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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ÁLIBI / Sandra Brown
O ÁLIBI / Sandra Brown

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ÁLIBI

Primeira Parte

 

SÁBADO

Um grito rasgou o silêncio refrigerado do corredor do hotel. Tendo acabado de entrar na suíte segundos antes, a camareira saiu trôpega do quarto pedindo socorro, aos prantos, e batendo nas portas dos outros apartamentos ao acaso. Mais tarde o supervisor ia repreendêla por aquela reação, mas naquele momento ela realmente estava tomada pela mais completa histeria. Infelizmente para ela, poucos hóspedes estavam em seus apartamentos naquela tarde. A maioria tinha saído para curtir o charme exclusivo do bairro histórico de Charleston. Mas, finalmente, ela conseguiu chamar a atenção de um hóspede, um homem de Michigan que, sofrendo com o calor ao qual não estava habituado, tinha retornado ao quarto do hotel para tirar um cochilo. Apesar de meio grogue por ter despertado assim de repente, ele imediatamente concluiu que apenas uma catástrofe gigantesca poderia provocar aquele nível de pânico que dominava a camareira. Antes mesmo de entender o que ela dizia entre soluços, ele ligou para a recepção e alertou o pessoal do hotel que havia uma emergência no último andar. Dois policiais de Charleston, cuja ronda incluía o recém-inaugurado Charles Towne Plaza, atenderam imediatamente ao chamado. Um guarda da segurança do hotel, todo alvoroçado, levou-os à suíte do último andar, onde a camareira tinha entrado para arrumar a cama e descobriu que não seria mais necessário. O ocupante estava caído no chão da sala da suíte, morto. O policial abaixou-se ao lado do corpo.

  • Nossa... está parecendo...
  • É ele mesmo – disse o companheiro dele, também espantado. Isso vai ser o maior escândalo.

Ela chamou sua atenção no minuto em que entrou no pavilhão. Mesmo no meio de uma multidão de mulheres, quase todas usando mínimas roupas de verão, ela definitivamente se sobressaía. E, surpreendentemente, estava sozinha. Parou para se familiarizar com o ambiente, seus olhos examinaram por um breve tempo o tablado onde a banda se apresentava, depois a pista de dança, então olhou para a disposição casual de cadeiras e mesas em volta. Avistou uma mesa vazia, foi até ela e sentou-se. O pavilhão era redondo, com cerca de trinta metros de diâmetro. Apesar de ser uma estrutura aberta, com um telhado cónico de onde pendiam lâmpadas brancas de Natal, o teto inclinado não permitia que o som se espalhasse e a cacofonia era incrível. O que faltava de talento musical na banda era compensado pelo volume, obviamente convencidos de que os decibéis a mais tornariam as notas erradas menos perceptíveis. Mas eles tocavam com um entusiasmo exuberante e tinham presença de palco. Nos teclados e na guitarra, os músicos pareciam estar arrancando as notas à força dos seus instrumentos. A barba trançada do que tocava gaita balançava a cada movimento abrupto que ele fazia com a cabeça. Enquanto serrava as cordas com o arco, o violinista dançava com uma ginga enérgica, exibindo suas botas amarelas de vaqueiro. O baterista parecia conhecer apenas um ritmo, mas se concentrava nele com verve. A multidão parecia não se importar com o som desarmonioso. E por sinal, Hammond Cross também não. Ironicamente, a barulheira da feira era até confortante. Ele absorvia o barulho – os gritos que vinham da rua principal, assobios dos rapazes adolescentes desordeiros no alto da roda-gigante, o choro dos bebés cansados, os sinos, apitos e cornetas, a gritaria e as risadas. Ira uma feira municipal não constava da agenda dele naquele dia. Deviam ter feito alguma publicidade antecipada sobre o evento no jornal local e na televisão, mas ele não tinha tomado conhecimento. Ele chegara à feira a cerca de meia hora do Centro de Charleston, por acidente. Nunca saberia o que o fez parar ali. Não era um grande entusiasta de eventos assim. Seus pais certamente nunca o levaram a um. Eles evitavam atrações públicas como aquela a qualquer custo. Não era exatamente a tribo deles. Não eram pessoas do tipo deles. Normalmente Hammond teria evitado aquele programa também. Não por ser esnobe, mas porque trabalhava demais, era egoísta com seu tempo de lazer e muito seletivo na maneira de aproveitá-lo. Uma partida de golfe, umas duas horas pescando, um bom filme, um jantar tranquilo num bom restaurante. Mas uma feira municipal? Isso não estaria em evidência na lista das suas atividades prazerosas. Mas naquela tarde especificamente, a multidão e o barulho o atraíram. Se tivesse ficado sozinho no seu canto, ele só pensaria nos seus problemas. Acabaria ficando abatido, e quem ia querer isso em um dos últimos fins de semana do verão? Por isso, quando teve de reduzir a velocidade e quase parar, preso no tráfego que se arrastava para o estacionamento provisório – na verdade um pasto que um fazendeiro empreendedor transformara em estacionamento -, ele permaneceu na fila com os outros carros, vans e veículos semi-utilitários. Ele pagou dois dólares para o jovem mascando tabaco que cobrava pelo fazendeiro, e teve a sorte de encontrar uma vaga para o carro à sombra de uma árvore. Antes de descer, ele tirou o paletó e a gravata e arregaçou as mangas da camisa. Foi desviando dos montes de esterco pelo caminho, desejando estar de jeans e botas em vez da calça social e mocassins, mas já sentindo a animação crescer. Ninguém ali o conhecia. Não tinha de conversar com ninguém, se não quisesse. Não tinha de cumprir obrigação nenhuma, não precisava comparecer a reuniões, nem responder a telefonemas. Naquele lugar ele não era um profissional, nem colega de ninguém. Nem filho. A tensão, a raiva e o peso da responsabilidade começaram a se desfazer. A sensação de liberdade era inebriante. O terreno da feira era demarcado por uma corda de plástico cheia de galhardetes multicoloridos que pendiam imóveis no calor da tarde. O ar denso pesava com os aromas torturantes da comida – a menos saudável possível. De longe a música não parecia ruim. Hammond ficou contente de ter parado. Ele precisava daquele isolamento. Porque, apesar de todas aquelas pessoas que passavam pela roleta, ele se sentia, num sentido bem concreto, isolado. Ser absorvido por uma grande multidão barulhenta subitamente pareceu preferível a passar uma noite solitária em sua casa de campo, que era seu plano original quando saiu de Charleston. A banda tinha tocado duas canções desde que a mulher ruiva sentara do outro lado do pavilhão onde ele estava. Hammond continuou olhando para ela e especulando. Provavelmente estava à espera de alguém, talvez o marido e vários filhos. Aparentava ter menos idade do que ele, talvez trinta e poucos. Mais ou menos da idade das mães que faziam revezamento de transporte dos filhos. Mães de lobinhos. Representantes da associação de pais e mestres. Donas de casa preocupadas com vacinas tríplices, ortodontia e com a brancura das roupas brancas e com o brilho das coloridas. O que ele sabia sobre essas mulheres tinha aprendido nos comerciais da televisão, mas ela parecia pertencer a esse grupo demográfico generalizado. Só que ela parecia estar... nervosa demais. Não parecia mãe de crianças pequenas curtindo alguns minutos de trégua enquanto papai levava os filhos para dar uma volta no carrossel. Ela não tinha aquele ar competente e tranquilo das mulheres dos conhecidos dele que eram membros da liga infantil e de outros clubes cívicos, que compareciam a almoços só de salada e organizavam festas de aniversário para os filhos e jantares para os sócios do marido e que jogavam golfe ou ténis em seus respectivos clubes de campo uma ou duas vezes por semana, entre as aulas de aeróbica e os círculos de estudo da Bíblia. Ela também não tinha o corpo macio e acomodado de uma mulher que gerara dois ou três filhos. Suas formas eram firmes e atléticas. As pernas eram bem-feitas – não, maravilhosas -, musculosas, elegantes e bronzeadas, expostas sob uma saia curta e sandálias de salto baixo. A blusa sem mangas tinha um decote cavado, como uma camiseta regata, e um cardigã combinando estava amarrado ao pescoço com uma volta solta, até que ela o retirasse. A roupa era moderna e chique, um ponto acima da maioria dos shorts e ténis que a multidão usava. A bolsa, que ela pusera sobre a mesa, só comportava um chaveiro, lenços de papel e possivelmente um batom, mas não chegava nem perto do tamanho de uma bolsa de jovem mãe, cheia de garrafas de água mineral, lenços umedecidos, guloseimas naturais e equipamento suficiente para sobreviver dias no deserto caso surgisse uma situação de emergência. Hammond tinha mente analítica. Raciocínio dedutivo era seu forte. Por isso ele concluiu, com o que achava ser um grau razoável de precisão, que aquela mulher não devia ser mãe. O que não queria dizer que não fosse casada, ou comprometida de alguma forma, à espera do cara-metade, quem quer que fosse e qualquer que fosse a natureza do relacionamento deles. Ela podia ser uma mulher dedicada a uma carreira profissional. Um membro requisitado e influente na comunidade empresarial. Uma vendedora bem-sucedida. Uma empresária de bom senso. Uma operadora da Bolsa. Uma analista financeira. Bebericando sua cerveja, que já estava morna naquele calor, Hammond continuou a examinar a mulher, muito interessado. Então, subitamente, ele percebeu que seu olhar era correspondido. Quando os olhares dos dois se encontraram, o coração dele deu um pulo, talvez de constrangimento por ter sido flagrado olhando. Mas ele não desviou o olhar. Apesar dos dançarinos que passavam entre os dois, interrompendo intermitentemente a linha de visão, ambos mantiveram o contato visual por alguns segundos. Então, ela desistiu de repente, como se também se sentisse embaraçada de tê-lo escolhido no meio da multidão. Contrariado de ter uma reação tão juvenil com algo tão insignificante quanto o contato visual com alguém, Hammond cedeu sua mesa para dois casais que esperavam alguma mesa vagar. Ele abriu caminho no meio das pessoas para chegar ao bar provisório. Tinha sido montado durante a feira para atender aos dançarinos sedentos. Era um ponto muito procurado. O pessoal das diversas bases militares das redondezas formava três linhas em pé diante do bar. Mesmo sem uniforme, era fácil identificá-los pelas cabeças raspadas. Eles bebiam, admiravam as moças, avaliavam suas chances de conseguir alguma coisa, apostavam em quem ia ou não se dar bem, cada um querendo ser mais esperto do que o outro. Os atendentes do bar serviam cerveja o mais rápido que podiam, mas não acompanhavam a demanda. Hammond tentou diversas vezes chamar a atenção de um deles, mas finalmente desistiu e resolveu esperar a massa de gente rarear para pedir outra bebida. Ele se sentia um pouco menos patético do que quando estava sentado sozinho à mesa, e olhou para a mesa dela do outro lado da pista de dança. Foi uma ducha de água fria. Três homens ocupavam as cadeiras extras da mesa em que ela estava. Na verdade, os ombros largos de um deles escondiam a mulher da vista de Hammond. O trio não usava uniforme, mas a julgar pela severidade dos cortes de cabelo e pela pose arrogante, ele adivinhou que eram fuzileiros navais. Bom, ele não ficou surpreso. Desapontado, mas não surpreso. Ela era atraente demais para ficar sozinha num sábado à noite. Estava apenas matando o tempo até o namorado aparecer. Mesmo tendo ido para a feira sozinha, não ficaria sem par por muito tempo. Não num mercado de carne como aquele. Um soldado solteiro com um passe de fim de semana tinha o instinto e o propósito único de um tubarão. Tinha apenas uma ideia na cabeça, que era arranjar uma companheira para a noite. E mesmo sem fazer qualquer esforço, aquela chamaria atenção.

Não que ele tivesse pensado em paquerá-la, Hammond concluiu. Estava velho demais para isso. Não ia voltar para aquela mentalidade de rato de fraternidade por nada neste mundo. Além do mais, não seria correto, seria? Ele não era exatamente comprometido, mas também não era exatamente «comprometido. De repente ela se levantou, pegou o cardigã, pendurou a alça da pequena bolsa no ombro e virou-se para sair. Na mesma hora os três homens sentados com ela ficaram em pé e a cercaram. Um deles, que parecia feito a martelo, passou o braço nos ombros dela e encostou o rosto no dela. Hammond conseguiu ver os lábios dele se mexendo. O que ele disse para ela fez seus companheiros caírem na gargalhada. Ela não achou graça. Desviou o rosto, e Hammond teve a impressão de que ela tentava escapar daquela situação constrangedora sem provocar um escândalo. Segurou o braço do soldado e tirou de cima dos ombros e, com um sorriso, disse algo para ele antes de tentar dar meia-volta de novo para ir embora. Sem se dar por vencido, e instigado pelos dois amigos, o rejeitado foi atrás dela. Quando ele segurou o seu braço e a puxou para trás, Hammond entrou em ação. Mais tarde ele não se lembraria de ter atravessado a pista de dança, apesar de ter praticamente atropelado os casais que naquela hora se embalavam com uma música lenta, porque em segundos já passava entre dois fuzileiros navais musculosos com abdómens de pedra e empurrava o persistente, dizendo ao mesmo tempo:

  • Desculpe, meu bem. Encontrei o Norm Blanchard e você sabe que aquele filho-da-mãe fala pelos cotovelos. Felizmente para mim, eles estão tocando a nossa música.

Hammond passou o braço na cintura dela e a levou para a pista de dança.

  • Entendeu as minhas instruções?
  • Sim, senhor detetive. Ninguém mais entra, ninguém sai. Bloqueamos todas as saídas.
  • Isso inclui todo mundo. Sem exceções.
  • Sim, senhor.

Depois de enfatizar suas ordens, o detetive Rory Smilow cumprimentou o policial uniformizado com um aceno de cabeça e entrou no Charles Towne Plaza pela porta principal do hotel. A escada tinha sido apresentada por diversas revistas especializadas como um triunfo arquitetônico. Já era a principal assinatura do novo complexo. Epítome da hospitalidade sulista, duas alas de degraus bem largos partiam do saguão. Pareciam abraçar o incrível candelabro de cristal antes de se unir doze metros acima da recepção, formando a galeria do segundo andar. Nos dois níveis do saguão, policiais se misturavam aos hóspedes e aos empregados do hotel e, àquela altura, todos já tinham ouvido dizer que acontecera o que parecia ser um assassinato no quinto andar. Nada criava aquele tipo de atmosfera ansiosa como um assassinato, pensou Smilow observando a cena. Queimados de sol, transpirando, turistas com suas câmeras fotográficas andavam de um lado para outro fazendo perguntas a qualquer pessoa com autoridade, conversando entre eles, especulando a identidade da vítima e o que havia provocado o crime. Com seu terno feito sob medida e camisa de punhos dobrados com abotoaduras, Smilow estava conspicuamente bem-vestido. Apesar do calor abafado lá fora, sua roupa estava fresca e seca, nem um pouco úmida. Um subordinado irritado certa vez tinha perguntado com os dentes cerrados se Smilow não suava nunca.

  • Que diabos, claro que não – respondeu um outro policial. Todo mundo sabe que alienígenas não têm glândulas sudoríparas.

Smilow caminhou com determinação para o conjunto de elevadores. O policial com quem tinha conversado à entrada do hotel devia ter comunicado a chegada dele, porque já havia um outro no elevador, segurando a porta para ele. Sem agradecer a cortesia, Smilow entrou na cabine.

  • Continua brilhando, sr. Smilow? Smilow virou para o homem:
  • Ah, continua, Smitty. Obrigado.

O homem que todos só conheciam pelo primeiro nome operava três cadeiras de engraxate numa alcova num canto do saguão do hotel. Durante décadas tinha sido um acessório permanente de outro hotel no Centro da cidade. Recentemente fora atraído pelo Charles Towne Plaza, e sua clientela mudou-se com ele. Recebia excelentes gorjetas até de pessoas que não eram da cidade, porque Smitty sabia melhor do que o porteiro do hotel o que fazer, aonde ir e onde encontrar qualquer coisa em Charleston. Rory Smilow era um dos clientes assíduos de Smitty. Normalmente ele teria parado para trocar amabilidades, mas estava com pressa e, na verdade, um pouco irritado de ter de parar.

  • Falo com você mais tarde, Smitty – disse ele laconicamente, e as portas do elevador se fecharam.

Ele e o policial de uniforme subiram até o último andar em silêncio. Smilow nunca fazia camaradagem com os companheiros, nem mesmo com os da mesma patente, mas certamente não com os subalternos. Nunca iniciava uma conversa, a não ser que se relacionasse com algum caso em que estivesse trabalhando. Os homens do departamento, temerários a ponto de tentar bater papo com ele, logo descobriam que tais tentativas eram inúteis. A pose dele desencorajava camaradagem. Até a sua aparência alinhada era eficiente como corda de sanfona no que dizia respeito à facilidade de abordagem. Quando as portas do elevador se abriram no quinto andar, Smilow teve a sensação que já conhecia. Tinha visitado inúmeras cenas de crime, algumas bem-comportadas e nada espetaculares, outras extraordinariamente medonhas. Algumas eram esquecíveis e rotineiras. Outras ele lembraria para sempre, graças à imaginação criativa do matador, ao ambiente estranho em que o corpo tinha sido encontrado, ao bizarro método de execução, à exclusividade da arma ou à idade e situação da vítima. Mas a primeira visita a uma cena de crime invariavelmente provocava uma descarga de adrenalina, da qual ele jamais se envergonhara. Tinha nascido para fazer aquilo. Gostava do seu trabalho. Quando ele saiu do elevador, a conversa dos policiais à paisana no corredor silenciou. Por respeito, ou medo, eles se afastaram para dar passagem para ele até a porta aberta da suíte do hotel onde um homem tinha morrido naquele dia. Ele gravou o número do quarto e então deu uma espiada lá dentro. Ficou satisfeito de ver que os sete policiais que formavam a Unidade da Cena do Crime já estavam lá, cumprindo suas diversas funções. Verificou que eles estavam fazendo um trabalho minucioso e virou-se para os três detetives que tinham sido enviados pela Divisão de Investigação Criminal. Um deles, que fumava um cigarro, apagouo rapidamente num cinzeiro próximo. Smilow lançou-lhe um olhar frio, sem piscar.

  • Espero que essa areia não contenha alguma prova crucial, Collins.

O detetive enfiou as mãos nos bolsos como um menino repreendido por não ter lavado as mãos depois de ir ao banheiro.

  • Ouçam – disse Smilow, dirigindo-se ao grupo em geral. Ele nunca levantava a voz. Não precisava. - Não vou tolerar um único erro. Se houver alguma contaminação dessa cena de crime, se houver qualquer quebra, por menor que seja, do procedimento correto, se o grão mais insignificante de prova for ignorado ou se ficar comprometido pelo descuido de alguém, o rabo do responsável será fatiado! Por mim. Pessoalmente!

Ele olhou nos olhos de cada homem. E então disse:

  • Muito bem, vamos lá. .

Entraram em fila no quarto, calçando luvas de borracha. Cada homem tinha uma tarefa específica. Cada um tratou de cumpri-la, pisando com cuidado, sem tocar em nada que não dissesse respeito à sua função. Smilow se aproximou dos dois policiais que tinham chegado primeiro. Sem preâmbulo, ele perguntou:

  • Vocês tocaram nele?
  • Não, senhor.
  • Encostaram em alguma coisa?
  • Não, senhor.
  • Na maçaneta?
  • A porta estava aberta quando chegamos. A camareira que o encontrou tinha deixado aberta. O guarda da segurança do hotel pode ter tocado nela. Nós perguntamos, ele disse que não, mas... - ele levantou os ombros manifestando dúvida.
  • Telefone? - perguntou Smilow.
  • Não, senhor. Usei o meu celular. Mas, mais uma vez, o guarda da segurança pode tê-lo usado antes de chegarmos aqui.
  • com quem você já falou até agora?
  • Só com ele. Foi ele que ligou para nós.
  • E o que ele disse?
  • Que uma camareira encontrou o corpo – ele indicou o corpo. -Assim mesmo. De cara para baixo, dois ferimentos de bala nas costas embaixo da omoplata esquerda.
  • Vocês interrogaram a camareira?
  • Tentamos. Ela está tão histérica que não conseguimos arrancar muita coisa dela. Além do mais, ela é estrangeira. Não sei de onde – o policial respondeu à sobrancelha levantada de Smilow. - Não pude reconhecer o sotaque. Ela só fica repetindo sem parar “Homem morto” e chorando com um lenço no rosto. Ficou apavorada.
  • Vocês sentiram o pulso dele?

O policial olhou para o parceiro, que falou pela primeira vez:

  • Eu o senti. Só para me certificar de que estava morto.
  • Então você tocou nele.
  • Bem, toquei. Mas só para isso.
  • Suponho que não sentiu nada.
  • Pulsação? - o policial balançou a cabeça. - Não. Ele estava morto. Sem dúvida nenhuma.

Até aquele ponto Smilow tinha ignorado o corpo. Então foi até ele.

  • Alguém sabe do médico-legista?
  • Está a caminho.

Smilow registrou a resposta, mas olhava intensamente para o homem morto. Até ver com os próprios olhos, não acreditava que a suposta vítima de assassinato não fosse outro senão Lute Pettijohn. Um tipo de celebridade local, homem de grande reputação, Pettijohn era, entre outras coisas, presidente-executivo da construtora que havia convertido o armazém de algodão em ruínas no espetacular e novo Charles Towne Plaza.

E também era cunhado de Rory Smilow.

  • Obrigada – disse ela.
  • Não tem de quê – respondeu Hammond.
  • A situação estava ficando complicada.
  • Ainda bem que a minha encenação funcionou. Se não tivesse funcionado, eu teria três dos seletos e altivos em cima de mim.
  • Elogio a sua bravura.
  • Ou burrice. Eles podiam me arrebentar.

Ela sorriu, e então Hammond ficou duplamente satisfeito de ter obedecido ao seu impulso cavalheiresco e idiota de salvá-la. Tinha se sentido atraído por ela no momento em que a viu, mas vê-la do outro lado da pista de dança não era nada se comparado com aquela visão tão próxima e sem restrições. Ela desviou os olhos do olhar intenso de Hammond e ficou olhando para um ponto qualquer acima do ombro dele. Ela mantinha a calma sob pressão. Sem dúvida, ela era tranquila.

  • E o seu amigo? - perguntou ela.
  • Meu amigo?
  • O sr. Blanchard. Norm, não era?
  • Oh – disse ele, rindo baixinho. - Nunca ouvi falar dele.
  • Você o inventou?
  • Inventei, e não tenho a mínima ideia de onde tirei esse nome. Simplesmente surgiu na minha cabeça.
  • Muito criativo.
  • Eu tinha de dizer alguma coisa plausível. Para parecer que estávamos juntos. Que nos conhecíamos bem. Algo que, no mínimo, pudesse trazê-la para a pista de dança comigo.
  • Você podia ter apenas me tirado para dançar.
  • É, mas isso seria chato. E também daria a chance de você recusar.
  • bom, obrigada de novo.
  • De nada de novo – ele deu a volta em outro casal com ela. - Você é daqui mesmo?
  • Originalmente, não.
  • Tem sotaque sulista.
  • Fui criada no Tennessee – disse ela. - Perto de Nashville.
  • Região simpática. -É.
  • Bela paisagem.
  • Hummm.
  • Boa música também.

Conversa brilhante, Cross, pensou ele. Cintilante.

Ela nem se dignou a responder à última afirmação inane, e ele não a culpou por isso. Se continuasse assim, ela ia dar o fora antes de a música acabar. Ele a conduziu rodopiando em volta de outro casal que executava passos intrincados, e então, com voz bem neutra, ele fez a pergunta mais cliché de todas as paqueras:

  • Você vem sempre aqui?

Ela entendeu a piada e sorriu, aquele sorriso que podia reduzi-lo ao mais completo idiota se não tomasse cuidado.

  • Na verdade, não venho a uma feira como essa desde que era adolescente.
  • Eu também. Lembro de ter ido a uma com alguns amigos. Devíamos ter uns quinze anos, e a nossa missão era comprar cerveja.
  • Tiveram sucesso?
  • Nada.
  • Foi a sua última feira?
  • Não. Fui a uma outra com uma namorada. Levei-a à Casa dos Horrores com o propósito específico de conquistá-la.
  • E como se saiu?
  • Mais ou menos como na missão da cerveja. Deus sabe que tentei. Mas parecia que eu sempre saía com a única menina que... - ele não completou a frase quando sentiu que ela ficou tensa.
  • Eles não desistem fácil, não é?

E dito e feito, o trio de fuzileiros estava bem na linha divisória da pista de dança, tomando cerveja e olhando para eles furiosos.

  • bom, se eles se rendessem logo, a nossa segurança nacional estaria ameaçada.

Hammond deu um sorriso convencido para os homens, firmou o braço em volta da cintura dela e passou rodando por eles.

  • Você não precisa me proteger – disse ela. - Eu poderia ter resolvido a situação sozinha.
  • Tenho certeza de que poderia. Defender-se da atenção indesejada dos homens é uma técnica que toda mulher atraente deve aprender. Mas você também é uma dama que relutava em provocar um escândalo.

Ela olhou para ele.

  • Muito observador.
  • E então, já que estamos acertados, podemos muito bem aproveitar essa dança, não é?
  • Acho que sim.

Mas o fato de ter concordado em continuar dançando não reduziu a tensão dela. Não estava exatamente virando rápido para olhar para trás, mas Hammond sentiu que era isso que ela queria fazer. O que o fez imaginar o que ela faria quando a dança acabasse. Ele esperava um fora. Um fora gentil, mas mesmo assim um fora. Felizmente a banda tocava uma balada triste e melada. A voz do cantor não era refinada, era metálica, mas ele conhecia a letra de todos os versos. No que dizia respeito a Hammond, quanto mais demorasse aquela dança, melhor. A parceira encaixava bem nele. O topo da cabeça dela ficava na altura do queixo dele. Hammond não tinha ultrapassado a barreira imaginária que ela estabeleceu entre eles no momento em que ele a puxou para os seus braços, mas a simples ideia de segurá-la contra seu corpo era muito excitante. Por enquanto ele se contentava com isso, com a parte interna do seu braço encostando na parte inferior das costas dela, com a mão dela sem aliança – no ombro dele, os pés para lá e para cá, no ritmo da música lenta.

De vez em quando as coxas dos dois encostavam de raspão e ele sentia um latejar de desejo, mas era controlável. Ele tinha a visão de cima do decote da blusa dela, mas era bastante cavalheiro para não espiar. Só que a sua imaginação corria solta, adejando aqui e ali, ricocheteando nas paredes da mente dele como uma varejeira enlouquecida com o calor.

- Eles foram embora.

A voz dela tirou Hammond daquele devaneio. Quando entendeu o que ela queria dizer, ele olhou em volta e viu que os fuzileiros não estavam mais lá. Na verdade, a música tinha terminado, os músicos estavam deixando os instrumentos no chão e o líder da banda pedia a todos “fiquem onde estão”, prometendo que voltariam para tocar mais depois de um breve intervalo. Outros casais voltavam para suas mesas ou iam para o bar.

Ela abaixou os braços. Hammond percebeu que ainda a segurava pela cintura e não teve alternativa senão soltá-la. Quando ele fez isso, ela deu um passo para trás, afastando-se dele.

  • Bem... ninguém pode dizer que o cavalheirismo acabou. Ele deu um sorriso largo.
  • Mas se matar dragões voltar à moda, pode esquecer. Sorrindo, ela estendeu a mão.
  • Agradeço o que você fez.
  • O prazer foi meu. Obrigado por dançar comigo – ele apertou a mão dela. Ela deu meia-volta para ir embora. - Uh... - Hammond entrou no meio da multidão atrás dela.

Quando chegaram ao perímetro do tablado do pavilhão, ele desceu e segurou a mão dela para ajudá-la a descer, um gesto cortês e desnecessário, já que a altura não passava de uns quarenta centímetros. Ele foi andando ao lado dela.

  • Posso oferecer uma cerveja?
  • Não, obrigada.
  • O milho cozido está com um cheiro ótimo.

Ela sorriu, mas balançou a cabeça, indicando que não.

  • Uma volta na roda-gigante?

Ela não desacelerou, mas olhou para ele com uma expressão de mágoa.

  • Não na Casa dos Horrores?
  • Não quero abusar da minha sorte – disse ele, sorrindo porque sentia que o gelo começava a derreter. Mas o otimismo dele não durou muito tempo.
  • Obrigada, mas tenho mesmo de ir agora.
  • Você acabou de chegar.

Ela parou de repente e virou de frente para ele. Inclinou a cabeça e olhou diretamente para Hammond. O sol poente criava linhas de luz através das íris verdes. Ela semicerrou os olhos e os protegeu com cílios bem mais escuros que o cabelo. Olhos maravilhosos, ele pensou. Diretos e cândidos, mas sensuais. E naquele momento, curiosos e penetrantes, perguntando como ele sabia a que hora ela havia chegado.

  • Notei você assim que entrou no pavilhão – confessou ele. Ela encarou o olhar dele alguns segundos e depois, constrangida,

abaixou a cabeça. A multidão parecia um redemoinho. Um grupo de jovens passou correndo e por pouco não esbarrou nos dois, levantando uma nuvem de poeira sufocante que ficou rodopiando em torno deles. Uma criança começou a berrar quando seu balão cheio de hélio escapou da mãozinha minúscula e flutuou em direção à copa das árvores. Uma dupla de adolescentes tatuadas transformava em espetáculo todo produzido os cigarros que acendiam, e passaram falando alto com linguagem aviltante.

Não reagiram a nada disso. A cacofonia da feira parecia não penetrar no silêncio particular dos dois.

  • Pensei que você havia me visto também. Milagrosamente, ela não teve dificuldade nenhuma para ouvir as palavras suaves de Hammond com todo aquele barulho da festa. Ela não olhou para ele, mas ele viu seu sorriso, ouviu a leve risada de constrangimento.
  • Então foi mesmo? Você me viu?

Ela levantou um ombro num gesto discreto de concessão.

  • bom, que ótimo – disse ele, soltando o ar pela boca ruidosamente, exagerando a sensação de alívio. - Nesse caso, não vejo por que limitar toda a nossa experiência na feira municipal a uma única dança. Não que não tenha sido ótima. Foi. Faz séculos que não curto tanto uma dança assim.

Ela levantou a cabeça e deu um olhar de quem bate em retirada.

  • Hummm... Estou bancando o idiota, não estou?
  • Totalmente.

Ele abriu um enorme sorriso, porque ela era tremendamente atraente e não se importava de ele estar flertando com ela como não flertava havia vinte anos.

  • Então que tal isso? Estou livre esta noite e não me sinto tão desprogramado assim há...
  • Essa palavra existe?
  • Basta.
  • É uma palavra de cinquenta centavos.
  • Tudo isso para dizer que se você não tiver nenhum plano para jantar...? Ela indicou que não tinha, balançando a cabeça.
  • Por que não aproveitamos juntos o resto da feira? Rory Smilow, olhando fixamente para os olhos mortiços de Lute Pettijohn, perguntou:
  • Qual foi a causa da morte?

O médico-legista, um homem franzino e atencioso, com ar sensível e muito educado, tinha conquistado uma coisa raríssima: o respeito de Smilow. O dr. John Madison era um negro do Sul que fizera por merecer sua autoridade e posição numa cidade consumadamente sulista. Smilow admirava qualquer pessoa que atingia esse tipo de realização pessoal diante da adversidade. Madison havia estudado meticulosamente o corpo do modo que tinha sido encontrado, de barriga para baixo. O morto foi delineado e depois fotografado de diversos ângulos. Examinou as mãos e os dedos da vítima, especialmente embaixo das unhas. Testou a rigidez movendo os pulsos. Usou uma pinça para tirar uma partícula não identificável da manga do paletó de Pettijohn, depois guardou-a com todo o cuidado num saco especial para provas. Só depois de completar o exame inicial e de pedir ajuda para virar a vítima foi que tiveram a primeira surpresa – um ferimento bem feio na têmpora de Pettijohn, na linha do cabelo.

  • Você acha que a pessoa que fez isso bateu nele? - perguntou Smilow, e abaixou-se para ver melhor o ferimento. - Ou atirou nele primeiro, e isso aconteceu na queda?

Madison ajeitou os óculos e disse, apreensivo:

  • Se for difícil para você falar sobre isso, podemos conversar sobre os detalhes mais tarde.
  • Você está se referindo ao fato de ele ter sido meu cunhado? - O médico-legista assentiu com a cabeça, e Smilow disse: - Nunca deixo minha vida privada se misturar com a minha vida profissional, e viceversa. Diga o que você acha, John, e não me poupe de nenhum detalhe escabroso.
  • É claro que terei de examinar melhor o ferimento – disse Madison, sem nenhum outro comentário sobre a relação entre a vítima e o detetive. - Mas, à primeira vista, eu diria que ele sofreu a pancada na cabeça antes de morrer, não depois. Apesar de certamente ser um ferimento sério. Poderia ter provocado traumatismo craniano de diversos tipos, e qualquer um deles poderia ser fatal.
  • Mas você não acha que foi isso.
  • Para dizer a verdade, Rory, não acho. Não parece tão traumático assim. A inchação é externa, o que normalmente indica que deve haver pouca ou nenhuma por dentro. Mas às vezes sou pego de surpresa.

Smilow sabia apreciar a relutância do médico-legista de se comprometer com uma teoria ou outra antes da autópsia.

  • A essa altura é seguro dizer que ele morreu por causa dos tiros? Madison concordou com a cabeça.
  • Mas essa é só a primeira impressão. Parece-me que ele caiu, ou foi empurrado, ou atacado antes de morrer.
  • Quanto tempo antes?
  • O tempo é mais difícil de determinar.
  • Hummm.

Smilow deu uma rápida olhada em volta. Tapete. Sofá. Poltronas. Superfícies macias, a não ser pelo tampo de vidro da mesa de centro. Ele caminhou de cócoras até a mesa e abaixou a cabeça até ficar com os olhos na altura do tampo. Tinham encontrado um copo e uma garrafa do minibar sobre a mesa. Já haviam sido recolhidos e ensacados pela Unidade da Cena do Crime. Sob aquela perspectiva, Smilow pôde ver algumas rodelas de líquido, já secas, onde Pettijohn tinha posto seu copo sem um portacopos por baixo. Moveu os olhos lentamente pela superfície de vidro, examinando um centímetro de cada vez. O técnico em datiloscopia tinha descoberto o que parecia ser a marca de uma mão na beirada da mesa.

Smilow ficou em pé e procurou reconstruir mentalmente o que podia ter acontecido. Recuou para o lado mais distante da mesa e andou na direção dela.

-Vamos supor que Lute ia pegar seu drinque – disse ele, pensando em voz alta – e caiu para a frente.

  • Acidentalmente? - perguntou um dos detetives.

Smilow era temido, em geral não gostavam dele, mas ninguém da Divisão de Investigação Criminal discutia seu talento para recriar um crime. Todos no quarto pararam para ouvi-lo atentamente.

  • Não necessariamente – respondeu Smilow, pensativo. - Alguém poderia tê-lo empurrado por trás, feito com que se desequilibrasse. Ele caiu.

Smilow encenou a queda, com cuidado para não encostar em nada, especialmente no corpo.

  • Ele tentou aparar a queda segurando a beirada da mesa, mas pode ter batido a cabeça no chão com tanta força que perdeu os sentidos – ele olhou para Madison e franziu as sobrancelhas como se pedisse a opinião dele.
  • Pode ser – respondeu o médico-legista.
  • É válido dizer que ele ficou pelo menos atordoado, certo? Ele teria caído bem aqui – ele abriu as mãos, indicando o desenho no chão que marcava a posição em que o corpo tinha sido encontrado.
  • Então a pessoa que o empurrou meteu duas balas nas costas dele – disse um dos detetives.
  • Ele foi definitivamente alvejado nas costas enquanto estava deitado de barriga para baixo – disse Smilow, e olhou para Madison pedindo confirmação.
  • Parece que sim – disse o médico-legista. O detetive Mike Collins assobiou baixinho.
  • Muita frieza, cara. Atirar no homem pelas costas quando ele já está caído. Alguém estava possesso!
  • A fama de Lute era devida a isso: deixar as pessoas possessas disse Smilow. - Tudo que temos de fazer é reduzir a uma só.
  • Foi alguém que ele conhecia.

Smilow olhou para o detetive que disse isso e fez sinal para ele continuar.

  • Nenhum sinal de arrombamento – disse o detetive. - Nada indica que a fechadura foi forçada. Por isso, o criminoso tinha uma chave, ou então Pettijohn abriu a porta para ele.
  • A chave do quarto de Pettijohn estava no bolso dele – informou um dos outros. - O motivo não foi roubo, a não ser que tenha sido mascarado. A carteira dele foi encontrada no bolso da frente, embaixo do corpo, e parece intacta. Não falta nada.
  • Muito bem, então temos uma coisa com que trabalhar aqui disse Smilow-, mas ainda temos um longo caminho pela frente. O que não temos é a arma e um suspeito. Esse complexo está cheio de gente, empregados e hóspedes. Alguém viu alguma coisa. Vamos começar com os interrogatórios. Reunam as pessoas.

Quando ele ia para a porta, um dos detetives resmungou:

  • Está quase na hora do jantar. Eles não vão gostar.
  • Não me importo – retrucou Smilow, e todos que trabalhavam com ele não tiveram dúvida nenhuma disso. - E as câmeras de segurança? - perguntou ele. Diziam que tudo no Charles Towne Plaza era de última geração. - Onde está o vídeo?
  • Parece que há uma certa confusão em relação a isso. Smilow virou para o detetive que tinha recebido ordem mais cedo

para verificar o sistema de segurança do hotel.

  • Que tipo de confusão?

-Ah, confusão. Uma trapalhada geral. A fita está temporariamente desaparecida.

  • Sumiu?
  • Eles não disseram exatamente isso. Smilow resmungou uma praga.
  • O encarregado promete que vai apresentá-la logo. Mas sabe como é... - o detetive ergueu os ombros como se dissesse, com desprezo, civis.
  • Mantenha-me informado. Quero ver essa fita o mais rápido possível. - Smilow dirigiu-se ao grupo. - Esse será um assassinato sensacionalista. Ninguém fala com a mídia, só eu. Fiquem de boca fechada, entenderam? O rastro do criminoso está esfriando a cada minuto, por isso tratem de começar já.

Os detetives saíram em fila para começar a questionar os hóspedes e os empregados do hotel. Em geral as pessoas não gostavam de passar por esse interrogatório porque implicava culpa, por isso aquela ia ser uma tarefa desagradável e cansativa. E Smilow, eles sabiam por experiência própria, era um chefe inclemente e implacável quando cobrava o cumprimento dessas tarefas. Ele aproximou-se do dr. Madison outra vez.

  • Dá para fazer isso bem depressa?
  • Uns dois dias.
  • Segunda-feira?
  • O meu fim de semana vai para o espaço.
  • O meu também – disse Smilow sem se desculpar. - Quero toxicologia, tudo.
  • Você sempre quer – disse Madison com um sorriso amável. Farei o melhor possível.
  • Você sempre faz.

Depois que removeram o corpo, Smilow dirigiu-se a um dos técnicos da Unidade da Cena do Crime.

  • Em que pé estamos?
  • É vantagem para nós o hotel ser novo. Não tem excesso de digitais, por isso a maior parte delas deve ser de Pettijohn.
  • Ou do assassino.
  • Eu não contaria com isso – disse o técnico, franzindo a testa. O lugar é o mais limpo que já vi.

Quando a suíte ficou vazia, Smilow caminhou por ela sozinho. Verificou tudo pessoalmente, abriu cada gaveta, examinou o armário e o cofre embutido, entre os colchões, embaixo da cama, dentro do armário do banheiro, no vaso sanitário, à procura de qualquer coisa que Lute Pettijohn pudesse ter deixado que servisse de pista para a identidade do assassino. A soma total de descobertas de Smilow foi uma Bíblia protestante e a lista telefónica de Charleston. Não encontrou nada pessoal que pertencesse a Lute Pettijohn, nenhuma agenda, recibos, bilhetes, anotações, embalagens de alimentos, nada. Smilow viu que faltavam duas garrafas de uísque no minibar, mas que apenas um copo tinha sido usado, a menos que o assassino tivesse sido esperto e levado o dele quando saiu. Mas Smilow ficou sabendo, depois de se informar na copa, que o número normal de copos altos de uma suíte era quatro, e restavam três limpos. Em se tratando de cenas de crime, aquela era praticamente estéril... a não ser pela mancha de sangue no carpete.

  • Detetive?

Smilow, que estava pensativo, olhando para o sangue no carpete, levantou a cabeça.

O policial em pé na porta do quarto acenou com o polegar para o corredor.

  • Ela insistiu em entrar. -Ela?

-Eu.

Uma mulher passou ao lado do patrulheiro como se ele não tivesse importância nenhuma, tirou a fita da cena do crime da porta e entrou na suíte. Quando ela viu a mancha escura de sangue, bufou desapontada e revoltada.

  • Madison já levou o corpo? Droga!

Smilow levantou o braço para ver as horas no seu relógio de pulso.

  • Parabéns, Steffi. Você quebrou seu próprio recorde de velocidade – disse ele.
  • Achei que você estava esperando seu marido e filhos.
  • Quando?
  • Quando você entrou no pavilhão. -Ah.

Ela não mordeu a isca que Hammond lançou, continuou lambendo seu picolé. Só falou quando o palito ficou completamente seco.

  • Esse é seu jeito de perguntar se sou casada? Ele fez cara de magoado.
  • E eu que pensei que estava sendo tão sutil...
  • Obrigada pelo picolé de chocolate com amêndoas.
  • Esse é seu jeito de evitar a resposta?

Rindo, eles chegaram a uma escada com degraus irregulares de madeira que levava a um cais. A plataforma ficava aproximadamente a um metro da água e tinha mais ou menos dez metros quadrados de área. A água batia suavemente nas estacas por baixo das tábuas gastas. Bancos de madeira formavam o perímetro do píer, e os encostos serviam de balaustrada. Hammond pegou o palito e o papel do sorvete dela e jogou-os na lata de lixo junto com os dele, depois apontou para um dos bancos. Em cada canto do píer havia um poste de luz, mas as lâmpadas eram fracas e não incomodavam. Luzes brancas de Natal como as que pendiam do teto do pavilhão tinham sido postas entre os postes. Elas suavizavam a rusticidade, transformando o píer comum e feioso num lugar romântico. A brisa era suave mas suficientemente forte para afastar os mosquitos. Sapos coaxavam nas folhagens densas que cresciam nas margens do rio. Cigarras cantavam nos galhos mais baixos e cheios de musgo ao abrigo generoso das copas dos carvalhos.

  • É gostoso aqui – observou Hammond.
  • Humm. Fico surpresa de ninguém mais ter descoberto esse lugar.
  • Fiz a reserva para tê-lo só para nós.

Ela deu uma risada. Os dois tinham rido bastante nas últimas horas enquanto experimentavam as guloseimas altamente calóricas das barraquinhas de comida e andavam a esmo de uma para outra. Tinham admirado conservas domésticas de pêssego e de vagem, tiveram uma aula sobre o mais moderno equipamento de musculação e experimentaram os assentos estofados de tratores da mais alta tecnologia. Hammond ganhou um ursinho em miniatura para ela jogando uma bola de beisebol. Ela se recusou a experimentar uma peruca, apesar da vendedora ter sido muito persuasiva. Deram uma volta na roda-gigante. Quando o banco deles parou lá em cima e balançou precariamente, Hammond se sentiu completamente eufórico. Foi um dos momentos mais despreocupados que ele conseguia se lembrar desde... Não era capaz de se lembrar de nenhum momento mais alegre. As amarras que mantinham seus pés bem presos ao chão, às pessoas, ao trabalho, às obrigações pareciam ter sido cortadas. Por alguns minutos ele ficou flutuando, livre. Sentiu-se livre para curtir a emoção de uma leveza de espírito que não lembrava mais. Livre para aproveitar a companhia de uma mulher que tinha conhecido havia menos de duas horas. Espontaneamente, ele virou para ela e perguntou:

  • Você é casada?

Ela deu uma risada e abaixou a cabeça, balançando-a de um lado para outro ao mesmo tempo.

  • Por falar em sutileza...
  • A sutileza não estava funcionando para mim.
  • Não. Não sou casada. E você, é?
  • Não. - E depois: - Puxa! Estou contente de ter esclarecido isso. Ela levantou a cabeça e olhou para ele, sorrindo.
  • Eu também.

Então eles pararam de rir e ficaram só olhando um para o outro. Esse olhar se estendeu alguns segundos, depois minutos, e por um tempo ainda mais longo, calmo por fora, mas estrepitoso no campo emocional. Para Hammond foi um daqueles momentos que só se tem uma vez na vida, quando se tem sorte. Do tipo que até os diretores e atores mais talentosos do cinema não conseguem captar num filme. O tipo de momento de união que os poetas e compositores tentam descrever em suas obras, mas que não chegam a passar por completo. Até aquele instante Hammond nutria a noção equivocada de que eles tinham feito um bom trabalho. Mas estava entendendo que eles tinham fracassado terrivelmente. Como é que uma pessoa, qualquer pessoa, podia descrever aquele momento em que tudo se encaixa? Como descrever aquela explosão de clareza quando sabemos que a nossa vida só começou agora, que tudo que aconteceu antes não se compara a isso, e que nada será a mesma coisa daqui para a frente? As respostas ilusórias para todas as perguntas deixaram de ter importância, e ele compreendeu que a única verdade que realmente precisava saber estava no aqui e no agora. Neste momento. Ele nunca se sentira assim em toda a sua vida. Ninguém jamais sentiu isso. Ele ainda estava balançando no banco, lá em cima na roda-gigante, e não queria descer nunca mais. Assim que ele disse “Dança comigo outra vez?”, ela disse: “Eu preciso mesmo ir”. “Ir?” “Dançar?” Eles falaram ao mesmo tempo de novo, mas Hammond atropelou a voz dela:

  • Dance comigo de novo. Eu não estava na minha melhor forma da última vez, com aqueles fuzileiros navais observando cada passo que eu dava.

Ela virou a cabeça e olhou na direção do estacionamento, do outro lado da feira.

Ele não queria pressioná-la. Qualquer tentativa de coerção provavelmente a faria fugir. Mas ele não podia deixá-la ir. Ainda não.

  • Por favor?

Ela olhou para ele com cara de dúvida, e então deu-lhe um pequeno sorriso.

  • Está bem. Uma música.

Eles se levantaram e ela se dirigiu para a escada, mas Hammond segurou a mão dela e a puxou de volta.

  • O que há de errado com esse lugar?

Ela respirou fundo e soltou o ar bem devagar, meio trémula.

  • Nada, acho.

Ele não tinha tocado nela desde a última dança, só encostou a mão de leve nas costas para guiá-la por uma passagem estreita no meio da multidão. Tinha oferecido a mão para ajudá-la quando subiram e desceram da roda-gigante. Ficaram com os braços e os quadris encostados na gôndola da roda-gigante enquanto rodavam. Mas exceto poucas ocasiões, ele havia controlado todas as tentações de tocála, sem querer afugentá-la, passar por tarado ou ofendê-la. Mas naquele momento ele a puxou gentilmente, porém com firmeza, até bem perto. Passou o braço na cintura dela e puxou-a mais. Mais perto do que antes. Contra seu corpo. Ela cedeu com um pouco de hesitação, mas não tentou se afastar. Pôs o braço no ombro dele. Ele sentiu a pressão da mão dela na nuca. A banda tinha parado de tocar. A música estava a cargo de um DJ que tocava uma variedade que ia de Creedence Clearwater até Barbra Streisand. Estava ficando tarde, os dançarinos estavam mais calmos, por isso ele tocava músicas mais lentas. Hammond reconheceu a canção mas não conseguia se lembrar do nome do cantor nem da música que soava no pavilhão. Não tinha importância. A balada era lenta, suave e romântica. No início ele tentou fazer com que os pés executassem uma sequência de passos que tinha aprendido quando jovem nos bailes que frequentava a contragosto, levado pela mãe. Mas quanto mais tempo ele ficava segurando seu par, mais difícil era concentrar-se em outra coisa que não fosse ela. Uma melodia era seguida por outra, e eles não perdiam o ritmo, apesar de ela ter dito que só queria dançar uma música. Na verdade, eles nem notavam quando a música mudava. Seus olhos e mentes estavam presos um no outro. Ele encostou as mãos dadas dos dois no peito dele, a dela espalmada e a dele por cima. Ela inclinou a cabeça para a frente e para baixo até encostar a testa na clavícula dele. Ele roçou o pescoço no cabelo dela. Hammond não ouvia, mas sentia o pequeno ruído do desejo que vibrava na garganta dela. E o dele fez eco. Os pés dos dois deslizavam cada vez mais devagar até que pararam por completo. Ficaram imóveis, e a única coisa que se movia era uma mecha do cabelo dela que a brisa fazia acariciar o rosto dele. O calor que emanava de cada ponto de contato parecia forjá-los juntos. Hammond abaixou a cabeça para o beijo que ele achava que seria inevitável.

  • Preciso ir – ela se desvencilhou do abraço dele e se virou abruptamente, indo para o banco onde tinha deixado a bolsa e o cardigã.

Por alguns segundos, Hammond ficou atónito demais para reagir. Depois de pegar suas coisas, ela passou por ele e disse apressadamente:

  • Obrigada por tudo. Foi ótimo. Mesmo.
  • Espere um minuto.

Ela desviou da mão dele e subiu rapidamente os degraus, tropeçando uma vez por causa da pressa.

  • Preciso ir.
  • Por que agora?
  • Eu não posso... não posso fazer isso.

Ela jogou as palavras por cima do ombro enquanto corria na direção do estacionamento. Seguiu a fileira de flâmulas, evitando a rua principal, evitando o pavilhão e a atividade que já diminuía nos estandes. Algumas atrações já estavam fechadas. Os expositores desmontavam suas barracas e empacotavam seus equipamentos. Famílias carregadas de lembranças e prémios caminhavam lentamente para suas vans. O barulho não era mais tão alegre, nem tão alto como antes. A música no pavilhão agora soava mais triste do que romântica. Hammond foi andando o tempo todo ao lado dela.

  • Não entendo.
  • O que há para não entender? Eu disse que precisava ir embora. É só isso.
  • Não acredito nisso.

Desesperado para detê-la, ele segurou seu braço. Ela parou, respirou fundo várias vezes e virou-se de frente para ele, apesar de não olhar diretamente para Hammond.

  • Eu me diverti muito – disse ela num tom de voz neutro, sem inflexão, como se tivesse decorado a frase. - Mas agora a noite acabou e preciso ir embora.
  • Mas...
  • Não lhe devo explicação. Não lhe devo nada – os olhos dela encontraram os dele por um breve instante antes de escapar de novo.
  • Agora, por favor, não tente me impedir de novo.

Hammond soltou o braço dela e recuou, levantando as mãos em sinal de rendição.

-Até logo – foi tudo que ela disse antes de virar de costas para ele e seguir pela terra seca até o estacionamento.

Stefanie Mundell jogou as chaves do seu Acura para Smilow.

  • Você dirige enquanto troco de roupa.

Tinham saído do hotel pela entrada da rua East Bay e andavam apressados pela calçada que estava congestionada, não só com a multidão habitual de sábado à noite, mas com curiosos atraídos para o novo complexo pelos veículos de emergência estacionados ao longo da rua. Passaram pelos observadores curiosos sem chamar atenção porque nenhum aparentava ser “funcionário público”. O terno de Smilow continuava impecável, os punhos da camisa limpos. Apesar da confusão em torno do assassinato de Pettijohn, ele não tinha se abalado. Ninguém suspeitaria também que Steffi era assistente do promotor público. Ela estava de short de corrida e top de ginástica, ambos ainda molhados de suor, que nem o sistema de refrigeração de ar do hotel tinha sido capaz de secar. Os mamilos rijos, assim como as pernas magras e musculosas, atraíram a atenção de vários homens, mas ela nem se deu conta dos olhares de admiração enquanto levava Smilow para o seu carro, estacionado ilegalmente numa rua de mão dupla. Ele apertou o botão do controle remoto para destrancar as portas, mas não deu a volta para abrir a porta do lado dela. Ela teria feito pouco caso do gesto se ele o fizesse. Ela entrou no banco de trás. Smilow pôs-se ao volante. Deu partida no motor e esperou os outros carros passarem para sair.

  • Aquilo era verdade? - perguntou Steffi. - O que você disse para os policiais quando saímos do hotel?
  • Que parte?
  • Ah, então alguma coisa era besteira?
  • Não a parte de não termos motivo aparente, arma ou suspeito no momento.

Smilow tinha dito para eles manterem a boca fechada quando os repórteres aparecessem fazendo perguntas. Já convocara uma entrevista coletiva para as onze horas. Marcar essa hora significava ter as estações locais ao vivo com a reportagem nos últimos noticiários da noite, o que ampliava a sua exposição na televisão. Impaciente com a interminável fila de carros se arrastando pela avenida, ele enfiou o carro de Steffi na pista estreita de sentido contrário e recebeu uma buzinada escandalosa de um veículo de frente para ele. Demonstrando a mesma impaciência que Smilow exibia dirigindo, Steffi arrancou o top esportivo pela cabeça.

  • Tudo bem, Smilow, ninguém pode ouvir você agora. Vai falando. Sou eu que estou aqui.
  • Estou vendo – observou ele, olhando para ela pelo espelho retrovisor.

Sem constrangimento algum, ela secou as axilas com uma toalha de mão que tirou da sua sacola de ginástica.

  • Pai, mãe, nove filhos, um banheiro só. Na nossa casa, se você fosse tímido ou pudico, ficaria sujo e com prisão de ventre.

Para alguém que renegava sua origem pobre, Steffi se referia a ela com frequência, em geral para justificar seu comportamento grosseiro.

  • Bem, apresse-se e vista-se. Estaremos lá em poucos minutos. Apesar de você nem precisar estar lá. Posso fazer isso sozinho – disse Smilow.
  • Eu quero estar lá.
  • Está bem, mas gostaria de não ser preso no caminho, por isso abaixe-se para que ninguém a veja desse jeito.
  • Ora, Rory, você é um puritano – disse ela, fazendo charme.
  • E você tem sede de sangue. Como farejou tão depressa esse animal recém-abatido?
  • Eu estava correndo. Quando passei pelo hotel e vi todos aqueles carros da polícia, parei e perguntei para um policial o que estava acontecendo.
  • E por falar em ordens para manter a boca fechada...
  • Tenho meus dons de persuasão. Além do mais, ele me reconheceu. Quando me contou, não acreditei no que ouvi.
  • Eu também.

Steffi vestiu um sutiã normal, em seguida tirou o short e procurou uma calcinha na sacola.

  • Pare de mudar de assunto. O que você tem?

-A cena de crime mais limpa que já tive em muito tempo. Talvez a mais limpa que já vi.

  • Está falando sério? - perguntou ela, aparentando estar desapontada.
  • Quem o matou sabia o que estava fazendo.
  • Alvejado pelas costas, deitado no chão de barriga para baixo.
  • É isso aí.
  • Humm.

Ele olhou para ela outra vez. Steffi abotoava um vestido sem mangas, mas não prestava atenção no que fazia. Olhava para o espaço e ele quase conseguia ver as engrenagens do seu cérebro inteligente rodando. Stefanie Mundell trabalhava na Promotoria Pública havia pouco mais de dois anos, mas nesse tempo ela fez diferença – nem sempre no bom sentido. Alguns a consideravam uma verdadeira praga, e ela sabia ser uma. Tinha uma língua ferina e não se opunha a usá-la. Ela nunca, mas nunca mesmo, recuava numa argumentação, o que fazia dela uma excelente advogada de tribunal e uma tortura para os advogados de defesa, mas isso não contribuía em nada para a sua reputação entre os colegas de trabalho. Mas pelo menos a metade dos homens, e talvez algumas mulheres, que trabalhavam no departamento de polícia e no prédio judicial do município, eram apaixonados por ela. Alianças fantasiosas com ela muitas vezes eram comentadas com os detalhes mais crus, regados pelos drinques depois do expediente. Sem que ela ouvisse, claro, porque ninguém queria ser alvo de um processo de assédio sexual por parte de Stefanie Mundell. Se ela sabia de todo esse tesão enrustido por ela, fingia não saber. Não porque pudesse aborrecê-la ou deixá-la sem graça saber que os homens usavam os termos mais chulos em relação a ela. Simplesmente acharia que era um comportamento juvenil, idiota e trivial demais para gastar seu tempo e energia com isso. Rory observava Steffi secretamente pelo espelho retrovisor enquanto ela afivelava um cinto fino de couro na cintura e depois passava as mãos no cabelo para penteá-lo. Ele não sentia atração física por ela. Vê-la operar não acendia nele nenhum desejo louco, carnal, apenas uma profunda admiração por sua inteligência privilegiada e pela ambição que lhe servia de combustível. Essas qualidades o faziam lembrar de como ele era.

  • Esse seu “humm” foi muito significativo, Steffi. Em que você está pensando?
  • Na fúria que o assassino devia estar sentindo.
  • Um dos meus detetives comentou isso. Foi um crime a sangue-frio. O médico-legista acha que ele podia estar inconsciente quando

recebeu os tiros. De qualquer forma, não representava ameaça nenhuma. O matador simplesmente queria vê-lo morto.

  • Se você fizesse uma lista de todas as pessoas que queriam ver Lute Pettijohn morto...
  • Não temos tanto papel e tinta assim. ?« Ela olhou para os olhos dele no retrovisor e sorriu.
  • Certo. Então, algum palpite?
  • Agora não.
  • Ou só não quer me dizer?
  • Steffi, você sabe que não dou nada para o seu escritório antes de estar preparado.
  • Só me prometa...
  • Sem promessas.
  • Prometa que ninguém mais terá esse furo.
  • Sem querer fazer trocadilho.
  • Você sabe o que quero dizer – disse ela, zangada.
  • Mason vai designar o caso – disse ele, referindo-se a Monroe Mason, procurador público do município de Charleston. - Vocês é que terão de tratar de consegui-lo.

Mas olhando para ela pelo espelho e vendo fogo nos seus olhos, ele não tinha dúvida de que para ela isso seria uma prioridade. Ele parou o carro perto do meio-fio.

  • Chegamos.

Desceram na frente da mansão de Lute Pettijohn. O exterior grandioso, condizente com o endereço de prestígio na South Battery, era uma mistura arquitetônica. O estilo georgiano original tinha dado lugar aos toques federativos que surgiram depois da Guerra Revolucionária. Em cima disso, adicionaram a revitalização das colunas gregas quando eram símbolo da oposição à Guerra da Secessão. Mais tarde a estrutura imponente foi atualizada com salpicos de vulgaridade vitoriana. Essa colcha de retalhos de arquitetura era típica do Bairro Histórico e, ironicamente, tornava Charleston ainda mais pitoresca. A casa de três andares tinha varandas duplas e profundas, com colunas majestosas e arcos graciosos. Uma cúpula coroava a cumeeira do telhado. Por dois séculos a casa tinha resistido a guerras, a crises económicas debilitantes e a furacões antes de sofrer seu último ataque – de Lute Pettijohn. A restauração bem documentada que ele fez demorou anos. O primeiro arquiteto que supervisionou o projeto pediu demissão porque teve um esgotamento nervoso. O segundo sofreu um enfarte. O cardiologista dele obrigou-o a abandonar o projeto. O terceiro chegou ao fim da restauração, mas custou-lhe seu casamento. Desde o portão da frente, com seu elaborado trabalho em ferro fundido e luminárias historicamente catalogadas, até as cópias das dobradiças das portas dos fundos, Lute não tinha economizado nada para sua casa ser a mais comentada em toda Charleston. Isso ele tinha conseguido. Não era necessariamente a restauração mais admirada, mas certamente tinha sido a mais falada. Ele travou uma batalha contra a Sociedade de Preservação de Charleston, a Fundação Histórica de Charleston e a Associação de Arquitetos com sua proposta de converter o antigo armazém em ruínas no que agora era o Charles Towne Plaza. Essas organizações, cujo propósito era preservar com todo zelo o que Charleston tinha de exclusivo, fiscalizar as construções e limitar a expansão comercial, inicialmente vetaram a proposta dele. Ele não recebeu as licenças até todos terem certeza de que a integridade do exterior de tijolos original do prédio não seria drasticamente alterada nem comprometida, que suas cicatrizes bem vividas não seriam camufladas e que jamais seria desfigurada com marquises ou outros letreiros contemporâneos designando o que era. As sociedades de preservação tinham nutrido reservas semelhantes quanto à renovação da casa dele, mas ficaram satisfeitas porque a propriedade, que tinha caído num triste estado de decadência, fora comprada por alguém que tinha meios para reformá-la do jeito que merecia. Pettijohn tinha obedecido às diretrizes rígidas porque não teve escolha. Mas o consenso geral era que a reforma que ele fez na casa, especialmente no interior, era um exemplo claro de até que ponto se pode ser vulgar quando se tem mais dinheiro do que bom gosto. Mas todos concordavam que os jardins não tinham igual em toda a cidade. Smilow notou que o jardim da frente era exuberante e que estava muito bem cuidado quando apertou o botão do interfone no portão principal. Steffi olhou para ele.

  • O que você vai dizer para ela?

Smilow estava esperando que alguém dentro da casa atendesse à campainha e respondeu pensativo:

  • Parabéns. .

Mas nem mesmo Rory Smilow era tão insensível e cínico assim. Quando Davee Pettijohn olhou para o vestíbulo lá embaixo, ao pé da escada, viu o detetive parado, com as mãos para trás, olhando fixamente para seus sapatos muito lustrosos ou para o piso italiano em que eles pisavam. De qualquer modo, parecia totalmente concentrado na área em volta dos seus pés. A última vez que Davee tinha visto o ex-cunhado do marido fora num evento em homenagem ao departamento de polícia. Smilow tinha recebido um prémio aquela noite. Depois da cerimónia, Lute o procurou para dar-lhe os parabéns. Smilow apertou a mão de Lute, mas só porque Lute o forçou a isso. Foi cortês com eles, mas Davee percebeu que o detetive preferia rasgar a garganta de Lute com os dentes em vez de apertar-lhe a mão. Rory Smilow demonstrava o mesmo controle rígido daquela última ocasião. Sua postura e aparência eram perfeitamente militares. O cabelo estava rareando no topo da cabeça, mas só dava para notar porque Davee estava no alto da escada. Não conhecia a mulher que estava com ele. Davee sempre teve o hábito de avaliar qualquer outra mulher que encontrava, por isso teria lembrado se já tivesse visto a companheira de Smilow. Smilow não olhou para cima, mas a mulher parecia avidamente curiosa. Sua cabeça se movia constantemente, girando, observando tudo que havia na entrada da casa. Não perdia nenhum item importado da Europa. Seus olhos eram ligeiros e predatórios. Davee sentiu aversão por ela à primeira vista. Nada menos importante do que uma catástrofe teria levado Smilow à casa de Lute, mas Davee resolveu ignorar isso até onde fosse possível. Bebeu de um gole tudo que tinha no seu copo alto e, com cuidado para não fazer barulho com as pedras de gelo, o deixou numa mesa de canto. Só então ela anunciou sua presença:

  • Vocês estão me procurando?

Seguindo o som da voz dela, os dois viraram juntos e a viram lá em cima, no topo da escada. Ela esperou os olhos se fixarem nela para iniciar a descida. Estava descalça e um pouco despenteada, mas desceu a escada, com a mão no corrimão, como se estivesse de vestido de baile, a princesa da noite, com seus humildes súditos prestando homenagem em adoração. Era de uma família do epicentro da sociedade de Charleston. Por ambos os lados ela pertencia à noblesse oblige. Jamais esquecia disso, e também fazia questão de não deixar ninguém esquecer.

  • Olá, sra. Pettijohn.
  • Não temos de fazer cerimónia, não é, Rory? - ela parou bem perto dele e, inclinando a cabeça para o lado, sorriu para Smilow. Afinal de contas, somos praticamente parentes.

Davee estendeu a mão. A dele estava seca e quente. A dela levemente úmida e muito fria, e ela ficou imaginando se ele adivinhara que tinha segurado um copo de vodca. Smilow soltou a mão dela e apontou para a mulher que estava com ele.

  • Esta é Stefanie Mundell.
  • Steffi – disse a mulher, estendendo a mão agressivamente para Davee.

Ela era mignone, cabelo escuro curtinho e olhos escuros. Olhos intensos. Olhos famintos. Não estava de meias, apesar dos sapatos de salto alto. Para Davee isso era uma quebra de etiqueta mais ofensiva do que seus pés descalços.

  • Como vai? - Davee apertou a mão de Steffi Mundell, mas soltou-a logo. - Vocês querem ingressos para o baile dos policiais ou o quê?
  • Há algum lugar onde possamos conversar?
  • Claro – disse ela, ocultando o nervosismo com um largo sorriso, e então levou-os para a sala de estar.

A empregada, que tinha aberto a porta para os dois antes de avisar Davee que tinha visita, andava pela sala acendendo as luzes.

  • Obrigada, Sarah.

A mulher, que era gorda e negra como um armário de mogno, aceitou com um movimento de cabeça o agradecimento de Davee e saiu por uma porta lateral.

  • Posso preparar um drinque para vocês?
  • Não, obrigado – respondeu Smilow. Steffi Mundell também recusou.
  • Que linda sala – disse ela. - Uma cor maravilhosa.
  • Você acha? - Davee olhou em volta como se visse a sala pela primeira vez. - Na verdade, esse é o cómodo de que menos gosto em toda a casa, apesar de realmente ter uma vista adorável da Battery, o que é ótimo. Meu marido insistiu em pintar as paredes dessa cor. É chamada de terracota, e supostamente é igual à das villas na Riviera italiana. Só que, em vez disso, me lembra uniformes de futebol americano – olhando diretamente para Steffi e com um sorriso suave, acrescentou ela: - Minha mãe sempre dizia que laranj a era a cor da plebe sem educação.

O rosto de Steffi ficou vermelho de raiva.

  • Onde a senhora estava esta tarde, sra. Pettijohn?
  • Não é da sua conta – retrucou Davee sem pestanejar.
  • Senhoras – Smilow olhou sério para Steffi e, por trás desse olhar, havia uma ordem silenciosa para ela calar a boca.
  • O que está acontecendo, Rory? - quis saber Davee. - O que vocês vieram fazer aqui? Ele falou bem devagar, com calma e respeito:
  • Podemos nos sentar?

Davee ficou encarando Smilow alguns segundos, deu uma olhada rápida para Steffi e então, com um gesto brusco, indicou o sofá mais perto deles. Ela sentou-se numa poltrona ao lado. Ele começou explicando que aquela não era uma visita casual.

  • Temo que tenha de lhe dar uma má notícia. Ela olhou firme nos olhos dele, esperando.
  • Lute foi encontrado morto hoje, no fim da tarde. Na suíte da cobertura do Charles Towne Plaza. Parece que foi assassinato.

Davee manteve a expressão sob controle. Não se podia demonstrar muita emoção em público. Simplesmente não se fazia isso. Esconder as emoções era uma habilidade que se adquiria naturalmente quando papai era um mulherengo e mamãe uma alcoólatra, e todo mundo sabia por que ela bebia, mas todo mundo também fingia que não havia problema algum. Não na família deles. Maxine e Clive Burton tinham sido um casal perfeito. Ambos descendiam de famílias da elite de Charleston. Ambos eram absolutamente lindos. Ambos frequentaram escolas exclusivas. O casamento deles era padrão de comparação para todos os outros, até hoje em dia. Eram um par sublime. As três filhas adoráveis tinham recebido nomes de menino, porque Maxine estava bêbada sempre que entrava em trabalho de parto, ou porque estava tão entorpecida que se confundia com o sexo das recém-nascidas, ou então por despeito pelo volúvel Clive, que desejava filhos homens e a culpava por produzir apenas filhas. Não levava em conta a ausência de cromossomos Y. Então as pequenas Clancy, Jerri e Davee foram criadas num lar em que problemas domésticos sérios eram varridos para debaixo dos valiosíssimos tapetes persas. As meninas aprenderam logo cedo a controlar suas reações diante de qualquer situação, por mais perturbadora que fosse. Era mais seguro assim. Era impossível confiar e difícil de avaliar a atmosfera em casa quando pai e mãe eram voláteis e dados a crises de mau-humor, que resultavam em brigas que estilhaçavam qualquer aparência de paz e tranquilidade. Consequentemente, as irmãs ficaram com cicatrizes emocionais. Clancy tinha curado as suas morrendo com trinta e poucos anos de câncer cervical, que os boatos mais venenosos afirmavam ter sido consequência de inúmeras doenças venéreas. Jerri tinha seguido na direção oposta, convertendo-se a um grupo fundamentalista cristão no primeiro ano da faculdade. Dedicava-se a uma vida de sacrifícios e abstinência de tudo que significasse prazer, especialmente álcool e sexo. Plantava legumes e pregava o Evangelho numa reserva indígena de Dakota do Sul. Davee, a mais nova, foi a única que continuou morando em Charleston, desafiando a vergonha e a maledicência, mesmo depois de Clive morrer de parada cardíaca na cama da amante do momento, entre a reunião da diretoria pela manhã e a partida de golfe à tarde, logo depois de Maxine ter sido internada numa clínica com o “mal de Alzheimer” embora todos soubessem que a verdade era que seu cérebro estava conservado no álcool da vodca. Davee, que parecia suave e maleável como caramelo quente, na verdade era dura como pedra. Teve resistência suficiente para passar por cima de tudo. Ela sobrevivia a qualquer coisa. Tinha provado isso.

  • Bem – disse ela, ficando em pé -, vocês não querem um drinque, mas acho que vou tomar um.

No carrinho de bebidas, ela pôs alguns cubos de gelo num copo de cristal e jogou vodca em cima deles. Bebeu quase a metade em um gole só, depois encheu o copo de novo e voltou para junto dos dois.

  • Quem era ela?
  • Perdão?
  • Ora, vamos, Rory. Não me venha com rodeios. Se Lute levou um tiro na sua luxuosa suíte do hotel, devia estar com alguma amiga. Imagino que tenha sido ela ou o marido ciumento que o matou.
  • Quem disse que ele levou um tiro? - perguntou Steffi Mundell.
  • O quê?
  • Smilow não disse que seu marido foi baleado. Ele disse que foi assassinado.

Davee bebeu mais um pouco.

  • Concluí que foi com um tiro. Não é um palpite seguro?
  • Foi um palpite?

Davee abriu os braços e derramou um pouco da bebida no tapete.

  • E quem é você, afinal? Steffi ficou em pé.
  • Represento a promotoria pública. Ou, como é conhecido na Carolina do Sul, o procurador municipal.
  • Sei como se chama na Carolina do Sul – rebateu Davee fazendo graça.
  • vou ser a promotora do caso do assassinato do seu marido. Foi por isso que insisti em vir junto com Smilow.
  • Ah, entendi. Para avaliar a minha reação à notícia.
  • Exatamente. E devo dizer que a senhora não pareceu muito surpresa com ela. Então voltemos à minha pergunta original: onde estava esta tarde? E não diga que não é da minha conta porque, como pode ver, sra. Pettijohn, é da minha conta, sim.

Davee dominou a raiva, ergueu calmamente o copo para tomar mais um trago e levou algum tempo para responder.

  • Você quer saber se posso apresentar um álibi, não é?
  • Não viemos aqui para interrogá-la, Davee – disse Smilow.
  • Tudo bem, Rory. Não tenho nada para esconder. Só acho que ela foi muito insensível – olhou para Steffi de cima a baixo com desprezo – de entrar na minha casa e começar a disparar perguntas ofensivas e insinuando coisas segundos depois de eu receber a notícia de que o meu marido foi assassinado.
  • É o meu trabalho, sra. Pettijohn, quer a senhora goste ou não.
  • Bem, eu não gosto – depois, ignorando Stefi como se fosse alguém insignificante, ela se virou para Smilow: - Terei prazer de responder às suas perguntas. O que você quer saber?
  • Onde estava esta tarde, entre cinco e seis horas?
  • Aqui.
  • Sozinha?
  • Sim.
  • Alguém pode confirmar isso?

Ela foi até uma mesa de canto e apertou um único botão num telefone de mesa. A voz da empregada soou no alto-falante:

  • Pois não, sra. Davee?
  • Sarah, dê um pulo aqui, por favor. Obrigada.

Os três aguardaram em silêncio. Lançando um olhar frio, de desprezo, para a promotora, Davee ficou brincando com o colar – de um único fio de pérolas exatamente do mesmo tamanho – que usava. Tinha sido um presente do pai, que ela amava e odiava ao mesmo tempo. A terapeuta tinha dito que as pérolas eram um símbolo da desconfiança dela, porque o pai tinha traído a mãe e as filhas. Davee não sabia se isso era verdade ou se simplesmente gostava do colar. Mas fosse o que fosse, ela usava as pérolas com tudo, inclusive com o short bem curto e a camiseta branca de algodão tamanho grande que vestia aquela noite. Davee tinha herdado a empregada da mãe. Sarah trabalhava para a família desde antes de Clancy nascer e vivenciara todas as tribulações deles. Quando ela entrou na sala, olhou com hostilidade para Smilow e Steffi Mundell. Davee apresentou Sarah formalmente: :« ,

  • Sra. Sarah Birch, estes são o detetive Smilow e uma pessoa do escritório do promotor público. Vieram me dizer que o sr. Pettijohn foi encontrado assassinado esta tarde.

A reação de Sarah não foi mais visível do que a de Davee tinha sido. Davee continuou:

  • Eu disse que estava aqui em casa entre cinco e seis horas e que você poderia confirmar isso. Não é verdade?

Steffi Mundell quase xingou.

  • A senhora não pode...
  • Steffi.
  • Mas ela acabou de comprometer o interrogatório – berrou ela para Smilow.

Davee olhou para ele com ar inocente.

  • Pensei que você tinha dito que eu não estava sendo interrogada, Rory.

Os olhos dele pareciam de gelo, mas ele se virou para a empregada e disse educadamente:

  • Sra. Birch, a senhora pode me dizer se a sra. Pettijohn estava em casa nessa hora?
  • Sim, senhor. Ela ficou descansando no quarto o dia todo.
  • Ai, caramba! - resmungou Steffi baixinho.

Smilow ignorou Steffi e agradeceu à empregada. Sarah Birch se aproximou de Davee e segurou a mão dela.

  • Sinto muito.
  • Obrigada, Sarah.
  • Está tudo bem, menina?
  • Eu estou bem.
  • Quer alguma coisa?
  • Agora não.
  • Se precisar de alguma coisa, é só me chamar.

Davee sorriu para ela e Sarah passou a mão afetuosamente no cabelo louro despenteado de Davee, depois deu meia-volta e saiu da sala. Davee terminou seu drinque, olhando disfarçadamente para Steffi por cima da borda do copo.

  • Satisfeita? - perguntou ela quando abaixou o copo.

Steffi estava soltando fumaça de raiva e nem se deu o trabalho de responder. Indo de novo até o carrinho de bebidas, Davee perguntou:

  • Onde está o... para onde ele foi levado?
  • O médico-legista vai fazer uma autópsia.
  • Então os preparativos do enterro terão de esperar...

-Até o corpo ser liberado – disse Smilow, terminando a frase para ela.

Ela serviu-se de mais uma dose de vodca e depois voltou para perto dos dois.

  • Como foi que ele morreu? - perguntou ela.
  • Foi alvejado nas costas. Dois tiros. Achamos que ele morreu instantaneamente, e que poderia até estar inconsciente quando dispararam os tiros.
  • Ele estava na cama?

É claro que Smilow conhecia as circunstâncias da morte do pai dela. Todos em Charleston sabiam muito bem dos detalhes escandalosos. Ela gostou de Smilow parecer meio constrangido e penalizado quando ele respondeu à sua pergunta.

  • Lute foi encontrado no chão da sala de estar, completamente vestido. A cama não tinha sido usada. Não havia sinal de nenhum encontro romântico.
  • bom, pelo menos esse foi diferente – ela esvaziou o copo.
  • Quando foi a última vez que você viu Lute?
  • A noite passada? Esta manhã? Não me lembro. Esta manhã, acho. - Davee ignorou o grunhido de incredulidade de Steffi e continuou olhando para Smilow. - Às vezes passávamos dias sem nos ver.
  • Vocês não dormiam juntos? - perguntou Steffi. Davee olhou para ela.
  • De que cidade do Norte você é?
  • Por quê?
  • Porque você é obviamente mal-educada e muito grosseira. Smilow interveio de novo:
  • Só vamos invadir a vida privada dos Pettijohn se for necessário, Steffi. Neste momento não é necessário. - Ele se virou para Davee. Você não tinha ideia da agenda de Lute para hoje?
  • Nem hoje, nem dia nenhum.
  • Ele não deu a entender que ia encontrar alguém?
  • Não.

Ela pôs o copo na mesa de centro e, quando recuou, endireitou as costas.

  • Sou suspeita?
  • Neste momento todos em Charleston são suspeitos. Davee olhou bem nos olhos dele.
  • Muita gente tinha motivo para matar Lute. Incomodado com o olhar penetrante dela, Smilow desviou o dele. Steffi Mundell deu um passo à frente como se quisesse lembrar a

Davee que ainda estava ali e que era alguém importante, alguém que devia ser levado em consideração.

  • Desculpe-me se exagerei um pouco, sra. Pettijohn.

Ela fez uma pausa, mas Davee não ia perdoar suas muitas infrações das regras tácitas do decoro. Davee se manteve impassível.

  • Seu marido era uma figura proeminente – continuou Steffi. Seus negócios geravam uma vultosa receita para a cidade, para o município e para o estado. Sua participação em projetos cívicos...
  • Isso vai levar a alguma coisa?

Steffi não gostou da interrupção de Davee, mas persistiu assim mesmo.

  • Esse assassinato provocará um impacto em toda a comunidade e além dela. A promotoria vai considerá-lo prioridade máxima até o culpado ser capturado, julgado e condenado. A senhora tem a minha palavra de que a justiça será rápida e certa.

Davee deu o seu sorriso mais bonito e mais falso.

  • Sra. Mundell, a sua palavra não vale nada para mim. E tenho uma má notícia para a senhora. A senhora não vai ser promotora do assassinato do meu marido. Nunca me contento com produtos de liquidação de quintal – ela fez uma cara de nojo para o vestido de Steffi.

E então, de frente para Smilow, a ex-debutante ordenou como seriam as coisas:

  • Quero os maiorais. Cuide disso, Rory. Senão eu, a viúva de Lute Pettijohn, vou cuidar.
  • Bem das grandes, bem aqui.

O homem deu um tapa no feltro verde manchado e um sorriso antipático de quem bebeu cerveja demais que fez Bobby Trimble estremecer de nojo. Bobby pegou sua carteira no bolso de trás da calça, tirou duas notas de cinquenta e deu-as para o cretino do filho-da-mãe, um pé rapado.

  • bom jogo – ele disse laconicamente.

O homem embolsou as notas e, então, esfregou as mãos ansioso.

  • Está pronto para outra?
  • Agora não.
  • Ficou zangado? Ora, vamos, não se aborreça – disse ele com voz cativante.
  • Não estou zangado – disse Bobby, parecendo zangado.               Talvez mais tarde.
  • O dobro ou nada?
  • Mais tarde.

Bobby piscou o olho, deu um tiro com o dedo na enorme barriga do outro cara e se afastou saltitando, levando sua bebida. Na verdade, ele adoraria tentar de novo e recuperar o que tinha perdido, mas infelizmente estava sem um tostão. A última série de jogos, que perdeu todos, o deixou algumas centenas de dólares mais pobre. Até resolver seu problema de caixa não podia apostar nada. Tampouco podia usufruir das melhores coisas da vida. Aqueles últimos cem dólares teriam contribuído muito para resolver sua fissura. Nada de mais, apenas algumas fileiras. Ou uns dois comprimidos... Ainda bem que tinha o cartão de crédito falsificado. Podia cobrir suas despesas diárias com ele, mas para qualquer extra precisava de dinheiro em espécie. Que era mais difícil de arranjar. Não impossível. Só exigia mais trabalho. E a vocação de Bobby era menos trabalho e mais boa vida.

  • Agora não vai demorar – disse para ele mesmo, sorrindo e olhando para seu copo alto.

Quando seu investimento gerasse dividendos, teria anos de recreação pela frente. Mas o sorriso dele não durou muito. Uma nuvem de incertezas cobriu a fantasia do seu futuro ensolarado. Infelizmente, o sucesso do seu esquema de ganhar dinheiro dependia da sua parceira e ele estava começando a duvidar da lealdade dela. Para dizer a verdade, a dúvida queimava suas entranhas com a mesma força do uísque barato que estava bebendo a noite toda. No frigir dos ovos, não confiava mesmo nela, nem um pouco. Ele se sentou num banquinho no fundo do bar e pediu outro drinque. O assento de vinil avermelhado um dia já tivera um relevo imitando couro, mas estava praticamente liso, tendo suportado décadas de beberrões contumazes. Se não tivesse de viver com discrição, não teria escolhido uma taverna de classe baixa como aquela. Tinha vivido muito desde o tempo em que frequentava lugares daquele calibre. Tinha progredido de onde começara. Lá para o alto. Emergente ascendente, esse era Bobby Trimble. Bobby tinha cultivado uma nova imagem para ele e não ia desistir dela. Não podia modificar o berço em que tinha nascido, mas se não gostava dele, se sabia instintivamente que seu destino era maior, com coisas melhores, então podia muito bem descartar uma imagem e criar outra. E foi isso que fez. Foi esse interesse adquirido pela urbanidade que proporcionou o confortável emprego em Miami. O dono da boate precisava de um cara com os talentos de Bobby para operar como recepcionista e relações públicas. Ele tinha boa aparência e sua lábia atraía as damas. Agarrou-se ao emprego como um pato à água. Os negócios cresceram significativamente. Em pouco tempo, o Cock’n’Bull passou a ser um dos pontos noturnos mais badalados de Miami, uma cidade famosa por suas casas noturnas. A boate lotava todas as noites com mulheres que sabiam como se divertir. Bobby tinha cultivado, e depois alimentado, a reputação de lugar vulgar e obsceno para competir com os outros clubes de mulheres. O Cock’n’Bull não se desculpava por apresentar um espetáculo de sexo explícito que atraía mulheres, não damas, que não tinham medo de cair na gandaia. Na maioria das noites, os dançarinos tiravam tudo e ficavam completamente nus. Bobby permanecia de smoking, mas seu discurso levava as mulheres ao frenesi sexual. Seus engodos verbais eram mais eficientes do que os quadris projetados para a frente dos dançarinos. Elas adoravam seus diálogos sacanas. Então, uma noite, uma fã muito entusiasmada subiu no palco com um dos dançarinos, ficou de joelhos e começou a praticar aquele ato libidinoso com ele. As espectadoras enlouqueceram. Adoraram. Mas o esquadrão antivício que se misturava ao público à paisana não gostou. Secretamente, pediram reforços e, antes de qualquer pessoa entender o que estava acontecendo, o lugar ficou cheio de policiais. Bobby conseguiu escapar pela porta dos fundos, mas antes tratou de raspar toda a féria do cofre do escritório. Devido a uma queda pelas pistas de corrida e uma maré recente de má sorte, ele devia dinheiro para um agiota, que não compreendia que o fechamento do clube representava uma interrupção temporária dos seus rendimentos, que seria corrigida em breve. “Em breve” não constava do vocabulário do agiota. Por isso, com o proprietário do clube, a polícia e o agiota na sua cola, ele fugiu do Estado Ensolarado com quase dez mil dólares nos bolsos do seu smoking. Mandou pintar seu Mercedes conversível de uma cor diferente e trocou as placas. Por algum tempo ele viajou tranquilo subindo a costa, esbanjando o dinheiro roubado. Mas não durou para sempre. Teria de pôr mãos à obra, fazendo o único negócio que conhecia. Fazendo-se passar por hóspede dos hotéis luxuosos, ele ficava nas piscinas onde aplicava seu charme em turistas solitárias. O dinheiro que roubava delas ele considerava uma troca justa pela felicidade que lhes proporcionava na cama. Então, uma noite, enquanto bebia champanhe e cantava uma relutante divorciada para que lhe desse a chave do quarto, Bobby viu um conhecido de Miami do outro lado do restaurante. Pediu licença para ir ao banheiro, voltou para o seu hotel, pôs apressadamente tudo que tinha no Mercedes e tratou de sair voando da cidade.

Ficou escondido algumas semanas, e até renunciou às conquistas. Suas reservas de dinheiro encolheram e se reduziram a uma quantia pífia. Apesar de todos os trejeitos e maneirismos afetados, quando Bobby olhava no espelho ele se via como era anos antes – um malandro imprudente e incompetente que competia com trapaceiros de quinta categoria. Essa insegurança crescia muito quando estava quebrado, dominava Bobby violentamente. Uma noite, desesperado e com um certo medo, ele se embebedou num bar e acabou se metendo numa briga com outro freguês. Foi a melhor coisa que podia acontecer. Aquela disputa de bar foi observada pela pessoa certa. Determinou o curso que ele seguia agora. E o resultado já era visível. Se tudo funcionasse do jeito que ele planejara, faria uma fortuna. Teria todo o dinheiro que o Bobby Trimble que era agora merecia. Não voltaria a ser o perdedor que fora antes. No entanto – e esse era um “no entanto” gigantesco -, seu sucesso dependia da parceira. Como havia estabelecido antes, das mulheres não se podia confiar que fossem qualquer outra coisa senão mulheres. Ele esvaziou o copo e levantou a mão para o atendente do bar.

  • Preciso de mais uma dose.

Mas o barman estava entretido com a televisão. A imagem era cheia de chuvisco, mas, mesmo de onde estava sentado, Bobby conseguia ver um cara falando para os microfones apontados para ele. Não era alguém que Bobby conhecia. Só sabia que o homem era antipático e muito sério. Só tinha pose, como os assistentes sociais que costumavam xeretar a casa de Bobby quando ele era pequeno, fazendo perguntas pessoais sobre ele e sua família, invadindo sua vida particular. O homem na televisão era um cara tranquilo, mesmo com uma dúzia de repórteres se atropelando para chegar perto dele.

  • O corpo foi encontrado esta noite – dizia ele -, logo depois das seis horas. Foi identificado positivamente.
  • O senhor tem...
  • E a arma?
  • Há algum suspeito?
  • Sr. Smilow, pode nos dizer...

Bobby perdeu o interesse, e disse mais alto:

  • Quero uma bebida aqui.
  • Já ouvi – respondeu o barman, invocado.
  • O serviço aqui deixa a desejar...

A reclamação morreu nos lábios de Bobby quando a imagem na tela da televisão mudou do cara de olhos frios para um rosto que Bobby reconheceu e que conhecia bem. Lute Pettijohn. Ele se esforçou para ouvir cada palavra.

  • Não havia sinal de arrombamento na suíte do sr. Pettijohn. Roubo foi descartado como motivo. Neste momento não temos nenhum suspeito.

A reportagem especial ao vivo terminou e voltaram a apresentar o noticiário das onze horas nos estúdios. Mais uma vez confiante, com um sorriso de orelha a orelha, Bobby ergueu seu novo drinque num brinde silencioso à parceira. Evidentemente, ela subira no seu conceito.

  • Isso é tudo que tenho para dizer por enquanto.

Smilow se afastou dos microfones, mas descobriu que havia outros atrás dele.

  • com licença – disse ele, abrindo caminho pelo meio da turba da mídia.

Ele ignorou as perguntas aos gritos e continuou abrindo caminho entre os repórteres até eles entenderem que não iam conseguir arrancar mais nada dele e se dispersarem. Smilow fingia detestar a atenção da mídia, mas a verdade era que gostava de entrevistas coletivas ao vivo como aquela. Não por causa das luzes e das câmeras, apesar de saber que parecia ameaçador nas fotos. Nem mesmo pela atenção e pela publicidade que resultava disso. Seu emprego estava garantido e ele não precisava de aprovação pública para mantê-lo. Ele gostava mesmo era da sensação de poder gerada pelo fato de estar sendo filmado e citado.

Mas quando se aproximou da equipe de detetives reunida perto da recepção no saguão do hotel, ele resmungou:

  • Ainda bem que terminou. Agora, o que vocês têm para mim?

Os outros balançaram a cabeça concordando com o sumário de Mike Collins.

Smilow tinha calculado seu retorno da casa dos Pettijohn para o Charles Towne Plaza de modo a coincidir com o noticiário das onze horas. E como previra, todas as emissoras locais, assim como as outras de lugares distantes, como Savannah e Charlotte, tinham montado uma transmissão ao vivo no saguão do hotel, onde ele revelou os fatos rudimentares para os repórteres e espectadores em casa. Não dourou a pílula. Primeiro porque só conhecia mesmo os fatos rudimentares. Pelo menos naquela vez ele não estava se esquivando ao se recusar a dar-lhes mais informação. Estava tão aflito quanto a mídia para obter informações. Por isso, o lacónico sumário do sucesso dos detetives só fez desanimá-lo.

  • O que quer dizer zero?
  • Exatamente isso – Mike Collins era um veterano. Não se intimidava tanto com Smilow como os outros, por isso havia um acordo tácito de que seria sempre o porta-voz dos detetives. Não temos nada até agora. Nós...
  • Isso é impossível, detetive.

Collins estava com olheiras escuras embaixo dos olhos fundos, evidência da dureza que tinha sido sua noite. Ele se virou para Steffi Mundell, que o tinha interrompido, e olhou para ela como se quisesse estrangulá-la, depois a ignorou educadamente e continuou seu relatório verbal para Smilow:

  • Como eu estava dizendo, esprememos todas essas pessoas – os hóspedes e os empregados ainda estavam detidos no salão de baile do hotel. - Primeiro eles até gostaram, sabe como é. Era emocionante. Como num filme. Mas tudo deixou de ser novidade algumas horas atrás. Eles deram as mesmas respostas para as mesmas perguntas inúmeras vezes, por isso agora estão ficando irritados. Não estamos conseguindo arrancar grande coisa deles, só reclamações e pedidos para sair daqui.
  • Acho difícil acreditar...
  • Quem a convidou? - Collins atacou Steffi quando ela o interrompeu de novo.
  • Que de todas essas pessoas – disse ela, ignorando Mike – ninguém tenha visto nada.

Smilow levantou a mão para impedir uma discussão acalorada entre seu desanimado detetive e a promotora sem papas na língua.

  • Chega, vocês dois! Vocês estão todos cansados. Steffi, não vejo motivo para você continuar por aqui. Quando tivermos alguma coisa avisamos para você.
  • Estou acreditando mesmo – ela cruzou os braços e olhou para Collins como se o desafiasse. - Eu fico.

Smilow hesitou um pouco, mas deu ordem para os hóspedes do hotel voltarem para seus quartos. Então, reuniu seus detetives em uma das salas de reunião no mezanino e pediu pizzas para todos. Enquanto dizimavam as pizzas, ele repassou as poucas informações que tinham conseguido depois de horas de exaustivos interrogatórios.

  • Pettijohn fez uma massagem no spa? - perguntou ele, relendo as anotações.
  • Fez – um dos detetives engoliu um pedaço enorme de pizza. Logo depois que chegou aqui.
  • Vocês interrogaram o massagista? ,- O homem fez que sim com a cabeça.
  • Disse que Pettijohn pediu a massagem de luxo, de noventa minutos. Pettijohn tomou uma chuveirada no banheiro do spa, por isso o banheiro da suíte estava seco.
  • Esse cara era suspeito?
  • Não vi nada suspeito nele – disse o detetive com a boca cheia de novo. - Contratado de um spa na Califórnia. Novo em Charleston. Viu Pettijohn pela primeira vez hoje.

Smilowleu a lista, feita às pressas, dos hóspedes registrados. Todos pareciam acima de qualquer suspeita. Todos afirmaram que não conheciam Lute Pettijohn, mas alguns o tinham visto na cobertura da mídia na inauguração do Charles Towne Plaza alguns meses antes. A maioria era gente comum, de férias com a família. Três casais em lua-de-mel. Alguns outros fingiam ser recém-casados, mas era óbvio que eram amantes secretos passando um fim de semana clandestino numa cidade romântica. Esses responderam às perguntas dos detetives com nervosismo, mas não por serem culpados de um assassinato, apenas de adultério. Todos os quartos do quarto andar, menos três, estavam ocupados por um grupo de professoras da Flórida. Duas suítes acomodavam amontoados meninos de um time de basquete que tinham terminado o segundo grau na primavera e estavam curtindo aquele programa juntos antes de partir cada um para a sua respectiva universidade. O único crime que tinham cometido era o consumo de bebida alcoólica, sendo menores de idade. Para desespero dos colegas, um deles entregou voluntariamente um porta-moedas com maconha dentro para o detetive que o interrogou. O consenso geral era o de que, se Lute Pettijohn não tivesse sido assassinado naquela tarde, teria sido um sábado de verão bem rotineiro.

  • Comprido, quente e grudento – observou um dos detetives, dando um bocejo enorme.
  • Você está falando do dia ou do meu pau? - brincou outro.
  • Bem que você queria...
  • E o vídeo da segurança? - perguntou Smilow, interrompendo a brincadeira. Os detetives debocharam do que era obviamente uma piada entre eles. - O quê? - quis saber Smilow.
  • Quer ver o vídeo? - perguntou Collins.
  • Tem alguma coisa para ver?

Depois de outra rodada de risos, Collins sugeriu que Smilow desse uma espiada, e até convidou Steffi para assistir ao vídeo com eles.

  • Talvez você possa aprender alguma coisa – disse ele para ela. Smilow e Steffi seguiram os detetives através do largo saguão do mezanino e entraram numa das menores salas de reunião, onde um aparelho de vídeo já estava ligado e pronto para funcionar com um monitor colorido.

Com uma ostentação desnecessária, Collins apresentou o vídeo:

  • Primeiro, o cara que monitorava as câmeras da segurança ontem à tarde me disse que não estava encontrando o vídeo da câmera daquele andar.

Smilow sabia, por experiência própria, que câmeras de observação em geral eram acopladas a gravadores de tempo que exibiam uma tela a cada cinco ou dez segundos, dependendo da vontade do usuário. Por isso os filmes pareciam pular quando eram rodados de novo. Costumavam gravar vários dias antes de rebobiná-los automaticamente.

  • O que a fita estava fazendo fora da máquina? As fitas em geral não ficam nos gravadores e são recicladas se ninguém precisar revê-las?
  • Essa foi a primeira coisa que me fez achar que ele estava mentindo – disse Collins. - Por isso, fiquei no pé dele. Finalmente ele cuspiu este vídeo. Estão prontos?

Smilow assentiu com a cabeça, e Collins apertou o play no aparelho de vídeo. Mesmo que não tivessem imagem alguma, a trilha sonora era indiscutivelmente a de um filme pornográfico. Os suspiros e gemidos eram pano de fundo de uma imagem granulada de um casal fazendo sexo.

  • Essa cena dura cerca de quinze minutos – explicou Collins. Depois do clímax, muda para duas mulheres numa banheira, uma bolinando outra. Depois vem uma cena básica de dominação com...
  • Já entendi – disse Smilow, aborrecido. - Desligue isso – ele ignorou as vaias e assobios dos outros homens na sala. - Sinto muito, Steffi.
  • Não precisa. A piadinha do detetive Collins às minhas custas simplesmente corrobora a minha teoria de que a expressão “macho adulto” é uma contradição.

Os outros riram, mas Collins pigarreou, sem se deixar abater pela crítica.

  • A questão é a seguinte – disse ele. - Pettijohn se gabava da segurança de última geração, mas tudo não passava de bazófia. As câmeras nos andares dos hóspedes são de mentira. São falsas.
  • O quê? - perguntou Stefi.
  • A única câmera que funciona em todo o complexo fica no departamento de contabilidade. Pettijohn não queria que ninguém roubasse dinheiro dele, mas creio que não se importava se os hóspedes fossem assaltados ou liquidados. O feitiço se virou contra o feiticeiro, não foi?
  • Por que o rapaz mentiu? - perguntou Smilow.
  • Foi o que disseram para ele fazer. O próprio Pettijohn. Não estamos falando de um cientista de foguetes, por isso ele não se entregou, mesmo depois de garantirmos que Pettijohn estava morto e que a única coisa que tinha de temer era mentir para nós. Finalmente ele cedeu. E verificamos tudo. As câmeras são falsas.
  • Quantas pessoas sabem disso?
  • Acho que são poucas.
  • Verifique. Comece com as pessoas que exercem funções administrativas.
  • Está bom.

Smilow dirigiu-se ao grupo como um todo.

  • A primeira coisa que vamos fazer amanhã cedo é verificar os inimigos de Pettijohn. Faremos uma lista...
  • Ou podemos poupar trabalho e simplesmente usar a lista telefónica – gracejou um dos homens. - Todo mundo que conheço ficará feliz com a morte daquele filho-da-mãe.

Smilow olhou zangado para ele.

  • Oh, perdão – resmungou ele, e o sorriso desapareceu. - Esqueci que vocês eram parentes.
  • Não éramos parentes. Ele foi casado com a minha irmã. Por um tempo. Só isso. Eu provavelmente gostava menos dele do que qualquer outra pessoa.

Steffi inclinou o corpo para a frente.

  • Não foi você que acabou com ele, não é, Smilow? Todos riram, mas o conciso “não” dito por Smilow, como se levasse a pergunta dela a sério, acabou com o riso com a mesma rapidez com que tinha começado.
  • com licença, sr. Smilow?

Smitty estava à porta aberta. Smilow olhou para o seu relógio de pulso. Já passava da meia-noite.

  • Pensei que você estivesse aflito para ir para casa – disse ele para o engraxate.
  • Só disseram que podíamos ir para casa agora, sr. Smilow.
  • Ah, é – ele não tinha pensado nos agregados do hotel, como Smitty, que seriam detidos horas e horas para serem interrogados, apesar de ter dado a ordem ele mesmo. - Sinto muito por isso.
  • Não tem importância, sr. Smilow. Eu estava só pensando se alguém contou para vocês sobre as pessoas que foram levadas ontem para o hospital.
  • Hospital?

A letra E maiúscula no painel de instrumentos do carro dela brilhou com uma luz vermelha.

Ela gemeu frustrada. A última coisa que queria fazer era parar para abastecer ela mesma o carro, mas sabia que, quando o marcador indicava vazio, costumava ser perigosamente correto. Os postos de gasolina eram raros naquela estrada rural, por isso, quando viu ums poucos quilómetros depois de avistar a luz vermelha, ela parou e saiu do carro cheia de preguiça. Normalmente, quando ela mesma punha gasolina no carro, pagava com cartão de crédito na própria bomba. Mas a tecnologia não tinha chegado àquele lugar onde Judas tinha perdido as botas. Por questão de princípio, não gostava de ter de pagar adiantado. Por isso, ela tirou a mangueira da bomba e abaixou a manivela. Desenroscou a tampa do tanque de gasolina do carro e pôs na capota, enfiou o bico da mangueira no buraco e acenou para o atendente na cabine, indicando com um gesto para ele ligar a bomba. Ele estava assistindo a uma luta na sua televisão em preto e branco. Ela mal conseguia vê-lo atrás das placas de cerveja em néon e dos cartazes pregados na janela anunciando eventos que já tinham acontecido e animais de estimação perdidos. Ele não a viu, ou então estava pondo em prática o próprio princípio de não ligar a bomba se o freguês não pagasse adiantado, especialmente depois de escurecer.

  • Droga – acabou ela cedendo, entrou no escritório e pôs uma nota na bandeja suja sob uma janela ainda mais suja.
  • Vinte dólares? Mais alguma coisa? - perguntou ele, mantendo os olhos grudados na televisão.
  • Não, obrigada.

A gasolina saía gota a gota, mas a bomba finalmente desligou. Ela tirou a mangueira do tanque e pendurou-a de novo na bomba. Quando ia pegar a tampa do tanque na capota, outro carro saiu da estrada e entrou no posto. Ela ficou na linha dos faróis e semicerrou os olhos, ofuscada. O carro parou lentamente, apenas a centímetros do pára-choque traseiro do carro dela. O motorista apagou os faróis mas não desligou o motor antes de abrir a porta e descer. Ela ficou boquiaberta e muda quando o viu. Mas não se mexeu, nem disse nada. Não reclamou de ele ter ido atrás dela. Nem exigiu saber por que tinha feito isso. Tampouco insistiu para ele ir embora e deixá-la em paz. Ela não fez nada. Só ficou olhando para ele. O cabelo dele parecia mais escuro agora que o sol tinha desaparecido, não tão dourado como ficava de dia. Ela sabia que os olhos dele eram cinza-azulados, apesar de estarem escondidos da luz. Uma sobrancelha era um pouco mais alta e mais arqueada que a outra, mas as feições assimétricas só lhe aumentavam o charme. O queixo tinha uma reentrância rasa e vertical. A sombra dele era comprida porque era bem alto. O peso jamais seria um problema. Ele não tinha estrutura para carregar quilos a mais. Por vários segundos eles ficaram olhando um para o outro por cima do capo do carro dele, e então ele saiu de trás da porta aberta. Ela seguiu com o olhar os passos dele, vindo na direção dela. A determinação que via no maxilar dele dizia muita coisa sobre o seu caráter. Ele não desistia com facilidade e não tinha medo de correr atrás de alguma coisa que queria. Ele só parou quando estava bem na frente dela. Então segurou o rosto dela com as duas mãos, levantou-o um pouco, abaixou o seu rosto e beijou-a. E ela pensou: Oh, meu Deus! Os lábios dele eram carnudos e sensuais e provocavam o que sugeriam. O beijo era quente, doce e ávido. Ele aplicava a pressão perfeita, sem deixar dúvida de que ela estava sendo firmemente beijada, mas sem fazer com que se sentisse dominada ou ameaçada. Era um beijo tão perfeito que os lábios dela se abriram naturalmente. Quando a língua dele encostou na dela, seu coração se expandiu e ela abraçou a cintura dele. Ele abaixou as mãos e ficou com um braço nos ombros dela, a outra mão abaixo da cintura dela, puxando-a para que seus corpos ficassem colados um no outro. Ele inclinou a cabeça. Ela inclinou a dela para outro lado. O beijo ficou mais profundo, a língua dele mais agressiva. Quanto mais tempo durava o beijo, mais ardente ficava. Então, de repente, ele se afastou. Estava ofegante. As mãos voltaram para a posição inicial, segurando o rosto dela.

  • Era isso que eu precisava saber. Não era só eu.

Ela balançou a cabeça até onde as mãos dele permitiam.

  • Não – disse ela, surpresa com a rouquidão da própria voz. - Não era só você.
  • Quer me seguir?

O protesto morreu nos lábios dela antes de conseguir reunir forças para pronunciá-lo.

  • Tenho uma casa de campo perto daqui. Quatro, cinco quilómetros.
  • Eu...

-Não diga que não-a voz dele, num sussurro, estava entrecortada, cheia de paixão. Ele apertou mais o rosto dela. - Não diga que não.

Ela examinou os olhos dele, depois fez um movimento leve e positivo com a cabeça. Ele a soltou imediatamente, deu meia-volta e voltou para o carro com passos largos. Ela deixou cair a tampa do tanque na pressa de atarraxá-la. Finalmente conseguiu prendê-la, deu a volta no carro e entrou. Ela deu partida no motor e ele encostou seu carro no dela. Ele olhava para ela como se quisesse se certificar de que ela estava tão decidida quanto ele, que não ia desistir e desaparecer na primeira oportunidade. Ela sabia que era isso que devia fazer. Mas sabia com a mesma certeza que não faria. Agora não. Hammond não respirou com tranquilidade até o carro dela parar completamente ao lado do dele. Ele desceu do seu e foi abrir a porta para ela.

  • Cuidado onde pisa, está escuro.

Ele segurou a mão dela e levou-a por um caminho de conchas quebradas até a cabana. Uma pequena luminária na entrada oferecia exatamente a luz necessária para ele destrancar o cadeado com a chave que tinha trazido de Charleston. Abriu a porta e levou-a para dentro. Uma senhora que morava ali perto fazia a faxina na casa sempre que ele precisava. Tinha combinado que ela iria mais cedo aquele dia. Em vez de cheirar a mofo como uma casa vazia que não era muito usada, a cabana estava com cheiro de limpa, como lençóis recém-lavados. A pedido de Hammond, ela também tinha deixado o condicionador de ar ligado, por isso a temperatura estava fresca e bem agradável. Ele fechou a porta da frente, separando-os da luz do pórtico e fazendo com que mergulhassem na mais completa escuridão. Ele tinha intenção de ser um bom anfitrião e um cavalheiro, de mostrar a casa para ela, de oferecer-lhe algo para beber, de contar mais a seu respeito e de dar-lhe tempo para se acostumar com o fato de estar sozinha com ele poucas horas depois de terem se conhecido. Em vez disso, ele a agarrou. Ela correspondeu ao abraço dele e queria seu beijo também. Sua boca reagiu com paixão às investidas da língua dele, que acariciava, experimentava e saboreava até ter de parar para recuperar o fôlego. Ele abaixou o rosto e encostou no pescoço dela, enquanto ela punha as mãos na cabeça dele e enfiava os dedos no seu cabelo. Ele foi beijando o pescoço dela até a orelha.

  • Isso é loucura – murmurou ele.
  • Total.
  • Está com medo?
  • Estou.
  • De mim? -Não.
  • Mas devia estar.
  • Eu sei, mas não estou.

Os lábios dele rasparam nos dela num beijo que não chegou a ser um beijo.

  • Está com medo da situação?
  • Apavorada – disse ela quando sua boca se derreteu na dele. Finalmente o beijo terminou, e ele disse:
  • Isso é temerário, imprudente, e...
  • Completamente irresponsável.
  • Mas não consigo evitar.
  • Nem eu.
  • Eu quero muito...
  • Eu também quero você – suspirou ela quando as mãos dele deslizaram por baixo da camiseta e cobriram seus seios.

Qualquer receio que ele pudesse ter do desejo ser unilateral desapareceu quando ela deixou a cabeça cair para trás, oferecendo o pescoço para os lábios dele enquanto era acariciada. Ficou sem ar e parou de respirar quando ele se atrapalhou com o fecho frontal do sutiã, mas deu um suave gemido de prazer quando as pontas dos dedos dele encostaram na sua pele nua. As mãos dela se moviam nas costas dele. Ele sentiu os dez dedos dela apertando os músculos e explorando as costelas e a espinha. As palmas das mãos dela rasparam no cinto dele, desceram para as nádegas e o puxaram para dentro dela. Eles se beijaram mais uma vez, um beijo longo, profundo e provocante. Então ele pegou a mão dela outra vez e a puxou atrás dele enquanto tateava no escuro para chegar ao quarto. A casa não era nada luxuosa, mas ele não tinha sacrificado todos os confortos. Num quarto pequeno demais, ele tinha enfiado uma enorme cama de casal. Foi em cima dela que os dois caíram, unidos bem no centro e entrelaçados um no outro com o desejo cego e irracional dos novos amantes. Ela estava deitada de lado, de costas para ele. Hammond pensava em alguma coisa adequada para dizer, mas descartava as possibilidades antes de estarem formadas. Tudo que vinha à cabeça parecia falso, piegas, cliché ou uma combinação dos três. Ele até pensou em contar-lhe a verdade. Meu Deus, isso foi incrível, , Você é incrível. Nunca senti isso em toda a minha vida. Não quero que esta noite termine nunca. Mas ele sabia que ela não ia acreditar em nada disso, por isso não disse nada. O longo e constrangedor silêncio ficou ainda mais longo mais constrangedor. Ele acabou rolando de lado e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Ela reagiu à luz, puxando os joelhos para mais perto do peito, ficando mais distante e intocável.

Desanimado, Hammond sentou-se na cama. Sua camisa estava amassada e desabotoada, o zíper da calça aberto, mas ainda vestia as duas peças. Ele se levantou e tirou tudo, menos a cueca. Quando olhou de novo para a cama, viu que ela estava de costas e olhando para ele, com os olhos arregalados e apreensivos.

  • Este momento é constrangedor. Podemos dizer isso, não podemos? Hammond sentou-se com cuidado na beira da cama.
  • Podemos, sim.

Ela umedeceu os lábios, apertou-os para dentro, desviou os olhos de Hammond e balançou a cabeça.

  • Você está pensando numa forma educada de livrar-se de mim agora?
  • O quê? - perguntou ele baixinho. - Não. Não – ele estendeu a mão para acariciar o cabelo dela, mas deixou-a cair antes de tocá-la. Eu estava pensando numa maneira de convencê-la a passar a noite comigo sem parecer um completo idiota.

Ele percebeu que ela gostara daquilo. Os olhos dela encontraram os dele novamente. Ela sorriu com timidez. Ainda afogueada por causa do sexo, com os lábios um pouco inchados dos beijos, o cabelo despenteado em volta do rosto, roupas mais desarrumadas do que as dele, ela parecia incrivelmente sedutora. Seus seios, livres do sutiã, pousavam macios contra o peito por baixo da camiseta. Mas os mamilos eram bem visíveis sob o tecido. Ele começou a ter uma nova ereção.

  • Estou toda desgrenhada – preocupada com a aparência, ela puxou a saia para cobrir as coxas.

Os dois ignoraram a calcinha largada em cima da colcha no pé da cama.

  • Posso usar seu banheiro?
  • É naquela porta – ele se levantou para sair do quarto, para dar mais privacidade para ela. - vou pegar alguma coisa para beber. Você está com fome?
  • Depois de comer todas aquelas porcarias na feira? 65

Ele retribuiu o sorriso dela.

  • Que tal água? Suco? Chá? Um refrigerante? Cerveja?
  • Água está bom.

Ele apontou com o queixo para a porta do banheiro.

  • Se precisar de qualquer coisa, é só pedir.
  • Obrigada.

Ela parecia hesitar em sair da cama enquanto ele continuava no quarto, por isso ele sorriu de novo para ela e deixou-a sozinha. Ainda bem que a faxineira tinha abastecido a geladeira com bebidas engarrafadas, inclusive água. Na cozinha, ele fez um inventário dos suprimentos. Meia dúzia de ovos. Meio quilo de bacon. Pãezinhos de minuto ingleses. Café. Creme? Não. Torceu para que ela gostasse de café puro. Suco de laranja? Sim. Uma lata de 200ml de suco de laranja concentrado no congelador. Ele raramente tomava café da manhã, a não ser em reuniões de trabalho. Mas no campo, onde as manhãs de fim de semana eram mais longas e preguiçosas, gostava de saborear um farto café da manhã bem tarde. Ele cozinhava bem, especialmente algo tão básico quanto ovos com bacon. Talvez pudessem fazer juntos o café da manhã, dividindo as tarefas, esbarrando um no outro durante os preparativos. Dando risadas. Beijos. Podiam levar seus pratos para a varanda e comer lá. Ele sorriu de pensar na manhã seguinte.

  • Esta manhã – corrigiu ele, verificando que horas eram e descobrindo que já passava muito da meia-noite.

O dia anterior tinha sido péssimo. Havia saído de Charleston aborrecido e com raiva, frustrado com muitas coisas. Nada na vida dele tinha dado certo. Nunca, nem em um milhão de anos, teria adivinhado que um dia tão ruim terminaria na cama com uma mulher que poucas horas antes ele nem sabia que existia. E tampouco que seria uma experiência tão marcante. Ele ainda estava maravilhado com os caprichos do destino quando ouviu a torneira do banheiro fechar. Controlou-se para esperar mais dois minutos, sem querer reaparecer rápido demais ou numa hora inoportuna. Então pegou duas garrafas de água e voltou para o quarto.

  • Aliás – disse ele, abrindo a porta com o pé descalço -, acho que já é hora de nos apresen...

Ele parou de falar quando ela se virou rapidamente da penteadeira, com o telefone na mão. Ela desligou na mesma hora e gaguejou. Espero que não se importe.

Na verdade ele se importava, sim. E se importava muito. Não de ela ter usado seu telefone sem antes pedir. Mas de ter alguém na vida que era suficientemente importante para ela ter de ligar de madrugada, minutos depois de fazer amor com ele. Hammond ficou espantado ao perceber que aquilo tinha tanta importância para ele. Tinha brincado na cozinha, fantasiando o café da manhã com ela, contando os minutos para poder voltar no momento adequado. Agora ele estava lá parado, com cara de bobo e uma semi-ereção espetando a cueca. Tudo isso enquanto ela dava um telefonema para outra pessoa. Ele deixou as garrafas de água na mesa-de-cabeceira. Ele se sentia burro, ridículo, sentimentos estranhos para Hammond Cross. Em geral muito confiante e dominando qualquer situação, a sensação naquele momento era da mais completa estupidez, e ele detestou isso.

  • Você quer privacidade? - perguntou secamente.
  • Não, tudo bem – ela pôs o fone no lugar. - Não consegui completar a ligação.
  • Sinto muito.
  • Não era importante – ela cruzou os braços e depois, nervosa, deixou-os cair ao lado do corpo.

Se não era importante, então por que diabos estava tentando telefonar para alguém a essa hora da noite?, ele queria perguntar, mas não perguntou.

  • Tudo bem se eu vestir isso?
  • O quê? - perguntou ele distraído.

Ela passou a mão pela frente da velha camiseta desbotada. Ele reconheceu a camiseta de uma festa da fraternidade dos tempos de faculdade. Chegava à metade das coxas dela.

  • Ah, claro, tudo bem.
  • Encontrei-a na cómoda no banheiro. Não estava bisbilhotando. Só...
  • Não se preocupe – o tom lacónico traduzia um discurso inteiro. Ela cerrou os punhos ao lado do corpo e depois abriu e balançou os dedos.
  • Olha, talvez seja melhor eu ir embora agora. Nós dois ficamos empolgados demais. Acho que a volta na roda-gigante nos subiu à cabeça – a tentativa de fazer graça caiu no vazio. - De qualquer maneira, foi... - interrompeu ela a frase e olhou para a cama.

Ela ficou com o olhar parado provavelmente mais tempo do que pretendia. Os lençóis amarfanhados eram uma lembrança comovente do que tinha acontecido ali, do quanto tinha sido envolvente e gratificante. Palavras sussurradas sem censura pareciam ecoar de volta para eles naquele momento. Quando estava no banheiro, ela havia se lavado. Hammond sentia o cheiro de água e sabão na pele dela. Mas ele não tinha se lavado. Cheirava a sexo. Tinha o cheiro dela.

-vou vestir a minha roupa e ir embora – disse ela, apressada, tentando passar por ele, mas Hammond estendeu o braço e segurou-a pela cintura. Ela parou, mas não virou de frente para ele. Ficou olhando para a porta.

  • Você pode pensar o que quiser de mim, mas quero que saiba que... que eu não costumo fazer isso, nem de vez em quando.
  • Não importa – disse ele suavemente.

Então ela olhou para ele, virando apenas a cabeça.

  • Importa para mim. É importante para mim que você saiba disso. Movendo-se com cuidado, ele pôs as mãos nos ombros dela e fez

com que virasse de frente para ele.

  • Você acha, honestamente, que foi só uma volta na roda-gigante que nos trouxe até aqui? Como se quisesse evitar o tremor no lábio inferior, ela o mordeu e balançou a cabeça, indicando que não.

Ele a abraçou e puxou-a mais para perto. Só isso. E ficou assim um longo tempo, com o rosto apoiado na cabeça dela, os dedos dos pés tocando nos dela, compartilhando o calor dos corpos. Descalça, engolida pela camiseta dele, ela parecia menor e mais delicada do que antes. Ele se sentia viril e protetor quando a abraçava daquele jeito. Na verdade, desde que a conhecera, tinha se sentido como um maldito Conan.

Deu uma risadinha quando pensou nisso. Ela levantou a cabeça do peito dele.

  • O que foi?
  • Nada. Só estava pensando que você me faz sentir muito bem então o sorriso dele foi substituído pelo cenho franzido de preocupação. - E você? Você está bem?

Ela inclinou a cabeça, confusa.

  • Estou.
  • Quero dizer... em relação a... você sabe.
  • Oh – ela desviou o olhar e ficou encarando o pomo-de-adão dele. - Sim. Obrigada por ser responsável.

Ele mantinha uma caixa de camisinhas na gaveta da mesa-de-cabeceira. Mas, de todas, aquela tinha sido a mais difícil de abrir e de colocar. Envergonhado com sua briga desajeitada com o diabo da coisa, num momento em que desejava ser o mais amável, ele resmungou:

  • Na hora H.

Ela o surpreendeu pondo as mãos no peito dele e fazendo carinho de leve.

  • Para mim também – murmurou ela bem baixinho.

O desejo se manifestou num gemido surdo quando ele segurou o queixo dela e inclinou sua cabeça para beijá-la. A paixão reacendeu. Pegou fogo. Ardeu. Mais quente do que antes.

Os sussurros incrementavam a intimidade.

  • Você gosta disso.
  • Gosto.
  • Violento demais? -Não.
  • Eu nem percebi.
  • Nem eu.
  • Sinto muito.
  • Não tem importância.
  • Mas se te machuquei...
  • Você não me machucou. E não vai me machucar.
  • Você se importa se eu... -Não.

-Jesus. Olhe só para você. Isso é lindo. Você já está...

  • Estou.
  • Então...
  • Oh...
  • Molhada.

Perdoe-me, sinto muito. Sente muito? Bem, quero dizer... você... Não se desculpe. Deixe-me tocar em você. Não, deixe que eu toco em você.

Steffi dirigia o carro, e Smilow e ela chegaram ao hospital Roper em tempo recorde.

  • Quantas pessoas eles disseram? - perguntou ela enquanto atravessavam rapidamente o estacionamento da emergência do hospital, dirigindo-se ao prédio.

Steffi tinha perdido os detalhes quando saiu da sala de conferência para pegar o carro. Apanhara Smilow na entrada principal do Charles Towne Plaza.

  • Dezesseis. Sete adultos e nove crianças. Eles pertencem a um coro de igreja de Macon, na Geórgia, que fazia uma turnê. Almoçaram cedo no restaurante do hotel antes de sair para um passeio a pé pelo Centro da cidade. Retornaram duas horas depois, quando as crianças começaram a passar mal.
  • Dor de estômago? Vómitos? Diarreia?
  • Todas as respostas acima.

» -A gente nunca esquece de uma intoxicação alimentar quando se teve uma. Eu tive uma vez. Sopa de creme de cogumelos de uma delicatessen famosa.

  • Rastrearam até um molho de carne marinada que usaram numa pizza que as crianças comeram. Também foi usado na pasta especial.

Quase correndo, eles entraram no pronto-socorro do hospital. Para uma noite de sábado, a sala de espera estava relativamente calma, mas havia alguns pacientes. Um policial uniformizado vigiava um homem algemado. O homem tinha uma toalha de banho ensanguentada enrolada na cabeça como um turbante. Estava de olhos fechados e gemendo, enquanto a mulher dele dava respostas lacónicas para as perguntas padronizadas da enfermeira sobre seu histórico médico. Uma jovem mãe e um jovem pai tentavam em vão acalmar o bebé que chorava. Havia um homem mais velho sentado sozinho, chorando com um lenço no rosto, sem motivo aparente. Uma mulher estava inclinada para a frente, quase dobrada em duas na cadeira, com a cabeça quase encostando no colo. Parecia dormir. Ainda era um pouco cedo para as emergências sérias começarem a chegar. Smilow e Steffi não prestaram atenção nas pessoas da sala de espera e foram diretamente para a mesa de admissão, onde Smilow se apresentou para a enfermeira, mostrou seu distintivo e perguntou se as pessoas transportadas do Charles Towne Plaza ainda estavam na sala de emergência ou se tinham sido levadas para os quartos.

  • Eles ainda estão aqui – disse a enfermeira.
  • Preciso vê-los agora mesmo.
  • Bem, eu... vou procurar o médico. Sentem-se, por favor. Nenhum dos dois sentou. Steffi começou a andar de um lado para outro.
  • O que não entendi foi como seus homens deixaram passar a discrepância. Eles não tinham de verificar o número de hóspedes registrados comparando com o número de pessoas que interrogaram?
  • Dê-lhes uma colher de chá, Steffi. As pessoas se desgarraram aquele tempo todo, depois de terem ficado horas fora do hotel. Estamos falando de centenas de hóspedes registrados, além dos empregados que trocavam de turno. Seria quase impossível obter uma contagem exata.
  • Eu sei, eu sei – disse ela com impaciência. - Mas depois da meianoite? Quando todo mundo deve estar se retirando para os quartos? Eu esperaria que um deles tivesse a ideia de fazer uma nova contagem. Ou será que estavam entretidos demais com o filme deles?
  • Estavam de mãos cheias – disse ele meio irritado.
  • É, tocando punheta.

Smilow era o primeiro a criticar se um investigador criminal fizesse besteira. Mas se a crítica partisse de alguém de fora, isso era outra história. Os lábios dele ficaram finos e esticados de raiva.

  • Olha, peço-lhes desculpas – disse Steffi num tom de trégua. Não queria ter dito isso.
  • É, mas disse. Deixa que eu me preocupo com a coleta de provas, está bem? Steffi sabia quando era preciso recuar. Não seria nada bom deixar Smilow contra ela. Apesar da nova orientação da viúva, ela pretendia procurar o procurador municipal de justiça, Monroe Mason, e pedir para ser nomeada promotora-chefe daquele caso. E quando conseguisse, ia precisar do apoio do departamento de polícia. Especificamente de Smilow.

Ela deu a Smilow alguns segundos para se acalmar.

  • Acho que essas pessoas com intoxicação alimentar também não vão saber nada. Elas foram trazidas para o hospital antes da hora estimada do assassinato de Pettijohn.

-Algumas só apresentaram os sintomas mais tarde – argumentou ele. - O gerente do hotel confessou que tirou algumas delas às escondidas do hotel por volta das oito horas da noite.

  • Por que ele não contou isso para você?
  • Porque seria propaganda negativa. Ele parecia mais preocupado com a intoxicação alimentar e com o que representa para sua cozinha nova em folha do que com a descoberta do corpo de Pettijohn na suíte da cobertura.
  • Vocês estão me procurando?

Steffi e Smilow viraram para trás. O médico era tão jovem que ainda tinha acne, mas os olhos atrás dos óculos de armação metálica pareciam velhos, cansados e privados de sono. O colete verde e o jaleco branco estavam amassados e com manchas de suor. O crachá de identificação com foto dizia RODNEY C. ARNOLD.

Smilow apresentou novamente seu distintivo.

  • Preciso fazer umas perguntas para as pessoas do Charles Towne Plaza que foram trazidas para cá com intoxicação alimentar.
  • Perguntas sobre o quê?
  • Elas podem ser testemunhas de um assassinato que aconteceu esta tarde no hotel.
  • No hotel novo? Estão brincando.
  • Temo que não.
  • Esta tarde? Quer dizer, ontem?

-Até o médico-legista poder dar uma hora mais definida, a nossa estimativa é que a vítima morreu entre quatro e seis horas da tarde.

O residente deu um sorriso triste.

  • Detetive, a essa hora, ontem, esse pessoal estava sofrendo de diarreia aguda, ou vomitando as vísceras, ou as duas coisas ao mesmo tempo. A única coisa que os olhos dessas pessoas testemunharam foi o fundo da comadre. Quando tinham sorte, e conseguiam pegar a comadre em tempo, e eu soube que algumas não tiveram essa sorte.
  • Compreendo que elas estavam passando muito mal...
  • Estavam não. Estão.

Steffi se adiantou e se identificou.

  • Dr. Arnold, acho que o senhor não está entendendo que é muito importante interrogar essas pessoas. Algumas ocupavam quartos no quinto andar, onde ocorreu o crime. Uma delas pode ter uma informação vital e nem saber disso. A única maneira de descobrir é falando com elas.
  • Tudo bem – disse ele, dando de ombros. - Apresentem-se no balcão de admissões amanhã. Tenho certeza de que algumas ainda estarão aqui, mas a maioria terá ido para os quartos.

Ele deu meia-volta e já ia embora.

  • Espere um minuto – disse Steffi. - Precisamos falar com elas agora.
  • Agora? - O dr. Arnold olhou para os dois com expressão de incredulidade. - Sinto muito. Não pode ser. Alguns ainda estão sofrendo muito com problemas gastrintestinais agudos. Agudos. Sofrendo muito – repetiu ele, separando as palavras para dar mais ênfase.

“Estão sendo hidratados com soro na veia. Os que tiveram a sorte de superar a crise estão descansando e, depois da provação que passaram por causa dos intestinos, eles bem que precisam. Voltem amanhã. Possivelmente no início da tarde. De preferência à noite. Até lá...

  • É tempo demais.
  • Mas tem de ser assim – afirmou o médico. - Porque ninguém vai conversar com nenhum deles esta noite. Agora, se me derem licença... Os pacientes estio me esperando.

Dito isso, ele deu meia-volta e passou pelas portas que separavam a entrada do hospital das salas de exames.

  • Droga – disse Steffi. - Vai deixá-lo se safar assim?
  • Você quer que eu invada a sala de emergência e comece a perturbar pacientes que estão sofrendo... et cetera? Por falar em propaganda negativa... - ele retornou ao balcão da enfermeira e pediu para ela dar seu cartão para o dr. Arnold. - Se qualquer um dos pacientes começar a melhorar, diga para ele me ligar. A qualquer hora.
  • Não acredito que o doutor esteja disposto a ajudar – observou Steffi quando Smilow voltou para o lado dela.
  • Eu também não. Ele parece estar gostando de ser o ditador do seu pequeno reino.

Steffi olhou para ele com um sorriso malicioso.

  • E você pode se identificar com isso.
  • E você, não? - devolveu ele. - Pensa que não sei por que você quer tanto este caso? Smilow era um excelente detetive por causa da sua sensibilidade. Mas às vezes essa percepção o tornava uma companhia desagradável.
  • Temos cinco minutos? Preciso de cafeína – ela foi até uma máquina e enfiou moedas nela. - Quer uma coca?
  • Não, obrigado.

Ela tirou a tampinha da lata de refrigerante.

  • Bem, encare isso da seguinte forma. Se esse pessoal de Macon está tão doente assim, você provavelmente não ia mesmo conseguir arrancar-lhes nada útil ou confiável deles. Sofrendo de intoxicação alimentar, como podiam observar alguma coisa ontem à tarde? Não fará mal nenhum voltar aqui amanhã e conversar com eles, mas acho que acabará sendo um beco sem saída para você.
  • Pode ser – ele se sentou numa cadeira vaga, apoiou os cotovelos nos joelhos e pôs os dois dedos indicadores esticados sobre os lábios. Steffi sentou-se na cadeira ao lado da dele. Ele recusou um gole da bebida dela com um gesto. - Uma das regras da investigação criminal é que alguém viu alguma coisa.
  • Você acha que as pessoas estão sonegando informação?
  • Não. Elas simplesmente não sabem que o que viram é importante.

Ambos ficaram calados algum tempo, perdidos em seus pensamentos. Finalmente, Steffi perguntou:

  • O que você acha que aconteceu naquela suíte da cobertura?
  • Procuro não elaborar teoria nenhuma. Pelo menos não tão cedo. Se fizesse isso, poderia desfigurar a investigação. Estaria procurando pistas para comprovar a minha ideia, ignorando as pistas que levam à solução verdadeira.
  • Pensei que todos os policiais se apoiavam em palpites.
  • Palpites, sim. Mas os palpites se baseiam em pistas. Ficam mais fortes ou mais fracos à medida que você vai avançando, dependendo das provas que você encontra, que podem confirmar ou destruir o seu palpite – ele se recostou na cadeira e deu um profundo suspiro, deixando atipicamente seu cansaço transparecer. - Tudo que realmente tenho neste momento é um homem que muita gente gostaria de ver morto.
  • Inclusive você.

Os olhos dele ficaram frios.

  • Estaria mentindo se dissesse que não. Eu detestava aquele filho-da-mãe e não escondia isso de ninguém. Você, por outro lado...

-Eu?

  • Pettijohn tinha muita influência na política local. A procuradoria municipal de justiça não era exceção. Com Mason prestes a se aposentar...
  • Isso ainda não se tornou público.
  • Mas logo será. Se ele se recusar a tentar a reeleição, e com o segundo no comando lutando contra um câncer de próstata...
  • Wallis tem cerca de seis semanas.
  • Então, em novembro o cargo ficará vago. Pettijohn era famoso por pendurar cenouras como essa na frente dos ambiciosos e corruptos. Pense só que maravilha seria para um vigarista como ele ter uma coisinha doce e jovem como você exercendo a função de promotor público.
  • Não sou doce. Quanto à juventude, os quarenta pairam ameaçadoramente próximos.
  • É estranho você se referir a isso e não à parte da ambição e da corrupção.

-Admito a primeira e nego a segunda. Além do mais, se Pettijohn fosse o tapete vermelho para me levar ao cargo, por que eu ia matá-lo?

  • Boapergunta-disse ele, analisando Steffi com um olho fechado. -Você é muito besta, Smilow-balançou ela a cabeça e deu risada.
  • Mas estou entendendo onde quer chegar. Considerando todas as maquinações de Pettijohn, a lista de suspeitos não acaba mais.
  • O que não facilita em nada o meu trabalho.
  • Talvez você esteja se esforçando demais – com ar pensativo, ela tomou um gole do refrigerante. - Quais são os dois motivos mais comuns para se cometer um assassinato?

Ele sabia a resposta, que apontava para uma pessoa.

  • A sra. Pettijohn?
  • O sapato serve direitinho, não serve? - Steffi levantou o dedo indicador. - Ela ficou cheia das traições flagrantes do marido. Mesmo sem amá-lo, seu comportamento de mulherengo a humilhava.
  • O pai dela fez a mesma coisa com a mãe dela.
  • O que poderia explicar o segundo tiro, já que o primeiro deve tê-lo matado – ela levantou o segundo dedo. - Ela recebe rios de dinheiro com Lute Pettijohn morto. Um desses motivos já seria suficiente. Combinados então...

Ela ergueu os ombros como se a conclusão falasse por si mesma. Depois de pensar um pouco, ele franziu a testa.

  • É quase óbvio demais, não é? Além disso, ela tem um álibi. Steffi bufou com desprezo.
  • A servaleal da família? Sim, srta. Scarlett. Não, srta. Scarlett. Por que não me dá outro tapa, srta. Scarlett?
  • Sarcasmo não lhe cai bem, StefE.
  • Não estou sendo sarcástica. O relacionamento delas reflete uma atitude arcaica.
  • Não para a sra. Pettijohn. E tenho certeza de que para Sarah Birch também não. Elas são muito dedicadas uma à outra.
  • Enquanto a srta. Davee for a patroa. Ele balançou a cabeça.
  • Você teria de ser criada lá para entender.
  • Graças a Deus que não fui. No Meio-Oeste...
  • Onde as pessoas são mais esclarecidas e todos os homens são criados iguais?
  • Foi você que disse, Smilow, não eu.
  • Além de sarcástica, condescendente e dona da verdade também. Se você nos despreza tanto, e ao que considera nosso comportamento arcaico, por que se mudou para cá?
  • Por causa da oportunidade que havia aqui. »
  • Para corrigir todos os nossos erros? Para tornar mais esclarecido esse pobre povo atrasado do Sul? Ela olhou para ele de cara feia.
  • Ou você inveja o nosso modo devida? - Provocando ainda mais, ele acrescentou: - Tem certeza de que não sente inveja de Davee Pettijohn?

Steffi formou com os lábios, silenciosamente, vai se foder, Smilow! Ela então terminou de beber o refrigerante e levantou-se para jogar a lata vazia num recipiente de lixo reciclável de metal. O barulho que fez assustou todo mundo na sala de espera, menos a mulher adormecida.

  • Não suporto mulheres como Davee Pettijohn – disse Steffi. Aquela afetação de madame sulista óbvia demais me dá vontade de vomitar.

Ele apontou para a porta. Os dois saíram para o ar quente e úmido. O céu a leste estava adquirindo um tom rosa-acinzentado, anunciando

a aurora.

Smilow refletiu um pouco e disse:

  • Concordo que a sra. Pettijohn faz disso uma arte.
  • O que estou achando é que ela é suficientemente habilidosa nessa arte para usá-la a favor da impunidade.
  • Seu coração é frio, Steffi.
  • Olha quem fala. Se você fosse um nativo, seu nome seria Gelo Flui nas Veias.
  • É verdade – disse ele, sem se ofender. - Mas não estou tão certo quanto a você.

Ela chegou à porta do motorista, mas não entrou no carro. Em vez disso, parou e olhou para ele por cima da capota.

  • Quanto a mim, o quê?
  • Ninguém questiona a sua ambição, Steffi. Mas ouvi dizer que o trabalho não é a única coisa que está mantendo seu sangue fervendo estes dias.
  • O que foi que você ouviu?
  • Boatos – disse ele.
  • Que tipo de boatos?
  • Apenas boatos – disse ele novamente, com seu sorriso gelado.

Loretta Boothe, que estava toda curvada, levantou a cabeça e observou Rory Smilow e Stefanie Mundell atravessando o estacionamento e chegando a um carro onde pararam para conversar antes de entrar nele e partir. Tinham entrado na emergência do hospital com uma explosão de energia e determinação, que Loretta sabia que ambos possuíam abundantemente. Parecia que sugavam todo o oxigénio da atmosfera. Não gostava de nenhum dos dois. Mas por motivos diferentes. Tinha uma rixa pessoal contra Rory Smilow havia alguns anos. Quanto a Steffi Mundell, só conhecia a reputação dela. A assistente do promotor público era considerada por todos uma megera perfeita, que se achava dona da verdade. Loretta não sabia por que não tinha falado com eles, ou se identificado. Alguma coisa fez com que mantivesse a cabeça abaixada, o rosto escondido, fingindo estar dormindo. Não que um deles desse a mínima para ela, de qualquer maneira. Smilow olharia para ela com desprezo. Steffi Mundell possivelmente não ia reconhecê-la, ou então, se reconhecesse, não se lembraria do seu nome. O mais provável é que eles dissessem qualquer coisa razoavelmente educada e depois a ignorassem. Então, por que não tinha dito nada? Devia ter sido a sensação de superioridade de poder ouvir toda a conversa sem ser vista ou observada, primeiro com o médico, depois entre eles. Naquela noite mesmo, antes de começar a sentir náuseas e ter de ir para o pronto-socorro do hospital, tinha sabido do assassinato de Lute Pettijohn pela televisão. Tinha assistido à entrevista coletiva de Smilow. Ele havia se conduzido com sua habitual eficiência e postura inabalável. Steffi Mundell já estava se intrometendo onde não era querida nem necessária, ultrapassando suas fronteiras, no que diziam que ela era muito boa. Loretta deu uma risadinha. Fazia bem ao seu velho coração vê-los correndo atrás de pistas e seguindo as que acabavam num beco sem saída. A investigação não podia estar indo muito bem se as únicas testemunhas possíveis eram as pessoas com intoxicação alimentar. De uma coisa tinha certeza: Smilow não tinha um suspeito viável, senão não estaria perseguindo pacientes na emergência do hospital. Loretta olhou para o relógio na parede. Estava esperando havia mais de duas horas, e piorava a cada minuto. Esperava que o socorro viesse logo.

Para passar o tempo e distrair a mente dos seus problemas pessoais, ela ficou olhando através da janela de vidro laminado para o lugar, agora vazio, onde o carro deles estava estacionado. Rory Smilow e Steffi Mundell. Cristo, que combinação perigosa! Que Deus ajude o pobre criminoso quando eles o pegarem.

  • O que você está fazendo aqui?

Loretta virou-se ao ouvir a voz da filha. Bev estava diante dela, com as mãos nas cadeiras, olhar crítico, nada feliz de vê-la. Ela tentou sorrir, mas sentiu os lábios secos rachando quando os esticou sobre os dentes.

  • Oi, Bev. Só disseram agora para você que eu estava aqui?
  • Não, mas eu estava ocupada e só pude vir agora.

Bev era enfermeira da UTI, mas Loretta achava que ela podia ter pedido para alguém substituí-la por cinco minutos, se quisesse. É claro que ela não quis.

Nervosa, Loretta molhou os lábios descascados com a língua.

  • Achei que podia vir até aqui para ver... Podemos tomar café da manhã juntas.
  • Quando meu turno terminar, às sete, estarei completando doze horas. Vou para casa dormir.

-Oh.

Aquilo não estava indo como Loretta esperava, nem tinha muita esperança de que funcionasse mesmo. Ficou mexendo nos botões da blusa suja.

  • Você não veio até aqui para tomar café da manhã comigo, veio?
  • a voz de Bev possuía um tom imperativo e acabou chamando a atenção da enfermeira da recepção. Loretta viu que ela olhou para as duas curiosa. - Você ficou sem dinheiro, não podia mais comprar sua bebida e veio aqui me pedir esmola.

Loretta abaixou a cabeça para evitar o olhar furioso e inclemente da filha.

  • Não bebo há dias, Bev. Juro que não.
  • Estou sentindo o cheiro em você.
  • Estou doente. É verdade, eu...
  • Ah, poupe-me disso – Bev abriu a carteira e tirou uma nota de dez dólares. Mas não a deu para Loretta. Forçou-a a estender a mão para pegá-la, acentuando a humilhação. -Não me incomode no trabalho novamente. Se voltar aqui pedirei para a segurança do hospital levá-la para fora. Entendeu?

Loretta concordou com a cabeça, engolindo seu orgulho e a vergonha. As solas de borracha do sapato de Bev guincharam no piso quando ela deu meia-volta para ir embora. Loretta ouviu as portas do elevador se abrindo, levantou a cabeça e chamou, com a voz entrecortada.

  • Bev, não...

As portas se fecharam antes de Loretta terminar a frase, mas só depois de notar que Bev desviou o olhar, como se não suportasse ver a própria mãe.

Simplesmente não fazia sentido. Inesperadamente, completamente ao acaso, você conhece alguém. É como receber um presente sem motivo. A atração é instantânea, forte e mútua. Vocês gostam da companhia um do outro. Riem, dançam, comem milho cozido e tomam sorvete. Fazem sexo, e é de um jeito que você conclui que antes não tinha a menor ideia do que era sexo. Adormecem nos braços um do outro e se sentem mais satisfeitos do que nunca. Então você acorda sozinho. Ela foi embora. Nem até logo, nem adeus. Nem um hasta la vista, baby. Nada. Hammond tamborilava na direção do carro, com raiva dela, mas com mais raiva dele mesmo por se importar. Por que se importaria de ela ter fugido? Ei, ele teve uma noite de sábado sensacional. Fez um sexo ótimo com uma estranha linda, que convenientemente foi para a cama com ele, e depois, mais conveniente ainda, desapareceu, sem nenhuma cobrança. Programa de sonho, certo? Não podia ser melhor. Pergunte para qualquer homem solteiro qual é sua fantasia principal, a número um, e ele dirá que é essa. Então aceite tudo do jeito que foi, seu idiota, ele se repreendeu. Não dê importância demais. E não tenha lembranças melhores do que o que realmente aconteceu.

Mas não estava imaginando que tinha sido melhor do que realmente foi. Foi fantástico, e a lembrança era exatamente essa. Xingando, ele desviou de um motorista que punha à prova a sua paciência, dirigindo devagar demais. Hoje tudo era irritante. Desde que acordara aquela manhã, andava descarregando sua decepção e frustração nos objetos inanimados. Primeiro na escrivaninha, quando deu nela uma topada com o dedão do pé, pulando da cama e correndo para a sala da cabana, com a esperança frenética de vê-la mexendo na cozinha à procura de um pote para servir o cereal, ou folheando uma revista na sala de estar, ou sentada na cadeira de balanço na varanda, vendo o rio fluir languidamente enquanto bebia café e esperava Hammond acordar. As fantasias dele tinham adquirido o brilho sem foco dos comerciais de cartão-postal. Mas não passavam disso mesmo... fantasias. Porque não havia ninguém na sala de estar e na cozinha, o carro dela não estava mais lá e a única ocupante da cadeira de balanço na varanda era uma aranha que se empenhava em tecer uma teia que ia de um braço a outro, cobrindo o assento. Sem se importar de estar nu, ele espantou a aranha e sentou-se na cadeira de balanço, tirando o cabelo da testa com os dez dedos, gesto de um homem desesperado, à beira de perder completamente o controle. A que horas ela fora embora? Que horas eram agora? Há quanto tempo tinha ido? Talvez ela fosse voltar. Talvez ele estivesse se preocupando à toa. Por meia hora ele se iludiu, acreditando que ela havia saído para comprar sonhos e manteiga. Ou creme para o café. Ou o jornal de domingo. Mas ela não voltou. Depois de um tempo, ele cedeu a cadeira de balanço para a aranha e entrou na casa. Quando tentou fazer café, derramou borra de café em cima do aparador. Furioso, ele rachou o bule de vidro e acabou jogando a cafeteira inteira no chão, que se espatifou e espalhou a água que ele tinha posto para ferver. Havia vasculhado a casa toda à procura de alguma coisa que ela podia ter deixado ou esquecido, torcendo para encontrar um cartão de apresentação ou, melhor ainda, um bilhete. Não achou nada. No banheiro, tinha inspecionado o cesto de papel embaixo da pia, mas não havia nada além do saco plástico descartável. Ao levantar, bateu com a cabeça na porta aberta do armário. Com raiva, Hammond bateu a porta com força e xingou com mais ferocidade ainda porque espremeu o dedo quando fez isso. Finalmente, apesar da cama ser a lembrança mais marcante da presença dela, ele se deitou com o braço dobrado em cima dos olhos, fazendo força para recuperar o controle. O que havia de errado com ele? Ficou pensando. Ninguém que o conhecia teria reconhecido Hammond aquela manhã, andando nu e com a barba por fazer pela casa, sem dar a mínima, com a aparência e o comportamento de um louco, um lunático perigosamente desequilibrado. Hammond Cross, agindo como um imbecil, como um adolescente com dor-de-cotovelo. O nosso Hammond Cross? Você deve estar brincando! Espere um minuto, você disse dor-de-cotovelo? Lentamente ele tirou o braço de cima do rosto e virou para o travesseiro dela. Pôs a mão na depressão formada pela cabeça dela. Aos pouquinhos foi ficando de lado, segurou o travesseiro contra o peito e enfiou a cara nele, aspirando profundamente o perfume dela. Foi tomado pelo desejo, mas não era sexo. Tudo bem, era sexo sim, mas não só sexo. Não era um tesão comum. Tinha sentido esse milhares de vezes. Era capaz de reconhecer. Aquilo era diferente. Mais profundo. Mais envolvente. Ele estava dominado por uma... necessidade de estar com ela.

  • Merda – sussurrou ele. Quer prestar atenção no que você está pensando? Necessidade de estar com ela?

Rolou na cama e ficou de costas de novo, olhou para o teto e, desolado, reconheceu que não conhecia uma palavra que descrevesse o que estava sentindo. Era estranho para ele. Nunca sentira isso antes, como é que podia dar um nome? Só sabia que era abrangente e muito debilitante, que nunca se sentira assim antes, apesar de ter estado com muitas mulheres lindas, cativantes e sensuais. Daí em diante seus pensamentos vagaram da sua história sexual para a dela. E foi então que se lembrou do telefonema. Franziu a testa e olhou para o telefone sobre a mesa do outro lado do quarto. Quando a surpreendera usando o aparelho, ela parecera assustada e culpada. Para quem estava telefonando? Subitamente ele pulou da cama. Com o coração aos saltos, inclinou-se sobre o telefone e passou o dedo pelos botões emborrachados no painel. Nem tinha certeza se aquele modelo tinha aquilo que procurava, mas então, sim!, lá estava. Auto Redial, rediscagem automática.

Hesitou apenas um segundo, e apertou o botão. O telefone emitiu uma série de tons e discou automaticamente o número, que apareceu na mesma hora no mostrador. Ele pegou um lápis e o único papel que tinha ao seu alcance – o exemplar da última temporada da Sports Illustrated-, edição de trajes de banho. Escreveu o número do telefone na barriga da menina da capa.

  • Clínica Ladd.

Hammond não sabia o que esperar e, depois de tocar duas vezes, quando a sua ligação foi atendida por uma voz feminina bem profissional, ele foi pego desprevenido.

  • Perdão?
  • O senhor ligou para a clínica Ladd?
  • Uh... Eu... devo ter discado o número errado – ele repetiu o número que tinha rabiscado na revista.
  • Está correto. Este é um serviço de recados. O senhor queria marcar uma hora? Sem saber o que dizer, ele respondeu:
  • Uh, queria.
  • Seu nome e número do telefone onde possa ser encontrado, por favor.
  • Sabe, pensando bem, vou esperar e ligar de novo no horário comercial.

Ele desligou rapidamente, mas ficou muito tempo lá sentado, na beirada da cama, imaginando que clínica seria aquela, e por que ela havia telefonado para lá no meio da noite. Tinha passado uma agenda inteira de nomes e rostos no seu banco de memória. Convivia socialmente com diversos médicos. Era sócio de dois clubes de campo, onde médicos de todas as especialidades se acotovelavam. Mas não se lembrava de jamais ter encontrado um dr. Ladd. Mas será que tinha conhecido a mulher do dr. Ladd? Será que conhecia intimamente a mulher do dr. Ladd? Irritado com essa possibilidade triste mas muito concreta, esforçou-se para levantar da cama e tomar uma chuveirada. Não que uma ducha quente significasse alguma coisa. Não que estivesse se sentindo culpado, precisando de uma limpeza. Se ela era casada e tinha mentido sobre isso, a culpa não era dele. Certo? Certo. Depois de se vestir, ele foi se arrastando até a cozinha, onde tomou duas xícaras de café desidratado, congelado e descafeinado. Forçou-se até a comer metade de um pãozinho, mastigando e ruminando em sincronia. Ela disse que não era casada, mas que diabos, como podia acreditar numa mulher que nem tinha dito seu nome para ele? Por Deus, ele nem sabia o nome dela! Ela contou uma porção de coisas. Por exemplo, que não costumava ir para a cama com homens que acabava de conhecer. Nem casual, nem habitualmente. Essas eram as palavras exatas? Mas como ele ia saber se isso era verdade? Como saber se ela não era uma mentirosa compulsiva e uma vadia, que por acaso era casada com um pobre-diabo com diploma de médico? Ela podia ser uma esposa volúvel que tinha traído o marido tantas vezes que ele não se surpreendia mais com telefonemas no meio da noite. Quanto mais Hammond pensava, mais mal-humorado ficava.

Enquanto arrumava a cozinha ele tinha olhado para o relógio de parede e se surpreendido ao ver que já eram quase três horas. Como podia ter dormido tanto? Fácil. Eles não pararam de fazer amor... Não tinham dormido até quase seis da manhã. Ele não pretendia voltar para Charleston até a noite. Tinha planejado passar um domingo tranquilo, pescando, ou sentado na varanda, apreciando a paisagem, basicamente sem fazer nada que exigisse pensar muito. Mas ficar na cabana não tinha muita graça. Nem pensar. Por isso ele trancou a casa e voltou antes do programado. Agora ele estava atravessando a ponte Memorial e entrando na cidade, e imaginando se ela era de Charleston e se tinha voltado para casa por aquele mesmo caminho. E se dessem de cara um com o outro uma noite, numa festa qualquer? Comentariam a noite que passaram juntos ou apenas se cumprimentariam como desconhecidos bem-educados e fingiriam que jamais tinham se visto? Isso talvez dependesse de estarem ou não com outras pessoas neste momento. Como se sentiria se fosse apresentado ao casal aparentemente feliz, dr. E sra. Ladd, e tivesse de olhar bem nos olhos do marido, apertar a mão dele, jogar conversa fora e agir como se não conhecesse intimamente a mulher ao lado dele? Por inúmeros motivos, ele esperava que nunca tivesse de enfrentar uma situação como essa, mas se tivesse ia se comportar com um grau razoável de compostura. Esperava não ficar parecendo um simplório. Esperava conseguir dar as costas para ela e ir embora. Não tinha certeza se podia fazer isso. Era isso que o deixava mais preocupado. Quando tinha de encarar um dilema moral, Hammond normalmente escolhia o lado do bem. Fora as brigas normais da infância, maldades da adolescência e as farras da faculdade, sua conduta era irrepreensível. Não importava se tinha sido amaldiçoado com uma dose extra de virtude, ou se era apenas covarde, ele costumava seguir as regras. Nem sempre era fácil. Na verdade, o sentido inabalável que tinha de certo ou errado estivera sempre no cerne da maioria dos seus conflitos com amigos e colegas, até com seus pais. Especialmente com o pai. O pai e ele não obedeciam as mesmas regras de comportamento. Preston Cross acharia graça dessa perplexidade toda a respeito de uma mulher. Entrando no condomínio onde morava, Hammond se perguntou o que teria acontecido se tivesse entrado no quarto segundos antes e ouvido ela dizer ao telefone uma coisa assim: “Querido, já que é muito tarde, resolvi passar a noite com a minha amiga. Isto é, se você não se importar. Achei que podia ser perigoso voltar dirigindo, sozinha, a essa hora. Tudo bem, então, vejo você de manhã. Também te amo.” A porta automática se abriu e Hammond entrou com o carro na garagem estreita. Mas depois de desligar o motor ele ficou alguns minutos lá sentado, olhar parado para a frente, avaliando se passaria ou não naquele teste específico da sua fibra moral. Finalmente, aborrecido com ele mesmo por alimentar especulação tão sem sentido, ele desceu do carro e entrou na casa pela porta que ligava a garagem à cozinha. Por força do hábito, foi direto para o telefone checar os recados na secretária. Pensou melhor e ignorou o telefone. Haveria pelo menos um recado do seu pai. Não estava a fim de recomeçar o confronto da véspera. Não estava a fim de falar com ninguém. Talvez saísse para velejar um pouco. Ainda faltavam algumas horas para o anoitecer. O barco de dezesseis pés, presente dos pais quando foi inscrito como advogado no foro, estava apoitado do outro lado da rua, no City Marina. Por isso tinha comprado a casa naquele condomínio. Era uma caminhada curta até a marina. Hoje era um dia perfeito para sair de barco. Podia ajudar a clarear sua cabeça. Apressando o passo, ele atravessou a cozinha, passou pelo corredor, pela sala de estar, e estava indo para a escada quando ouviu alguém enfiando a chave na porta da frente. Mal teve tempo de se virar e Steffi Mundell entrou, com um telefone celular na orelha.

  • Não acredito que eles estejam sendo tão rígidos com isso – dizia ela, fazendo malabarismos com as chaves, o telefone, a pasta e uma bolsa, mexendo os dedos para cumprimentar Hammond. - Quero dizer, intoxicação alimentar não é exatamente câncer ósseo... Bem, avise-me... Sei que não preciso estar aí, mas quero estar. Você tem o número do meu celular, não tem?... Tudo bem, tchau – ela desligou o telefone e olhou para Hammond, exasperada. - Onde, diabos, você esteve?
  • O que aconteceu com o “oi”?

A colega nunca parava de trabalhar. Numa pasta enorme, ela carregava uma miniatura do escritório. Quando passou a fazer parte da Procuradoria Municipal de Charleston, ela mandou instalar um rastreador da polícia no carro e ouvia as transmissões como os outros motoristas ouviam música ou entrevistas no rádio. No meio dos outros advogados e oficiais de polícia, era piada corrente que, para a promotoria, Steffi era o equivalente a um advogado de defesa que perseguia ambulâncias. Ela largou seus inúmeros pertences numa cadeira, tirou o sapato de salto alto e tirou a blusa de dentro da saia. Abanou a barriga com a fralda da blusa.

  • Meu Deus, está muito abafado lá fora. Estou pegando fogo! Por que não atendeu o telefone?
  • Eu disse que ia para a minha cabana.
  • Eu liguei para lá. Milhões de vezes.
  • Desliguei a campainha.
  • Que coisa! Por quê?

Porque eu estava totalmente envolvido com uma mulher e não queria ser perturbado, pensou ele.

  • Você deve ter o radar de um morcego. Acabei de entrar em casa pela porta dos fundos. Como sabia que eu estava aqui?
  • Não sabia. A sua casa é mais perto da central de polícia do que a minha. Achei que você não ia se incomodar se eu ficasse aqui esperando até saber de alguma coisa.
  • Sobre o quê? Com quem você estava ralando? O que é tão urgente?
  • Urgente? Hammond? - de frente para ele, com as mãos na cintura, primeiro ela pareceu confusa. Depois, sua expressão mudou para profunda incredulidade: - Oh, meu Deus, você não sabe.
  • Parece que não.

O drama que ela estava fazendo não impressionou Hammond. Era sempre dramática.

Lá se foi o passeio de barco. Ele não queria convidar Steffi para velejar com ele, e era difícil livrar-se dela, especialmente quando ficava agitada daquele jeito. Ele subitamente sentiu um cansaço enorme.

  • Preciso beber alguma coisa. O que você quer? Ele voltou para a cozinha e abriu a geladeira.
  • Água ou cerveja? Ela foi atrás dele.
  • Não acredito. Você não sabe mesmo. Você não ouviu nada. Onde fica essa sua cabana, na periferia da Mongólia? Não tem televisão lá?
  • Tudo bem, cerveja.

Ele tirou duas garrafas da geladeira, abriu a primeira e entregou-a para ela. Ela pegou a garrafa, mas continuou olhando para ele como se a cara dele tivesse acabado de se desmanchar em feridas purulentas. Ele abriu a segunda cerveja e aproximou o gargalo da boca.

  • O suspense está me matando. O que a está deixando tão agitada?
  • Alguém assassinou Lute Pettijohn ontem à tarde na sua cobertura do Charles Towne Plaza.

A garrafa de cerveja não chegou à boca de Hammond. Ele abaixou o braço lentamente, olhando incrédulo para Steffi. Segundos foram se passando.

  • Isso é impossível – disse ele, com a voz rouca.
  • É verdade.
  • Não pode ser.
  • Por que eu mentiria?

Depois de um tempo imobilizado pelo choque, ele se mexeu. Passou a mão na nuca, onde a tensão já tinha se concentrado. Funcionando no piloto automático, ele deixou a cerveja na pequena mesa de bistrô, puxou a cadeira e sentou-se nela. Quando Steffi se sentou na frente dele, ele piscou e conseguiu focalizá-la.

  • Você disse assassinado?
  • Assassinado.
  • Como? - perguntou ele, com a mesma voz seca. - Como foi que ele morreu?
  • Você está bem?

Ele olhou para ela como se não entendesse mais a língua e, então, balançou a cabeça, distraído.

  • Estou, estou bem. Só um pouco... - ele abriu as mãos.
  • Sem palavras.
  • Estupidificado – ele pigarreou. - Como foi que ele morreu?
  • Baleado. Dois tiros nas costas.

Ele baixou os olhos para o tampo de granito da mesa e ficou olhando, sem ver, para a condensação que se formava na garrafa de cerveja gelada, tentando assimilar a notícia espantosa.

  • Quando? A que horas?
  • Ele foi encontrado por uma camareira pouco depois das seis.
  • Ontem à noite.
  • Hammond, não estou gaguejando. É. Ontem à noite.
  • Desculpe-me.

Ele ouviu Steffi descrever o que a camareira tinha encontrado.

  • O ferimento na cabeça foi mais do que uma pancada, mas John Madison acha que os tiros o mataram. Naturalmente ele não pode determinar oficialmente a causa da morte até terminar a autópsia. Todos os detalhes só serão conhecidos depois disso.
  • Você conversou com o médico-legista?
  • Pessoalmente, não. Smilow me deu as informações.
  • Então ele está no caso?
  • O que você acha?
  • É claro que está – resmungou Hammond. - O que ele acha que aconteceu? 93

Nos cinco minutos seguintes, Hammond ouviu Steffi explicar os detalhes conhecidos do caso.

  • Achei que a promotoria devia estar acompanhando isso desde o início, por isso passei a noite com Smilow... por assim dizer – o sorriso malicioso dela pareceu grosseiro e fora de propósito. Hammond simplesmente fez que sim com a cabeça e gesticulou impaciente para ela continuar. - Eu estava com ele quando ele seguiu algumas pistas, as pouquíssimas que havia.
  • Segurança do hotel?
  • Pettijohn morreu sem emitir um som. Nenhum sinal de arrombamento. Nenhum sinal de luta. E podemos eliminar supervisão com câmeras. Tudo que temos em vídeo é uma trilha sonora monótona e gente nua se contorcendo.
  • Hein?

Quando ela contou a história das câmeras de segurança falsas, ele balançou a cabeça consternado.

  • Cristo! Ele falava tanto daquele sistema, de quanto tinha custado. Que atrevimento do homem! Hammond conhecia bem as características pessoais desagradáveis e os negócios inescrupulosos de Lute Pettijohn. Vinha investigando o homem secretamente para o promotor-geral havia seis meses. Quanto mais descobria sobre Pettijohn, mais tinha a desprezar e não gostar.
  • Alguma testemunha?
  • Nenhuma até agora. A única pessoa no hotel que teve algum contato com ele foi um massagista no spa, e é um beco sem saída – ela então contou para ele sobre o grupo com intoxicação alimentar. Tirando as crianças, há sete adultos que Smilow quer interrogar. Nenhum de nós está muito otimista quanto ao resultado, mas ele prometeu me avisar assim que o médico der sinal verde. Quero estar lá.
  • Você está ficando pessoalmente muito envolvida, não está?
  • Será um caso gigantesco.

A afirmação caiu entre os dois como uma luva jogada no chão. A rivalidade não era articulada, mas estava sempre lá. Hammond reconhecia humildemente que costumava levar vantagem sobre ela, e não porque era mais inteligente. Tinha tirado segundo lugar na turma da faculdade de direito, mas Steffi tirou o primeiro na dela. O que os distinguia eram suas personalidades. A dele representava uma grande vantagem para ele, mas a de Steffi funcionava contra ela. As pessoas não reagiam bem à sua causticidade nem às suas abordagens agressivas. Ele admitia que sua maior vantagem era o declarado favoritismo de Monroe Mason por ele. Uma posição tinha ficado vaga logo depois que Steffi se juntou a eles. Ambos eram qualificados. Ambos foram avaliados. Mas, na verdade, nunca houve nenhuma disputa quanto a quem seria promovido. Hammond agora era promotor assistente especial. A decepção de Steffi ficou muito clara, apesar de ter enfrentado a situação com brio. Ela não era má perdedora e não tinha guardado rancor. O relacionamento profissional dos dois continuou a ser mais de cooperação do que de rivalidade. Mesmo assim, como estava acontecendo naquele momento, às vezes despontavam desafios silenciosos. Naquela hora, nenhum dos dois quis aceitar. Hammond mudou de assunto:

  • E quanto a Davee Pettijohn?
  • Em que aspecto? Você quer dizer e quanto a Davee Pettijohn como suspeita? Ou como a viúva atormentada?
  • Suspeita? - repetiu Hammond, surpreso. -Alguém acha que ela matou o Lute?
  • Eu acho.

Steffi, então contou para Hammond a ida dela com Smilow à mansão Pettijohn e por que considerava a viúva uma provável suspeita.

Depois de ouvir a história, Hammond refutou a teoria de Steffi.

  • Para começo de conversa, Davee não precisa do dinheiro de Lute. Nunca precisou. A família dela...

-Já fiz a minha pesquisa. O dinheiro dos Burton jorra pelo ladrão. O tom malicioso dela não passou despercebido.

  • O que está incomodando você?
  • Nada – respondeu ela secamente. Então respirou bem fundo e desabafou devagar: - Tudo bem, talvez eu esteja mesmo irritada. Fico irritada quando os homens, que supostamente são adultos, profissionais e inteligentes, se transformam em manteiga derretida diante de uma mulher igual a ela.
  • Uma mulher igual a ela?
  • Ora, Hammond – continuou ela, ainda mais aborrecida que antes. - Gatinha fofa por fora, pantera por dentro. Você conhece esse tipo.
  • Você rotulou Davee depois de vê-la apenas uma vez?
  • Está vendo? Você já a está defendendo.
  • Não estou defendendo ninguém.
  • Primeiro Smilow fica retardado perto dela, se é que você é capaz de acreditar nisso. Agora você.
  • Não sou nenhum retardado. Só não estou entendendo como você pode traçar um perfil completo da personalidade de Davee depois de...
  • Está bem! Eu não me importo – disse ela, impaciente. - Não quero mais falar sobre Lute Pettijohn, o assassinato e os motivos. Só tenho pensado nisso há quase vinte e quatro horas. Preciso de um descanso.

Ela se levantou da cadeira, pôs as mãos nas costas e se espreguiçou com gosto, depois deu a volta na mesa para se sentar no colo de Hammond. Passou os braços em volta do pescoço dele e o beijou.Depois de alguns beijos rápidos, Steffi se endireitou e despenteou o cabelo dele.

  • Esqueci de perguntar. Como foi sua noite?
  • Foi ótima – respondeu Hammond sinceramente.
  • Fez alguma coisa especial?

Especial? Muito especial. Até as conversas bobas tinham sido extraordinárias.

-Joguei futebol americano na Liga Nacional de Futebol, sabia? -Jogou?

-Joguei. Mas depois que ganhei meu segundo campeonato fui trabalhar para a CIA.

  • Trabalho perigoso?
  • Operações básicas de capa e espada.
  • Uau!
  • Para falar a verdade, foi muito chato. Por isso me alistei no Corpo da Paz.
  • Fascinante.

-Foi legal. Até um certo ponto. Mas depois que recebi o Prémio Nobel por ter alimentado todas as crianças famintas da África e da Ásia, comecei a procurar outra coisa para fazer.

  • Um desafio maior?
  • Isso mesmo. Limitei minhas opções a tornar-me presidente e a servir ao meu país, ou a descobrir a cura do câncer.
  • Auto-sacrificio deve ser seu nome do meio.
  • Não, é Greer.
  • Eu gosto.
  • Você sabe que estou mentindo.
  • O seu nome do meio não é Greer?
  • Isso é verdade. O resto é tudo mentira.

-Não!

  • Eu queria impressioná-la.
  • Sabe de uma coisa?
  • O quê?
  • Estou impressionada.

Hammond se lembrou do toque da mão dela, de ficar excitado...

  • Humm – ronronou Steffi. - Exatamente o que pensei. Você sentiu a minha falta.

Ele estava com ereção, mas não motivada pela mulher sentada no seu colo que o acariciava por cima da calça. Ele afastou a mão dela.

  • Steffi...

Ela chegou para a frente e beijou-o com agressividade. Levantou a saia acima dos quadris, montou em cima dele e o continuou beijando, enquanto atacava a fivela do cinto.

-Detesto correria-disse ela, ofegante, entre beijos. - Mas quando Smilow ligar, vou ter de correr. Temo que isso terá de ser rápido.

Hammond agarrou as mãos atarefadas dela.

  • Steffi. Nós precisamos...
  • Subir para o quarto? Ótimo. Mas não podemos perder tempo, Hammond.

Ágil e enérgica, ela pulou do colo dele e foi para a porta, desabotoando a blusa no caminho.

  • Steffi.

Ela virou de frente para ele e ficou atónita ao ver Hammond levantar-se e fechar o zíper da calça. Ela riu um pouco.

  • Estou disposta a experimentar praticamente qualquer coisa, mas vai ser meio complicado se você não tirar a calça.

Ele foi para outro canto da cozinha e apoiou os braços na bancada de granito. Ficou olhando para a pia imaculada alguns segundos antes de encará-la de novo.

  • Isso não está mais funcionando para mim, Steffi.

Assim que conseguiu dizer isso, ele se sentiu enormemente aliviado. Tinha saído da cidade na tarde anterior, sobrecarregado por diversos motivos. Um deles – na verdade o menos importante – era sua indecisão quanto ao caso com Steffi. Não tinha certeza se queria terminar. O esquema deles era confortável. Nenhum dos dois cobrava quase nada do outro. Compartilhavam muitos interesses comuns. Eram sexualmente compatíveis. No entanto, a ideia de morar juntos nunca tinha aflorado nas conversas e Hammond estava feliz por causa disso. Se tivesse, ele teria feito uma lista de desculpas apropriadas para explicar por que morar no mesmo endereço seria uma má ideia, mas o verdadeiro motivo era que o nível de energia de Steffi ia cansá-lo rapidamente. E, aparentemente, ela também demonstrava que não queria tê-lo por perto o tempo todo. O caso deles era mantido em segredo. Os dois se viam regularmente e quando queriam. Por quase um ano tinha sido um arranjo perfeito. Mas ultimamente ele andava sentindo que, afinal de contas, não era tão perfeito assim. Não gostava da clandestinidade e dos subterfúgios, especialmente no que diziam respeito a relacionamentos pessoais, pois se agarrava à crença antiquada de que a honestidade devia ser um pré-requisito. Também estava insatisfeito com o nível de intimidade deles. Para ser mais exato, não existia intimidade nenhuma. De verdade, não. Steffi era uma amante ardente e capaz, mas eles não estavam mais próximos emocionalmente do que da primeira vez que ela o convidou para jantar e eles acabaram arrancando as roupas no sofá da sala. Depois de pesar todos os prós e contras, de pensar semanas no assunto, Hammond tinha resolvido que o relacionamento chegara a um ponto que fazia com que ele quisesse e precisasse de mais. Em vez de aguardar com ansiedade as noites que eles passavam juntos, passara a temê-las. Passou a responder às ligações dela com atraso e não assim que podia. Mesmo na cama, quando faziam sexo, ele se surpreendia distraído e pensando em outras coisas, tendo um desempenho adequado, mas rotineiro, físico, mas sem emoção. Antes da indiferença decair para o ressentimento, era melhor terminar tudo. O que queria e precisava de um relacionamento ele não sabia ao certo. Mas tinha certeza de que o que quer que fosse não ia encontrar em Stefanie Mundell. Tinha chegado mais perto dessa descoberta na noite anterior, com uma mulher da qual nem sabia o nome. Essas eram observações tristes sobre seu relacionamento com Steffi, mas indicavam a plena confirmação de que era hora de acabar. Chegar a essa decisão era apenas a metade do problema. Agora tinha de enfrentar o ato em si. Queria terminar o caso da forma mais civilizada possível, de preferência evitando o equivalente temperamental da Guerra dos Cem Anos. O melhor que podia esperar era que terminasse com os mesmos fogos de artifício com que tinha começado. A probabilidade disso acontecer era nula. Uma cena era praticamente garantida. Ele tinha provocado, e agora ela estava chegando. O que ele tinha dito levou algum tempo para ser registrado. Quando Steffi entendeu, ela engoliu em seco, cruzou os braços por cima da blusa aberta e então, num gesto de desafio, descruzou-os e os deixou caídos ao lado do corpo.

  • Quando você diz “isso”, imagino que esteja se referindo a... -Nós.

-Ah, é?

Ela inclinou a cabeça para um lado e ergueu as sobrancelhas de um modo familiar demais. Era a expressão que ela fazia quando estava furiosa, quando estava prestes a estraçalhar alguém, em geral um estagiário ou funcionário que não tivesse feito um bom trabalho no preparo de uma minuta para ela, ou um policial que tivesse deixado de incluir um fato completo de um caso em seu relatório, ou qualquer um que ousasse irritá-la quando estava determinada a ter tudo a seu modo.

  • E desde quando não está “funcionando” para você?
  • Há algum tempo. Sinto que estamos nos movendo em direções diferentes.

Ela sorriu e deu de ombros.

  • Nós dois andamos distraídos ultimamente, mas é fácil consertar isso. Temos bastante coisa em comum para salvar...

Ele balançou a cabeça.

  • Não apenas em direções diferentes, Steffi. Direções opostas.
  • Será que você podia ser um pouco mais específico?
  • Tudo bem – falou ele sem nenhuma entonação especial, apesar de ter se ressentido do tom que ela usou, porque indicava que ele não era tão inteligente quanto ela. - Um dia eu gostaria de me casar. Ter filhos. Você deixou bem claro em inúmeras ocasiões que não está interessada em ter uma família.
  • O seu interesse é uma surpresa. Ele deu um sorriso triste.
  • Na verdade é uma surpresa para mim também.
  • Você disse que não queria ser para nenhuma criança inocente o que o seu pai tinha sido para você. .lynw
  • E não vou ser – disse ele muito sério.
  • É uma mudança de ideia recente?
  • Recente mas gradual. O nosso relacionamento foi perfeito por algum tempo, mas depois...
  • A novidade acabou?
  • Não.
  • Então foi o quê? Não o excito mais? Ir para a cama com a mais quente do escritório da promotoria perdeu seu encanto? Ser o amante secreto de Steffi Mundell não te dá mais tesão?

Ele abaixou a cabeça e balançou-a de um lado para outro.

  • Por favor, não faça isso, Steffi.
  • Não estou fazendo nada – retrucou ela, e sua voz ficou mais aguda. - Essa conversa foi ideia sua – ela semicerrou os olhos escuros.
  • Você tem alguma ideia de quantos homens gostariam de trepar comigo?
  • Tenho – disse ele, elevando o tom de voz para igualar o nível furioso da voz dela. - Ouço as fofocas do vestiário a seu respeito.
  • Você costumava gostar muito quando eles especulavam quem seria o homem misterioso na minha cama, e era você o tempo todo. Costumávamos rir muito disso.
  • Acho que deixou de ser engraçado.

Sem nada para dizer, Steffi ficou lá parada, soltando fogo pelas ventas, em silêncio.

Ele continuou com voz mais calma:

  • De qualquer modo, viajei esse fim de semana para reavaliar o nosso relacionamento...
  • Sem ao menos conversar comigo primeiro? Nunca te ocorreu me convidar para ir junto nessa reavaliação?
  • Não vi necessidade.
  • Então já tinha decidido antes mesmo de ir para a sua preciosa cabana no mato para reavaliar – disse ela, arranhando a palavra.
  • Não, Steffi. Não tinha decidido nada. Enquanto estive fora examinei nosso relacionamento de todos os ângulos e sempre chegava à mesma conclusão.
  • Que você queria me dar o fora.
  • Não...
  • Dar o fora? Que palavra você usaria? ,m
  • Esse é exatamente o tipo de cena que eu esperava evitar – disse ele, finalmente, gritando mais alto que ela. - Porque eu sabia que você ia discutir. Sabia que ia argumentar até a morte como se estivesse no tribunal, expondo seu caso para um júri. Você rebateria tudo que eu dissesse simplesmente para argumentar e não cederia um milímetro porque com você tudo se reduz a uma disputa. Bom, isso não é uma competição, Steffi. E não é um julgamento. São as nossas vidas!
  • Meu Deus, poupe-me desse melodrama! Ele bufoum uma risada breve.
  • é exatamente isso. Preciso de um pouco de melodrama. O nosso relacionamentito é completamente desprovido de melodrama. Melodrama é humano. É...
  • Hamond, de que diabos você está falando?
  • Nem tudo na vida pode ser resumido numa minuta. Nem todas as respostas são encontradas em livros de direito – frustrado com a própria incapacidade de se explicar, ele xingou baixinho antes de tentar de novo. - Você é brilhante, mas nunca pára. As discussões, a disputa, são constantes. Incessantes. Não há trégua com você.
  • Perdoe o o duplo sentido, mas eu não sabia que estar comigo tinha sido como um julgamento para você.
  • Olhe - - disse ele secamente -, vou poupá-la do melodrama se você me poupar da encenação canastrona de parte ferida. Você está zangada, mas não magoada.
  • Quer parar de dizer o que sou e o que deixo de ser? Você não sabe o que estou sentindo.
  • Sei que não é amor. Você não me ama. Ama? Se tivesse escolha agora mesmo, o que ia preferir, a sua carreira? Ou eu?
  • O quê? - gritou ela. - Não acredito que você seja capaz de dar um ultimato tão ridículo e juvenil. Se tivesse escolha? Que tipo de merda sexista é é essa? Por que tenho de fazer uma escolha? Você não precisa escolher. Por que não posso ter você e a minha carreira?
  • Você pode. Mas para tudo funcionar é preciso que haja duas pessoas dispôstas a fazer alguns sacrifícios. Duas pessoas que se amam muito e que são dedicadas ao relacionamento e à felicidade uma da outra. O que fazemos juntos – disse ele, apontando para o quarto lá em cima – não é amor. É recreação.
  • bom, ficamos muito bons em manter um ao outro entretido.
  • Não vou negar isso. Mas entretenimento é o que sempre foi, e é inútil imaginar que foi qualquer outra coisa.

Ele parou de falar para recuperar o fôlego. Ela continuou a olhar fixamente para ele, furiosa.

Ele se aproximou da mesa, pegou sua cerveja e deu um longo gole. Finalmente, olhou para ela.

  • Não finja que você discorda. Sei que concorda.
  • Nós nos damos tão bem!
  • Nos dávamos. Nos damos. Tivemos momentos ótimos. Isso não é culpa de ninguém. Não existe um lado certo e um errado. É simplesmente uma questão de desejar futuros diferentes. Ela pensou nisso um pouco.
  • Não fiz segredo nenhum do que eu queria, Hammond. Se eu quisesse uma lareira e um lar, teria ficado na minha cidade natal, obedecendo meu pai e casando logo depois de terminar o segundo grau, senão antes, e tendo filhos logo, como minhas irmãs fizeram. Teria me poupado do desprezo delas e dos sermões dele. Não teria batalhado para chegar onde estou. Ainda tenho um longo caminho pela frente para chegar onde quero. Desde o princípio você sabia quais eram as minhas prioridades.
  • E eu a admiro por elas.
  • Correção. Quais são as minhas prioridades.
  • Espero que você ultrapasse todos os objetivos que determinou para a sua vida. E digo isso sinceramente. Só que os seus objetivos pessoais não deixam espaço para mais nada. São incompatíveis com o comprometimento que desejo de uma companheira de vida.
  • Você quer realmente uma Santa Dona de Casa?
  • Claro que não – disse ele, rindo e balançando a cabeça. Ficou olhando para o vazio algum tempo e depois disse: - Não sei bem o que quero.
  • Só sabe que não me quer.

Mais uma vez ele sabia que ela estava mais zangada do que magoada. Mesmo assim, nenhuma mulher gostava de ser rejeitada. Ele a respeitava o suficiente para dar-lhe o fora com gentileza.

  • Não é você, Steffi, sou eu. Quero alguém que pelo menos se disponha a se comprometer em alguns pontos.
  • Eu nunca me comprometo. Suavemente, ele disse: 103
  • Você está escorregando. Acabou de fundamentar meu caso para mim.
  • Não, dei essa para você.
  • Obrigado, aceito.

Então sorriram um para o outro, porque, além da atração física, sempre tinham admirado a sagacidade um do outro.

  • Você é muito inteligente, Hammond. Gosto de inteligência e admiro o intelecto. Você tem muita perspicácia. É durão quando é preciso ser durão. Pode até ser cruel quando tem de ser, e a crueldade realmente me enlouquece. Você é indiscutivelmente bonito.
  • Por favor, estou ruborizando.
  • Não seja tímido. Você sabe que faz corações palpitar e hormônios jorrar.
  • Obrigado.

-Você é generoso e atencioso na cama, nunca recebe mais que dá. Resumindo, tudo que desejo num homem. Ele pôs a mão no coração.

  • Eu levaria muito mais tempo para enumerar as qualidades que admiro em você.

-Não estou querendo elogios. Deixo esse tipo de manha feminina para as Davee Pettijohn do mundo. Ele deu uma risadinha.

  • O que estou querendo dizer é... - ela respirou fundo. - Imagino que você nem pensa em continuar como estávamos, até...

Ele a fez parar de falar balançando a cabeça vigorosamente.

  • Isso não seria bom, nem justo, para nenhum de nós.
  • Não existe opção B?

-Acho que uma separação tranquila seria melhor, você não acha? Ela deu um sorriso amargo.

  • É um pouco tarde para solicitar a minha opinião, Hammond. Mas sim, suponho que, se é assim que você se sente, não quero que fique indo para a cama comigo por pena.

Ele deu uma gargalhada.

  • A última coisa que você pode ser é objeto de pena. Mais calma, ela disse:
  • Vai sentir a minha falta, sabe disso.
  • Muita.

Com a pontinha da língua no meio do lábio superior, Steffi abriu a blusa. Ele não se surpreendeu de ver que os mamilos dela estavam duros e escuros de desejo. O que mais excitava Steffi era uma discussão. Nada a estimulava mais que uma briga aos gritos. Quase sempre o sexo mais violento que eles faziam era depois de algum tipo de confronto. Naquele momento ele descobriu que ela garantia assim uma vitória final para todas as disputas. O clímax dele sempre foi a vitória dela. E isso bastaria para tornar válida sua decisão. Ela deu um sorriso malicioso para ele.

  • Uma última vez? Pelos velhos tempos? Ou você é elevado demais, ou ético demais para trepar com uma mulher que acabou de dispensar?
  • Isso não é exatamente uma inspiração romântica, Steffi.
  • Então, agora você quer melodrama e romance? Que bicho te mordeu, Hammond? Ele ficou tentado a aceitar a oferta dela, não porque a desejasse, mas porque dormir com ela poderia ajudar a desfazer um pouco a lembrança tão clara e docemente dolorosa da noite anterior. Possuir outra mulher agora talvez aliviasse a pesada sensação de perda.

Enquanto ele ainda avaliava a situação, o telefone tocou.

Steffi deu uma risada sem graça, fechou a blusa e abotoou-a de novo.

  • Seu filho-da-mãe sortudo. A sorte simplesmente continua a sorrir para você, Hammond. Foi salvo pelo gongo!

Ela deu meia-volta e foi para a sala recolher suas coisas. Hammond atendeu o telefone.

-Alo?

  • É Monroe.

Não que o procurador municipal Monroe Mason precisasse se identificar. Só conhecia um tom de voz, que era retumbante. As cordas vocais do homem pareciam equipadas com um megafone embutido. Na mesma hora Hammond ajustou o volume do telefone.

  • Ei, Monroe, o que houve? Passei uma noite fora de Charleston e armou-se a maior confusão.
  • Então você já soube?
  • Steffi me contou.
  • Soube que ela está metida nisso até o pescoço.

Hammond olhou para a sala de estar, onde Steffi calçava os sapatos e enfiava a blusa na saia. Hammond ficou de costas para a porta e baixou a voz.

  • Ela parece que está cuidando do caso.
  • Você quer que ela cuide disso?

Hammond percebeu que sua camisa estava grudada no peito. Quando tinha começado a suar? Esfregou a testa e descobriu que estava molhada também. Havia um motivo para aquela transpiração nada habitual: ele tinha encontrado Lute Pettijohn na véspera, à tarde, no Charles Towne Plaza. Monroe Mason devia saber disso. A hora para contar para ele era aquela. Mas por que dar tanta importância a isso? Não tinha relação com o assassinato de Pettijohn. O encontro tinha sido breve. Aconteceu antes da hora estimada da morte. Logo antes, mas mesmo assim... Ele não via motivo para contar para Mason, assim como não tinha achado necessário contar para Steffi quando ela lhe deu a espantosa notícia do homicídio. Não teria nada a ganhar se informasse essa coincidência, só muito a perder. Ele secou a testa com a manga da camisa e disse:

  • Quero esse caso.

Seu mentor deu uma risadinha.

  • bom, é seu, rapaz.
  • Obrigado.
  • Não me agradeça. Já era seu mesmo antes de pedir.
  • Aprecio seu voto de confiança.
  • Deixe de ser puxa-saco, Hammond. Não tomei a decisão sozinho. Você é o encarregado do caso porque a viúva Pettijohn está me ligando toda hora desde às dez da noite de ontem.
  • Para quê?
  • Ela pediu, e interprete como uma exigência, para você levar o assassino do marido dela a julgamento.
  • Então agradeço a ela...
  • Chega de merda, Hammond! Posso sentir o cheiro a um quilómetro de distância. Droga, sou tão velho que acho que fui eu que inventei isso. Onde é que eu estava?

-Aviúva. . .

  • Ah, é. Lute está morto, mas parece que Davee vai assumir a influência dele de onde ele parou. Ela pode fazer muito barulho neste município. Por isso, para poupar o nosso escritório de muito sofrimento e propaganda negativa na imprensa, concordei em designá-lo para este caso.

Esse caso provocaria um impacto na carreira dele como nenhum outro seria capaz. Uma vítima famosa de assassinato. Saturação da mídia. Tinha todos os elementos que fazem promotores ambiciosos ficarem com água na boca. É claro que ele se sentiria melhor se Mason tivesse dado o caso para ele sem a intervenção de Davee, mas não ia ficar se importando com um detalhe tão pequeno como esse. Não fazia mal de que forma tinha acontecido, o caso era dele. Ele o queria, precisava dele e era definitivamente o homem para a função. Tinha levado cinco casos de assassinato a julgamento antes e conseguiu condenações em todos, menos um, porque o acusado tinha feito um acordo. Desde o dia em que havia ingressado no lado da acusação, ele vinha se preparando para um caso daquela magnitude. Tinha apetite para isso e tinha competência para sair vencedor. O julgamento do assassinato de Lute Pettijohn ia alavancar sua carreira para onde queria chegar... o cargo de promotor municipal. Como o caso era dele, já tinha a confiança do seu superior e o apoio da viúva, imaginou se devia contar para Mason sobre seu encontro com Pettijohn. Detestava a ideia de entrar num projeto daquele calibre com qualquer desvantagem, por menor que fosse. Uma ambiguidade insignificante como aquela podia se tornar crucialmente danosa se fosse descoberta mais tarde.

  • Monroe?
  • Não me agradeça, rapaz. Você terá pela frente muitas noites insones.
  • Gosto do desafio. É uma outra coisa. Eu...
  • O quê?

Depois de um momento de hesitação, ele disse:

  • Nada. Nada, Monroe. Mal posso esperar para começar.
  • Ótimo, ótimo – disse ele, e depois passou para o próximo assunto. - Você vai trabalhar com Rory Smilow. Algum problema?
  • Não.
  • Mentiroso.
  • Não teremos de nos beijar. A única coisa que quero é que ele coopere conosco.
  • Ele tirou sangue primeiro.
  • O que isso quer dizer?
  • Recebi uma ligação do chefe Crane esta tarde. Smilow indicou Steffi Mundell para ser a advogada de acusação do caso. Mas eu disse para Crane quem a viúva preferia.
  • E aí?

Ele deu uma risadinha. Monroe Mason adorava política, mais que a lei. Hammond não gostava da política necessária que acompanhava o trabalho para o governo municipal, mas fazia parte do trabalho com que Mason se deleitava.

  • Davee já tinha falado também com o chefe de polícia. Ela disse para ele que queria que Smilow encontrasse o criminoso e que queria que você o pusesse na prisão. E foi assim que combinamos.

Hammond fez uma careta como fazia quando o dentista se aproximava com a injeção de anestesia e dizia que ia sentir uma picadinha.

  • Você e Smilow vão deixar de lado suas diferenças até essa coisa acabar. Entendeu?
  • Nós somos profissionais.

Hammond não fazia promessas quanto a Rory Smilow, mas uma trégua de cessar-fogo era uma concessão relativamente fácil. Então Mason acrescentou a segunda condição:

  • E vou pôr a Steffi para agir como juiz.
  • O quê? - procurando esconder a raiva e manter a voz baixa, Hammond disse: - Isso é uma droga de arranjo, Monroe! Não preciso de monitora.
  • A troca é essa, Hammond, é pegar ou largar. Hammond ouviu Steffi falando ao celular no outro cómodo.
  • Você já contou para ela sobre esse arranjo? - perguntou ele.
  • Amanhã de manhã. Você entendeu tudo, rapaz?
  • Entendi tudo.

Mesmo assim, Monroe Mason berrou mais uma vez:

  • Steffi vai ajudá-lo e funcionar como pára-choque entre você e Smilow. Vamos torcer para ela conseguir evitar que vocês se matem antes de julgar e condenar o assassino do Lute.

Parecia que seus pulmões iam explodir. Os músculos pegavam fogo. As articulações berravam para ela parar. Mas em vez de ir mais devagar ela acelerou o ritmo, correu mais que nunca, mais que a saúde permitia. Tinha algumas centenas de calorias de comida para queimar. E a consciência culpada para deixar para trás. O suor pingava em seus olhos, prejudicando a visão e provocando ardência. A respiração estava ofegante e ruidosa. A boca seca. Os batimentos do coração acompanhavam as passadas rápidas. Mesmo quando achava que não ia conseguir dar mais um passo, continuava, obstinadamente. Certamente havia superado a melhor velocidade e nível de resistência anteriores. Mesmo assim, nunca conseguiria escapar do que tinha feito na véspera. Correr era seu exercício aeróbico preferido. Ela corria alguns dias da semana. Frequentemente participava de corridas para arrecadar fundos. Tinha ajudado a organizar uma para levantar doações para a pesquisa do câncer de mama. Mas aquela noite não estava correndo por nenhum motivo altruísta, nem pelos benefícios físicos proporcionados pelo exercício, tampouco para aliviar a tensão de um dia de trabalho. A corrida daquela noite era uma autoflagelação. Claro que não era nada lógico supor que o esforço físico de hoje repararia as transgressões da noite anterior. O perdão só viria para alguém sincera e profundamente arrependido. Ela lamentava que o encontro deles tivesse sido calculado, não fruto de um capricho. Não tinha sido o encontro casual que ele pensava. Num arroubo de consciência, ela tentara pôr um fim naquilo antes que culminasse em sexo, mas não sentia remorso algum de ter evoluído daquela forma. Em nenhum momento ela se arrependeu da noite que passara com ele.

  • À sua esquerda.

Civilizadamente, ela chegou para a direita para deixar o outro corredor passar. O trânsito de pedestres na Battery estava intenso aquela noite. Era uma alameda popular, que atraía atletas, patinadores e pessoas que saíam para passear. Aquela ponta histórica da península onde os rios Ashley e Cooper convergiam e desaguavam no Atlântico constava da agenda de todos os turistas que visitavam Charleston. A Battery, que incluía o White Point Gardens e o quebra-mar, tinha cicatrizes de guerras, desgraças e das intempéries, assim como toda a Charleston. Tendo sido o local dos enforcamentos públicos, depois um posto estratégico de defesa, a principal função da Battery hoje era oferecer uma paisagem e prazer. No parque que ficava do outro lado da rua do quebra-mar, os antigos e imponentes carvalhos que tinham desafiado tempestades violentas, até o furacão Hugo, davam sombra para os monumentos, canhões confederados e para casais empurrando carrinhos de bebé. O calor opressivo e úmido não tinha arrefecido nem um pouco, mas pelo menos no quebra-mar, com vista para o porto de Charleston e para o forte Sumter à distância, havia uma brisa que era quase um bálsamo para as pessoas que queriam admirar o fim de um lindo entardecer que encerrava o fim de semana. Desacelerando até um passo mais prudente, ela resolveu que era hora de voltar. Ao refazer seu caminho, cada impacto no calçamento projetava uma pontada de dor nas canelas, que subia para as coxas e chegava à região lombar, mas pelo menos dava para aguentar. Os pulmões continuavam sacrificados, mas a sensação dos músculos pegando fogo tinha diminuído. No entanto, sua consciência a continuava incomodando. Lembranças dele e da noite que passaram juntos promoviam ataques de surpresa o dia inteiro. Não tinha se permitido curtir essas lembranças muito tempo porque parecia que isso daria mais peso à ofensa original, como um intruso que, além de invadir a propriedade da vítima, ainda violava seus bens mais pessoais. Mas não podia mais manter aqueles pensamentos afastados. Reduziu o esforço, acolheu as lembranças e deixou-as ficar. Saboreou outra vez o que tinham comido na feira, sorriu ao lembrar da piada boba que ele contou, imaginou a respiração dele na sua orelha, as pontas dos dedos encostando-lhe na pele. Ele dormia tão profundamente que nem acordou quando ela desceu da cama e se vestiu no quarto escuro. Ela havia parado na porta para olhar para ele. Estava deitado de costas. Uma perna descoberta. O lençol cobria a cintura dele. Ele tinha mãos maravilhosas. Pareciam fortes e másculas, mas bem cuidadas. Uma delas segurava de leve o lençol. A outra estava em cima do travesseiro dela. Os dedos estavam um pouco curvados para dentro, e até segundos antes tinham estado no cabelo dela. Vendo o peito dele subindo e descendo com a respiração tranquila, ela teve de lutar contra a tentação de despertá-lo e confessar tudo. Será que ele entenderia? Teria agradecido por ela ter sido honesta com ele? Talvez tivesse dito que não tinha importância, talvez a tivesse puxado de volta para o lado dele, talvez a beijasse de novo. Ele acharia bom ou ruim se ela admitisse o que tinha feito? O que ele tinha pensado quando acordou e descobriu que ela fora embora? Sem dúvida, no início, deve ter entrado em pânico, achando que tinha sido roubado. Recém-saído da cama, ele provavelmente verificou se a sua carteira ainda estava na escrivaninha. Será que dispôs seus cartões de crédito em leque para se certificar de que nenhum deles estava faltando? Será que ficou surpreso de ver que todo o seu dinheiro estava intacto na carteira? Será que ele sentiu um alívio imenso? Depois desse alívio, será que ficou confuso com o desaparecimento dela? Zangado? Provavelmente zangado. Podia ter considerado a saída às escondidas como uma afronta. Ela esperava que, no mínimo, quando acordou e viu que ela não estava mais lá, ele não tivesse simplesmente dado de ombros, rolado para o lado e voltado a dormir. Essa era uma possibilidade triste, mas bem concreta, que a fez pensar se ele tinha ou não pensado nela naquele dia. Será que ele também tinha repassado a noite toda na cabeça, a partir do momento em que seus olhos se encontraram, cada um de um lado da pista de dança, até a última vez...? Ele beijava todo o rosto dela.

  • Por que isso é tão bom? - sussurrou ele.
  • Porque é para ser bom, não é?
  • É. Mas não assim. Não tão bom.
  • O quê?- inclinando a cabeça para trás, os olhos dele procuraram os dela.
  • É quase melhor.
  • Você quer dizer ficar parado?

Ela apertou as coxas nos quadris dele, abraçou-o com mais força, ela o prendeu.

  • Assim. Só ter você...
  • Humm – ele afundou o rosto no pescoço dela, mas depois de um longo tempo, gemeu. - Sinto muito. Não consigo ficar parado.
  • Eu também não – disse ela ofegante, levantando o quadril.

De repente, para não tropeçar, ela parou de correr e dobrou o corpo da cintura para cima, apoiou as mãos nos joelhos e sugou o ar insuficiente e abafado. Piscou para tirar o suor salgado dos olhos e tentou secá-los com as costas da mão, que, no entanto, também estava pingando. Precisava parar de pensar nisso. A noite que passaram juntos, apesar de terrivelmente romântica para ela, provavelmente não tinha sido nada fora do comum para ele, independentemente de todas as coisas poéticas que ele tinha dito. Não fazia diferença, de um jeito ou de outro, ela lembrou. Não fazia diferença o que ele pensava dela ou se pensava nela. Eles nunca mais poderiam se encontrar. Depois de um tempo, ela recuperou o fôlego e o coração passou a bater mais devagar, e então desceu os degraus do quebra-mar. Mais que a corrida exaustiva, a certeza de nunca mais vê-lo sugava sua energia. Ela morava a poucos quarteirões da Battery, mas caminhar esse trecho parecia mais penoso do que toda a distância que havia corrido. Continuava perdida no desalento daqueles pensamentos quando abriu o portão de ferro da frente da casa. O som estridente da buzina de um carro a assustou, ela se virou e viu um Mercedes conversível cantando os pneus e parando junto ao meio-fio. O motorista baixou os óculos escuros e olhou para ela por cima da armação.

  • Boa-noite – disse Bobby Trimble, com a voz arrastada. - Estive ligando para você o dia inteiro e já estava quase achando que a tinha perdido.
  • O que você está fazendo aqui?

O sorriso de censura dele provocou-lhe arrepios.

  • Afaste-se da minha casa e deixe-me em paz.
  • Não seria uma boa ideia me irritar. Especialmente não agora. Onde você esteve o dia todo? Ela não quis responder.

Ele deu um sorriso largo, aparentemente achando graça da sua teimosia.

  • Não faz mal. Entre.

Com o corpo inclinado por cima do banco, ele abriu a porta do lado do passageiro. Quando a porta abriu, ela teve de dar um pulo para trás para que não batesse na sua perna.

  • Se está pensando que vou para qualquer lugar com você, está maluco.

Ele pôs a mão na chave, na ignição.

  • Tudo bem, então vou entrar.
  • Não!

Ele deu uma risadinha.

  • É, achei que não. - Dando um tapinha no assento do passageiro ele disse: - Ponha seu rabinho lindo aqui. Agora.

Ela sabia que ele não ia desistir com facilidade e desaparecer. Mais cedo ou mais tarde ela teria de enfrentar aquilo, por isso era melhor acabar com isso de uma vez por todas. Ela entrou no carro e bateu a porta com raiva. Hammond resolveu não adiar sua apresentação de condolências para a viúva de Lute Pettijohn. Depois de concluir a conversa com Mason e de se despedir de Steffi, ele tomou uma ducha e trocou de roupa. Em poucos minutos já estava no carro a caminho da mansão Pettijohn. Esperando alguém atender a campainha no portão, ele ficou observando, distraído, as pessoas que aproveitavam a noite de domingo na Battery. Dois turistas do outro lado da rua do parque tiravam fotografias da mansão dos Pettijohn, apesar da presença dele no primeiro plano. O número habitual de corredores e caminhantes parecia o de silhuetas móveis ao longo do quebra-mar. Quem abriu a porta para ele foi Sarah Birch. A empregada pediu para ele esperar no hall de entrada enquanto ia anunciá-lo. Ela retornou logo.

  • A srta. Davee disse para o senhor subir, sr. Cross.

A mulher corpulenta levou-o para o andar de cima, atravessando o balcão, passando por um largo corredor, depois por um enorme quarto de dormir, até um banheiro que não se parecia com nenhum que Hammond já tinha visto. Sob a clarabóia de vitral, havia uma banheira redonda num plano mais baixo onde caberia um time inteiro de vôlei. Estava cheia de água, mas as torneiras estavam fechadas. Brotos de magnólias creme, do tamanho de pratos, flutuavam na superfície imóvel. O que parecia ser quilómetros de paredes espelhadas refletia velas perfumadas que tremeluziam sobre castiçais elaborados espalhados por todo o banheiro. Num canto havia uma espreguiçadeira forrada de seda, cheia de almofadas decorativas. A pia de ouro era do tamanho de uma banheira. As torneiras eram de cristal, combinando com os inúmeros vidros de cosméticos e perfumes dispostos na bancada. Hammond entendeu que os boatos deviam ser acanhados na avaliação de quanto Lute tinha gasto na reforma da casa. Apesar de já ter estado lá diversas vezes em vários eventos sociais, aquela era a primeira vez que subia ao segundo andar. Tinha ouvido falar da opulência, mas não esperava nada parecido com aquele luxo todo. E também não esperava encontrar a viúva recente nua e gemendo de prazer enquanto um massagista sarado alisava a parte de trás da sua coxa.

  • Você não se incomoda, não é, Hammond? - perguntou Davee Pettijohn enquanto o massagista enrolava nela uma toalha para cobrir tudo, menos os ombros e a perna que ele estava massageando.

Hammond segurou e apertou a mão que ela lhe estendeu.

  • Se você não se incomodar eu não me incomodo. Ela deu um sorriso malicioso.
  • Você me conhece muito bem. Não tenho nem um pingo de modéstia. Um defeito que devia enlouquecer a minha mãe. Claro que ela era maluca de qualquer jeito.

Ela apoiou o queixo nas duas mãos abertas e suspirou quando o massagista apalpou suas nádegas.

  • Estamos bem no meio da sessão de noventa minutos, e é tão divino que simplesmente não tive coragem de pedir ao Sandro para parar.
  • Não a culpo. Mas é engraçado.
  • O quê?
  • Lute fez massagem no spa do hotel ontem.

-Antes ou depois de ser assassinado? - Hammond franziu a testa e ela riu. - Só estava brincando. Por que não se serve de um pouco de champanhe?

Com um gesto indolente, ela apontou para o balde de gelo de prata perto da penteadeira. A rolha já tinha sido tirada, mas na bandeja de prata ao lado do balde havia uma flute que não tinha sido usada. Passou pela cabeça de Hammond que Davee já devia estar esperando a visita dele aquela noite. Era uma ideia perturbadora.

  • Obrigado, mas é melhor não – disse ele.
  • Oh, pelo amor de Deus! - disse ela com impaciência. - Não seja um estraga-prazeres. Você e eu nunca tivemos de fazer cerimónia um com o outro; para que começar agora? Além do mais, acho que o champanhe é a bebida perfeita quando seu marido é baleado na suíte da cobertura do próprio hotel. E enquanto estiver com a mão na massa, aproveite para servir mais uma dose para mim também.

A flúte de champanhe que ela usava estava no chão, ao lado da mesa de massagem. Sabendo que em geral era inútil discutir com Davee, Hammond encheu o copo dela, depois serviu-se de meia flúte. Quando levou o champanhe para ela, ela bateu com sua flute na dele.

  • Saúde! Aos funerais e a outros momentos divertidos.
  • Não compartilho exatamente com os seus sentimentos – disse ele depois de dar um gole.

Ela passou a língua nos lábios para saborear o gosto do vinho.

  • Você pode estar certo. Talvez só se deva beber champanhe em casamentos.

Quando ela olhou para ele, Hammond sentiu o rosto ficar quente. Adivinhando exatamente o que ele estava pensando, ela deu risada. Era a mesma risada que ele lembrava que ela dera numa noite de julho, anos antes, quando os dois eram convidados de um casamento de um amigo mútuo. Tinham usado gardênias, lírios Casa Blanca, peônias e outras flores perfumadas para decorar o jardim da casa da noiva onde deram a recepção. O cheiro forte das flores era penetrante e tão intoxicante quanto o champanhe que ele tinha bebido, num esforço para se refrescar um pouco, apertado dentro do seu smoking. Como se tivessem sido escolhidas por uma agência de modelos, as oito damas de honra eram louras lindíssimas. Com o vestido comprido rosa-claro e um decote profundo, Davee estava ainda mais estonteante que as outras.

  • Você está tão apetitosa que dá vontade de comê-la – ele tinha dito para ela do lado de fora da capela segundos antes do casamento.
  • Ou beber, talvez. Está parecendo que você devia ter um guardachuvinha de papel saindo do topo da sua cabeça.
  • Um guarda-chuva de papel é tudo que esse traje precisa para ser cem por cento nojento.
  • Você não gostou? - perguntou ele, querendo provocá-la. ‘ Ela mostrou o dedo para ele.

Mais tarde, na recepção, quando os dois saíram da pista de dança depois de uma música animada, “Shout”, de Otis Day e os Knights, ela abanou o rosto e reclamou:

-Além de esse vestido ter frufrus demais, é a merda de roupa mais quente que já pus no corpo.

  • Então tire.

Os Burton e os Cross eram amigos antes de Davee ou Hammond nascerem. Consequentemente, as primeiras lembranças que ele tinha das festas de Natal e churrascos na praia incluíam Davee. Quando as crianças eram levadas para suas camas no segundo andar da casa enquanto os adultos continuavam se divertindo lá embaixo, Davee e ele pregavam peças nas babás que tinham a má sorte de estarem encarregadas de tomar conta deles. Fumaram o primeiro cigarro da vida juntos. Com ar de superioridade, ela confidenciou para ele quando teve sua primeira menstruação. Na primeira vez que ela tomou um porre, foi no carro dele que vomitou. Na noite em que perdeu a virgindade, Davee telefonou para Hammond assim que chegou em casa, para dar um relatório detalhado sobre o acontecimento. Desde quando eram pequenos, trocando o vocabulário de palavrões, por toda a adolescência, falavam sacanagens um para o outro. Primeiro porque era divertido, e porque ninguém ficava sabendo. Nenhum dedurava o outro, nem se sentia ofendido. Quando passaram a ser jovens adultos, a brincadeira adquiriu um tom mais sexual e de flerte, mas continuava sem sentido e, portanto, segura. Mas antes daquele casamento em julho, eles estavam cada um na sua respectiva universidade – ele na Clemson e ela na Vanderbilt – e não se viam havia bastante tempo. Estavam mais que um pouquinho bêbados de champanhe e afetados pelo romantismo da ocasião. Por isso, quando Hammond fez aquele desafio malvado, Davee olhou para ele com os olhos enevoados e respondeu:

  • Talvez eu tire mesmo.

Enquanto todos se reuniam em círculo para ver os noivos cortando o bolo do casamento, Hammond roubou uma garrafa de champanhe de um dos bares e puxou Davee pela mão. Esgueiraram-se até o quintal da casa vizinha, sabendo que o vizinho estava na recepção. Os gramados das duas casas eram divididos por uma sebe espessa e alta cultivada havia décadas para garantir o tipo de privacidade que Hammond e Davee procuravam. O espoucar da rolha da garrafa de champanhe soou como um tiro de canhão quando Hammond a tirou. Isso fez com que os dois começassem a rir histericamente. Ele serviu uma taça para cada um e beberam tudo. Depois uma segunda. Num certo ponto da terceira taça, Davee pediu para ele ajudá-la a desabotoar os botões das costas do vestido de dama de honra, e tirou tudo, inclusive o sutiã sem alças, a cinta-liga e as meias. Ela hesitou quando enfiou os polegares no elástico da cintura da calcinha, mas ele sussurrou:

  • Duvido, Davee – um refrão familiar da infância e da juventude dela.

Davee nunca recuava quando recebia um desafio. E aquela noite não foi exceção.

Ela tirou a calcinha e deixou Hammond olhar bem para o recheio dela, depois desceu de costas os degraus da piscina e entrou na água fria. Hammond tirou o smoking numa fração do tempo que tinha levado para vesti-lo, isolando as abotoaduras que nunca mais seriam encontradas... pelo menos por ele. Ele ficou em pé na beira da piscina e Davee arregalou os olhos de espanto e admiração.

  • Hammond, querido, você melhorou muito desde aquele dia em que nos pegaram brincando de médico.

Ele mergulhou.

Fora os beijos experimentais da adolescência, quando concordavam que era “nojento” demais até pensar em abrir a boca e encostar a língua, eles jamais tinham se beijado. E naquela noite também não se beijaram. Não perderam tempo com isso. O perigo de serem pegos aumentava a excitação deles a tal ponto que as preliminares nem eram necessárias. No momento em que ele a alcançou, puxou-a para cima das suas coxas e penetrou-a. Foi escorregadio. Foi rápido. Os dois riram o tempo todo. Depois daquela noite ele não a viu mais por uns dois anos. Quando se reencontraram, ele fingiu que a escapada na piscina nunca acontecera, e ela fez a mesma coisa. Provavelmente nenhum dos dois queria que aquela única experiência sexual estragasse a amizade de uma vida inteira. Nunca tinham mencionado o fato até aquele momento. Ele nem se lembrava como se vestiram de novo aquela noite, ou como se explicaram para as outras pessoas na recepção do casamento, ou se tiveram de dar explicações para alguém. Mas ele se lembrava muito bem da risada de Davee, escandalosa e forte, sedutora e sensual. A sua risada não tinha mudado. Mas o sorriso dela era quase triste.

-Nós nos divertimos bastante quando éramos crianças, não acha?

  • disse ele.
  • É, nos divertimos muito.

Então ela olhou para as bolhas na sua taça e ficou pensativa um instante antes de beber.

  • Infelizmente tivemos de nos tornar adultos e a vida ficou um saco.

Ela deixou o braço cair sem vida ao lado da mesa. Hammond tirou aflúte da mão dela antes que caísse e se espatifasse no chão de mármore.

  • Sinto muito a morte do Lute, Davee. Foi para isso que eu vim, para dizer que acho horrível isso que aconteceu. Tenho certeza que meus pais vão telefonar ou vir até aqui para vê-la amanhã.
  • Ah, amanhã haverá uma procissão de gente compadecida fazendo fila por aqui. Recusei-me a receber qualquer pessoa hoje, mas amanhã não vou mais poder evitar. Trazendo seus ensopados de galinha e gelatina de limão, eles vão se amontoar aqui dentro para ver como estou reagindo.
  • E como é que você está reagindo?

Davee notou a mudança no tom de voz dele, rolou de lado, puxou a toalha para a frente do corpo e sentou, balançando as pernas na beirada da mesa.

  • Você está perguntando como meu amigo ou como o provável herdeiro da promotoria pública?
  • Eu poderia contestar essa questão, mas estou aqui como seu amigo. Nem devia precisar dizer isso.

Ela respirou fundo.

  • bom, não espere luto, penitência ou camisa de cilício. Nenhum desses rituais da Bíblia. Não vou cortar fora um dedo nem nada que as viúvas índias fazem nos filmes. Não, vou me comportar de acordo. Graças a Lute as fofocas terão bastante combustível sem que eu tenha de demonstrar o que realmente sinto.
  • E o que é?

Ela deu um sorriso brilhante como na noite do seu baile de debutante.

  • Estou achando ótimo o filho-da-mãe estar morto – os olhos cor de mel desafiaram Hammond a fazer qualquer comentário. Ele não fez, ela simplesmente riu, e então virou-se para o massagista: - Sandro, seja bonzinho e faça meu pescoço e meus ombros, por favor.

Desde o momento em que ela se sentou, ele ficou encostado na parede espelhada, os braços cruzados sobre o peito musculoso. Sandro era bonito e muito forte. O cabelo preto e liso estava penteado para trás com muito gel. Os olhos eram negros como azeitonas maduras. Quando ele se aproximou de Davee por trás e pôs as mãos nos ombros dela, seus olhos mediterrâneos e intensos olharam fixamente para Hammond, como se avaliasse um competidor. Era óbvio que seus serviços iam além da massagem. Hammond queria dizer para ele relaxar, que Davee e ele eram velhos amigos, nada mais, e que ele não precisava ter ciúme nenhum. Ao mesmo tempo, ele queria avisar Davee que aquela não era hora de afrontar as convenções trepando com o massagista. Pelo menos uma vez na vida ela devia exercitar a discrição. A não ser que Hammond estivesse enganado, e levando em conta as observações de Steffi, o nome dela estaria no topo da lista de suspeitos de Rory Smilow. Tudo que ela fizesse seria acompanhado muito de perto.

  • Admiro a sua candura, Davee, mas...
  • Por que mentir? Você gostava de Lute?
  • Não – respondeu ele sinceramente e sem hesitar. - Ele era um bandido, um trapaceiro e um oportunista sem escrúpulos. Machucava todas as pessoas que podia e usava as que não podia machucar.
  • Você também está sendo cândido, Hammond. A maioria das pessoas sentia isso. Não sou a única a desprezá-lo.
  • Não, mas você é viúva dele.
  • Eu sou viúva dele. Sou uma porção de coisas. Mas uma coisa que não sou é hipócrita. Não vou lamentar a morte desse filho-da-mãe.
  • Davee, se as pessoas erradas ouvissem você dizer coisas como essa, criariam problemas para você.
  • Como Rory Smilow e aquela vaca que ele trouxe para cá a noite passada?
  • Exatamente.
  • Aquela tal de Steffi trabalha com você, certo? - assentiu ele com a cabeça, e ela disse: - Bem, eu a achei um horror.

Ele sorriu.

  • Pouca gente gosta da Steffi. Ela é muito ambiciosa. Afeta as pessoas do modo errado, mas não dá a mínima. Ela não pretende ganhar nenhum campeonato de personalidade.
  • É bom, porque ia perder.
  • Na verdade ela é muito agradável depois que a conhecemos.
  • Dispenso.
  • Você tem de considerar de onde ela vem.
  • De algum lugar ao Norte. Ele deu uma risadinha.
  • Não estava me referindo a uma região, Davee. Quis me referir à motivação dela. Ela teve algumas decepções na carreira. Quer compensar esses contratempos e, às vezes, exagera um pouco.
  • Se você não parar de defendê-la, vou acabar ficando de mau humor.

Ela pôs o braço atrás da cabeça e levantou o cabelo para Sandro ter acesso livre. Era uma pose muito provocante, expondo o lado de baixo do braço e parte do seio. Hammond entendeu que ela sabia que era provocante e imaginou se Davee estava querendo distraí-lo de propósito.

  • Você acha mesmo que eles vão suspeitar de mim? - perguntou ela.
  • Você vai herdar muito dinheiro agora.
  • Ah é, tem isso – concordou ela pensativa. - E há também o consenso de que o principal objetivo da vida do meu falecido marido era enrabar o maior número possível de amigas minhas, e uso esse termo de modo superficial.

Não sei se ele se metia com elas porque elas são, de modo geral, as mulheres mais desejáveis de Charleston, ou se eram desejáveis para ele só porque eram minhas amigas. Provavelmente essa última hipótese, porque o rabo de Georgia Arendale é tão grande quanto um navio de guerra, e isso não o impediu de levá-la para Kiawah para passarem um dia na praia. Aposto que ela sofreu uma queimadura séria porque precisaria de um tubo inteiro de Coppertone para cobrir aquela celulite toda. “Emily Southerland tem uma pele que faria parar um relógio, apesar de ter feito inúmeros peelings químicos, mas Lute transou com ela assim mesmo, naquele horrendo toalete do primeiro andar da casa dela, tem uma capa no vaso que imita pele, na festa de ano-novo que ela deu.” Hammond riu, apesar de Davee não estar tentando ser engraçada.

  • E você, claro, enquanto isso, era fiel aos seus votos do casamento.
  • É claro.

Ela deixou a toalha cair um ou dois centímetros e piscou os olhos para ele, enfatizando a mentira.

  • O seu casamento não era exatamente um modelo, Davee.
  • Eu nunca disse que amava Lute. Na verdade, ele sabia que eu não o amava. Mas não fazia mal, porque ele também não me amava. Mesmo assim, o casamento servia para um propósito. Ele queria exibir os direitos que tinha sobre mim. Ele era o único homem em Charleston que tinha culhões suficientemente grandes para possuir Davee Burton. Em troca, eu... - ela fez uma pausa e fez cara de desgosto. - Tive meus motivos para casar com ele, mas não eram a busca da felicidade.

Ela abaixou o braço e soltou o cabelo enquanto Sandro começava a trabalhar sua espinha lombar.

  • Você está fazendo careta, Hammond. Qual é o problema?
  • Tudo que você diz parece motivo para cometer um assassinato. Ela deu uma risada de desprezo.
  • Se eu tivesse de matar Lute, não teria feito desse jeito. Não teria me abalado até o Centro numa tarde quente de sábado, quando esta cidade fica cheia de turistas nortistas fedorentos e suados, levando uma arma e atirando nele pelas costas.
  • De qualquer forma, seria isso que você ia querer que a polícia pensasse.
  • Psicologia invertida? Não sou tão inteligente assim, Hammond.

Ele olhou para ela de um jeito que dizia Ah, é sim.

  • Tudo bem – disse ela, interpretando corretamente a expressão dele -, eu sou. Mas também teria de ser muito esforçada, e ninguém nunca me acusou de fazer alguma coisa que não me agrada, ou de sacrificar meu conforto físico por qualquer que fosse o motivo. Eu simplesmente não sinto paixão por nada.
  • Acredito em você – disse ele, sinceramente. - Mas acho que não existe precedente legal para basear a defesa na preguiça.
  • Defesa? Você realmente acha que vou precisar me defender? O detetive Smilow me considera seriamente suspeita? Isso é loucura! Exclamou ela. - Ora, ele poderia matar Lute com mais facilidade do que eu. Smilow nunca perdoou Lute pelo que aconteceu com a irmã dele.

Hammond franziu a testa.

  • Você se lembra? Margaret, irmã de Smilow, foi a primeira mulher do Lute. Já devia ser maníaco-depressiva sem que ninguém soubesse, mas o casamento com Lute foi a sua desgraça. Um dia ela surtou e devorou um vidro de comprimidos no almoço. Quando ela se matou Smilow culpou Lute, dizendo que ele tinha sido negligente e que a tinha explorado emocionalmente, sem nenhuma sensibilidade para compreender as carências de Margaret. De qualquer modo, no enterro dela eles trocaram insultos que provocaram um enorme escândalo. Você não se lembra?
  • Agora estou lembrando.
  • Smilow odeia Lute desde então. Por isso não vou me preocupar com ele – disse ela, mudando de posição na mesa sob orientação de Sandro. - Se ele me acusar de ter matado Lute, simplesmente viro a mesa e lembro de quantas ameaças de morte ele me fez.
  • Eu daria tudo para ver isso – disse Hammond. Devolvendo o sorriso dele, ela disse:
  • Você já bebeu todo o seu champanhe. Quer mais?
  • Não, obrigado.
  • Eu quero mais – enquanto ele servia, ela perguntou: - Suponho que Monroe Mason falou com você? Você será o promotor quando eles capturarem o assassino?
  • O combinado foi esse. Obrigado pela recomendação. Ela bebeu daflúte que ele deu para ela.
  • Posso ser qualquer outra coisa, Hammond, mas sou uma amiga leal. Nunca duvide disso.

Ele desejou que ela não tivesse dito isso. O promotor municipal Mason tinha informado à equipe que ia se aposentar logo. O assistente do promotor, Wallis, tinha uma doença fatal e não podia concorrer ao cargo máximo na eleição de novembro. Hammond era o terceiro a pleitear o cargo. E tinha praticamente garantido o apoio de Mason como sucessor dele.

Mas o fato de Davee ter intercedido a seu favor junto a Mason deixava Hammond aflito. Ele apreciava sua recomendação; porém, mais tarde, podia se transformar num conflito de interesses se ela fosse julgada pelo assassinato do marido.

  • Davee, é meu dever perguntar... o seu álibi é bom?
  • Creio que o termo é “perfeito”.
  • Ótimo.

Ela jogou a cabeça para trás e deu uma risada.

  • Hammond, querido, você é uma gracinha! Está mesmo com medo de ter de me acusar de assassinato, não está?

Ela deslizou da mesa de massagem e se aproximou dele, segurando a toalha na frente do corpo e deixando-a aberta atrás. Ficou na ponta dos pés e beijou o rosto de Hammond.

  • Não precisa se preocupar. Se eu fosse atirar no Lute não seria pelas costas. Que graça teria isso? Eu ia querer olhar bem nos olhos do filho-da-mãe quando apertasse o gatilho.
  • Essa defesa não é melhor que a preguiça, Davee.
  • Não preciso de defesa. Juro que não matei Lute – demonstrou desenhando umXinvisível sobre o peito. - Eu nunca mataria ninguém.

Ele ficou aliviado ao ouvi-la negar com tanta convicção. Então ela estragou tudo, completando o raciocínio:

  • Aqueles uniformes da prisão são muito fora de moda.

Davee estava deitada de costas, de olhos fechados, satisfeita e relaxada com a massagem de Sandro seguida de sexo que não exigiu nenhuma participação dela, a não ser curtir o próprio orgasmo. Ela sentiu a pressão da ereção insaciada dele contra sua coxa, mas ignorou. Ele acariciou de leve o mamilo dela com a língua.

  • É estranho – murmurou ele com seu sotaque carregado.
  • O quê?
  • O seu amigo deu indiretas, mas em nenhum momento perguntou se você matou o seu marido.

Ela o empurrou e olhou para ele.

  • O que você quer dizer? Ele deu de ombros.
  • Ele é seu amigo, por isso não queria ter certeza de que foi você. Os olhos de Davee se moveram para um espaço vazio logo atrás

do ombro dele, e ela sem querer disse em voz alta o que estava pensando.

  • Ou talvez ele já saiba, com certeza, que não fui eu.

Quando Hammond se afastou da mansão Pettijohn, ele pediu a Deus para nunca ter de chamar Davee para testemunhar no tribunal, por dois motivos muito sérios. O primeiro, porque Davee e ele eram amigos. Ele gostava dela. Ela não era nenhum pilar de virtude, mas ele a respeitava por não fingir que era. Quando ela afirmava que não era hipócrita, não era uma afirmação vazia. Ele conhecia dúzias de mulheres que fofocavam maldosamente sobre ela, e que não eram mais íntegras do que ela. A diferença é que elas pecavam em segredo. Davee pecava às claras. Ela era considerada vaidosa e egoísta, e era mesmo. Mas essa reputação quem cultivava era ela. Deliberadamente, dava motivos para seus críticos estremecerem com o seu comportamento. Nenhum deles percebia que a persona que eles censuravam não era a verdadeira Davee. Os melhores aspectos da sua personalidade Davee mantinha escondidos. Hammond concluiu que a charada era o mecanismo de autodefesa dela para não se machucar ainda mais do que tinha sido na infância. Ela afastava as pessoas antes que tivessem oportunidade de rejeitá-la. Maxine Burton foi uma péssima mãe. Davee e as irmãs foram privadas da sua atenção e do seu afeto. Ela não fez nada para merecer o amor ou a dedicação das filhas. No entanto, Davee visitava religiosamente a mãe toda semana na clínica de elite onde estava confinada. Além de financiar e supervisionar o seu tratamento, Davee se envolvia diretamente com ela, cuidando das necessidades pessoais da mãe nas suas visitas rotineiras. Provavelmente Hammond era a única pessoa que sabia disso e não teria descoberto se Sarah Birch não tivesse feito essa confidência para ele. O segundo motivo que fazia Hammond não querer interrogar Davee no julgamento era que ela mentia muito bem. Ouvi-la falar era um prazer tão grande que a pessoa deixava de se importar se ela dizia ou não a verdade. Os jurados achavam testemunhas como Davee divertidas. Se ela fosse chamada para testemunhar, iria para o tribunal vestida para matar. Só a aparência dela já faria o júri se empertigar nas cadeiras e notá-la. Eles podiam cochilar durante o testemunho de outras pessoas, mas ouviriam com atenção e esperariam com ansiedade cada palavra coberta de açúcar que sairia dos lábios de Davee. Se ela dissesse que, apesar de não ter matado Lute, não sentia a morte dele, que ele era um marido infiel, que a enganava tantas vezes que nem dava para contar, que ele era basicamente mau e cruel e que merecia morrer, os jurados de ambos os sexos provavelmente concordariam. Ela teria persuadido a todos que o caráter e as trapaças do filho-da-mãe justificavam o crime. Não, ele não ia querer expor Davee ao julgamento pelo assassinato do marido. Mas se tivesse de fazer isso, ele faria. Receber esse caso tinha sido a melhor coisa que podia acontecer na carreira de Hammond. Ele esperava que a equipe de Smilow lhe desse bastante material com que trabalhar, que o acusado não se declarasse culpado para que o caso fosse julgado pelo tribunal do júri. Esse era um caso em que ele podia enfiar os dentes. Certamente seria um desafio. Ia exigir toda a sua concentração. Mas também seria uma excelente prova. Ele pretendia definitivamente concorrer ao cargo de promotor público em novembro. Queria vencer. Mas não queria vencer porque era mais bonito, ou por ter um pedigree melhor, ou por ter mais recursos do que o outro ou os outros candidatos. Ele queria merecer o cargo. Raramente acontecia um caso com o peso do assassinato de Lute Pettijohn. Era por isso que precisava dele. Por isso tinha omitido revelar seu encontro com Pettijohn para Monroe Mason. Ele simplesmente tinha de ter esse caso, e não estava disposto a deixar que qualquer coisa o impedisse de levá-lo a julgamento. Era o veículo perfeito para dar-lhe a exposição pública que precisava antes de novembro. Era também o veículo perfeito para afrontar o pai dele.

Aquele era o motivo mais atraente de todos. Alguns anos antes, Hammond tinha tomado uma decisão na carreira, de mudar de defensor para promotor. Preston Cross se opôs violentamente à decisão do filho, citando as diferenças do potencial de ganhos financeiros e dizendo para Hammond que ele era louco de se contentar com o salário de um funcionário público. Pouco tempo atrás, Hammond tinha descoberto que o nível de renda de um promotor público não era o maior problema para o pai dele. A mudança pôs os dois em lados opostos. Como Preston era sócio de Lute Pettijohn em alguns negócios de terras inescrupulosos, ele temia ser processado pelo próprio filho. Só recentemente Hammond tinha feito essa descoberta. Ele ficou enojado. O confronto que tiveram sobre o assunto foi amargo e acrescentou uma nova dimensão à inimizade entre os dois. Mas ele não podia pensar nisso agora. Sempre que pensava no pai, ele ficava com a mente entorpecida. Tirar camada após camada do relacionamento deles para examinar mais a fundo consumia tempo, era emocionalmente extenuante e acabava sendo improdutivo. Ele não tinha muita esperança de chegar a uma reconciliação. Por hora ele resolveu arquivar esse problema e se concentrar no que tinha imediatamente se tornado prioritário: o caso. O momento que tinha escolhido para romper com Steffi foi feliz. Estava livre de uma responsabilidade que o deixava infeliz e que poderia ter prejudicado a sua concentração. Ela ficaria furiosa de saber que tinha sido designada para o posto de co-piloto, mas ele saberia lidar com o mau humor dela se fosse necessário. Para Hammond Cross aquele dia significava um novo começo que, na verdade, tinha começado na noite anterior. Dirigindo o carro para longe da mansão Pettijohn, com apenas uma das mãos, ele pegou no bolso da frente da camisa o pedaço de papel que tinha posto ali mais cedo e verificou o endereço escrito nele. Ofegante, Steffi entrou correndo no quarto do hospital.

  • Vim o mais rápido que pude. O que foi que perdi? Smilow tinha ligado para o seu celular logo antes de Steffi sair da

casa de Hammond. Como prometera, ele tinha telefonado assim que o médico encarregado dera permissão para interrogar os pacientes.

  • Quero estar nessa, Smilow – disse ela para ele ao telefone.
  • Não posso ficar esperando você chegar. O médico pode retirar a oferta se eu não agarrá-la logo.
  • Tudo bem, mas vá devagar. Estou a caminho.

O bairro do condomínio de Hammond não ficava longe do complexo hospitalar. Mesmo assim, ela excedeu todos os limites de velocidade para chegar lá. Estava muito ansiosa para saber se os pacientes com intoxicação alimentar tinham visto alguém perto da suíte de cobertura do hotel de Pettijohn. Logo que chegou assim apressada, ela parou um pouco na porta e depois cruzou o piso de cerâmica até o leito do hospital. O paciente nele era um homem com cerca de cinquenta anos, cujo rosto tinha a cor da farinha de trigo, os olhos afundados no crânio e emoldurados por círculos escuros. A mão direita estava presa a uma agulha de soro. Havia uma comadre e um patinho ao alcance dele na mesa ao lado da cama. Uma mulher que Steffi concluiu que devia ser a esposa dele estava sentada numa cadeira ao lado. Ela não parecia doente, apenas exausta. Ainda usava a roupa de turista, ténis, short de caminhada e uma camiseta onde se lia com letras cintilantes: GIRLS RAISED IN THE SOUTH [mulheres criadas no Sul, e grits – as iniciais – significa espírito indómito] .Smilow, em pé ao lado da cama, fez as apresentações:

  • Sr. E sra. Daniels, Steffi Mundell. A srta. Mundell é do escritório do promotor público. Está intimamente envolvida na investigação.
  • Olá, sr. Daniels. -Oi.
  • O senhor está melhor?
  • Parei de rezar para morrer.
  • Imagino que isso representa alguma melhora – ela olhou para a mulher dele do outro lado da cama. - A senhora não ficou doente, sra. Daniels?
  • Tomei sopa de caranguejo fêmea – respondeu ela com um sorriso pálido.
  • Os Daniel são os últimos com quem estou conversando – disse Smilow. - Os outros do grupo deles não puderam nos ajudar.
  • E eles podem?
  • O sr. Daniels é uma possibilidade.

Sem parecer muito contente com isso, o homem no leito resmungou:

  • Talvez eu tenha visto alguém.

Sem conseguir conter sua impaciência, Steffi insistiu para que ele fosse mais preciso:

  • O senhor viu ou não viu alguém? A sra. Daniels ficou de pé.
  • Ele está muito cansado. Isso não podia esperar até amanhã? Depois de mais uma noite de descanso?

Steffi percebeu seu erro no mesmo instante e fez força para desacelerar.

  • Sinto muito. Perdoe-me por ser tão incisiva. Temo que adotei certos maus hábitos na convivência com as pessoas que processei. Estou acostumada a lidar com assassinos, ladrões e estupradores, em geral reincidentes, não gente boa como vocês. Não é comum eu interagir com pessoas que pagam impostos, obedecem às leis e temem a Deus.

Depois desse discurso ela não teve coragem de olhar para Smilow, sabendo que veria escárnio na expressão dele. Mordendo o lábio, a sra. Daniels consultou o marido:

  • É você que sabe, meu bem. Está disposto a fazer isso agora? Steffi tinha avaliado os dois e imediatamente concluiu que não

haveria disputa entre o QI dela e o deles. Aproveitou a vantagem da indecisão do casal para manipulá-los um pouco.

  • É claro que se quiserem esperar até amanhã de manhã para responder às nossas perguntas, tudo bem, sr. Daniels. Mas, por favor, compreenda a nossa posição. Um líder da nossa comunidade foi assassinado a sangue-frio. Foi baleado pelas costas sem provocação. Nenhuma que pudéssemos determinar, de qualquer maneira – ela deu um tempo para eles assimilarem aquela informação, e depois acrescentou:
  • Esperamos pegar esse criminoso brutal antes de ele ter outra oportunidade de atacar.
  • Então não posso ajudá-los.

Todos ficaram atónitos com a inesperada declaração do sr. Daniels. Smilow foi o primeiro a recuperar a voz:

  • Como sabe que não pode ajudar?
  • Porque a sra. Mundell aqui disse que o criminoso foi um homem, e a pessoa que vi foi uma mulher.

Steffi e Smilow trocaram olhares.

  • Usei o masculino de forma genérica – explicou ela.
  • Ah, bem, quem eu vi foi uma mulher – disse Daniels, recostando no travesseiro. - Só que ela não parecia uma assassina.
  • Poderia explicar isso melhor? - pediu Steffi.
  • Quer dizer, como ela era?
  • Comece pelo começo e vá nos contando – sugeriu Smilow.
  • Bem, nós... isto é, nosso grupo do coral... saímos do hotel logo depois do almoço. Cerca de uma hora depois, comecei a me sentir mal. No início pensei que era por causa do calor. Mas dois garotos que estavam conosco já tinham sentido náuseas e dores de barriga, por isso suspeitei que fosse mais que isso. Fui piorando a cada minuto. Finalmente, disse para a minha mulher que ia voltar para o hotel, tomar um antiácido ou qualquer coisa assim, e que os alcançaria mais tarde.

A sra. Daniels confirmou isso balançando a cabeça solenemente, sem dizer nada.

  • Quando voltei a pé para o hotel, eu estava a ponto de... de vomitar. Tive medo de não conseguir chegar a tempo ao meu quarto.
  • Quando o senhor viu a mulher? - perguntou Steffi, querendo que ele fosse direto ao ponto.
  • Quando cheguei ao nosso quarto.
  • Que ficava no quinto andar – verificou Smilow.
  • Cinco, zero, seis – disse Daniels. - Notei outra pessoa no fim do corredor e olhei para ela. A mulher estava parada na frente de uma outra porta.
  • Fazendo o quê? - perguntou Smilow.
  • Não estava fazendo nada. Só olhando para a porta, como se tivesse batido e esperasse alguém abri-la.
  • A que distância ela estava do senhor?
  • Humm, não muito longe. Mas longe. Nem prestei muita atenção. Sabe como é quando a gente olha nos olhos de uma pessoa estranha e só tem vocês dois no lugar? Foi assim. Você não quer parecer muito anti-social, nem amigável demais. Hoje em dia a gente tem de tomar cuidado com as pessoas.
  • O senhor falou com ela?
  • Não, não, nada disso. Só olhei na direção dela. A verdade é que eu não pensava em nada além de chegar ao banheiro.
  • Mas deu uma boa olhada nela?
  • Não tão boa.
  • Suficientemente boa para determinar a idade dela?
  • Ela não era velha. Mas também não era nenhuma menina. Mais ou menos a sua idade – disse ele para Steffi.
  • De alguma outra raça?
  • Não.
  • Alta, baixa?

Daniels franziu a testa e passou a mão na barriga.

  • Meu bem? - disse a mulher dele, pegando uma bacia, aflita, e pondo-a embaixo do queixo dele.

Ele empurrou a bacia.

  • Só uma dorzinha.
  • Quer um pouco de Sprite?
  • Um gole. - A sra. Daniels pôs a xícara coberta perto dos lábios dele e ele sugou através de um canudo com uma dobra. Quando terminou, ele olhou para Smilow de novo. - O que o senhor perguntou... ah, a altura dela? - ele balançou a cabeça. - Não notei. Não era nenhum extremo. Acho que ficava na média.
  • Cor do cabelo? Ela era loura? - perguntou Steffi.
  • Não muito.
  • Não muito? - repetiu Smilow.
  • Não era muito loura. Não achei que fosse do tipo Marilyn Monroe, entende? Mas o cabelo também não era escuro. Assim, médio.
  • Sr. Daniels, pode nos dar uma descrição física geral?
  • Quer dizer, se ela era... como, gorda?
  • Ela era? -Não.
  • Magra?
  • É. Mais para magra. Bem, meio magra, acho que se pode dizer. Sabe, eu realmente não prestei muita atenção nela. Só estava tentando evitar provocar um acidente horrível ali no corredor.
  • Acho que isso é tudo que ele pode dizer – disse a sra. Daniels para os dois. - Se quiserem perguntar mais alguma coisa, podem voltar amanhã.
  • Uma última pergunta, por favor – disse Smilow. - O senhor viu essa mulher entrar no quarto do sr. Pettijohn?
  • Não. Destranquei a minha porta com aquela chave que parece um cartão de crédito o mais rápido possível, e entrei – ele esfregou a barba por fazer no queixo. -Aliás, nem sei se era ou não o quarto onde o cara foi morto. Podia ser qualquer quarto daquele corredor.
  • Era a suíte de cobertura. A porta fica mais para dentro – disse Steffi. - É diferente dos outros. Se apontássemos a suíte do sr. Pettijohn para o senhor, poderia determinar se foi diante daquela porta que o senhor viu a mulher parada?
  • Duvido muito. Como já disse antes, só dei uma olhada rápida para aquele lado do corredor. Registrei que havia uma mulher parada diante de uma porta, esperando alguém abri-la. Apenas isso.
  • O senhor tem certeza de que ela não estava saindo, se afastando do quarto?
  • Não, não tenho certeza – Daniels estava começando a parecer irritado. - Mas foi essa a impressão que tive. Não havia nada estranho nela ou na situação. Sinceramente, se vocês não perguntassem eu nunca mais pensaria nela. Vocês perguntaram se vi alguém no corredor aquela tarde, e foi ela que vi.

A sra. Daniels interrompeu de novo. Steffi e Smilow se desculparam por ter de incomodá-lo, agradeceram a informação, desejaram que ele se recuperasse logo e foram embora.

No corredor do hospital, Smilow parecia abatido.

  • Maravilha! Temos uma testemunha ocular que viu uma mulher parada não muito longe dele, mas bem longe, que poderia ou não estar na frente da suíte de Pettijohn. Não era velha nem jovem. Altura média. Cabelo “meio médio” e “meio magra”.
  • Estou desapontada, mas não surpresa – disse Steffi. - Desconfiei de que ele não ia se lembrar de nada devido à preocupação dele naquele momento.
  • Merda! - xingou Smilow.
  • Exatamente.

Então eles olharam um para o outro e caíram na risada, e ainda estavam rindo quando a sra. Daniels saiu do quarto do marido.

  • Ele finalmente me convenceu a voltar para o hotel. Não fui lá desde que a ambulância nos trouxe para cá. Vocês vão descer? Perguntou ela educadamente quando o elevador chegou.
  • Ainda não – disse Steffi para ela. - Tenho outros assuntos para conversar com o detetive Smilow.
  • Boa sorte na solução do mistério.

Eles agradeceram a cooperação dela e a disposição para ajudar, então Steffi levou Smilow para a sala de espera, que estava vazia naquele momento. Depois que se sentaram de frente um para o outro, Smilow informou, sem rodeios, que Hammond Cross seria o promotor do caso Pettijohn.

  • Mason premiou seu menino de ouro.

Sem fazer nenhum esforço para mascarar a decepção ou o ressentimento, Steffi perguntou quando ele tinha sabido disso.

  • Esta noite mesmo. O chefe Crane telefonou e me contou porque eu tinha feito campanha por você.
  • Obrigada. Apesar de não ter servido para nada – disse ela amargamente. - Quando é que eu ia ficar sabendo dessa reviravolta?
  • Amanhã, acho.

Hammond não sabia do assassinato de Pettijohn até ela contar para ele. Deve ter sido o telefonema de Mason que ele recebeu quando ela ainda estava na casa dele. Foi um tormento duplo ele ter tirado dela um caso que faria a sua carreira, segundos depois de terminar o namoro deles.

  • Davee Pettijohn mexeu os pauzinhos – disse Smilow.
  • Conforme ela prometeu.
  • Ela disse que nunca se contenta com o segundo melhor. Parece que acha que você é a segunda melhor.
  • Não é isso. Não é só isso, quero dizer. Ela prefere muito mais um homem trabalhando para ela do que uma mulher.
  • Bem pensado. Uma química melhor. Além do mais, a família dela e os Cross são amigos há décadas.
  • Não é o que você sabe, mas quem.

Depois de um momento refletindo em silêncio, Steffi levantou e pendurou a alça da sua pesada valise no ombro.

  • Já que não sou mais...

Smilow fez um sinal para ela se sentar novamente.

  • Mason jogou o osso para você. Finja surpresa quando ele lhe der a notícia oficialmente amanhã de manhã.
  • Que tipo de osso?
  • Você será assistente do Hammond.
  • Nenhuma surpresa nisso. Um caso como esse exige pelo menos duas cabeças boas – sentindo que havia mais, ela olhou para Smilow com uma sobrancelha levantada. - E?
  • E é da sua responsabilidade servir de barreira entre nós e manter a interação amigável. Fora isso, você deve tentar evitar derramamento de sangue.
  • Palavras de Mason para o seu chefe?
  • Estou parafraseando – ele deu um sorriso triste. - Mas não se preocupe demais. Duvido que chegue a derramamento de sangue.
  • Não tenho tanta certeza. Já vi vocês dois prestes a travar o que parecia ser um combate mortal. Por falar nisso, o que foi aquilo?
  • Nós nos detestamos.
  • Até aí eu sei, Smilow. Mas o que provocou isso?
  • É uma longa história.
  • Fica para outra hora?
  • Talvez.

Ela ficou frustrada de Smilow não ter prometido contar. Gostaria de conhecer as circunstâncias por trás daquele ódio tão virulento que havia entre Hammond e Smilow. É claro que eram personalidades completamente diferentes. A insociabilidade de Smilow repelia as pessoas e, a não ser que ela estivesse completamente enganada, era proposital. Hammond era carismático. Amizades íntimas com ele tinham de ser merecidas, mas ele era simpático e afável. Smilow era fastidioso e estava sempre impecavelmente arrumado, enquanto que o charme de Hammond era natural e espontâneo. Na faculdade, Smilow seria o único cara na classe a gabaritar a prova e arruinar a curva de classificação para todos os outros. As notas de Hammond eram excelentes também, mas ao mesmo tempo ele tinha sido um aluno muito popular, líder e atleta completo. Os dois eram superempreendedores, mas as conquistas de um eram obtidas com dificuldade, e para o outro vinham fáceis. Steffi se identificava mais com Smilow. Entendia e era capaz de simpatizar com o ressentimento que ele sentia em relação a Hammond, ressentimento que crescia com a própria atitude de Hammond em relação às suas vantagens. Ele não as explorava. Além do mais, ele as rejeitava. Desdenhando o dinheiro da família, ele vivia com o que ganhava. O condomínio onde morava era bom, mas poderia morar muito melhor. Suas únicas extravagâncias eram o veleiro e a cabana, mas nunca fazia propaganda de nenhum dos dois. Seria muito mais fácil odiá-lo se ele usufruísse dos seus privilégios. Seria interessante, para não dizer útil, conhecer a origem da antipatia que havia entre ele e Smilow. Eles estavam do mesmo lado da lei, trabalhavam por um objetivo comum, e, no entanto, pareciam desprezar ainda mais um ao outro do que aos criminosos incorrigíveis.

  • Deve ser difícil – disse Smilow, tirando Steffi de seus devaneios.
  • O quê?
  • Estar sempre competindo com Hammond no âmbito profissional, mas dormindo com ele à noite. Ou será que esse toque de competitividade é o que torna o caso tão excitante?

Pela primeira vez Steffi foi pega de surpresa. Ela olhou fixamente para ele, muda de espanto.

  • Está imaginando como é que sei? - ele deu um sorriso tão frio que provocou arrepios na espinha de Steffi. - Pelo processo de eliminação. Ele é o único homem no prédio do fórum que não se gaba de ter estado aí-ele olhou significativamente para o colo dela. -Juntei as coisas, e a sua reação atónita ao meu palpite apenas serviu para confirmar.

A presunção dele era insuportável, mas ela se recusou a demonstrar raiva ou aborrecimento, o que teria deixado Smilow imensamente satisfeito. Em vez disso, ela não mudou a expressão do rosto e manteve a voz calma.

  • Por que está tão interessado na minha vida amorosa, Smilow? Será que é ciúme? Ele deu uma risada.
  • Flertar não lhe cai bem, Steffi.
  • Vá à merda!

Sem se perturbar, ele continuou:

  • Raciocínio dedutivo é o meu negócio. Sou bom nisso.
  • O que você pretende fazer com essa informação picante?
  • Nada – respondeu ele com um dar de ombros negligente. - Só me diverte saber que o menino de ouro comprometeu sua ética profissional. A armadura dele está começando a perder o brilho? Só um pouquinho?
  • Transar com um colega não é exatamente uma ofensa capital. Quanto às transgressões, é um pequeno insulto.
  • É verdade. Mas, para Hammond Cross, é praticamente um pecado mortal. Senão, para que manter segredo?
  • Bem, você pode parar de se vangloriar. Não há mais nenhum segredo para manter. O caso acabou. Verdade – disse ela quando ele olhou para ela desconfiado.
  • Desde quando?

Ela consultou o relógio de pulso.

  • Duas horas e dezoito minutos atrás.
  • É mesmo? Antes ou depois de Mason dar o caso para ele? 135
  • Uma coisa não teve nada a ver com outra – disse ela, irritada. O canto dos lábios de Smilow tremeu num quase sorriso.
  • Você tem certeza disso?
  • Absoluta. Você pode muito bem saber da verdade, de toda a verdade e nada mais que a verdade, detetive. Hammond me dispensou. Sem mais nem menos. Fim de papo.
  • Por quê?
  • Recebi o discurso básico “estamos indo em direções opostas”, que normalmente se traduz para “estive lá, fiz aquilo e estou pronto para experimentar outro local de férias”.
  • Humm. Você sabe de algum balneário que ele planeje visitar?
  • Nenhum. E em geral a mulher sabe.
  • O homem também.

O tom de voz dele indicava mais que aquelas três palavras. Steffi olhou bem para ele.

  • Ora, Rory! Será que é remotamente possível que o sr. Gelo nas Veias já tenha se apaixonado uma vez na vida?
  • com licença? - eles não tinham notado a chegada da enfermeira até ela falar com eles. - Meu paciente... - ela indicou o quarto do sr. Daniels com o polegar por cima do ombro. - Ele queria saber se os senhores tinham ido embora. Quando eu disse que ainda estavam aqui, ele me pediu para lhes dizer que lembrou de uma coisa que pode ser útil.

Antes da enfermeira terminar de falar, os dois já estavam em pé. Hammond consultou o endereço que tinha rabiscado no papel e guardado no bolso da camisa antes de sair de casa para visitar Davee. Sem saber se o número de telefone do serviço de recados da clínica era de Charleston, Hammond passara o dedo, aflito, por uma lista de clínicas médicas nas Páginas Amarelas até encontrar a clínica A. E. Ladd. Na mesma hora soube que era aquela mesma, porque o número para ligações fora do horário de expediente era o mesmo que ele tinha chamado da cabana aquela manhã. A clínica era a única pista que ele tinha para a mulher com quem tinha estado aquela noite. É claro que conversar com ele estava fora de questão. O objetivo de Hammond no curto prazo era apenas localizar o consultório dele e ver o que podia descobrir com isso, se é que poderia mesmo descobrir alguma coisa. Mais tarde ele pensaria num modo de abordá-lo. Apesar de estar preocupado com o fim do namoro com Steffi, com a conversa perturbadora que tinha tido com Davee, e com o assassinato de Pettijohn e com tudo que aquilo significava, a lembrança da mulher que havia seguido na saída da feira rural e beijado no posto de gasolina não lhe dava trégua. Seria inútil tentar ignorá-la. Hammond Cross não aceitava perguntas sem respostas. Mesmo quando era menino, não se contentava com respostas apenas convenientes. Perturbava os pais até eles darem uma explicação que satisfizesse a sua curiosidade. Tinha mantido essa característica na idade adulta. Esse desejo de saber mais que apenas generalidades, de conhecer as particularidades, beneficiava o trabalho dele. Hammond cavava para ir mais fundo, e continuava cavando até chegar à verdade, às vezes para a suprema frustração dos seus colegas. Às vezes, até ele mesmo ficava frustrado com a própria teimosia. A lembrança dela ia persistir até ele descobrir quem ela era e por que, depois da noite incrível que passaram juntos, resolveu sair da cabana e, conseqúentemente, da vida dele. Localizar a clínica Ladd era uma tentativa, apesar de juvenil patética e desesperada, de descobrir alguma coisa sobre ela. Especificamente, se ela era ou não a sra. Ladd. Se fosse, terminaria ali. Se não fosse... Ele não se permitiu considerar os diversos “se não”. Tendo sido criado em Charleston, Hammond sabia mais ou menos onde ficava a rua, e era apenas a alguns quarteirões da mansão de Davee. Chegou lá em poucos minutos. Era uma rua curta e estreita, onde os prédios se cobriam de trepadeiras e história. Era uma das várias ruas assim que ficavam próximas do movimentado bairro comercial e que pareciam pertencer a um outro mundo. A maioria das casas e prédios naquela área entre a rua Broad e a Battery era repleta de marcos históricos. Alguns números das casas terminavam com ½, indicando que uma estrutura externa do prédio principal, como uma cocheira ou cozinha separada, tinha sido convertida numa outra residência. Os imóveis eram valiosíssimos. Era um bairro muito caro. O acrónimo para qualquer pessoa que morava ao sul da Broad era S.O.B. [south of Broad, mas também son ofbitch filho-da-puta]. Hammond não se surpreendeu ao ver que a clínica ficava numa área basicamente residencial. Muitos profissionais liberais tinham convertido casas mais antigas em escritórios, e muitas vezes moravam nos andares de cima, o que era uma tradição em Charleston havia séculos. Ele deixou o carro estacionado numa rua mais larga e entrou na ruazinha de paralelepípedos a pé. Já era noite. O fim de semana tinha terminado. As pessoas já estavam em suas casas. Ele era o único pedestre na rua. O lugar era escuro e silencioso, mas, apesar disso, simpático e hospitaleiro. Janelas abertas revelavam cómodos iluminados que pareciam convidativos. Sem exceção, as propriedades eram luxuosas e bem cuidadas. Parecia que o proprietário da clínica estava se dando bem na vida. O ar da noite era pesado e denso. Tão tangível quanto um cobertor de algodão enrolado claustrofobicamente nele. Em questão de minutos, a camisa grudou no corpo. Até uma caminhada lenta era aflitiva, especialmente quando um dos fatores era o nervosismo.

Ele foi forçado a respirar fundo e captou perfumes florais exóticos e o pungente aroma de sémen salgado da maresia no porto, que ficava a poucos quarteirões de distância. Sentiu o cheiro do resto de fumaça de carvão com o qual alguém tinha assado o jantar de domingo. Aquele aroma lhe deu água na boca e o fez lembrar que não tinha comido nada o dia inteiro, só aquele pãozinho na cabana. A caminhada deu-lhe tempo para pensar como ia se sair naquele primeiro contato com a clínica. E se simplesmente chegasse lá e tocasse a campainha? Se o médico proprietário atendesse, podia fingir que obviamente tinha anotado errado o endereço, dizer que estava procurando outra pessoa, pedir desculpas por incomodá-lo e ir embora. Mas e se ela abrisse a porta... que opção ele teria? A pergunta mais inquietante seria respondida. Ele daria meia-volta e iria embora, sem olhar para trás, e continuaria sua vida. Todas essas contingências eram baseadas na probabilidade de ela ser casada com um médico. Para Hammond, essa era a explicação lógica para ela ter de fazer uma ligação para a clínica furtivamente e depois parecer culpada quando flagrada no ato. Ela era a imagem da saúde, e certamente não tinha apresentado nenhum sintoma visível de doença. Por isso nunca passou pela cabeça dele o fato de ela poder ser uma paciente. Nunca, até ele chegar à casa com aquele número. No pequeno quadrado de grama demarcado por uma cerca de ferro havia uma discreta placa de madeira branca com letras cursivas em preto. A clínica A. E. Ladd era uma clínica de terapia psicológica. Será que ela era uma paciente? Se era, a ideia de ela ter sentido necessidade de consultar o psicólogo segundos depois de levantar-se da cama dele era um pouco perturbadora. Ele se consolou reconhecendo que atualmente era comum se ter um terapeuta. Como confidentes, eles tinham substituído cônjuges dedicados, parentes mais velhos e religiosos. Hammond tinha amigos e colegas que se consultavam toda semana, às vezes apenas para aliviar o estresse da vida moderna. Ter um psicólogo não representava nenhum estigma e certamente não era motivo para ninguém se envergonhar. De fato, ele sentiu um alívio imenso. Ir para a cama com a paciente da clínica Ladd era aceitável. O inaceitável era dormir com a mulher do dono da clínica. Mas uma nuvem cobriu aquele pequeno raio de esperança. E daí se ela era paciente? Seria quase impossível descobrir a identidade dela.

A clínica não daria nenhuma informação sobre seus pacientes. Mesmo se Hammond se rebaixasse a ponto de usar o cargo de promotor para se insinuar, eles provavelmente fariam valer o privilégio profissional e se recusariam a abrir seus arquivos, a menos que recebessem uma intimação, e Hammond jamais chegaria tão longe assim. Seus padrões profissionais não permitiriam. Além do mais, como poderia pedir informação sobre ela se nem sabia o seu nome? Do outro lado da rua, Hammond ruminava esse dilema enquanto estudava a estrutura elegante de tijolos em que o consultório se instalara. Era típica de um estilo único de arquitetura – uma casa única, chamada assim porque da rua parecia ter apenas um cómodo na largura, mas tinha vários cómodos para trás. Essa tinha dois andares, com largas varandas laterais, oupiazzas, que ocupavam toda a extensão da casa, da frente até os fundos, nos dois andares. Atrás de um portão enfeitado, o passeio da frente da casa ia reto até o lado direito do jardim, onde havia uma porta dianteira pintada de verde Charleston – quase só tinta preta com apenas uma porção pequena de verde, misturado. A porta tinha uma aldrava de bronze bem no centro e, como as portas da frente da maior parte das casas únicas, não se abria para a casa em si, mas para a plazza, de onde se entrava na casa. Uma figueira trepadeira se agarrava à grande parte da fachada, mas tinha sido bem podada em torno das quatro janelas altas que serviam de contrapeso à porta da frente. Embaixo de cada uma dessas janelas havia uma jardineira transbordante de samambaias e balsâminas brancas. Não havia nenhuma luz acesa. Quando Hammond ia pôr o pé na rua para atravessá-la e dar uma olhada mais de perto, a porta da casa às suas costas se abriu e um enorme cão pastor cinza e branco saiu galopando, arrastando o dono atrás dele.

  • Uôa, Winthrop!

Mas ninguém segurava Winthrop. Ele estava louco para sair, e puxava a correia quando chegou ao fim do caminho da casa, levantou-se nas patas traseiras e se jogou contra o portão. Instintivamente, Hammond deu dois passos para trás. Rindo da reação dele, o dono do cachorro abriu o portão e Winthrop saiu pulando.

  • Desculpe o escândalo! Espero que ele não tenha assustado você. Ele não morde, mas se tiver oportunidade, pode lambê-lo até a morte.

Hammond sorriu.

  • Não tem problema.

Winthrop, sem demonstrar interesse nenhum nele, tinha levantado a perna e estava mijando numa cerca.

Hammond devia estar parecendo inofensivo, mas perdido, porque o homem perguntou:

  • Está precisando de ajuda?
  • É, na verdade eu estava tentando localizar a clínica Ladd.
  • Já a encontrou – o homem apontou com o queixo para a casa do outro lado da rua.
  • Certo, certo.

O homem olhou para ele com a testa franzida, sem entender.

  • É que sou vendedor – gaguejou ele. - De formulários médicos. Coisas assim. A placa não diz a que hora abrem o consultório.
  • Por volta das dez, acho. Você pode telefonar para Alex para confirmar.

-Alex? -Alex Ladd.

  • Ah, claro. É, eu devia ter ligado, mas... sabe como é... pensei que... bem, tudo bem.

Winthrop estava ruçando embaixo de um arbusto de camélias.

  • Obrigado. Vá com calma, Winthrop.

Torcendo para o vizinho nunca associar o idiota inarticulado com o assistente do promotor público que era sempre visto falando com repórteres na televisão, Hammond deu um tapinha na cabeça do cachorro peludo e partiu na direção de onde tinha chegado.

  • Aliás, ela acabou de sair. Hammond deu meia-volta como um raio. -Ela? O sr. Daniels evitava olhar os olhos de Smilow ou de Steffi quando os dois voltaram para o seu quarto, no hospital, e se posicionaram um de cada lado da cama. Para Smilow, o paciente parecia mais desconfortável agora do que quinze minutos antes, mas não era um desconforto gastrintestinal. Parecia mais um caso muito sério de consciência pesada. -A enfermeira disse que o senhor se lembrou de alguma coisa que pode ajudar a nossa investigação.
  • Talvez – os olhos de Daniels dardejaram nervosos para um lado e para outro, entre Smilow e Steffi. - Olha, o negócio é o seguinte. Desde que eu me desgarrei...
  • Desgarrou?

Daniels olhou para Steffi, que tinha interrompido. ???

  • Do meu casamento.
  • O senhor teve um caso? Steffi era mestra em engrossar o caldo. “Tato” não constava do seu vocabulário. O sr. Daniels parecia muito infeliz quando gaguejou.
  • É. Essa, é... uma colega de trabalho? Nós... vocês sabem – ele mudou o corpo magro de posição no colchão duro, constrangido. Mas não durou muito. Percebi que estava errado. Era só uma daquelas coisas que acontecem sem a gente saber por quê. Então um dia você acorda e pensa: para que estou fazendo isso? Amo a minha mulher.

Smilow compartilhava a óbvia impaciência de Steffi com a longa confissão de Daniels. Queria que o homem fosse direto ao ponto. Mas ele avisou Steffi, com um olhar muito sério, para respeitar o ritmo de Daniels contar a sua história.

  • Estou contando isso para vocês... porque ela, a minha mulher, fica desesperada se eu elogiar uma mulher qualquer. Não a culpo por isso – apressou-se em dizer. - Ela tem o direito de suspeitar de mim. Dei esse direito a ela quando cometi adultério.

“Mas pode ser uma coisa insignificante, até uma palavra gentil para uma mulher, e ela já começa. Sabem o que quero dizer? Ela começa a chorar. E a dizer que não me satisfaz como mulher. Que não é capaz de satisfazer as minhas necessidades – ele olhou para Smilow com olhos cansados. - O senhor sabe como elas ficam.” Mais uma vez Smilow lançou um olhar para Steffi, indicando que ela não podia estragar tudo fustigando o editorial sexual do homem:

  • Não descrevi aquela mulher para vocês com mais detalhes porque não queria que a minha mulher ficasse aborrecida. Estamos nos dando bem ultimamente. Ela até trouxe alguns, vocês sabem, apetrechos sexuais nessa viagem, para apimentar nossos momentos a sós. Ela até considera essa uma espécie de segunda lua-de-mel. Não se pode fazer muita coisa num ônibus de um coro de igreja, mas quando chegamos ao nosso quarto toda noite... nossa!

Ele deu um sorriso largo para os dois, mas então o sorriso murchou como se alguém tirasse o ar de uma máscara de borracha.

  • Mas se a patroa pensasse que eu tinha prestado atenção no rosto ou no corpo de outra mulher, ela poderia achar que lá no fundo eu desejava uma estranha. E eu ia curtir um dobrado por nada.
  • Nós compreendemos – Steffi pôs a mão no braço dele com rara e, Smilow sabia, falsa compaixão.
  • Sr. Daniels, agora o senhor está dizendo que pode descrever a mulher que viu no corredor do hotel com mais detalhes?

Ele olhou para Smilow.

  • O senhor tem lápis e papel aí?

Lentamente ele puxou a velha camiseta por cima da cabeça dela. Antes tinha tocado nela no escuro. Sabia como ela era pelo tato, mas queria ver o que suas mãos tinham tocado.

Não se decepcionou. Ela era linda. Gostava de ver suas mãos sobre os seios dela, gostava de vê-los reagindo às suas carícias, gostava de ouvi-la murmurando de prazer quando encostava os lábios neles.

  • Você gosta disso.
  • Gosto.

Ele envolveu o mamilo com a boca e sugou. Ela segurou a cabeça dele e gemeu baixinho.

  • Muita força? - perguntou ele.
  • Não.

Mas ele ficou preocupado, especialmente quando notou arranhões da barba na pele clara dela. Passou o dedo no lugar.

  • Eu nem percebi.

Ela olhou para o pequeno arranhão, encostou o dedo dele nos lábios e beijou.

  • Nem eu.
  • Desculpe.
  • Não faz mal.
  • Mas se a machuquei...
  • Você não me machucou. Não vai me machucar.

Ela pôs a mão no pescoço dele e tentou puxar sua cabeça para ela. . Mas ele hesitou.

  • Você se importa se... - ele apontou com a cabeça para a cama. -Não.

Eles deitaram sem se dar ao trabalho de arrumar os lençóis. Ele se inclinou sobre ela, segurou seu rosto com as duas mãos e beijou-a com tanta paixão que o corpo dela se arqueou na cama para encostar no dele.

As mãos dele deslizaram sobre os seios dela, as costelas e a barriga macia.

  • Cristo. Olha só para você. Linda-ele pôs a mão entre as pernas dela, cobriu o monte-de-vênus com a palma da mão, com os dedos para baixo. Para dentro. Na maciez dela.
  • Você já está...
  • Estou.
  • Tão doce. Tão...
  • Oh... - ela gemeu ofegante.
  • Molhada.

Ele chegou o corpo para cima para beijá-la de novo. Foi um beijo sedoso e sensual, que só terminou quando ela deu um grito abafado e gozou com os dedos dele, sob a pressão do polegar. Alguns segundos depois ela abriu os olhos e viu que ele sorria para ela.

  • Eu sinto muito, sinto muito.
  • Sente muito? - repetiu ele, rindo baixinho e beijando a testa molhada de suor.
  • Bem, quero dizer... você...

Os lábios dele mal encostaram nos dela. O sussurro dele foi suave e urgente.

  • Não se desculpe.

Ele tossiu e deu um grito rouco de surpresa quando ela o segurou. Quase protestou, quase disse para ela que não precisava se sentir obrigada a nada, quase disse que não era necessário retribuir, que ele não ia ficar mais rijo do que estava. Mas quando ela começou a explorar e a massagear, os únicos sons que ele conseguiu emitir foram suaves gemidos de extremo prazer. Sem consciência plena do que estava fazendo, ele pôs a mão sobre a dela e incentivou os movimentos. Ela passou o nariz no pescoço dele, beijou os pêlos do peito dele e mordiscou apele. Sem querer- ou talvez por querer-, o mamilo ereto dela roçou no dele. Foi excitante. Foi tremendamente erótico. E ele quase gozou. Quando ele tirou a mão dela, ela elevou o corpo e beijoufreneticamente o maxilar dele, o rosto, os lábios, murmurando:

  • Deixe-me tocar em você.

Mas era tarde demais. Ele se posicionou e mergulhou nela. Recuou. Avançou. Fundo. Mais fundo. Então encostou a testa na dela, cerrou os dentes, fechou os olhos bem apertados e sentiu um prazer maior do que todos os seus encontros sexuais juntos...

  • Não, eu é que vou tocar em você.

... ele gozou.

A campainha do telefone arrancou Hammond daquela lembrança fumegante. Ficou constrangido ao ver que estava com ereção e banhado em suor. Quanto tempo tinha perdido com aquela lembrança específica? Verificou o relógio do painel. Vinte minutos, um pouco mais, um pouco menos. O telefone tocou pela terceira vez. Ele o atendeu.

  • O que é?
  • Onde, diabos, você se meteu?
  • Sabe, Steffi – disse ele, irritado -, você precisa arranjar um roteiro novo. É a segunda vez hoje que você me faz essa pergunta, e com o mesmo tom de voz.
  • Desculpe, mas estou ligando para a sua casa há uma hora e deixando recados. Finalmente, resolvi experimentar o seu celular. Você está no carro?
  • Estou.
  • Você saiu?
  • Acertou de novo.
  • Oh. Não imaginava que você ia sair de casa esta noite.

Ela estava insinuando que ele explicasse para ela aonde tinha ido e por quê, mas ele não lhe devia mais satisfações do que fazia. Ela provavelmente estava com o orgulho ferido com o fato de Hammond ter saído na noite em que eles terminaram seu relacionamento.

Ela ia ficar realmente ferida se soubesse que ele estava escondido numa rua escura como um pervertido, tomando um suador de excitação sexual e esperando para ver se a dra. A. E. Ladd era a mulher que, mais ou menos àquela mesma hora, na véspera, tinha estado deitada e nua ao lado dele, com o órgão sexual dele bem confortável, ensanduichado entre a barriga dos dois, as mãos dele acariciando as nádegas dela, e ela perguntando se ele sabia que seus olhos eram da cor de nuvens de tempestade. Ele sentiu um ímpeto maligno de contar para Steffi. Mas é claro que não contou. Ele secou o rosto na manga da camisa.

  • O que está havendo?
  • Para começo de conversa, por que você não me contou que Mason lhe deu o caso Pettijohn?
  • Não era eu que tinha de contar isso para você.
  • Esse é um motivo de merda, Hammond.
  • Obrigado, Rory Smilow – resmungou ele.
  • Ele me contou como amigo.

-Amigo uma ova. Ele contou para você porque não é amigo meu. E agora, vai me dizer o que está havendo?

  • Sem saber que eu ia ser o segundo violino – disse ela docemente -, encontrei-me com Smilow no hospital Roper e tivemos sorte.
  • Como assim?
  • Sabe aquelas pessoas com intoxicação alimentar? -Sim? Apareceram faróis do outro lado da rua onde Hammond estava estacionado. Ele ligou o carro.
  • Onde você está, Hammond? - perguntou StefFi, irritada. - Você está me ouvindo? Parece que está desligando.
  • Estou ouvindo. Pode falar. Uma das pessoas com intoxicação alimentar...
  • Viu uma mulher do lado de fora da suíte de Pettijohn. Bom, na verdade ele não pode jurar que era a suíte de Pettijohn, mas isso é uma tecnicalidade que podemos contornar se tudo o mais se encaixar.

O carro parou na frente do consultório da dra. Ladd. Ela saiu com um cara num carro conversível, o dono de Winthrop tinha dito para ele.

  • E depois de muita lengalenga sobre uma traição... - Steffi estava dizendo.

Dirigindo bem devagar, Hammond chegou suficientemente perto para ver que o carro era um conversível.

  • Pensando melhor, deixe a traição pra lá – disse Steffi. - É irrelevante. Pode acreditar em mim. De qualquer maneira, o sr. Daniels tinha observado a mulher muito melhor do que nos levou a crer na primeira vez que falou conosco, na frente da mulher dele.

O brilho dos faróis do conversível ofuscou Hammond, e ele não conseguia ver nada atrás deles. Mas quando ficou lado a lado com o carro, ele virou a cabeça a tempo de ver os ocupantes. Um homem no lugar do motorista. Uma mulher no lugar do passageiro. A mulher dele. Sem sombra de dúvida.

  • O sr. Daniels agora admite que se lembra da altura, peso, cor de cabelo e de todo o resto.

Hammond se desligou de Steffi. Depois que passou pelo outro carro, ele olhou para o espelho retrovisor externo a tempo de ver o homem estender o braço por cima do console e pôr a mão na nuca da mulher, puxando o rosto dela para ele. Hammond meteu o pé no acelerador, dobrou a esquina rápido demais e fez cantar os pneus. Claro que foi uma reação de ciúme imatura, mas sentiu vontade de fazer isso. Estava com vontade de bater em alguém. Realmente queria dizer para Steffi calar a boca.

  • Vá em frente, Steffi – disse ele, interrompendo a frase que ela dizia subitamente.

Confusa, ela se assustou:

  • Vá em frente para onde?

Ele não sabia. Não estava prestando muita atenção, mas não queria admitir isso. Ela estava falando de uma possível testemunha. Alguém que tinha visto uma pessoa perto da suíte de Pettijohn e que poderia dar uma descrição razoavelmente correta.

Steffi também podia ter sugerido um retrato falado. Tinha mencionado isso na hora que Hammond passou pelo conversível, e a voz dela foi abafada pelo sangue que subiu à cabeça dele. Ele tinha registrado o teor do relato de Steffi, mas quase tudo que ela dizia foi obscurecido por uma necessidade violenta e primitiva de voltar e agarrar o sujeito no conversível pelo pescoço.

De uma coisa ele tinha certeza. Precisava fazer alguma coisa, senão ia explodir. Agora. Imediatamente. Tinha de determinar que existia alguma coisa sobre a qual Hammond Cross ainda tinha controle.

  • Quero um desenhista lá de manhã cedo.
  • É tarde, Hammond.

Ele sabia que horas eram. Tinha ficado horas sentado naquele forno de automóvel, alimentando fantasias sexuais. E todo aquele sacrifício só tinha servido para ver a dra. Lad na. Companhia de outro homem.

  • Sei que é tarde.
  • O que quero dizer é que não sei se vou conseguir... .
  • Qual é o número do quarto do cara?
  • O número do quarto do sr. Daniels?
  • Quero falar com ele.
  • Isso não é necessário. Smilow e eu perguntamos tudo para ele. Além disso, acho que ele receberá alta pela manhã.
  • Então é melhor marcar isso bem cedo. Às sete e meia. E ponha o artista da polícia de prontidão.

Às sete e meia da manhã seguinte, Hammond entrou no hospital com a sua pasta e o Postand Courier. Parou no balcão de informações para perguntar o número do quarto, que Steffi não havia dito. Parou também numa máquina para comprar uma xícara de café. Estava de gravata, mas, atendendo à promessa de um dia muito quente, tinha deixado o paletó no carro, arregaçado as mangas da camisa e desabotoado o colarinho. A postura era de um militante e a expressão fechada como uma nuvem negra. Para crédito de Steffi, os outros já estavam lá quando ele chegou. Ela estava lá, junto com Rory Smilow, uma mulher mal-ajambrada com um uniforme de polícia que não lhe caía bem e o homem no leito do hospital. Steffi estava com os olhos inchados, como se não tivesse dormido bem. Depois de uma rodada mal-humorada de cumprimentos, ela disse:

  • Hammond, você deve se lembrar do cabo Mary Endicott. Trabalhamos com ela uma vez.

Ele largou a pasta e o jornal numa cadeira para apertar a mão da artista da polícia.

  • Cabo Endicott.
  • Sr. Cross.

Steffi, então, apresentou o sr. Daniels, em visita à cidade vindo de Macon, Geórgia, que naquele momento mordiscava a comida insossa que havia na bandeja do café da manhã.

  • Sinto muito que a sua visita a Charleston não tenha sido das melhores, sr. Daniels. Está se sentindo melhor?
  • Suficientemente bem para sair daqui. Se possível, gostaria de acabar logo com isso, antes da minha mulher vir me pegar.
  • Essa rapidez vai depender da precisão da sua descrição. Cabo Endicott é excelente no que faz, mas só depende do senhor.

Daniels parecia preocupado.

-vou ter de testemunhar no tribunal? Quero dizer, se vocês pegarem essa mulher, e descobrirem que foi ela que matou aquele homem, terei de apontá-la no julgamento?

  • É uma possibilidade – disse Hammond para ele. O homem deu um suspiro de tristeza.
  • Bem, se chegar a isso, cumprirei meu dever cívico – ele deu de ombros filosoficamente. - Vamos logo com isso.
  • Primeiro eu gostaria de ouvir a sua história, sr. Daniels – disse Hammond.
  • Ele já nos contou diversas vezes – disse Smilow. - Realmente não é grande coisa.

Fora o negligente bom-dia, até aquele momento Smilow tinha ficado calado e imóvel como um lagarto tomando sol. Muitas vezes a postura de Smilow parecia indolente, mas, para Hammond, ele dava a impressão de ser um réptil à espera, atento o tempo todo a uma oportunidade de atacar. Hammond reconheceu que comparar Smilow a uma serpente se devia unicamente ao fato de detestar o homem. Sem mencionar a injustiça com as serpentes. O terno cinza de Smilow era impecável e estava perfeitamente passado. A camisa branca era tão lisa que uma moeda quicaria nela, a gravata bem presa. Não havia um fio de cabelo fora do lugar. Os olhos estavam claros e alertas. Depois da noite tumultuada que Hammond tinha tido, virando de um lado para outro na cama, estava com raiva da aparência e da pose inabalável de Smilow.

  • É claro que você resolve – disse ele educadamente. - Essa investigação é sua.
  • Isso mesmo, é minha.
  • Mas, como cortesia...
  • Você não demonstrou muita cortesia comigo quando marcou essa reunião sem me consultar primeiro. Diz que a investigação é minha, mas parece que é sua. Como sempre, seus atos contradizem suas palavras, Hammond.

Podia contar com Smilow para provocar uma briga numa manhã em que ele mesmo sentia vontade de morder alguém.

  • Olha, eu saí da cidade no dia em que Pettijohn foi assassinado, por isso estou correndo atrás. Li as reportagens nos jornais, mas sei que você não revela todas as suas descobertas para a mídia. Só estou pedindo para me informar dos detalhes.
  • Quando chegar a hora certa.
  • O que há de errado com agora?
  • Tudo bem, rapazes, tempo! - Steffi colocou-se entre os dois, formando uma cruz com os dedos indicadores. - Não importa quem marcou essa reunião, importa? Na verdade, Hammond, Smilow já havia chamado o cabo Endicott quando consegui falar com ela ontem à noite – a policial rechonchuda e matrona confirmou balançando a cabeça. - Por isso, tecnicamente, Smilow teve a ideia primeiro, como devia, já que o caso é dele até ele passar para nós. Certo?

“E, Smilow, se Hammond também pensou no retrato falado, isso só significa que grandes cabeças pensam da mesma forma, e esse caso precisa mesmo de todas as mentes brilhantes que puder reunir. Por isso vamos tratar de começar e não prender essas pessoas aqui por mais tempo do que será necessário. O sr. Daniels está com uma certa pressa, e todos nós temos mais o que fazer. Falando por mim, eu não me importaria de ouvir essa história mais uma vez.” Smilow assentiu movendo um pouco a cabeça. Daniels contou outra vez sua experiência de sábado à tarde. Quando terminou, Hammond perguntou se ele tinha certeza de não ter visto mais alguém.

  • O senhor quer dizer no quinto andar? Não, senhor.
  • Tem certeza?
  • Só aquela senhora e eu estávamos no corredor. Mas eu só fiquei no corredor cerca de... humm... digamos, vinte, trinta segundos, desde a hora que saí do elevador.
  • Tinha alguém no elevador com o senhor?
  • Não, senhor.
  • Obrigado, sr. Daniels. Grato por ter repetido sua história para mim.

Ignorando a expressão de “eu não disse?”, de Smilow, Hammond deixou Daniels a cargo de Mary Endicott. Smilow pediu licença para dar alguns telefonemas. Steffi ficou espiando por cima do ombro da artista e acompanhou as perguntas que ela fazia para Daniels. Hammond levou sua xícara de café morno até a janela e observou o dia ensolarado demais para o seu humor. Depois de um tempo, Steffi se aproximou dele.

  • Você está quieto demais.
  • A noite foi curta. Não consegui pegar no sono.
  • Algum motivo especial para a sua insónia?

Entendendo o significado por trás daquela pergunta, ele virou a cabeça e olhou para ela.

  • Só inquietação.
  • Você é cruel, Hammond.
  • Como assim?
  • O mínimo que você devia ter feito era tomar um porre a noite passada e mudar de ideia quanto a terminar comigo.

Ele sorriu, mas o tom de voz era sério:

  • Era a única decisão para nós, Steffi. Sabe tão bem disso quanto eu.
  • Especialmente depois da decisão de Mason.
  • A decisão foi dele, não minha.
  • Mas eu nunca tive mesmo chance de conseguir esse caso. Mason favorece você, e não esconde isso de ninguém. E vai favorecer sempre. E você sabe disso tão bem quanto eu.
  • Eu estava aqui primeiro, Steffi. É uma questão de antiguidade.
  • Está certo – o tom arrastado contradisse as palavras dela. Antes de Hammond poder responder, Smilow retornou:
  • Isso é interessante. Um dos meus homens andou xeretando na vizinhança de Pettijohn para ver se alguém tinha ouvido Lute discutindo com algum vendedor ou vizinho. Não descobriu nada.
  • Espero que tenha um mas – disse Steffi. Ele fez que sim com a cabeça.
  • Mas Sarah Birch estava no supermercado sábado à tarde. Ela pediu para o açougueiro preparar umas costeletas de porco que queria fazer para o jantar de domingo. Ele estava ocupado, por isso levou algum tempo para atendê-la. Em vez de ficar lá parada, esperando, ela foi comprar as outras coisas. O supermercado estava apinhado. Só voltou ao açougue depois de quase uma hora, disse ele. O que significa que ela mentiu quando afirmou que ficou em casa a tarde toda com a sra. Pettijohn.
  • Se ela é capaz de mentir sobre uma coisa tão insignificante quanto ir ao supermercado, devemos supor que ela também seja capaz de pregar uma enorme mentira.
  • Só que essa mentira não é tão insignificante – disse Smilow. Os horários combinam. O açougueiro lembra de ter dado as costeletas para Sarah Birch logo antes de terminar o turno dele, às seis e meia.
  • O que quer dizer que ela ficou na loja das, digamos, cinco até as seis e meia- concluiu Steffi em voz alta. - Na hora em que Pettijohn estava sendo eliminado. E o supermercado fica a dois quarteirões do hotel! Droga! Será que é tão simples assim?
  • Não – disse Smilow com certa relutância. - O sr. Daniels disse que a mulher que ele viu no corredor do hotel era branca. Sarah Birch não é.
  • Mas ela podia estar acobertando Davee.

-A mulher que ele viu também não era loura-relembrou Smilow.

  • Davee Pettijohn, em qualquer descrição, é loura.
  • Está brincando? Ela é a rainha do Clairol.

Hammond não se surpreendeu de saber que a leal empregada de Davee teria mentido por ela. Mas ficou abalado com o comentário maldoso de Steffi e aflito de pensar que a amiga de infância estava sendo seriamente considerada suspeita, com um álibi que não era tão perfeito como tinha dito.

  • Davee não mataria Lute – os outros dois se viraram para ele. Que motivo ela poderia ter?
  • Ciúme e dinheiro.

Ele balançou a cabeça, discordando.

  • Ela tem os próprios amantes, Steffi. Por que teria ciúme de Lute? E tem o próprio dinheiro. Provavelmente mais do que Lute.
  • Bem, ainda não estou preparada para tirá-la da lista. Deixando os outros dois com suas especulações, Hammond foi

para perto da cama. Havia um bloco de desenho no colo de Daniels com o que parecia uma variedade infinita de formatos de olhos. Hammond deu uma olhada no desenho de Endicott, mas até ali ela ainda estava trabalhando para conseguir acertar a forma do rosto.

  • Talvez um pouco mais fino aqui – disse o sr. Daniels, passando a mão no próprio queixo. A artista fez a correção sugerida. - É, era mais

assim.

Quando passaram para as sobrancelhas e os olhos, Hammond voltou para o lado de Steffi e Smilow.

  • E quanto a antigos sócios de negócios? - perguntou ele para o detetive.
  • Naturalmente estão sendo interrogados – respondeu Smilow com calma e educação. - Isto é, aqueles que não têm o álibi de estarem na prisão.

Exceto os casos que tinham sido passados para a jurisdição federal, Hammond havia ajudado a pôr alguns daqueles criminosos de colarinho branco atrás das grades. Lute Pettijohn tinha burlado bastante as leis e muitas vezes chegava perto demais de delitos criminais. Flertava com eles, mas nunca cruzava a fronteira.

  • Uma das empreitadas mais recentes de Lute envolve uma ilha no mar – disse Smilow para os dois.

Steffi bufou com desprezo.

  • Isso é alguma novidade?
  • Essa é diferente. A ilha Speckle fica a cerca de uma milha e meia do continente, e é uma das poucas que escapou do progresso.
  • Isso basta para Pettijohn ter ereção – observou Steffi. Smilow assentiu com a cabeça.
  • Ele pôs as coisas para funcionar. O nome dele não consta de nenhum documento da sociedade. Pelo menos não nos documentos que encontramos. Mas podem estar certos de que estamos verificando
  • olhando para Hammond, ele acrescentou: - Minuciosamente.

O coração de Hammond afundou como uma bola de chumbo no peito dele. Smilow não estava dizendo nada sobre o empreendimento na ilha Speckle que ele já não soubesse. Sabia muito mais, muito mais do que queria saber.

Cerca de seis meses antes, o procurador-geral da Carolina do Sul tinha pedido para ele fazer uma investigação sigilosa da tentativa de Pettijohn de lotear a ilha. As descobertas que fez foram alarmantes, mas nenhuma tão séria quanto encontrar o nome do próprio pai na lista de investidores. Até saber qual a ligação da ilha Speckle com o assassinato de Pettijohn, se é que havia alguma, ele manteria segredo dessa informação. Assim como o detetive tinha dito para ele com grosseria, ele daria esses detalhes para o detetive quando chegasse o momento certo.

  • Um daqueles antigos sócios podia ter tanta raiva dele – disse Steffi – que acabou cometendo o crime.
  • É uma possibilidade viável – disse Smilow. - O problema é que Lute operava num círculo de pessoas influentes, que incluía funcionários do governo de todos os níveis. Os amigos dele eram homens que tinham poder de uma forma ou de outra. Isso complica a minha capacidade de manobra, mas não me impede de continuar cavando.

Se Smilow estava cavando, então Hammond sabia que o nome de Preston Cross estava lá como um tesouro enterrado, à espera para ser desenterrado. Era apenas uma questão de tempo para a aliança do seu pai com Pettijohn ser descoberta.

Mentalmente Hammond xingou o pai por deixá-lo naquela posição comprometedora. Logo ele talvez fosse forçado a escolher entre o dever e a lealdade para com a família. No mínimo o negócio sujo de Preston custaria para Hammond o caso Pettijohn. Se chegasse a isso, Hammond jamais o perdoaria.

Olhou para a cama do hospital onde a desenhista parecia estar fazendo progresso.

  • O cabelo. Era curto ou comprido?
  • Era por aqui – disse Daniels, indicando o ombro.
  • Franja?
  • Na testa? Não.
  • Liso ou crespo?
  • Acho que era encaracolado. Fofo – ele usou novamente as mãos para ilustrar.
  • Estava de cabelo solto, então?
  • É, acho. Não entendo muito de penteados.
  • Dê uma olhada nessa revista. Veja se há algum cabelo parecido com o dela.

Daniels franziu a testa e olhou nervoso para o relógio, mas obedeceu e começou a virar aflito as páginas da revista de penteados.

  • De que cor era? - perguntou a artista.
  • Meio vermelho.
  • Ela era ruiva?

Hammond se sentiu atraído pelas palavras de Daniels, como se elas segurassem uma corda que o puxava inexoravelmente.

  • Não era cabeça de cenoura.
  • Ruivo-escuro, então?
  • Não. Acho que eu diria apenas castanho, mas com muito vermelho.
  • Castanho-avermelhado?
  • É isso aí – disse ele, estalando os dedos. - Sabia que tinha um nome, só que não me lembrava. Castanho-avermelhado.

Hammond tomou um gole de café que subitamente ficou amargo na boca. Chegou mais perto da cama do hospital com a insegurança de um acrófobo que se aproxima da beirada do Grand Canyon. O cabo Endicott riscava rapidamente com o lápis na sua prancheta. Risca, risca, risca.

  • Que tal isso? - disse ela, mostrando o desenho para Daniels.
  • Ei, está muito bom. Faltam apenas as mechas em volta do rosto, sabe como é? Hammond avançou mais alguns passos.
  • Assim?

Daniels disse para Endicott que o cabelo estava perfeito.

  • Ótimo. Agora só falta a boca – disse ela. Deixando de lado a revista, a artista abriu o bloco de desenho em outra folha. - O senhor lembra de alguma coisa específica sobre a boca, sr. Daniels?
  • Ela estava de batom – murmurou ele, estudando os inúmeros desenhos de lábios.
  • Então, o senhor notou os lábios dela?

Ele levantou a cabeça, olhou aflito para a porta, como se temesse que a sra. Daniels estivesse lá ouvindo tudo.

  • A boca era parecida com essa – ele apontou para um dos desenhos. - Só que o lábio inferior era mais cheio.

Endicott consultou o desenho e copiou no outro que estava fazendo.

Enquanto observava, Daniels acrescentou:

  • Quando olhou para mim, ela deu um sorriso.
  • Deu para ver os dentes?
  • Não. Um sorriso educado. Sabe, como as pessoas fazem quando entram no elevador, ou qualquer coisa assim.

Como quando os olhos se encontram através de uma pista de dança.

Hammond não tinha coragem suficiente para espiar o esboço de Endicott, mas mentalmente ele viu um sorriso de boca fechada muito atraente, que tinha ficado profundamente marcado em sua memória.

  • Algo parecido com isso? - Endicott virou o desenho para Daniels para ele poder ver melhor.
  • Ora, macacos me mordam! - disse ele atónito. - É ela! E bastou uma rápida olhada para Hammond confirmar que era mesmo. Era ela.

Smilow e Steffi estavam entretidos numa conversa. Quando ouviram a exclamação de Daniels, correram para o lado da cama. Hammond deixou Steffi ocupar seu lugar porque ele não precisava mais ver nada.

  • Não é exato – disse Daniels -, mas está muito bom.
  • Alguma marca especial ou cicatriz? Uma pinta.

Acho que ela tinha uma espécie de sinal – disse Daniels. - Não era feio. Parecia mais uma pinta. Embaixo do olho.

  • O senhor lembra... - começou Steffi a dizer.
  • Que olho? - perguntou Smilow, completando a pergunta dela. O direito.
  • Bem, deixa eu ver, eu estava de frente para ela... então isso quer dizer que era... o esquerdo. Não, espere, era o direito. Definitivamente, o direito – disse Daniels, feliz de poder ser tão útil e fornecer esse detalhe.
  • O senhor estava suficientemente perto para ver a cor dos olhos dela?
  • Não. Infelizmente, não.

Verdes, salpicados de castanho. Bem afastados um do outro. Cílios escuros.

  • Qual a altura dela, sr. Daniels? Um metro e sessenta e cinco.
  • Mais alta que a senhora – disse ele para Steffi. - Porém, mais baixa que o sr. Smilow.
  • Eu tenho um metro e setenta e cinco – disse ele.
  • Então ela tem entre um e sessenta e cinco e um e setenta? Perguntou Steffi, calculando mentalmente.
  • Por aí, acho.
  • Peso? Cinquenta e cinco.
  • Não muito.
  • Sessenta? - arriscou Smilow.
  • Menos, acho.
  • O senhor lembra da roupa que ela usava? - quis saber Steffi. Calça comprida? Short? Um vestido? Saia.
  • Era um short ou uma saia. Sei porque dava para ver as pernas dela. - Daniels se contorceu. - E um tipo de blusa justa. Não me lembro da cor, nem de mais nada.

Saia, branca. Blusa de malha marrom e casaco combinando. Sandália de couro marrom. Sem meias. Sutiã bege de renda com fecho na frente. Calcinha fazendo conjunto. Endicott começou a recolher seu material e a guardar na mochila preta cheia demais. Smilow pegou o desenho da mão dela e apertou a mão do sr. Daniels.

  • Temos o número do seu telefone em Macon, se for necessário entrar em contato com o senhor. Esperamos que isso seja suficiente. Muito obrigado.
  • Também agradeço – disse Steffi, sorrindo para o homem antes de acompanhar Smilow até a porta.

Sem voz, Hammond simplesmente se despediu do sr. Daniels com um movimento de cabeça. No corredor, Smilow e Steffi agradeceram muito à artista antes que ela entrasse no elevador. Eles ficaram para estudar o desenho e parabenizar um ao outro.

  • Então essa é a nossa mulher misteriosa-observou Smilow. - Ela não parece uma assassina, parece?
  • Que cara tem uma assassina?
  • Bem pensado, Steffi. Ela deu uma risadinha.
  • Agora entendo por que o sr. Daniels não queria a mulher por perto quando descrevesse a nossa suspeita. Apesar do aperto na barriga, acho que no fundo ele deu bola para ela mesmo. Ele se lembra de cada detalhe, até a pinta embaixo do olho direito da moça.
  • Mas você tem de admitir que é um rosto memorável.
  • Que não quer dizer nada quando se fala de culpa ou inocência. As mulheres bonitas podem matar com tanta alacridade quanto as feias. Certo, Hammond? - Steffi se virou para ele. - Nossa, o que há com você?

Ele devia estar parecendo tão nauseado quanto se sentia.

  • O café caiu mal – disse ele, amassando a xícara de isopor que segurava com força.
  • Bem, Smilow, vá pegá-la – Steffi bateu no desenho com a ponta da unha. - Temos o rosto.
  • Ajudaria se soubéssemos seu nome. Dra. Alex Ladd.

A sede temporária do fórum ficava ao norte da cidade de Charleston. Era um prédio sem graça, de dois andares, situado num bairro industrial. Os vizinhos mais próximos eram uma loja de conveniência e uma padaria que acabara de abrir. Esse local fora de mão ia servir até que uma extensa reforma do imponente velho prédio no Centro da cidade terminasse. Ele já precisava de atenção quando o furacão Hugo tornou o prédio perigoso e impraticável, forçando a mudança. Era uma viagem de carro de dez minutos do Centro. Hammond não se lembrava de ter ido para lá aquela manhã. Ele estacionou o carro e entrou. Respondeu automaticamente para o guarda que operava o detector de metais na entrada. Virou à esquerda e entrou na sala do procurador municipal, passando pela mesa da recepcionista sem diminuir o passo. Pediu bruscamente para ela segurar todas as ligações.

  • O senhor já tem...
  • Cuidarei de tudo mais tarde.

Bateu a porta da sua sala depois que entrou. Jogou o paletó e a pasta sobre a papelada que o esperava em cima da mesa, caiu na cadeira de couro preto de espaldar alto e apertou a palma das mãos nos olhos. Simplesmente não podia ser. Aquilo tinha de ser um sonho. Em breve ele ia acordar assustado e alarmado, ofegante, os lençóis molhados de suor. Depois de se localizar e reconhecer o ambiente familiar, ele ia descobrir, aliviado, que tinha dormido profundamente e que aquele pesadelo não era a realidade. Mas era. Ele não estava sonhando, estava vivendo aquilo. Por incrível que parecesse, a artista tinha desenhado a dra. Alex Ladd, que dividira a cama com Hammond horas depois de ser vista no local de um assassinato. Coincidência? Pouco provável. Ela devia ter alguma ligação com Lute Pettijohn. Hammond não tinha certeza se queria saber que ligação era aquela. Na verdade, tinha certeza absoluta de que não queria saber. Passou a mão no rosto, apoiou os cotovelos na mesa e olhou para o vazio, tentando arrumar seus pensamentos caóticos de uma forma que ao menos parecesse ordenada. Primeiro, sem dúvida nenhuma, o cabo Endicott havia desenhado o rosto da mulher com quem tinha dormido na noite de sábado. Mesmo se não tivesse visto a mulher tão pouco tempo atrás, como na noite anterior, ele não esqueceria seu rosto tão cedo. Tinha se sentido atraído por ele logo no início. E passara horas na noite de sábado e na madrugada de domingo estudando, admirando, acariciando e beijando aquele rosto.

  • De onde veio isso?- ele tocou num ponto embaixo do olho direito dela.
  • Minha mancha?
  • É uma linda pinta.
  • Obrigada.
  • Não tem de quê.
  • Quando eu era menina, detestava isso. Agora devo admitir que passei a gostar muito dela.
  • Entendo muito bem isso. Eu também posso passar a gostar muito. Ele beijou a pinta uma vez, depois outra, encostando a ponta da língua de leve.
  • Humm. É uma pena.
  • O quê?
  • Eu não ter mais pintas.

Ele ficou conhecendo o rosto dela intimamente. O desenho da artista era bidimensional, em preto e branco. Dadas essas limitações, não podia de jeito nenhum captar a essência da mulher por trás daquele rosto, mas era uma representação tão aproximada que não havia dúvida de que a dra. Ladd tinha estado perto do quarto da vítima logo antes de se pôr no caminho de um funcionário da procuradoria municipal, especificamente um tal de Hammond Cross, que também tinha estado com Pettijohn aquela tarde.

  • Cristo.

Hammond passou os dedos no cabelo, segurou a cabeça com as mãos e quase se rendeu à incredulidade e desespero que se apossaram dele. Que diabos ia fazer? Bem, não podia desmoronar por dentro, que era o que tinha vontade de fazer. Que luxo seria esgueirar-se do escritório, sair de Charleston, deixar o estado, fugir e se esconder, deixar toda a confusão estourar sozinha e se poupar de ter de enfrentar o fluxo de lava incendiária do escândalo que inevitavelmente aconteceria. Mas ele era mais resistente que isso. Tinha nascido com um indómito senso de responsabilidade, e seus pais tinham alimentado essa característica todos os dias da sua vida. Pensar em fugir daquilo tudo era o mesmo que imaginar que estava criando asas. Por isso ele se forçou a encarar um segundo ponto que parecia indiscutível. Esconder o nome dele não era o toque de charme sedutor em que tinha pensado. Eles ficaram juntos na feira pelo menos uma hora antes de Hammond pensar em perguntar o nome dela. Deram risadas porque levaram tanto tempo para o que costumava ser a primeira coisa a fazer quando duas pessoas se conheciam e se apresentavam.

-Nomes não são importantes, não acha? Não quando o encontro é tão amigável assim.

Ele concordou.

  • É, o que é um nome?

E ele citou o que conseguiu lembrar de uma passagem de Romeu e Julieta.

  • Muito bom! Você já pensou em escrever isso?
  • Na verdade escrevi, mas sei que não faria o menor sucesso. Dali em diante o assunto virou uma brincadeira constante. Ele perguntava o nome dela, ela se recusava a dizer. Como um idiota, ele pensou que estavam vivendo a fantasia de fazer amor com um estranho anónimo. Não ter nome passou a ser um estímulo, parte da aventura, um atrativo. Ele não viu mal nenhum naquilo.

O que era inquietante, mas bem provável, era que Alex Ladd devia saber o nome dele o tempo todo. O encontro não tinha sido casual. Não foi à toa que ela chegou ao pavilhão de dança logo depois dele. O encontro dos dois foi planejado. O resto da noite foi orquestrado para constrangê-lo ou comprometê-lo totalmente e/ou a procuradoria municipal. Até que ponto ele ainda ia ver. Mas mesmo um pouco só poderia ser uma calamidade para a sua carreira que desmanchava. Até uma ameaça de escândalo seria uma pedra no caminho. E um escândalo daquelas proporções certamente provocaria danos, se não destruísse de vez todas as suas esperanças de ocupar o lugar de Monroe Mason e de se destacar como o sumo mantenedor da lei do município de Charleston. Inclinado sobre a mesa, Hammond cobriu novamente o rosto com as mãos. Bom demais para ser verdade. Um adágio banal mas verdadeiro. Nos tempos da faculdade de direito, ele e os amigos frequentavam um bar chamado Tanstaafl, acrónimo para “There ain’t no such thing as a free lunch” [Não existe almoço grátis]. A fantasia dele de passar uma noite com a mulher mais excitante que tinha conhecido vinha acompanhada de pauzinhos e cordinhas, e provavelmente essas cordinhas formariam um laço que ia acabar enforcando-o. Que idiota tinha sido de não reconhecer a armadilha e a isca tão bem elaboradas. Ironicamente, ele não considerava culpada a pessoa, ou as pessoas – se ela estivesse mancomunada com Pettijohn – que lhe armara a armadilha. O maior culpado era ele, por ter sido tão imaturo. Com os dois olhos bem abertos, Hammond tinha caído no mais antigo conto do vigário que a humanidade conhece. Sexo era um método seguro para comprometer um homem. Inúmeras vezes em toda a história tinha provado que era oportuno, confiável e eficiente. Ele não pensava que era tão ingénuo, mas obviamente era. Ingenuidade era perdoável. Obstrução da justiça, não. Por que não tinha admitido imediatamente para Smilow e Steffi que reconheceu a mulher do desenho? Porque ela podia não ter culpa nenhuma. Aquele Daniels podia ter se enganado. Se ele realmente tinha visto Alex Ladd no hotel, a hora exata desse encontro poderia ser crítica. Hammond sabia quase o minuto em que ela aparecera no pavilhão de dança. Dada à distância que ela teria de ter percorrido em seu carro para chegar lá, levando em consideração o congestionamento de trânsito, ela não teria conseguido se saísse do hotel... Ele fez um cálculo rápido. Digamos, às cinco e meia. Se o médico-legista determinasse a hora da morte depois disso, ela não poderia ser a assassina. bom argumento, Hammond. A posteriori. Uma racionalização sensacional. Mas o fato era que nunca tinha passado pela cabeça dele identificar Alex Ladd. Desde o momento em que seu coração parou quando viu o desenho e soube com absoluta certeza quem era a pessoa retratada, ele sabia, com a mesma certeza, que não ia revelar o nome dela. Quando ele viu o rosto no bloco de desenho da artista e se lembrou do rosto que tinha visto tão de perto no seu travesseiro, ele nem pesou as opções, não deliberou sobre os prós e os contras de ficar calado. Seu segredo foi selado imediatamente. Pelo menos por enquanto ele ia proteger a identidade dela. Desse modo estava quebrando todas as regras da ética que advogava. O silêncio dele era uma violação deliberada da lei que tinha jurado manter, e uma tentativa intencional de prejudicar uma investigação de homicídio. Nem imaginava a severidade das consequências que teria de pagar. Mesmo assim, não ia entregá-la para Smilow e Steffi. A forte batida soou um milésimo de segundo antes da porta se abrir. Ele já ia repreender a secretária por incomodá-lo, depois de ter pedido expressamente para não ser incomodado, mas não chegou a dizer aquelas palavras duras.

  • Bom-dia, Hammond. Merda! Isso é tudo de que preciso.

Como sempre acontecia quando estava na presença do pai, Hammond fazia uma espécie de inspeção pré-vôo. Como- estava? Todos os sistemas e partes estavam em perfeitas condições de funcionamento? Havia qualquer defeito que necessitasse de correção imediata? Ele ia passar no teste? Esperava que seu pai não o examinasse muito de perto aquela manhã.


O Álibi_Sandra Brown_II

  • Oi, pai.

Hammond ficou em pé e eles apertaram as mãos formalmente por cima da mesa. Se o pai algum dia lhe dera um abraço, Hammond devia ser jovem demais para se lembrar.

Ele pegou o paletó e pendurou-o num cabide de parede, pôs a pasta no chão e convidou o pai para se sentar na única cadeira vaga na sala sem espaço para mais nada. Preston Cross era consideravelmente mais corpulento e mais baixo que o filho. Mas a altura de menos não reduzia o impacto que ele provocava nas pessoas, no meio de uma multidão ou frente a frente. A pele corada estava sempre bronzeada por causa das atividades ao ar livre que praticava, e que incluíam ténis, golfe e vela. Como se tivesse obedecido uma ordem, o cabelo dele tinha ficado precocemente branco quando ele completou cinquenta anos. Usava o cabelo branco como um acessório para garantir que recebesse o devido respeito.

Nunca ficou um só dia doente e, na verdade, desprezava a pouca saúde como um sinal de fraqueza. Tinha parado de fumar havia dez anos, mas fumava charuto. Não bebia menos que três doses de uísque por dia. Considerava um sacrilégio jantar sem beber vinho. Sempre tomava um cálice de conhaque antes de dormir. Apesar desses vícios, ele vendia saúde. Com sessenta e cinco anos, Preston era mais robusto e estava em melhor forma do que a maioria dos homens com a metade da sua idade. Mas não era apenas seu físico imponente que criava aquela aura tão poderosa. Era também sua personalidade dinâmica. Considerava sua boa aparência como um direito. Intimidava os homens que costumavam ser sempre seguros. As mulheres o adoravam. Tanto na vida profissional quanto na pessoal, raramente era superado e jamais alguém o contradizia. Trinta anos antes, ele havia combinado diversas pequenas firmas de seguro médico e transformado numa grande que, sob a liderança dele, tinha ficado enorme e agora possuía vinte e uma filiais em todo o estado. Oficialmente, ele era parcialmente aposentado. No entanto, continuava sendo diretorexecutivo da companhia e era mais que uma posição passiva. Ele monitorava tudo, até o preço dos lápis no atacado. Nada escapava à sua observação. Servia a diversas diretorias e comités. Ele e a sra. Cross constavam de todas as listas de convites que tinham alguma importância. Ele conhecia todos que eram alguém no Sudeste dos Estados Unidos. Preston Cross era muito bem relacionado.Hammond desejava amar, admirar e respeitar o pai, mas sabia que Preston tinha tirado vantagem das qualidades concedidas por Deus para fazer coisas perversas. Preston iniciou sua visita inesperada.

  • Vim assim que soube.

Essas palavras em geral serviam de prefácio para condolências. Hammond se encheu de medo. Como é que o pai podia ter descoberto tão cedo sua indiscrição com Alex Ladd?

  • O que você soube?
  • Que você vai ser o promotor do caso do assassinato de Lute Pettijohn.

Hammond procurou esconder o alívio que sentiu.

  • Isso mesmo.
  • Teria sido bom ouvir essa boa notícia de você, Hammond.
  • Não tive a intenção de adiar nada, pai. Só conversei com Mason a noite passada.

Ignorando a explicação de Hammond, Preston continuou:

  • Em vez disso, tive de ouvir isso de um amigo que esteve com Mason hoje, num café da manhã de oração. Quando ele mencionou casualmente para mim, mais tarde no clube, naturalmente supunha que eu já soubesse. Fiquei constrangido de não saber.
  • Fui para a cabana no sábado. Fiquei sabendo sobre a morte de Pettijohn logo que cheguei, ontem à noite. Desde então as coisas têm acontecido tão depressa que nem tive chance de absorvê-las todas.

Um exemplo perfeito de atenuação dos fatos.

Preston tirou um fiapo invisível da dobra bem passada da calça.

  • Tenho certeza que sabe que essa é uma oportunidade incrível para você.
  • Sei, sim.
  • O julgamento vai atrair muita publicidade.
  • Estou sabendo...
  • Que você deve explorar, Hammond – com o zelo de um evangélico fanático, Preston levantou a mão e fechou o punho como se segurasse um monte de ondas de rádio. - Use a mídia. Faça seu nome circular sempre. Deixe os eleitores saberem quem você é. Autopromoção. Esse é o segredo.
  • O segredo é conseguir a condenação – retrucou Hammond. Espero que o meu desempenho na corte fale por si, e que eu não precise contar com o apoio da mídia.

Preston Cross abanou a mão num gesto de impaciência e pouco caso.

  • As pessoas não se importam com sua forma de cuidar do caso, Hammond. Quem está se lixando se o assassino pega prisão perpétua, pena de morte ou se sai impune?
  • Eu me importo – disse ele com convicção. - E os cidadãos deviam se importar também.
  • Talvez um dia tivessem prestado mais atenção no desempenho dos funcionários públicos. Agora todo mundo só se importa com o desempenho deles na televisão. - Preston deu uma risada. - Se fizessem uma enquete, duvido que a maioria das pessoas soubesse o que um promotor público faz.
  • No entanto, essas mesmas pessoas ficam indignadas com as estatísticas do crime.
  • Isso é bom. Apele para isso! - exclamou Preston. - Fale bonito e o público será aplacado – ele se recostou na cadeira. - Adule os repórteres, Hammond, e consiga a simpatia deles. Sempre que pedirem, dê uma declaração para eles. Mesmo se for besteira, ficará surpreso de ver até onde chega o benefício de uma coisa tão pequena. Eles começam a dar tempo grátis no ar para você – ele parou de falar para piscar um olho. - Trate de se eleger primeiro, depois pode fazer a cruzada que satisfaz seu coração.
  • E se eu não conseguir ser eleito?
  • O que vai impedi-lo?
  • A ilha Speckle.

Hammond tinha deixado cair uma bomba, mas Preston nem se mexeu.

  • O que é isso?

Hammond nem tentou esconder seu desprezo.

  • Você é bom, pai. Muito bom. Negue o quanto quiser, mas sei que está mentindo.
  • Olha essa língua comigo, Hammond.
  • Olhar a língua? - Hammond levantou-se zangado da cadeira e enfiou as mãos nos bolsos. - Não sou criança, pai. Sou promotor municipal. E você é um escroque.

O sangue misturado com uísque subiu para os capilares do rosto de Preston.

  • Muito bem, então você é muito esperto. O que pensa que sabe? 169
  • Sei que se o detetive Smilow ou qualquer outra pessoa descobrir que o seu nome está associado ao projeto da ilha Speckle, isso pode lhe custar uma multa pesadíssima, talvez até um tempo na prisão, e significar o fim da minha carreira. A não ser que eu processe meu próprio pai. De qualquer maneira, a sua aliança com Pettijohn me colocou numa situação indefensável.
  • Relaxe, Hammond! Não tem nada com o que se preocupar. Estou fora da ilha Speckle.

Hammond não sabia se acreditava nele ou não. O semblante do pai era calmo, implacável, não dava nenhum sinal aparente de desonestidade. Ele tinha esse talento.

  • Desde quando? - perguntou Hammond.
  • Semanas atrás.
  • Pettijohn não sabia disso.
  • Claro que sabia. Ele tentou me dissuadir de sair. Eu saí de qualquer maneira e levei meu dinheiro comigo. Ele ficou muito irritado.

Hammond sentiu o rosto esquentar de vergonha. Pettijohn tinha dito para ele no sábado à tarde que Preston estava metido até o pescoço na ilha Speckle. Tinha mostrado documentos assinados em que a assinatura do pai era prontamente reconhecida. Será que Pettijohn estava jogando com ele?

  • Um de vocês está mentindo.
  • Quando foi que você andou trocando confidências com Lute?
  • Preston quis saber.

Hammond ignorou a pergunta.

  • Quando você saiu, vendeu a sua parte com lucro?
  • Não seria um bom negócio se eu não fizesse isso. Havia um comprador que queria entrar no negócio e que estava disposto a pagar o meu preço pela minha parte.

O café amargo no estômago de Hammond ficou indigesto.

  • Não importa se você está ou não fora agora. Se já esteve ligado a esse projeto, está marcado. E por associação, eu também estou.
  • Você está dando importância demais para isso, Hammond.
  • Se isso se tornar público...
  • Não vai.
  • Mas pode.

Preston deu de ombros.

  • Então eu direi a verdade.
  • Que verdade?
  • Que eu não sabia o que Lute estava fazendo lá. Quando descobri, fui contra e pulei fora.
  • Você já cercou de todos os lados.
  • Isso mesmo. Sempre cerco.

Hammond olhou furioso para o pai. Preston estava praticamente desafiando o filho a transformar aquilo num caso... literalmente. Mas Hammond sabia que seria inútil fazer isso. Provavelmente até Lute Pettijohn sabia que Preston teria todos os seus patos enfileirados. Tinha usado a associação temporária de Preston no projeto da ilha Speckle para manipular Hammond.

  • O meu conselho, Hammond, é que você aprenda uma valiosa lição com isso. Você pode se safar com quase qualquer coisa, desde que mantenha sempre aberta uma rota de fuga segura.
  • Esse é o seu conselho para seu único filho? Que se dane a integridade?
  • Não fui eu que criei as regras – retrucou ele. - E você pode não gostar delas – ele chegou o corpo para a frente e sublinhou suas palavras cortando o ar com o dedo indicador em riste. - Mas você tem de seguilas, senão aqueles que não são tão escrupulosos vão deixá-lo para trás, comendo a poeira deles.

Aquele território era bem familiar. Os dois tinham pisado nele milhares de vezes. Quando Hammond tinha idade suficiente para questionar a infalibilidade do pai e para ir contra alguns dos seus princípios, logo ficou claro que eles eram diferentes. Uma linha foi traçada na areia. Aquelas eram discussões que nenhum dos dois podia vencer porque nenhum dos dois se dispunha a ceder nem um milímetro sequer. Agora que Hammond tinha visto provas por escrito do envolvimento do pai em um dos esquemas mais nefandos de Pettijohn, ele compreendia a imensa diferença entre seus pontos de vista. Não acreditava, nem por um segundo, que Preston não soubesse o que estava acontecendo naquela ilha no meio do mar. A consciência não teve papel nenhum na sua decisão de sair do negócio na hora que ele saiu. Simplesmente esperou uma oportunidade de lucrar com o próprio investimento. Hammond percebeu que o abismo entre os dois estava se aprofundando. Não via como superá-lo.

  • Tenho uma reunião em cinco minutos – mentiu ele, chegando até a ponta da mesa. - Diga oi para a mamãe. Vou tentar telefonar para ela hoje, mais tarde.
  • Ela e umas amigas vão visitar a Davee esta tarde.
  • Estou certo de que Davee vai gostar – disse Hammond, lembrando como Davee tinha demonstrado desprezar aquela ideia de receber visitas que iam à casa dela mais por curiosidade do que para prestar condolências.

À porta, Preston parou e se virou para ele.

  • Não fiz segredo nenhum do que achei quando você deixou a firma de advocacia.
  • Não, não fez mesmo. Deixou perfeitamente claro que achava que era a escolha errada – disse Hammond, tenso. - Mas mantenho a minha decisão. Gosto do meu trabalho aqui, deste lado da lei. Além do mais, sou bom nisso.
  • Você está se saindo bem sob a tutela de Monroe Mason. Excepcionalmente bem.
  • Obrigado.

O cumprimento não suavizou o que Hammond sentia, porque ele não dava mais valor à opinião do pai. Além disso, o elogio de Preston sempre vinha acompanhado de um qualificativo.

  • Gostei de todos esses A ‘s, Hammond. Mas aquele B-plus em química é inaceitável.
  • Os corredores que você rebateu naquele triplo ganharam o jogo. Pena que não conseguiu fazer um grand slam. Isso sim teria sido o máximo!
  • Segundo lugar da sua turma de direito? Isso é maravilhoso, filho. Claro que não tão bom quanto o primeiro lugar.

Era sempre assim, desde a infância dele. E o pai não quebrou a tradição aquela manhã.

  • Você agora tem a chance de validar a sua decisão, Hammond. Abandonou a promessa de sociedade numa firma de advocacia com muito prestígio e ingressou no serviço público. Isso teria muito mais sentido se você fosse o patrão. com falsa afetação, ele pôs a mão no ombro de Hammond como um saco de cimento. Já tinha esquecido, ou resolvera desconsiderar a discussão recente dos dois.
  • Esse é o caso que pode lhe valer a fama, filho. O caso do assassinato de Pettijohn é um convite de portas abertas para o cargo de procurador-geral.
  • E se as suas trapaças anularem minhas chances, pai?
  • Isso não vai acontecer – respondeu ele, exibindo impaciência.
  • Mas se acontecer, levando em conta o que você ambiciona para mim, não seria uma ironia cruel? A dra. Alex Ladd não atendia pacientes às segundas-feiras.

Ela usava esse dia para atualizar sua papelada e negócios pessoais. Aquela era uma segunda-feira especial. Ia saldar sua dívida com Bobby Trimble e livrar-se dele, se possível para sempre. Aquele tinha sido o trato que os dois fizeram na noite anterior. Ela daria o que ele tinha exigido, e ele desapareceria. Mas ela já tinha aprendido com experiências concretas que as promessas de Bobby não valiam nada. Enquanto destrancava a porta do consultório, imaginava quantas vezes no futuro seria forçada a abrir o cofre para tirar dinheiro em espécie. Pelo resto da vida? Essa era uma perspectiva desanimadora, mas válida. Agora que Bobby a tinha encontrado de novo, não era provável que a deixasse em paz. O consultório bem decorado fazia lembrar tudo que tinha a perder se Bobby a entregasse. Com o conforto dos pacientes em mente, ela havia escolhido uma mobília discreta mas cara. Como os outros cómodos da casa, era uma mistura do estilo tradicional com algumas poucas peças de antiquário dando um toque pessoal. O tapete oriental abafou seus passos. O sol entrava pelas janelas que davam para a varanda do primeiro andar e, mais adiante, para o jardim murado, que ela mantinha muito bem cuidado nas quatro estações. As plantas e flores que cresciam no clima semi tropical de Charleston estavam no máximo de sua exuberância. Curtindo a umidade, elas criavam retalhos de cores vibrantes nos seus canteiros cultivados. Teve sorte de encontrar a casa já reformada e renovada com conveniências modernas. Só precisou dar alguns toques pessoais para torná-la dela. Um tempo atrás aquele cómodo do canto, na frente, tinha sido a única sala formal da casa. O cómodo idêntico contíguo a ela, originalmente a sala de jantar, agora funcionava como sala de estar. Quando recebia convidados, ela os levava para o jardim. As refeições em casa eram feitas na cozinha, o cómodo dos fundos no primeiro andar. Lá em cima havia duas grandes suítes. Cada cómodo da casa se abria para uma das duas piazzas sombreadas. O muro coberto de jasmim que cercava o jardim garantia a privacidade. Alex puxou para o lado o quadro que escondia seu cofre de parede. Com habilidade, ela girou o mostrador com a combinação da tranca e, quando ouviu as linguetas encaixando, abaixou a alavanca e abriu a porta pesada. Dentro havia várias pilhas de dinheiro, presos com elástico de acordo com o valor. Talvez por ter conhecido a necessidade, até a fome, quando era pequena, jamais ficava sem dinheiro vivo à mão. O hábito era infantil e irracional, mas se dava esse direito, levando em conta a origem dele. Não era seguro, economicamente, manter o dinheiro num cofre, onde não rendia juros. Mas dava uma sensação de segurança saber que estava lá, à disposição se surgisse alguma emergência. Como agora. Ela contou a quantia que tinha combinado pagar e pôs o dinheiro numa sacola com zíper. Devido ao que representava, a sacola parecia extraordinariamente pesada na mão dela. O ódio que sentia por Bobby Trimble era tão intenso que ela ficava até com medo. Não lamentava ter de dar aquele dinheiro para ele. Ficaria feliz de dar até mais se significasse que nunca mais teria de vê-lo. Não era da quantia que ela não gostava, mas da intromissão na vida que ela havia construído para ela. Duas semanas antes, ele tinha se materializado na sua frente, saído do nada. Sem imaginar o que havia à sua espera, ela atendeu alegremente à campainha da porta e o encontrou lá. Por um momento não o reconheceu. As mudanças eram surpreendentes. As roupas vulgares e baratas tinham sido substituídas por uma moda mais cara e chamativa. Havia um pouco de branco no cabelo das têmporas, que faria qualquer outro homem parecer distinto. Bob, contudo, só parecia mais sinistro, como se a maldade da juventude tivesse amadurecido e virado puro mal. Mas o sorriso sarcástico era familiar demais. Era um sorriso triunfante, cheio de volúpia e sugestivo, que ela passara anos tentando erradicar da memória. Quando inúmeras sessões de terapia e mares de lágrimas não lograram livrá-la dele, ela implorou a Deus para fazê-lo desaparecer. Agora, apenas em raras ocasiões, ele reaparecia num pesadelo, do qual ela despertava banhada em suor e tremendo de pavor. Porque aquele sorriso representava o controle que ele havia exercido sobre ela.

  • Bobby – a voz dela tinha o tom oco do dobre do sino da morte. O retorno dele, sem aviso, para a vida dela só podia significar

desastre, especialmente porque as mudanças sutis pelas quais tinha passado atenuavam a ameaça que ele representava.

  • Você não parece muito contente de me ver.
  • Como foi que me encontrou?
  • Bem, não foi fácil – a voz dele também tinha mudado. Estava mais suave, mais refinada, não era mais fanhosa. - Se não conhecesse você, acharia que estava se escondendo de mim todos estes anos. Acontece que foi por acaso que vim parar na sua porta. Um golpe do destino.

Ela não sabia se acreditava nele ou não. O destino podia ter pregado essa peça cruel nela. Por outro lado, Bobby era cheio de recursos. Ele podia estar atrás dela estes anos todos. De qualquer modo, não importava mais. Ele estava lá, exumando suas piores lembranças e medos mais sinistros dos lugares profundos da alma em que ela os havia enterrado.

  • Não quero nada com você.

Ele pôs as mãos sobre o coração e fingiu que o que ela dizia o estava magoando.

  • Depois de tudo que representamos um para o outro? -Justamente por tudo que representamos um para o outro. Ele achou que ela estava muito mais equilibrada e segura do que

quando era mais jovem, e fez uma careta de raiva.

  • Você realmente quer começar a comparar as nossas experiências passadas? Quer comparar o que aconteceu com quem? Lembre que fui eu que...
  • O que você quer? Fora dinheiro. Sei que você quer dinheiro.
  • Não tire conclusões precipitadas, dr. Lad. Você não foi a única que melhorou de vida. Desde a última vez que nos encontramos, também prosperei.

Ele se gabou da carreira como relações públicas de uma boate. Quando ela ouviu tudo que era capaz de suportar sobre os dias de glória dele no Cock’n’Bull, ela disse:

  • Tenho um paciente daqui a quinze minutos.

Ela esperava com isso dar um fim rápido à reunião. Mas Bobby estava se animando para a grande revelação. Como se jogasse o ás da vitória, ele orgulhosamente explicou o esquema que o tinha levado para Charleston.

Sem dúvida ele estava completa e absolutamente louco, e ela disse isso para ele.

  • Tenha cuidado, Alex – disse ele, com uma suavidade apavorante. - Não sou mais tão bonzinho como costumava ser. E estou muito mais esperto.

Tentando controlar o medo, ela disse:

  • Então você não precisa de mim. Mas o plano dele incluía Alex.
  • Na verdade, você é a chave para o sucesso do plano. Quando ele contou o que queria que ela fizesse, ela disse:
  • Você está delirando, Bobby. Se pensa que eu lhe daria um minuto do meu tempo está redondamente enganado! Vá embora e não volte mais!

Mas ele voltou. No dia seguinte. E no outro também. Ele persistiu uma semana inteira, aparecendo nas mais diversas horas, interrompendo as sessões de Alex com seus pacientes, deixando repetidos recados na secretária eletrônica, que ficavam cada vez mais ameaçadores. Ele tinha voltado a se incorporar à vida dela, como bom parasita que era.

Finalmente ela concordou em se encontrar com ele. Achando que Alex tinha capitulado, o prazer dele se transformou em fúria quando ela se recusou a participar.

  • Você pode ter mais verniz, Bobby. Estar mais refinado. Mas você não mudou. É o mesmo daquele tempo em que trabalhávamos na rua para conseguir uns trocados. É só arranhar a superfície desse verniz fino que você continua sendo ralé por baixo.

Furioso por saber que o que ouvia era verdade, ele tirou um dos diplomas dela da parede do consultório e jogou no chão, quebrando a moldura e estilhaçando o vidro.

  • Escute bem o que vou dizer: - sua voz parecia mais a voz que ela lembrava – é melhor você pensar bem e fazer esse pequeno favor para mim. Senão vou estragar sua vida pra valer. Pra valer!

Ela compreendeu então que ele não era mais um vagabundo de rua. Além de poder prejudicá-la, ele podia destruí-la. Por isso ela concordou em desempenhar seu pequeno papel naquele plano ridículo, mas só porque já tinha pensado numa maneira de sabotá-lo.

Mas como acontecia com todas as trapaças de Bobby, deu errado. Terrivelmente errado.

Ela não conseguiu implementar o próprio plano. Agora era fundamental que ela se dissociasse de Bobby. Se isso significava pagar o que ele exigia, era um sacrifício pequeno se comparado à enormidade do que podia perder se a aliança dos dois fosse revelada. Achando que essa decisão era válida, ela fechou o cofre de parede, pôs o quadro de volta no lugar e saiu do consultório, tendo o cuidado de trancar a porta. Como se fosse uma deixa, a campainha tocou no mesmo instante. Bobby tinha chegado bem na hora. Ela escondeu a sacola atrás de um vaso na mesa da entrada, foi para a varanda e abriu a porta da rua. Mas não era Bobby. Dois policiais uniformizados acompanhavam um homem de olhos claros e lábios finos, muito sérios. O coração de Alex disparou, pois ela já sabia o que eles estavam fazendo ali na sua casa. Mais uma vez sua vida estava prestes a mergulhar no caos. Para disfarçar sua ansiedade, ela deu um sorriso simpático.

  • Posso ajudá-los?
  • Dra. Ladd?
  • Sim.
  • Sou o sargento Rory Smilow, detetive da seção de homicídios do departamento de polícia de Charleston. Gostaria de conversar com a senhora sobre o assassinato de Lute Pettijohn.
  • Lute Pettijohn? Eu não sei...
  • A senhora foi vista do lado de fora da suíte de cobertura dele na tarde em que foi assassinado, dra. Ladd. Por isso faça o favor de não desperdiçar meu tempo fingindo que não sabe do que estou falando.

Ela e o detetive Smilow ficaram olhando um para o outro, medindo forças. Foi Alex que acabou cedendo. Ela chegou para um lado.

  • Entrem.
  • Na verdade, eu esperava que a senhora viesse conosco. Ela engoliu em seco, apesar da boca estar seca.
  • Eu gostaria de telefonar para o meu advogado.
  • Não é necessário. A senhora não está sendo presa. Ela olhou bem para os dois policiais ao lado dele.

Os lábios de Smilow subiram um pouco e formaram o que poderia passar como um sorriso triste.

  • Ser interrogada voluntariamente sem a presença de um advogado pode representar muito para me convencer de que a senhora é inocente, que não fez nada de errado.
  • Não acredito nem um pouco nisso, detetive Smilow – ela marcou um ponto. A franqueza dela pareceu pegar Smilow de surpresa. - Terei prazer de acompanhá-los assim que avisar o meu advogado.

Smilow estava sentado na quina de sua mesa. Diferente de todas as outras mesas da Divisão de Investigação Criminal, a dele não tinha papéis empilhados. Os arquivos e a papelada estavam arrumados. Graças ao trabalho do engraxate Smitty aquela manhã, os sapatos de amarrar refletiam as luzes do teto. Ele continuava de paletó. Alex Ladd estava sentada, com as mãos calmamente postas no colo, as pernas discretamente cruzadas. Smilow achou que ela estava extraordinariamente composta para alguém que, pelo menos no que dizia respeito à aparência, parecia totalmente deslocada na sala de um detetive da Homicídios. Havia meia hora esperavam o advogado que tinha combinado encontrá-la na delegacia. Se ela se sentia incomodada com o silêncio prolongado e com o exame minucioso que Smilow fazia dela, não dava nenhum sinal. Não demonstrava medo ou insegurança, apenas uma tolerância a contragosto com aquela inconveniência. O advogado Frank Perkins chegou afobado, apressado e se desculpando. Usava roupa de golfe, fora os sapatos.

  • Sinto muito, Alex. Eu estava no décimo buraco quando recebi seu recado. Vim o mais depressa possível. Do que se trata, Smilow?

Perkins tinha uma reputação muito sólida e um desempenho excelente. O que era mais raro ainda, tinha fama de ser um ser humano decente, possuidor de uma integridade inabalável. Smilow ficou imaginando de que forma o advogado tinha servido a Alex Ladd antes, por isso perguntou.

  • É uma pergunta grosseira – respondeu Perkins -, mas não me importo de responder, se Alex não se importar.
  • Por favor – disse ela.
  • Até esse momento temos sido apenas amigos, socialmente. Nós nos conhecemos há uns dois anos, quando ela e Maggie, a minha mulher, trabalharam juntas num comité do Spoleto – explicou ele, referindo-se ao famoso festival de artes de Charleston, que acontecia no mês de maio.
  • Então, até onde sabe, a dra. Ladd nunca enfrentou nenhum processo criminal antes?
  • Vá logo ao assunto, Smilow – o tom de Perkins demonstrava por que os promotores o consideravam um adversário duro no tribunal.
  • Quero interrogar a dra. Ladd a respeito do assassinato de Lute Pettijohn.

O queixo de Perkins caiu. Ele olhou para eles boquiaberto, como se esperasse o fim da piada.

  • Vocês devem estar brincando.
  • Não, infelizmente ele não está brincando – disse Alex. Obrigada por vir, Frank. Sinto muito ter interrompido a sua partida de golfe. Você estava ganhando?
  • É... estava, estava – respondeu ele, distraído, ainda tentando digerir o que Smilow acabara de dizer.
  • Então sinto mais ainda – olhando para Smilow, ela disse: - Isso tudo é ridículo demais. É uma perda de tempo. Eu só quero terminar logo com isso e sair daqui.

Como se estivesse dando permissão para ele continuar, Alex mexeu a cabeça olhando para ele. Ele se inclinou sobre a mesa, ligou um gravador, declarou os nomes deles, a hora e a data.

  • Dra. Ladd, o funcionário de um estacionamento público na rua East Bay identificou a senhora em um retrato falado. Como o estacionamento não tem um sistema automático de emissão de tíquetes, ele mantém um registro, por escrito, de cada carro, com o número da placa e a hora que entrou.

Infelizmente para Smilow não havia nenhum registro da hora em que o carro saíra do estacionamento. A cobrança era feita de acordo com o horário de entrada. Qualquer período inferior a duas horas custava cinco dólares. As taxas adicionais só começavam a ser cobradas depois daqueles primeiros cento e vinte minutos. O preço era anotado, mas não a hora exata da saída.

  • Nós a encontramos pelo bilhete do seu carro. No sábado à tarde a senhora deixou o carro naquele estacionamento quase duas horas.

Perkins, que ouvia atentamente, deu uma risada e disse:

  • Essa foi a sua descoberta trepidante? Esse é o seu enorme progresso neste caso?
  • É um começo.
  • Um começo danado de lento. Como é que o negócio do estacionamento associa a dra. Ladd ao assassinato?
  • Eu dei uma gorjeta...

Perkins levantou a mão, mas Alex o fez abaixar.

  • Tudo bem, Frank. Dei para o rapaz do estacionamento uma nota de dez dólares, a menor que eu tinha. E isso representou uma gorjeta de cinco dólares. Tenho certeza de que foi por isso que ele lembrou tão bem de mim, a ponto de poder me descrever para o retratista.
  • Não foi ele que nos deu a descrição – disse Smilow. - Foi o sr. Daniels, de Macon, Geórgia. O quarto dele no Charles Towne Plaza ficava no mesmo corredor da suíte de cobertura ocupada por Lute Pettijohn aquele sábado à tarde. A senhora o conhecia?
  • Você não precisa responder, Alex – disse o advogado. - Na verdade, recomendo que não diga mais nada até termos a chance de conversar só nós dois.
  • Tudo bem – repetiu ela, dessa vez rindo um pouco. Olhando de novo para Smilow, ela disse: - Nunca ouvi falar do sr. Daniels, de Macon, Geórgia.

Além de calma, ela era inteligente, pensou Smilow.

  • Estava me referindo ao sr. Pettijohn. A senhora o conhecia?
  • Todo mundo em Charleston já ouviu falar de Lute Pettijohn. O nome dele está sempre no noticiário.
  • A senhora sabia que ele tinha sido assassinado?
  • Claro que sim.
  • Viu na televisão?
  • Estive fora da cidade uma parte do fim de semana. Mas quando voltei, ouvi no noticiário.
  • Não conhecia Pettijohn pessoalmente?
  • Não.
  • Então o que estava fazendo na frente da porta do quarto dele no hotel, na hora em que foi assassinado?
  • Eu não estava lá.
  • Alex, por favor, não diga mais nada – ele pôs a mão sob o cotovelo dela e indicou a porta. - Nós vamos embora.
  • Não vai ficar bem para mim.
  • Detetive, não fica bem para você. Você deve um pedido de desculpas para a dra. Ladd.
  • Não me importo de responder às perguntas, Frank, se isso ajudar a acabar com essa loucura de uma vez por todas – disse ela.

Perkins ficou olhando para ela um longo tempo. Ele obviamente discordava disso, mas virou-se para Smilow:

  • Insisto em ter uma conversa com a minha cliente antes de isso prosseguir.
  • Muito bem. Darei alguns minutos para os dois.
  • Não se esqueça de desligar o microfone antes de sair.
  • Pode acreditar, Frank, que quero que isso seja feito de acordo com as regras. Não quero que um assassino saia impune por causa de uma tecnicalidade – olhando bem para Alex, ele desligou o gravador e deixou-a sozinha com o advogado.
  • Não dá para acreditar – Steffi Mundell estava do lado de fora, no estreito corredor, espiando pela janela de espelho da sala particular do detetive Smilow. - O retrato falado estava perfeito. Como é que ela é?
  • Você não tem outros casos, Steffi? Pensei que todos vocês, assistentes da promotoria, vivessem sobrecarregados e mal pagos. Pelo menos é nisso que vocês fazem todo mundo acreditar.
  • com a sanção de Mason, aliviei minha cota de casos para poder me concentrar neste. Ele quer que eu ajude Hammond em tudo que puder.
  • Onde está o garoto prodígio?

Smilow viu Alex Ladd balançar a cabeça inexoravelmente para uma pergunta que Frank Perkins fez.

  • Entrincheirado em seu escritório. Não o vejo desde que saímos do hospital esta manhã. Deixei-lhe um recado dizendo que eu vinha para cá para dar uma espiada na nossa suspeita. Por falar nisso, um bom trabalho de captura.
  • Sopa no mel. Hammond virá nos encontrar?
  • Você se importa? Smilow deu de ombros.
  • Gostaria de avaliar a reação dele. -Àdra. Ladd?
  • Talvez seja interessante ver se o santo Hammond consegue pedir a pena de morte para uma bela mulher.

Steffi reagiu com espanto.

  • Você acha que ela é bonita?

Antes de Smilow poder responder, Frank Perkins abriu a porta, cumprimentou Steffi com aspereza e fez um gesto para eles entrarem. Bobby Trimble respirou fundo para tentar fazer seu coração voltar a bater normalmente. Estava acelerado desde que vira Alex conversando com policiais na frente da casa dela. Isso era ruim. Muito ruim. Será que a polícia já sabia do seu esquema Pettijohn? Será que Alex os tinha chamado com a intenção de entregá-lo para se salvar? Ele tinha passado de carro pela frente da casa dela devagar, com uma indiferença ensaiada. Mas o que ele viu com o canto do olho foi alarmante. Dois uniformizados, um à paisana e uma mulher vingativa que não disfarçava o desprezo que sentia por ele. Uma receita perfeita para o desastre. Havia, no entanto, um sinal positivo. Alex não apontou para ele. Não apontou para ele gritando “Peguem-no!”. Mas ele não tinha certeza do que isso significava, em que pé estava. Podia significar apenas que ela não o tinha visto passar. Pensando no seu próximo passo, ele dirigiu o conversível sem rumo pelo trânsito do meio-dia no Centro de Charleston. Na noite anterior ele pensou que tinha conseguido. Depois de muitas ameaças, Alex tinha concordado em dar o dinheiro que ele exigia.

  • Se você pensa que pode roubar a minha ideia e usá-la em benefício próprio, está muito enganada, senhorita! - Quando ele ficava agitado o sotaque voltava. Ele detestava aquele som anasalado e parou de falar para modular a voz. - Nem pense em tentar me ludibriar, Alex – disse ele em tom mais suave, mas não menos ameaçador. - Aquele dinheiro me pertence e eu o quero!

Alex também tinha dado a volta por cima. Falava melhor. Vestia-se melhor. Vivia bem. Mas apesar de toda aquela pose esnobe e metida a besta, não tinha mudado realmente. Não mais que ele. Assim como Alex conhecia sua verdadeira natureza, ele conhecia a dela. Será que ela pensava que ele tinha nascido ontem? Ele sabia o que estava acontecendo. Ela aproveitara a sua ideia brilhante e estava tentando ficar com a metade que pertencia a ele.

Quando ele a acusou disso, ela retrucou:

  • Pela última vez, Bobby, não tenho dinheiro nenhum para dar para você. Deixe-me em paz!
  • Isso simplesmente não vai acontecer, Alex. Farei parte da sua vida até conseguir o que vim buscar. Se quiser que eu desapareça, vai ter de pagar!

O suspiro cansado de Alex foi tão bom quanto uma bandeira branca hasteada.

  • Esteja na minha casa amanhã, ao meio-dia.

Então ele foi para a casa dela ao meio-dia, e o que aconteceu? Ela estava recebendo a visita da polícia. Já podiam até ter expedido um mandado de prisão para ele. Mas talvez não, ele pensou, esforçando-se para ficar calmo. Se ela e a polícia estavam armando uma armadilha para ele, por que a radiopatrulha estava estacionada bem à vista? E como é que ela podia acusálo sem se encrencar também? De qualquer forma, até ter certeza do que estava acontecendo, seria mais sensato Bobby Trimble se esconder. Uma chatice. Ele parou num sinal vermelho, cruzou as mãos em cima da direção e contemplou seu futuro imediato. Com o canto do olho ele notou um outro conversível parando ao lado do dele. Virou a cabeça. Os dois rostos que olhavam para ele estavam parcialmente escondidos atrás de óculos escuros com lentes amarelas. As estudantes eram jovens e atraentes. Seus sorrisos eram convidativos e ousados. Filhinhas mimadas de papai rico à procura de encrenca numa tarde quente de verão. Ou seja, presas fáceis. O sinal ficou verde, e cantando pneus o carro delas saiu em disparada. Viraram à direita na rua seguinte. Bobby trocou de pista e foi atrás delas. As meninas, olhando por cima dos ombros nus, sabiam que ele as seguia. Ele as viu dando risadas. O BMW conversível entrou no estacionamento de um restaurante da moda. Bobby também entrou. Viu as duas indo para a porta de entrada. Elas usavam shorts bem curtos que exibiam uma polegada das nádegas e o que pareciam quilómetros de pernas bronzeadas. As blusas deixavam pouca coisa a cargo da imaginação. Elas eram uma lembrança ambulante, risonha e paqueradora do que Bobby fazia melhor. Ele abriu caminho pelo restaurante apinhado e avistou as duas sentadas a uma mesa no pátio, à sombra de um guarda-sol, fazendo o pedido de bebidas para uma garçonete. Quando a garçonete se afastou, Bobby sentou-se numa cadeira vazia à mesa delas. Os lábios delas brilhavam e emolduravam dentes muito brancos e perfeitos. Diamantes brilhavam em suas orelhas. Elas cheiravam a perfumes caros.

  • Sou policial – disse ele com a voz arrastada e sensual. - As jovens senhoritas têm idade para beber? Elas riram.
  • Não se preocupe conosco, policial.
  • Já passamos da maioridade.
  • Maioridade para fazer o quê? - perguntou ele.
  • Estamos de férias, por isso topamos praticamente qualquer coisa.
  • Qualquer coisa mesmo.

Ele deu um sorriso cheio de más intenções.

  • É mesmo? E eu pensei que vocês eram missionárias em viagem. Mais uma rodada de risos. A garçonete chegou com dois drinques.

Bobby recostou-se na cadeira.

  • O que estamos bebendo, senhoritas? O jogo estava ganho.

A intrépida recepcionista finalmente quebrou a barreira invisível e entrou na sala de Hammond.

  • Sabe aquela suspeita do retrato falado? Foi identificada como dra. Alex Ladd. Neste exato momento ela está na sala do detetive Smilow, sendo interrogada.

Hammond começou a suar frio na palma das mãos.

  • Ele a prendeu?
  • Ela veio voluntariamente, foi o que a srta. Mundell disse. Mas está com o advogado dela. O senhor vai para lá ou não?
  • Talvez mais tarde. A recepcionista saiu.

As ramificações dessa notícia ricochetearam rapidamente, como ecos. Hammond foi atacado por elas. As táticas de interrogatório de Smilow eram capazes de arrancar uma confissão da madre Teresa. Hammond não tinha como saber de que forma Alex Ladd ia reagir a elas. Seria hostil ou ia cooperar? Teria alguma coisa para confessar? Quando ela o visse novamente, o que poderia revelar? O que ele poderia revelar?

Por precaução, ele queria adiar o inevitável encontro cara a cara até quando pudesse. Até saber mais sobre Alex Ladd e conhecer a natureza e a extensão do seu envolvimento com Pettijohn, era melhor para ele manter distância do caso. Normalmente isso seria viável. A não ser em raras exceções, a promotoria não se envolvia diretamente até os detetives descobrirem provas suficientes para fazer acusações formais, ou para Hammond ter um caso para apresentar ao grande júri. Diferentemente de Steffi, que não sabia o que queria dizer sutileza, ele deixava a polícia fazer seu trabalho até a hora de ele assumir o controle da situação. Mas era uma daquelas raras exceções. Seu envolvimento era necessário, mesmo que o único motivo fosse a política. Funcionários municipais e estaduais, alguns que tinham sido inimigos declarados de Pettijohn, outros seus aliados, estavam usando aquele assassinato como plataforma política. Pela mídia, eles exigiam a rápida prisão e julgamento do assassino. Alimentando o interesse público, um editorial no jornal daquela manhã emitia um chamado para despertar os leitores para a triste verdade de que ninguém, nem um indivíduo aparentemente invulnerável como Lute Pettijohn, estava a salvo da violência. Na edição de meio-dia do noticiário, um repórter fazia uma enquete na rua, perguntando para os transeuntes se confiavam que o assassino de Pettijohn seria capturado e justamente punido. O caso estava criando o frenesi da mídia que o pai dele tanto queria. O que Hammond queria,era evitar entrar na refrega o máximo de tempo possível. Visando isso, ele passou mais meia hora inventando trabalho para ele mesmo.

Monroe Mason apareceu assim que ele chegou do almoço.

  • Ouvi dizer,que Smilow já tem uma suspeita.

A voz retumbante ecoou pelas paredes da sala de Hammond como uma bola de ténis.

  • As notícias se espalham rápido.
  • Então é verdade?
  • Acabei de receber o recado alguns minutos atrás.
  • Dê-me a versão resumida.

Ele explicou quem era Daniels e contou do retrato falado.

  • Fizeram circular um cartaz com o desenho de Endicott e uma descrição por escrito na região do Charles Towne Plaza. A dra. Ladd foi identificada por um funcionário de um estacionamento.
  • Soube que ela é uma psicóloga famosa.
  • É o que dizem.
  • Já tinha ouvido falar dela?
  • Não.
  • Eu também não. Minha mulher provavelmente já. Ela conhece todo mundo. Você acha que Pettijohn era paciente dela?
  • A essa altura, Monroe, sei tanto quanto você.
  • Veja o que consegue descobrir.
  • vou mantê-lo informado à medida que o caso for progredindo.
  • Não, eu quis dizer esta tarde. Agora.

-Agora? Smilow não gosta quando nós xeretamos – argumentou Hammond. - E ele não gosta especialmente quando eu me meto. A Steffi já está lá. Se eu for para lá também, ele vai detestar. Vai parecer que estamos querendo controlá-lo.

  • Se ele se enfurecer, Steffi pode aplacá-lo. Preciso de alguma coisa para dizer aos repórteres que estão ligando para cá.
  • Não se pode divulgar que a dra. Ladd é suspeita, Monroe. Não sabemos se ela é mesmo. Está apenas sendo interrogada, pelo amor de Deus!
  • Ela ficou tão preocupada que levou Frank Perkins junto.
  • Frank é o advogado dela?

Hammond conhecia bem Perkins, e o respeitava. Era sempre um desafio argumentar num caso contra ele no tribunal. Ela não poderia ter escolhido advogado mais capaz.

  • Qualquer pessoa sensata levaria o advogado junto para ser interrogada na delegacia.

Mason não desanimou.

  • Trate de me dizer o que ela andou aprontando.

Com um até logo ribombante, Monroe saiu e levou embora com ele qualquer opção que Hammond pudesse ter.

Assim que chegou à delegacia de polícia, ele foi para o segundo andar e apertou a campainha da porta dupla trancada da Divisão de Investigação Criminal. Quem a abriu foi uma mulher policial. Sabendo por que ele estava ali, ela disse:

  • Estão na sala de Smilow.
  • Por que não na sala de interrogatório?
  • Acho que estava ocupada. Além do mais, a procuradora Mundell queria observar pelo vidro.

Hammond ficou quase feliz de Alex não estar sendo interrogada naquele cubículo sem janelas que fedia a café velho e a suor de culpa. Não podia imaginá-la na mesma sala em que tinha visto pedófilos, estupradores, bandidos, cafetões e assassinos serem completamente desmantelados sob a pressão dos tenazes interrogatórios. Ele entrou no corredor curto onde ficavam as salas dos detetives da Homicídios. Esperava que já tivessem acabado e que Alex já tivesse ido embora quando chegou. Mas não teve tanta sorte. Steffi e Smilow estavam espiando pela janela-espelho, parecendo abutres à espera do último suspiro da vítima. Ele ouviu Steffi dizer para Smilow:

  • Ela está mentindo.
  • Claro que está mentindo – disse Smilow. - Só não sei que parte é mentira.

Não notaram a presença de Hammond até ele falar.

  • O que está havendo?

Steffi deu meia-volta e parecia muito aborrecida.

  • Ora, até que enfim. Você não recebeu meus recados? 188
  • Não pude sair antes. O que a faz pensar que ela está mentindo?
  • ele apontou com o queixo para a pequena janela, até ali sem coragem de espiar.
  • Normalmente a pessoa inocente fica nervosa e irritada – disse Smilow.
  • A nossa doutora mal pisca – disse Steffi para ele. - Não hesita. Não pigarreia. Não fica mexendo as mãos. Ela responde diretamente a todas as perguntas.
  • Estou surpreso de Frank estar deixando que ela responda a qualquer pergunta – comentou Hammond.
  • Ele não queria. Mas ela insistiu. Tem opinião própria. Seguindo o olhar pensativo de Smilow, Hammond finalmente virou a cabeça. Só dava para ver uma parte do perfil, mas mesmo isso teve um efeito profundo nele. Seu primeiro impulso foi afastar a mecha de cabelo cacheado que pendia no rosto dela. O segundo foi agarrá-la e sacudi-la com raiva, exigindo saber o que ela andou aprontando e por que o tinha arrastado para o meio daquela confusão.
  • O que sabemos sobre ela? - perguntou ele.

Até Smilow parecia impressionado ao citar uma longa lista de credenciais.

  • Além de ter estudos seus publicados duas vezes na Psychology Today, foi muitas vezes convidada para dar aulas, especificamente sobre a pesquisa que fez sobre ataques de pânico. É considerada uma especialista no assunto. Alguns meses atrás ela convenceu um homem a sair do parapeito de uma janela.
  • Lembro-me disso – disse Hammond.
  • Chegou aos jornais. A mulher do homem diz que a dra. Ladd salvou a vida dele – consultando seu bloco de notas, Smilow acrescentou: -A vida pessoal dela é pessoal. Só sabemos que é solteira, não tem filhos. Frank está furioso. Diz que pegamos a pessoa errada.
  • O que mais ele poderia dizer? - comentou Steffi com malícia. Procurando parecer fleumático, Hammond disse:
  • Ela parece uma mulher muito segura de si.

-Ah, ela é segura mesmo – disse Steffi. - Não dá para derreter gelo no rabo dela. Depois que você conversar com ela, vai ver o que quero dizer. Ela é tão fria que praticamente não tem sangue nas veias.

Você não sabe de nada, Steffi.

  • Prontos para a próxima rodada? Steffi e Smilow se aproximaram da porta. Hammond ficou parado.
  • Vocês querem que eu entre aí? Os dois viraram para ele surpresos.
  • Pensei que você estaria louco para ter seu primeiro contato com a assassina – disse Steffi.
  • Ainda não sabemos se ela é ou não uma assassina – disse ele, irritado. - Mas a questão não é essa. A questão é que já que você está aqui, nós somos em maior número do que Smilow. Não quero que ele pense que estamos monitorando o trabalho dele.
  • Você pode falar comigo diretamente – disse Smilow.
  • Muito bem – disse Hammond, olhando para o detetive. - Para deixar as coisas bem claras aqui, a minha vinda para cá foi ideia do Mason, não minha.
  • Ouvi o mesmo sermão sobre coexistência pacífica do chefe Grane. Posso tolerá-lo se você conseguir me tolerar.
  • É justo.

Steffi soltou o ar, bufando, aliviada.

-Assim termina o primeiro round da droga da disputa. Agora será que podemos, por favor, voltar ao trabalho?

Smilow segurou a porta aberta para eles. Hammond deixou Steffi seguir na frente. Smilow entrou atrás dele e fechou a porta, espremendo gente demais num espaço pequeno demais. Não havia quase espaço para Smilow passar por Hammond para chegar à sua mesa.

  • Tem certeza de que não quer nada para beber, dra. Ladd?
  • Não, obrigada, detetive.

Para Hammond, ouvir a voz dela era tão perturbador quanto ser tocado por ela. Ele quase podia sentir a respiração dela na sua orelha. O coração dele batia forte nas costelas. Mal conseguia respirar. E, maldição, quase não podia controlar o desejo de tocá-la.

Smilow fez as apresentações supérfluas.

  • Dra. Ladd, este é o assistente da procuradoria municipal, Hammond Cross. sr. Cross, a dra. Alex Ladd.

Ela virou a cabeça. Hammond prendeu a respiração.

  • O assistente do procurador-geral, sr. Cross, pode dizer onde eu estava e o que estava fazendo sábado à noite, não pode, sr. Cross, assistente do procurador-geral?
  • Não matei ninguém no sábado, mas, se tivesse matado, teria sido em defesa própria. Sabe, detetive Smilow, o promotor Cross me atraiu para sua cabana na floresta e lá ele me estuprou várias vezes.
  • Procurador Cross, que prazer vê-lo novamente. Quanto tempo faz? Ah, eu me lembro. Foi nesse último sábado à noite que trepamos sem parar, não foi?

Alex Ladd não disse nada disso. Nem nenhuma das outras coisas pavorosas que Hammond tinha imaginado que ela pudesse dizer. Ela não começou a berrar acusações, nem o denunciou na frente dos seus colegas, nem piscou o olho sugestivamente, tampouco deu algum outro sinal de reconhecimento. Mas quando ela virou para ele e os olhos dos dois se encontraram, tudo o mais em volta dele desapareceu, e ele só conseguia se concentrar nela. Eles ficaram se olhando por apenas um segundo ou dois, mas se aquela troca tivesse durado uma eternidade não poderia ser mais poderosa ou significativa. Ele queria perguntar, O que você fez comigo? Em todos os sentidos. Tinha sido atingido por um raio no sábado à noite. Tinha pensado e até esperado que, ao vê-la de novo, sob aquela luz fluorescente muito forte e num ambiente bem menos romântico, o impacto seria menor. Mas aconteceu exatamente o oposto. O desejo de encostar nela era uma necessidade física. Tudo isso passou pela cabeça dele em menos tempo do que levou para piscar. Torcendo para não ser traído pela voz, ele disse:

  • Dra. Ladd.
  • Como vai?

Então ela virou para o outro lado. Aquele reconhecimento destruiu a esperança desesperada de Hammond de que ele de fato tivesse sido um perfeito desconhecido para ela no sábado, e que o encontro dos dois na feira tivesse sido puramente acidental. Se esse fosse o caso, ao serem apresentados agora ela arregalaria os olhos e diria algo como “Ora, olá! Não esperava vê-lo aqui”. Mas ela não demonstrou surpresa alguma. Quando virou a cabeça para cumprimentá-lo, ela sabia exatamente com quem estaria falando. Na verdade, parecia que ela havia se preparado para aquela apresentação, assim como ele. Ela quase exagerou no ar de indiferença, virou o rosto quase rápido demais, beirando a má educação.

Não havia mais dúvida. O encontro deles tinha sido planejado e, por motivos que ainda não estavam claros, o tempo que passaram juntos era comprometedor para ela e para ele também. Frank Perkins falou primeiro:

  • Hammond, isso é um desperdício completo do tempo da minha cliente.
  • Deve ser mesmo, Frank, mas gostaria de ser eu quem determina isso. Parece que o detetive Smilow acha que o que a dra. Ladd pode nos dizer merece a minha atenção.

O advogado consultou sua cliente:

  • Você se importa de passar por tudo isso de novo, Alex?
  • Não, se isso significar que irei para casa mais cedo, e não mais tarde.
  • Veremos.

Esse comentário partiu de Steffi, e Hammond sentiu vontade de dar um tapa nela. Deixando o interrogatório a cargo de Smilow, ele se encostou na porta fechada, de onde tinha uma visão desimpedida do perfil de Alex.

Smilow ligou o gravador e acrescentou o nome de Hammond ao de todos ali presentes.

  • A senhora conhecia Lute Pettijohn, dra. Ladd?

Ela suspirou como se já tivesse respondido àquela pergunta milhares de vezes.

  • Não, detetive, não conhecia.
  • O que a senhora estava fazendo no Centro, sábado à tarde? 192
  • Eu poderia dizer que moro no Centro, mas, respondendo à sua pergunta, tinha ido olhar as vitrines.
  • A senhora comprou alguma coisa?
  • Não.
  • Entrou em alguma loja?
  • Não.
  • A senhora não entrou em loja nenhuma, nem conversou com alguma vendedora que pudesse confirmar que a senhora estava lá fazendo compras?
  • Infelizmente, não. Não vi nada que me interessasse.
  • A senhora simplesmente estacionou o carro e andou por lá?
  • Isso mesmo.
  • Não estava meio quente para um passeio?
  • Para mim, não. Gosto do calor.

Ela olhou rapidamente para Hammond, mas ele não precisou desse olhar para lembrar.

  • Agora, que o sol se pôs não está mais tão quente.

Ela sorriu para ele, com as luzes do carrossel que rodava refletidas nos olhos.

  • Para dizer a verdade, eu gosto do calor. Hammond piscou e focalizou Smilow novamente.
  • A senhora foi ao Charles Towne Plaza?
  • Fui. Mais ou menos às cinco horas. Para beber alguma coisa. Um refrigerante. Tenho certeza de que foi lá que o sr. Daniels me viu. Foi a única hora e lugar em que ele podia ter me visto, porque nunca estive no quinto andar, diante da porta do quarto do sr. Pettijohn.
  • Ele nos deu uma descrição muito precisa da senhora fazendo exatamente isso às cinco horas.
  • Ele se enganou.
  • A senhora bebeu o refrigerante no bar.
  • Perto do saguão, sim. Chá gelado sem açúcar.

Steffi inclinou a cabeça para o lado de Hammond e sussurrou:

  • A garçonete confirma isso. Mas isso só quer dizer que pelo menos duas pessoas a viram no hotel.

Ele concordou, balançando a cabeça, mas não disse nada porque Smilow já estava fazendo outra pergunta, e ele queria ouvir a resposta de Alex.

  • O que a senhora fez quando terminou seu chá?
  • Voltei para o estacionamento onde tinha deixado meu carro.
  • Que horas eram?
  • Cinco e quinze. No máximo cinco e meia.

Os joelhos de Hammond quase cederam de alívio. O cálculo inicial de John Madison tinha estabelecido que a hora da morte tinha sido depois disso. Então o silêncio dele estava justificado. Quase. Se ela era totalmente inocente, vítima de um erro cometido por um homem que sofria de intoxicação alimentar, por que não reagiu quando ele entrou na sala? Por que fingiu que não se conheciam? Ele tinha seus motivos para manter o encontro deles em segredo. E era óbvio que ela também tinha.

  • Dei dez dólares para o atendente do estacionamento, a menor nota que eu tinha – disse ela.
  • É uma gorjeta muito generosa.
  • Achei que pedir o troco ia parecer mesquinharia. O estacionamento estava lotado e ele muito ocupado, mas foi muito gentil e educado.
  • O que a senhora fez depois de pegar seu carro?
  • Saí de Charleston.
  • E foi para onde?
  • Para a ilha Hilton Head.

Hammond engoliu em seco. Por falar em dizer a verdade, por que ela estava mentindo? Para protegê-lo? Ou para se proteger?

  • Hilton Head. -É.
  • Parou em algum lugar no trajeto?
  • Parei para abastecer.

Ela baixou os olhos, mas só um instante, e provavelmente só Hammond notou. O coração dele batia muito forte. Aquele beijo. O beijo. O beijo que ele lembraria pelo resto da vida. Nenhum tinha sido tão bom, nem parecido tão perfeito, nem tão errado. Aquele beijo podia acabar modificando a vida dele, arruinar sua carreira, condená-lo.

  • A senhora se lembra do nome do posto?
  • Não.
  • Texaco? Exon?

194

Ela deu de ombros e balançou a cabeça. ?-?* j -Localização? - Em algum ponto da estrada – respondeu ela com impaciência.

  • Não era numa cidade. Era auto-serviço. Pagamento no guichê. Há dúzias deles naquela estrada. O caixa estava assistindo a uma luta na televisão. É tudo que eu lembro.
  • A senhora pagou com cartão de crédito?
  • Dinheiro vivo.
  • Compreendo. Com uma daquelas notas grandes. Hammond entendeu a armadilha e torceu para ela ter percebido também. A maioria dos postos de auto-serviço e lojas de conveniência não aceitava notas maiores do que de vinte, especialmente à noite.
  • com uma de vinte, sr. Smilow – disse ela, sorrindo para ele. Pus vinte dólares de gasolina. Não recebi troco.
  • Muito, muito conveniente.

Steffi tinha falado bem baixinho, mas Alex ouviu. Ela virou e olhou primeiro para Steffi, depois para Hammond, e ele lembrou nitidamente de segurar o rosto dela com as duas mãos e de puxar a boca para perto da dele.

  • Não diga não. Não diga não.

A próxima pergunta de Smilow fez Alex prestar atenção nele outra vez. Hammond soltou o ar sem deixar transparecer que estava prendendo a respiração.

  • A que horas a senhora chegou em Hilton Head?
  • Isso é que era maravilhoso aquele dia. Eu não tinha planos. Não tinha horário. Não estava contando as horas nem peguei um caminho direto, por isso não me lembro que horas eram quando cheguei lá.
  • Aproximadamente. -Aproximadamente... nove horas.

Às nove horas, aproximadamente, eles estavam comendo milho cozido e os lábios dela estavam cheios de manteiga derretida. Tinham rido comentando a sujeira que estavam fazendo e resolveram esquecer os bons modos e lamber os dedos sem culpa.

  • O que fez em Hilton Head?
  • Atravessei toda a ilha e fui para Harbour Town. Andei um pouco por lá e me diverti ouvindo a música dos vários bares ao ar livre.

Ouvi o rapaz fazendo teatro para as crianças embaixo do grande carvalho. Basicamente, caminhei pela marina e fui até o píer.

  • Conversou com alguém?
  • Não.
  • Comeu em algum restaurante?
  • Não.
  • Não estava com fome?
  • Aparentemente, não.
  • Isso é ridículo! - protestou Frank Perkins. -A dra. Ladd admitiu ter estado no hotel no sábado, mas havia centenas de pessoas lá. Ela é uma mulher atraente. Ela chama a atenção dos homens, e esse Daniels não é nenhuma exceção, mesmo no meio de uma multidão.

Hammond continuava olhando para ela, por isso quando ela olhou para ele foi uma repetição daquele primeiro olhar através da pista de dança, no pavilhão. Ele sentiu uma ligação instantânea, uma súbita fisgada nas vísceras. Perkins ainda estava argumentando.

-Alex disse que não esteve nem perto da suíte de Pettijohn. Vocês não têm nada que a ponha naquele lugar. Isso não passa de um tiro no escuro, porque vocês não têm mais nada. Simpatizo com a sua habilidade de apresentar um suspeito viável, mas não vou permitir que a minha cliente sofra as consequências.

  • Só mais algumas perguntas, Frank – disse Smilow. - Faça-me essa gentileza.
  • Que sejam breves – disse o advogado, mal-humorado. Smilow olhou para a psicóloga muito sério.
  • Eu gostaria de saber onde a dra. Ladd passou a noite.
  • Em casa.

Ele pareceu surpreso com a resposta.

  • Na sua casa?
  • Eu me censurei por não ter feito uma reserva no Hilton Head. Quando cheguei, pensei em passar a noite lá. Eu gostaria, mas estive em diversos lugares e estavam todos lotados. Por isso voltei para Charleston e passei a noite na minha própria cama.
  • Sozinha?
  • Não tenho medo de dirigir à noite.
  • A senhora dormiu sozinha, dra. Ladd?

Ela olhou friamente para ele.

  • Diga para ele ir à merda, Alex – disse Frank Perkins. - Se você não disser, eu mesmo digo.
  • O senhor ouviu o conselho do meu advogado, detetive. A boca de Smilow subiu nos cantos formando o que deveria passar

por um sorriso.

  • Enquanto estava em Harbour Town, a senhora não conversou com ninguém?
  • Entrei em uma das galerias de arte, mas não falei com ninguém. Também comprei um sorvete de casquinha na base do farol, mas estava muito movimentado. Não consegui ver bem a moça que me serviu. Ela estava atendendo a tanta gente aquela noite que duvido de que também se lembre de mim.
  • Então não há ninguém para confirmar que a senhora esteve lá?
  • Acho que não.
  • De lá a senhora foi para casa. Sem paradas? -É.
  • A que hora chegou em casa?
  • De madrugada. Não notei. Eu estava muito cansada e com sono.
  • A minha gentileza termina por aqui – Frank Perkins ajudou educadamente Alex a levantar-se da cadeira, mas de uma forma que não permitia protestos, nem dela, nem de Smilow. - A dra. Ladd merece um pedido de desculpas por isso. E se vocês suspirarem o nome dela para a mídia, associado a esse caso, não terão de cuidar apenas de um caso de assassinato, mas também de um processo desconcertante.

Ele foi conduzindo Alex para a porta mas, antes de os outros poderem mudar de posição para abrir caminho para os dois saírem, outro detetive abriu a porta. Tinha uma pasta na mão estendida.

  • Você pediu isso assim que ficasse pronto.
  • Obrigado – disse Smilow, estendendo o braço para pegar a pasta. - Como foi?
  • Madison é meticuloso. Ele pediu desculpas pelo tempo que levou.
  • Desde que tenha incluído tudo.
  • Está tudo aqui.

O detetive foi embora. Smilow explicou para os outros.

  • Aquele detetive assistiu à autópsia. Este é o relatório de Madison.

Steffi ficou bem ao lado de Smilow quando ele tirou os documentos de dentro do envelope. Ela os leu junto com ele. Sem tirar os olhos do relatório, Smilow perguntou:

  • Dra. Ladd, a senhora possui uma arma?
  • Muitas coisas poderiam ser usadas como arma, não é?
  • Estou perguntando porque... - disse Smilow, levantando a cabeça para olhar para ela - ... porque foi exatamente como nós pensamos. Lute Pettijohn não morreu por causa da pancada na cabeça. O que o matou foi um tiro.
  • Pettijohn foi baleado!
  • Acho que foi verdadeira.

Steffi espremeu limão na bebida que tinham acabado de trazer para a mesa deles.

  • Ora vamos, Hammond. Cai na real.
  • Foi a primeira e única vez que ela demonstrou qualquer emoção ou espontaneidade – persistiu ele. - Acho que a surpresa dela foi autêntica. Até aquele momento ela nem sabia como Pettijohn tinha morrido.
  • Fiquei surpresa quando li que ele teve um derrame.

Aquele tinha sido um fato surpreendente que resultou da autópsia. Lute Pettijohn teve um derrame. Não o matou, mas John Madison deduziu que o derrame tinha sido suficientemente extenso para provocar a queda dele, que resultou no ferimento na cabeça. Ele também determinou que se Pettijohn tivesse sobrevivido poderia ficar paralítico e sofrer de outras deficiências. Só depois que Frank Perkins acompanhou Alex Ladd para fora da sala de Smilow, eles leram o relatório com mais atenção e acrescentaram essa nova informação ao mistério cada vez mais complexo.

  • Você acha que o derrame foi provocado por algum acontecimento? - imaginou Steffi. - Ou será que foi um problema de saúde que ele não sabia que tinha?
  • Vamos ter de descobrir se ele tomava algum remédio contra alguma doença-disse Smilow, pondo um guardanapo embaixo do seucopo de club soda. - Não que faça alguma diferença. O derrame não foi fatal, mas os tiros, sim. Foi assim que ele morreu.
  • Alex Ladd não sabia disso – afirmou Hammond. - Não até nós dizermos para ela.

Steffi bebericava seu gim-tônica pensativa. Ela balançou vigorosamente a cabeça e deu um sorriso zombeteiro para Hammond.

  • Nada disso. Ela fingiu estar surpresa. As mulheres são boas nessas encenações porque estamos sempre tendo de fingir orgasmos.

A intenção daquela observação era ofendê-lo. Mas não ofendeu. Só que ele ficou irritado.

  • Mulheres com inveja do pênis.
  • Ah, essa foi uma resposta muito boa, Hammond – disse ela, levantando o copo numa imitação de brinde. - com um pouco de prática você pode acabar se transformando num verdadeiro idiota.

Smilow, que ouvia aquela discussão sem prestar muita atenção, disse:

  • Por mais que me doa, devo concordar com Hammond.
  • Você acha que tenho inveja do pênis? Ele nem tentou sorrir.
  • Concordo com ele que o choque de Ladd foi verdadeiro.
  • Você tem a mesma opinião de Hammond? Isso é quase tão chocante quanto vocês estarem sentados à mesma mesa – disse ela.

O bar do saguão do Charles Towne Plaza estava apinhado com a multidão da happy hour. O hotel e a delegacia de polícia ficavam em extremos opostos do Centro da cidade, mas acharam que era um lugar apropriado para discutir o interrogatório de Alex. Turistas, registrados ou não como hóspedes, faziam compras nas lojas que se enfileiravam no saguão do hotel. Fotografavam a escadaria imponente e o candelabro que ela rodeava. Tiravam fotografias uns dos outros. Duas mulheres descalças, de roupões de banho do hotel, com toalhas enroladas na cabeça, riam enquanto evitavam sair em alguma foto. Acompanhando o olhar vazio de Hammond, Steffi disse:

  • É ridículo andar por aí desse jeito por causa de um tratamento de beleza. Dá para imaginar como Pettijohn ficaria marchando por aqui assim?
  • Hein?
  • Onde é que você está, Hammond, perdido no espaço? Perguntou ela, irritada.
  • Desculpe. Estava apenas pensando.

Ele não tinha notado as mulheres de roupão. Mal tinha notado qualquer coisa desde que saíra da sala de Smilow. Estava pensando nela. Em Alex Ladd e na reação dela quando soube como Pettijohn tinha morrido. Ela parecia genuinamente espantada, e Hammond ficou esperançoso de ela ter razão quanto ao sr. Daniels quando concluiu que ele a tinha visto no hotel, mas que tinha se enganado quanto ao lugar e a hora. Esperançoso de ter Smilow como aliado, ele se inclinou sobre a mesa, apoiado nos antebraços.

  • Você disse que concorda comigo. Como? O que você acha? -Acho que ela é suficientemente esperta para fingir estar surpresa e fazer parecer real. Mas não sei por quê, tenho dúvidas. Ainda. Mas não é a reação de surpresa dela que me preocupa tanto, e sim a história que ela contou.
  • Estamos ouvindo – disse Steffi.
  • Se ela tivesse matado Pettijohn, não teria saído imediatamente do hotel para tentar estabelecer um álibi?

Fazendo força para parecer indiferente, Hammond pegou seu copo de uísque com água.

  • Ideia interessante. Dá para desenvolver?
  • Eles podem determinar a hora da morte com uma precisão incrível. Até os minutos, para dizer a verdade.
  • Entre cinco e quarenta e cinco e seis horas – disse Hammond.

Quando viu isso no relatório da autópsia, ele ficou tremendamente aliviado. Alex não podia ser a assassina porque não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo.

  • A dra. Ladd disse que saiu de lá no máximo às cinco e meia.
  • Perto demais para livrar a cara dela – disse Smilow. - Um bom promotor como você poderia manipular essa margem de tempo, transformando numa margem de erro. Mas já que não sabemos exatamente a que hora ela tirou o carro do estacionamento, Frank Perkins poderia cortar essa linha de tempo como um salame e usá-la para estabelecer uma dúvida razoável. Mas só funcionaria se...
  • Entendo onde você quer chegar... - interrompeu Steffi.
  • Se a dra. Ladd tivesse um excelente...
  • Álibi.

Enquanto Steffi e Smilow ficavam completando as frases um do outro, Hammond pediu outro drinque. O uísque queimou a garganta dele.

  • Faz sentido – disse ele com voz rouca. Smilow franziu a testa.
  • O problema com a história dela é que ela não tinha um álibi. Ela disse que foi para Hilton Head e que não falou com ninguém que pudesse confirmar isso.
  • Estou confusa – disse Steffi. - Você está achando que por não ter um álibi ela parece mais inocente do que se tivesse um?

O detetive olhou para ela.

  • Não exatamente. Mas fico pensando se ela está esperando para ver até onde isso vai, para só depois jogar um álibi na nossa cara.
  • Como se guardasse um de reserva para o caso de precisar?
  • Alguma coisa assim.

Hammond, que estava prestando atenção enquanto os dois, sem saber, cogitavam sobre o seu maior medo, resolveu participar da especulação:

  • Por que você acha que ela guardou esse álibi de reserva?
  • Você também acha? - perguntou Steffi.
  • Não – respondeu ele, irritado com ela porque queria saber o que Smilow estava pensando. - Você ia dizer...?
  • Eu ia dizer o que disse desde o começo – explicou Smilow. - Ela não está nervosa. Desde o momento em que ela abriu a porta e me viu junto com aqueles policiais na casa dela, até o momento em que Frank a acompanhou para fora da minha sala meia hora atrás, ela esteve calma demais para ser completamente inocente.

-As pessoas inocentes mal podem esperar para convencer alguém de que são inocentes – continuou ele. - Elas falam muito, nervosas. Elaboram e expandem suas histórias cada vez que as contam. Dizem mais do que você quer saber. Os que mentem bem se restringem ao básico, e em geral são os mais calmos.

  • É uma teoria consistente – disse Hammond. - Mas não a toda prova. Sendo psicóloga, a dra. Ladd não teria um controle maior das próprias emoções do que as pessoas comuns? Ela deve ouvir coisas chocantes quando está tratando seus pacientes. Ela não devia saber resguardar suas reações?
  • Pode ser – disse Smilow. Hammond não gostou do sorriso do detetive, e segundos depois ficou sabendo por que ele parecia tão complacente. - Mas a dra. Ladd está mentindo. Sei disso porque é um fato.
  • Que fato? - perguntou Steffi, inclinando o corpo por cima da mesa e quase derrubando seu drinque.

Smilow se abaixou e tirou um jornal da sua pasta.

  • Ela deve ter ignorado esse item nas notícias desta manhã. Smilow tinha usado um marcador vermelho para circular a

história. Não era comprida, mas para Hammond eram quatro parágrafos devastadores.

  • Harbour Town evacuada – leu Steffi em voz alta. Smilow resumiu a notícia: -No último sábado à noite houve um incêndio a bordo de um dos iates ancorados no porto. O vento estava forte. Fagulhas voaram para as árvores e toldos da marina. Como precaução de segurança, o corpo de bombeiros evacuou toda a área. Até as pessoas embarcadas em outros barcos e as que estavam nos apartamentos tiveram de sair.

“Apagaram o fogo antes de isso provocar muitos danos. Mas aquela área tem as propriedades mais caras do país. Os bombeiros não quiseram arriscar nada. Interditaram a estrada do Farol para quem ia para lá de carro e verificaram muito bem a área toda. Harbour Town mesmo ficou isolada durante horas.”

  • De que hora até que hora?
  • Das nove horas em diante. Os restaurantes e bares acharam que não valia a pena reabrir quando liberaram tudo depois da meia-noite. Permaneceram fechados até domingo de manhã.
  • Ela não foi para lá – sussurrou Steffi.
  • Se tivesse ido, teria mencionado isso.
  • bom trabalho – Steffi levantou o copo para Smilow.
  • Acho que é meio cedo para fazer brindes – disse Hammond, zangado. - Talvez ela tenha alguma explicação lógica.
  • E talvez o papa seja batista.

Ele ignorou a resposta atrevida de Steffi.

  • Smilow, por que não confrontou a dra. Ladd com isso durante o interrogatório?
  • Eu queria saber até onde ela iria.
  • Você estava dando corda para ela se enforcar.
  • O meu trabalho fica mais fácil quando um suspeito faz isso por mim.

Hammond vasculhou a mente em busca de uma nova abordagem.

  • Tudo bem, então ela não esteve em Harbour Town. O que isso prova? Nada, só que ela deseja proteger sua privacidade. Ela não quer que saibam onde esteve.
  • Ou com quem.

Ele olhou friamente para Steffi, depois continuou conversando com Smilow.

  • Você ainda não tem nada contra ela, nada que a ponha dentro da suíte de Pettijohn, nem mesmo perto. Quando você perguntou se ela possuía uma arma, ela disse que não.
  • Mas é claro que ela diria que não – argumentou Steffi. - E nós temos o testemunho de Daniels.

Hammond não tinha esgotado seus argumentos:

  • Segundo o relatório de Madison, as balas tiradas do corpo de Pettijohn eram calibre 38. As balas mais comuns da pistola mais comum. Há centenas de 38 só nesta cidade. Até no seu depósito de provas, Smilow.
  • O que quer dizer com isso? - Steffi quis saber.
  • Quero dizer que, se não encontrarmos a arma com o assassino, será praticamente impossível descobri-la – disse Smilow, acompanhando o raciocínio de Hammond.
  • Quanto a Daniels – continuou Hammond no mesmo embalo -, Frank Perkins faria picadinho dele no banco das testemunhas.
  • Você provavelmente também tem razão quanto a isso – disse Smilow.
  • O que sobra, então? - perguntou Hammond. - Nada.
  • Pedi para a DCLCS fazer alguns testes em provas coletadas na cena do crime.
  • Foram levadas pessoalmente para Columbia?
  • Exatamente.

A Divisão de Cumprimento da Lei da Carolina do Sul ficava na capital do estado. Provas coletadas, ensacadas e etiquetadas pela UCC em geral eram entregues em mãos para a DCLCS por algum investigador da polícia para evitar discrepâncias na série de provas.

  • Vamos ver o que vai aparecer – disse Smilow com ar inabalável, que só reafirmava para Hammond o próprio temperamento expansivo. - Não conseguimos grande coisa naqueles cómodos da suíte, mas pegamos algumas fibras, fios de cabelo, partículas. Tomara que alguma coisa...
  • Tomara? - zombou Hammond. - Você está se baseando em esperança? Terá de fazer melhor do que isso para pegar um assassino, Smilow.
  • Não se preocupe comigo – disse ele, e o humor dele começou a ficar tão refratário quanto o de Hammond. - Você trate de fazer o seu trabalho, que eu faço o meu.
  • Só não quero encarar o grande júri sem nada, com o meu pinto na mão.
  • Duvido que você consiga encontrar o seu pinto com a mão. Mas vou descobrir o elo entre Alex Ladd e Pettijohn.
  • E se não descobrir – disse Hammond, elevando a voz -, sempre pode inventar um.

Smilow levantou-se da cadeira tão depressa que ela arranhou o chão. Hammond também ficou de pé num segundo. Steffi levantou-se também.

  • Rapazes – disse ela baixinho -, todo mundo está olhando. Hammond percebeu que de fato eles estavam atraindo a atenção

de todos no bar. As conversas em volta deles silenciaram.

  • Preciso ir – ele colocou uma nota de cinco dólares na mesa para pagar sua bebida. - Até amanhã.

Ele não tirou os olhos de Smilow até dar meia-volta, e começara abrir caminho entre as pessoas para sair do bar. Ouviu Steffi dizer para Smilow pedir outro drinque para ela, que voltaria logo, e então ela foi atrás dele. Ele não queria falar com ela, mas quando chegaram lá fora ela segurou seu braço e o fez virar-se.

  • Você quer companhia?
  • Não – disse ele, com mais aspereza do que pretendia. Depois ele passou a mão no cabelo, respirou fundo e soltou o ar lentamente. -

Sinto muito, Steffi. É uma daquelas segundas-feiras. Meu pai veio me ver esta manhã. Esse caso vai ser complicado. Smilow é um filho-damãe.

  • Tem certeza de que é isso que o incomoda?

Ele baixou a mão e olhou bem para ela, com medo de ter se traído. Mas o olhar dela não era desconfiado, nem o acusava de nada. Os olhos dela estavam límpidos, suaves e convidativos. Ele relaxou.

  • É, tenho certeza.
  • Só pensei que talvez... - ela parou de falar e levantou um pouco os ombros. - Talvez você estivesse achando que devíamos ter conversado antes de você resolver terminar nosso relacionamento – ela pôs a mão no peito dele. - Se quiser descarregar um pouco, lembro-me de uma coisa que costumava funcionar muito bem.
  • Também me lembro – ele deu um sorriso gentil e torceu para que satisfizesse o ego dela. Mas tirou a mão dela do peito, apertando-a de leve antes de soltar. - É melhor você voltar lá para dentro. Smilow está à sua espera com o seu drinque.
  • Ele pode ir para o inferno!
  • Quanto a isso, provavelmente não vai se decepcionar. Vejo você amanhã.

Ele deu meia-volta e foi andando, mas ela o chamou:

  • Hammond? - e quando ele ficou de frente para ela novamente, ela perguntou – O que você achou dela?
  • Quem, a dra. Ladd? - ele fingiu um ar pensativo. -Articulada. Tranquila sob pressão. Mas, diferente de Smilow, ainda não estou pronto para...
  • Quis dizer dela. O que você achou dela?
  • O que há para achar? - disse ele, com uma risada forçada. - Ela é maravilhosa e, obviamente, muito inteligente.

Então, com um aceno jovial, ele foi embora. Como não tinha a capacidade de Alex Ladd para mentir, achou que seria melhor ater-se à verdade. A Cidadela, respeitada como uma das melhores instituições de ensino superior da América, ficava apenas a alguns quarteirões do Shady Rest Lounge. Fora essa proximidade, o bar e a academia militar não tinham nada em comum, em todos os aspectos. Diferentemente da famosa academia com seu portão bem guardado e terreno muito bem cuidado, o Shady Rest não se orgulhava de uma bela fachada. Não tinha janelas, apenas blocos de concreto onde antigamente havia janelas. A entrada era uma porta de metal na qual um vândalo tinha escavado uma obscenidade. Depois de cometida a infração, tinham tentado cobrir a palavra com desleixo, uma fina camada de tinta vagabunda que, infelizmente, não combinava com a cor original nem apagava o rabisco. O resultado era que o palavrão agora chamava mais atenção do que antes. A única coisa que indicava a natureza do estabelecimento era um letreiro de néon em cima da porta com o nome do bar. O letreiro zumbia ruidosamente e só funcionava esporadicamente. Apesar do vizinho importante e das próprias deficiências, o Shady Rest Lounge estava perfeitamente à vontade no seu ambiente, um bairro com ruas em que a pobreza e o crime imperavam, onde as janelas tinham grades e sinais visíveis de prosperidade representavam um alvo. Pensando em se proteger, Hammond tinha trocado seu terno por uma calça jeans e camiseta, um boné de beisebol e ténis. Tudo que tinha visto dias melhores... décadas melhores. Mas apenas trocar de roupa não bastava. Naquela área da cidade era preciso adotar um certo tipo de comportamento para sobreviver. Quando abriu a porta desfigurada para entrar no bar, ele não se afastou educadamente para dar passagem para os dois homens que saíam. Em vez disso, abriu caminho entre eles com os ombros, procurando ser bastante bruto, mas esperando não ser agressivo demais para deflagrar um confronto em que certamente perderia. Escapou com apenas um resmungo dirigido a ele e à sua mãe. Dentro do bar, levou alguns segundos para seus olhos se habituarem à escuridão. Negócios escusos eram transados no Shady Rest. Ele nunca estivera naquele bar, mas soube na mesma hora que tipo de lugar era aquele. Toda cidade tinha lugares assim, e Charleston não era exceção. Ele também sabia e temia que não duraria muito se qualquer outro cliente descobrisse que ele representava a procuradoria de justiça do município. Seus olhos se acostumaram, ele examinou bem o lugar e encontrou quem procurava. Ela estava sentada na ponta do bar, olhando fixo para um copo alto. Fingindo não se importar com os olhares hostis e desconfiados que lançavam para ele, Hammond foi até ela. O cabelo de Loretta Boothe estava mais grisalho do que da última vez que ele a vira, e parecia que fazia algum tempo que não era lavado. Tinha tentado se maquiar, mas não fez um bom trabalho, ou, então, fazia alguns dias que usava a mesma maquiagem. Havia rímel ressecado no rosto dela e o risco de lápis nas sobrancelhas estava borrado. O batom tinha escorrido pelas rugas finas que se irradiavam da boca, mas não havia mais cor nenhuma nos lábios. Uma maçã do rosto estava rosada com blush, a outra emaciada e descorada. Era um rosto patético.

  • Oi, Loretta.

Ela se virou e focalizou nele olhos remelentos. Apesar do boné de beisebol, ela o reconheceu na mesma hora, e era óbvio o prazer que sentia de vê-lo. As pálpebras, caídas e flácidas demais para a sua idade, se enrugaram quando ela deu um sorriso largo, revelando um dente da frente que precisava muito dos cuidados de um dentista.

  • Deus do céu, Hammond – ela olhou em volta dele, como se esperasse uma comitiva. - Você é a última pessoa no mundo inteiro que eu imaginaria ver numa espelunca como esta. Está visitando a favela esta noite?
  • Eu vim ver você.
  • É a mesma coisa – disse ela, e bufou uma risada sem alegria. Achei que você não estava mais falando comigo.
  • E não estava mesmo.
  • Você tinha todo o direito de ficar furioso.
  • E ainda estou.
  • Então, o que provocou esse espírito de perdoar?
  • Uma emergência – ele olhou para o copo dela, quase vazio. Posso pagar um drinque para você?
  • Já me viu algum dia recusar um?

Desejando a privacidade de um cubículo, Hammond ajudou Loretta galantemente a descer do banco do bar. Se ele não tivesse dado a mão para ela, seus joelhos podiam ter cedido quando ela ficou em pé. O drinque que ela havia deixado no bar não era o primeiro, nem o segundo. Enquanto Loretta arrastava os pés ao lado dele, Hammond reconheceu que havia a grande probabilidade de lamentar profundamente estar fazendo aquilo. Mas, conforme havia dito para ela, era uma emergência. Ele a escondeu num cubículo e depois voltou para o bar para pedir dois Jack Daniel’s black, um puro, o outro com gelo e água. Deu o primeiro para Loretta quando se instalou no banco do cubículo.

  • Saúde – ela levantou o copo para ele antes de tomar um gole caprichado. Fortalecida pelo uísque, ela concentrou sua atenção em Hammond. - Você está ótimo.
  • Obrigado.
  • Falo sério. Você sempre teve uma aparência ótima, é claro, mas agora é que isso está amadurecendo em você. Entranhado nos seus ossos. Seja lá o que vocês, homens, fazem para ficar mais atraentes com a idade, enquanto as mulheres ficam para semente muito rápido.

Ele sorriu, desejando poder trocar cumprimentos com ela. Loretta mal havia completado cinquenta anos, mas parecia muito mais velha.

  • Você é mais bonito que o seu pai – observou ela. - E eu sempre achei Preston Cross um homem muito bonito.
  • Obrigado de novo.
  • Parte do seu problema com ele...
  • Eu não tenho problema com ele.

Ela franziu a testa, desfazendo a negativa dele.

  • Parte do seu problema com ele é que ele tem inveja de você. Hammond fez pouco do que ela dizia.
  • É verdade – declarou Loretta com o ar superior dos bêbados e dos sábios. - O seu pai tem medo de você ultrapassá-lo. De realizar mais que ele. De se tornar mais poderoso do que ele. Merecer mais respeito. Ele não suportaria isso.

Hammond olhou para a sua bebida, que não queria. Tinha ficado meio nauseado com o que tomara algumas horas antes com Smilow e Steffi. Talvez tivesse sido o assunto que havia revirado seu estômago. De qualquer modo, não estava com vontade de bebericar o uísque do Tennessee.

  • Não vim aqui para falar do meu pai, Loretta.
  • Certo, certo. Uma emergência – ela deu mais um gole. - Como me encontrou?
  • Telefonei para o último número que eu tinha.
  • É a minha filha que mora lá agora.
  • O apartamento é seu.
  • Mas a Bev está pagando o aluguel, e há meses. Ela me disse que se eu não andar na linha ela vai me expulsar de lá – ela deu de ombros.
  • Aqui estou.

De repente ele compreendeu por que ela parecia tão desarrumada e suja, e essa compreensão só fez piorar as náuseas.

  • Onde você está morando agora, Loretta?
  • Não se preocupe comigo, figurão. Posso me cuidar sozinha. Hammond concedeu um resquício de orgulho para Loretta não

perguntando logo se ela estava vivendo na rua ou num abrigo para os sem-tetos.

  • Quando falei com a Bev, ela me disse que esse bar tinha virado um dos seus programas preferidos.
  • Bev é enfermeira de CTI – ela se vangloriou.
  • Isso é ótimo. Ela está bem.
  • Apesar de mim.

Não existia argumento contra isso, por isso Hammond não disse nada. Constrangido e sem jeito por ela, ele estudou a placa que dizia NãO FUNCIONA presa ao seletor de discos da mesa deles. O aviso estava lá havia muito tempo. O papel e a fita adesiva já estavam amarelados. A juke-box no canto do salão estava apagada e silenciosa, como se tivesse sucumbido ao desalento que dominava o Shady Rest.

  • Tenho orgulho dela – disse Loretta, ainda falando da filha.
  • E deve ter mesmo.
  • Mas ela não suporta a minha presença.
  • Duvido.
  • Não, ela me detesta, e não posso dizer que a culpo. Eu a decepcionei, Hammond – os olhos dela se encheram de lágrimas de remorso e de desespero. - Eu decepciono todo mundo. Especialmente você.
  • Nós finalmente pegamos o cara, Loretta. Três meses depois...
  • Depois que eu estraguei tudo.

Mais uma vez a verdade era indiscutível. Loretta Boothe tinha trabalhado no Departamento de Polícia de Charleston até o alcoolismo tornar-se tão grave que ela teve de ser demitida. A dependência cada vez maior era atribuída à morte do marido. Ele tinha morrido instantaneamente e todo ensanguentado quando sua Harley se espatifou contra o pilar de uma ponte. Consideraram a morte dele acidental, mas numa conversa confidencial, regada a álcool, Loretta tinha confessado seus pecados. Será que o marido tinha preferido se suicidar em vez de viver com ela? Essa pergunta a perseguia. Naquela mesma época ela foi ficando cada vez mais desanimada com o Departamento de Polícia de Charleston. Ou talvez o desencanto tenha sido provocado pela deterioração da sua vida pessoal. De qualquer modo, ela criava problemas para ela mesma no trabalho, e acabou ficando sem emprego. Tirou uma licença de investigador particular e por um tempo trabalhou regularmente. Hammond sempre gostou dela. Quando ele entrou para a famosa firma de advocacia, logo que saiu da faculdade de direito, ela foi a primeira pessoa que passou a chamá-lo de “procurador”. Era uma coisa pequena, mas ele nunca se esqueceu da consideração que ela teve, estimulando sua autoconfiança. Quando ele passou para a procuradoria municipal, sempre pedia para ela fazer as investigações para ele, apesar de ter investigadores na equipe. Mesmo quando a competência dela perdeu a constância, ele continuou a usá-la por um sentido de lealdade e de piedade. Então ela meteu os pés pelas mãos de uma vez por todas e as consequências foram desastrosas. O acusado no caso era um jovem incorrigível e cheio de raiva que quase matou a mãe de pancada com uma chave de roda. Ele era uma ameaça para a sociedade e continuaria sendo até ser posto na prisão por um longo tempo. Para conseguir a condenação, Hammond precisava desesperadamente do depoimento do primo em segundo grau do acusado, que, além de relutar em testemunhar contra um membro da família, também tinha medo do cara e temia uma retaliação. Apesar da intimação para depor, ele desapareceu da cidade. Diziam os boatos que tinha ido se esconder com outros parentes em Memphis. Como os investigadores da equipe da procuradoria de justiça já estavam ocupados com outros casos, Hammond chamou Loretta. Adiantou-lhe dinheiro para cobrir as despesas e a despachou para Memphis para encontrar o tal primo. Não foi só a testemunha que sumiu do mapa. Loretta também. Hammond soube mais tarde que ela gastara o dinheiro das despesas com bebida. O juiz que presidia o julgamento, e que não simpatizava com o problema de Hammond, negou o pedido dele de um adiamento e ordenou que continuasse com o que tinha, que era o testemunho da mãe espancada. Temendo também o revide do filho violento, ela mudou sua história no banco das testemunhas e afirmou que tinha se machucado ao cair da varanda dos fundos da casa. O júri votou pela absolvição. Três meses depois, o mesmo cara atacou o vizinho de forma parecida. A vítima não morreu, mas sofreu danos cerebrais severos e irreparáveis. Dessa vez o criminoso foi condenado a cumprir anos atrás das grades. Mas foi Steffi Mundell a promotora do caso. Em todos aqueles meses, Hammond não tinha perdoado Loretta por trair a confiança que depositava nela, especialmente porque ninguém mais queria contratá-la. Ela o abandonou quando mais precisava dela e por causa disso ele acabou fazendo papel de bobo no tribunal. O pior de tudo foi que a negligência dela tinha feito um homem sofrer um espancamento brutal que o deixou mental e fisicamente deficiente para o resto da vida. Quando estava sóbria, Loretta Boothe era a melhor no que fazia. Tinha os instintos de um cão de caça e uma extraordinária habilidade para obter informações. Parecia que possuía um sexto sentido que dizia aonde devia ir e a quem procurar. Suas fraquezas humanas eram tão óbvias que as pessoas se sentiam desarmadas, ela inspirava confiança. Todos baixavam a guarda e conversavam candidamente com ela. Também era suficientemente inteligente para distinguir as informações importantes das irrelevantes. Apesar desse talento todo, vê-la naquele estado lamentável aquela noite fazia com que Hammond questionasse a conveniência de contratá-la novamente. Só uma pessoa desesperada procuraria ajuda de uma bêbada contumaz que já havia provado sua irresponsabilidade. Mas, então, ele pensou em Alex Ladd e compreendeu que estava exatamente desesperado assim.

  • Tenho um trabalho para você, Loretta.
  • O que é isso, brincadeira de primeiro de abril?
  • Não, mas devo ser um idiota mesmo de confiar qualquer coisa a você.

As feições dela se contorceram de emoção.

  • Seria melhor você ir embora agora, Hammond. Eu agarraria com unhas e dentes uma oportunidade de compensar o que fiz na última vez, mas você seria louco de contar comigo de novo.

Ele deu um sorriso triste.

  • bom, já fui chamado de louco antes.

Os olhos de Loretta se encheram de lágrimas, mas ela pigarreou e endireitou os ombros.

  • O que... o que você tem em mente?
  • Você já soube do Lute Pettijohn. Ela ficou boquiaberta.
  • Você quer que eu trabalhe numa coisa tão importante assim?
  • Indiretamente – ele se mexeu meio constrangido no banco duro do cubículo. - O que quero que você faça não é nada oficial para o escritório da procuradoria. É estritamente confidencial. Entre mim e você. Ninguém mais pode saber. Combinado?
  • Sou uma desgraçada, Hammond. Já demonstrei isso. Mas sempre gostei de você. Admiro você. Você é um dos mocinhos, e me agrada pensar que é meu amigo. Você foi bom para mim quando as pessoas viravam a cara para não falar comigo. Posso decepcioná-lo, e provavelmente farei isso, mas terão de cortar fora a minha língua antes que eu traia a sua confiança.

-Acredito nisso – ele olhou bem fundo nos olhos dela. - Você está muito bêbada? 212

  • Estou ouvindo um zumbido, mas lembrarei disso amanhã.
  • Muito bem – ele fez uma pausa e respirou fundo. - Quero que você descubra tudo que puder sobre... Será que devo explicar isso por escrito?
  • Você quer que isso um dia volte para você? Ele pensou um pouco.
  • Não.
  • Então não escreva. Se não for tangível, não há provas.
  • Provas? Uau, Loretta! - disse ele, levantando as duas mãos. - O que quero que você faça é confidencial. Vai além da ética. Mas não é ilegal. Só quero aplainar o terreno para um suspeito.

Loretta inclinou a cabeça e olhou para ele curiosa.

  • Devo estar mais bêbada do que pensava. Você acabou de dizer...
  • Você ouviu muito bem.
  • Você quer dar uma colher de chá para um suspeito do caso Pettijohn?
  • De certa forma.
  • Como?
  • Você não está suficientemente bêbada para eu poder explicar isso.

A risada dela foi como um estertor saído do peito.

  • Está bem – disse ela, ainda desconfiada. - Quem é o suspeito?
  • Alex Ladd.
  • Ele está em Charleston?
  • É ela.

Ela piscou várias vezes e depois olhou para ele, muito séria.

  • É ela.

Hammond fingiu não notar a pergunta óbvia das sobrancelhas levantadas de Loretta.

  • Ela é psicóloga aqui em Charleston. Descubra tudo que puder sobre ela. História, família, educação, qualquer coisa. Tudo. Mas especificamente alguma possível ligação que ela pode ter tido com Lute Pettijohn.
  • Assim como namorada?
  • E – resmungou ele -, essas coisas.
  • Tive a impressão de que era Stefifi Mundell a promotora do caso Pettijohn.

-Porquê?

Ela então contou que viu Steffi e Rory Smilow na emergência do hospital na noite em que Pettijohn foi assassinado.

  • Eu tinha ido ver Bev. Na verdade eu estava lá para pedir dinheiro para ela. De qualquer maneira, a metida da Steffi e o Smilow, que nunca sorri, chegaram lá afobados, como uma tropa invasora. Como se isso adiantasse alguma coisa. O doutorzinho insignificante peitou os dois. Não conseguiram nada com ele. Achei ótimo – ela parou e deu uma risadinha, depois ficou séria de novo e olhou para Hammond. Você ainda está dormindo com ela?

Ele não conseguiu disfarçar a surpresa, mas não perguntou como é que ela sabia do seu caso secreto com Steffi. O fato de saber provava que ela era realmente boa no que fazia.

  • Não.

Loretta examinou Hammond algum tempo, como se tentasse se convencer de que ele dizia a verdade.

  • Ótimo. Porque eu detestaria falar mal da mulher com quem você está transando.
  • Você não gosta da Steffi?
  • Do mesmo jeito que não gosto de cobras venenosas.
  • Ela não é tão ruim assim.
  • Não, é pior. É uma víbora. Ficou de olho em você desde que pôs os pés em Charleston. E não era só para tirar suas calças. Ela quer vestilas também.
  • Se está querendo dizer que estamos disputando o mesmo emprego de novo, sei muito bem disso.
  • Mas você já pensou bem? Steffi podia estar usando seu pinto como alavanca para içá-la para o cargo de procuradora.
  • Você está sugerindo que ela foi para a cama comigo só para impulsionar a carreira dela? Nossa, muito obrigado, Loretta! Você está fazendo um bem enorme para o meu ego.

Ela revirou os olhos.

  • Tinha medo de que você pudesse ter ignorado essa possibilidade. Os homens raramente pensam que o pinto deles pode ser alguma coisa além de uma varinha mágica com a qual enfeitiçam mulheres agradecidas. É por isso que um pinto ereto é tão fácil de explorar.

Alex Ladd surgiu na mesma hora na mente de Hammond. Se Loretta soubesse como ele tinha sido ingénuo naquele último sábado à noite, seria capaz de dar-lhe uma surra.

  • Steffi Mundell transaria com um rottweiller se achasse que ele a levaria para onde quer ir – ela estava dizendo.
  • Dê uma colher de chá para ela. É verdade que é muito ambiciosa. Mas teve de ralar para conquistar tudo o que realizou. Tinha um pai dominador, que calculava o valor de todo mundo com um medidor de testosterona. Esperava que Steffi cozinhasse, limpasse e servisse aos homens, primeiro seus irmãos e seu pai, depois seu marido. Devotada família grega ortodoxa. Além de não ser devotada, ela não tinha... não tem fé em nada. Não teve ajuda nem estímulo enquanto fazia a faculdade de direito. E quando se formou como primeira da turma, o pai dela disse: “Agora talvez você pare com essa besteira e se case.”
  • Por favor, meu coração está partido! - disse Loretta sarcasticamente.
  • Olha, sei que ela pode ser muito irritante. Mas tem qualidades que compensam os defeitos. Já sou bem grandinho. Sei quem é a Steffi.
  • É, bem... - resmungou ela, sem se convencer -... e há o Smilow. Ela pegou o copo de uísque, mas Hammond estendeu o braço por

cima da mesa e tirou-o com gentileza da mão dela.

  • Não posso nem terminar esse? - choramingou ela. - É um desperdício de um bom uísque.
  • A partir de agora você está nos trilhos. Duzentos dólares por dia e sobriedade. Esses são os termos deste contrato.
  • Você é duro na queda, procurador Cross.
  • Também cubro as suas despesas, e receberá um bónus substancial quando terminar o trabalho.
  • Não estava me referindo ao pagamento. Esse é generoso. Mais do que eu mereço – ela passou as costas da mão na boca. - É a cláusula de não beber que está me desanimando.
  • A regra é essa, Loretta. Se você tomar um único drinque e eu descobrir, o trato está desfeito.
  • Tudo bem, entendi – disse ela, irritada. - vou ter de aguentar. Preciso do dinheiro para pagar o que devo a Bev. Se não fosse isso, diria para você enfiar seus “termos” onde o sol não alcança.

Ele sorriu, sabendo que a valentia dela não passava disso. Estava muito animada de poder trabalhar de novo.

  • O que você ia dizer sobre o Smilow?
  • Aquele filho-da-mãe – zombou ela. - Foi por causa dele que fui demitida. Ele me deu uma tarefa impossível. Dick Tracy não teria conseguido no prazo que Smilow estipulou.

Quando viu que eu não conseguia, ele culpou a bebida e não seu prazo impossível. “Ele foi dizer para o chefe que me tirar da investigação criminal não era suficiente. Ele queria que eu saísse da polícia, ponto final. Disse que eu era uma desgraça, uma praga para o departamento, um ponto fraco. Ele até ameaçou se demitir se eles não me despedissem. Depois de dar um ultimato desses, quem você acha que os poderosos iam escolher? Uma policial mulher, com um pequeno problema de bebida, ou um ótimo detetive da Homicídios?” Ele podia argumentar que tudo que Smilow tinha alegado era verdade, e que o problema de bebida de Loretta era mais que “pequeno”, e que Smilow tinha simplesmente forçado seus superiores a fazerem o que eles tinham de fazer, só que temiam um processo de discriminação sexual ou algo igualmente desagradável. Por mais triste que tenha sido para Loretta, o ultimato de Smilow talvez tivesse evitado uma catástrofe. Nos meses que antecederam sua demissão, Loretta estava sempre bêbada. Não devia estar trabalhando como polícia feminina armada, investigando assaltos e crimes contra as pessoas, um perigo nas melhores circunstâncias. Mas Hammond compreendia que ela precisava desabafar.

  • Smilow não é muito tolerante com as fraquezas humanas.
  • E ele tem as dele.
  • Por exemplo?
  • O amor pela irmã dele e o ódio por Lute Pettijohn. Hammond lembrou da história resumida que Davee tinha contado para ele na véspera.
  • O que sabe sobre isso?
  • O que todo mundo sabe. Margaret Smilow era muito doente. Esquizofrênica, acho. Smilow era um irmão mais velho muito protetor. Quando ela se apaixonou por Lute Pettijohn, Rory não gostou da ideia desde o início. Talvez tivesse ciúme do novo protetor da vida dela, ou talvez, simplesmente, enxergasse Pettijohn como ele realmente era, enquanto todos permaneciam cegos. Por qualquer motivo, Rory não aprovava o casamento.
  • Soube que eles tinham discussões violentas. Loretta bufou com desprezo.
  • Uma noite, Rory e eu estávamos investigando um assalto seguido de assassinato numa loja de conveniência. Ele recebeu um recado para ligar para a irmã imediatamente. Margaret estava histérica e implorou para ele ir ao seu encontro naquele momento. Ele ficou muito aborrecido, nós passamos a cena do crime para a nossa equipe de apoio e dei carona para ele no meu carro.

“Hammond – disse ela balançando a cabeça, incrédula -, quando chegamos lá ela havia destruído a casa toda. O furacão Hugo não provocou tantos estragos. Não havia uma peça de vidro que não estivesse quebrada. Nenhuma almofada ou travesseiro que não tivesse sido rasgada. Não tinha nada em nenhuma estante. Não dava para andar de tanta coisa no chão. “Aparentemente ela havia descoberto que Pettijohn tinha uma amante. Quando chegamos lá Margaret estava no banheiro, segurando uma navalha sobre o pulso e ameaçava se matar. Smilow conversou com ela e a convenceu a largar a navalha. Ele chamou o médico dela, que fez a gentileza de ir até lá para medicá-la. Então Smilow pediu para eu levá-lo até o apartamento de Pettijohn. “Para encurtar a história... ele invadiu o apartamento e pegou a moça sentada na cara de Lute. Ele e Pettijohn deram alguns bons socos um no outro antes de eu poder separá-los. Tive de segurar Smilow porque nada que eu dizia funcionava. Sinceramente, acredito que, se não estivesse lá para contê-lo à força, ele teria matado Pettijohn aquela noite. Nunca vi um homem... ou uma mulher... tão possesso assim.” Ela semicerrou os olhos e tamborilou na fórmica feia com uma unha torta e suja.

  • E acho que é isso que Rory Smilow tem contra mim, e terá até o dia que eu morrer. Para o mundo, ele revela seu lado sem coração. Faz o papel de um cara insensível. Frio. Impassível. Mas eu testemunhei seu lado humano. Mais humano que os outros. Ele perdeu o controle. Por isso não suportava a minha presença para lembrá-lo disso.

Hammond não questionou a veracidade daquela história. Apesar de todos os defeitos de Loretta, nunca a vira mentir, nem aumentar uma história.

  • Por que me contou isso?
  • Estou apenas me desfazendo de algumas possibilidades.
  • Possibilidades? Você acha que Smilow matou Pettijohn? :
  • Só estou dizendo que poderia ter matado. Não sei quanto à oportunidade, mas ele certamente tinha uma motivação. Nunca perdoou Lute pelo suicídio de Margaret. E esses também não são apenas delírios de uma velha bêbada. A sua amiga Steffi pensou a mesma coisa. Ouvi quando ela tocou no assunto aquela noite no hospital. Ela comentou que Smilow gostaria muito de ver Pettijohn morto.
  • O que Smilow disse?
  • Ele não confessou, mas também não negou – ela deu uma risadinha. - Pelo menos não literalmente. Pelo que me lembro, ele virou a mesa e passou a bola para Steffi.
  • Para Steffi?
  • Ele sugeriu a ideia de que Pettijohn podia estar pavimentando o caminho dela para o cargo de Mason quando ele se aposentar.

Hammond deu uma risada.

  • Smilow devia estar tendo uma noite daquelas. Se Lute estava fazendo um favor para alguém, por que esse alguém o mataria?
  • Foi esse o argumento de Steffi, e a conversa morreu ali. Além do mais, ele estava só provocando, porque Steffi achava que Davee tinha livrado o mundo de Pettijohn.
  • Davee foi a primeira suspeita de Steffi. Mas agora ela tem outra pessoa na sua teia.
  • Essa dra. Ladd?

Assentindo com a cabeça, Hammond entregou para Loretta um envelope com algum dinheiro de adiantamento.

  • Se você beber esse...
  • Não vou beber. Juro!
  • Descubra o que puder sobre Alex Ladd. Quero o relatório o mais rápido possível.
  • Isso pode parecer presunção...
  • E tenho certeza que é.

Loretta ignorou Hammond e continuou:

  • Ela foi presa?
  • Ainda não.
  • Mas aparentemente você acha que Smilow e companhia estão enganados.
  • Não tenho certeza – ele fez um resumo dos acontecimentos do dia para ela, começando com a história de Daniels e terminando com Alex negando que conhecia Pettijohn. - Eles não descobriram nenhuma ligação. Falando como promotor, o caso dele é fraco.
  • E falando de outro jeito?
  • Não há outro jeito.
  • Ah – Loretta olhava para Hammond como se não acreditasse nele, mas resolveu deixar para lá. - Bem, Deus ajude essa dra. Ladd se ela não matou Pettijohn.
  • Você não quer dizer “Deus a ajude se ela matou Pettijohn”?
  • Não, o que quis dizer era isso mesmo.
  • Não estou entendendo – disse Hammond, confuso.
  • Se a dra. Ladd esteve na cena do crime, mas não o matou, ela pode ser uma testemunha.
  • Testemunha? Ela não teria dito isso para nós?
  • Não se estivesse com medo.
  • O que ela poderia temer mais que ser acusada de assassinato?
  • O assassino – respondeu Loretta.

Alex dirigia com um olho no espelho retrovisor. Reconhecia que os sintomas eram de paranóia, mas achava que tinha o direito depois de ter passado a maior parte do dia sendo interrogada sobre um homicídio. Com Hammond Cross na sala. Sabendo que ela estava mentindo. É claro que ele também mentiu, por omissão. Mas por quê? Curiosidade? Talvez ele quisesse ver até onde ela iria com suas mentiras sobre onde estava sábado à noite. Mas quando ela contou sua história falsa sobre Hilton Head, esperava que ele a denunciasse e a chamasse de mentirosa. Ele não fez isso. E isso indicava que ele estava protegendo a própria reputação. Ele não quis que sua colega, a srta. Mundell, e o ameaçador detetive Smilow soubessem que tinha passado a noite com a única suspeita que tinham do assassinato de Pettijohn, exatamente no dia em que o mataram. E hoje, pelo menos, ele estava mais interessado em manter segredo do encontro deles do que em considerá-la suspeita. Mas isso podia mudar. E por isso ela estava vulnerável. Até saber como Hammond pretendia levar isso adiante, precisava fazer de tudo para se proteger das acusações. Podia não chegar a tanto mas, se chegasse, tinha de estar preparada. Ela chegou ao seu destino mas evitou aporte cochère e os valetes e parou no estacionamento público. Bobby tinha subido na vida. Quando o conheceu, não era nenhum estranho nos albergues noturnos. Agora ele estava registrado num hotel perto do Centro da cidade. Ela não telefonou antes para avisar que estava a caminho. Surpreendê-lo talvez representasse uma pequena vantagem para ela no que, sem dúvida, seria um confronto desagradável. No elevador, ela fechou os olhos e rodou a cabeça na direção dos ombros. Estava exausta. E apavorada. Desejou poder fazer o relógio voltar e refazer o dia em que Bobby Trimble entrou novamente na sua vida depois de vinte anos livre dele. Desejou poder apagar aquele dia e todos os dias subsequentes. Mas isso significaria apagar também a noite que passou com Hammond Cross. Não tinha sido muito feliz na vida. Mesmo quando criança. Especialmente quando criança. O Natal era apenas mais um dia no calendário. Nunca teve um bolo de aniversário, jamais ganhou ovinhos de Páscoa ou uma fantasia no Dia das Bruxas. Foi só no fim da adolescência que ela descobriu que pessoas comuns, não só as pessoas das revistas e da televisão, também podiam participar das celebrações dos feriados. Ela passou a juventude desfazendo os danos do passado e criando um indivíduo novo. Tinha muita gana de absorver tudo que lhe tinham negado. Na universidade, ela se aplicava nos estudos com tamanha diligência que sobrava pouco tempo para namorar. Quando finalmente montou seu consultório, tinha aplicado toda a sua energia nisso. Por intermédio do seu trabalho voluntário e de caridade, ela conheceu bons partidos. Com alguns construiu amizade, mas romance nunca foi um elemento desses relacionamentos, e isso por opção dela. Tinha decidido que ia se contentar com as suas realizações e com a satisfação que obtinha ao ajudar as pessoas a tratar dos seus problemas e viver seu potencial. A verdadeira felicidade, o tipo animado e efervescente de alegria que tinha experimentado com Hammond aquela noite, ela nunca tivera. Era uma desconhecida indefinível para ela, por isso até aquele momento não tinha se dado conta de que possuía o poder de viciar. E tampouco dos perigos em potencial. E ela pensou: será que a felicidade sempre custava tanto assim? Assim que as portas do elevador se abriram, ela ouviu música e achou que devia ser do quarto de Bobby. E estava certa. Aproximou-se da porta e bateu, esperou um pouco e bateu de novo, com mais força dessa vez. A música parou.

  • Quem é? - Bobby, preciso falar com você.

Alguns segundos depois ele abriu a porta. Estava nu, apenas com uma toalha na cintura.

  • Se você está me dedurando para os tiras, que Deus me livre, mas eu...
  • Não seja absurdo! A última coisa que quero é que a polícia saiba que já tive qualquer ligação com você.

Ele examinou o corredor. Finalmente se convenceu de que ela estava sozinha.

  • Fico aliviado de ouvir isso, Alex. Por um momento tive medo de que você estivesse me traindo novamente.
  • Eu...

Um movimento atrás dele atraiu o olhar dela para além do ombro de Bobby. Apareceu primeiro uma menina, depois outra. Bobby olhou para trás, sorriu quando viu as meninas e as puxou para a frente, segurando as duas pela cintura. Se alguma delas tinha dezoito anos, eram recém-feitos. Uma usava uma calcinha de couro e nada em cima. A outra estava enrolada num lençol que Alex concluiu que tinha sido tirado da cama.

-Alex, esta é...

  • Não me importo – interrompeu ela. - Preciso conversar com você – disse com impaciência.
  • Está bem – suspirou ele. - Mas você sabe o que dizem sobre só trabalho e nenhum divertimento.

Ele mandou as meninas de volta para o quarto com tapinhas nos seus traseiros, e pediu alguns minutos sozinho com Alex.

  • Temos de tratar de negócios. Depois a festa vai começar de verdade. Tudo bem? Então, vão.

Elas pediram para ele não demorar muito, Bobby saiu do quarto e fechou a porta.

  • Você está chapado, não está? - perguntou Alex.
  • E não tenho o direito de estar? Ver a polícia na sua porta não era exatamente o que eu pretendia quando fui procurá-la hoje.
  • Onde você comprou a droga?
  • Não tive de comprar. Sei como escolher minhas amigas.
  • Suas vítimas.

Ele deu um grande sorriso, sem se ofender.

  • Essas meninas estavam bem supridas. Material de primeira. Por que você não experimenta um pouco? - ele estendeu o braço e apertou o nó que havia no ombro dela. - Você está toda tensa, Alex. Que tal um estimulante?

Ela afastou o braço dele.

  • Você é que sabe – disse ele afável, dando de ombros. - Onde está o meu dinheiro?
  • Não está comigo.

O sorriso dele se desfez um pouco.

  • Você está querendo brincar comigo, não é?
  • Você viu a polícia na minha casa, Bobby. Como é que eu podia trazer aquele dinheiro para você agora? Eu vim aqui te avisar para não se aproximar de mim novamente. Não quero mais ver você. Não quero que passe de carro na frente da minha casa. Não quero saber de você.
  • Espere aí um minutinho. Nós concordamos, lembra? - ele moveu a mão entre o peito dele e o dela. - Fizemos um trato.
  • O trato já era. A situação mudou. Eles me interrogaram sobre o assassinato de Lute Pettijohn.
  • Isso não é culpa minha, Alex. Não pode me culpar por ter estragado tudo.
  • Eu disse para você a noite passada...
  • Sei o que você disse. Não quer dizer que acreditei.

Era inútil discutir com ele. Não tinha acreditado nela ontem, e não ia acreditar agora. Não que se importasse com o que ele acreditava. Só queria livrar-se dele.

  • Conforme combinamos, vou te dar os cem mil.
  • Esta noite.

Ela balançou a cabeça.

  • Daqui a algumas semanas. Assim que esclarecer isso tudo. Seria loucura dar o dinheiro para você agora que a polícia está me vigiando.

Ele pôs as mãos nos quadris estreitos e inclinou o corpo para ficar com o rosto bem perto do dela.

  • Eu te avisei para tomar cuidado. Não avisei?
  • É, você avisou.
  • Então como foi que virou alvo deles?

Ela não ia ficar ali no corredor de um hotel com um homem quase nu discutindo seu interrogatório na polícia. Além do mais, ele não se importava de que modo a polícia a tinha associado a Pettijohn. Só se importava com uma coisa.

  • Você vai receber o seu dinheiro – disse ela. - Entro em contato com você quando achar que é seguro, que podemos nos encontrar. Até lá, fique longe de mim. Senão, estará dando um tiro no próprio pé.

Parecia que o efeito da droga estava acabando, porque a expressão dele não era mais tão tranquila e simpática, estava ficando beligerante.

  • Você deve achar que sou muito burro. Acredita sinceramente que pode se livrar de mim só porque quer, Alex?

Ele estalou os dedos a poucos centímetros do nariz dela.

  • Raciocine. Até eu conseguir a minha parte daquele dinheiro, serei sua sombra. Você me deve isso.
  • Bobby – disse ela com calma -, para pagar o que você merece eu teria de matá-lo.
  • Ameaças, Alex? - disse ele com voz macia. - Acho que não. Então ele a surpreendeu empurrando-a com força com o indicador no peito dela e ela recuou alguns passos.

-Você não está em condições de me ameaçar. É você que tem mais a perder. Lembre-se disso. Agora vou dizer isso pela última vez: traga aquele dinheiro para mim.

  • Você não entende que eu não posso? Não agora.
  • Não pode uma ova! Você tem uma sopa de letrinhas pendurada no seu nome. Tem toda a inteligência que precisa para resolver isso – ele semicerrou os olhos até virarem fendas cheias de maldade. - Traga aquele dinheiro para mim. É o único jeito de eu desaparecer.

O ódio queimou como brasa dentro dela.

  • Aquelas meninas sabem que vão acordar amanhã sem as jóias e o dinheiro delas?
  • Elas vão receber o que querem em troca – ele piscou um olho.
  • E mais alguma coisa.

Enojada, Alex deu meia-volta e foi para o elevador.

  • Fique longe de mim até eu avisar.
  • Sua sombra, Alex – ele falou bem baixinho para ela. - Olhe em volta. Eu estarei lá.

Hammond acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira e banhou as paredes com listras de cores pastel com um brilho aconchegante. Olhou em volta e teve de tirar o chapéu para Lute Pettijohn. Ele havia contratado um bom decorador para o seu Charles Towne Plaza, e não economizou no conforto. Pelo menos não na suíte da cobertura. O quarto era espaçoso e tinha sido desenhado para ser funcional. Atrás das portas do armário francês havia uma televisão de vinte e sete polegadas, maior que as dos hotéis e motéis comuns, equipada com um videocassete. Dentro desse armário também havia um CD player e uma seleção de Cds, um exemplar do TV Guia da semana anterior e um controle remoto para a televisão. Nada mais. Ele foi até o banheiro. As toalhas pareciam intactas desde que a camareira as tinha posto nos porta-toalhas decorativos. Ainda havia vidros de xampu e outros cosméticos num pequeno cesto prateado que ficava em cima da penteadeira, além de um kit de costura, uma flanela para lustrar sapatos e uma touca de banho. Ele apagou a luz e voltou para o quarto, os passos abafados pelo carpete felpudo. O quarto tinha um minibar além do que havia na saleta. O conteúdo já havia sido inventariado pela UCC. Mesmo assim, ele enrolou um lenço na mão e abriu a geladeira. Uma verificação rápida do menu impresso dos itens revelou que não faltava nada. Quando ele fechou a porta, o motor religou e começou a ronronar. Ele gostou do som. A suíte, apesar da decoração luxuosa e do conforto em todos os detalhes, era agora a cena de um crime. O silêncio fantasmagórico cercava Hammond por todos os lados. Tinha saído do Shady Rest Lounge com a intenção de ir para casa e dar por terminada aquela segunda-feira terrível. Mas, em vez disso, ele se sentiu atraído para aquele lugar. Não precisava adivinhar o motivo daquela compulsão. O último comentário de Loretta tinha fincado pé na mente dele e não saía mais de lá. Será que Alex Ladd tinha estado ali naquele sábado? Será que tinha testemunhado alguma coisa que não quisesse revelar porque podia representar um risco para a vida dela? Ele preferia acreditar nisso do que ficar imaginando que ela era a assassina, apesar de nenhuma opção ser muito animadora. Em seu subconsciente, ele tinha ido até lá com a esperança de encontrar alguma coisa que não tivessem visto antes, algo que pudesse isentar Alex Ladd e possivelmente incriminar outra pessoa. Irracionalmente, ele era levado a proteger uma mulher que tinha provado ser uma mentirosa detalhista e inescrupulosa. Não tinha sido fácil voltar para aquela suíte onde, no último sábado, ele tinha encontrado Lute e trocado palavras duras. Ele não tinha passado da sala de estar, na verdade não tinha se afastado muito da porta. Tinha dito o que queria dizer assim que pôs os pés no apartamento. Lute estava sentado no sofá, bebendo seu drinque, a imagem da complacência enquanto avisava para Hammond que, se ele tinha a intenção de criar uma investigação do grande júri sobre ele, que devia estar preparado para processar o pai dele também.

  • É claro – Lute tinha dito ainda, sorrindo – que há uma maneira de evitar toda essa sujeira. Se você concordar com o meu modo de fazer as coisas, todo mundo consegue o que quer e volta para casa feliz.

A proposta dele era que Hammond vendesse sua alma ao diabo. Ele tinha recusado a oferta. E é desnecessário dizer que Pettijohn não reagiu bem a essa recusa. Perturbado com a lembrança, Hammond entrou no closet, a única área do quarto que não tinha examinado. Atrás das portas espelhadas de correr havia um cofre vazio e cabides de roupas sem roupas. Havia um roupão branco pendurado, com o cinto ainda amarrado. Os chinelos também atoalhados ainda estavam lacrados dentro do saco de celofane. Parecia que nada tinha sido tocado. Ele fechou as portas e foi então que viu uma imagem refletida no espelho.

  • Está procurando alguma coisa? Hammond virou para trás.
  • Eu não sabia que havia mais alguém aqui.
  • Isso é óbvio – disse Smilow. - Você deu um pulo como se tivesse levado um tiro. - Olhando para as manchas de sangue no tapete na sala de estar, ele acrescentou: - Perdoe a má escolha das palavras.
  • Ora, ora, Rory – disse Hammond, usando o sarcasmo para esconder a mágoa de ter sido pego bisbilhotando. - Você nunca foi dado a rodeios com as palavras.
  • Certo. Nunca mesmo. Então que porra você está fazendo aqui?
  • Não é da porra da sua conta! - Hammond disparou no mesmo tom de raiva do detetive.
  • O adesivo em volta da porta é para manter as pessoas fora.
  • Eu tenho o direito de visitar a cena do crime que vou levar a julgamento.
  • Mas o protocolo exige que você notifique o meu departamento e que alguém venha junto com você.
  • Conheço o protocolo.
  • E então?
  • Eu estava na rua-disse Hammond com aspereza. Smilow tinha razão, mas ele não queria dar o braço a torcer. - Já era tarde. Não vi necessidade de arrastar um policial até aqui. Não toquei em nada – ele abanou o lenço que ainda segurava. - Não tirei nada. Além do mais, pensei que você já tinha terminado aqui.
  • E já terminamos.
  • Então, o que está fazendo aqui? Procurando provas? Ou plantando algumas? Os dois se encararam com ódio no olhar. Smilow foi o primeiro a controlar a fúria.
  • Eu vim até aqui para pensar em alguns elementos que a autópsia revelou.

Apesar de não querer, Hammond ficou interessado:

  • Como o quê?

Smilow voltou para a sala e Hammond foi atrás dele. O detetive parou em cima das manchas de sangue no chão.

  • Os ferimentos. É difícil determinar a trajetória das balas porque elas danificaram muito os tecidos, mas Madison aposta que miraram a pistola nele de cima para baixo, a uma distância de trinta a, no máximo, sessenta centímetros.
  • O assassino não podia errar.
  • Ele providenciou tudo para não errar.
  • Mas apareceu sem saber que Lute tinha sofrido um derrame.
  • Ele veio para matá-lo de qualquer jeito.
  • À queima-roupa.
  • O que indica que Petijohn conhecia seu matador.

Os dois contemplaram a mancha feia e escura no tapete por algum tempo.

  • Uma coisa está me incomodando – disse Hammond depois. Só agora descobri o que é. Barulho. Como é que se apaga alguém com um 38 sem que ninguém ouça?
  • Havia poucos hóspedes nos quartos. O serviço que ia abrir as camas só começava depois das seis. As camareiras ainda não estavam no corredor. O atirador podia ter usado um silenciador de algum tipo, até um improvisado e malfeito. Madison não encontrou nada na área ou nos ferimentos que indicasse isso. O meu palpite é que os quartos, praticamente à prova de som, que Pettijohn costumava se gabar de ter, não eram falsos com seu sistema de vídeo de segurança de última geração.
  • E acabei de pensar em outra coisa: - Smilow olhou para ele e fez sinal para Hammond continuar – quem apagou Lute, além de conhecê-lo bem também conhecia muito bem este hotel. Como se o assassino estudasse tudo que Pettijohn fazia. Como se fosse obcecado por ele – ele examinou os olhos frios de Smilow. - Está entendendo onde quero chegar?

Smilow sustentou o olhar de Hammond até contar dez, mas não quis ceder à provocação e apontou com o queixo para a porta da suíte.

  • O doutor promotor primeiro.

O testamento de Lute Pettijohn estipulava que ele fosse cremado. Assim que o sr. John Madison liberou o corpo segunda-feira à tarde ele foi transportado para a casa funerária. A viúva já tinha acertado tudo e cuidado da papelada necessária. Ela não quis ver o corpo antes de ser levado para o crematório. Uma cerimónia memorial foi marcada para a manhã de terça-feira, que algumas pessoas acharam inadequada, cedo demais, especialmente à luz das circunstâncias da morte de Pettijohn. Mas levando em consideração a conduta habitualmente imprópria da viúva, ninguém se surpreendeu quando ela atropelou os horários sempre respeitados do ritual.

 

                                                                                 CONTINUA 

 

                      

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