modo, não importava mais. Ele estava lá, exumando suas piores lembranças e medos mais sinistros dos lugares profundos da alma em que ela os havia enterrado.
Ele pôs as mãos sobre o coração e fingiu que o que ela dizia o estava magoando.
quando era mais jovem, e fez uma careta de raiva.
Ele se gabou da carreira como relações públicas de uma boate. Quando ela ouviu tudo que era capaz de suportar sobre os dias de glória dele no Cock’n’Bull, ela disse:
Ela esperava com isso dar um fim rápido à reunião. Mas Bobby estava se animando para a grande revelação. Como se jogasse o ás da vitória, ele orgulhosamente explicou o esquema que o tinha levado para Charleston.
Sem dúvida ele estava completa e absolutamente louco, e ela disse isso para ele.
Tentando controlar o medo, ela disse:
Mas ele voltou. No dia seguinte. E no outro também. Ele persistiu uma semana inteira, aparecendo nas mais diversas horas, interrompendo as sessões de Alex com seus pacientes, deixando repetidos recados na secretária eletrônica, que ficavam cada vez mais ameaçadores. Ele tinha voltado a se incorporar à vida dela, como bom parasita que era.
Finalmente ela concordou em se encontrar com ele. Achando que Alex tinha capitulado, o prazer dele se transformou em fúria quando ela se recusou a participar.
Furioso por saber que o que ouvia era verdade, ele tirou um dos diplomas dela da parede do consultório e jogou no chão, quebrando a moldura e estilhaçando o vidro.
Ela compreendeu então que ele não era mais um vagabundo de rua. Além de poder prejudicá-la, ele podia destruí-la. Por isso ela concordou em desempenhar seu pequeno papel naquele plano ridículo, mas só porque já tinha pensado numa maneira de sabotá-lo.
Mas como acontecia com todas as trapaças de Bobby, deu errado. Terrivelmente errado.
Ela não conseguiu implementar o próprio plano. Agora era fundamental que ela se dissociasse de Bobby. Se isso significava pagar o que ele exigia, era um sacrifício pequeno se comparado à enormidade do que podia perder se a aliança dos dois fosse revelada. Achando que essa decisão era válida, ela fechou o cofre de parede, pôs o quadro de volta no lugar e saiu do consultório, tendo o cuidado de trancar a porta. Como se fosse uma deixa, a campainha tocou no mesmo instante. Bobby tinha chegado bem na hora. Ela escondeu a sacola atrás de um vaso na mesa da entrada, foi para a varanda e abriu a porta da rua. Mas não era Bobby. Dois policiais uniformizados acompanhavam um homem de olhos claros e lábios finos, muito sérios. O coração de Alex disparou, pois ela já sabia o que eles estavam fazendo ali na sua casa. Mais uma vez sua vida estava prestes a mergulhar no caos. Para disfarçar sua ansiedade, ela deu um sorriso simpático.
Ela e o detetive Smilow ficaram olhando um para o outro, medindo forças. Foi Alex que acabou cedendo. Ela chegou para um lado.
Os lábios de Smilow subiram um pouco e formaram o que poderia passar como um sorriso triste.
Smilow estava sentado na quina de sua mesa. Diferente de todas as outras mesas da Divisão de Investigação Criminal, a dele não tinha papéis empilhados. Os arquivos e a papelada estavam arrumados. Graças ao trabalho do engraxate Smitty aquela manhã, os sapatos de amarrar refletiam as luzes do teto. Ele continuava de paletó. Alex Ladd estava sentada, com as mãos calmamente postas no colo, as pernas discretamente cruzadas. Smilow achou que ela estava extraordinariamente composta para alguém que, pelo menos no que dizia respeito à aparência, parecia totalmente deslocada na sala de um detetive da Homicídios. Havia meia hora esperavam o advogado que tinha combinado encontrá-la na delegacia. Se ela se sentia incomodada com o silêncio prolongado e com o exame minucioso que Smilow fazia dela, não dava nenhum sinal. Não demonstrava medo ou insegurança, apenas uma tolerância a contragosto com aquela inconveniência. O advogado Frank Perkins chegou afobado, apressado e se desculpando. Usava roupa de golfe, fora os sapatos.
Perkins tinha uma reputação muito sólida e um desempenho excelente. O que era mais raro ainda, tinha fama de ser um ser humano decente, possuidor de uma integridade inabalável. Smilow ficou imaginando de que forma o advogado tinha servido a Alex Ladd antes, por isso perguntou.
O queixo de Perkins caiu. Ele olhou para eles boquiaberto, como se esperasse o fim da piada.
Como se estivesse dando permissão para ele continuar, Alex mexeu a cabeça olhando para ele. Ele se inclinou sobre a mesa, ligou um gravador, declarou os nomes deles, a hora e a data.
Infelizmente para Smilow não havia nenhum registro da hora em que o carro saíra do estacionamento. A cobrança era feita de acordo com o horário de entrada. Qualquer período inferior a duas horas custava cinco dólares. As taxas adicionais só começavam a ser cobradas depois daqueles primeiros cento e vinte minutos. O preço era anotado, mas não a hora exata da saída.
Perkins, que ouvia atentamente, deu uma risada e disse:
Perkins levantou a mão, mas Alex o fez abaixar.
Além de calma, ela era inteligente, pensou Smilow.
Perkins ficou olhando para ela um longo tempo. Ele obviamente discordava disso, mas virou-se para Smilow:
Smilow viu Alex Ladd balançar a cabeça inexoravelmente para uma pergunta que Frank Perkins fez.
Steffi reagiu com espanto.
Antes de Smilow poder responder, Frank Perkins abriu a porta, cumprimentou Steffi com aspereza e fez um gesto para eles entrarem. Bobby Trimble respirou fundo para tentar fazer seu coração voltar a bater normalmente. Estava acelerado desde que vira Alex conversando com policiais na frente da casa dela. Isso era ruim. Muito ruim. Será que a polícia já sabia do seu esquema Pettijohn? Será que Alex os tinha chamado com a intenção de entregá-lo para se salvar? Ele tinha passado de carro pela frente da casa dela devagar, com uma indiferença ensaiada. Mas o que ele viu com o canto do olho foi alarmante. Dois uniformizados, um à paisana e uma mulher vingativa que não disfarçava o desprezo que sentia por ele. Uma receita perfeita para o desastre. Havia, no entanto, um sinal positivo. Alex não apontou para ele. Não apontou para ele gritando “Peguem-no!”. Mas ele não tinha certeza do que isso significava, em que pé estava. Podia significar apenas que ela não o tinha visto passar. Pensando no seu próximo passo, ele dirigiu o conversível sem rumo pelo trânsito do meio-dia no Centro de Charleston. Na noite anterior ele pensou que tinha conseguido. Depois de muitas ameaças, Alex tinha concordado em dar o dinheiro que ele exigia.
Alex também tinha dado a volta por cima. Falava melhor. Vestia-se melhor. Vivia bem. Mas apesar de toda aquela pose esnobe e metida a besta, não tinha mudado realmente. Não mais que ele. Assim como Alex conhecia sua verdadeira natureza, ele conhecia a dela. Será que ela pensava que ele tinha nascido ontem? Ele sabia o que estava acontecendo. Ela aproveitara a sua ideia brilhante e estava tentando ficar com a metade que pertencia a ele.
Quando ele a acusou disso, ela retrucou:
O suspiro cansado de Alex foi tão bom quanto uma bandeira branca hasteada.
Então ele foi para a casa dela ao meio-dia, e o que aconteceu? Ela estava recebendo a visita da polícia. Já podiam até ter expedido um mandado de prisão para ele. Mas talvez não, ele pensou, esforçando-se para ficar calmo. Se ela e a polícia estavam armando uma armadilha para ele, por que a radiopatrulha estava estacionada bem à vista? E como é que ela podia acusálo sem se encrencar também? De qualquer forma, até ter certeza do que estava acontecendo, seria mais sensato Bobby Trimble se esconder. Uma chatice. Ele parou num sinal vermelho, cruzou as mãos em cima da direção e contemplou seu futuro imediato. Com o canto do olho ele notou um outro conversível parando ao lado do dele. Virou a cabeça. Os dois rostos que olhavam para ele estavam parcialmente escondidos atrás de óculos escuros com lentes amarelas. As estudantes eram jovens e atraentes. Seus sorrisos eram convidativos e ousados. Filhinhas mimadas de papai rico à procura de encrenca numa tarde quente de verão. Ou seja, presas fáceis. O sinal ficou verde, e cantando pneus o carro delas saiu em disparada. Viraram à direita na rua seguinte. Bobby trocou de pista e foi atrás delas. As meninas, olhando por cima dos ombros nus, sabiam que ele as seguia. Ele as viu dando risadas. O BMW conversível entrou no estacionamento de um restaurante da moda. Bobby também entrou. Viu as duas indo para a porta de entrada. Elas usavam shorts bem curtos que exibiam uma polegada das nádegas e o que pareciam quilómetros de pernas bronzeadas. As blusas deixavam pouca coisa a cargo da imaginação. Elas eram uma lembrança ambulante, risonha e paqueradora do que Bobby fazia melhor. Ele abriu caminho pelo restaurante apinhado e avistou as duas sentadas a uma mesa no pátio, à sombra de um guarda-sol, fazendo o pedido de bebidas para uma garçonete. Quando a garçonete se afastou, Bobby sentou-se numa cadeira vazia à mesa delas. Os lábios delas brilhavam e emolduravam dentes muito brancos e perfeitos. Diamantes brilhavam em suas orelhas. Elas cheiravam a perfumes caros.
Ele deu um sorriso cheio de más intenções.
Bobby recostou-se na cadeira.
A intrépida recepcionista finalmente quebrou a barreira invisível e entrou na sala de Hammond.
Hammond começou a suar frio na palma das mãos.
As ramificações dessa notícia ricochetearam rapidamente, como ecos. Hammond foi atacado por elas. As táticas de interrogatório de Smilow eram capazes de arrancar uma confissão da madre Teresa. Hammond não tinha como saber de que forma Alex Ladd ia reagir a elas. Seria hostil ou ia cooperar? Teria alguma coisa para confessar? Quando ela o visse novamente, o que poderia revelar? O que ele poderia revelar?
Por precaução, ele queria adiar o inevitável encontro cara a cara até quando pudesse. Até saber mais sobre Alex Ladd e conhecer a natureza e a extensão do seu envolvimento com Pettijohn, era melhor para ele manter distância do caso. Normalmente isso seria viável. A não ser em raras exceções, a promotoria não se envolvia diretamente até os detetives descobrirem provas suficientes para fazer acusações formais, ou para Hammond ter um caso para apresentar ao grande júri. Diferentemente de Steffi, que não sabia o que queria dizer sutileza, ele deixava a polícia fazer seu trabalho até a hora de ele assumir o controle da situação. Mas era uma daquelas raras exceções. Seu envolvimento era necessário, mesmo que o único motivo fosse a política. Funcionários municipais e estaduais, alguns que tinham sido inimigos declarados de Pettijohn, outros seus aliados, estavam usando aquele assassinato como plataforma política. Pela mídia, eles exigiam a rápida prisão e julgamento do assassino. Alimentando o interesse público, um editorial no jornal daquela manhã emitia um chamado para despertar os leitores para a triste verdade de que ninguém, nem um indivíduo aparentemente invulnerável como Lute Pettijohn, estava a salvo da violência. Na edição de meio-dia do noticiário, um repórter fazia uma enquete na rua, perguntando para os transeuntes se confiavam que o assassino de Pettijohn seria capturado e justamente punido. O caso estava criando o frenesi da mídia que o pai dele tanto queria. O que Hammond queria,era evitar entrar na refrega o máximo de tempo possível. Visando isso, ele passou mais meia hora inventando trabalho para ele mesmo.
Monroe Mason apareceu assim que ele chegou do almoço.
A voz retumbante ecoou pelas paredes da sala de Hammond como uma bola de ténis.
Ele explicou quem era Daniels e contou do retrato falado.
-Agora? Smilow não gosta quando nós xeretamos – argumentou Hammond. - E ele não gosta especialmente quando eu me meto. A Steffi já está lá. Se eu for para lá também, ele vai detestar. Vai parecer que estamos querendo controlá-lo.
Hammond conhecia bem Perkins, e o respeitava. Era sempre um desafio argumentar num caso contra ele no tribunal. Ela não poderia ter escolhido advogado mais capaz.
Mason não desanimou.
Com um até logo ribombante, Monroe saiu e levou embora com ele qualquer opção que Hammond pudesse ter.
Assim que chegou à delegacia de polícia, ele foi para o segundo andar e apertou a campainha da porta dupla trancada da Divisão de Investigação Criminal. Quem a abriu foi uma mulher policial. Sabendo por que ele estava ali, ela disse:
Hammond ficou quase feliz de Alex não estar sendo interrogada naquele cubículo sem janelas que fedia a café velho e a suor de culpa. Não podia imaginá-la na mesma sala em que tinha visto pedófilos, estupradores, bandidos, cafetões e assassinos serem completamente desmantelados sob a pressão dos tenazes interrogatórios. Ele entrou no corredor curto onde ficavam as salas dos detetives da Homicídios. Esperava que já tivessem acabado e que Alex já tivesse ido embora quando chegou. Mas não teve tanta sorte. Steffi e Smilow estavam espiando pela janela-espelho, parecendo abutres à espera do último suspiro da vítima. Ele ouviu Steffi dizer para Smilow:
Não notaram a presença de Hammond até ele falar.
Steffi deu meia-volta e parecia muito aborrecida.
Até Smilow parecia impressionado ao citar uma longa lista de credenciais.
-Ah, ela é segura mesmo – disse Steffi. - Não dá para derreter gelo no rabo dela. Depois que você conversar com ela, vai ver o que quero dizer. Ela é tão fria que praticamente não tem sangue nas veias.
Você não sabe de nada, Steffi.
Steffi soltou o ar, bufando, aliviada.
-Assim termina o primeiro round da droga da disputa. Agora será que podemos, por favor, voltar ao trabalho?
Smilow segurou a porta aberta para eles. Hammond deixou Steffi seguir na frente. Smilow entrou atrás dele e fechou a porta, espremendo gente demais num espaço pequeno demais. Não havia quase espaço para Smilow passar por Hammond para chegar à sua mesa.
Para Hammond, ouvir a voz dela era tão perturbador quanto ser tocado por ela. Ele quase podia sentir a respiração dela na sua orelha. O coração dele batia forte nas costelas. Mal conseguia respirar. E, maldição, quase não podia controlar o desejo de tocá-la.
Smilow fez as apresentações supérfluas.
Ela virou a cabeça. Hammond prendeu a respiração.
Alex Ladd não disse nada disso. Nem nenhuma das outras coisas pavorosas que Hammond tinha imaginado que ela pudesse dizer. Ela não começou a berrar acusações, nem o denunciou na frente dos seus colegas, nem piscou o olho sugestivamente, tampouco deu algum outro sinal de reconhecimento. Mas quando ela virou para ele e os olhos dos dois se encontraram, tudo o mais em volta dele desapareceu, e ele só conseguia se concentrar nela. Eles ficaram se olhando por apenas um segundo ou dois, mas se aquela troca tivesse durado uma eternidade não poderia ser mais poderosa ou significativa. Ele queria perguntar, O que você fez comigo? Em todos os sentidos. Tinha sido atingido por um raio no sábado à noite. Tinha pensado e até esperado que, ao vê-la de novo, sob aquela luz fluorescente muito forte e num ambiente bem menos romântico, o impacto seria menor. Mas aconteceu exatamente o oposto. O desejo de encostar nela era uma necessidade física. Tudo isso passou pela cabeça dele em menos tempo do que levou para piscar. Torcendo para não ser traído pela voz, ele disse:
Então ela virou para o outro lado. Aquele reconhecimento destruiu a esperança desesperada de Hammond de que ele de fato tivesse sido um perfeito desconhecido para ela no sábado, e que o encontro dos dois na feira tivesse sido puramente acidental. Se esse fosse o caso, ao serem apresentados agora ela arregalaria os olhos e diria algo como “Ora, olá! Não esperava vê-lo aqui”. Mas ela não demonstrou surpresa alguma. Quando virou a cabeça para cumprimentá-lo, ela sabia exatamente com quem estaria falando. Na verdade, parecia que ela havia se preparado para aquela apresentação, assim como ele. Ela quase exagerou no ar de indiferença, virou o rosto quase rápido demais, beirando a má educação.
Não havia mais dúvida. O encontro deles tinha sido planejado e, por motivos que ainda não estavam claros, o tempo que passaram juntos era comprometedor para ela e para ele também. Frank Perkins falou primeiro:
O advogado consultou sua cliente:
Esse comentário partiu de Steffi, e Hammond sentiu vontade de dar um tapa nela. Deixando o interrogatório a cargo de Smilow, ele se encostou na porta fechada, de onde tinha uma visão desimpedida do perfil de Alex.
Smilow ligou o gravador e acrescentou o nome de Hammond ao de todos ali presentes.
Ela suspirou como se já tivesse respondido àquela pergunta milhares de vezes.
Ela olhou rapidamente para Hammond, mas ele não precisou desse olhar para lembrar.
Ela sorriu para ele, com as luzes do carrossel que rodava refletidas nos olhos.
Steffi inclinou a cabeça para o lado de Hammond e sussurrou:
Ele concordou, balançando a cabeça, mas não disse nada porque Smilow já estava fazendo outra pergunta, e ele queria ouvir a resposta de Alex.
Os joelhos de Hammond quase cederam de alívio. O cálculo inicial de John Madison tinha estabelecido que a hora da morte tinha sido depois disso. Então o silêncio dele estava justificado. Quase. Se ela era totalmente inocente, vítima de um erro cometido por um homem que sofria de intoxicação alimentar, por que não reagiu quando ele entrou na sala? Por que fingiu que não se conheciam? Ele tinha seus motivos para manter o encontro deles em segredo. E era óbvio que ela também tinha.
Hammond engoliu em seco. Por falar em dizer a verdade, por que ela estava mentindo? Para protegê-lo? Ou para se proteger?
Ela baixou os olhos, mas só um instante, e provavelmente só Hammond notou. O coração dele batia muito forte. Aquele beijo. O beijo. O beijo que ele lembraria pelo resto da vida. Nenhum tinha sido tão bom, nem parecido tão perfeito, nem tão errado. Aquele beijo podia acabar modificando a vida dele, arruinar sua carreira, condená-lo.
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Ela deu de ombros e balançou a cabeça. ?-?* j -Localização? - Em algum ponto da estrada – respondeu ela com impaciência.
Steffi tinha falado bem baixinho, mas Alex ouviu. Ela virou e olhou primeiro para Steffi, depois para Hammond, e ele lembrou nitidamente de segurar o rosto dela com as duas mãos e de puxar a boca para perto da dele.
A próxima pergunta de Smilow fez Alex prestar atenção nele outra vez. Hammond soltou o ar sem deixar transparecer que estava prendendo a respiração.
Às nove horas, aproximadamente, eles estavam comendo milho cozido e os lábios dela estavam cheios de manteiga derretida. Tinham rido comentando a sujeira que estavam fazendo e resolveram esquecer os bons modos e lamber os dedos sem culpa.
Ouvi o rapaz fazendo teatro para as crianças embaixo do grande carvalho. Basicamente, caminhei pela marina e fui até o píer.
Hammond continuava olhando para ela, por isso quando ela olhou para ele foi uma repetição daquele primeiro olhar através da pista de dança, no pavilhão. Ele sentiu uma ligação instantânea, uma súbita fisgada nas vísceras. Perkins ainda estava argumentando.
-Alex disse que não esteve nem perto da suíte de Pettijohn. Vocês não têm nada que a ponha naquele lugar. Isso não passa de um tiro no escuro, porque vocês não têm mais nada. Simpatizo com a sua habilidade de apresentar um suspeito viável, mas não vou permitir que a minha cliente sofra as consequências.
Ele pareceu surpreso com a resposta.
Ela olhou friamente para ele.
por um sorriso.
Ele foi conduzindo Alex para a porta mas, antes de os outros poderem mudar de posição para abrir caminho para os dois saírem, outro detetive abriu a porta. Tinha uma pasta na mão estendida.
O detetive foi embora. Smilow explicou para os outros.
Steffi ficou bem ao lado de Smilow quando ele tirou os documentos de dentro do envelope. Ela os leu junto com ele. Sem tirar os olhos do relatório, Smilow perguntou:
Steffi espremeu limão na bebida que tinham acabado de trazer para a mesa deles.
Aquele tinha sido um fato surpreendente que resultou da autópsia. Lute Pettijohn teve um derrame. Não o matou, mas John Madison deduziu que o derrame tinha sido suficientemente extenso para provocar a queda dele, que resultou no ferimento na cabeça. Ele também determinou que se Pettijohn tivesse sobrevivido poderia ficar paralítico e sofrer de outras deficiências. Só depois que Frank Perkins acompanhou Alex Ladd para fora da sala de Smilow, eles leram o relatório com mais atenção e acrescentaram essa nova informação ao mistério cada vez mais complexo.
Steffi bebericava seu gim-tônica pensativa. Ela balançou vigorosamente a cabeça e deu um sorriso zombeteiro para Hammond.
A intenção daquela observação era ofendê-lo. Mas não ofendeu. Só que ele ficou irritado.
Smilow, que ouvia aquela discussão sem prestar muita atenção, disse:
O bar do saguão do Charles Towne Plaza estava apinhado com a multidão da happy hour. O hotel e a delegacia de polícia ficavam em extremos opostos do Centro da cidade, mas acharam que era um lugar apropriado para discutir o interrogatório de Alex. Turistas, registrados ou não como hóspedes, faziam compras nas lojas que se enfileiravam no saguão do hotel. Fotografavam a escadaria imponente e o candelabro que ela rodeava. Tiravam fotografias uns dos outros. Duas mulheres descalças, de roupões de banho do hotel, com toalhas enroladas na cabeça, riam enquanto evitavam sair em alguma foto. Acompanhando o olhar vazio de Hammond, Steffi disse:
Ele não tinha notado as mulheres de roupão. Mal tinha notado qualquer coisa desde que saíra da sala de Smilow. Estava pensando nela. Em Alex Ladd e na reação dela quando soube como Pettijohn tinha morrido. Ela parecia genuinamente espantada, e Hammond ficou esperançoso de ela ter razão quanto ao sr. Daniels quando concluiu que ele a tinha visto no hotel, mas que tinha se enganado quanto ao lugar e a hora. Esperançoso de ter Smilow como aliado, ele se inclinou sobre a mesa, apoiado nos antebraços.
Fazendo força para parecer indiferente, Hammond pegou seu copo de uísque com água.
Quando viu isso no relatório da autópsia, ele ficou tremendamente aliviado. Alex não podia ser a assassina porque não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Enquanto Steffi e Smilow ficavam completando as frases um do outro, Hammond pediu outro drinque. O uísque queimou a garganta dele.
O detetive olhou para ela.
Hammond, que estava prestando atenção enquanto os dois, sem saber, cogitavam sobre o seu maior medo, resolveu participar da especulação:
-As pessoas inocentes mal podem esperar para convencer alguém de que são inocentes – continuou ele. - Elas falam muito, nervosas. Elaboram e expandem suas histórias cada vez que as contam. Dizem mais do que você quer saber. Os que mentem bem se restringem ao básico, e em geral são os mais calmos.
Smilow se abaixou e tirou um jornal da sua pasta.
história. Não era comprida, mas para Hammond eram quatro parágrafos devastadores.
“Apagaram o fogo antes de isso provocar muitos danos. Mas aquela área tem as propriedades mais caras do país. Os bombeiros não quiseram arriscar nada. Interditaram a estrada do Farol para quem ia para lá de carro e verificaram muito bem a área toda. Harbour Town mesmo ficou isolada durante horas.”
Ele ignorou a resposta atrevida de Steffi.
Hammond vasculhou a mente em busca de uma nova abordagem.
Ele olhou friamente para Steffi, depois continuou conversando com Smilow.
Hammond não tinha esgotado seus argumentos:
A Divisão de Cumprimento da Lei da Carolina do Sul ficava na capital do estado. Provas coletadas, ensacadas e etiquetadas pela UCC em geral eram entregues em mãos para a DCLCS por algum investigador da polícia para evitar discrepâncias na série de provas.
Smilow levantou-se da cadeira tão depressa que ela arranhou o chão. Hammond também ficou de pé num segundo. Steffi levantou-se também.
de todos no bar. As conversas em volta deles silenciaram.
Ele não tirou os olhos de Smilow até dar meia-volta, e começara abrir caminho entre as pessoas para sair do bar. Ouviu Steffi dizer para Smilow pedir outro drinque para ela, que voltaria logo, e então ela foi atrás dele. Ele não queria falar com ela, mas quando chegaram lá fora ela segurou seu braço e o fez virar-se.
Sinto muito, Steffi. É uma daquelas segundas-feiras. Meu pai veio me ver esta manhã. Esse caso vai ser complicado. Smilow é um filho-damãe.
Ele baixou a mão e olhou bem para ela, com medo de ter se traído. Mas o olhar dela não era desconfiado, nem o acusava de nada. Os olhos dela estavam límpidos, suaves e convidativos. Ele relaxou.
Ele deu meia-volta e foi andando, mas ela o chamou:
Então, com um aceno jovial, ele foi embora. Como não tinha a capacidade de Alex Ladd para mentir, achou que seria melhor ater-se à verdade. A Cidadela, respeitada como uma das melhores instituições de ensino superior da América, ficava apenas a alguns quarteirões do Shady Rest Lounge. Fora essa proximidade, o bar e a academia militar não tinham nada em comum, em todos os aspectos. Diferentemente da famosa academia com seu portão bem guardado e terreno muito bem cuidado, o Shady Rest não se orgulhava de uma bela fachada. Não tinha janelas, apenas blocos de concreto onde antigamente havia janelas. A entrada era uma porta de metal na qual um vândalo tinha escavado uma obscenidade. Depois de cometida a infração, tinham tentado cobrir a palavra com desleixo, uma fina camada de tinta vagabunda que, infelizmente, não combinava com a cor original nem apagava o rabisco. O resultado era que o palavrão agora chamava mais atenção do que antes. A única coisa que indicava a natureza do estabelecimento era um letreiro de néon em cima da porta com o nome do bar. O letreiro zumbia ruidosamente e só funcionava esporadicamente. Apesar do vizinho importante e das próprias deficiências, o Shady Rest Lounge estava perfeitamente à vontade no seu ambiente, um bairro com ruas em que a pobreza e o crime imperavam, onde as janelas tinham grades e sinais visíveis de prosperidade representavam um alvo. Pensando em se proteger, Hammond tinha trocado seu terno por uma calça jeans e camiseta, um boné de beisebol e ténis. Tudo que tinha visto dias melhores... décadas melhores. Mas apenas trocar de roupa não bastava. Naquela área da cidade era preciso adotar um certo tipo de comportamento para sobreviver. Quando abriu a porta desfigurada para entrar no bar, ele não se afastou educadamente para dar passagem para os dois homens que saíam. Em vez disso, abriu caminho entre eles com os ombros, procurando ser bastante bruto, mas esperando não ser agressivo demais para deflagrar um confronto em que certamente perderia. Escapou com apenas um resmungo dirigido a ele e à sua mãe. Dentro do bar, levou alguns segundos para seus olhos se habituarem à escuridão. Negócios escusos eram transados no Shady Rest. Ele nunca estivera naquele bar, mas soube na mesma hora que tipo de lugar era aquele. Toda cidade tinha lugares assim, e Charleston não era exceção. Ele também sabia e temia que não duraria muito se qualquer outro cliente descobrisse que ele representava a procuradoria de justiça do município. Seus olhos se acostumaram, ele examinou bem o lugar e encontrou quem procurava. Ela estava sentada na ponta do bar, olhando fixo para um copo alto. Fingindo não se importar com os olhares hostis e desconfiados que lançavam para ele, Hammond foi até ela. O cabelo de Loretta Boothe estava mais grisalho do que da última vez que ele a vira, e parecia que fazia algum tempo que não era lavado. Tinha tentado se maquiar, mas não fez um bom trabalho, ou, então, fazia alguns dias que usava a mesma maquiagem. Havia rímel ressecado no rosto dela e o risco de lápis nas sobrancelhas estava borrado. O batom tinha escorrido pelas rugas finas que se irradiavam da boca, mas não havia mais cor nenhuma nos lábios. Uma maçã do rosto estava rosada com blush, a outra emaciada e descorada. Era um rosto patético.
Ela se virou e focalizou nele olhos remelentos. Apesar do boné de beisebol, ela o reconheceu na mesma hora, e era óbvio o prazer que sentia de vê-lo. As pálpebras, caídas e flácidas demais para a sua idade, se enrugaram quando ela deu um sorriso largo, revelando um dente da frente que precisava muito dos cuidados de um dentista.
Desejando a privacidade de um cubículo, Hammond ajudou Loretta galantemente a descer do banco do bar. Se ele não tivesse dado a mão para ela, seus joelhos podiam ter cedido quando ela ficou em pé. O drinque que ela havia deixado no bar não era o primeiro, nem o segundo. Enquanto Loretta arrastava os pés ao lado dele, Hammond reconheceu que havia a grande probabilidade de lamentar profundamente estar fazendo aquilo. Mas, conforme havia dito para ela, era uma emergência. Ele a escondeu num cubículo e depois voltou para o bar para pedir dois Jack Daniel’s black, um puro, o outro com gelo e água. Deu o primeiro para Loretta quando se instalou no banco do cubículo.
Ele sorriu, desejando poder trocar cumprimentos com ela. Loretta mal havia completado cinquenta anos, mas parecia muito mais velha.
Ela franziu a testa, desfazendo a negativa dele.
Hammond olhou para a sua bebida, que não queria. Tinha ficado meio nauseado com o que tomara algumas horas antes com Smilow e Steffi. Talvez tivesse sido o assunto que havia revirado seu estômago. De qualquer modo, não estava com vontade de bebericar o uísque do Tennessee.
De repente ele compreendeu por que ela parecia tão desarrumada e suja, e essa compreensão só fez piorar as náuseas.
perguntando logo se ela estava vivendo na rua ou num abrigo para os sem-tetos.
Não existia argumento contra isso, por isso Hammond não disse nada. Constrangido e sem jeito por ela, ele estudou a placa que dizia NãO FUNCIONA presa ao seletor de discos da mesa deles. O aviso estava lá havia muito tempo. O papel e a fita adesiva já estavam amarelados. A juke-box no canto do salão estava apagada e silenciosa, como se tivesse sucumbido ao desalento que dominava o Shady Rest.
Mais uma vez a verdade era indiscutível. Loretta Boothe tinha trabalhado no Departamento de Polícia de Charleston até o alcoolismo tornar-se tão grave que ela teve de ser demitida. A dependência cada vez maior era atribuída à morte do marido. Ele tinha morrido instantaneamente e todo ensanguentado quando sua Harley se espatifou contra o pilar de uma ponte. Consideraram a morte dele acidental, mas numa conversa confidencial, regada a álcool, Loretta tinha confessado seus pecados. Será que o marido tinha preferido se suicidar em vez de viver com ela? Essa pergunta a perseguia. Naquela mesma época ela foi ficando cada vez mais desanimada com o Departamento de Polícia de Charleston. Ou talvez o desencanto tenha sido provocado pela deterioração da sua vida pessoal. De qualquer modo, ela criava problemas para ela mesma no trabalho, e acabou ficando sem emprego. Tirou uma licença de investigador particular e por um tempo trabalhou regularmente. Hammond sempre gostou dela. Quando ele entrou para a famosa firma de advocacia, logo que saiu da faculdade de direito, ela foi a primeira pessoa que passou a chamá-lo de “procurador”. Era uma coisa pequena, mas ele nunca se esqueceu da consideração que ela teve, estimulando sua autoconfiança. Quando ele passou para a procuradoria municipal, sempre pedia para ela fazer as investigações para ele, apesar de ter investigadores na equipe. Mesmo quando a competência dela perdeu a constância, ele continuou a usá-la por um sentido de lealdade e de piedade. Então ela meteu os pés pelas mãos de uma vez por todas e as consequências foram desastrosas. O acusado no caso era um jovem incorrigível e cheio de raiva que quase matou a mãe de pancada com uma chave de roda. Ele era uma ameaça para a sociedade e continuaria sendo até ser posto na prisão por um longo tempo. Para conseguir a condenação, Hammond precisava desesperadamente do depoimento do primo em segundo grau do acusado, que, além de relutar em testemunhar contra um membro da família, também tinha medo do cara e temia uma retaliação. Apesar da intimação para depor, ele desapareceu da cidade. Diziam os boatos que tinha ido se esconder com outros parentes em Memphis. Como os investigadores da equipe da procuradoria de justiça já estavam ocupados com outros casos, Hammond chamou Loretta. Adiantou-lhe dinheiro para cobrir as despesas e a despachou para Memphis para encontrar o tal primo. Não foi só a testemunha que sumiu do mapa. Loretta também. Hammond soube mais tarde que ela gastara o dinheiro das despesas com bebida. O juiz que presidia o julgamento, e que não simpatizava com o problema de Hammond, negou o pedido dele de um adiamento e ordenou que continuasse com o que tinha, que era o testemunho da mãe espancada. Temendo também o revide do filho violento, ela mudou sua história no banco das testemunhas e afirmou que tinha se machucado ao cair da varanda dos fundos da casa. O júri votou pela absolvição. Três meses depois, o mesmo cara atacou o vizinho de forma parecida. A vítima não morreu, mas sofreu danos cerebrais severos e irreparáveis. Dessa vez o criminoso foi condenado a cumprir anos atrás das grades. Mas foi Steffi Mundell a promotora do caso. Em todos aqueles meses, Hammond não tinha perdoado Loretta por trair a confiança que depositava nela, especialmente porque ninguém mais queria contratá-la. Ela o abandonou quando mais precisava dela e por causa disso ele acabou fazendo papel de bobo no tribunal. O pior de tudo foi que a negligência dela tinha feito um homem sofrer um espancamento brutal que o deixou mental e fisicamente deficiente para o resto da vida. Quando estava sóbria, Loretta Boothe era a melhor no que fazia. Tinha os instintos de um cão de caça e uma extraordinária habilidade para obter informações. Parecia que possuía um sexto sentido que dizia aonde devia ir e a quem procurar. Suas fraquezas humanas eram tão óbvias que as pessoas se sentiam desarmadas, ela inspirava confiança. Todos baixavam a guarda e conversavam candidamente com ela. Também era suficientemente inteligente para distinguir as informações importantes das irrelevantes. Apesar desse talento todo, vê-la naquele estado lamentável aquela noite fazia com que Hammond questionasse a conveniência de contratá-la novamente. Só uma pessoa desesperada procuraria ajuda de uma bêbada contumaz que já havia provado sua irresponsabilidade. Mas, então, ele pensou em Alex Ladd e compreendeu que estava exatamente desesperado assim.
As feições dela se contorceram de emoção.
Ele deu um sorriso triste.
Os olhos de Loretta se encheram de lágrimas, mas ela pigarreou e endireitou os ombros.
-Acredito nisso – ele olhou bem fundo nos olhos dela. - Você está muito bêbada? 212
Loretta inclinou a cabeça e olhou para ele curiosa.
A risada dela foi como um estertor saído do peito.
Ela piscou várias vezes e depois olhou para ele, muito séria.
Hammond fingiu não notar a pergunta óbvia das sobrancelhas levantadas de Loretta.
-Porquê?
Ela então contou que viu Steffi e Rory Smilow na emergência do hospital na noite em que Pettijohn foi assassinado.
Ele não conseguiu disfarçar a surpresa, mas não perguntou como é que ela sabia do seu caso secreto com Steffi. O fato de saber provava que ela era realmente boa no que fazia.
Loretta examinou Hammond algum tempo, como se tentasse se convencer de que ele dizia a verdade.
Ela revirou os olhos.
Alex Ladd surgiu na mesma hora na mente de Hammond. Se Loretta soubesse como ele tinha sido ingénuo naquele último sábado à noite, seria capaz de dar-lhe uma surra.
cima da mesa e tirou-o com gentileza da mão dela.
Ele sorriu, sabendo que a valentia dela não passava disso. Estava muito animada de poder trabalhar de novo.
Quando viu que eu não conseguia, ele culpou a bebida e não seu prazo impossível. “Ele foi dizer para o chefe que me tirar da investigação criminal não era suficiente. Ele queria que eu saísse da polícia, ponto final. Disse que eu era uma desgraça, uma praga para o departamento, um ponto fraco. Ele até ameaçou se demitir se eles não me despedissem. Depois de dar um ultimato desses, quem você acha que os poderosos iam escolher? Uma policial mulher, com um pequeno problema de bebida, ou um ótimo detetive da Homicídios?” Ele podia argumentar que tudo que Smilow tinha alegado era verdade, e que o problema de bebida de Loretta era mais que “pequeno”, e que Smilow tinha simplesmente forçado seus superiores a fazerem o que eles tinham de fazer, só que temiam um processo de discriminação sexual ou algo igualmente desagradável. Por mais triste que tenha sido para Loretta, o ultimato de Smilow talvez tivesse evitado uma catástrofe. Nos meses que antecederam sua demissão, Loretta estava sempre bêbada. Não devia estar trabalhando como polícia feminina armada, investigando assaltos e crimes contra as pessoas, um perigo nas melhores circunstâncias. Mas Hammond compreendia que ela precisava desabafar.
“Hammond – disse ela balançando a cabeça, incrédula -, quando chegamos lá ela havia destruído a casa toda. O furacão Hugo não provocou tantos estragos. Não havia uma peça de vidro que não estivesse quebrada. Nenhuma almofada ou travesseiro que não tivesse sido rasgada. Não tinha nada em nenhuma estante. Não dava para andar de tanta coisa no chão. “Aparentemente ela havia descoberto que Pettijohn tinha uma amante. Quando chegamos lá Margaret estava no banheiro, segurando uma navalha sobre o pulso e ameaçava se matar. Smilow conversou com ela e a convenceu a largar a navalha. Ele chamou o médico dela, que fez a gentileza de ir até lá para medicá-la. Então Smilow pediu para eu levá-lo até o apartamento de Pettijohn. “Para encurtar a história... ele invadiu o apartamento e pegou a moça sentada na cara de Lute. Ele e Pettijohn deram alguns bons socos um no outro antes de eu poder separá-los. Tive de segurar Smilow porque nada que eu dizia funcionava. Sinceramente, acredito que, se não estivesse lá para contê-lo à força, ele teria matado Pettijohn aquela noite. Nunca vi um homem... ou uma mulher... tão possesso assim.” Ela semicerrou os olhos e tamborilou na fórmica feia com uma unha torta e suja.
Hammond não questionou a veracidade daquela história. Apesar de todos os defeitos de Loretta, nunca a vira mentir, nem aumentar uma história.
Hammond deu uma risada.
Assentindo com a cabeça, Hammond entregou para Loretta um envelope com algum dinheiro de adiantamento.
Loretta ignorou Hammond e continuou:
Alex dirigia com um olho no espelho retrovisor. Reconhecia que os sintomas eram de paranóia, mas achava que tinha o direito depois de ter passado a maior parte do dia sendo interrogada sobre um homicídio. Com Hammond Cross na sala. Sabendo que ela estava mentindo. É claro que ele também mentiu, por omissão. Mas por quê? Curiosidade? Talvez ele quisesse ver até onde ela iria com suas mentiras sobre onde estava sábado à noite. Mas quando ela contou sua história falsa sobre Hilton Head, esperava que ele a denunciasse e a chamasse de mentirosa. Ele não fez isso. E isso indicava que ele estava protegendo a própria reputação. Ele não quis que sua colega, a srta. Mundell, e o ameaçador detetive Smilow soubessem que tinha passado a noite com a única suspeita que tinham do assassinato de Pettijohn, exatamente no dia em que o mataram. E hoje, pelo menos, ele estava mais interessado em manter segredo do encontro deles do que em considerá-la suspeita. Mas isso podia mudar. E por isso ela estava vulnerável. Até saber como Hammond pretendia levar isso adiante, precisava fazer de tudo para se proteger das acusações. Podia não chegar a tanto mas, se chegasse, tinha de estar preparada. Ela chegou ao seu destino mas evitou aporte cochère e os valetes e parou no estacionamento público. Bobby tinha subido na vida. Quando o conheceu, não era nenhum estranho nos albergues noturnos. Agora ele estava registrado num hotel perto do Centro da cidade. Ela não telefonou antes para avisar que estava a caminho. Surpreendê-lo talvez representasse uma pequena vantagem para ela no que, sem dúvida, seria um confronto desagradável. No elevador, ela fechou os olhos e rodou a cabeça na direção dos ombros. Estava exausta. E apavorada. Desejou poder fazer o relógio voltar e refazer o dia em que Bobby Trimble entrou novamente na sua vida depois de vinte anos livre dele. Desejou poder apagar aquele dia e todos os dias subsequentes. Mas isso significaria apagar também a noite que passou com Hammond Cross. Não tinha sido muito feliz na vida. Mesmo quando criança. Especialmente quando criança. O Natal era apenas mais um dia no calendário. Nunca teve um bolo de aniversário, jamais ganhou ovinhos de Páscoa ou uma fantasia no Dia das Bruxas. Foi só no fim da adolescência que ela descobriu que pessoas comuns, não só as pessoas das revistas e da televisão, também podiam participar das celebrações dos feriados. Ela passou a juventude desfazendo os danos do passado e criando um indivíduo novo. Tinha muita gana de absorver tudo que lhe tinham negado. Na universidade, ela se aplicava nos estudos com tamanha diligência que sobrava pouco tempo para namorar. Quando finalmente montou seu consultório, tinha aplicado toda a sua energia nisso. Por intermédio do seu trabalho voluntário e de caridade, ela conheceu bons partidos. Com alguns construiu amizade, mas romance nunca foi um elemento desses relacionamentos, e isso por opção dela. Tinha decidido que ia se contentar com as suas realizações e com a satisfação que obtinha ao ajudar as pessoas a tratar dos seus problemas e viver seu potencial. A verdadeira felicidade, o tipo animado e efervescente de alegria que tinha experimentado com Hammond aquela noite, ela nunca tivera. Era uma desconhecida indefinível para ela, por isso até aquele momento não tinha se dado conta de que possuía o poder de viciar. E tampouco dos perigos em potencial. E ela pensou: será que a felicidade sempre custava tanto assim? Assim que as portas do elevador se abriram, ela ouviu música e achou que devia ser do quarto de Bobby. E estava certa. Aproximou-se da porta e bateu, esperou um pouco e bateu de novo, com mais força dessa vez. A música parou.
Alguns segundos depois ele abriu a porta. Estava nu, apenas com uma toalha na cintura.
Ele examinou o corredor. Finalmente se convenceu de que ela estava sozinha.
Um movimento atrás dele atraiu o olhar dela para além do ombro de Bobby. Apareceu primeiro uma menina, depois outra. Bobby olhou para trás, sorriu quando viu as meninas e as puxou para a frente, segurando as duas pela cintura. Se alguma delas tinha dezoito anos, eram recém-feitos. Uma usava uma calcinha de couro e nada em cima. A outra estava enrolada num lençol que Alex concluiu que tinha sido tirado da cama.
-Alex, esta é...
Ele mandou as meninas de volta para o quarto com tapinhas nos seus traseiros, e pediu alguns minutos sozinho com Alex.
Elas pediram para ele não demorar muito, Bobby saiu do quarto e fechou a porta.
Ele deu um grande sorriso, sem se ofender.
Ela afastou o braço dele.
O sorriso dele se desfez um pouco.
Era inútil discutir com ele. Não tinha acreditado nela ontem, e não ia acreditar agora. Não que se importasse com o que ele acreditava. Só queria livrar-se dele.
Ela balançou a cabeça.
Ele pôs as mãos nos quadris estreitos e inclinou o corpo para ficar com o rosto bem perto do dela.
Ela não ia ficar ali no corredor de um hotel com um homem quase nu discutindo seu interrogatório na polícia. Além do mais, ele não se importava de que modo a polícia a tinha associado a Pettijohn. Só se importava com uma coisa.
Parecia que o efeito da droga estava acabando, porque a expressão dele não era mais tão tranquila e simpática, estava ficando beligerante.
Ele estalou os dedos a poucos centímetros do nariz dela.
-Você não está em condições de me ameaçar. É você que tem mais a perder. Lembre-se disso. Agora vou dizer isso pela última vez: traga aquele dinheiro para mim.
O ódio queimou como brasa dentro dela.
Enojada, Alex deu meia-volta e foi para o elevador.
Hammond acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira e banhou as paredes com listras de cores pastel com um brilho aconchegante. Olhou em volta e teve de tirar o chapéu para Lute Pettijohn. Ele havia contratado um bom decorador para o seu Charles Towne Plaza, e não economizou no conforto. Pelo menos não na suíte da cobertura. O quarto era espaçoso e tinha sido desenhado para ser funcional. Atrás das portas do armário francês havia uma televisão de vinte e sete polegadas, maior que as dos hotéis e motéis comuns, equipada com um videocassete. Dentro desse armário também havia um CD player e uma seleção de Cds, um exemplar do TV Guia da semana anterior e um controle remoto para a televisão. Nada mais. Ele foi até o banheiro. As toalhas pareciam intactas desde que a camareira as tinha posto nos porta-toalhas decorativos. Ainda havia vidros de xampu e outros cosméticos num pequeno cesto prateado que ficava em cima da penteadeira, além de um kit de costura, uma flanela para lustrar sapatos e uma touca de banho. Ele apagou a luz e voltou para o quarto, os passos abafados pelo carpete felpudo. O quarto tinha um minibar além do que havia na saleta. O conteúdo já havia sido inventariado pela UCC. Mesmo assim, ele enrolou um lenço na mão e abriu a geladeira. Uma verificação rápida do menu impresso dos itens revelou que não faltava nada. Quando ele fechou a porta, o motor religou e começou a ronronar. Ele gostou do som. A suíte, apesar da decoração luxuosa e do conforto em todos os detalhes, era agora a cena de um crime. O silêncio fantasmagórico cercava Hammond por todos os lados. Tinha saído do Shady Rest Lounge com a intenção de ir para casa e dar por terminada aquela segunda-feira terrível. Mas, em vez disso, ele se sentiu atraído para aquele lugar. Não precisava adivinhar o motivo daquela compulsão. O último comentário de Loretta tinha fincado pé na mente dele e não saía mais de lá. Será que Alex Ladd tinha estado ali naquele sábado? Será que tinha testemunhado alguma coisa que não quisesse revelar porque podia representar um risco para a vida dela? Ele preferia acreditar nisso do que ficar imaginando que ela era a assassina, apesar de nenhuma opção ser muito animadora. Em seu subconsciente, ele tinha ido até lá com a esperança de encontrar alguma coisa que não tivessem visto antes, algo que pudesse isentar Alex Ladd e possivelmente incriminar outra pessoa. Irracionalmente, ele era levado a proteger uma mulher que tinha provado ser uma mentirosa detalhista e inescrupulosa. Não tinha sido fácil voltar para aquela suíte onde, no último sábado, ele tinha encontrado Lute e trocado palavras duras. Ele não tinha passado da sala de estar, na verdade não tinha se afastado muito da porta. Tinha dito o que queria dizer assim que pôs os pés no apartamento. Lute estava sentado no sofá, bebendo seu drinque, a imagem da complacência enquanto avisava para Hammond que, se ele tinha a intenção de criar uma investigação do grande júri sobre ele, que devia estar preparado para processar o pai dele também.
A proposta dele era que Hammond vendesse sua alma ao diabo. Ele tinha recusado a oferta. E é desnecessário dizer que Pettijohn não reagiu bem a essa recusa. Perturbado com a lembrança, Hammond entrou no closet, a única área do quarto que não tinha examinado. Atrás das portas espelhadas de correr havia um cofre vazio e cabides de roupas sem roupas. Havia um roupão branco pendurado, com o cinto ainda amarrado. Os chinelos também atoalhados ainda estavam lacrados dentro do saco de celofane. Parecia que nada tinha sido tocado. Ele fechou as portas e foi então que viu uma imagem refletida no espelho.
Apesar de não querer, Hammond ficou interessado:
Smilow voltou para a sala e Hammond foi atrás dele. O detetive parou em cima das manchas de sangue no chão.
Os dois contemplaram a mancha feia e escura no tapete por algum tempo.
Smilow sustentou o olhar de Hammond até contar dez, mas não quis ceder à provocação e apontou com o queixo para a porta da suíte.
O testamento de Lute Pettijohn estipulava que ele fosse cremado. Assim que o sr. John Madison liberou o corpo segunda-feira à tarde ele foi transportado para a casa funerária. A viúva já tinha acertado tudo e cuidado da papelada necessária. Ela não quis ver o corpo antes de ser levado para o crematório. Uma cerimónia memorial foi marcada para a manhã de terça-feira, que algumas pessoas acharam inadequada, cedo demais, especialmente à luz das circunstâncias da morte de Pettijohn. Mas levando em consideração a conduta habitualmente imprópria da viúva, ninguém se surpreendeu quando ela atropelou os horários sempre respeitados do ritual.
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