DURANTE O CONSULADO DE LÚCIO CÁSSIO LONGINO E CAIO MÁRIO Nenhum consulado fora alguma vez tão importante para o seu detentor como o de Caio Mário. Tomou posse no dia de Ano Novo, confiante por saber que a sua vigília nocturna à espera de presságios era irrepreensível, e que o seu touro branco se havia abarrotado de ração envenenada. Solene e isolado, Mário tinha todo o ar de um cônsul, esplendidamente alto, muito mais distinto do que qualquer dos que o rodeavam no ar fresco da manhã; o cônsul sénior, Lúcio Cássio Longino, era baixo e entroncado, de toga, não ficava com ar imponente e era totalmente eclipsado pelo seu colega júnior.
E por fim, Lúcio Cornélio Sila apareceu como membro do Senado, com a faixa larga púrpura no ombro direito da túnica, auxiliando o cônsul, Mário, como seu questor.
Embora não tivesse ofasces durante o mês de janeiro por as varas atadas de cor carmesim estarem na posse do cônsul sénior, Cássio, até às calendas de Fevereiro, Mário convocou o Senado para uma reunião no dia seguinte.
- De momento - disse à assembleia dos Pais Conscritos, cuja maioria resolveu comparecer, dado que não confiava em Mário -, Roma será chamada a combater guerras em pelo menos três frentes, e excluindo a Espanha. Necessitamos de tropas para combater o rei jugurta, os Escordiscos na Macedónia e os Germanos na Gália. No entanto, durante os quinze anos que decorreram desde a morte de Caio Graco, perdemos seis mil soldados romanos, mortos em vários campos de batalha, enquanto outros milhares ficaram incapacitados para o serviço militar. Repito a duração do período, Pais Conscritos: quinze anos. Nem chega a perfazer meia geração.
A Assembleia estava em completo silêncio; entre os que aí se encontravam via-se Marco júnio Silano, que perdera mais de um terço desse total dois anos antes e continuava a defender-se de acusações de traição. Ninguém até então ousara contabilizar esses números na Assembleia, mas todos os presentes sabiam muito bem que os de Mário pecavam por moderação. Paralisados pelo som dos números pronunciados no latim do interior que Mário falava, os Pais Conscritos escutavam.
- Não conseguimos recrutar tropas - prosseguiu Mário - por um motivo de peso, Deixámos de ter homens suficientes. A falta de cidadãos romanos e de Direitos Latinos é assustadora, mas a falta de homens italianos ainda é pior. Mesmo recrutando em todos os distritos a Sul do Arno, não teremos hipóteses de alistar as tropas de que precisamos para a campanha deste ano. Presumo que o exército africano, seis legiões vigorosas, treinadas e equipadas, regressarão a Itália com Quinto Cecílio Metelo, e ficarão às ordens do meu estimado colega Lúcio Cássio na distante Gália de Tolosa. As legiões macedónias estão também devidamente equipadas e têm estatuto de veteranas, e tenho a certeza de que continuarão a ter êxito sob o comando de Marco Minúcio e do seu irmão mais novo.
Mário fez uma pausa para respirar; a Assembleia continuou atenta.
- Mas subsiste o problema de um novo exército africano. Quinto Cecílio Metelo teve à disposição seis legiões em todo o seu vigor. Eu antecipo que conseguirei reduzir esse total para quatro legiões, se for necessário Contudo, Roma não tem quatro legiões de reserva! Roma nem tem uma legião de reserva! Para vos refrescar a memória, passarei a expor os números precisos de um exército de quatro legiões,
Mário não tinha necessidade de recorrer a apontamentos; limitou-se a permanecer no estrado dos cônsules, quase em frente à sua cadeira curul, e disse os números de memória:
- No total: 5120 soldados de infantaria por legião, mais 1280 homens livres não-combatentes e 1000 escravos não-combatentes por legião. Depois, temos a cavalaria: uma unidade de 2000 tropas a cavalo, com
2000 homens livres e escravos não-combatentes para apoio. Defronto-me, assim, com a tarefa de arranjar 20 480 soldados de infantaria, 5120 homens livres não-combatentes, 4000 escravos não combatentes, 2000 soldados de cavalaria e 2000 homens não-combatentes para apoio à cavalaria
Os seus olhos percorreram a Assembleia.
- As forças não-combatentes nunca foram difíceis de recrutar, e continuarão a não sê-lo, segundo prevejo - não há qualificação de posse para o não-combatente, que pode ser tão pobre como um agricultor que faça a sua plantação a meias com outro. Nem a cavalaria será difícil, pois há muitas gerações que Roma alista soldados de cavalaria de origem romana ou italiana. Iremos encontrar sempre os homens de que necessitamos em lugares como a Macedónia, Trácia, Ligúria e a Gália Transalpina, que trazem consigo não só os seus próprios não-combatentes, como também os cavalos.
Fez uma pausa mais longa, reparando em alguns homens: Escauro e o candidato consular mal sucedido Catulo César, Metelo Dalmático Pontifex Maximus, Caio Mémio, Lúcio Calpurnio Pisão Cesónio, Cipião Nasica, Crieu Domício Aenobarbo. Para onde quer que estes homens saltassem, o rebanho senatorial segui-los-ia.
- O nosso Estado é frugal, Pais Conscritos. Quando depusemos os nossos reis, revogámos o conceito de recrutar um exército pago em grande parte pelo Estado. Por esse motivo, limitámos o serviço armado aos que tenham posses suficientes para pagar as suas armas, armaduras e outro tipo de equipamento, e essa exigência aplicava-se a todos os soldados: romanos, latinos, italianos, sem distinção. Um homem de posses tem bens a defender. A sobrevivência do Estado e do seu património é importante para ele. Está disposto a dedicar-se à luta com todas as suas forças. Por isso, temos tido relutância em assumir um império ultramarino e temos tentado vezes sem conta evitar possuir províncias.
”Mas depois da derrota de Perseu, falhámos no nosso esforço louvável de introduzir o governo autónomo na Macedónia porque os Macedónios não entendiam outro sistema sem ser a autocracia. Por isso, tivemos de transformar a Macedónia numa província de Roma, pois não podíamos ter tribos bárbaras a invadir a sua costa oeste, tão perto da nossa costa leste da Itália. A derrota de Cartago obrigou-nos a administrar o império cartaginês em Espanha, ou arriscar-nos a que outra nação se apoderasse dela. Demos a maior parte da Cartago africana aos reis da Numídia, e mantivemos apenas uma pequena província à volta da própria Cartago em nome de Roma, para prevenir qualquer revivalismo púnico. E no entanto, vejam o que aconteceu por termos cedido tanto aos reis da Numídia! Agora, vemo-nos forçados a tomar a África para podermos defender a nossa pequena província e esmagar as estratégias expansionistas de um homem, Jugurta. Afinal de contas, Pais Conscritos, basta um homem e estamos perdidos! O rei Átalo, ao morrer, legou-nos a Ásia, e ainda estamos a tentar evitar as responsabilidades provinciais que lá temos! Cneu Domício Aenobarbo abriu toda a costa da Gália entre a Ligúria e a Espanha Citerior, para que tivéssemos um corredor seguro e propriamente romano entre a Itália e a Espanha para os nossos exércitos. Mas por isso, vimo-nos obrigados a criar mais uma província.”
Aclarou a garganta; que silêncio!
- Os nossos soldados lutam agora em campanhas fora de Itália. Estão afastados por longos períodos de tempo, as suas quintas e lares ficam negligenciados, não geram as suas crianças. Com o resultado de vermos cada vez menos voluntários, temos de recrutar cada vez mais homens, Nenhum homem que cultive terra ou dirija um negócio quer estar longe por cinco ou seis ou mesmo sete anos! E quando é dispensado, pode voltar a ser recrutado quando não houver mais voluntários.
A voz grave ficou mais sombria.
- Mas o que é mais importante, muitos desses homens morreram nos últimos quinze anos! E não se reproduziram. Em toda a Itália faltam homens com as qualificações de bens necessárias para formar um exército romano nos moldes tradicionais.
A voz tornou a alterar-se, elevando-se de forma a ecoar pelas traves lisas da antiga sala, construída no tempo do rei Tulo Hostílio.
- Desde a segunda guerra contra o Cartago que os oficiais têm de tolerar as qualificações de posse. E após a perda do exército do jovem Carbo, há seis anos, até admitimos nas nossas fileiras homens que não podiam comprar a sua própria armadura, quanto mais outro tipo de equipamento. Mas este facto tem sido dissimulado, desaprovado, e aplicado sempre em último recurso.
”Esses dias acabaram, Pais Conscritos. Eu, Caio Mário, cônsul do Senado e Povo de Roma, dou aqui a conhecer aos membros desta Assembleia que tenciono alistar os meus soldados, e não recrutá-los: quero soldados voluntários e não homens que preferiam estar em casa. Aonde irei arranjar unç vinte mil voluntários?’, perguntarão. A resposta é simples! Procurá-los-ei entre os capite censi, o mais baixo estrato social, demasiado pobres para serem admitidos a qualquer das Cinco Classes. Vou procurar os meus voluntários entre os que não têm dinheiro, bens, e muitas vezes, emprego fixo. Vou procurar os meus voluntários entre aqueles a quem nunca foi dada a oportunidade de lutar pela sua nação, de lutar por Roma!”
Surgiu um burburinho que foi aumentando, aumentando, até toda a Assembleia vociferar:
- Não! Não!
Sem dar mostras de qualquer irritação, Mário esperou pacientemente, mesmo quando a irritação dos outros rebentou à sua volta em punhos agitados, rostos corados, no arrastar de mais de duzentos bancos à medida que as togas dos homens que se levantavam, os empurravam contra o velho chão de pedra, polido pela passagem de pés durante séculos.
Finalmente, o barulho cessou; embora houvessem sido levados à cólera, sabiam que ainda não tinham ouvido tudo, e a curiosidade era uma força poderosa, mesmo para os irados.
- Podem gritar, vociferar e berrar até o vinagre passar a vinho! - gritou Mário quando se pôde fazer ouvir. - Mas comunico-vos aqui e agora que é isto o que vou fazer! E não preciso da vossa autorização! Não há nenhuma lei escrita que diga que não posso fazê-lo... Mas dentro de dias haverá uma lei escrita a dizer queposso fazê-lo! Uma lei dizendo que qualquer magistrado sénior eleito que necessite de um exército poderá ir buscá-lo aos capte censi - os proletarÚ. Porque eu, Pais Conscritos, vou apresentar o meu caso ao Povo!
- Nunca! - gritou Dalmático.
- Só por cima do meu cadáver! - gritou Cipião Nasica.
- Não! Não! Não! - gritou toda a Assembleia, vociferando.
- Espera! - gritou a voz solitária de Escauro. - Esperem! Esperem! Deixem-me refutá-lo!
Mas ninguém ouviu. A Cúria Hostília, edifício do Senado desde a fundação da República, estremecia até aos alicerces, com o barulho dos senadores enfurecidos.
- Vem! - disse Mário, e abandonou a Assembleia, seguido pelo seu questor, Sila, e o seu tribuno da plebe, Tiro Mânho Mancino.
As multidões do Fórum tinham-se reunido aos primeiros trovões da tempestade, e já encontraram o local dos Comícios apinhado de apoiantes de Mário. O cônsul Mário e o tribuno da plebe Mancino desceram os degraus da Cúria e passaram os rostros, atrás dos Comícios; o questor Sila, um patrício, permaneceu nos degraus da Assembleia do Senado.
- Ouçam! Ouçam! - rugiu Mancino. - Convoca-se a Assembleia da Plebe para uma sessão! Convoco um contio, uma discussão preliminar! Caio Mário avançou em frente, para a plataforma dos oradores à frente dos rostros, e colocou-se de tal modo que encarava em parte os Comícios e em parte o espaço aberto do baixo Fórum; os que estavam nas escadas viam-no quase de costas, e quando todos os senadores à excepção dos poucos patrícios começaram a mudar-se para as bancadas dos Comícios de onde podiam olhar directamente para Caio Mário e incomodá-lo, as fileiras dos seus clientes e apoiantes, que haviam sido convocados aos Comícios a tempo, bloquearam-lhes subitamente a passagem. Houve brigas e murros, dentes à mostra e ânimos exaltados, mas as linhas de Mário aguentaram-se. Apenas os outros nove tribunos da plebe foram autorizados a seguir para os rostros, onde permaneceram, ao fundo, de expressões firmes, discutindo em voz baixa se seria possível interpor um veto.
- Povo de Roma, dizem que não posso fazer o que é necessário para garantir a sobrevivência de Roma! - gritou Mário. - Roma precisa desesperadamente de soldados! Estamos rodeados de inimigos em todas as frentes, mas os nobres Pais Conscritos, como de costume, estão mais preocupados com a preservação do seu direito adquirido de governar do que com o garantir a sobrevivência de Roma! Foram eles, Povo de Roma, que sugaram o sangue dos Romanos e Latinos e Italianos pela sua exploração indiferente das classes de homens que têm sido os soldados tradicionais de Roma! Pois eu digo-vos que já não há mais homens desses! Dos que não morreram em campos de batalha graças à avidez, à arrogância e à estupidez de qualquer comandante consular ou estão demasiado mutilados para poderem continuar em serviço como soldados, ou estão ao serviço das legiões!
”Mas existe um recurso alternativo aonde poderemos ir buscar soldados prontos e com vontade de estar ao serviço de Roma! Refiro-me aos homens dos capite censi, os cidadãos de Roma ou de Itália que são demasiado pobres para terem um voto nas Centúrias, demasiado pobres para possuírem terras ou negócios, demasiado pobres para poderem comprar equipamentos de soldados! Mas é tempo, Povo de Roma, que estes milhares e milhares de homens sejam chamados a fazer mais por Roma do que alinharem-se sempre que aparece cereal barato, empurrarem-se e abrir caminho para o Circo nos dias feriados em busca de gratificação, e gerarem filhos que não podem alimentar! O facto de não terem valores não devia retirar-lhes o valor! Nem acredito que amem menos Roma do que qualquer homem rico! Com efeito, creio que o seu amor por Roma é muito mais puro do que o amor demonstrado pela maioria dos honrados Pais Conscritos!”
Mário ergueu-se, numa indignação crescente, abriu muito os braços como que para abraçar Roma inteira.
- Estou aqui com o Colégio de Tribunos atrás de mim para vos solicitar, ao Povo, um mandado que o Senado não me concede! Peço-vos o direito de invocar o potencial militar dos capite censi! Quero fazer com que os homens dos capite censi passem de seres insignificantes e inúteis a soldados das legiões de Roma! Quero dar aos homens dos cappite censi emprego remunerador - uma profissão em vez de um ofício! Um futuro para eles e para as suas famílias com honra e prestígio e uma oportunidade de progredir! Quero dar-lhes uma consciência da dignidade e do valor, uma hipótese de terem um papel nada desprezível no progresso da Grande Roma!
Fez uma pausa; os Comícios olhavam-no em profundo silêncio, todos de olhos fixos no seu rosto grave, nos seus olhos brilhantes, nas arremetidas indómitas do queixo e do peito.
- Os Pais Conscritos estão a negar uma oportunidade a milhares de homens! Negando-me a oportunidade de convocar os seus serviços, a sua lealdade, o seu amor por Roma! E porquê? Porque os Pais Conscritos amam Roma mais do que eu? Não! Porque se amam mais a si mesmos e à sua classe do que amam Roma ou qualquer outra coisa! Por isso, recorro a vós, ao Povo, pedindo-vos que me dêem a mim, e a Roma, o que o Senado recusa! Dêem-me os capite censi, Povo de Roma! Dêem-me os mais humildes, os mais baixos de todos! Dêem-me uma oportunidade de transformá-los num corpo de cidadãos de que Roma possa orgulhar-se, um corpo de cidadãos que Roma possa usar em vez de se limitar a suportar, um corpo de cidadãos equipados e treinados e pagos pelo Estado para servir o Estado de corpo e alma como soldados! Dão-me o que vos peço? Dão-me aquilo de que Roma necessita?
E a gritaria começou, a algazarra, o bater de pés, a quebra audível de uma tradição de dez séculos. Nove tribunos da plebe olharam de viés uns para os outros, e concordaram em silêncio que não interporiam o veto; porque todos eles gostavam de viver.
- Caio Mário - disse Marco Emílio Escauro na Assembleia, depois de ter sido aprovada a lex Manlia, dando poder aos cônsules actuais para convocarem voluntários entre os capite censi - é um lobo babado com sede de sangue! Caio Mário é uma úlcera nefasta no organismo desta Assembleia! Caio Mário constitui a razão mais óbvia por que nós, Pais Conscritos, devemos fechar as portas a Homens Novos, e não lhes permitir nem um lugar na última bancada deste estabelecimento! Perguntar-me-ão: ”o que percebe Caio Mário da natureza de Roma, dos ideais imperecíveis do seu governo tradicional?” Eu sou o Princeps Senatus, o presidente da Assembleia, e em todos os anos que passei neste organismo de homens que amo como a manifestação do espírito de Roma, nunca vi antes dele um indivíduo tão insidioso, tão perigoso, tão prático como Caio Mário! Por duas vezes em três meses pegou nas prerrogativas consagradas do Senado e esmagou-as no altar grosseiro do Povo! Primeiro, anulou o nosso édito que concedia a Quinto Cecílio o prolongamento do comando de África. E agora, para gratificar a sua ambição, explora a ignorância do povo pedindo-lhe poderes de recrutamento de soldados que não são nem naturais, nem conscientes, nem razoáveis, nem aceitáveis!
A reunião tinha uma grande assistência; dos 300 Pais Conscritos, mais de 280 haviam comparecido a esta sessão da Assembleia, arrancados das suas casas e até mesmo dos leitos de doentes por Escauro e outros chefes. E encontravam-se sentados nos seus tamboretes nas três fileiras ascendentes ao longo de ambos os lados da Cúria Hostília como um enorme rebanho de alvas galinhas empoleiradas, em que apenas as togas debruadas a púrpura dos que haviam sido magistrados séniores aliviavam aquela massa branca que cegava. Os dez tribunos da plebe estavam sentados no seu banco comprido na Assembleia, de um dos lados dos outros únicos magistrados a quem fora conferida a distinção do corpo principal - dois edis curuis, seis pretores e dois cônsules - todos sentados nas suas belas cadeiras de marfim trabalhadas, elevadas num estrado no extremo da sala, em frente das duas enormes portas de bronze que davam acesso à câmara.
Nesse estrado estava Caio Mário, a seguir e ligeiramente atrás do cônsul sénior, Cássio, e o seu isolamento era apenas espiritual; Mário parecia calmo, satisfeito, quase felino, e escutava Escauro sem consternação, sem fúria. Estava concluído. Tinha o seu mandato. Podia dar-se ao luxo de ser magnânimo.
- Esta Assembleia deve fazer tudo o que puder para limitar o poder que Caio Mário acabou de dar aos capite censi. Porque os capite censi devem permanecer o que sempre foram: um grupo inútil de bocas esfomeadas de quem nós, mais privilegiados, devemos tomar conta, alimentar e tolerar, e sem nunca pedir serviço algum em troca. Porque enquanto não nos fizer nenhum serviço e não tiver utilidade, não passa de um simples dependente, a esposa de Roma que não labora, e que não tem poder nem voz activa. Não nos pode reclamar nada que não estejamos dispostos a dar-lhe, pois não faz nada. Limita-se a existir.
”Mas graças a Caio Mário, encontramo-nos agora perante todos os problemas e o grotesco daquilo a que devo chamar um exército de soldados profissionais: homens que não têm outra fonte de lucro, nenhum outro modo de ganhar a vida... homens que quererão permanecer no exército campanha atrás de campanha... homens que custarão ao Estado enormes quantias de dinheiro. E, Pais Conscritos, homens que reclamarão que agora têm direito a opinião em Roma, visto que prestam um serviço a Roma, que trabalham para Roma. Ouviram o Povo. Nós, Pais Conscritos, que administramos o Tesouro e distribuímos os fundos públicos de Roma, temos de descobrir nos cofres de Roma o dinheiro suficiente para equipar o exército de Caio Mário com armas, armaduras e demais equipamento de guerra. O Povo indica-nos ainda que devemos pagar esses soldados numa base regular, em vez de ser no final da campanha, quando os saques ajudam a liquidar os gastos. O preço de recrutar exércitos de homens falidos arruinará financeiramente o Estado, disso não há a menor dúvida.”
- Absurdo, Marco Emílio! - interrompeu Mário. - Roma tem tanto dinheiro nos cofres do Tesouro que não sabe como usá-lo... Porque, vocês, Pais Conscritos, nunca o gastam! Tudo o que fazem é armazená-lo.
Começou o tumulto, os rostos enrubesceram, mas Escauro levantou o braço direito, pedindo silêncio, e obteve-o.
- Sim, os cofres do Tesouro estão cheios - disse, - É assim que deve estar um tesouro público! Mesmo com o custo das obras públicas que eu constituí como censor, os cofres do Tesouro continuam cheios. Mas no passado, houve alturas em que estiveram totalmente vazios. As três guerras que travámos contra Cartago deixaram-nos à beira de um desastre fiscal. E então, pergunto-vos, que mal tem garantir que isso não volte a acontecer? Enquanto os cofres do Tesouro estiverem cheios, Roma será próspera.
- Roma será mais próspera quando os homens dos capite censi tiverem nas bolsas dinheiro para gastar - contrapôs Mário.
- Não é verdade, Caio Mário! - gritou Escauro. - Os homens dos capite censi dissiparão o dinheiro: desaparecerá de circulação e nunca aumentará. E avançou do seu lugar na primeira fila de bancadas, e colocou-se perto das grandes portas de bronze, onde ambos os lados da Assembleia podiam vê-lo e ouvi-lo.
- Digo-vos, Pais Conscritos, que no futuro devemos resistir com toda a energia sempre que um cônsul se servir da lex Manlia e recrutar homens dos capite censi. O Povo mandou-nos pagar especificamente o exército de Caio Mário, mas não há nada na lei que nos obrigue a pagar o equipamento de qualquer outro exército de pobres! E é assim que devemos proceder. Que o próximo cônsul escolha todos os pobres que quiser para as suaslegiões... Mas pelo que nos diz respeito a nós, guardiões dos dinheiros de Roma, teremos de recusar os fundos para pagar e equipar as suas legiões.
”O Estado não pode recrutar um exército de pobres, é tão simples como isso. Os capite censi são débeis, irresponsáveis, não têm respeito pela propriedade ou pelo material. Um homem cuja cota de malha lhe foi dada sem encargos pelo Estado irá tratá-la com cuidado? Não! Claro que não! Deixá-la-á enferrujar ao ar do mar ou à chuva, levantará as estacas de um acampamento e esquecer-se-á dela, abandoná-la-á aos pés da cama de qualquer prostituta estrangeira e pensará depois por que razão ela a terá roubado de noite para equipar o seu amigo escordisco! E quando esses pobres já não estiverem capazes de servir as legiões? Os nossos soldados tradicionais possuem bens, têm um lar para onde regressar, dinheiro investido, um pequeno valor sólido e tangível! Ao passo que os veteranos pobres constituirão uma ameaça, pois quantos deles pouparão o dinheiro que o Estado lhes dá? Quantos deles depositarão a sua parte das pilhagens? Não, acabarão os seus anos de serviço remunerado sem um lar ao qual possam voltar, sem sustento. Ouço-vos dizer: Ah, sim! Mas isso não é estranho para eles! Vivem sempre sem pensar no futuro.’ Mas, Pais Conscritos, esses pobres militares habituar-se-ão a que o Estado os sustente, os vista e aloje. E quando isso lhes for retirado, resmungarão, tal como uma mulher que foi mimada resmunga quando o dinheiro acaba. Teremos então de criar uma pensão para esses veteranos pobres?
”Não podemos permitir que tal aconteça! Repito, colegas membros do Senado que chefio, que as nossas tácticas futuras devem orientar-se para alertar os que forem inconscientes ao ponto de recrutar homens dos capite censi, recusando-nos terminantemente a contribuir com um sestércio que seja para custear os seus exércitos!”
Mário levantou-se para responder.
- Seria difícil encontrar atitude mais limitada e ridícula no harém de algum sátrapa pártio, Marco Emílio! Por que não compreendes? Se Roma quiser manter o que ainda lhe pertence, tem de investir em todas as pessoas, incluindo as que não têm direito a votar nas Centúrias! Estarnos a desperdiçar os nossos agricultores e pequenos negociantes mandando-os para o combate, especialmente com incompetentes insensatos como Carbo e Silano... Ah, estás aí, Marco júnio Silano? Desculpa-me!
<Que mal há em usarmos os ser-viços de uma grande camada da nossa sociedade que até ao momento tem sido tão útil para Roma como seriam as tetas a um touro? Se a única verdadeira objecção que encontramos é sermos um pouco mais liberais com o conteúdo em ruínas do Tesouro, então, somos tão estúpidos como limitados! Tu, Marco Emílio, estás convencido de que os homens dos capite censi serão maus soldados. Bem, eu penso que darão excelentes soldados! Vamos continuar a lamentar o seu custo? Vamos negar-lhes uma oferta ao retirarem-se, no final da campanha? É isso que pretendes, Marco Emílio?
”Mas eu gostaria de ver o Estado desfazer-se de alguns terrenos públicos de Roma, para que quando se retirar, um soldado dos capite censi possa receber um pequeno pedaço de terra para cultivar ou vender. Uma pensão de alimentos. E uma infusão de sangue novo muito necessitado nas fileiras mais que dizimadas dos nossos pequenos agricultores. Como pode derivar daí qualquer coisa que não seja boa para Roma? Meus senhores, por que não conseguem entender que Roma apenas pode enriquecer se estiver disposta a partilhar a sua prosperidade tanto com as petingas que nadam no seu mar como com as baleias?”
Mas a Assembleia levantou-se num clamor, e Lúcio Cássio Longino, o cônsul sénior, achou que a prudência estava na ordem do dia. Motivo pelo qual encerrou a sessão e despediu-se dos Pais Conscritos.
Mário e Sila partiram em busca de 20 480 soldados de infantaria, 5 120 homens livres não-combatentes, 4000 escravos não-combatentes, 2000 soldados de cavalaria e 2000 não-combatentes para apoiar a cavalaria.
- Eu trato de Roma; tu podes ocupar-te do Lácio - disse Mário, em voz surda. - Duvido muito que qualquer de nós tenha de ir até Itália. Vamos a caminho, Lúcio Cornélio! Apesar de ter sido o pior que podiam fazer, vamos a caminho. Pedi a Caio Júlio, nosso sogro, para contactar as fábricas e os fornecedores de armas e armaduras, e já mandei vir de África os seus filhos: podem ser-nos úteis. Parece-me que nem Sexto nem Caio júnior são feitos da massa dos verdadeiros chefes, mas são excelentes subordinados, leais e diligentes.
Mário seguiu à frente até ao seu gabinete, onde o esperavam dois homens. Um era um senador de cerca de trinta e cinco anos cujo rosto Sila conhecia vagamente, e o outro era um rapaz que andaria pelos dezoito.
Mário apresentou-os ao seu questor.
- Lúcio Cornélio, apresento-te Aulo Mânho, a quem convidei para ser meu legado sénior. - É o senador. Um dos Mânhos patrícios, pensou Sila. Mário tinha de facto amigos e clientes de todas as classes.
- E este jovem é Quinto Sertório, filho de minha prima, Maria de Nérsia, a quem sempre chamam Ria. Destaquei-o para o meu pessoal particular. - Um Sabino, pensou Sila. Pelo que ouvira, tinham um enorme valor num exército - um pouco heterodoxos, de imensa coragem, de espírito indómito.
- Muito bem, está na altura de começarmos - disse o homem de acção que passara mais de vinte anos a aperfeiçoar as suas ideias sobre o que deveria ser o exército romano.
- Dividiremos as nossas tarefas. Aulo Mânho, ficas encarregado de reunir as mulas, carros, equipamentos, não-combatentes, e todos os abastecimentos, desde a comida até à artilharia. Os meus cunhados, os dois Júlios Césares, deverão chegar a qualquer momento e irão auxiliar-te. Quero-te pronto para embarcar para África nos fins de Março. Terás todo o auxílio de que necessitares, mas posso sugerir-te que comeces por arranjar os não-combatentes, e escolhas os melhores? Assim, pouparás dinheiro e começarás já a treiná-los.
O jovem Sertório observava Mário, aparentemente fascinado, enquanto Sila o achou mais fascinante que Mário, talvez por já estar muito habituado a este. Não era que Sertório fosse sexualmente atraente, porque não o era; mas tinha em si um poder que era estranho num homem tão novo. Fisicamente, prometia ser imensamente forte quando chegasse à maturidade, o que talvez contribuísse para a impressão de Sila, pois embora fosse alto, já tinha os músculos tão sólidos que dava a impressão de ser baixo; possuía uma cabeça quadrada, de pescoço largo, e uns olhos dignos de nota, castanho-claros, cravados nas órbitas e magnéticos.
- Eu próprio tenciono embarcar em fins de Abril com o primeiro grupo de soldados - continuou Mário, olhando para Sila. - Cabe-te a ti, Lúcio Cornélio, continuar a organizar o resto das legiões e encontrar uma cavalaria decente. Se conseguires despachar tudo e partires no fim de Quinctilis, ficarei contente - virou a cabeça, sorrindo para o jovem Sertório. - Quanto a ti, Quinto Sertório, hei-de manter-te muito atarefado, descansa! Não posso permitir que digam que mantenho familiares meus por aí sem qualquer ocupação.
O rapaz sorriu, devagar e ponderadamente.
- Gosto de andar atarefado, Caio Mário - respondeu.
Os capite cens fizeram bicha para se alistar; Roma nunca tinha visto nada assim, nem ninguém no Senado esperava tal resposta por uma parte da comunidade com que nunca se preocupara, exceptuando os tempos de falta de cereais, em que era prudente abastecer os capte cens; com cereal barato para evitar rixas perturbadoras.
Em poucos dias o número de recrutas voluntários de total cidadania romana eram 20 480 - mas Mário recusou-se a encerrar o recrutamento.
- Se eles querem ir, nós levamo-los - explicou a Sila. - Metelo tem
seis legiões, não vejo motivo para não ter seis legiões. Especialmente com o Estado a financiar os custos! Isto não volta a repetir-se, se acreditarmos no nosso querido Escauro, e Roma talvez precise dessas duas legiões extra, como me sugere a intuição. De qualquer modo, não vamos ter este ano uma campanha decentemente preparada, e por isso é melhor começarmos a concentrar-nos no treino e no equipamento. O que me agrada é que estas seis legiões serão todas de cidadãos romanos e não de auxiliares italianos. Significa que ainda iremos ter muitos proletarÚ italianos para o futuro, bem como mais romanos dos capite censi.
Tudo correu de acordo com os planos, o que não era de espantar com Caio Mário no comando, como Sila descobriu. Em finais de Março, Aulo Mânho vinha a caminho, de Nápoles para útica, trazendo nos seus transportes mulas, balistas, catapultas, armas, mantimentos e os mil e um artigos que constituíam o equipamento dum exército. No momento em que Mânho aportou em útica, os transportes regressaram a Nápoles para trazer Caio Mário, que navegou apenas com duas das suas legiões. Sila ficou em Itália para preparar e equipar as outras quatro legiões e arranjar a cavalaria. No fim, dirigiu-se para norte para as regiões da Gália italiana no extremo do rio Pó, onde recrutou os magníficos soldados de cavalaria de origens celtas.
Houve outras mudanças no exército de Mário, para além da sua composição com homens dos capte cens. Porque não tinham qualquer tradição de serviço militar e por isso ignoravam completamente o que implicava. E assim, não estavam em condições de resistir à mudança, ou de se lhe opor. Durante muitos anos, a antiga unidade táctica denominada manípulo provara ser demasiado pequena para combater os exércitos massivos e indisciplinados com que as legiões habitualmente se defrontavam;
a coorte - três vezes maior do que o manípulo - tinha vindo gradualmente a substituí-lo na prática. Porém, ninguém reagrupara oficialmente as legiões em coortes em vez dos manípulos, nem reestruturara a sua hierarquia de centuriões para dirigir as coortes. Mas Caio Mário fê-lo, na Primavera e Verão do seu primeiro consulado. O manípulo deixava agora de existir, excepto como unidade de parada; tornava-se soberana a coorte.
No entanto, havia desvantagens imprevistas em recrutar um exército de proletários. Os soldados de Roma com posses na sua maioria sabiam ler e escrever, pelo que não tinham dificuldade em reconhecer bandeiras, números, letras e símbolos. O exército de Mário era maioritariamente analfabeto e mal conhecia os números. Sila criou um programa em que cada unidade de oitenta homens que compartilhavam a tenda e o rancho teria pelo menos um homem que soubesse ler e escrever, e que como recompensa da superioridade sobre os seus colegas, teria de ensinar aos companheiros tudo acerca dos números, letras e símbolos, e estandartes, e se possível, a ler e a escrever. Mas os avanços eram lentos; a alfabetização total ainda teria de esperar até que as chuvas de Inverno em África impossibilitassem a campanha.
O próprio Mário criou um motivo de unidade simples e de grande valor emotivo, e garantiu que todas as fileiras fossem doutrinadas com receio supersticioso e reverência dentro deste novo motivo unificador. Deu a cada legião uma bela águia de prata, de asas abertas, sobre um poste prateado muito alto; a águia seria transportada pelo aquilifer, o homem que fosse considerado o melhor exemplar da sua região, exclusivamente vestido com uma pele de leão e uma armadura de prata. A águia, como dizia Mário, era o símbolo de Roma para a legião, e todos os soldados eram obrigados a fazer a jura terrível de que prefeririam morrer a permitir que a águia da legião caísse nas mãos do inimigo.
Era evidente que ele sabia bem o que estava a fazer. Depois de passar metade da vida no exército - e sendo o homem que era - criara opiniões firmes e sabia muito mais sobre os soldados recrutas do que qualquer aristocrata. As suas origens ignóbeis haviam-no colocado numa posição ideal para observar, tal como a sua inteligência superior o colocara numa posição ideal para fazer deduções a partir das suas observações. Os seus feitos haviam sido subestimados e as suas inegáveis capacidades haviam sido usadas quase sempre para o progresso dos seus superiores: Caio Mário tivera muito que esperar até ao primeiro consulado - com tempo mais que suficiente para pensar, pensar, pensar...
A reacção de Quinto Cecílio Metelo à enorme perturbação que Mário provocara em Roma surpreendeu o seu filho, visto que Metelo sempre fora considerado homem racional e controlado. No entanto, quando recebeu a notícia de que tinham dado o seu comando em África a Mário, enfureceu-se em público, chorando e gritando dilacerado, tudo isto no mercado de útica e não na privacidade do seu gabinete, e para grande gáudio da população de útica. Mesmo depois de ter passado o primeiro choque da sua dor e ele ter recolhido a casa, bastava a mera alusão ao nome de Mário para provocar outro acesso de ruidosas lágrimas - bem como um não mais acabar de referências ininteligíveis à Numância, a um trio qualquer e a uns porcos.
A carta que recebeu de Lúcio Cássio Longino, cônsul-eleito sénior, apesar de tudo veio animá-lo muito, e passou dias e dias a organizar a desmobilização das suas seis legiões, tendo obtido o consentimento delas para o realistamento ao serviço de Lúcio Cássio mal chegassem a Itália. Porque, como Cássio lhe dizia na carta, estava decidido a ter muito mais sucessos contra os Germanos e os seus aliados, os Volcos Téctósagos, na Gália Transalpina, do que Mário, o Provinciano, poderia fazer em África,
sem tropas.
Desconhecedor da solução de Mário para o problema (de facto, só viria a conhecê-la ao chegar a Roma), Metelo deixou útica em fins de Março, levando consigo as suas seis legiões. Escolheu ir pelo porto de Adrumetum, mais de cem milhas a sueste de útica, e ficou de mau humor ao saber que Mário chegara à província para assumir o seu comando. Em útica, deixou Públio Rutílio Rufo para receber Mário.
E quando Mário chegou, foi Rutílio que foi esperá-lo ao molhe e lhe entregou formalmente a província.
- Onde está o Suíno? - perguntou Mário, quando seguiam para o palácio do governador.
- Vai a caminho de Adrumetum com as suas legiões e uma terrível disposição - disse Rutílio, suspirando. - Fez uma jura a Júpiter Stator de não te ver nem falar.
- Grande parvo - disse Mário sorrindo. - Recebeste as minhas cartas acerca dos capite censi e das novas legiões?
- Claro. Mas não deixo de desconfiar dos enormes louvores que Aulo Mânho te tem tecido. É um esquema brilhante, Caio Mário - mas quando olhou para Mário, Rutílio não sorriu. - Hão-de fazer-te pagar pela tua temeridade, meu velho amigo. E de que maneira!...
- Não o farão. Eu tenho-os na mão... E pelos deuses, juro-te que é assim que os manterei até morrer! Vou transformar o Senado em pó, Públio Rutílio.
- Não terás êxito. Há-de ser o Senado que acabará por transformar-te em pó.
- Nunca!
E dessa opinião, Rutílio Rufo não podia demovê-lo.
útica estava muito bonita, com os seus edifícios de estuque todos brancos, lavados pelas chuvas de Inverno, uma cidade reluzente e limpa de edifícios baixos e modestos, árvores floridas, um Calor langoroso, um povo de vestes garridas. Os pequenos largos e praças estavam apinhados de estabelecimentos e tabernas; nos centros cresciam árvores frondosas; as pedras da calçada estavam limpas e varridas. Tal como a maior parte das cidades romanas, jónicas e gregas, e mesmo púnicas, tinha um bom sistema de canalizações e esgotos, com banhos públicos para a populaça e bom abastecimento de água, vinda por aqueduto desde as montanhas em declive que a rodeavam no horizonte azul.
- Públio Rutílio, o que vais fazer? - perguntou Mário quando chegaram ao gabinete do governador e se instalaram, divertidos com a forma como os antigos servos de Metelo agora faziam vénias, embaraçados. Gostarias de ficar aqui, como meu legado? Não, ofereci a Aulo Mânho o lugar superior.
Rutílio abanou a cabeça enfaticamente.
- Não, Caio Mário, torno a casa. Como o Suíno se vai embora, o meu mandato acabou, e já tive a minha conta de África. Muito sinceramente, não me apetece ver o desgraçado do Jugurta acorrentado... E agora que estás no comando, é como ele vai acabar. Vou para Roma descansar um pouco, e terei oportunidade de escrever e cultivar amizades.
- E se um dia não muito distante no futuro eu te pedisse para te candidatares ao consulado, como meu colega?
Rutílio lançou-lhe um olhar admirado mas pleno de vivacidade.
- O que andas tu a tramar desta vez?
- Há uma profecia, Rutílio Rufo, segundo a qual serei cônsul de Roma pelo menos sete vezes.
Qualquer outro homem podia ter rido ou troçado, ou apenas ter-se recusado a acreditar. Mas Rutílio Rufo, não: conhecia bem o seu Mário.
- É um grande destino: eleva-te acima dos teus pares, que é coisa que sou demasiado romano para aprovar. Mas se for esse o teu destino, nem tu nem eu podemos contrariá-lo. Se eu gostaria de ser cônsul? Sim, claro que gostaria! Considero ser meu dever enobrecer a minha família. Mas guarda-me para um ano em que precisares realmente de mim, Caio Mário.
- E o que farei - disse Mário, satisfeito.
Quando a notícia da ascensão de Mário ao comando da guerra chegou aos dois reis africanos, Boco assustou-se e seguiu imediatamente para a Mauritânia, deixando Jugurta sem apoio para enfrentar Mário. Na verdade, Jugurta não se sentia mais intimidado com a deserção do sogro do que com a nova posição de Mário; recrutou soldados entre os Getulos e esperou a sua hora, deixando a iniciativa a cargo de Mário.
No final de junho, quatro das suas seis legiões estavam na província romana em África e Mário já se sentia suficientemente satisfeito com os seus progressos para as levar para a Numídia. Concentrando-se em saquear cidades e pilhar herdades e em pequenas batalhas, deu o baptismo de fogo ao seus humildes recrutas e transformou-os num pequeno exército formidável. No entanto, quando Jugurta viu as dimensões da unidade de Roma e se apercebeu das implicações da sua composição com elementos dos capite censi, decidiu arriscar-se a combater e tornar a capturar Cirta.
Mas Mário chegou antes da queda da cidade, não deixando a Jugurta outra hipótese que não fosse a batalha, e por fim os soldados dos capite censi tiveram a oportunidade de confundir os seus críticos romanos. Um Mário radiante pôde escrever a seguir ao Senado, contando que as suas tropas de pobretanas se haviam portado na perfeição, e que lá por não terem bens em Roma, nem por isso haviam lutado com menos coragem ou entusiasmo. Com efeito, o exército de capite censi de Caio Mário derrotou Jugurta tão decisivamente que o próprio Jugurta se viu obrigado a largar o escudo e a lança para conseguir fugir.
No momento em que o rei Boco soube a notícia, enviou uma embaixada a Mário, pedindo autorização para voltar a entrar para a lista de clientes de Roma; e como Mário não respondeu, enviou mais embaixadas. Por fim, Mário consentiu em receber uma deputação, que se apressou a regressar, dizendo ao rei que Mário não estava a nenhum nível interessado em negociar com ele. E Boco ficou a roer as unhas e a meditar por que razão tinha cedido às lisonjas de Jugurta.
Mário estava muito ocupado a retirar a Jugurta todas as milhas quadradas de território númida povoado que pudesse, para que o rei não conseguisse arranjar recrutas ou abastecimentos nos ricos vales dos rios e áreas litorais do reino. E impossibilitou o rei de adquirir proveitos adicionais. Agora, só entre os Getulos e os Garamantes, as tribos berberes do interior, Jugurta podia ter a certeza de encontrar abrigo e soldados, bem como a segurança de que os seus armamentos e tesouros estariam a salvo dos cofres de Roma.
Em junho, Julilla deu à luz uma menina enfermiça de sete meses, e no fim de Quintilis, Júlia gerou um rapaz grande e saudável, nascido após o tempo normal de parto, um irmãozinho para o jovem Mário. Contudo, foi a criança doente de Julilla que sobreviveu e o robusto segundo filho de Júlia que morreu, quando a humidade fétida de Sextilis cravou os seus tentáculos malignos nas colinas de Roma e as febres entéricas se tornaram endémicas.
- Acho bem que seja uma rapariga - disse Sila à mulher -, mas antes de eu partir para África vais voltar a engravidar e desta vez terás um rapaz.
Infeliz por ter dado a Sila uma rapariga choramingas e enjoada, Julilla dedicou-se a fazer um rapaz com todo o entusiasmo. Estranhamente, resistira à sua primeira gravidez e ao parto muito melhor do que a irmã Júlia, embora estivesse magra, doente e constantemente mal disposta. Ao passo que Júlia, mais bem constituída e com melhores defesas emocionais contra as tormentas do casamento e da maternidade, sofreu muito dessa segunda vez.
- Ao menos, temos uma rapariga para casarmos com alguém de quem precisemos, na altura devida - disse Julilla para Júlia no Outono, depois da morte do segundo filho de Júlia, quando Julilla já sabia que esperava outra criança. - Espero que desta vez seja um rapaz - o nariz começou a pingar-lhe; fungou e procurou o lenço de linho.
Ainda entristecida, Júlia não sentia tanta paciência e simpatia pela irmã como antes, e finalmente compreendeu a razão por que a mãe, Márcia, dissera - sombriamente - que Julilla ficara afectada para sempre.
Era engraçado, pensava ela agora, poder-se crescer com uma pessoa sem realmente compreender o que se passava com ela. Julilla estava a envelhecer rapidamente - não fisicamente, nem mesmo mentalmente era mais um processo do espírito, intensamente autodestrutivo. A inanição minara-a de algum modo, deixara-a incapaz de ter uma vida feliz. Ou talvez esta Julilla actual sempre tivesse estado lá, por baixo das risadas e da tolice, dos truques encantadores de menina, que tanto haviam encantado o resto da família.
Preferimos pensar que foi a doença a causadora desta mudança, pensou Júlia com tristeza. Precisamos de encontrar uma causa exterior, porque a única alternativa será admitir que sempre foi fraca.
Ela nunca seria mais do que bonita, a Julilla, com aquela cor mágica de âmbar e mel, os gestos graciosos e as feições perfeitas. Mas agora tinha olheiras sob os olhos enormes, duas rugas já atravessavam o seu rosto entre as bochechas e o nariz, e os cantos da boca já se encontravam virados para baixo. Sim, tinha um ar esgotado, infeliz e inquieto. Aparecera-lhe na voz um débil tom de lamúria e ainda dava enormes suspiros, hábito inconsciente mas muitíssimo irritante. Tal como a sua tendência para fungar.
- Tens vinho? - perguntou Julilla subitamente.
Júlia pestanejou surpreendida, consciente de que estava vagamente escandalizada e descontente consigo mesma por ter uma reacção tão pretensiosa. Afinal, as mulheres agora bebiam vinho! E isso já não era visto como um sinal de decadência moral, excepto nos meios que a própria Júlia achava detestavelmente intolerantes e hipócritas. Mas uma irmã mais nova que nem tem vinte anos de idade e fora criada na casa de Caio Júlio César pedir vinho a meio da manhã sem uma refeição nem a presença de um homem - isso é que era um choque!
- Claro que tenho vinho - respondeu.
- Apetece-me mesmo uma taça - disse Julilla, que se debatera consigo mesma antes de fazer o pedido; Júlia poderia comentar, e era desagradável expor-se à desaprovação da irmã mais velha, mais forte e mais bem sucedida. No entanto, não fora capaz de deixar de pedir. A entrevista era difícil, tanto mais que estava atrasada.
Ultimamente, Julilla estava sem paciência para a família, desinteressada em relação a eles, aborreciam-na. Em especial a tão estimadajúlia, mulher do cônsul, tornando-se em pouco tempo na mais considerada das jovens matronas. Nunca punha um pé em falso, a Júlia. Feliz com o destino que lhe coubera, apaixonada pelo seu horrível Caio Mário, esposa e mulher exemplar. Como era aborrecida.
- Costumas beber vinho de manhã? - perguntou Júlia com o ar mais natural possível.
Um encolher de ombros, uma agitação e tremura nas mãos, um olhar ardente com uma vivacidade que acusava o toque mas se recusava a tomá-lo a sério.
- Sila bebe e gosta de ter companhia.
- Sila? Tráta-lo pelo cognome? Julilla riu.
- Oh, Júlia, és tão antiquada! Claro que o trato pelo cognome! Nós não vivemos dentro do Senado! Hoje em dia toda a gente dos nossos conhecimentos usa o cognome, é chique. Além disso, Sila gosta que eu o trate por Sila: diz que chamarem-lhe Lúcio Cornélio o faz sentir centenário.
- Então devo ser antiquada - disse Júlia, fazendo um esforço para falar com naturalidade. Um sorriso súbito iluminou-lhe o rosto; talvez fosse da luz, mas parecia mais nova do que a irmã, e mais bonita. - Eu tenho uma desculpa! Caio Mário não tem cognome.
Trouxeram o vinho. Julilla encheu uma taça, mas ignorou a garrafa de alabastro que continha água.
-já pensei nisso muitas vezes - disse, e deu um grande gole. Certamente depois de vencer Jugurta arranjará um cognome bastante impressionante. Aquele presumido irritante do Metelo a convencer o Senado a deixá-lo festejar o triunfo e assumir o cognome de Numídico! Numídico devia ter sido guardado para Caio Mário!
- Metelo Numídico - disse Júlia com um respeito meticuloso pelos factos - habilitou-se ao seu triunfo, Julilla. Matou bastantes númidas e trouxe o produto de muitas pilhagens. E quis adoptar o cognome de Numídico e o Senado autorizou-o, foi isso. Além de que Caio Mário diz sempre que o nome do pai lhe basta. Há apenas um Caio Mário, ao passo que há dezenas de Cecílios Metelos. Espera e verás: o meu marido não precisará de se distinguir do rebanho por uma coisa tão artificial como um cognome. O meu marido vai ser o Primeiro Homem de Roma, e só pelas suas capacidades superiores.
Júlia a elogiar pessoas como Caio Mário era bastante enjoativa; os sentimentos de Julilla pelo seu cunhado eram uma mistura de gratidão natural pela sua generosidade e um desprezo adquirido dos seus novos amigos, que o detestavam todos por ele ser um novo-rico, e por isso lhe desprezavam a mulher. Por isso, Julilla voltou a encher a taça e mudou de assunto.
- O vinho não é mau, irmã. Mário tem dinheiro para se tratar bem
- bebeu, mas em sorvos mais pequenos do que a primeira taça. – Estás apaixonada por Mário? - perguntou, percebendo logo que sinceramente não sabia.
Que rubor! Incomodada por sentir que se traíra, Júlia deu uma resposta defensiva.
- É claro que estou apaixonada por ele! E de facto sinto imenso a sua falta. Não deve haver mal nenhum nisso, nem nos teus meios. Não amas Lúcio Cornélio?
- Sim! - disse Julilla, que agora se colocou na defensiva. - Mas não lhe sinto a falta, agora que está ausente, garanto-to! Porque se ele estiver longe por dois ou três anos, não voltarei a engravidar mal este nasça
- fungou. - Andar por aí com um talento a mais em relação ao peso que devia ter não é a minha ideia de felicidade. Gosto de flutuar como uma pena, detesto sentir-me ”pesada”! E desde que casei, ou tenho estado grávida ou a restabelecer-me da gravidez. Bah!...
Júlia, dominou-se.
- É teu dever ficares grávida - disse com frieza.
- Porque será que as mulheres nunca podem escolher os seus deveres? - perguntou Julilla, começando a sentir-se piegas.
- Oh, não sejas ridícula! - exclamou Júlia asperamente.
- É um modo terrível de passar a vida - disse Julilla, revoltada, sentindo finalmente o efeito do vinho. E sentiu-se mais animada; fez um esforço e sorriu. - Não vamos discutir, Júlia! já é suficientemente mau a mamã não conseguir ser delicada comigo.
E era verdade, reconheceu Júlia; Márcia nunca perdoara a Julilla a sua conduta com Sila, embora a razão disso continuasse a ser um mistério. A rispidez do pai durara apenas alguns dias, após o que tratou Julilla com todo o afecto e alegrando-se com o início da sua recuperação. Mas a rispidez da mãe persistira sempre. Pobre Julilla! Sila gostaria mesmo que ela bebesse vinho com ele de manhã, ou seria uma desculpa? Sila... Que falta de respeito!
Sila chegou a África no fim da primeira semana de Setembro com as duas últimas legiões e os dois mil magníficos soldados de cavalaria celtas da Gália Italiana. Encontrou Mário a preparar uma expedição à Numídia, e foi recebido com alegria e posto a trabalhar imediatamente.
- Pus Jugurta a fugir - disse Mário, radiante -, mesmo sem ter o meu exército completo. Agora que estás aqui, é que vamos ter acção a sério, Lúcio Cornélio.
Sila entregou-lhe cartas de Júlia e de Caio Júlio César, e a seguir arranjou coragem para lhe apresentar condolências pela morte do segundo filho, que Mário nem sequer tinha visto.
- Peço-te que aceites os meus pêsames pelo falecimento do teu pequeno Marco Mário - disse ele, sentindo-se mal por saber que a sua filha Cornélia Sila, parecida com um rato, sobrevivia teimosamente.
Uma sombra perpassou o rosto de Mário e foi absolutamente afastada.
- Agradeço-te, Lúcio Cornélio. Há tempo para fazer mais filhos e tenho o jovem Mário. Quando partiste, a minha mulher e o meu filho estavam bem?
- Muito bem. Tal como todos os júlios Césares.
- Ainda bem! - As considerações privadas foram arquivadas; Mário pôs o seu correio numa consola e foi para a mesa de trabalho, sobre a qual se encontrava um enorme mapa pintado sobre um couro de vitela especialmente tratado. - Chegaste mesmo a tempo de ter uma amostra da Numídia em primeira mão. Partimos para Capsa dentro de oito dias os seus vivos olhos castanhos observaram o rosto de Sila, de pele manchada e a descamar-se. - Sugiro, Lúcio Cornélio, que explores os mercados de útica até encontrares um chapéu forte com uma aba o mais larga que possas. É óbvio que andaste por Itália todo o Verão. Mas o sol da Numídia é ainda mais quente e duro. Vais abrasar-te que nem uma mecha, por estes lados.
Era verdade; a compleição de um branco imaculado, até aí defendida por uma vida passada quase sempre dentro de casa, sofrera durante os meses de viagens por Itália exercitando as tropas e aprendendo o mais sub-repticiamente possível. O orgulho não lhe permitira abrigar-se à sombra enquanto os outros encaravam a luz, e o orgulho ditara-lhe, que usasse o elmo ático do seu alto cargo, que não contribuia em nada para lhe proteger a pele. O pior da queimadura já tinha passado mas ele possuía tão pouca pigmentação que a cor da pele não escurecia, e depois de estar curado essas áreas ficavam tão brancas como antes. Os braços tinham tido melhor sorte do que o rosto; era possível que ao fim de bastante exposição, braços e pernas conseguissem resistir ao ataque do sol. Mas a cara? Essa nunca.
Mário pressentiu um pouco disso quando sugeriu a Sila o uso do chapéu; sentou-se e apontou para uma bandeja com vinho.
- Lúcio Cornélio, por um motivo ou por outro, tenho sido ridicularizado desde que me alistei nas legiões, aos dezassete anos. Ao princípio, era demasiado magro e baixo, depois por ser demasiado alto e desajeitado. Não sabia grego. Era um italiano e não romano. Por isso, entendo a humilhação que sentes devido à tua pele sensível e branca. Mas é mais importante para mim, teu comandante, que mantenhas a boa saúde e o bem-estar físico, do que apresentares o que consideras uma boa imagem aos teus semelhantes. Arranja esse chapéu! Amarra-o com um lenço de mulher, ou com fitas, ou um fio de ouro e púrpura, se for a única coisa que encontrares. E ri-te deles! Cultiva isso como uma excentricidade. E em breve descobrirás que já ninguem repara em ti. Também te aconselho a arranjares qualquer tipo de unguento ou creme bastante espesso para diminuir a quantidade de sol que a tua pele recebe e espalha-o. E se o creme ideal cheirar a perfume, que mal tem?
Sila fez um sinal afirmativo e sorriu.
- Tens razão, é um conselho excelente. Farei o que me disseste, Caio Mário.
- Muito bem!
O silêncio tombou; Mário estava irritável, irrequieto, mas não tinha nada a ver com Sila, como compreendeu o seu questor. E de repente, Sila entendeu a razão - não sentira ele o mesmo? Roma inteira não sentia o mesmo?
- Os Germanos - disse Sila.
- Os Germanos - disse Mário, e estendeu a mão até à sua taça de vinho com muita água. - De onde vêm eles, Lúcio Cornélio, e para onde se dirigem?
Sila estremeceu.
- Dirigem-se para Roma, Caio Mário. É isso que todos sentimos nos ossos. Donde vêm, não sabemos. Uma manifestação de Nemésis, talvez. Tudo o que sabemos é que não têm pátria. O que tememos é que tencionem tornar sua, a nossa.
- Seriam loucos se não o desejassem - disse Mário com tristeza. Estas incursões à Gália são tentativas, Lúcio Cornélio: estão a ganhar tempo, a arranjar coragem. Podem ser bárbaros, mas até o bárbaro mais insignificante sabe que se quiser fixar-se perto do mar Central, primeiro tem de tratar com Roma. Os Germanos vão atacar.
- Estou de acordo. Mas tu e eu não estamos sós. É esse o sentimento geral duma ponta a outra de Roma. Uma preocupação, pavorosa e um medo pior ainda em relação ao inevitável. E as nossas derrotas não ajudam nada - disse Sila. - Tudo conspira para ajudar os Germanos. Há quem, mesmo no Senado, ande a falar da nossa destruição, como se ela já tivesse acontecido, E há os que falam dos Germanos como um julgamento divino.
Mário suspirou.
- Não é um julgamento mas sim um teste - pousou a taça e cruzou os braços. - Diz-me o que sabes de Lúcio Cássio. Os despachos oficiais não me dão motivo para pensar, são tão vagos.
Sila fez uma careta.
- Foi ele que levou as seis legiões que regressaram de África com Metelo... A propósito, que tal o Numídico?... E fê-las marchar pela Via Domícia até Narbona, que parece ter alcançado cerca do início de Quintilis, ao fim de oito semanas na estrada. Eram tropas capazes e podiam ter avançado mais rapidamente, mas ninguém culpa Lúcio Cássio por ter sido benévolo para elas no início do que promete ser uma campanha árdua. Graças à determinação de Metelo Numídico em não deixar um só homem em África, todas as legiões de Cássio tinham duas coortes a mais, o que significa que ele tinha perto de quarenta mil soldados de infantaria e uma grande unidade de cavalaria, que aumentou com gauleses dóceis recolhidos pelo caminho: ao todo, cerca de três mil. Um grande exército. Mário resmungou.
- Eram bons homens.
- Eu sei. Com efeito, vi-os quando marchavam através do vale do Pó até ao desfiladeiro do monte Genebra. Nessa altura, estava eu a recrutar a cavalaria. E embora talvez te custe a acreditar, Caio Mário, nunca vi antes um exército romano a marchar, fileira após fileira, todos devidamente armados e equipados e com um carregamento decente. Nunca mais hei-de esquecer do espectáculo! - suspirou. - De qualquer modo... parece que os Germanos tinham chegado a um entendimento com os Volcos Tectósagos, que dizem ser seus parentes e lhes haviam dado terras a norte e a leste de Tolosa.
- Admito que os Gauleses são quase tão misteriosos como os Germanos
- disse Mário, inclinando-se para a frente -, mas de acordo com os relatórios, os Gauleses e os Germanos não pertencem à mesma raça. Como poderiam os Volcos Tectósagos chamar parentes aos Germanos? Afinal, nem sequer são Gauleses de Longos Cabelos: vivem à volta de Tolosa desde que tomámos a Espanha, e falam grego e negoceiam connosco. Então, porquê?
- Não sei. Ninguém sabe, julgo eu - disse Sila.
- Desculpa, Lúcio Cornélio, interrompi-te. Continua.
- Lúcio Cássio seguiu a partir de Narbona, na costa, ao longo da nossa estrada decente construída por Cneu Domicio, e pos as suas tropas em posição de combate perto de Tolosa. Os Volcos Tectósagos tinham-se aliado aos Germanos e por isso enfrentávamos um exército poderoso. Contudo, Lúcio Cássio levou-os a combate no local certo e derrotou-os. Como bárbaros típicos que são, não se demoraram na zona após a derrota. Germanos e Gauleses fugiram de Tolosa e das nossas vidas.
Fez uma pausa, franzindo as sobrancelhas, bebeu mais vinho, pousou a taça.
- Soube isto pelo próprio Popílio Lenate. Levaram-no de Narbona de barco antes de eu partir.
- Desgraçado, vai ser o bode expiatório do Senado! - exclamou Mário.
- Claro - disse Sila, elevando as sobrancelhas cor de gengibre.
- Os despachos dizem que Cássio perseguiu os bárbaros fugitivos retorquiu Mário.
Sila fez um sinal afirmativo.
- Foi o que ele fez. Eles tinham descido ambos os bancos do Garona em direcção ao oceano... Quando Cássio os viu deixar Tolosa, estavam numa desordem total, como era de esperar. Acho que ele os desprezou, os tratou como bárbaros imbecis pois nem se incomodou a mandar formar o exército para a perseguição.
- E não deu às legiões ordem de marcha defensiva? - perguntou Mário, incrédulo.
- Não. Tratou a perseguição como uma vulgar marcha de exercício, e levou tudo consigo, incluindo o produto das pilhagens quando os Germanos partiram, deixando para trás os carros. Como sabes, a nossa estrada romana termina em Tolosa, pelo que foi muito lento o avanço para sul do Garona em território estrangeiro, e o que preocupava Cássio acima de tudo era a protecção da coluna de carga.
- Por que não a deixou em Tolosa? Sila encolheu os ombros.
- Aparentemente, não acreditou que os Volcos Tectósagos ficassem para trás, em Tolosa. De qualquer modo, quando já tinha penetrado a sul do Garona até Burdígala, os Germanos e Gauleses haviam tido quinze dias para recuperar da tareia. Entraram em Burdígala, que parece que é muito maior que o oppidium habitual da Gália e extremamente fortificado, para não dizer recheado de armamentos. As tribos locais não queriam um exército romano nas suas terras, e por isso ajudavam os Germanos e os Gauleses de todas as formas possíveis, desde contribuir com tropas até oferecer-lhes Burdígala. E então, montaram uma emboscada muito inteligente a Lúcio Cássio.
- Que parvo! - disse Mário.
- O nosso exército tinha acampado perto, a leste de Burdígala, e quando Cássio decidiu avançar para atacar o próprio oppidium, deixou a coluna de carga para trás, no acampamento, à guarda de cerca de metade de uma legião... perdão, quero dizer cinco coortes... Um dia destes, heide acertar com os termos!
Mário conseguiu sorrir.
- Hás-de acertar, Lúcio Cornélio, garanto-to. Mas prossegue.
- Parece que Cássio confiava plenamente que não encontraria resistência organizada, por isso mandou marchar o nosso exército em direcção a Burdígala sem sequer cerrar fileiras ou fazer os homens marchar em quadrado, ou mesmo enviar batedores. Todo o nosso exército caiu numa armadilha perfeita, e os Germanos e os Gauleses aniquilaram-nos literalmente. O próprio Cássio tombou no campo de batalha, tal como o seu legado sénior. Popílio Lenate estima que morreram ao todo trinta e cinco mil soldados romanos em Burdígala - disse Sila.
- Popílio Lenate tinha sido deixado no comando, guardando a carga e o acampamento? - perguntou Mário.
- Exacto. Ele ouviu o barulho vindo do campo de batalha, claro, ouvia-se a milhas de distância. Mas só teve as primeiras notícias da catástrofe quando apareceu um punhado dos nossos homens buscando abrigo no acampamento. E apesar de ter esperado imenso tempo, não apareceram mais nenhuns. Em vez deles, vieram os Germanos e os Gauleses. Ele disse que eram milhares e milhares e milhares, cercando o acampamento, tão compactos como uma praga de ratos na eira, Era uma massa de bárbaros num frenesi de vitória, fora de si, brandindo cabeças romanas nas lanças e berrando cânticos de guerra, todos eles gigantes, de cabelos hirsutos com barro, ou pendendo dos ombros em grandes tranças louras. Um espectáculo aterrador, segundo disse Lenate.
- E que iremos ver muitas vezes mais, no futuro, Lúcio Cornélio disse Mário, sombriamente. - Continua.
- É verdade que Lenate podia ter-lhes resistido. Mas para quê? Pareceu-lhe mais sensato salvar o miserável resto do nosso exército, para nosso uso futuro, se possível. Hasteou a bandeira branca e foi ter com os chefes deles, de lança invertida e de bainha vazia. E eles pouparam-no e pouparam todos os nossos sobreviventes. Então, para nos mostrar como nos achavam ambiciosos, até nos deixaram o carregamento! Tudo o que levaram foram as suas riquezas, que Cássio tinha pilhado - respirou. - No entanto, fizeram Popilio Lenate e os outros submeter-se ao jugo. Após o que os levaram até Tolosa, para terem a certeza de que eles seguiam para Narbo.
- Submetemo-nos demasiadas vezes ao jugo nos últimos anos - disse Mário, cerrando os punhos.
- Bem, foi certamente essa a razão principal da fúria geral de indignação em Roma contra PoPílio Lenate - disse Sila. - Vai ter de responder a acusações de traição, mas pelo que me disse, desconfio que fique para o julgamento. Penso que planeou juntar todos os seus valores transportáveis e entrar logo em exílio voluntário.
- É a atitude adequada, pelo menos assim salvaguardará qualquer coisa da ruína. Se esperar pelo julgamento, o Estado confiscar-lhe-á tudo
- Mário deu uma palmada no mapa. - Mas o destino de Lúcio Cássio não será o nosso, Lúcio Cornélio! Por meios lícitos ou ilícitos, havemos de arrastar a cara de Jugurta na lama... E então, tornaremos a Roma e pediremos um mandato do Povo para combater os Germanos!
- A isso, Caio Mário, quero eu, brindar! - disse Sila, levantando a taça.
A expedição contra Capsa teve um sucesso para além de todas as expectativas, mas - como todos admitiram - apenas graças ao modo brilhante como Mário conduziu a campanha. O seu delegado Aulo Mânho, em cuja cavalaria Mário não confiava por ter nas suas fileiras alguns númidas que diziam ser homens de Roma e de Gauda, convenceu a cavalaria de que Mário ia numa expedição de pilhagem. Por isso, a notícia que Jugurta recebeu era completamente enganosa.
E quando Mário apareceu com o seu exército em frente a Capsa, o rei ainda o imaginava a milhas de distância; ninguém comunicara ajugurta que os romanos se haviam mantido a água e cereais, para atravessar os baldios áridos entre o rio Bágradas e Capsa. Quando a fortaleza ostensivamente inexpugnável se viu rodeada por um mar de elmos romanos, Os seus habitantes renderam-se sem luta. Mas mais uma vez, Jugurta conseguiu escapar.
Caio Mário decidiu que era tempo de dar à Numídia - e especialmente aos Getulos - uma lição. E embora Capsa não lhe tivesse oferecido resistência, autorizou os seus soldados a saqueá-la, violentá-la e queimá-la; todos os adultos, homens e mulheres, foram passados à espada. As suas riquezas, e o enorme tesouro de Jugurta, foram carregados em carros; depois, Mário conduziu o seu exército a salvo para fora da Numídia até ao quartel de Inverno perto de útica, muito antes de começarem as chuvas.
As suas tropas de capite censi haviam merecido o repouso. E deu-lhe um enorme prazer escrever uma carta branda ao Senado (para ser lida por Caio Júlio César) louvando o espírito, a coragem e a moral do seu exército de capite censi; não resistiu a acrescentar que depois da estratégia espantosamente má de Lúcio Cássio Longino, seu colega sénior no consulado, era certo que Roma precisaria de mais exércitos com membros dos capite censi.
Dizia Rutílio Rufo numa carta que escreveu a Caio Mário, nos fins do ano:
Oh! Quantos rostos ruborizados! O teu sogro bradou a tua missiva num tom estentóreo, de tal forma que mesmo os que tapavam os ouvidos eram obrigados a ouvir. O Metelo Suíno - também agora conhecido por Metelo Numídico - estava com um ar homicida, E teria razões para isso - com o seu antigo exército morto ao longo do Garona e os teus heróis esfarrapados bem vivos.
- Não há justiça! - ouviram-no dizer a seguir, ao que eu me virei e respondi, muito gentilmente: - É verdade, Quinto Cecílio. Porque se houvesse justiça, não te chamarias Numídico!
- Ficou furioso, mas Escauro desatou a rir, claro está. Digas o que disseres acerca do Escauro, de todos os homens que conheço, é o que tem o mais vivo sentido de humor, para não falar do sentido do ridículo. Como é coisa que já não posso afirmar de nenhum dos seus amigos íntimos, por vezes chego a pensar se não escolherá os amigos de maneira que se possa rir em segredo das atitudes que tomam.
O que me espanta, Caio Mário, é o vigor da tua estrela da fortuna. Bem sei que não estavas preocupado, mas posso dizer-te agora que não pensava que tivesses hipótese de ver o teu comando de África prorrogado até ao próximo ano. E o que acontece? Lúcio Cássio é morto com o exército maior e mais experiente de Roma, deixando o Senado e a sua facção de controlo sem poder opor-se a ti. O teu tribuno da plebe, Mancino, foi à Assembleia da Plebe e obteve um plebiscito a teu favor, alargando o teu governo da Província de África sem qualquer dificuldade. O Senado ficou em silêncio, sendo demasiado evidente, até mesmo para eles, que vais ser necessário. Porque é um lugar que nos últimos tempos se tornou muito desagradável. Paira sobre ela a ameaça dos Germanos como um pano mortuário e há muitos que dizem que ninguém será capaz de evitar essa destruição. - Onde estão os Cipiões Africanos, os Emílios Paulos, os Cipiões Emilianos? - perguntam eles. Mas tu tens um grupo leal de seguidores dedicados, Caio Mário, e desde a morte de Cássio dizem cada vez mais alto que és o homem que chegará e virará maré dos Germanos. Entre eles, encontra-se o delegado acusado de Burdígala, Caio Popilio Lenate.
Visto que és um provinciano atrasado italiano que não sabe grego, vou contar-te uma pequena história.
Era uma vez um rei muito mau eperverso da Síria chamado Antíoco. Como ele não era o primeiro rei da Síria a chamar-se Antíoco, nem o mais importante (seu pai arrogava-se a distinção de chamar-se Antíoco, o Grande), tinha um número a seguir ao nome, Era Antíoco IV, o quarto rei Antíoco da Síria. Embora a Síria fosse um reino abastado, o rei Antíoco IV cobiçava o reino vizinho do Egipto, onde os seus primos Ptolomeu Filómetor, Ptolomeu Evérgeta da Grande Barriga e Cleópatra (sendo a segunda Cleópatra, tinha também um número após o nome, e era conhecida como Cleópatra II) reinavam em conjunto. Gostaria de poder dizer que reinavam em harmonia, mas tal não acontecia. Irmãos e irmã, marido e mulher (sim, nos reinos orientais o incesto é permitido), lutavam entre si há anos e quase haviam conseguido arruinar o país belo e fértil do grande rio Nilo. Por isso, quando o rei Antíoco IV da Síria decidiu conquistar o Egipto, pensou que seria fácil, devido às querelas dos seus primos, os dois Ptolomeus e Cleópatra II.
Mas no momento em que virou as costas à Síria, alguns incidentes desagradavelmente sediciosos obrigaram-no a voltar à pátria para cortar meia dúzia de cabeças, desmembrar alguns corpos, tirar uns dentes e provavelmente abrir alguma barriga. E passaram quatro anos até as cabeças, braços, pernas, dentes e barrigas terem sido arrancados aos seus donos e o rei Antíoco poderpartir uma segunda vez para conquistar o Egipto. Dessa vez, a Síria ficou muito quieta e obediente durante a sua ausência, e o rei Antíoco invadiu o Egipto, capturou Pelúsio, marchou ao longo do Delta até Mênfis, conquistou-a, e a seguir começou a marchar para norte, para o outro lado do Delta, em direcção a Alexandria.
Como tinham arruinado o país e o exército, os irmãos Ptolomeus e a sua mulher-irmã, Cleópatra II, não tiveram outro remédio senãopedir auxílio a Roma contra o rei Antíoco IV, pois Roma era a nação melhor e mais importante de todas, e a heroína de todos. Em auxílio do Egipto, o Senado e o Povo de Roma (mais de acordo então do que agora imaginaríamos possível - pelo que dizem os livros de história) enviaram o seu nobre e corajoso Caio Popílio Lenate. Qualquer outro país teria fornecido ao seu herói um exército completo, mas o Senado e o Povo de Roma apenas deram a Caio Popílio Lenate doze lictores e dois clérigos. No entanto, como era uma missão ao estrangeiro, os lictores foram autorizados a vestiras túnicas vermelhas e a pôr os machados nos seus feixes de varas, pelo que Caio Popílio Lenate não estava totalmente desprotegido. Partiram para Alexandria num pequeno barco, e chegaram a Alexandria enquanto o rei Antíoco IV marchava para norte do afluente canópico do Nilo em direcção à grande cidade onde se recolhiam os Egípcios.
De toga debruada a púrpura e precedido pelos seus doze lictores de vestes carmim, todos transportando os machados e os seus feixes de varas, Caio Popílio Lenate saiu de Alexandria pela Porta do Sol, e seguiu para leste, já não era novo e caminhava apoiado na sua vara alta, num passo tão plácido como o seu destino. Como só os valentes e heróicos e nobres Romanos construíam estradas decentes, em breve ele caminhava pela areia, Mas isso deteve Caio Popílio Lenate? Não! Continuou a caminhar até perto do enorme hipódromo no qual os A lexandrinos gostavam de assistir a corridas de cavalos, deparou com um muro de soldados sírios e teve de parar.
O rei Antíoco IV da Síria avançou ao encontro de Caio Popílio Lenate.
- Roma não tem nada a ver com o Egipto! - disse o rei, de rosto horrivelmente franzido.
- A Síria também não tem nada a ver com o Egipto - contrapôs Caio Popílio Lenate, sorrindo amável e serenamente.
- Regressa a Roma - exclamou o rei.
- Regressa à Síria - replicou Caio Popílio Lenate. E nenhum deles çe moveu uma polegada.
- Estás a ofender o Senado e o Povo de Roma - disse Caio Popílio Lenate depois de olhar o rosto feroz do rei. - Mandaram-me fazer-te voltar à Síria. O rei riu imenso.
- E como vais fazer-me voltar? - perguntou, - Onde está o teu exército?
- Não preciso de nenhum exército, rei A ntíoco IV - respondeu Caio Popilio Lenate. - Tudo o que Roma é, foi e será, encontra-se aqui diante de ti neste momento. Eu represento tanto Roma como o seu maior exército. E é em nome de Roma que te repito: regressa a casa!
- Não! - disse o rei Antíoco IV.
Então, Caio Popílio Lenate deu um passo em frente, e tranquilamente, descreveu com a vara um círculo à volta da pessoa do rei A ntíoco IV, que se viu dentro do círculo de Caio Popílio Lenate.
- Antes de saíres deste círculo, rei Antíoco IV, aconselho-te a repensar - disse Caio Popílio Lenate.
- E quando saíres, vai para leste e volta para a Síria.
O rei não disse nada: nem se mexeu. Caio Popílio Lenate não disse nada, nem se mexeu. Como Caio Popílio Lenate era um romano e não tinha necessidade de esconder o rosto, a sua contenção suave e serena era cheia de aparato. Mas o rei Antíoco IV ocultava o rosto atrás de uma barba postiça encaracolada e armada, e nem assim conseguiu esconder a sua ira. O tempo passou. E então, sempre dentro do círculo, o poderoso rei da Síria virou-se para leste e saiu do círculo em direcção ao Oriente, e marchou para a Síria com todos os seus soldados.
Mas a caminho do Egipto, o rei Antíoco invadira e conquistara a ilha de Chipre, que pertencia ao Egipto. O Egipto precisava de Chipre, porque daí retirava madeira para os seus barcos e edifícios, e cereais e cobre. Por isso, depois de deixar os rejubilantes Egípcios em Alexandria, Caio Popílio Lenate navegou para Chipre, onde encontrou um exército sírio de ocupação.
- Regressem a casa. E ele regressou.
O próprio Caio Popilio Lenate tornou a Roma, onde comunicou, muito suave, serena e simplesmente que mandara o rei Antíoco IV voltar à Síria e salvara o Egipto e a Síria dum destino cruel. Gostaria de acabar a minha pequena história dizendo-te que os Ptolomeus e a sua irmã, Cleópatra II, viveram - e governaram - felizes para todo o sempre, mas tal não aconteceu. Continuaram lutando entre si, e matando alguns parentes próximos, e a arruinar o país
Ouço-te perguntar por todos os deuses, por que motivo estou a contar-te histórias para crianças. É simples, meu caro Caio Mário, Quantas vezes ouviste, sentado ao colo da tua mãe, a história de Caio Popílio Lenate e do círculo à volta do rei da Síria? Bem, talvez no Arpino as mães não contem essa. Mas em Roma é clássica. Todas as crianças romanas, e de todas as classes, ouvem a história de Caio Popílio Lenate e do círculo à volta dos pés do rei da Síria.
Então, pergunto-te, como podia o bisneto do herói de A lexandria ir para o exílio sem se arriscar a um julgamento? Ir para o exílio voluntário é admitir a culpa - e parece-me que o nosso Caio Popílio Lenate fez o que era sensato em Burdígala. O desfecho disto foi que o nosso Popilio Lenate ficou e submeteu-se a julgamento.
O tribuno da plebe Caio Célio Cáldio (agindo a mando de um conluio que ficará incógnito - mas podes adivinhar um conluio decidido a transferira culPa de Burdígala para outros ombros que não os de Lúcio Cássio, naturalmente) jurou que havia de ver Lenate condenado. No entanto, como o único tribunal especial de traições que temos se limita àqueles que tratam de Jugurta, o julgamento deve de ter lugar na Assembleia Centurial. Manifestamente público, com todos os porta-vozes das centúrias a gritar o veredicto da centúria para toda a gente ouvir ”CONDEMNO!” ”ABSOLVO!” Quem, depois de ter ouvido a história de Caio Popílio Lenate e do círculo à volta do rei da Síria em criança, ousaria gritar ”CONDEMNO!”
Mas isso deteve Cáldio? Com certeza que não. Propôs a seguir um decreto na Assembleia da Plebe, que alargava a votação secreta das eleições à votação dos julgamentos de traição. Desse modo, as Centúrias chamadas a votar podiam ter a certeza de que as opiniões não eram conhecidas. O decreto foi aprovado: tudo parecia correr bem.
E no início do mês de Dezembro, Caio Popílio Lenate foi julgado por traição na Assembleia Centurial. A votação foi secreta, tal como Cáldio queria. Mas tudo o que alguns de nós fizemos foi segredar aos ouvidos do júri gigantesco: Era uma vez um ex-cônsul nobre e corajoso chamado Caio Popílio Lenate... E foi tudo.
Quando finalmente contaram os votos, todos disseram: ”ABSOLVO!” Por isso poderís dizer que se se fez justiça foi graças à história de crianças.
DURANTE O CONSULADO DE QUINTO SERVÍLIO CEPIãO E CAIO ATÍLIO SERRANO PÚBLIUS RUTÍLIUS Quando Quinto Servílio Cepião recebeu o mandato para marchar contra os Volcos Tectósagos da Gália e os seus convidados germanos agora alegremente estabelecidos perto de Tolosa - estava plenamente convencido de que iria recebê-lo. Isso aconteceu no primeiro dia do Ano Novo, durante a sessão do Senado no templo de júpiter Optimus Maximus, após a cerimónia de posse. E Quinto Servílio Cepião, fazendo o seu primeiro discurso, anunciou à Assembleia apinhada que não usaria o novo tipo de exército romano.
- Vou usar os soldados tradicionais de Roma e não os pobres dos capite censi - exclamou, no meio de risos e aplausos.
Era evidente que havia senadores presentes que não se alegraram; Caio Mário não estava sozinho num Senado totalmente inimigo. Um bom número de membros de segunda linha eram suficientemente esclarecidos para ver a lógica por detrás da posição contra a opinião entrincheirada, e mesmo entre as Famílias Importantes havia homens de pensamento independente. Mas era o conluio de conservadores que se sentava na fila da frente da Assembleia rodeando a pessoa de Escauro Princeps Senatus que ditava a orientação senatorial; quando eles aplaudiam, a Assembleia aplaudia, e quando votavam numa certa direcção, a Assembleia votava na mesma direcção.
Era a este conluio que pertencia Quinto Servílio Cepião e foi a actividade deste conluio como lobby que incitou os Pais Conscritos a autorizar um exército de oito legiões completas para Quinto Servílio Cepião ensinar aos Germanos que não eram bem-vindos às terras do mar Central, e aos Volcos Tectósagos de Tolosa que não compensava acolher Germanos.
Cerca de quatro mil dos soldados de Lúcio Cássio haviam regressado em condições de servir, mas quase todos, excepto alguns não-combatentes, tinham perecido com as tropas, e a cavalaria que sobrevivera regressara à sua terra natal, levando consigo os cavalos e os não-com batentes, Por isso, Quinto Servílio Cepião enfrentava a tarefa de encontrar 41000 soldados de infantaria, mais 12 000 não-combatentes livres, mais 8000 escravos não-combatentes, mais 5000 soldados de cavalaria e 5000 auxiliares de cavalaria não-combatentes. Tudo isto numa Itália desnudada de homens que preenchessem as qualificações de posse, fossem eles de origem romana, latina ou italiana.
As técnicas de recrutamento de Cepião eram surpreendentes. Na verdade, ele próprio não participava nelas, nem sequer se incomodava em saber como arranjar os homens; pagava a um grupo e deixava tudo a cargo do seu questor, enquanto se dedicava a outras coisas mais dignas de um cônsul. As tropas eram cruelmente forçadas. Os homens eram alistados não só contra o seu consentimento, mas como vítimas de rapto, e os veteranos eram arrastados à força dos seus lares. Era levado o filho de catorze anos e aspecto maduro de um pequeno agricultor, tal como o seu avô jovial de sessenta anos. E se essa família não possuísse dinheiro para armar e equipar os seus membros compelidos a alistarem-se, havia alguém por perto que escrevia o preço do equipamento e tomava posse da pequena propriedade como pagamento; Quinto Servílio Cepião e os seus apoiantes adquiriram uma grande extensão de terras. Quando, mesmo assim, nem os cidadãos romanos nem os latinos conseguiram fornecer homens suficientes, os Aliados Italianos passaram a ser implacavelmente perseguidos.
Mas no fim, Cepião lá arranjou os seus quarenta e um mil soldados de infantaria e doze mil homens livres não-combatentes do modo tradicional, pelo que o Estado não teve de pagar as suas armas, armaduras ou equipamento; e a preponderância de legiões de auxiliares dos Aliados Italianos colocou o peso financeiro da manutenção às costas dos Aliados Italianos em vez de Roma. Consequentemente, o Senado concedeu a Cepião um voto de agradecimento e teve todo o prazer em abrir a bolsa para pagar soldados de cavalaria da Trácia e das duas Gálias. Enquanto Cepião adquiria um ar cada vez mais importante, os elementos conservadores de Roma falavam dele em termos laudatórios sempre e onde quer que pudessem.
As outras coisas de que Cepião tratou pessoalmente enquanto os seus grupos de pressão percorriam a península de Itália tinham a ver com a recuperação do poder do Senado; de uma forma ou doutra, o Senado estava a sofrer desde o tempo de Tibério Graco, quase trinta anos antes. Primeiro Tibério Graco, depois Fúlvio Flaco, a seguir Caio Graco, e depois deles, uma mistura de Homens Novos e nobres reformadores tinham reduzido a participação senatorial aos tribunais principais e à elaboração de leis.
Se não fossem os recentes ataques de Caio Mário aos privilégios senatoriais, era possível que Cepião tivesse sido menos zeloso e determinado a pôr as coisas no seu lugar. Mas Mário provocara uma grande irritação, e o resultado durante as primeiras semanas do consulado de Cepião era um revés desanimador para a Plebe e os cavaleiros que controlavam a Plebe.
Sendo patrício, Cepião reuniu a Assembleia do Povo, na qual podia entrar, e forçou a aprovação de um decreto que retirava o tribunal de extorsão aos cavaleiros, que o haviam recebido de Caio Graco; uma vez mais, os júris do tribunal de extorsão seriam preenchidos apenas com Pais Conscritos, do qual se podia esperar que protegesse os seus. Foi uma batalha amarga na Assembleia do Povo, com o belo Caio Mémio na chefia de um grupo forte de senadores que se opunham ao decreto de Cepião. Mas Cepião acabou por vencer.
E depois de ter vencido, em finais de Março, o cônsul sénior comandou oito legiões e uma grande unidade de cavalaria em direcção a Tolosa, cheio de sonhos não tanto de glória como de um tipo de gratificação mais pessoal. Porque Quinto Servílio Cepião era um verdadeiro Servílio Cepião, o que significava que a oportunidade de aumentar a sua fortuna durante um mandato de governador era muito mais aliciante do que a fortuna meramente militar. Havia sido pretor-governador na Espanha Ulterior, quando Cipião Nasica recusara o lugar alegando que não era de confiança, e saíra-se muito bem. Agora que era cônsul-governador, esperava sair-se ainda melhor.
Se fosse possível em termos de rotina enviar tropas de Itália para Espanha por mar, Cneu Domício não teria precisado de abrir uma via terrestre ao longo da costa da Gália Transalpina; os ventos predominantes e as correntes marítimas tornavam o transporte por mar demasiado arriscado. Por isso, as legiões de Cepião, tal como as de Lúcio Cássio no ano anterior, foram obrigadas a percorrer a pé os milhares de milhas da Campânia até Narbona. Na verdade, as legiões não se importavam de caminhar; todos eles detestavam e temiam o mar, e receavam mais a ideia de cem milhas por mar do que a realidade de mil milhas de caminhada. Porque os seus músculos haviam sido preparados desde a infância para caminhadas rápidas e infindáveis, e caminhar era a forma de locomoção mais confortável.
As legiões de Cepião demoraram pouco mais de setenta dias a fazer a viagem desde a Campânia até Narbona, o que significa que haviam feito uma média de quinze milhas diárias, embaraçados como iam não só por uma enorme coluna de carga mas também pelos muitos animais e viaturas e escravos que o soldado tradicional romano sabia que poderia transportar consigo, para lhe assegurar o conforto.
Em Narbona, um pequeno porto de mar que Cneu Domício Aenobarbo tinha reconstruído para servir as necessidades de Roma, o exército descansou apenas o tempo de recuperar da marcha, mas não o suficiente para voltar a amolecer. No início do Verão, Narbona era um lugar encantador, com as suas águas cristalinas cheias de camarões, lagostins, caranguejos grandes e peixes de todas as espécies. E no lodo das piscinas de água salgada que rodeavam a foz do Átax e do Ruscinão havia não apenas ostras mas também salmonetes. De todos os peixes que as legiões de Roma haviam catalogado por todo o mundo, os salmonetes eram considerados os mais deliciosos. Redondos e espalmados, com os dois olhos do mesmo lado das suas tolas cabeças estreitas, escondiam-se no lodo e tinham de ser procurados, e eram espetados quando tentavam voltar a esconder-se no lodo.
O legionário não ficava com os pés cansados. Estava habituado a andar, e as suas sandálias de solas espessas e protectores nos tornozelos tinham tachas para o elevar acima do nível do chão, absorver um pouco o choque e proteger os pés das pedras. Contudo, era maravilhoso nadar no mar perto de Narbona, relaxando os músculos doridos, e os poucos soldados que até ao momento tinham conseguido escapar-se a aprender a nadar eram descobertos e a omissão era rectificada. As raparigas locais não eram diferentes das que havia por toda a parte - doidas por homens fardados - e durante sessenta dias em Narbona, havia zunidos de pais furiosos, irmãos vingadores, raparigas às risadas, legionários libertinos e rixas de taberna a dar trabalho aos chefes e a indispor os tribunos militares.
Então, Cepião reuniu os seus homens e levou-os pela excelente estrada que Cneu Domício Aenobarbo construíra entre a costa e a cidade de Tolosa. No sítio onde o rio Átax fazia um ângulo recto ao virar para o sul, vindo dos Pirenéus, lá no alto com um ar ameaçador vigiava a fortaleza sombria de Carcassona; a partir daí, as legiões marcharam pelos montes que dividiam as águas do enorme rio Garona nos pequenos riachos que fluíam para o mar Central e chegaram finalmente às exuberantes planícies aluviais de Tolosa.
A sorte de Cepião era espantosa, como de costume; os Germanos haviam discutido duramente com os seus anfitriões, os Volcos Tectósagos, tendo sido obrigados pelo rei Copillus a abandonar a região. Assim, Cepião descobriu que os únicos inimigos com quem as suas oito legiões tinham de entender-se eram os infelizes Volcos Tectósagos, que miraram as fileiras vestidas de aço que desciam os montes como uma cobra infindável e decidiram que a discrição era de longe a melhor virtude. O rei Copillus e os seus guerreiros partiram para a foz do Garona de modo a avisarem as tribos vizinhas e esperarem para ver se Cepião sempre seria um general tão parvo como Lúcio Cássio fora no ano anterior. Deixada ao cargo de homens idosos, Tolosa rendeu-se logo. Cepião ronronou de contentamento.
Por que ronronara ele? Porque ouvira falar do ouro de Tolosa. E agora, ia encontrá-lo sem ter de travar um combate. Afortunado Quinto Servílio cepião!
Cento e setenta anos antes, os Volcos Téctósagos tinham-se juntado a uma migração de Gauleses conduzida pelo segundo dos dois famosos reis celtas chamados Brenus. Este segundo Brenus devastara a Macedónia, precipitara-se em Tessália, vencera a defesa grega no desfiladeiro de Termópilas e penetrara no centro da Grécia e no Epiro. Saqueara e pilhara os três templos mais ricos do mundo - de Dodona no Epiro, de Zeus em Olímpia e o grande santuário de Apolo e da Pitonisa em Delfos.
Depois, os Gregos responderam, os Gauleses fugiram para norte com o produto das suas pilhagens, Brenus morreu em consequência de um ferimento e desmoronou-se o seu plano condutor. Na Macedónia, a sua tribo sem chefe decidiu atravessar o Helesponto em direcção à Ásia Menor; aí, fundaram o posto avançado gaulês denominado Galácia. Mas cerca de metade dos Volcos Tectósagos quis voltar para Tolosa em vez de atravessar o Helesponto; num grande Conselho, todas as tribos concordaram que os Volcos Tectósagos que quisessem regressar deveriam receber as riquezas de meia centena de templos pilhados, incluindo os de Dodona, Olímpia e de Delfos. Era apenas um fundo de crédito. Os Volcos Tectósagos que regressassem guardariam a riqueza da migração em Tolosa até ao dia em que todas as tribos tornassem à Gália e as reclamassem.
Fundiram tudo, para tornar a viagem mais fácil: estátuas volumosas de ouro maciço, urnas de prata de cinco pés de altura, cálices e pratos e taças, tripés de ouro, grinaldas de ouro e de prata - foram para dentro do cadinho, uma peça de cada vez, e depois um milhar de carros carregados rolaram para oeste através dos sossegados vales alpinos do rio Danúbio, e chegaram por fim, alguns anos mais tarde, ao Garona e a Tolosa.
Cepião ouvira contar a história quando era governador da Espanha Ulterior, três anos antes, e desde então sonhava encontrar o ouro de Tolosa, apesar de o seu informador espanhol lhe ter garantido que o tesouro era geralmente considerado um mito. Não havia ouro em Tolosa, como juravam todos os visitantes da cidade dos Volcos Tectósagos; os Volcos Tectósagos não tinham nenhuma riqueza para além do seu belo rio e do solo magnífico. Mas Cepião conhecia a sua sorte. Sabia que havia ouro em Tolosa. Senão, por que outro motivo tinha ouvido a história na Espanha e tinha sido incumbido da missão de seguir os passos de Lúcio Cássio até Tolosa - e não encontrara os Germanos ao lá chegar, tendo conquistado a cidade sem qualquer combate? Finalmente, a Fortuna começava a realizar a sua vontade; estava tudo a correr a seu favor.
Desfez-se do equipamento militar, vestiu a toga debruada a púrpura e caminhou pelas áleas rústicas da cidade, espreitou por todos os cantos e recantos da cidadela, vagueou pelas pastagens e campos que avançavam pelos arrabaldes de um modo mais espanhol que gaulês. De facto, Tolosa tinha bem pouco de gaulês - não havia Druidas nem a aversão típica dos Gauleses pelo ambiente urbano. Os templos e precintos de templos eram construídos à maneira das cidades espanholas, um parque pitoresco de lagos artificiais e regatos, alimentados pelo Garona e desaguando nele. Um encanto!
Não tendo achado nada nas suas caminhadas, Cepião pôs o exército na busca do ouro, uma caça ao tesouro num ambiente festivo, levado a cabo por tropas livres da ansiedade de enfrentar um inimigo, e que farejavam uma fatia do que seria um saque fabuloso.
Mas o ouro não aparecia. Oh, os templos continham alguns artefactos inestimáveis, mas apenas alguns, e nada de barras de prata ou de ouro. E a cidadela foi uma desilusão completa, como Cepião já tinha visto por si; apenas armas e deuses de madeira, vasilhas de chifre e pratos de barro refractário. O rei Copillus vivera uma vida de grande simplicidade e não havia caves secretas sob as lajes lisas das suas muralhas.
Então, Cepião teve uma ideia brilhante e pôs os soldados a procurar nos parques que rodeavam os templos. Em vão. Nem um fosso, mesmo os mais fundos, revelava qualquer sinal de uma só barra de ouro. Os homens que procuravam o ouro brandiam os seus vimes bifurcados sem descobrir o mais pequeno vestígio que fizesse vibrar as palmas das suas mãos ou os vimes pender como arcos. Depois dos precintos dos templos, a busca estendeu-se aos campos e ruas da cidade, e nada. À medida que a paisagem se ia assemelhando cada vez mais à cova desarrumada de uma toupeira gigante, Cepião andava e pensava, pensava e andava.
O Garona estava cheio de peixes, incluindo salmões de água doce e várias espécies de carpas, e como o rio alimentava os lagos dos templos, estes também pululavam de peixes. Era mais confortável para os legionários de Cepião apanhar peixes nos lagos do que no rio largo e profundo e de suave torrente, e à medida que ele ia avançando, encontrava imensos soldados atando iscos e fazendo canas com juncos. Caminhou até ao último lago, mergulhado nos seus pensamentos. Aí, observou alheado o brilho nas escamas dos peixes, fulgores e cintilações reluzindo por entre e por cima das algas, indo e vindo em constante mudança. Os reflexos na sua maioria eram prateados, mas aqui e ali aparecia uma carpa exótica, e ele vislumbrava um brilho dourado.
A ideia foi pouco a pouco invadindo a sua mente. E então atingiu-o, explodiu-lhe dentro do cérebro. Mandou chamar o seu grupo de engenheiros e disse-lhes que drenassem os lagos - não era tarefa difícil e seria certamente compensadora. Porque o ouro devia encontrar-se no fundo daqueles tanques sagrados, escondido por entre o lodo, algas e detritos naturais de muitas décadas.
Quando ficou seca e empilhada a última barra, Cepião veio ver o tesouro e ficou boquiaberto; o facto de não ter vindo vê-lo enquanto estava a ser retirado era uma subtileza sua, precisamente porque queria ser surpreendido. E ficou surpreendido! Com efeito, ficou mesmo perplexo. Havia aproximadamente 50 000 barras de ouro, pesando cada uma cerca de 15 libras; 15 000 talentos, ao todo. E 10 000 barras de prata, pesando 20 libras cada uma; 3500 talentos de prata no total. A seguir, os mergulhadores continuaram a encontrar mais prata nos outros lagos, pois parecia até que O único uso que os Volcos Téctósagos tinham dado às suas riquezas fora o de transformá-las em mós de prata; uma vez por mês, retiravam as mós de prata do fundo do rio e usavam-nas para moer o abastecimento de farinha para o mês.
- Muito bem - disse Cepião bruscamente -, quantos carros podemos usar para transportar o tesouro para Narbona? - Dirigiu a pergunta a Marco Fúrio, seu praefectus fabrum, o homem que organizava as linhas de abastecimentos, carregamentos, equipamento, aprestos, rações e todas as outras necessidades relacionadas com a manutenção de um exército em campanha.
- Bem, Quinto Servílio, há mil carros de carga, dos quais cerca de um terço estão agora vazios. Digamos trezentos e cinquenta, se fizer umas arrumações. Se cada carro levar uns trinta e cinco talentos, o que é uma carga boa mas não excessiva, precisaremos mais ou menos de trezentos e cinquenta carros para a prata e quatrocentos carros para o ouro - respondeu Marco Fúrio, que pertencia agora a uma das antigas Famílias Importantes, mas era bisneto de um escravo Fúrio e era cliente de Cepião, além de banqueiro.
- Então sugiro que carreguemos primeiro a prata em trezentos e cinquenta carros, que a descarreguemos em Narbona e enviemos os carros de volta para Tolosa, para transportar o ouro - decidiu Cepião. - Entretanto, vou mandar as tropas descarregar outros cem carros, de modo que bastem para enviar o ouro numa coluna.
Em fins de Quintilis, a prata seguira para a costa e fora descarregada, e os carros vazios haviam sido enviados para Tolosa para recolher o ouro; Cepião, fiel à sua palavra, arranjara os cem carros extra durante esse tempo.
Enquanto o ouro era carregado, Cepião andava delirante, correndo de uma pilha de barras para outra, incapaz de resistir a passar a mão por uma ou outra à passagem. Mordeu um lado da mão, pensativo, e por fim suspirou.
- É melhor seguires com o ouro, Marco Fúrio - disse então. - Tem de ficar com ele em Narbona alguém detentor de qualquer cargo elevado até a última barra ter sido carregada a salvo para o último barco - virou-se para o liberto grego Bias. - A prata já foi embarcada para Roma?
- Não, Quinto Servílio - disse Bias amavelmente. - Os transportes que trouxeram mercadorias pesadas para cá sofrendo os ventos fortes de Inverno desapareceram todos. Apenas consegui localizar uma dúzia de embarcações em bom estado, e achei melhor guardá-las para o ouro. A prata está bem guardada num armazém e em segurança. Penso que quanto mais depressa embarcarmos o ouro para Roma, melhor. À medida que forem aparecendo barcos melhores, alugá-los-ei para a prata.
- Devemos poder enviar a prata para Roma por terra - disse Cepião simplesmente. Mesmo correndo o risco de se afundar, Quinto Servílio, eu confiaria ao mar as barras de ouro e de prata - disse Marco Fúrio. - Há demasiados perigos por terra, vindos das tribos alpinas.
- Sim, tens razão - concordou Cepião.
- Oh, é quase demasiado bom para ser verdade, não é? Vamos enviar mais ouro e prata para Roma do que a que existe nos cofres do Tesouro!
- Com efeito, Quinto Servílio - disse Marco Fúrio -, é admirável.
O ouro partiu de Tolosa nos seus 450 carros em meados de Sextilis. Foi acompanhado por uma única coorte de legionários, porque a estrada romana passava por um território civilizado que não levantava um dedo há muito tempo, e os agentes de Cepião haviam comunicado que o rei Copillus e os seus guerreiros ainda estavam em Burdígala, à espera de ver Cepião arriscar-se a seguir pela mesma estrada que levara Lúcio Cássio à morte.
Mal chegaram a Carcassona, a estrada descia literalmente em direcção ao mar e o passo da coluna de carroças aumentou. Todos estavam alegres, ninguém se sentia preocupado; a coorte de soldados começava a sentir o cheiro do sal do mar. Ao cair da noite, sabiam que entrariam ruidosamente em Narbona; pensavam em ostras, salmonetes e raparigas narbonenses.
O grupo de assalto, cerca de mil homens, surgiu aos gritos, vindo do sul, do meio de uma grande floresta que ladeava a estrada de ambos os lados, colocando-se à frente do primeiro carro e atrás do último a cerca de duas milhas de distância, pelas quais se distribuíam as duas metades da coorte. Daí a pouquíssimo tempo, não estava vivo nem um único soldado romano, e os condutores dos carros amontoavam-se em grandes pilhas de braços e de pés.
A lua estava cheia e a noite amena; durante as horas em que a coluna de carroças esperara no escuro ninguém aparecera na estrada romana vindo de qualquer direcção, pois as estradas romanas de província serviam para o movimento dos exércitos, e o comércio nesta parte da província romana entre a costa e o interior era escasso, especialmente desde que os Germanos se haviam fixado perto de Tolosa.
Mal a lua ia bem alta, as mulas foram de novo presas aos carros e alguns dos salteadores foram conduzi-los, enquanto outros caminhavam ao lado deles como guias. Quando a floresta deixou de acompanhar a estrada, a coluna de carroças abandonou-a e entrou numa faixa de terreno no litoral onde apenas pastavam ovelhas. De madrugada, Ruscinão e o seu rio ficavam a norte; a coluna de carroças retomou a Via Domícia e cruzou o desfiladeiro dos Pirenéus em Plena luz do dia.
A sul dos Pirenéus, o percurso era sinuoso e não havia nenhuma via romana até a coluna atravessar o rio Sucrão, a oeste da cidade de Sétabe; daí, percorreu toda a planície do junco, uma faixa de terra desolada e árida que se afundava entre duas das maiores cordilheiras de montanhas espanholas, mas não era usada como atalho por não ter água. Depois, o carreiro extinguiu-se e o destino que teve o ouro de Tolosa nunca foi conhecido pelos investigadores de Cepião.
Foi um correio que levava uma mensagem de Narbona que teve o infortúnio de encontrar as pilhas de corpos saqueados ao longo da estrada que atravessava a floresta a leste de Carcassona. E quando o correio informou Quinto Servílio Cepião em Tolosa, este desatou a chorar. Chorava ruidosamente o destino de Marco Fúrio, o destino daquela coorte de soldados romanos e chorava pelas mulheres e famílias órfãs em Itália; mas acima de tudo, chorava ruidosamente por aqueles montes resplandecentes de barras rubras, pela perda do ouro de Tolosa. Não era justo! O que teria acontecido à sua sorte? Gritava. E chorava cada vez mais ruidosamente.
De toga escura de luto, com a túnica escura e sem qualquer faixa no ombro direito, Cepião voltou a chorar quando chamou o seu exército a reunir e lhes contou a notícia que já todos sabiam pelo rumor que corria no acampamento.
- Mas ao menos, ainda temos a prata - disse ele, esfregando os olhos.
- Vai garantir um lucro respeitável para todos no final da campanha.
- Cá por mim, agradeço a caridade - comentou um soldado veterano
para o seu companheiro de tenda e de refeições; tinham sido ambos obrigados a largar as suas quintas na úmbria, embora cada um deles já tivesse efectuado dez campanhas num período de quinze anos.
- Agradeces? - perguntou o companheiro, um pouco mais lento no processo de raciocínio devido a um antigo ferimento na cabeça, provocado por um chefe escordisco.
- Pois agradeço! Alguma vez soubeste de algum general que partilhasse ouro com a escumalha dos seus soldados? Arranjam sempre maneira de serem os únicos a ficar com ele. Ah, e o Tesouro fica com algum, é assim que eles conseguem ficar com a maior parte: subornando o Tesouro.
Mas pelo menos vamos ficar com uma parte da prata, e havia prata suficiente para erguer uma montanha. Com o burburinho causado pelo desaparecimento do ouro, o cônsul não tem outro remédio senão ser justo e distribuir a prata,
- Entendo o que queres dizer - disse o companheiro. - Vamos pescar um salmão graúdo para a nossa ceia?
Com efeito, o ano estava a terminar e o exército de Cepião, exceptuando aquela coorte desafortunada, enviada para guardar o ouro de Tolosa, não tivera de combater. Cepião escreveu para Roma, contando toda a história, desde os Germanos fugidos até ao ouro perdido, pedindo instruções.
Em Outubro recebeu a resposta, que era a esperada: permaneceria nas imediações de Narbona durante todo o Inverno e tornaria a receber instruções na Primavera. O que significava que o seu comando fora prolongado por mais um ano: ainda era governador da Gália Romana.
Mas já não era a mesma coisa sem o ouro. Cepião arreliava-se e ficava abatido, e chorava frequentemente, e os seus oficiais séniores comentavam que lhe era difícil ficar parado, pois estava sempre a andar de um lado para o outro. A maioria achava que isso era típico em Quinto Servílio Cepião; ninguém acreditava realmente que as lágrimas que vertia fossem por Marco Fúrio ou pelos soldados mortos. Cepião chorava o seu ouro perdido.
Uma das características principais de uma campanha longa em território estrangeiro é a forma como o exército e a sua cadeia de comando estabelecem um modo de vida que toma em consideração esse território como uma pátria semi-permanente. Apesar dos movimentos constantes, das campanhas, das pilhagens, das expedições, o acampamento- base assume todos os aspectos de uma cidade: a maior parte dos soldados arranja mulheres, muitas delas geram crianças, as lojas e tabernas e os mercadores multiplicam-se fora das muralhas fortificadas, e as casas de lama e tijolo para as mulheres e crianças reproduzem-se num sistema fortuito de ruas estreitas.
Tal era a situação no acampamento-base romano fora de útica, e em mais pequena escala, o mesmo acontecia no acampamento-base fora de Cirta. Como Mário escolhera os seus centuriões e tribunos militares com muito cuidado, o período de chuvas de Inverno - em que não havia combates era usado não só para instrução e exercícios, mas também para dividir as tropas em octetos de soldados congéneres que partilhariam a mesma tenda e o rancho, e para tratar dos mil e um problemas militares que surgiam no meio de tantos homens mantidos juntos por um período de tempo tão comprido.
Mas com a chegada da Primavera africana - quente, exuberante, fecunda e seca - havia sempre uma grande agitação no acampamento, um pouco como o arrepio que percorre o dorso de um cavalo de uma ponta à outra. Escolhia-se o equipamento para a campanha futura, faziam-se testamentos que ficavam à guarda dos auxiliares das legiões, as cotas de malha eram oleadas e polidas, as espadas afiadas, os punhais amolados, os elmos acolchoados com feltro para proteger do Calor e da fricção, as sandálias eram cuidadosamente inspeccionadas e recolocadas as tachas que faltavam, as túnicas remendadas, o equipamento deficiente ou gasto era mostrado ao centurião e devolvido aos armazéns de armamento para substituição.
O Inverno trouxe a chegada de um questor do tesouro de Roma com o pagamento dos soldados, e uma enchente de actividade entre os auxiliares ao compilarem as contas e pagarem aos homens. Como os seus soldados eram insolventes, Mário instituiu dois fundos obrigatórios para os quais era canalizado o pagamento dos soldados - um para enterros em condições respeitáveis para os legionários que morressem longe da pátria mas não em combate (quando morriam em combate, o Estado pagava o enterro), e um banco de poupança que não libertaria o dinheiro dos legionários enquanto estes não tivessem licença.
O exército de África sabia que havia grandes planos para ele na Primavera do ano do consulado de Cepião, embora apenas os níveis mais altos do comando soubessem em que consistiam esses planos. Davam-se ordens de marcha ligeira, pelo que não haveria carregamentos de milhas de comprimento, mas apenas carros puxados por mulas com mantimentos que permitiam fazer um acampamento de uma noite. Cada soldado era agora obrigado a transportar o equipamento, o que fazia com muita inteligência, pendurando-o ao ombro numa cana forte em forma de Y lâminas para a barba, túnicas limpas, meias, calções para o frio e lenços grossos para evitar as feridas provocadas pelo atrito da cota de malha no pescoço, tudo enrolado no lençol e embrulhado numa coberta de camuflado; o sagum - a capa circular para o tempo húmido - dentro de uma saca de couro; o conjunto para o rancho e a panela, o odre de água. Um mínimo de rações para três dias; uma estaca já cortada com entalhes para a paliçada do acampamento, a ferramenta de entrincheiramento que lhe fosse atribuída, balde de couro, cesto de vime, serra e foice; e produtos para limpeza das armas e da armadura. O escudo encastoado numa capa de protecção de pelica era colocado contra as costas, sob o equipamento, e o elmo com o penacho de crina de cavalo retirado e arrumado cuidadosamente ia no meio de tudo ou então era levado ao peito a tiracolo ou posto na cabeça, se marchassem na expectativa de um ataque. Vestia-se sempre a cota de malha para a marcha, retirando dos ombros a carga de vinte libras e franzindo-a apertada no peito com um cinto, distribuindo assim o peso pelas ancas. Do lado direito do cinto levava-se a espada embainhada, e do lado esquerdo o punhal na bainha, usando-se ambos em estrada. Não se levava as duas lanças.
A cada oito homens era fornecida uma mula, onde apinhavam a tenda de couro, as estacas e as lanças, bem como rações extra, para o caso de não terem alimentos frescos durante três dias. Oitenta legionários e vinte não-combatentes constituíam uma centúria, comandada pelo centurião. Cada centúria tinha a seu cargo um carro de mulas, onde ia todo o equipamento extra - roupas, ferramentas, armas suplentes, secções de vime para as fortificações dos acampamentos, rações para longos períodos, etc. Se todo o exército partisse sem intenções de regressar no fim da campanha, então todos os seus haveres, desde o produto das pilhagens até à artilharia, eram levados em carros de bois que seguiam a passo lento várias milhas atrás, sob forte vigilância.
Quando Mário seguiu para a Numídia Ocidental na Primavera, deixou evidentemente em útica a sua pesada carga; apesar de tudo, era uma parada grandiosa que se estendia sem se ver os limites, pois cada legião e os seus carros e artilharia ocupavam uma milha de estrada, e Mário levou seis legiões para oeste, além da cavalaria. No entanto, dispôs a cavalaria de cada lado da infantaria, o que fazia com que a sua coluna tivesse o comprimento total de seis milhas.
Em campo aberto não havia possibilidade de fazer emboscadas, um inimigo não podia dispersar-se o suficiente para atacar todas as partes da coluna ao mesmo tempo sem ser visto, e qualquer ataque a uma parte da coluna resultaria imediatamente na resposta do resto, cercando os atacantes; a mudança de rumo levá-los-ia logo às fileiras de combate.
E no entanto, todas as noites era dada a mesma ordem - montar um acampamento. O que significava medir e demarcar uma área bastante grande para abrigar todos os homens e animais do exército, cavar valas fundas, fixar as estacas aguçadas denominadas stimuli, erguer fortificações e paliçadas; mas no final, todos os homens excepto as sentinelas podiam dormir profundamente, seguros por saberem que nenhum inimigo podia entrar com suficiente rapidez para tomar o acampamento de surpresa.
Foram os homens deste exército, o primeiro totalmente constituído por elementos dos capite censi, que se baptizaram de mulas de Mário, por Mário os ter carregado como mulas. Num exército à antiga, constituído por homens com posses, até os soldados marchavam com os seus bens transportados por uma mula, um burro ou um escravo; os que não tinham posses, alugavam espaço nos transportes dos outros. Consequentemente, havia pouco controlo sobre o número de carros e carroças, pois muitos eram particulares. E por isso, o exército à antiga marchava mais devagar e menos eficientemente do que o exército africano de capite censi comandado por Mário - e os numerosos exércitos semelhantes que se lhe seguiram nos seiscentos anos seguintes.
Mário deu trabalho útil aos capite censi e um salário correspondente. Mas para além disso, fez-lhes poucos favores, excepto podar o topo e o fundo curvos do velho escudo de infantaria de cinco pés de altura, pois um homem não podia transportá-lo às costas atrás da sua carga; com o novo tamanho reduzido de três pés, já não embatia no fardo nem cortava a parte traseira dos tornozelos durante a marcha.
E assim marchavam para a Numídia Ocidental, de seis milhas de comprimento, cantando as suas canções de marcha o mais alto possível, para manterem o passo acertado e sentirem o conforto da camaradagem militar, seguindo juntos, cantando juntos, uma única e poderosa máquina humana avançando irresistivelmente. A meio da coluna marchava o general Mário com todo o seu pessoal e os carros de mulas com o equipamento, cantando com os outros; ninguém dos postos de comando ia a cavalo, porque era desconfortável, e conspícuo, embora os cavalos estivessem por perto para o caso de haver algum ataque, em que o general precisaria da altura adicional do lombo do cavalo para tomar as suas disposições e dar ordens aos homens.
- Saquearemos todas as cidades e aldeias que encontrarmos - disse Mário a Sila.
E esse programa foi cumprido escrupulosamente, com alguns acrescentos: alguns celeiros e fumeiros foram pilhados para aumentar o abastecimento de alimentos, as mulheres locais foram violadas porque os soldados sentiam a falta das suas e a homossexualidade era punida com a morte. Acima de tudo, todos tinham os olhos bem abertos para os saques, que embora não pudessem ser transformados em bens pessoais, contribuíam para as aquisições do exército.
De oito em oito dias, o exército repousava, e sempre que chegava a um ponto em que a costa intersectasse a marcha, Mário concedia a todos três dias de descanso para nadarem, pescarem, comerem bem. Nos fins de Março, estavam a oeste de Cirta, e no fim de Quintilis tinham chegado ao rio Mulucha, seiscentas milhas novamente a oeste.
Fora uma campanha fácil; o exército de Jugurta nunca aparecera, as colónias não conseguiam resistir ao avanço dos romanos, e em pouco tempo haviam ficado sem comida ou sem água. O regime inevitável de pão duro, sopa de legumes, bacon salgado e queijo salgado tinha sido diversificado com bastante carne de cabra, peixe, veado, carneiro, fruta e legumes para manter todos de boa disposição, e o vinho azedo que era ocasionalmente distribuído ao exército fora acrescido com cerveja berbere de cevada e bom vinho.
O rio Mulucha marcava a fronteira entre a Numídia ocidental e a Mauritânia oriental; formava uma torrente ribombante no fim do Inverno, no meio do Verão a grande corrente reduzia-se a um fio de poças de água, e nos fins do Outono secava completamente. Na sua planície, que não distava do mar, havia um nivelamento íngreme de mil pés de altura, e no cume deste, Jugurta construíra uma fortaleza. Dentro dela, assim o tinham informado os espiões de Mário, havia um grande tesouro armazenado, pois funcionava como quartel-general ocidental de Jugurta.
O exército romano desceu à planície, marchou até às altas margens que o próprio rio talhara e construiu um acampamento permanente O mais próximo possível da fortaleza da montanha. Então, Mário, Sila, Sertório, Aulo Mânho e os outros detentores de cargos de comando ocuparam-se a estudar a cidadela de aspecto inexpugnável.
- Podemos pôr de lado a ideia de um assalto frontal - disse Mário e não vejo forma de cercá-la.
- E porque não há forma de cercá-la - disse o jovem Sertório decididamente; fizera várias inspecções completas do cume a partir de todos os lados.
Sila levantou a cabeça de modo a poder ver o cume por baixo da aba do chapéu.
- Penso que vamos ficar aqui sem sequer chegar lá acima - disse, e sorriu, mostrando os dentes. - Mesmo que construíssemos um gigantesco cavalo de madeira, nunca conseguiríamos levá-lo até às portas.
- Tal como não poderíamos levar até lá uma torre de cerco - disse Aulo Mânho.
- Bem, falta cerca de um mês para termos de voltar para leste - disse Mário por fim. - Sugiro que passemos esse mês acampados aqui. Tornaremos a nossa vida o mais agradável possível. Lúcio Cornélio, decide aonde queres ir buscar a nossa água potável e localiza os fossos mais profundos do rio para nadarmos. Aulo Mânho, Podes organizar grupos de pesca que irão até ao mar: fica a cerca de dez milhas, segundo os batedores. Tu e eu iremos a cavalo até à costa amanhã, para observarmos o terreno. Eles não vão correr o risco de sair daquela cidadela para nos atacarem, por isso podemos deixar os homens à vontade. Quinto Sertório, podes pilhar frutos e legumes.
- Sabes - disse Sila mais tarde, quando ele e Mário estavam sozinhos na tenda de comando - que esta campanha tem sido um descanso. Quando terei o meu baptismo de sangue?
- Devias tê-lo tido em Capsa, mas eles renderam-se - disse Mário, e lançou ao seu questor um olhar perscrutador. - Estás a ficar aborrecido, Lúcio Cornélio?
- Com efeito, não - disse Sila, franzindo o sobrolho. - Eu não imaginava como esta vida é interessante... Há sempre coisas interessantes para fazer, problemas interessantes para resolver. Nem me importo com o baptismo de sangue! A questão é que preciso dele. Olha para ti. Na minha idade, já tinhas estado em meia centena de batalhas. E olha para mim: sou um inexperiente.
- Terás o teu baptismo de sangue, Lúcio Cornélio, e espero que seja em breve.
- Sim?
- Com certeza. Por que pensas que estamos aqui, tão longe de qualquer lugar importante?
- Não, não mo digas, deixa-me responder! - disse Sila rapidamente.
- Estás aqui porque... porque esperas pregar ao rei Boco um susto tão grande que o impeça de se aliar a Jugurta... porque se Boco se aliar a Jugurta, Jugurta se sentirá com força para atacar.
- Muito bem! - disse Mário a sorrir. - Este território é tão vasto que podíamos passar os próximos dez anos a percorrê-lo de alto a baixo sem nunca chegarmos a sentir o cheiro de Jugurta. Se não tivesse os Getulos, arrasar as áreas povoadas destruiria a sua capacidade de resistir, mas ele tem os Getulos. No entanto, é demasiado orgulhoso para lhe agradar a ideia de um exército romano à solta por entre as suas cidades e vilas, e não há dúvida de que deve estar a sentir os nossos ataques, particularmente nos seus abastecimentos de cereais. Mas é demasiado astucioso para se arriscar a uma grande batalha comigo no comando. A menos que consiga trazer Boco em seu auxílio. Os Mouros no mínimo têm uns vinte mil bons soldados e cinco mil excelentes cavaleiros. E se Boco se unir a ele, é mais que certo que Jugurta avançará contra nós.
- Não receias que com Boco ele nos exceda em número?
- Não! Seis legiões romanas bem treinadas e comandadas podem lutar contra qualquer força inimiga seja de que dimensões for.
- Mas Jugurta aprendeu a combater com Cipião Emiliano na Numância
- disse Sila. - Deve combater à maneira romana.
- Existem outros reis estrangeiros que lutam à maneira dos romanos - disse Mário -, mas as suas tropas não são romanas. Os nossos métodos foram desenvolvidos de modo adequado à mente e ao temperamento do nosso povo, e não faço qualquer distinção neste aspecto entre Romanos, Latinos e Italianos.
- Disciplina - disse Sila.
- E organização - disse Mário.
- Mas nenhuma delas nos levará até ao cume daquela montanha disse Sila.
Mário riu.
- É verdade! Mas há sempre um imponderável, Lúcio Cornélio.
- Qual é?
- A sorte - disse Mário. - Nunca te esqueças da sorte.
Haviam-se tornado bons amigos, Sila e Mário, dado que apesar das diferenças existentes entre eles, havia também semelhanças básicas: nenhum deles pensava de forma ortodoxa, ambos eram invulgares, a adversidade havia-lhes desferido bastantes golpes e eram capazes tanto de um grande afastamento como de uma grande paixão. A semelhança mais importante era que os dois gostavam da sua profissão e gostavam de ser perfeitos nela. Os aspectos das suas naturezas que podiam tê-los separado estavam adormecidos durante esses primeiros anos em que o mais novo não podia de modo nenhum esperar rivalizar com o mais velho, e o veio de sangue-frio do mais novo não precisava de ser exercitado, tal como o veio de iconoclastía do mais velho.
Há quem sustente - disse Sila, esticando os braços atrás da cabeça
- que um homem traça a sua própria sorte.
Mário abriu muito os olhos, acto que punha em pé as suas sobrancelhas.
- É evidente! Mas não é bom sabermos que a possuímos?
Públio Vagiennius, que era da distante Ligúria e pertencia a um esquadrão auxiliar de cavalaria, viu-se com bastante mais que fazer do que lhe agradaria quando Caio Mário mandou montar o acampamento ao longo das margens do rio Mulucha. Felizmente, a planície estava coberta com uma erva alta e densa que o sol de Verão tornara prateada, pelo que o alimento dos vários milhares de mulas do exército não constituía problema. Contudo, os cavalos eram mais difíceis de contentar do que as mulas, e empurravam-se, indiferentes a esta cobertura do solo duro
- e os cavalos tiveram de ser levados para o norte da montanha da cidadela no meio da planície, para um lugar onde os lençóis de água subterrâneos haviam originado o crescimento de erva mais tenra.
”Se o comandante fosse outro que não Caio Mário”, pensou Públio Vagiennius, ”a cavalaria poderia ter acampado separada, perto de lugares decentes para alimentar os cavalos.” Mas não. Caio Mário não queria provocar tentações aos habitantes da cidadela do Mulucha e dera ordens para que todos os homens acampassem dentro da composição principal. E todos os dias, primeiro, os batedores tinham de ver se nenhum inimigo se imiscuíra na vizinhança; depois, os soldados de cavalaria eram autorizados a levar os seus cavalos a pastar, e todas as noites tinham que trazer os cavalos de volta para o acampamento. Isto implicava que os cavalos tinham de ser atados para pastar, senão seria impossível apanhá-los.
Por isso, todas as manhãs, Públio Vagiennius tinha de montar um dos seus cavalos e levar o outro pela planície, do acampamento até ao prado, amarrá-los para um bom dia de pasto e voltar a percorrer as cinco milhas até ao acampamento, onde (na sua opinião) as horas de prazer mal haviam começado quando chegava a hora de partir para voltar a recolher as montadas. Além de que nenhum cavaleiro que se prezasse gostava de andar.
No entanto, não havia nada que dissesse que um homem tinha de ir a pé para o acampamento depois de ter trazido os animais; por isso, Públio Vagiennius fez algumas adaptações. Como montava em pêlo e sem freio
- só um louco deixaria a sua preciosa sela e freio ao ar livre um dia inteiro - apanhou o hábito de pôr ao ombro um odre de água e uma bolsa com o almoço ao deixar o acampamento. Depois de libertar os dois animais perto da base da montanha da cidadela, retirava-se para um lugar à sombra para passar o dia.
Na sua quarta viagem, pousou o odre de água e a saca do almoço num pequeno vale florido e aromático rodeado por escarpas íngremes, sentou-se encostado a uma saliência com ervas, fechou os olhos e dormitou. Então, soprou uma aragem húmida de vento vindo das chaminés e sulcos da montanha, trazendo consigo um cheiro muito forte e característico. Um cheiro que fez Públio Vagiennius sentar-se repentinamente, de olhos a brilhar de emoção. Porque era um cheiro que ele conhecia. Caracóis. Caracóis grandes, gordos, suculentos, doces e ambrosíacos!
Nos Alpes costeiros da Ligúria e nos Alpes mais altos no interior donde provinha Públio Vagiennius - havia caracóis. Ele crescera a alimentar-se de caracóis. Ficara viciado em pôr alho em tudo o que comia graças aos caracóis. Tornara-se um dos maiores conhecedores de caracóis do mundo. Sonhava um dia criar caracóis para vender no mercado, ou mesmo criar uma espécie nova de caracóis. Alguns narizes voltavam-se para o vinho, outros para os perfumes, mas o nariz de Públio Vagiennius estava virado para os caracóis. E o perfume que provinha da cidadela, transportado pelo vento, dizia-lhe que algures lá para cima havia caracóis de incomparável delícia.
Com a diligência de um porco seguindo o rasto de trufas, lançou-se ao trabalho seguindo as indicações do seu aparelho olfactiVo, percorrendo os rebordos de rocha em busca de um caminho até à colónia de caracóis. Desde a sua vinda para África com Lúcio Cornélio Sila, em Setembro do ano anterior, que não provava um caracol que fosse. Os caracóis africanos eram considerados os melhores do mundo, mas Públio Vagiennius ainda não descobrira onde viviam, e os que chegavam aos mercados de útica e Cirta iam direitos para as mesas dos tribunos militares e dos legados - isto é, se não fossem direitos para Roma.
Qualquer outra pessoa menos motivada não teria encontrado a antiga fumarola cujos vapores vulcânicos se haviam extinguido há muito, visto que se encontrava atrás de uma parede aparentemente ininterrupta de basalto formada por longos cristais colunares; de nariz no chão, Públio Vagiennius farejou o caminho através de uma ilusão óptica e descobriu uma enorme chaminé. Durante a passagem de milhões de anos de inactividade, o pó arrastado pelos ventos enchera a abertura ao nível do chão e acumulava-se na parede a sotavento que se elevava até muito acima, mas era possível ter-se acesso ao interior da sua cavidade natural. Tinha cerca de vinte pés de largura e talvez duzentos pés acima brilhava um fragmento de céu. As paredes eram verticais e para quase todos os observadores pareceria impossível de escalar. Mas Públio Vagiennius era um homem alpino; era também um apreciador de caracóis no encalço de uma experiência superlativa para o paladar. Por isso, escalou a fumarola - não sem dificuldade, mas sem nunca ficar em perigo de cair.
E no topo, foi dar a uma saliência coberta de ervas com cerca de cem pés de comprimento e cinquenta pés no seu ponto mais largo, que era onde a chaminé terminava. Como tudo isto se passava na face norte do nivelamento - que constituía o resto do tampão de lava, pois a montanha em si desaparecera há uma eternidade - a saliência estava permanentemente seca de infiltrações, algumas das quais tombavam pela borda da chaminé, mas a maioria das quais caíam pelas rochas do lado de fora, no ponto onde a saliência era inclinada e formava uma fissura. Uma enorme escarpa, cerca de cem pés mais acima, dominava a maior parte da saliência, e o rochedo entre a saliência e o ressalto abria-se numa gruta húmida devido à água que escorria do topo, uma parede maravilhosa de fetos, musgo, hepáticas e carriços; num lugar, era tanta a água expelida para fora da rocha pela enorme pressão da montanha que um pequeno riacho brilhava e tombava em grandes salpicos, correndo pela orla da saliência com a água das outras infiltrações. Era certamente esta a razão, por que a erva da planície da base norte era mais doce.
No sítio onde a gruta agora se escancarava, existira outrora um depósito aglomerado de lama que penetrara muito mais fundo no tampão de lava, acumulara água e emergira à superfície apenas para ser avidamente absorvido pelo vento e as geadas. Um dia - Públio Vagiennius, o conhecedor homem da montanha sabia-o -, a escarpa de basalto que oscilava tão ameaçadoramente suspensa estaria minada o bastante para ceder; tanto a saliência como a gruta ficariam enterradas, bem como a antiga chaminé vulcânica.
A espaçosa gruta era o terreno ideal para os caracóis, permanentemente abafado, uma bolsa de ar húmido numa terra notoriamente seca, cheio de toda a matéria vegetal apodrecida e minúsculos insectos mortos que os caracóis adoravam, sempre sombrio, protegido do embate dos ventos por uma escarpa que se estendia até muito acima da saliência por um terço do seu comprimento e curvava para fora, reflectindo assim o vento.
Todo o lugar ressumava a caracóis, mas não caracóis de qualquer espécie que Públio Vagiennius conhecesse, informou-o o seu nariz. Quando final mente viu um, ficou pasmado. A casca era do tamanho da palma da sua mão! Depois de ter visto um, em breve reparou em dezenas, centenas, nenhum dos quais era menor do que o seu indicador, e alguns maiores até do que a sua mão esticada. Mal acreditando no que os olhos viam, entrou na gruta, explorou-a com um espanto cada vez maior, e finalmente chegou ao fundo, onde encontrou um caminho que ia dar mais acima, mais e mais acima; não era um carreiro de serpentes, pensou divertido, mas um carreiro de caracóis!
O carreiro mergulhava numa fenda que se abria numa gruta menor, mais fechada. Os caracóis continuavam a aumentar em número. E então, encontrou-se do outro lado do ressalto, descobriu que este tinha mais de cem pés de largura, continuou a subir até passar, com um arremesso, do Paraíso dos Caracóis para o Tártaro dos Caracóis, o tampão de lava seca e varrida pelo vento. Sobressaltou-se, entrou em pânico, escondeu-se rapidamente atrás de uma rocha: a fortaleza ficava a menos de quinhentos pés acima. A rampa era tão fácil de escalar que podia tê-la subido sem apoio, e a muralha da cidadela era tão baixa que podia tê-la saltado sem precisar de ser empurrado por trás.
Públio Vagiennius voltou ao carreiro de caracóis, chegou à parte mais baixa da gruta e parou aí para apanhar meia dúzia dos maiores, que colocou na parte da frente da túnica, bem embrulhados em folhas húmidas. A seguir, iniciou a difícil descida, dificultada pela sua carga preciosa mas inspirado por ela aos feitos sobre-humanos da escalada. E por fim chegou ao seu pequeno vale florido.
Depois de beber bastante água, sentiu-se melhor; os caracóis estavam quentes, viscosos, a salvo. Sem intenções de partilhá-los com quem quer que fosse, transferiu-os da túnica para a bolsa do almoço, com folhas húmidas e pedaços de húmus ainda mais húmidos recolhidos no vale, molhados com a água do odre. Atou muito bem a bolsa para impedir a fuga dos caracóis, e pô-la à sombra.
No dia seguinte, jantou magnificamente; trouxera consigo uma chaleira para cozinhar duas das presas e um molho delicioso de alho e óleo. Oh, que caracóis! Nos caracóis, o tamanho não significava de modo nenhum rijeza: o tamanho significava simplesmente cambiantes adicionais de sabor e mais matéria comestível com menos esforço.
jantou dois caracóis por dia durante seis dias, fazendo outra viagem à fumarola para ir buscar mais meia dúzia. Mas no sétimo dia, a consciência começou a atOrmentá-lo; se fosse um sujeito mais introspectivo, teria chegado à conclusão de que as dores de consciência aumentavam em proporção directa das dores de indigestão de caracóis. No princípio, pensou que era um mentula egoísta, para devorar os caracóis sozinho quando tinha bons amigos entre os membros do seu esquadrão. Depois, começou a pensar que tinha descoberto uma forma de escalar a montanha.
Durante mais três dias, lutou com a consciência, e acabou por sofrer um ataque de gastrite que lhe reduziu bastante o apetite por caracóis e lhe fez desejar nunca ter ouvido falar neles. E isso fez com que se decidisse.
Não se deu ao trabalho de informar o seu comandante de esquadrão; foi direito ao topo.
Aproximadamente no centro do acampamento, onde a via pretoria que ligava as portas principal e traseira se intersectava com a via principalis, que ligava as duas portas laterais, ficava a tenda de comando do general e o mastro da bandeira, com um espaço aberto de cada um dos lados, para reuniões. Era aqui, numa estrutura de couro adaptada a uma armação sólida de madeira, que Caio Mário tinha o seu quartel-general de comando e os seus aposentos; à sombra de um toldo comprido que partia da entrada principal havia uma cadeira e uma mesa, ocupada pelo tribuno militar de dia. Era seu dever escolher os que queriam falar com o general, ou expedir inquéritos sobre os mais diversos temas até ao seu destino. Havia duas sentinelas, uma de cada lado da entrada, à-vontade mas vigilantes, cuja monótona actividade era aligeirada pelo facto de poderem ouvir as conversas entre o tribuno de serviço e quem aparecia.
Quinto Sertório estava de serviço e divertia-se à grande. Agradava-lhe resolver as questões intrincadas que lhe colocavam os abastecimentos, a disciplina, a moral e os homens, e adorava as tarefas de complexidade e responsabilidade crescente que Caio Mário lhe dava. Se havia algum caso de adoração de um herói, esse caso era Quinto Sertório, tendo por objecto de adoração Caio Mário; era o soldado excelente em embrião reconhecendo a forma amadurecida. Nada do que Caio Mário lhe pudesse pedir parecia tarefa desagradável a Quinto Sertório, pelo que enquanto outros tribunos militares júniores detestavam estar de serviço fora da tenda do general, Quinto Sertório acolhia sempre a tarefa de bom grado.
Quando o soldado de cavalaria ligure surgiu, no passo peculiar dos homens que montam a cavalo de pernas pendentes a vida inteira, Quinto Sertório olhou-o com interesse. Não era um sujeito atraente; tinha uma cara que só a sua mãe teria achado bela, mas a cota de malha estava bem polida, os sapatos de montar ligures de sola macia tinham esporas, e os calções de couro pelo joelho estavam respeitavelmente limpos. Era de esperar que cheirasse um pouco a cavalo; todos os cavaleiros cheiravam a cavalo, o cheiro estava impregnado e não tinha nada a ver com os banhos que tomavam nem mesmo com a frequência com que lavavam a roupa.
Um par de olhos vivos olhou para outros dois, sentindo mútuo agrado pelo que viam.
Quinto Sertório pensou que ainda não tinha condecorações, mas a cavalaria também não tinha ainda entrado em acção.
”É novo para o lugar”, pensou Públio Vagiennius, ”mas é o soldado com melhor aspecto que já vi: é o típico peão romano; não gosta de cavalos.”
- Públio Vagiennius, esquadrão de cavalaria da Ligúria - disse Públio Vagiennius. - Gostava de falar com Caio Mário.
- Posto?
- Soldado - respondeu Públio Vagiennius.
- O assunto?
- É privado.
- O general - disse Quinto Sertório amavelmente - não recebe soldados auxiliares de cavalaria, especialmente sem escolta. Onde está o teu tribuno, soldado?
- Ele não sabe que vim cá - disse Públio Vagiennius, com um ar obstinado. - O meu assunto é particular,
- Caio Mário é um homem muito ocupado - contrapôs Quinto Sertório.
Públio Vagiennius pousou as mãos na mesa e aproximou a cabeça, quase asfixiando Quinto Sertório com o cheiro a alho.
- Ouve, jovem senhor, diz a Caio Mário que tenho uma proposta muito vantajosa a fazer-lhe... Mas não vou revelá-la a mais ninguém, e não mudarei de opinião.
Mantendo os olhos e o rosto inexpressivo tentando não desatar a rir, Quinto Sertório levantou-se.
- Espera aqui, soldado - disse.
O interior da tenda estava dividido em duas áreas por uma parede de couro cortada no centro, formando uma aba. Na sala do fundo eram os aposentos de Mário, e na sala da frente o seu gabinete. Esta sala da frente era de longe a maior das duas, e tinha cadeiras dobráveis e mesas, cavaletes de mapas, modelos de artilharia de cerco com que os engenheiros tinham brincado tendo em vista a montanha do Mulucha, e conjuntos portáteis de arquivos onde Mário colocara vários documentos, rolos, porta-livros e papéis dispersos.
Caio Mário estava sentado na sua cadeira curul de marfim, de um dos lados da grande mesa desdobrável a que chamava a mesa de trabalho, com Aulo Mânlio do outro lado e Lúcio Cornélio Sila, o seu questor, entre os dois. Estavam nitidamente embrenhados na actividade que mais detestavam, mas que era cara aos corações dos burocratas que governavam o Tesouro passar revista às contas e fazer a escrita. Para um Quinto Sertório era fácil de perceber que estavam na conferência preliminar; se fosse importante, estariam também presentes vários funcionários e escribas.
Caio Mário, perdoa a interrupção disse Sertório com muitas hesitações.
Havia qualquer coisa no seu tom de voz que fez os três homens levantar as cabeças e olhar atentamente para ele.
- Estás perdoado, Quinto Sertório. O que há? perguntou Mário, sorrindo.
- Bem, deve ser uma perfeita perda de tempo, mas tenho lá fora um soldado da cavalaria lígure que insiste em falar contigo, Caio Mário, mas não me diz porquê.
Um soldado da cavalaria lígure disse Mário devagar. E que diz o seu tribuno?
Não consultou o tribuno.
Ah, é segredo! Mário inspeccionou Sertório com argúcia. Por que motivo devo receber este homem, Quinto Sertório?
Quinto Sertório sorriu, mostrando os dentes.
Se pudesse dizer-to, sentir-me-ia muito melhor no meu posto respondeu. Não sei porquê, e a minha resposta é sincera. Não sei, posso estar enganado... Mas penso que devias recebê-lo, Caio Mário. Tenho esse pressentimento.
Mário pousou o papel que tinha na mão.
Manda-o entrar.
O espectáculo do Comando Superior em peso não abalou a confiança de Públio Vagiennius; ficou a piscar os olhos na luz difusa, sem qualquer vestígio de medo no rosto.
Eis Públio Vagiennius disse Sertório, preparando-se para voltar a sair.
- Fica, Quinto Sertório - disse Mário. - Então, Públio Vagiennius, que tens a dizer-me?
- Bastante - respondeu Públio Vagiennius.
- Então desembucha, homem!
- já vai, já vai! - disse Vagiennius sem se intimidar. - A questão é escolher a ordem das coisas. Começo por apresentar a informação ou a proposta de negócio?
- Uma coisa depende da outra? - perguntou Aulo Mânho.
- Certamente que sim, Aulo Mânho.
- Nesse caso, vejamos primeiro a proposta de negócio - disse Mário, de rosto impenetrável. - Gosto de apresentações com rodeios.
- Caracóis - disse Públio Vagiennius.
Os quatro romanos olharam para ele, mas nenhum falou.
- A minha proposta de negócio - disse Públio Vagiennius - são caracóis. Os maiores e mais suculentos caracóis que há!
- Então é por isso que tresandas a alho! - comentou Sila.
- Não consigo comer caracóis sem alho - respondeu Vagiennius.
- Em que podemos auxiliar-te com os teus caracóis? - perguntou Mário.
- Quero uma concessão - disse Vagiennius -, e quero ser apresentado às pessoas certas em Roma para negociá-los.
- Entendo - Mário olhou para Mânho, Sila, Sertório. Nenhum deles sorria. - Muito bem, tens a tua concessão, e penso que entre nós conseguiremos a estranha apresentação. Qual é a informação que tens para expor?
- Descobri uma via para subir a montanha.
Sila e Aulo Mânho endireitaram-se nas cadeiras.
- Descobriste uma via para subir a montanha? - repetiu Mário pausadamente.
- Sim.
Mário saiu do seu lado da mesa.
- Mostra-ma - disse ele.
Mas Públio Vagiennius recuou.
- Mostrá-la-ei, Caio Mário, mostrá-la-ei! Mas só depois de retirarmos os meus caracóis.
- Eles não podem esperar? - perguntou Sila com ar ameaçador.
- Não, Lúcio Cornélio, não podem! - disse Públio Vagiennius, frostrando assim que conhecia todos os membros do Comando Superior pelos nomes. - A via até ao topo da montanha passa mesmo pelo meu viveiro de caracóis. E é meu o viveiro de caracóis! E são os melhores caracóis do mundo! Vejam - tirou a saca de almoço do seu poiso absurdo, atravessada na longa espada de cavalaria, abriu-a e retirou com cuidado uma casca de caracol de oito polegadas, que colocou na mesa de trabalho de Mário.
Todos ficaram de olhos fixos nele, em perfeito silêncio. Como a superfície da mesa era fria e polida, após uns momentos o caracol aventurou-se a sair, pois tinha fome e já estava fechado há algum tempo na saca de Vagiennius, sem tranquilidade. Espreitou para fora da casca, como os caracóis fazem, não como uma tartaruga mas elevando a casca no ar e expandindo-se por debaixo dela em Protuberâncias informes, viscosas e amorfas. Uma dessas protuberâncias deu origem a uma cauda ponteaguda, e a protuberância do outro lado formou uma cabeça atarracada de onde cresceram umas hastes remelentas nascidas do nada. Quando a metamorfose ficou completa, começou a mascar sonoramente as folhas em que Públio Vagiennius o enrolara.
- A isto - disse Caio Mário - é que eu chamo um caracol.
- É mesmo! - pronunciou Quinto Sertório suavemente.
- Davam para alimentar um exército - disse Sila, que era conservador na alimentação e gostava tanto de caracóis como de cogumelos.
- É isso! - exclamou Públio Vagiennius. - É mesmo isso! Eu não quero esses mentulae cobiçosos - a audiência estremeceu - a roubar os meus caracóis! Há muitos caracóis, mas quinhentos soldados acabariam com eles! Quero levá-los para um lugar próximo de Roma e criá-los, e também não quero que o meu viveiro seja destruído. Quero a concessão, e quero o viveiro a salvo de todos os cunni deste exército!
- É mesmo um exército de cunni - disse Mário em tom grave.
- Acontece - disse Aulo Mânho em tom arrastado, no seu sotaque das classes altas - que eu posso ajudar-te, Públio Vagiennius. Tenho um cliente de Tarquínio, na Etrúria, que está a montar um negócio muito especial e lucrativo nos mercados do Cuppedenis, em Roma, vendendo caracóis. O nome dele é Marco Fúlvio... Não é um Fúlvio nobre... E avancei-lhe algum dinheiro para se estabelecer, há alguns anos. Está a sair-se bem. Imagino que teria todo o gosto em entrar em qualquer tipo de acordo contigo, considerando este magnífico, realmente magnífico caracol!
- Negócio fechado, Aulo Mânho - disse o soldado.
- Agora mostras-nos a via? - perguntou Sila, ainda impaciente.
- Um momento, um momento - disse Vagiennius, voltado para Mário, que apertava as botas. - Primeiro, quero ouvir o general dizer que o meu viveiro ficará a salvo.
Mário acabou de apertar as botas e endireitou-se para olhar Públio Vagiennius no rosto.
- Públio Vagiennius - disse -, és um homem digno do meu afecto! Combinas uma forte cabeça para negócios com um espírito patriótico firme. Não temas, dou-te a minha palavra de que o teu viveiro de caracóis ficará a salvo, Agora, peço-te que nos leves até à montanha.
Quando o grupo de exploração partiu, pouco tempo depois, havia sido acrescentado pelo chefe dos engenheiros. Foram a cavalo, para poupar tempo, Vagiennius no seu melhor cavalo, Caio Mário no corcel de certa idade mas elegante que guardava para as paradas, Sila mantendo a sua preferência pelas mulas e Aulo Mânho, Quinto Sertório e o engenheiro em póneis do exército.
A fumarola não apresentou a menor dificuldade para o engenheiro.
- É fácil - disse, olhando pela chaminé. - Vou construir uma bela escada larga até ao cimo. Há espaço.
- Quanto tempo demorarás? - perguntou Mário.
- Tenho comigo apenas alguns carregamentos de pranchas e vigas, por isso... dois dias, se trabalhar de dia e de noite - respondeu o engenheiro.
- Então, começa já - disse Mário, olhando para Vagiennius, com respeito rebobrado. - Deves ter alma de bode, para conseguir escalar isto comentou.
- Nasci e cresci na montanha - disse Vagiennius, contente consigo mesmo.
- O teu viveiro será preservado até a escada ser construída - disse Mário ao conduzir o grupo de volta aos cavalos. - Se os teus caracóis forem ameaçados, eu próprio resolverei a questão.
Cinco dias depois, a cidadela do Mulucha pertencia a Caio Mário, bem como uma quantidade fabulosa de moedas de ouro, barras de prata e mil talentos em ouro; havia ainda duas pequenas cestas, uma cheia do melhor e mais vermelho carbunculus que já se vira, e o outro cheio de pedras que ninguém conhecia, longos cristais facetados naturalmente cuidadosamente polidos revelando serem rosados numa das extremidades e escurecendo até ficarem verde-escuros na outra.
- Uma fortuna! - disse Sila pegando numa das pedras parcialmente coloridas a que os locais chamavam lychnites.
- É mesmo, é mesmo! - disse Mário com uma satisfação maldosa. Quanto a Públio Vagiennius, foi condecorado numa assembleia do exército, recebendo um conjunto completo de nove phalerae de prata sólida, que eram grandes medalhões redondos esculpidos em alto relevo e unidos em filas de três por meio de correias de prata embutida, para poderem ser usados ao peito sobre a couraça ou a cota de malha. A distinção agradou-lhe bastante, mas agradava-lhe ainda mais o facto de Mário ter cumprido a sua palavra e ter protegido o viveiro dos predadores vedando o percurso dos soldados até ao topo da montanha. Mário ocultou depois a passagem com peles, para que os soldados nunca soubessem que delícias suculentas atravessavam remelosamente a gruta de fetos. E quando a montanha foi conquistada, Mário ordenou a demolição imediata da escada. E não se limitou a isso; Aulo Mânho escrevera ao seu cliente, o ignóbil Marco Fúlvio, estabelecendo uma sociedade para que logo que a campanha africana chegasse ao seu termo, Públio Vagiennius recebesse o seu pagamento.
- Não te esqueças, Públio Vagiennius; - disse Mário ao firmar as nove phalerae de prata -, que nós os quatro esperamos uma recompensa decente nos próximos anos: caracóis gratuitos para as nossas mesas, com um quinhão extra para Aulo Mânho.
- Combinado - disse Públio Vagiennius, que descobrira para seu pesar que o apetite por caracóis lhe desaparecera para sempre desde a doença. No entanto, via agora os caracóis mais com os olhos ciumentos do conservador do que com os do destruidor.
No fim de Sextilis, o exército regressava da fronteira, alimentando-se muito bem com o produto dos campos, pois era a altura das colheitas. A visita ao extremo do reino do rei Boco teve o efeito desejado; convencido de que após ter conquistado a Numídia Mário não ia parar, Boco decidiu compartilhar a sorte do seu genro, Jugurta. Por isso, despachou o exército mouro para o rio Mulucha e encontrou aí Jugurta, que esperou a partida de Mário e a seguir reocupou a cidadela vazia da montanha.
Os dois reis seguiram no encalço dos romanos em direcção ao leste, sem pressa de atacar e mantendo-se a uma distância suficiente para não serem detectados. E então, quando Mário estava a cem milhas de Cirta, os reis atacaram.
Foi ao entardecer, e o exército romano estava ocupado a montar o acampamento. Mesmo assim, o ataque não apanhou os homens completamente desprevenidos, pois Mário montava o acampamento com uma atenção escrupulosa quanto à segurança. Os batedores aproximavam-se e calculavam os quatro cantos, que eram marcados, e o exército inteiro mudava-se com uma precisão escrupulosa para o interior do futuro acampamento, sabendo exactamente onde ficava cada legião, cada coorte de cada legião, cada centúria de cada coorte. Ninguém ocupava o espaço dos outros; ninguém ia para o lugar errado; ninguém se enganava quanto à extensão do terreno a ocupar. A coluna de carga transportada pelas mulas também foi levada para o interior; os não-combatentes ocuparam-se de cada octeto de mulas e do carro da centúria, e os responsáveis pela carga trataram de acomodar os animais e arrumar os carros. Com as ferramentas e estacas que traziam nos sacos, os soldados, ainda completamente armados, dirigiram-se para as secções limítrofes que lhes eram sempre atribuídas. Trabalhavam de cotas de malha e punhais; de lanças espetadas no chão, com os escudos encostados a estas e os elmos pendurados pelas correias à volta das lanças e sobre os escudos, para que o vento não fizesse voar a construção. Desse modo, todos os elmos, escudos e lanças ficavam ao alcance dos homens enquanto os trabalhos prosseguiam.
Os batedores não encontraram o inimigo; comunicaram que o campo estava livre e foram ajudar a montar o acampamento. Tinha-se posto o sol. E ao lusco-fusco, antes do escurecer, os exércitos númida e mauritano surgiram por detrás de uma ponte nas vizinhanças e precipitaram-se sobre o acampamento meio montado.
Todo o combate decorreu na escuridão, uma empresa desesperada que se processou contra os romanos durante algumas horas. Mas Quinto Sertório mandou os não-combatentes acender archotes, até que por fim o acampamento tinha luz suficiente para Mário ver o que estava a passar-se, e a partir daí as coisas começaram a melhorar para os romanos. Sila distinguiu-se enormemente, reunindo tropas que começavam a desanimar ou a entrar em pânico, aparecendo em todos os lugares em que era necessário - como que por magia, mas de facto porque tinha aquela intuição militar inata para discernir previamente onde surgiria o seguinte ponto fraco. De espada ensanguentada, agressivo, começou a combater como um veterano - corajoso no ataque, cuidadoso na defesa, brilhante nas dificuldades.
E pela oitava hora de escuridão, a vitória foi romana. Os exércitos númida e mauritano retiraram-se em bastante boa ordem, mas deixando atrás muitos milhares dos seus soldados, ao passo que Mário perdera pouquíssimos.
De manhã, o exército romano partiu, tendo Mário decidido que o repouso estava fora de questão. Os mortos foram cremados, e os mortos do inimigo abandonados aos abutres. Desta vez, as legiões marcharam em quadrado, com a cavalaria disposta à frente e no fim de cada coluna comprimida, e as mulas e as de carga no meio. Se ocorresse um segundo ataque durante a marcha, os soldados apenas teriam de virar-se para fora nos quadrados, e a cavalaria estava já disposta de modo a formar alas. Os homens levavam agora os elmos postos, com o penacho colorido de crina de cavalo no topo; levavam os escudos sem a capa protectora e as duas lanças. A vigilância só abrandaria à chegada a Cirta.
No quarto dia, quando Cirta era o destino da noite seguinte, os reis voltaram a atacar. Desta vez, Mário estava preparado. As legiões formaram em quadrado, sendo cada um parte de um quadrado mais vasto que tinha a carga no centro, e cada um dos quadrados pequenos estava dividido em colunas e filas para redobrar a sua densidade face ao inimigo. Como sempre, Jugurta contava com a sua cavalaria númida de muitos milhares para desfazer a frente romana; como excelentes cavaleiros que eram, não usavam sela nem freio, e não tinham armadura, confiando na sua energia e poder de velocidade, na bravura e na exactidão com que manejavam dardos e espadas. Mas nem Boco nem a sua cavalaria conseguiram penetrar no interior do quadrado romano, e as forças de infantaria foram embater numa parede sólida de legionários que não temiam cavalo nem peão.
Sila lutou na linha da frente com a coorte principal, pois Mário detinha o controlo da táctica e o elemento surpresa era desprezível; quando as linhas de infantaria de Jugurta abriram por fim, foi Sila que liderou o ataque contra elas, e Sertório não vinha muito atrás.
O puro desespero de se ver livre de Roma de uma vez por todas manteve Jugurta em combate durante demasiado tempo. Quando resolveu bater em retirada, já era tarde, e não teve outra hipótese senão continuar a combater contra um exército romano que pressentia a vitória. Por isso a vitória romana, quando chegou, foi completa, perfeita, total. Os exércitos númida e mauritano foram destruídos, a maioria dos seus homens morreu no campo de batalha. Jugurta e Boco fugiram.
Mário entrou em Cirta à frente de uma coluna exausta, e todos os seus homens estavam radiantes; não haveria mais nenhuma guerra de grande escala em África - até o soldado mais baixo o sabia. Desta vez, Mário aquartelou o exército dentro das muralhas de Cirta, para não se arriscar a ficar exposto no exterior. As suas tropas ficaram aboletadas em casas de infortunados civis númidas, e estes constituíram os grupos de trabalho que ele enviou no dia seguinte para limpar o campo de batalha, queimar as pilhas de africanos mortos e trazer os muito menos numerosos romanos para as obséquias devidas.
Quinto Sertório viu-se encarregado das condecorações a atribuir numa reunião especial do exército, à qual se seguiria a cremação dos mortos; também lhe foi atribuído o cargo de organizar a cerimónia. Como era a primeira cerímónia destas a que assistia, não fazia ideia de como desempenhar a sua tarefa, mas era inteligente e desembaraçado. Pelo que foi perguntar a um centurião veterano primus pilus.
- O que tens de fazer, jovem Sertório - disse-lhe esse homem experiente -, é retirar todas as condecorações de Caio Mário e expô-las no estrado do general, para que os homens possam ver que tipo de soldado foi. Os nossos rapazes são bons, quer sejam dos capite censi quer não, mas desconhecem tudo o que se relaciona com a vida militar, e não provêm de famílias de tradições militares. Por isso, como podem saber que tipo de soldado era Caio Mário? Eu sei! Porque estive com Caio Mário em todas as suas campanhas desde... a Numância.
- Mas não me parece que ele tenha consigo as suas condecorações disse Sertório, desanimado.
- Claro que tem, jovem Sertório! - disse o veterano de uma centena de batalhas e escaramuças. - Elas dão-lhe sorte.
Com efeito, quando questionado, Caio Mário admitiu que tinha consigo as condecorações. Um pouco embaraçado, até Sertório lhe contar o comentário do centurião acerca da sorte.
Cirta em peso apareceu para assistir, visto que era realmente uma cerimónia impressionante, o exército em todo o esplendor das paradas, as águias de prata das legiões agrinaldadas com os louros da vitória, os estandartes tendo os punhos de prata dos manípulos ornamentados com os louros da vitória, a bandeira vexillum das centúrías agrinaldada com os louros da vitória. Todos os homens puseram as suas condecorações, mas como era um exército novo de homens novos, apenas alguns centuriões e meia dúzia de soldados exibiam faixas nos braços, bandas no pescoço, medalhões. Claro que Públio Vagiennius pôs o seu grupo de phalerae de prata.
Ali, mas o próprio Mário estava imponente! Foi o que achou o surpreendido Quinto Sertório, que esperava a sua vez de receber a Coroa de Ouro por um combate singular em campanha; também Sila esperava a vez de receber a Coroa de Ouro.
Lá estavam, alinhadas atrás dele no alto estrado, as condecorações de Mário. Seis lanças de prata por ter morto um homem em combate em seis ocasiões diferentes; uma bandeira vexillum escarlate bordada a ouro e com uma franja de ouro, por ter morto vários homens em combate singular na mesma ocasião; dois escudos de padrão oval encrustrados a ouro, por ter mantido um território muito concorrido contra todas as previsões. E havia ainda as condecorações que usava. A sua couraça era de couro duro, em vez do bronze prateado de oficial sénior, pois por cima dela tinha todas as phalerae nas suas correias incrustradas a ouro - nada menos que três conjuntos completos de nove em ouro, dois na parte da frente da couraça e um na parte de trás; seis colares de ouro e prata pendiam de pequenas tiras de couro nos ombros e no pescoço; os seus braços e punhos reluziam com braceletes armillae de ouro e prata. E havia ainda as coroas. Na cabeça usava uma Corona Civica, a coroa de folhas de nogueira apenas atribuída a um homem que salvasse a vida dos seus companheiros e se mantivesse firme no terreno onde cometera esse feito até ao fim da batalha. Outras duas coroas de folhas de nogueira pendiam de duas lanças de prata, indicando que ele ganhara a Corona Civica três vezes; de outras duas lanças de prata pendiam duas Coroas de Ouro pela demonstração de uma coragem notável, coroas feitas de ouro marteladas em forma de folhas de louro; da quinta lança pendia uma Corona Muralis, uma coroa de ouro com ameias, por ter sido o primeiro a escalar as muralhas de uma cidade inimiga; e da sexta lança pendia uma Corona Vallaris, uma coroa de ouro recebida por ter sido o primeiro a penetrar num acampamento inimigo.
”Que homem!”, pensou Quinto Sertório, catalogando mentalmente aqueles talismãs. Sim, os únicos prémios que não recebera eram a coroa naval, por valor numa batalha no mar - Mário nunca lutara no mar, pelo que a omissão era lógica - e a Corona Graminea, a grinalda simples de ervas atribuída a um homem que, pelo seu valor e valentia, salvasse uma legião inteira ou mesmo um exército inteiro. A coroa de ervas apenas fora concedida meia dúzia de vezes durante toda a história da República, a primeira vez ao lendário Lúcio Síccio Dentato, que recebera nada menos que vinte e seis coroas diferentes - mas apenas uma Coroa Graminea. A Cipião Africano, durante a segunda guerra contra Cartago. Sertório encolheu os ombros, desfiando o resto dos vencedores. Ah, Públio Décio Mus recebera-a durante a primeira guerra samnita! E Quinto Fábio Máximo Verrucosis Cunctator, por ter perseguido Aníbal por toda a Itália, impedindo-o assim de ganhar a confiança suficiente que lhe permitisse atacar Roma.
Então, Sila foi chamado para receber a Coroa de Ouro, bem como um conjunto completo de novephalerae de ouro, pelo seu mérito durante a primeira das duas batalhas contra os reis. Como tinha um ar satisfeito, tão confiante. Quinto Sertório ouvira dizer que era um sujeito frio e com tendências cruéis; mas nunca durante o tempo que haviam passado juntos em África vira provas que consubstanciassem essas acusações, e se elas fossem verdadeiras, Caio Mário não teria gostado de Sila como era nítido que gostava. Porque era óbvio que Quinto Sertório não compreendia que quando a vida corria bem e era agradável e continha bastantes desafios mentais e físicos, a frieza e crueldade podiam ser enterradas temporariamente; e também não compreendia que Sila era suficientemente perspicaz para saber que Caio Mário não era o homem a quem se devia mostrar o lado mais vil e obscuro. De facto, Lúcio Cornélio Sila portava-se da melhor maneira desde que Mário o convidara para ser seu questor - e nem tivera qualquer dificuldade em portar-se assim.
- Oh! - Quinto Sertório estremeceu. Estava tão imbuído nos seus pensamentos que nem ouvira chamar o seu nome, e recebeu um soco nos rins dado pelo seu servo, quase tão orgulhoso de Quinto Sertório como o próprio. Subiu ao estrado desajeitadamente e aí ficou enquanto Mário lhe colocava na cabeça a Coroa de Ouro, depois recebeu os aplausos do exército e a sua mão foi apertada por Caio Mário e Aulo Mânho.
E depois de todos os colares e braceletes e medalhões terem sido distribuídos e algumas das coortes terem recebido prêmios colectivos de grinaldas de ouro e prata para os seus estandartes, Caio Mário discursou.
- Muito bem, homens dos capite censi! - gritou, rodeado dos maravilhados agraciados com as condecorações. - Provaram ser mais bravos que os bravos, mais voluntariosos que os voluntários, mais trabalhadores que os mais diligentes, mais inteligentes que os inteligentes! Há muitos estandartes nus que podem agora ser ornamentados com as condecorações ganhas pelos seus donos! Quando atravessarmos Roma em triunfo, daremos a todos muitas coisas para ver! E no futuro, que nenhum Romano diga que os Homens dos capite censi não amam Roma o suficiente para ganharem batalhas por ela!
Novembro começava a prometer chuva quando chegou a Cirta uma delegação do rei Boco da Mauritânia. Mário deixou os seus membros enervarem-se durante vários dias, ignorando os pedidos de urgência.
- Ficarão moles como almofadas - explicou a Sila, quando finalmente acederam a recebê-los.
- Não perdoarei ao rei Boco - disse, no seu gambito inicial -, por isso, vão-se embora! Estão a fazer-me perder tempo.
O porta-voz era um irmão mais novo do rei, um tal Bogud, e o prínciPe Bogud avançou rapidamente, antes que Mário pudesse acenar aos seus lictores para expulsarem a delegação.
- Caio Mário, Caio Mário, o rei meu irmão tem plena consciência da extensão das suas transgressões! - disse o príncipe. - Ele não pede clemência, nem pede que o recomendes ao Senado e Povo de Roma para ser reintegrado como Amigo e Aliado do Povo de Roma. O que pede é que na Primavera envies dois dos teus legados superiores à sua corte de Tíngis, para lá dos Pilares de Hércules. Aí, explicar-lhes-á muito em pormenor os motivos que o levaram a aliar-se ao rei jugurta; e apenas pede que o ouçam. Eles não devem dizer-lhe uma palavra em resposta: devem comunicar-te o que ele lhes disser, para que possas responder. Peço-te, concede este favor ao rei meu irmão!
- O quê? Enviar dois dos meus homens mais importantes até Tíngis no início da estação de campanha? - perguntou Mário com incredulidade bem fingida. - Não! O melhor que farei será enviá-los até Saldae era um porto pequeno, não muito longe a oeste do porto marítimo de Cirta, Rusicade.
Toda a delegação lançou as mãos à cabeça, aterrorizada.
- É impossível! - gritou Bogud. - O rei meu irmão quer a todo o custo evitar o rei jugurta!
- Icosium - disse Mário, nomeando outro porto marítimo a cerca de duzentas milhas a oeste de Rusicade. - Enviarei o meu legado sénior, Aulo Mânho, e o meu questor, Lúcio Cornélio Sila, apenas até Icosium: mas agora, príncipe Bogud, e não na Primavera.
- É impossível! - gritou Bogud. - O rei está em Tíngis!
- Que disparate! - disse Mário com ironia. - O rei vai a caminho da Mauritânia de rabo entre as pernas. Se mandares um cavaleiro rápido atrás dele, garanto-te que não terá dificuldade em chegar a Icosium na mesma altura em que os meus legados desembarcarem - lançou a Bogud um olhar sinistro. - É a minha melhor oferta... e única! Ou a aceitas ou não.
Bogud aceitou. Quando a delegação embarcou dois dias mais tarde, navegou com Aulo Mânho e Sila numa barca rumo a Icosium, depois de enviar um cavaleiro rápido ao encontro dos restos esfrangalhados do exército mouro.
- Estava à nossa espera quando atracámos, tal como disseste - comunicou Sila um mês depois, no regresso.
- Onde está Aulo Mânho? - perguntou Mário. Os olhos de Sila brilharam.
- Aulo Mânho não se sente bem, e por isso resolveu regressar por terra.
- É uma doença grave?
- Nunca vi pior marinheiro - disse Sila, recordando-se.
- Desconhecia esse aspecto dele! - disse Mário, espantado. - Suponho então que foste tu que estiveste mais atento, e não Aulo Mânho.
- Sim - disse Sila, e sorriu com os dentes à mostra. - Boco é um homenzinho engraçado. Redondo como uma bola devido às doçarias que come. Aparentemente é muito pomposo, mas acaba por revelar-se muito tímido.
- É uma conjugação normal - disse Mário.
- É nítido que tem medo de Jugurta; não me parece que minta quanto a isso. E se lhe dermos garantias seguras de que não temos qualquer intenção de tirá-lo do poder na Mauritânia, penso que teria todo o gosto em servir os interesses de Roma. Mas Jugurta manobra-o, como sabes.
- Jugurta manobra toda a gente. Seguiste a regra de Boco acerca de não dizer nada, ou falaste?
- Deixei-o dizer tudo o que queria primeiro - disse Sila -, mas depois falei. Ele tentou ser muito leal e pedir-me que partisse, e por isso disse-lhe que estávamos a fazer um acordo apenas de um dos lados, e que não comprometia os teus representantes em relação a ti.
- O que lhe disseste? - perguntou Mário.
- Que se ele fosse um rei inteligente, ignoraria Jugurta no futuro e aliar-se-ia a Roma.
- Como reagiu ele?
- Bastante bem. Deixei-o num estado deplorável.
- Então, esperaremos para ver o que acontece a seguir - disse Mário.
- Uma coisa que descobri - acrescentou Sila - foi que Jugurta não consegue recrutar soldados. Até os Getulos se recusam a dar-lhe mais homens. A Numídia está muito cansada da guerra, e já quase ninguém no reino, seja habitante das regiões povoadas ou um nómada do interior, acredita agora que tenham muitas hipóteses de ganhar.
- Mas irão entregar Jugurta? Sila abanou a cabeça.
- Não, claro que não!
- Não faz mal - disse Mário, mostrando os dentes. - No próximo ano, Lúcio Cornélio! No próximo ano, apanhá-lo-emos.
Pouco depois do final do ano velho, Caio Mário recebeu uma carta de Públio Rutílio Rufo, muito atrasada no trajecto por uma série de tempestades violentas.
Sei que querias que me candidatasse a cônsul ao mesmo tempo que tu, Caio Mário, mas surgiu uma oportunidade que só um louco ignoraria. Sim, tenciono candidatar-me ao consulado no ano que vem, e vou inscrever o meu nome como candidato amanhã. É que o poço parece estar temporariamente seco. O quê? Não é de novo Quinto Lutácio Catulo César?, ouço-te perguntar. Não, ele está muito por baixo ultimamente, pois éóbvio quepertence à facção que defendeu todos os nossos cônsules responsáveis pela perda de tantos soldados. Até aqui, o melhor candidato designado éum Homem Novo - Cneu Málio Máximo, nem mais. Não é mau sujeito; não me importaria de colaborar com ele - mas se for ele o melhor candidato em campo, então serei eleito com certeza. O teu comando foi prorrogado até ao ano que vem, como já deves ter conhecimento.
Roma é realmente um local muito aborrecido neste momento; quase não tenho notícias para te dar, e muitíssimo poucas em termos de escândalos. Todos os teus estão bem, o jovem Mário é uma alegria e um encanto, muito dominador e avançado para a idade, prega todo o tipo de partidas e põe a mãe doida, exactamente como deve ser um rapaz novo. No entanto o teu sogro, César, não está bem, apesar de - como era de esperar, sendo César - nunca se queixar. Há qualquer coisa errada na voz dele, e não há doçura que resolva isso.
E esta é a última notícia. Que terrível! De que poderei falar mais? Ainda mal enchi uma página, e mal é o termo exacto, Bem, há a história da minha sobrinha Aurélia. E quem é essa Aurélia?, perguntarás tu. Nem isso te interessa minimamente, garanto-te. Não faz mal. Podes escutar; serei breve. Decerto conheces a história de Helena de Tróia, apesar de seres um Provinciano italiano que não sabe grego. Era tão bela que todos os reis e príncipes queriam desposá-la. Umpouco como a minha sobrinha. Tão bela que todos os homens notáveis de Roma querem casar com ela.
Todos os filhos da minha irmã Rutília são bonitos, mas Aurélia é mais do que simplesmente bonita. Quando era criança, todos lamentavam o seu rosto - era demasiado ossudo, demasiado duro, demasiado tudo. Mas agora que vai fazer dezoito anos, todos louvam exactamente o mesmo rosto.
Eu gosto muito dela, com efeito. E porquê?, perguntarás. Sinceramente, não costumo interessar-me pelos rebentos femininos dos meus numerosos parentes próximos, nem pela minha própria filha e pelas minhas duas netas. Mas sei por que motivo aprecio Aurélia. Por causa da sua serva. Quando ela fez treze anos, a minha irmã e o marido, Marco Aurélio Cota, decidiram que deveria ter uma serva permanente que também funcionaria como companhia e vigilante. Por isso, compraram uma rapariga muito boa, e deram-na a Aurélia. A qual, pouco tempo depois, anunciou que não queria aquela rapariga.
Porquê?, perguntou a minha irmã Rutília. Porque é preguiçosa, disse a rapariga.
Lá voltaram os pais ao vendedor, e depois de uma selecção mais apurada escolheram outra rapariga. Que Aurélia igualmente recusou.
Porquê?, perguntou a minha irmã Rutília.
Porque pensa que pode dominar-me, respondeu Aurélia.
E lá voltaram ospais uma terceira vez, e examinaram minuciosamente os livros de Espúrio Postúmio Glício em busca de outra rapariga. Tenho de acrescentar que todas tinham uma formação esmerada, eram gregas e muito inteligentes.
Mas Aurélia também não quis a terceira rapariga. Porquê?, perguntou a minha irmã Rutília.
Porque quer tirar partido das coisas em seu favor; já anda a fazer olhinhos ao mordomo, disse Aurélia.
Então, vai tu escolher a tua serva!, disse a minha irmã Rutília, desligando-se de vez do assunto.
Quando Aurélia chegou a casa com a sua escolha, afamíliaficou completamente espantada, Porque se depararam com uma rapariga de dezasseis anos dos Arvemos gauleses, uma criatura muito alta e magra com uma horrível cara redonda de nariz redondo e achatado, os olhos de um azul desmaiado, cabelo cruelmente cortado (fora vendido para fazer uma peruca quando o seu dono anterior precisou de dinheiro), e as mãos e pés maiores que já alguma vez vi, em homem ou mulher. O seu nome, segundo anunciou Aurélia, era Cardixa.
Como sabes, Caio Mário, fico sempre intrigado com as origens daqueles que trazemos para os nossos lares como escravos. Porque sempre me parece que dedicamos consideravelmente menos tempo a decidir a ementa de um banquete do que às pessoas em quem confiamos para tratarem das nossas roupas, das nossas pessoas, dos nossos filhos e até mesmo das nossas reputações. Ora eu percebi imediatamente que a minha sobrinha Aurélia de treze anos tinha escolhido aquela horrível Cardixa precisamente pelas razões certas. Queria uma pessoa leal, trabalhadora. submissa e bem intencionada e não uma pessoa com bom aspecto, que falasse grego como uma nativa (não falam todas?) e que soubesse manter uma conversa.
E tomei a meu cargo informar-me acerca de Cardixa, o quefoi muito simples, Limitei-me a perguntar a Aurélia, que conhecia toda a histÓria da rapariga. Fora vendida como cativa juntamente com a mãe, quando tinha quatro anos, depois de Cneu Domício Aenobarbo ter submetido os Arvemos e ter criado nossa província da Gália Transalpina. Pouco depois de terem chegado a Roma, a mãe morreu, ao que consta por sentir a falta do lar Por isso, a rapariga tornou-se numa espécie de moça de recados, andando para cá e para lá com vasos de noite, almofadas e pufes. Foi vendida várias vezes depois de ter perdido a beleza infantil e começou a transformar-se na magrizelas desajeitada que vi quando Aurélia a trouxe para casa. Um dos seus donos molestou-a sexualmente quando ela tinha seis anos; outro chicoteava-a sempre que a mulher se queixava; e um terceiro dono ensinou-a a ler e escrever ao mesmo tempo que a sua filha, que era uma aluna recalcitrante.
- Então, tiveste piedade e resolveste trazer a pobre criatura para um lar amigo - disse eu a A urélia.
E agora, Caio Mário, vem a razão porque amo mais esta rapariga do que a minha filha.
Porque o meu comentário não lhe agradou nada. Elevou-se um pouco como uma serpente e disse: De modo nenhum! A piedade merece a nossa admiração, Tio Públio, pois todos os livros nos dizem isso. Mas seria um fraco motivo para escolher uma serva! Se a vida de Cardixa não tem sido ideal, não tenho a culpa. Por isso, não me sinto obrigada a rectificar o seu desfortúnio. Escolhi a Cardixa porque estou certa de que será leal, trabalhadora, submissa e bem intencionada. Um invólucro bonito não é garantia de que vale a pena ser lido o livro que contém.
Oh! Não a estimas também, Caio Mário, por pouco que seja? Treze anos era a idade dela nessa altura! E o mais estranho em tudo isto é que embora na minha escrita atroz o que ela disse possa agora parecer pretensioso ou mesmo cruel, eu sabia que não era presumida nem insensível. Bom senso, Caio Mário! A minha sobrinha tem bom senso. E quantas mulheres conheces que tenham um dom tão precioso como esse? Todos esses sujeitos querem casar com ela pelo seu rosto e pela sua figura e pela fortuna, ao passo que eu preferia conceder a sua mão a alguén que lhe apreciasse o bom senso. Mas como pode alguém decidir quem deve ser favorecido? É essa a pergunta fulcral que todos nós colocamos uns aos outros.
Quando pousou a carta, Caio Mário pegou na pena e aproximou de si uma folha de papel. Mergulhou o estilete no tinteiro, e escreveu sem hesitação.
É evidente que compreendo. Avança, Públio Rutílio! Cneu Málio Máximo necessitará de todo o auxílio possível, e tu serás um excelente cônsul. Quanto à tua sobrinha, por que não a deixas escolher o marido? Parece terfeito uma boa escolha em relação à serva. Embora eu não consiga compreender qual é a tua preocupação. Lúcio Cornélio comunicou-me que é pai de um rapaz, mas recebeu a notícia de Caio Júlio e não de Julilla. Fazias-me o favor de estar atento àquela rapariga? não me parece que Julilla seja como a tua sobrinha no que diz respeito ao bom senso, e não sei a quem mais posso pedi-lo, já que não posso pedir ao seu tara que a mantenha debaixo de olho. Agradeço-te que me tenhas avisado de que Caio Júlio não se encontra bem de saúde. Espero que quando receberes esta missiva, já sejas um dos novos cônsules.
DURANTE O CONSULADO DE PÚBLIO RUTÍLIO RUFO E CNEU MALIO Embora jugurta ainda não estivesse em fuga dentro do seu próprio país, as regiões mais povoadas e orientais tinham-se resignado à dominação romana. No entanto Cirta, a capital, estava situada no centro, e por isso Mário decidiu que seria prudente passar aí o Inverno e não em útica. Os habitantes de útica nunca haviam mostrado grande simpatia pelo rei, mas Mário conhecia Jugurta o suficiente para saber que ele atingia o auge da sua perigosidade - e do seu charme - quando pressionado; não seria sensato deixar Cirta aberta à sedução do rei. Sila permaneceu em útica a governar a província romana e Aulo Mânho ficou livre de serviço e foi autorizado a tornar a casa. Mânho levou consigo para Roma os dois filhos de Caio Júlio César, embora nenhum deles quisesse deixar a África. Mas a carta de Rutílio perturbara Mário: teve o pressentimento de que seria sensato devolver os filhos a César.
Em Janeiro do Ano Novo, o rei Boco da Mauritânia tomou por fim uma resolução; apesar dos laços conjugais e de sangue que o uniam a Jugurta, aliar-se-ia formalmente a Roma - se Roma se dignasse aceitá-lo. Por isso, mudou-se de Iol para Icosium, o lugar onde se encontrara com Sila e o enjoado Mânho dois meses antes, e enviou de Icosium uma pequena embaixada para negociar com Mário. Infelizmente, não lhe ocorreu que Mário passasse o Inverno noutro lugar que em vez de útica; por consequência, a pequena embaixada dirigiu-se a útica, bem a norte de Cirta e de Caio Mário.
Havia cinco embaixadores mouros, incluindo também desta vez o irmão mais novo do rei, bem como um dos seus filhos, mas o grupo viajava com pouquíssimo aparato e sem escolta militar; Boco não queria dificuldades com Mário nem sugerir intenções marciais. Também queria desviar as atenções de Jugurta.
Por isso, o grupo a cavalo parecia um conjunto de prósperos mercadores tornando a casa com o produto de uma boa época comercial, e era irresistivelmente tentador para os bandos de salteadores armados que se haviam aproveitado da fragmentação da Numídia e da impotência do seu rei para se apropriarem dos bens dos outros. Quando o grupo atravessava o rio Ubo, um pouco a sul de Hipona, foi assaltado por foragidos e despojado de tudo menos das roupas que vestiam; até os escravos e servos foram levados para voltarem a ser vendidos em qualquer mercado distante.
Quinto Sertório e o seu aparelho cerebral extremamente apurado estavam de serviço junto de Mário, o que significava que Sila tinha sob as suas ordens oficiais menos atentos. No entanto, sabendo-o muito bem, Sila tornara prática corrente ficar de olho alerta ao que se passava nos portões do palácio em útica; e, por sorte, viu o grupo esfarrapado dos pobres itinerantes que faziam tentativas inúteis para entrar.
- Mas temos de encontrar-nos com Caio Mário! - insistia o príncipe Bogud. - Somos embaixadores do rei Boco da Mauritânia, garanto! Sila reconheceu pelo menos três membros do grupo e aproximou-se.
- Manda-os entrar, idiota - disse ao tribuno de serviço, e depois pegou no braço de Bogud para o auxiliar, pois era nítido que tinha os pés em muito mau estado. - Não, as explicações podem esperar, Príncipe - disse com firmeza. - Precisas de um banho, roupas limpas e repouso.
Horas depois, ouviu a história de Bogud.
- Demorámos muito mais tempo a chegar aqui do que esperávamos
- disse Bogud ao concluir -, e receio que o rei meu irmão esteja desesperado. Posso falar com Caio Mário?
- Caio Mário está em Cirta - respondeu Sila. - Aconselho-te que me digas o que deseja o teu rei, e que deixes a meu cargo a sua transmissão a Cirta. Senão haverá ainda mais atrasos.
- Somos todos parentes directos do rei, que pede a Caio Mário que nos envie para Roma, onde deveremos requerer pessoalmente ao Senado que reintegre o rei ao serviço de Roma - afirmou Bogud.
- Estou a compreender - Sila levantou-se. - Príncipe Bogud, peço-te que te instales confortavelmente e esperes. Vou já mandar um enviado a Caio Mário, mas só teremos notícias dentro de alguns dias.
Dizia o seguinte a carta de Caio Mário, que chegou a útica quatro dias mais tarde:
Muito bem! Isto pode ser bastante útil, Lúcio Cornélio. No entanto, tenho de ser extremamente cauteloso. O novo cônsul sénior, Públio Rutílio Rufo, disse-me que o nosso querido amigo Metelo Numídico Suíno tem dito a toda a gente que me acusa de extorsão e corrupção na administração da província. Por isso, não posso fazer nada que lhe dê pretextos. Felizmente, ele terá de fabricar as suas próprias provas, pois nunca foi prática minha extorquir ou corromper - bem, suponho que o saibas melhor do que ninguém. Assim, eis o que quero que faças.
Concederei audiência ao príncipe Bogud em Cirta, pelo que terás de enviar para cá a delegação. Contudo, antes de começares, quero que reúnas todos os senadores romanos, tribunos do Tesouro e cidadãos romanos importantes de toda a África e província romana em África. Trá-los todos até Cirta. Porque vou entrevistar Bogud com todos os notáveis romanos que encontrar a ouvir todas as minhas palavras, e a aprovar por carta o que eu decidir fazer.
Com gargalhadas estrondosas, Sila pousou a carta.
- Oh, extremamente bem feito, Caio Mário! - comentou para as quatro paredes do seu gabinete, e foi causar estragos entre os tribunos e funcionários administrativos, mandando-os esquadrinhar toda a província em busca de notáveis romanos.
Devido à sua importância para Roma como abastecedora de cereais, a Província de África era o lugar que os Pais Conscritos mais viajados gostavam de visitar. Era também exótica e bonita, e nesta altura do início do ano, como os ventos dominantes vinham do quadrante norte, era a rota mais segura do que a passagem através do mar Adriático - para os que tinham tempo suficiente. E apesar de se estar na estação das chuvas, não implicava que chovesse todos os dias; no meio das chuvas, o clima era deliciosamente reparador, quando comparado com a Europa assolada pelos ventos, e curava logo as frieiras dos viajantes.
Assim, Sila pôde reunir dois senadores ambulantes e dois proprietários de terras absentistas (Incluindo o maior de todos, Marco Célio Rufo), além de um funcionário sénior do Tesouro em férias de Verão e um plutocrata de Roma, de momento em útica, que tinha um enorme negócio de compra de cereais e para quem o comércio do trigo era um passatempo com intenções futuras.
- Mas o grande golpe - disse a Caio Mário mal chegou a Cirta quinze dias mais tarde - era nem mais nem menos Caio Billienus, que quis dar uma vista de olhos a África a caminho da Província da Ásia, que ia governar. Deste modo, posso conceder-te um pretor com imperium proconsular, nada menos! Também temos um questor do Tesouro, Cneu Octávio Ruso, que felizmente chegou ao porto de útica mesmo antes de eu partir, transportando os soldos do exército. Por isso, forcei-o também.
- Lúcio Cornélio, és um homem que me agrada! - disse Mário com um sorriso largo. - Oh, compreendes as coisas rapidamente!
E antes de ver a delegação moura, Mário reuniu um conselho dos seus notáveis romanos.
- Quero explicar-vos a situação a todos vós, augustos cavalheiros, tal como ela é, e depois de falar com o príncipe Bogud e os seus colegas embaixadores na vossa presença, quero que cheguemos a uma decisão conjunta quanto ao que devo fazer em relação ao rei Boco. Será necessário que cada um de vós exponha a sua opinião por escrito, para que, quando Roma for informada, todos possam ver que não excedi os limites da minha autoridade - disse Mário aos senadores, proprietários, um tribuno do Tesouro, um questor e um governador de província.
O resultado do encontro foi exactamente o que Mário desejava; expusera cuidadosamente o seu caso aos notáveis romanos e fora apoiado com a maior veemência pelo seu questor, Sila. Um acordo de paz com Boco era muito desejável, como concluíram os notáveis, e poderia realizar-se com muito maior facilidade se fossem enviados antecipadamente para Roma três dos enviados mouros, escoltados pelo questor do Tesouro, Cneu, Octávio Ruso, e os outros dois foram enviados de volta para Boco como prova da boa fé de Roma.
Assim, Cneu Octávio Ruso levou Bogud e dois dos seus primos para Roma, onde chegaram nos princípios de Março, e foram logo ouvidos pelo Senado numa reunião especialmente convocada para o efeito. Esta ocorreu no Templo de Belona, porque o assunto envolvia uma guerra exterior com um soberano estrangeiro; e como Belona era a deusa romana da guerra, e por isso muito mais velha que Marte, o seu templo era O local escolhido para as reuniões de guerra do Senado.
O cônsul Públio Rutílio Rufo enviou o veredicto do Senado com as portas do templo bem abertas, para permitir que o ouvissem todos Os que se apinhavam no exterior.
- Digam ao rei Boco - exclamou Rutílio Rufo na sua voz aguda e clara - que o Senado e Povo de Roma recordam tanto uma ofensa como um favor. É claro para nós que o rei Boco está sinceramente arrependido da sua ofensa, pelo que seria extremamente grosseiro da nossa parte, o Senado e Povo de Roma, recusar-lhe o perdão. É por esse motivo que será perdoado. Contudo, o Senado e Povo de Roma requerem agora que o rei Boco nos faça um favor de grandeza equivalente, pois até à data não temos lembrança de nenhum favor concedido a par com a ofensa. Não estipulamos nada quanto a esse favor; fica inteiramente a cargo do rei Boco. E quando o favor nos for mostrado tão inequivocamente como o foi a ofensa, o Senado e Povo de Roma terão a alegria de firmar com o rei Boco da Mauritânia um tratado de amizade e aliança.
Boco recebeu esta resposta nos fins de Março, enviada pessoalmente por Bogud e os outros dois embaixadores. O terror de represálias de Roma havia exagerado os receios do rei em relação à sua pessoa, e em vez de se retirar para a distante Tíngis, Boco preferira ficar em Icosium. Caio Mário, pensou, negociaria com ele até esta distância, não mais. E para se proteger de Jugurta, levou um novo exército mouro para Icosium e fortificou a pequena residência do porto o melhor que pôde.
Bogud partiu para ir ter com Mário a Cirta.
- O rei meu irmão roga e implora a Caio Mário que lhe diga que favor de grandeza equivalente à sua ofensa poderá fazer a Roma - perguntou Bogud, de joelhos.
- Levanta-te, homem, levanta-te! - disse Mário de mau humor. - Eu não sou rei! Sou apenas um procônsul do Senado e Povo de Roma! Ninguém me adula, porque isso me rebaixa tanto como ao adulador!
Bogud pôs-se de pé com esforço, espantado.
- Caio Mário, ajuda-nos! - exclamou. - Que favor pode o Senado querer?
- Ajudar-te-ia se pudesse, príncipe Bogud - disse Mário, observando as suas unhas.
- Então, envia um dos teus oficiais superiores para falar com o rei! Talvez em conversa particular se possa encontrar uma solução.
- Está bem - disse Mário subitamente -, Lúcio Cornélio Sila pode ir falar com o teu rei. Desde que o ponto de encontro não seja mais longe de Cirta do que Icosium.
- É evidente que é Jugurta que, queremos como favor - disse Mário a Sila quando o questor se preparava para partir. - Ah, dava os meus dentes caninos para ir em teu lugar, Lúcio Cornélio! Mas como não posso, fico muito contente por enviar um homem com um bom par de caninos. Sila riu mostrando os dentes.
- Quando ferram, tenho dificuldade em largar - respondeu.
- Então, ferra-os bem por mim! E se puderes, traz-me Jugurta! E foi com coragem e determinação férrea que Sila embarcou para Rusicade; tinha consigo uma coorte de legionários romanos, uma coorte de tropas italianas de armamento ligeiro da tribo dos Pelingi do Sâmnio, uma escolta pessoal de atiradores das ilhas Baleares e um esquadrão de cavalaria, a unidade de Públi o Vagiennius da Ligúria. Estava-se em meados de Maio.
Durante todo o caminho até Icosium seguiu enervado, apesar de ser um bom marinheiro e ter descoberto em si mesmo um grande gosto pelo mar e pelos barcos. A expedição foi afortunada. E foi significativa para ele. Sabia-o com tanta certeza como se também tivesse recebido uma profecia. Estranhamente, nunca tinha tentado obter uma entrevista com Marta, a Síria, embora Mário o incitasse frequentemente a fazê-lo; a sua recusa não tinha nada a ver com a descrença ou a falta da superstição necessária. Como romano que era, Sila estava crivado de superstições. A verdade era que tinha demasiado receio. Por mais que ansiasse que outro ser humano confirmasse as suas próprias suspeitas acerca do seu destino, conhecia demasiado bem as suas fraquezas e aspectos obscuros para se expor aos prognósticos com a serenidade de Mário.
Mas agora, a caminho da baía de Icosium, desejava ter ido falar com Marta. Porque o seu futuro parecia comprimi-lo como o peso de um cobertor, e ele não sabia, não conseguia sentir o que lhe reservava o destino. Grandes coisas. Mas também coisas más. Quase sozinho entre os seus pares, Sila entendia a presença palpável e em fermentação do mal. Os gregos haviam debatido a sua natureza interminavelmente e muitos afirmavam que o mal não existia. Mas Sila sabia que existia. E desconfiava que existia nele.
A baía de Icosium exigia uma cidade majestosa, mas em vez disso possuía apenas uma pequena povoação amontoada nos seus limites, onde uma cordilheira escarpada de montanhas costeiras se estendia até à praia, tornando-a ao mesmo tempo abrigada e distante. Durante as chuvas de Inverno, muitos riachos iam dar ao mar e mais de uma dúzia de ilhas flutuavam como pequenos barcos com os altos ciprestes locais à semelhança dos mastros e velas. Era um belo lugar, Icosium, pensou Sila.
Na praia contígua à cidade esperavam cerca de mil soldados de cavalaria mouros berberes, equipados como os númidas - sem selas nem freios nem armaduras -, apenas com um feixe de lanças numa mão e espadas longas e escudos.
- Ah! - exclamou Bogud, assim que aportou com Sila no primeiro batelão. - O rei enviou o seu filho preferido esperar-te, Lúcio Cornélio.
- Como se chama? - perguntou Sila.
- Volux.
O jovem vinha a cavalo, armado como os seus homens, mas sobre um cavalo ataviado com sela e freio. Sila gostou da maneira como lhe apertou a mão e dos modos do príncipe Volux; mas onde estava o rei? Os seus olhos experientes não conseguiam divisar a confusão ruidosa e agitada que rodeava um rei residente.
- O rei retirou-se para as montanhas, cerca de cem milhas a sul, Lúcio Cornélio - explicou o príncipe enquanto se dirigiam para um local onde Sila pudesse superintender a descarga das suas tropas e equipamento. Sila sentiu-se mal.
- Mas isso não estava no acordo que o rei fez com Caio Mário - asseverou.
- Eu sei - disse Volux, pouco à vontade. - É que Jugurta está por estes lados.
Sila ficou paralisado.
- Isto é uma armadilha, príncipe Volux?
- Não, não! - gritou o jovem, descontrolado. -juro-te por todos os deuses, Lúcio Cornélio, que não é uma armadilha! Mas Jugurta anda desconfiado, porque o Rei, meu pai, deu a entender que iria voltar a Tíngis, enquanto continua aqui em Icosium. Por isso, Jugurta mudou-se para os montes com um pequeno exército de Getulos: não é o número de homens suficientes para nos atacarem, mas são demasiados para os atacarmos. O Rei, meu pai, decidiu afastar-se do mar para fazer Jugurta supor que se esperava alguém vindo de Roma e que o seu visitante viria por terra. Então, Jugurta seguiu-o. Jugurta não sabe da tua chegada, estamos certos. Foste sensato em vir por mar.
- Jugurta em breve descobrirá que estou aqui - disse Sila com tristeza, pensando na sua escolta inadequada de mil e quinhentos homens.
- Esperemos que não; pelo menos por agora - afirmou Volux. -
Trouxe mil dos meus soldados do acampamento do Rei, meu pai, há três meses, como se viesse fazer manobras, e dirigi-me para a costa. Não estamos oficialmente em guerra com a Numídia, por isso, Jugurta terá poucos pretextos para nos atacar, mas também sabe bem o que o Rei, meu pai, tenciona fazer, e não se arrisca a defrontar-nos já, antes de estar mais informado. Asseguro-te que optou por ficar de vigia ao nosso acampamento a sul, e os seus batedores não chegarão perto de Icosium enquanto os meus soldados patrulharem a área.
Sila lançou ao jovem um olhar céptico, mas não disse nada, não eram muito práticos estes membros da realeza moura. Irritado com a dolorosa lentidão do desembarque - pois Icosium não possuía mais de vinte barcaças ao todo e ele via que o processo se completaria no dia seguinte pela mesma hora - suspirou, encolheu os ombros. Não valia a pena preocupar-se; Jugurta poderia ficar a par ou não.
- Onde está Jugurta? - perguntou.
- A cerca de trinta milhas do mar, numa pequena planície no meio das montanhas, a sul daqui. Na única via directa entre Icosium e o acampamento do Rei, meu pai - disse Volux.
- Oh, isso é maravilhoso! E como posso chegar até ao Rei, teu pai, sem combater Jugurta primeiro?
- Posso levar-te por um caminho circundante e ele nunca desconfiará - disse Volux ansiosamente. - É verdade que posso, Lúcio Cornélio! O Rei, meu pai, confia em mim! - pensou um momento e acrescentou No entanto, penso que seria melhor deixares aqui os teus homens. Teremos muito mais hipóteses se formos num grupo muito pequeno.
- Por que hei-de confiar em ti, príncipe Volux? - perguntou Sila. Não te conheço. Por falar nisso, nem conheço bem o príncipe Bogud, nem o Rei, teu pai! Podes ter decidido voltar com a palavra atrás e entregar-me a Jugurta... Eu sou um bom prémio! A minha captura causaria sérios problemas a Caio Mário, como sabes.
Bogud não disse nada. Ficou apenas com um ar cada vez mais sombrio, mas o jovem Volux não ia desistir.
- Então, dá-me uma tarefa que prove a minha lealdade e a do Rei, meu pai! - exclamou.
Sila meditou no assunto com um sorriso feroz.
- Muito bem - disse, com uma decisão súbita. - Tens-me na mãO, por isso, o que tenho a perder? - e olhou para o mouro com os seus estranhos olhos claros a dançar como duas jóias claras sob a aba do largo chapéu de palha: uma cobertura bizarra para a cabeça de um soldado romano, mas um soldado que era então famoso de Tíngis à Cirenaica, onde quer que os feitos dos Romanos fossem contados à roda de fogueiras e lareiras: o albino herói romano com o seu chapéu.
Tenho de acreditar na minha sorte, pensava para consigo, pois não sinto em mim qualquer aviso de que a minha sorte não se mantenha. Isto é um teste, uma prova da minha auto confiança, um modo de mostrar a todos, desde o rei Boco e o seu filho até ao homem de Cirta, que estou à altura - e não acima! - de tudo o que a Fortuna lançar no meu caminho. Um homem não pode saber de que matéria é feito se fugir. Não, eu avanço. Eu tenho sorte. Pois forjei a minha sorte, e forjei-a bem.
- Esta noite, logo que escureça - disse a Volux -, nós os dois com uma pequena escolta de cavalaria iremos ao acampamento do Rei, teu pai, Os meus homens ficarão aqui, o que implica que se Jugurta descobrir a presença de romanos, pensará que ela se limita a Icosium, e que o Rei, teu pai, virá aqui encontrar-se connosco.
- Mas não há lua esta noite! - alegou Volux, desanimado.
- Eu sei - disse Sila, sorrindo do seu modo mais desagradável. - É esse o teste, príncipe Volux. Teremos a luz das estrelas e nada mais. E vais conduzir-me mesmo pelo meio do acampamento de Jugurta.
Os olhos de Bogud saíram das órbitas.
- É uma loucura! - exclamou ele, ofegante. Os olhos de Volux agitaram-se.
- É um verdadeiro desafio - afirmou, sorrindo com prazer genuíno.
- Estás pronto? - perguntou Sila. - Mesmo pelo meio do acampamento de Jugurta: entrar por um lado sem que a sentinela nos veja ou oiça... pelo meio da via praetoria sem incomodar um só homem ou cavalo adormecido, e sair pelo outro lado sem que a sentinela nos veja ou oiça. Faz isso, príncipe Volux, e eu saberei que posso confiar em ti! E em troca, confiarei no Rei, teu pai.
- Estou pronto - disse Volux.
- São ambos loucos - comentou Bogud.
Sila decidiu deixar Bogud em Icosium, pois não estava certo de que esse membro da família real moura era de confiança. A sua detenção foi bastante cortês, mas fora deixado a cargo de dois tribunos militares que tinham ordens para nunca o perderem de vista.
Volux: arranjou os quatro cavalos melhores e de andar mais seguro em Icosium, e Sila preparou a sua mula, achando sempre que uma mula era uma montada muito melhor do que qualquer cavalo. Arrumou ainda o seu chapéu. O grupo era constituído por Sila, Volux e três nobres mouros, pelo que todos excepto Sila montavam sem selas nem freios,
- Nada de metal que possa tilintar e denunciar-nos - disse Volux, No entanto, Sila decidiu aparelhar a sua mula e colocou um cabresto entre o focinho e as orelhas.
- Pode ranger, mas se eu cair, farei muito mais barulho - comentou. E quando escureceu totalmente, os cinco avançaram no negrume assombroso de uma noite sem lua. Mas o céu brilhava, pois o vento não viera agitar o pó africano pelo ar; o que à primeira vista pareciam ser nuvens dispersas eram afinal vastas conglomerações de estrelas e os cavaleiros não tinham dificuldades de visão. Todos os animais foram desferrados e caminhavam sem fazer barulho através do caminho empedrado que atravessava por uma série de ravinas a cordilheira à volta da baía de Icosium.
- Teremos de deixar ao cuidado da sorte que nenhuma das montadas fique estropiada - disse Volux: depois de o seu cavalo ter tropeçado e se ter endireitado.
- Podes confiar na minha sorte, pelo menos - respondeu Sila.
- Não falem - disse um dos três acompanhantes. - Em noites sem vento como esta, as vozes podem ser ouvidas a milhas de distância. A partir daí, seguiram em silêncio, com os seus notáveis aparelhos ópticos ajustados de forma a captar a mais pequena partícula de luz; as milhas sucediam-se. Assim, quando o brilho alaranjado das fogueiras quase extintas da pequena bacia onde Jugurta se encontrava começaram a surgir acima da crista à frente deles, souberam onde estavam, E quando olharam para a bacia, pareceu-lhes tão reluzente como uma cidade.
Os cinco desmontaram; Volux afastou Sila e lançou mãos à obra. Esperando pacientemente, Sila viu os mouros adaptarem capas protectoras nos cascos dos cavalos; geralmente estes tinham solas de madeira, usadas em solo irregular para proteger das pedras a parte inferior macia dos cascos à volta da amilha, mas as capas de Volux tinham solas de feltro espesso. Eram presas por duas fitas macias de couro fixas à frente depois, cruzavam, passavam por baixo de um gancho de metal atrás e vinham de novo para a frente, onde eram apertadas.
Todos fizeram as montadas cavalgar um pouco para as habituarem,, às capas protectoras; a seguir, Volux seguiu à frente durante a última meia milha que os separava do acampamento de Jugurta. Era provável que houvesse sentinelas e uma patrulha a cavalo, mas os cinco cavaleiros não viram ninguém acordado, ninguém mexendo. Treinado por Roma, era natural que jugurta tivesse baseado a construção do seu acampamento no padrão romano, mas - um aspecto dos estrangeiros que, Sila sabia-o, fascinava Caio Mário - não fora capaz de ter a paciência e vontade suficientes para reproduzir o original convenientemente. jugurta, sabendo que Mário e o seu exército estavam em Cirta e Boco não tinha a força necessária para tentar uma ofensiva, não se incomodara a entrincheirar-se; limitou-se a erguer um muro baixo de terra tão fácil de saltar a cavalo que Sila suspeitou que seria mais para manter os animais do lado de dentro do que os seres humanos do lado de fora. Mas sejugurta fosse romano em vez de ter treino romano, o seu acampamento teria todas as suas valas, estacas, paliçadas e muros, por mais seguro que ele se sentisse.
Os cinco cavaleiros chegaram ao muro de terra a cerca de duzentos passos a leste da porta principal, que era apenas uma abertura larga, e fizeram as montadas passá-lo facilmente. Do lado de dentro, cada cavaleiro voltou o seu corcel abruptamente, de forma a seguirem paralelamente e cingidos ao muro; no solo recentemente revolvido, não fizeram qualquer ruído até chegarem à porta principal. Aí, viram guardas, mas os homens estavam virados para fora e a distância suficiente face à abertura para não ouvirem os cinco cavaleiros deslocar-se pela avenida larga que seguia pelo meio do acampamento, da porta da frente até à das traseiras. Sila e Volux e os três nobres mouros seguiram a passo a via praetoria de meia milha de comprimento, saíram dela para se cingirem ao muro quando chegaram ao fim, e atravessaram a abertura saindo para fora do acampamento e para a liberdade mal se sentiram a uma distância razoável do guarda da porta das traseiras.
Uma milha à frente, retiraram as capas dos cascos.
- Conseguimos! - sussurrou Volux: ferozmente, de dentes a brilhar para Sila num sorriso triunfante. - Confias agora em mim, Lúcio Cornélio?
- Confio em ti, príncipe Volux - disse Sila retribuindo o sorriso. Seguiram entre passo e trote, com o cuidado de não estropiar as suas montadas sem ferraduras, e pouco depois da madrugada encontraram um acampamento berbere. Os quatro cavalos exaustos que Volux trocou por outros repousados eram superiores a quaisquer dos cavalos dos berberes, e a mula era um pouco uma novidade, pelo que cinco cavalos apareceram em breve e a cavalgada prosseguiu dia fora. Como havia trazido o chapéu, Sila escondia-se sob a sua aba e suava.
Logo após o anoitecer, chegaram ao acampamento do rei Boco, não diferente do de Jugurta na construção, mas maior. E aí, Sila hesitou, refreando o seu cabresto grosseiro a uma distância razoável da sentinela.
- Não é falta de confiança, príncipe Volux - afirmou -, é mais um pressentimento. Tu és o filho do rei. Podes entrar e sair a qualquer hora da noite ou do dia sem problemas. Ao passo que eu sou um estrangeiro, uma incógnita. Por isso, vou deitar-me aqui com o máximo de conforto possível e esperar que fales com o teu pai, te assegures de que está tudo bem e voltes para me vires buscar.
- Eu não me deitaria - disse Volux.
- Porquê?
- Escorpiões.
Os cabelos de Sila eriçaram-se e teve de dominar-se para não dar um salto; como a Itália estava livre de todo o tipo de insectos venenosos, todos os romanos ou italianos abominavam aranhas e escorpiões. Respirou em silêncio, ignorando as gotas de suor que lhe escorriam pela testa e virou para Volux um rosto de ar indiferente.
- Bem, não vou passar de pé as horas que faltam até à tua chegada e não volto a montar nesse animal - disse ele -, por isso arrisco a minha sorte com os escorpiões.
- Como queiras - foi a resposta de Volux, que já admirava Sila ao ponto da veneração que se tem por um herói e agora transbordava de respeito. Sila deitou-se num pedaço de terra macia e arenosa, fez uma cova
para as ancas, um monte para a nuca, rezou para si mesmo uma oração e prometeu uma oferenda a Fortuna para afastar os escorpiões, fechou os olhos e adormeceu instantaneamente. Quando Volux chegou, quatro horas mais tarde, encontrou Sila a dormir e podia tê-lo morto. Mas Fortuna estava com Sila naquele tempo; Volux era um verdadeiro amigo.
A noite estava fria; Sila sentia dores por todo o lado.
- Oh, andar a rastejar por aí como um espião é profissão de homem mais novo! - afirmou, estendendo uma mão a Volux, para este o auxiliar a levantar-se. Depois, entreviu uma sombra atrás de Volux, e endureceu.
- Não te preocupes, Lúcio Cornélio, é um amigo do Rei, meu pai. O seu nome é Dábar - apressou-se Volux a dizer.
- Outro primo do Rei, teu pai, suponho?
- Na realidade, não. Dábar é primo de Jugurta, e tal como Jugurta, é filho bastardo de uma mulher berbere. Foi por isso que se juntou a nós: Jugurta prefere ser o único bastardo real da corte.
Passaram de uns para os outros uma garrafa de vinho doce sem água; Sila bebeu sem parar para respirar e sentiu as dores diminuirem e o frio desaparecer num enorme ardor. Seguiram-se bolos de mel, um naco de carne de cabrito muito condimentada, e outra garrafa do mesmo vinho, que pareceu a Sila o melhor que bebera em toda a sua vida.
- Oh, sinto-me melhor! - exclamou, relaxando os músculos e espreguiçando-se. - Quais são as novidades?
- O teu pressentimento afinal tinha razão de ser, Lúcio Cornélio respondeu Volux. - Jugurta foi ter primeiro com o meu pai.
- Fui denunciado?
- Não, não! Mas a situação mudou. Deixarei a explicação a cargo de Dábar; ele estava lá.
Dábar acocorou-se para se colocar ao nível de Sila.
- Parece que Jugurta ouviu falar de uma delegação de Caio Mário para o meu rei - disse em voz baixa. - É claro que pensou logo que era esse o motivo que levara o meu rei a não regressar a Tíngis e por isso decidiu ficar por perto, interpondo-se entre o meu rei e qualquer delegação de Caio Mário por terra ou por mar. E enviou um dos seus barões mais importantes, Aspar, para ficar à direita do rei a escutar todas as conferências entre o meu rei e os romanos esperados.
- Estou a entender - disse Síla. - O que há então a fazer?
- Amanhã, o príncipe Volux levar-te-á à presença do meu rei como se tivessem vindo juntos de Icosium. Felizmente, Áspar não viu o príncipe chegar ontem à noite. Falarás com o meu rei como se tivesses vindo a mando de Caio Mário e não a pedido do meu rei. Pedirás ao meu rei para abandonar Jugurta, e o meu rei recusará, mas de modo evasivo. Ele mandar-te-á montar um acampamento onde ficarás durante dez dias, enquanto pensa acerca do que tu disseste. No entanto, o meu rei virá ver-te em privado amanhã à noite, num local diferente, e então falarão sem receio - Dábar olhou para Sila com entusiasmo. - Achas que é satisfatório, Lúcio Cornélio?
- Inteiramente - disse Sila, com um grande bocejo. - O único problema é: onde poderei ficar esta noite e onde poderei tomar um banho? Tresando a cavalo e sinto comichão entre as pernas.
- Volux mandou montar um acampamento confortável para ti não muito longe daqui - disse Dábar.
- Então, leva-me até lá - disse Sila, pondo-se de pé.
No dia seguinte, Sila teve o seu encontro burlesco com Boco. Não foi difícil descobrir qual dos nobres presentes era o espião de Jugurta, Áspar; sentava-se à esquerda da majestosa cadeira de Boco - muito mais majestosa do que o seu ocupante - e ninguém se atrevia a aproximar-se nem a olhar para ele com a familiaridade dos conhecidos de longa data
- O que devo fazer, Lúcio Cornélio - gemeu Boco nessa noite depois do escurecer, num encontro secreto com Sila a grande distância dos dois acampamentos,
- Um favor por Roma - disse Sila.
- Diz-me que favor quer Roma e será feito! Ouro... jóias... terra... soldados... cavalos... trigo... diz-me o quê, Lúcio Cornélio! Tu és romano; deves saber o que significa a mensagem críptica do Senado! Eu juro-te que não entendo! - Boco tremia de medo.
- Roma pode arranjar todas as mercadorias que nomeaste sem precisar de ser críptica, rei Boco - afirmou Sila ironicamente.
- Então, o quê? Diz-me: o quê? - suplicou Boco.
- Penso que já o deves ter descoberto por ti, rei Boco. Mas recusas-te a admiti-lo - disse Sila. - E percebo porquê. Jugurta! Roma quer que lhe entregues Jugurta pacificamente, sem derramamento de sangue. já foi derramado demasiado sangue em África, já houve demasiados terrenos destruidos, demasiadas cidades e vilas queimadas, demasiados bens dissipados. Mas enquanto Jugurta permanecer à solta, este desperdício terrível continuará. Mutilando a Numídia, causando incómodos a Roma
- e mutilando também a Mauritânia. Por isso, dá-me Jugurta, rei Boco!
- Pedes-me para trair o meu genro, o pai dos meus netos, meu parente através do sangue de Masinissa?
- É o que te peço - afirmou Sila. Boco começou a chorar.
- Não posso! Lúcio Cornélio, não posso! Nós somos tanto Berberes como Púnicos; une-nos a lei do povo nómada, Pede-me o que quiseres, Lúcio Cornélio, farei tudo para ganhar esse acordo! Tudo, excepto trair o marido da minha filha.
- Tudo o mais é inaceitável - disse Sila com frieza
- O meu povo nunca me perdoaria!
- Roma nunca te perdoará. E isso é pior.
- Não posso! - Boco chorava, lágrimas genuínas banhavam-lhe O rosto, brilhando por entre os fios da sua barba elaboradamente encaracolada. - Por favor, Lúcio Cornélio, peço-te! Não posso!
Sila virou-lhe as costas com desprezo.
- Nesse caso, nunca haverá acordo - proferiu.
E durante os oito dias seguintes, continuou a farsa, com Áspar e Dábar cavalgando para trás e para a frente entre o pequeno acampamento agradável de Sila e o pavilhão do rei, trazendo mensagens que não tinham qualquer relação com a questão verdadeira. Essa permanecia um segredo entre Sila e Boco, e era discutida apenas de noite. Contudo, era óbvio que Volux: conhecia a questão, decidiu Sila, porque agora o evitava sempre que possível, e de todas as vezes que o via mostrava um ar furioso, magoado, desconcertado.
Sila dívertía-se ao descobrir que gostava da sensação de poder e majestade que lhe proporcionava a posição de enviado de Roma; e mais do que isso, gostava de ser a implacável gota de água que furava aquela pedra real. Ele, que não era rei, no entanto tinha domínio sobre reis. Ele, um romano, tinha o verdadeiro poder. E subia-lhe à cabeça, dando-lhe uma satisfação enorme.
Na oitava noite, Boco convocou Sila ao local secreto de reunião.
- Está bem, Lúcio Cornélio, concordo - disse o rei com os olhos vermelhos de chorar.
- Excelente! - exclamou Sila bruscamente.
- Mas como se pode fazer isso?
- É simples - respondeu Sila. - Enviarás Aspar a Jugurta, propondo-lhe entregares-me.
- Não acreditará em mim - disse Boco, desolado.
- É claro que vai acreditar! Confia em mim, vai acreditar. Se as circunstâncias fossem diferentes, seria isso mesmo que farias, rei.
- Mas tu és apenas um questor! Sila riu.
- O quê? Estás a tentar dizer que não achas um questor romano tão valioso como um rei númída?
- Não! Não, claro que não!
- Deixa-me explicar-te, rei Boco - disse Sila gentilmente. - Eu sou um questor romano, e é verdade que em Roma o título é o mais baixo da escada senatorial. Porém, sou também um Cornélio patrício: a minha família é a família de Cipião Africano e de Cipião Emiliano, e a minha ascendência é bastante mais antiga, bastante mais nobre do que a tua ou a de Jugurta. Se Roma fosse governada por reis, esses reis pertenceriam provavelmente à família Cornélia. E os últimos são os primeiros: acontece que sou cunhado de Caio Mário. Os nossos filhos são primos direitos. já explica melhor as coisas?
- Jugurta. Jugurta sabe de tudo isso? - murmurou o rei da Mauritânia,
- Há muito pouca coisa que escape a Jugurta - afirmou Sila, e encostou-se à espera.
- Muito bem, Lúcio Cornélio, será como disseste. Enviarei Áspar a Jugurta propondo-lhe entregar-te - o rei esticou-se, com a sua dignidade um pouco abalada. - No entanto, tens de dizer-me exactamente como devo proceder.
Sila inclinou-se para a frente e falou rispidamente.
- Pedirás a Jugurta para vir até aqui na noite a seguir à próxima e prometer-lhe-ás entregar-lhe o questor romano Lúcio Cornélio Sila. Informá-lo-ás de que esse questor está sozinho no teu acampamento, tentando persuadir-te a aliares-te a Caio Mário. Ele sabe que é verdade, pois Aspar tem-no mantido informado. Também sabe que - não há soldados romanos numa área de cem milhas, pelo que não se incomodará a trazer consigo o seu exército. E ele pensa que te conhece, rei Boco. Por isso, não sonha que o entregues a ele em vez de mim - Sila Cingiu não ver Boco estremecer. - Não é a ti ou ao teu exército que Jugurta teme. Ele apenas teme Caio Mário. Fica descansado, que há-de vir, e virá acreditando em tudo o que Áspar lhe disser.
- Mas quando Jugurta não regressar ao acampamento, o que hei-de fazer? - perguntou Boco, tremendo de novo.
Sila sorriu com maldade.
- Recomendo-te vivamente, rei Boco, que assim que me entregares Jugurta abandones o acampamento e marches para Tíngis o mais depressa possível.
- Mas não precisarás do meu exército para manter Jugurta prisioneiro? - O rei olhou para Sila, agitado; nunca homem nenhum tivera um ar de terror tão óbvio. - Tu não tens homens para te ajudarem a levá-lo para Icosium! E o acampamento dele fica no caminho.
- Tudo o que quero é um bom par de grilhetas e correntes, e seis dos teus cavalos mais rápidos - disse Sila.
Sila deu por si ansioso pela confrontação, e não sentiu a mínima dúvida ou hesitação. Sim, o seu nome ficaria ligado à captura de jugurta para sempre! Pouco importava que agisse às ordens de Caio Mário; era o seu valor e inteligência que executavam a proeza, e essa não lhe podia ser retirada. Não era por pensar que Caio Mário iria tentar ficar com o crédito. Caio Mário não era ávido por glória; ele sabia que tinha mais do que a sua quota-parte. E não se oporia à divulgação da história da captura de Jugurta. Para um patrício, o tipo de fama necessária para assegurar a eleição como cônsul era dificultado pelo facto de não poder ser tribuno da plebe. Por esse motivo, um patrício tinha que encontrar outras formas de ganhar aprovação, garantindo que o eleitorado soubesse que ele era um descendente digno da sua família. Jugurta custara muito a Roma. E Roma inteira saberia que fora Lúcio Cornélio Sila, questor incansável, que conseguira sozinho a captura de Jugurta.
Assim, quando se encontrou com Boco no lugar indicado, estava confiante, entusiasmado, ansioso por levar a obra a cabo.
- Jugurta não espera ver-te acorrentado - disse Boco. - Crê que pediste para vê-lo com a intenção de persuadi-lo a render-se. E deu-me indicações para trazer homens em número suficiente para te capturar, Lúcio Cornélio.
- óptimo - foi o que Sila se limitou a dizer.
Quando Boco apareceu com Sila e uma companhia de cavalaria moura atrás de si, Jugurta estava à espera, escoltado apenas por meia dúzia dos seus barões, incluindo Áspar.
Espicaçando a sua montada, Sila passou à frente de Boco e trotou direito a Jugurta, e a seguir deslizou para o chão e estendeu a mão no gesto universal de paz e amizade.
- Rei Jugurta - disse, e ficou à espera.
Jugurta olhou para a mão e desmontou para lha apertar.
- Lúcio Cornélio.
Enquanto isto se processava, a cavalaria moura formara silenciosamente um círculo à volta dos participantes centrais, e enquanto Sila e Jugurta permaneciam de mãos unidas, a captura de Jugurta foi efectuada tão habilidosa e suavemente como Caio Mário teria desejado. Os barões númidas foram vencidos sem se desembainhar uma só espada; Jugurta foi preso com firmeza demais para se debater e foi levado ao chão. Quando voltou a ser erguido, tinha grilhetas pesadas nos pulsos e tornozelos, todas ligadas por correntes cujo comprimento mal lhe permitia andar curvado e arrastando os pés.
Os seus olhos, como Sila reparou à luz do archote, eram muito claros num homem tão escuro; também era de grande porte e estava bem conservado. Mas os anos pesavam-lhe no rosto esguio e por isso parecia muito mais velho do que Caio Mário. Sila sabia que podia levá-lo aonde quisesse sem escolta.
- Coloquem-no no baio grande - ordenou aos homens de Boco ficou a observá-los prender as correntes a presilhas especiais na sela adaptada. Depois, verificou a cilha e as presilhas. A seguir, aceitou ajuda para montar noutro baio e segurou as rédeas do cavalo de Jugurta prendendo-as na sua sela; se Jugurta se lembrasse de espevitar a sua montada, não poderia fugir, nem as rédeas podiam ser arrancadas a Sila. As quatro restantes montadas foram presas uma às outras e amarradas por uma corda bastante curta à sela de Jugurta. Este estava agora duplamente incapacitado. E finalmente, para ficar absolutamente descansado, Sila passou mais uma corrente pela grilheta do pulso direito dejugurta, com a outra extremidade presa ao seu próprio pulso esquerdo.
Sila não dissera uma palavra aos mouros desde que Jugurta fora aprisionado; agora, e continuando em silêncio, esporeou o cavalo e partiu, obrigando o cavalo dejugurta a segui-lo docilmente, retesadas as rédeas e correntes que os uniam. Atrás deles iam os quatro cavalos de reserva. E dentro de pouco tempo, todas as montadas haviam desaparecido nas sombras por entre as árvores.
Boco chorava. Volux e Dãbar olhavam-no sem saberem o que fazer.
- Pai, deixa-me apanhá-lo! - pediu Volux subitamente. - Ele não pode ir longe tão tolhido: ainda posso apanhá-lo!
- É demasiado tarde - aceitando o lenço fino que o servo lhe deu, o rei Boco enxugou os olhos e assoou o nariz. - Aquele nunca se deixará apanhar. Somos bebés indefesos comparados com Lúcio Cornélio Sila, que é um Romano. Não, meu filho, o destino do pobre Jugurta não está nas nossas mãos. Temos de pensar na Mauritânia. É tempo de regressarmos à nossa amada Tíngis. Talvez não pertençamos ao mundo do mar Central.
Durante cerca de uma milha, Sila seguiu sem falar ou abrandar O passo. Dominava perfeitamente tanto o regozijo como o seu prisioneiro, Jugurta. Sim, se ele a propagasse convenientemente e sem
detrair os feitos de Caio Mário, a história da captura de Jugurta iria juntar-se às histórias que as mães contavam aos filhos: o salto de Marco Cúrcio no vazio, no Fórum Romano, o heroísmo de Horácio Cocles ao defender a Ponte de Madeira contra Lars Porsena de CIúsio, o círculo feito à volta do rei da Síria por Caio Popílio Lenate, o assassínio dos filhos traiçoeiros de Lúcio Júnio Bruto por este, o assassínio de Espúrio Mélio, que queria ser rei, por Caio Servílio Ahala - sim, a captura de Jugurta por Lúcio Cornélio Sila iria juntar-se a todos esses e muitos mais contos de embalar, pois tinha todos os elementos necessários, incluindo a passagem a cavalo pelo meio do acampamento de Jugurta.
Mas Sila não era por natureza um autor de romances, um sonhador, um construtor de fantasias, e por isso foi-lhe fácil abandonar estes pensamentos quando chegou a altura de parar e desmontar. Mantendo-se bastante afastado de Jugurta, dirigiu-se até à trela que amarrava os quatro cavalos de reserva, cortou-a e lançou os animais em todas as direcções com uma saraivada de pedras bem atiradas,
- Estou a ver - disse Jugurta, observando Sila escarranchando-se no seu baio agarrado à crina - que teremos de fazer cem milhas nos mesmos cavalos. Estava a pensar como conseguirias mudar-me de montada - escarneceu. - A minha cavalaria há-de apanhar-te, Lúcio Cornélio!
- Espero que não - disse Sila, e fez avançar a montada do seu prisioneiro.
Em vez de seguir para norte, para o mar, dirigiu-se para leste através de uma pequena planície e cavalgou durante dez milhas na noite sem vento dos inícios do Verão, tendo por iluminação só uma lasca de lua a oeste. Então, a grande distância, surgiu uma fila negra e maciça de árvores; em frente desta e muito mais perto, havia um amontoado de gigantescas rochas redondas distinguindo-se acima das árvores esparsas e atrofiadas.
- Exactamente no local certo! - exclamou Sila alegremente, e soltou um assobio agudo.
O seu esquadrão de cavalaria lígure saiu do esconderijo de pedregulhos, cada homem acompanhado por duas montadas; em silêncio, os homens foram ter com Sila e o prisioneiro, e fizeram surgir dois cavalos extra. E duas mulas.
- Mandei-os vir aqui ter comigo há seis dias, rei Jugurta - disse Sila.
- O rei Boco pensou que eu viera até ao seu acampamento sozinho, mas como vês, não vim. Mandei Públio Vagiennius seguir-me de perto, e mandei-o ir buscar a sua companhia e esperar por mim aqui.
Liberto dos seus embaraços, Sila dirigiu o transbordo de Jugurta, que foi desta vez acorrentado a Públio Vagiennius. E em breve estavam de novo a caminho virando a noroeste para se afastarem muitas milhas do acampamento de Jugurta.
- Não saberás dizer-me, Majestade real - disse Públio Vagiennius tímida e delicadamente -, onde poderei encontrar caracóis em Cirta Ou em qualquer outro lugar na Numídia?
Em finais de Junho, a guerra em África estava terminada. Por pouco tempo enquantojugurta foi alojado confortavelmente em útica e Mário e Sila tratavam das arrumações. E os dois filhos de Jugurta, lampsas e Oxyntas vieram fazer-lhe companhia enquanto a sua corte se desintegrava e começava a disputa de lugares de influência sob o novo regime.
O rei Boco recebeu do Senado o seu acordo de amizade e aliança, e o príncipe Gauda, o inválido, tornou-se o rei Gauda de uma Numídia consideravelmente reduzida. Foi Boco que furtou o território extra a uma Roma demasiado ocupada noutras localidades para expandir a sua província africana de muitas centenas de milhas.
E mal uma pequena frota de boas naus e o tempo estável asseguraram uma viagem suave, Mário embarcou o rei Jugurta e os seus filhos a bordo de um dos barcos alugados e enviou-os em segurança para Roma. A ameaça númida desapareceu no horizonte, com a partida de Jugurta.
Com eles navegava Quinto Sertório, determinado como estava a ver a acção contra os Germanos na Gália Transalpina. Tinha pedido ao primo Mário autorização para partir.
- Sou um guerreiro, Caio Mário - disse o jovem e sério contubernalis
e a luta por estes lados terminou. Recomenda-me ao teu amigo Públio Rutílio Rufo e deixa-o dar-me serviço na Gália distante.
- Vai com o meu agradecimento e a minha bênção, Quinto Sertório
- disse Mário com um afecto raro. - E transmite os meus cumprimentos à tua mãe.
O rosto de Sertório iluminou-se.
- Transmiti-los-ei, Caio Mário!
- Lembra-te, Quinto Sertório - disse Mário no dia em que Quinto Sertório e Jugurta partiram para Itália -, que voltarei a precisar de ti no futuro. Por isso, poupa-te em combate, se tiveres a sorte de participar num. Roma honrou a tua bravura e habilidade com a Coroa de Ouro, com phalerae e colares de metal e braceletes, todos de ouro. Uma distinção rara para alguém tão novo. Mas não sejas imprudente. Roma precisará de ti vivo, e não se morreres.
- Manter-me-ei vivo, Caio Mário - prometeu Quinto Sertório.
- E não partas para a tua guerra no momento em que chegares a Itália - aconselhou Mário. - Passa primeiro algum tempo com a tua querida mãe.
- É o que farei, Caio Mário - prometeu Quinto Sertório.
Quando o jovem partiu, Sila olhou para o seu superior com ironia.
- Ele faz-te parecer uma galinha a cacarejar, chocando um simples OVO.
Mário resmungou.
- Que disparate! É meu primo por parte da mãe e eu gosto dela.
- Com certeza - disse Sila, sorrindo com os dentes de fora.
Mário riu.
- Vamos, Lúcio Cornélio, admite que gostas tanto de Quinto Sertório como eu!
- Admito-o sem escrúpulos. No entanto, Caio Mário, não me faz cacarejar!
- Mentulam caco! - comentou Mário. E assim pôs termo à discussão.
Rutília, que era a única irmã de Públio Rutilio Rufo, gostava da distinção pouco habitual de ter casado com dois irmãos. O seu primeiro marido fora Lúcio Aurélio Cota, colega no consulado de Metelo Dalmático Pontifex Maximus cerca de catorze anos antes; foi no mesmo ano em que Caio Mário fora tribuno da plebe e desafiara Metelo Dalmático Pontifex Maximus.
Rutília havia sido destinada a Lúcio Aurélio Cota em rapariga, ao passo que ele já fora casado e tinha um filho de nove anos chamado Lúcio, como ele. Casaram no ano a seguir a terem sido arrasadas as Fregelas por se terem revoltado contra Roma, e no ano do primeiro mandato de Caio Graco como tribuno da plebe tiveram uma filha chamada Aurélia. O filho de Lúcio Cota tinha dez anos de idade e alegrara-se muito por ter ganho uma meia-irmãzinha, pois gostava muito da madrasta, Rutília.
Quando Aurélia fez cinco anos, o pai, Lúcio Aurélio Cota, morreu subitamente, apenas alguns dias após o fim do seu consulado. A viúva Rutília, de vinte e quatro anos, uniu-se ao irmão mais novo de Lúcio Cota, Marco, que ainda não encontrara esposa. O amor cresceu entre eles, e com a autorização do pai e do irmão, Rutília casou com o cunhado, Marco Aurélio Cota, onze meses após a morte de Lúcio Cota. Rutília levou consigo, ficando ao cuidado de Marco, o seu enteado e sobrinho de Marco, Lúciojúnior, e a sua filha e sobrinha de Marco, Aurélia. A família não tardou a aumentar; em pouco mais de um ano, Rutília deu a Marco, um filho, Caio, e depois outro, Marco júnior, no ano seguinte, e por fim um terceiro, Lúcio, sete anos mais tarde.
Aurélia foi a única rapariga que a sua mãe deu à luz e encontrava-se numa situação fascinante: do pai tinha um meio-irmão mais velho do que ela, e da mãe tinha três meios-irmãos mais novos e que também eram seus primos direitos, pois o pai dela era tio deles, e o pai deles tio dela. Podia ser extremamente desconcertante para quem não estivesse a par, especialmente se fossem as crianças a explicar.
- Ela é minha prima - dizia Caio Cota, apontando para Aurélia.
- Ele é meu irmão - ripostava Aurélia, apontando para Caio Cota.
- Ele é meu irmão - dizia então Caio Cota, apontando para Marco Cota.
- Ela é minha irmã - dizia Marco Cota por seu lado, apontando para Aurélia.
- Ele é meu primo - dizia Aurélia por fim, apontando para Marco Cota.
Podiam ficar horas nisto; não era de admirar que as pessoas nunca percebessem. Não porque os complexos laços de sangue preocupassem alguma daquelas crianças decididas e voluntariosas que gostavam tanto umas das outras como de si próprias, e todas mantinham uma relação Caiorosa com Rutília e o seu segundo marido Aurélio Cota, que também se adoravam.
A família Aurélia era uma das Famílias Importantes, e o seu ramo Aurélio Cota era respeitavelmente idoso no Senado, embora fosse novo Pela nobreza concedida pelo consulado. Ricos devido a investimentos bem aplicados, enormes heranças de terrenos e muitos casamentos inteligentes, OS Aurélio Cota podiam ter muitos filhos sem se preocuparem com a adopção de alguns deles, e conceder às suas filhas dotes mais do que adequados.
A descendência que vivia sob o tecto de Marco Aurélio Cota e sua mulher Rutília, era por isso não só financeiramente bastante elegível e,” termos de casamento, mas também de óptima aparência. E Aurélia, a única rapariga, era a que tinha melhor aspecto.
- Impecável! - era a opinião de Lúcio Licínio Crasso Orador, amante do luxo mas inquietamente brilhante, que era um dos mais ardentes - e importantes - pretendentes à sua mão.
- Gloriosa! - era como a classificava Quinto Múcio Cévola, o melhor amigo e primo direito de Crasso Orador, que também inscrevera o seu nome na lista dos pretendentes.
- Desencorajadora! - foi o comentário de Marco Lívio Druso; era primo de Aurélia, e estava ansioso por desposá-la.
- Helena de Tróia! - era como Cneu Domício Aenobarbo a descrevia, pedindo a sua mão.
Com efeito, a situação era exactamente como Páblio Rutílio Rufo a descrevera na carta a Caio Mário: todos os homens de Roma queriam casar com a sua sobrinha Aurélia. O facto de bastantes pretendentes já terem mulheres não os desqualificava nem desonrava: o divórcio era fácil, e o dote de Aurélia era tão grande que um homem não tinha de preocupar-se por perder o dote da mulher anterior.
- Sinto-me exactamente como o rei Tíndaro quando todos os príncipes e reis importantes vinham pedir a mão de Helena - disse Marco Aurélio Cota para Rutília.
- Esse tinha Odisseu para lhe resolver o dilema - comentou Rutília.
- Quem me dera tê-lo! Seja a quem for que dê a sua mão, ofenderei todos os que não a conseguirem.
- Tal como Tíndaro - disse Rutília, assentindo.
E então, o Odisseu de Marco Cota veio jantar, embora fosse mais Ulisses, pois era um verdadeiro Romano: Públio Rutílio Rufo. Depois das crianças - e Aurélia - terem ido para a cama, a conversa recaiu, como sempre, no assunto do casamento de Aurélia. Rutílio Rufo ouviu com interesse, e quando chegou o momento, deu a sua resposta; o que não disse à irmã e ao cunhado foi que o verdadeiro decifrador do enigma havia sido Caio Mário, cuja carta lapidar acabara de receber de África.
- É simples, Marco Aurélio - disse ele.
- Se é, estou demasiado envolvido para ver - disse Marco Cota. Esclarece-me, Odisseu!
Rutílio Rufo sorriu.
- Não, não vejo motivo para fazer uma canção e dançar, como fez Odisseu - contrapôs. - Estamos na Roma moderna e não na Grécia antiga. Não podemos matar um cavalo, dividi-lo em quatro e forçar todos os pretendentes de Aurélia a fazer-te uma jura de fidelidade, Marco Aurélio.
- Especialmente antes de saberem quem é o afortunado vencedor! disse Cota rindo. - Que românticos eram os antigos Gregos! Não, Públio Rutílio, receio que tenhamos de lidar aqui com romanos de temperamento litigioso e chicaneiros.
- Precisamente - afirmou Rutílio Rufo.
- Anda, irmão, tira-nos da nossa desgraça e diz-nos - incitou Rutília.
- Como eu disse, minha cara Rutília, é simples. Deixa a rapariga escolher o marido.
Cota e a mulher olharam-no espantados.
- Pensas mesmo que é sensato? - perguntou Cota.
- Nesta situação, a sensatez falha, e assim o que têm a perder? - perguntou Rutílio Rufo. - Não precisam que ela case com um homem rico, e não há muitos caçadores de fortunas conhecidos na vossa lista de pretendentes, por isso limitem a escolha dela à vossa lista. Os Aurélios, os Júlios e os Cornélios também não costumam atrair pessoas que queiram subir na escala social. Além do mais, Aurélia tem muito bom-senso, não é de modo nenhum sentimental e ainda menos romântica. Não há-de decepcionar-vos!
- Tens razão - assentiu Cota. - Não deve haver nenhum homem que consiga transtornar Aurélia.
E no dia seguinte, Cota e Rutília chamaram Aurélia à salinha da mãe, com a intenção de lhe dizerem o que fora decidido acerca do seu futuro.
Ela entrou; sem se desviar, balançar, dar passadas grandes ou pequenas demais. Aurélia caminhava dum modo simples, movia-se com vigor e à-vontade, de ancas e rabo disciplinados para uma economia de movimentos, mantinha os ombros direitos, o queixo baixo e a cabeça erguida. Talvez a sua figura errasse por defeito, pois era alta e de peito liso mas vestia roupas extremamente simples, não usava sapatos de saltos altos de cortiça e desdenhava as jóias. Espesso e liso, o seu cabelo castanho-claro era apanhado atrás num rolo apertado colocado exactamente onde não podia ser visto de frente, o que não lhe efeminava o rosto. Nunca os cosméticos haviam manchado a sua pele densa e leitosa, sem qualquer defeito, levemente rosada nos incríveis malares e tornando-se num rosa suave na depressão abaixo. Tão liso e arqueado como se tivesse sido talhado Por Praxíteles, o seu nariz era demasiado longo para provocar suspeitas de sangue Celta, e por ser desculpado pela falta de carácter - dito por outras palavras,,, a falta de bossas e corcovas romanas. De carmisim, exuberante e de deliciosamente enrugados nos cantos, os seus lábios eram dos que fazem os homens ficar doidos por beijá-los com ardor. E neste belo rosto em forma de coração com o seu queixo com mossas e a testa alta e o cabelo em bico no meio da fronte, surgia um enorme par de olhos que todos insistiam não serem azuis escuros mas sim púrpura, rodeados por longas e espessas pestanas negras e coroados por sobrancelhas negras arqueadas e finas como plumas.
Muitas eram as discussões nos banquetes dos homens (pois podia-se certamente prever que entre os convidados estariam dois ou três dos pretendentes inscritos na lista) sobre aquilo em que consistia exactamente o encanto de Aurélia. Alguns diziam que residia nesses pensativos olhos púrpura afastados; outros insistiam que era a notável pureza da pele; outros ainda escolhiam a rigidez encovada das faces; uns poucos falavam apaixonadamente em segredo da sua boca ou do queixo com covinhas, ou das mãos e pés delicados.
- Não é nenhuma dessas coisas e no entanto são todas elas - rosnou Lúcio Licínio Crasso Orador. - Tontos! Ela é uma Vestal à solta - é Diana e não Vénus! Inatingível. E aí reside o seu fascínio.
- Não, são aqueles olhos púrpura - disse o jovem filho de Escauro Princeps Senatus, outro Marco, tal como o pai. - Púrpura é a cor! Nobre! Ela é um presságio vivo.
Mas quando o presságio vivo entrou na salinha da mãe com um ar tão ponderado e imaculado como sempre, não trouxe consigo nenhum ambiente dramático; com efeito, o carácter de Aurélia não encorajava o drama.
- Senta-te, filha - disse Rutília sorrindo. Aurélia sentou-se e entrelaçou as mãos no colo.
- Queremos falar contigo acerca do teu casamento - disse Cota, e aclarou a garganta, esperando que ela dissesse algo para o ajudar a explicar melhor.
Mas não recebeu nenhum auxílio; Aurélia limitou-se a fitá-lo com uma espécie de interesse distante, nada mais.
- O que pensas tu?
Aurélia encolheu os ombros.
- Acho que apenas espero que escolham alguém que me agrade.
- Sim, também o esperamos - disse Cota.
- De quem é que não gostas? - perguntou Rutília.
- De Cneu Domício Aenobarbo Júnior - afirmou Aurélia sem qualquer hesitação, identificando-o pelo nome completo.
Cota considerou a justiça da afirmação.
- Alguém mais? - perguntou.
- Marco Emílio Escauro júnior.
- Oh, é pena! - exclamou Rutília. - Acho-o muito simpático. É verdade!
- Concordo que é muito simpático - disse Aurélia -, mas é tímido, Cota nem tentou disfarçar o sorriso.
- Não te agradava ter um marido tímido, Aurélia? Poderias mandar em casa!
- Uma boa esposa romana não manda em casa.
- Tanto pior para Escauro. Falou a nossa Aurélia - Cota agitou a cabeça e ombros para trás e para a frente. - Mais alguém de quem não gostes?
- Lúcio Licínio.
- Que mal tem?
- É gordo - os lábios enrugados apertaram-se.
- Sem graça nenhuma, queres dizer?
- Isso indica falta de disciplina, pai - havia alturas em que Aurélia a Cota chamava pai, outras vezes em que era tio, mas a escolha nunca era ilógica; quando o discurso revelava que ele estava a agir num papel paternal, era pai, e quando estava a actuar num papel avuricular, era tio.
- Tens razão - disse Cota.
- Existe alguém com quem preferisses casar, mais do que todos os outros? - perguntou Rutília, tentando o caminho oposto.
Os lábios enrugados descontraíram-se.
- Não, mãe. Fico contente por deixar a decisão a teu cargo e do pai.
- Que esperas do casamento? - perguntou Cota.
- Um marido da minha posição social que adore os seus... saudáveis e numerosos filhos.
- Uma resposta de compêndio! - disse Cota. - De primeira categoria, Aurélia.
Rutília olhou o marido de relance, com uma ligeira sombra de divertimento nos olhos.
- Diz-lhe, Marco Aurélio, diz! Cota aclarou de novo a garganta.
- Bem, Aurélia, colocas-nos um pequeno problema - disse. - Ao todo, tenho trinta e seis pedidos de casamento. Nenhum desses pretendentes esperançosos pode ser recusado como inaceitável. Alguns são de posição social muito mais elevada que nós, outros de fortuna muito maior que a nossa - e alguns ainda têm posição e fortuna em excesso em relação a nós! O que nos conduz a um dilema. Se nós escolhermos o teu marido, criaremos imensos inimigos, o que pode não nos preocupar demasiado mas dificultará a vida aos teus irmãos mais para a frente. Estou certo de que entendes isso.
- Entendo, pai - respondeu Aurélia com ar sério.
- De qualquer modo, o teu tio Públio propôs a única resposta possível: serás tu a escolher o teu marido, filha.
E pela primeira vez, ela perdeu a compostura; ficou pasmada.
- Eu?
- TU.
As mãos da rapariga cobriram as suas bochechas ruborizadas e olhou para Cota horrorizada.
- Mas não posso fazê-lo! - gritou. - Não é... não é próprio de uma romana!
- Estou de acordo - disse Cota. - Não é próprio de uma romana, mas é-o de uma Rutília.
- Precisávamos de um Odisseu para nos indicar o caminho e felizmente temos um na família - disse Rutília.
- Oh! - Aurélia agitou-se, torceu-se. - Oh, oh!
- Que é, Aurélia? Não tens facilidade em resolver? - perguntou Rutília.
- Não, não é isso - disse Aurélia, cuja cor voltara ao normal, passando depois a um tom mais claro, até ficar lívida. - É que... bem... encolheu os ombros e levantou-se. - Posso sair?
- Podes.
A porta, virou-se para olhar para Cota e Rutília, muito séria.
- De quanto tempo disponho para me decidir? - perguntou.
- Oh, não há pressa - disse Cota simplesmente. - Farás dezoito anos no fim de Janeiro mas nada diz que tenhas de casar assim que chegares à idade adequada. Dispõe do tempo de que precisares.
- Obrigada - disse ela, e saiu da sala.
O seu pequeno quarto era um dos cubículos que davam para o átrium, e por isso era tão fechado e escuro; num seio familiar tão cuidadoso e carinhoso, a única filha não poderia dormir em nenhum outro lugar que fosse menos protegido. No entanto, sendo a única filha entre tantos rapazes, era muito acarinhada e podia ter-se transformado numa rapariga mimada se tivesse em si o germe de tal defeito. Felizmente não tinha. A opinião consensual na família era de que Aurélia era impossível de estragar com mimos, pois não tinha um átomo de avareza ou inveja. O que não lhe dava uma natureza doce, nem mesmo adorável; de facto, era muito mais fácil admirar e respeitar Aurélia do que amá-la, pois ela não se dava. Em criança, se ouvia o irmão mais velho ou mesmo um dos mais novos vangloriar-se, ficava impassível, e quando se cansava dava-lhe um soco forte no ouvido e afastava-se sem uma palavra.
Por ser a única rapariga, os seus pais sentiam que ela precisava de um domínio para si própria bem demarcado do dos rapazes, e por isso recebera um quarto relativamente grande e soalheiro que dava para o jardim do peristilo, assim como uma serva particular, a gaulesa Cardixa, que era uma jóia de rapariga. Quando Aurélia casasse, Cardixa iria com ela para a casa do marido.
Um olhar rápido para o rosto de Aurélia quando esta entrou na sua salinha informou Cardixa de que ocorrera qualquer coisa muito importante, mas não disse nada, nem esperava ser informada, pois a relação meiga e agradável entre ama e serva não implicava confidências femininas. Era evidente que Aurélia precisava de estar só, e por isso Cardixa saiu.
O gosto de Aurélia era patente no quarto, onde a maioria das paredes estava cheia de prateleiras com muitos rolos de livros; sobre a mesa de trabalho encontravam-se pilhas de papel, canetas feitas de cana, tabuinhas de cera, um estilete para escrever na cera, blocos de tinta sépia comprimida para ser dissolvida em água, um tinteiro coberto, um frasco de areia para absorver a tinta e um ábaco.
A um canto havia um tear inteiro de Patávio, e as paredes atrás dele tinham cavilhas para pendurar dezenas de meadas de lã numa miríade de espessuras e cores - vermelhos e púrpuras, azuis e verdes, rosas e Cremes, amarelos e laranjas - porque Aurélia fazia o tecido para todas as suas roupas e adorava tons brilhantes. No tear estava um grande tecido dum tom impreciso cor de fogo, feito com um fio de lã da espessura de um cabelo; o véu de casamento de Aurélia, um verdadeiro desafio. O tecido cor de açafrão para o vestido de casamento já estava pronto e permanecia dobrado sobre uma prateleira até chegar a hora de fazer o vestido; dava azar começar a cortar e coser o vestido antes que o noivo estivesse oficialmente comprometido.
Talentosa neste tipo de trabalhos, Cardixa ia a meio na confecção de um biombo com embutidos feito de uma formidável madeira africana; os pedaços de sardônica, jaspe, cornalina e ônix com que tencionava entalhá-lo num padrão de folhas e flores estavam todos cuidadosamente embrulhados dentro de uma caixa de madeira, exemplo anterior da sua habilidade.
Aurélia foi até ao lado exposto do quarto, fechando as persianas, cujas grades deixou abertas para deixar entrar o ar fresco e uma luz velada; o facto de as persianas estarem fechadas era sinal de que ela não queria ser perturbada por ninguém, quer se tratasse de algum irmãozinho ou da serva. Então, sentou-se à mesa de trabalho, imensamente transtornada e espantada, cruzou as mãos sobre o tampo da mesa e pensou.
O que faria Cornélia, a mãe dos Gracos?
Era esse o critério que Aurélia adoptava para tudo: o que faria Cornélia, a mãe dos Gracos? O que pensaria Cornélia, a mãe dos Gracos? O que sentiria Cornélia, a mãe dos Gracos? Porque Cornélia, a mãe dos Gracos, era a heroína de Aurélia, o seu exemplo, o seu critério de avaliação de conduta em palavras e actos.
Entre os livros que enchiam as paredes da sua salinha de trabalho, estavam todas as cartas e ensaios publicados por Cornélia, a mãe dos Gracos.
E quem era ela, essa Cornélia, a mãe dos Gracos? Tudo o que uma nobre romana deve ser, desde o momento do nascimento até ao momento da morte: era exactamente isso.
Era a filha mais nova de Cipião Africano - que enganou Aníbal e conquistou Cartago - e casara com o importante nobre Tibério Semprónio o no seu décimo nono ano, que era o quadragésimo quinto dele; a mãe, Emília Paula, era irmã do grande Emílio Paulo, o que fazia com que Cornélia pertencesse aos Gracos patrícios tanto pelo lado do pai como da mãe.
A sua conduta enquanto mulher de Tibério Semprónio Graco foi impecável, e, pacientemente, durante os quase vinte anos do seu casamento, deu-lhe doze filhos. Caio Júlio César teria provavelmente afirmado que eram os cruzamentos incessantes de duas famílias muito antigas - os Cornélios e os Emílios - que tornavam os seus filhos enfermiços, pois todos o eram. Mas, infatigável, ela persistiu, e tratou de cada filho com uma atenção escrupulosa e muito amor; e conseguiu criar três deles. Semprónia foi a primeira que sobreviveu até à idade adulta; o Segundo foi um rapaz, que herdou o nome do pai, Tibério; e o terceiro foi outro rapaz, Caio Semprónio Graco.
Ela tinha uma educação esmerada e valia bem o pai que teve, que considerava tudo o que era grego como o pináculo da cultura mundial, e foi ela mesma que educou os seus três filhos (e, de entre os nove que morreram, os que chegaram à idade de receber instrução) e orientou todos os aspectos da sua educação. Quando o marido morreu, ela ficou com Semprónia de quinze anos, Tibério Graco de doze anos e Caio Graco de dois anos de idade, e ainda alguns dos que haviam sobrevivido.
Todos queriam casar com a viúva, pois provara ser fértil com uma regularidade surpreendente, e ainda o era; além disso, era filha do Africano, sobrinha de Paulo e viúva de Tibério Semprónio Graco; e era fabulosamente rica.
Entre os seus pretendentes encontrava-se nada menos que o rei Ptolomeu Euergetes da Grande Barriga - nessa altura último rei do Egipto, actual rei da Cirenaica - que visitara Roma regularmente durante os anos decorridos entre a sua deposição no Egipto e a reintegração como seu único governante, nove anos após a morte de Tibério Semprónio Graco. Aparecia a balir aos ouvidos enfastiados do Senado e agitava e subornava, numa tentativa para o deixarem voltar a ocupar o trono do Egipto.
Quando Tibério Semprónio Graco morreu, o rei Ptolomeu Euergetes da Grande Barriga era oito anos mais novo que Cornélia, de trinta e seis anos - e bastante mais magro na região da cintura do que viria a ser mais tarde, quando o primo direito e genro da mãe dos Gracos, Cipião Emiliano, se gabaria de ter corrido com aquele rei do Egipto, indecentemente vestido e horrivelmente gordo! Ele pediu a sua mão com tanta persistência e constância como reclamava o trono do Egipto, mas com o mesmo êxito. A mãe dos Gracos nunca pertenceria a um mero rei estrangeiro, por mais rico e poderoso que fosse.
De facto, Cornélia decidira que uma verdadeira mulher da nobreza romana casada com um importante nobre romano durante quase vinte anos não tinha nada que voltar a casar-se. Por isso, pretendente atrás de pretendente era recusado com uma delicada cortesia; a viúva prosseguiu sozinha os esforços para criar os filhos.
Quando Tibério Graco foi assassinado durante o seu tribunato da plebe, ela continuou a viver de cabeça erguida, mantendo-se firmemente indiferente a todas as insinuações sobre a implicação do seu primo direito Cipião Emiliano no assassínio; e manteve-se igualmente indiferente ao horror da situação marital existente entre Cipião Emiliano e a mulher, a sua própria filha, Semprónia. Depois, quando encontraram Cipião Emiliano morto em circunstâncias misteriosas e se ouviram boatos de que também fora assassinado - pela mulher, a própria filha de Cornélia - ela manteve-se igualmente indiferente. Por fim, acabou por ficar com um único filho vivo para alimentar e encorajar na sua florescente carreira pública, o seu querido Caio Graco.
Caio Graco morreu com grande violência pela altura em que ela fez setenta anos, e todos julgaram que finalmente ocorrera o golpe com a força suficiente para abater Cornélia, a mãe dos Gracos. Mas não. De cabeça erguida, continuou a viver, viúva, sem os seus esplêndidos filhos, tendo por única filha a amarga e estéril Semprónia.
- Tenho a minha querida Semprónia pequena para criar - dizia, referindo-se à filha de Caio Graco, uma bebé pequena.
Mas abandonou Roma, embora nunca tenha abandonado a vida ou a busca de tudo o que se relacionasse com a cidade. Mudou-se permanentemente para a sua enorme villa de Miseno, que não era mais do que o seu monumento a tudo o que Roma podia oferecer ao mundo em termos de gosto e requinte e esplendor. Foi aí que reuniu as suas cartas e ensaios e autorizou o velho Sósio do Argileto a publicá-los graciosamente, depois de os seus amigos lhe terem implorado que não os deixasse desconhecidos para a posteridade. Tal como a sua autora, eram joviais, cheios de graça, encanto e espírito, mas muito intensos e profundos; em Miseno, foram aumentados, pois a mãe dos Gracos, mesmo com o passar dos anos, nunca perdeu as suas faculdades mentais ou a erudição ou o interesse.
Quando Aurélia tinha dezasseis anos e Cornélia, a mãe dos Gracos, oitenta e três, Marco Aurélio Cota e a mulher Rutília, fizeram uma visita de cerimónia - que de facto era uma visita ansiosamente esperada - à mãe dos Gracos, quando iam de passagem pelo Miseno. Traziam consigo a sua tribo inteira de filhos, incluindo o soberbo Lúcio Aurélio Cota, que, como era natural aos vinte e seis anos, não se considerava um verdadeiro membro da tribo. Todos receberam ordens para permanecerem calados como ratos, recatados como Vestais, sossegados como os gatos antes de atacarem - nada de dar pontapés nas pernas das cadeiras, nervosismos, agitação - sob pena de morrerem na agonia de torturas indescritíveis.
Mas Cota e Rutília não precisavam de se ter preocupado com o proferir ameaças que eram estranhas às suas naturezas. Cornélia, a mãe dos Gracos, sabia praticamente tudo o que se devia saber sobre miúdos pequenos e grandes, e a sua neta, SemPrónia, tinha um ano a menos que Aurélia. Deliciada por se ver rodeada por crianças tão interessantes e vivas, divertiu-se imenso, e por muito mais tempo do que os seus escravos dedicados considerariam sensato, pois desta vez ela estava frágil, e tinha os lábios e os lóbulos das orelhas permanentemente roxos.
E Aurélia saiu de lá cativada, inspirada - jurou que quando fosse mais velha, a sua vida se regeria pelos mesmos padrões de vigor romano, resistência romana, integridade romana e paciência romana que Cornélia, a mãe dos Gracos. Foi a partir de então que a sua biblioteca se enriqueceu com os escritos da velha senhora e se estabeleceu o padrão de uma vida igualmente notável.
A visita nunca se repetiu, pois no Inverno seguinte Cornélia, a mãe dos Gracos, morreu, sentada muito direita numa cadeira, de cabeça erguida, segurando a mão da neta. Acabara de informar a rapariga dos seus esponsais com Marco Fúlvio Flaco Bambalião, único sobrevivente da família dos Fúlvios Flacos que morrera por apoiar Caio Graco; era adequado, disse ela à jovem Semprónia, que, como única herdeira da enorme fortuna Semprónia, levasse essa fortuna em oferenda a uma família que se vira privada da sua fortuna em defesa da causa de Caio Graco. Cornélia, a mãe dos Gracos, também estava contente por poder dizer à neta que ainda detinha suficiente influência no Senado para fazer aprovar um decreto que renunciasse às provisões da lex Voconia de mulierum heredtatibus, para o caso de aparecer algum parente afastado do sexo masculino, afirmando-se com direito à enorme fortuna Semprónia de acordo com esta lei contrária às mulheres. A renúncia, acrescentou ela, estendia-Se até à geração seguinte, para o caso de haver outra mulher que provasse ser a única herdeira directa.
A morte de Cornélia ocorreu tão repentina e misericordiosamente, que Roma inteira rejubilou; os deuses haviam verdadeiramente amado - e posto cruelmente à prova - a mãe dos Gracos! Como era uma Cornélia, foi inumada em vez de ser cremada; de todas as famílias de Roma, os membros da gens Cornélia eram os únicos que mantinham os seus corpos intactos após a morte. A sua sepultura era um monumento imponente na Via Latina, e nunca lhe faltavam oferendas de flores a toda a volta. E com o passar do tempo, a sepultura tornou-se um sacrário e altar, embora o culto nunca tivesse sido reconhecido oficialmente. Uma mulher romana que carecesse das qualidades associadas a Cornélia, a mãe dos Gracos, dirigia-lhe orações e oferecia-lhe flores. Tornara-se uma deusa de tipo novo em qualquer panteão; uma figura de espírito invencível perante o sofrimento.
O que faria Cornélia, a mãe dos Gracos? Desta vez, Aurélia não tinha resposta para a pergunta; nem a lógica nem o instinto podiam enxertar a situação difícil de Aurélia noutra pessoa a quem os pais nunca, mas nunca, teriam concedido a liberdade de escolher o próprio marido. Era evidente que Aurélia podia apreciar as razões que haviam levado o astuto tio Públio a sugeri-lo; a sua formação clássica era mais do que ampla para estabelecer o paralelo com Helena de Tróia, embora Aurélia não se achasse tão fatalmente bela - mas antes alguém irresistivelmente elegível.
Por fim, chegou à única conclusão que Cornélia, a mãe dos Gracos, teria aprovado; teria de examinar meticulosamente os seus pretendentes e escolher o melhor. O melhor não era o que a atraísse mais. O melhor seria o que se mostrasse à altura do ideal romano. Tinha de ser bem nascido, de uma família senatorial, no mínimo - e de uma família cuja dignitas, cujo valor público e posição social em Roma remontasse às gerações desde a fundação da República sem qualquer mácula, nódoa ou cicatriz; tinha de ser corajoso, não se deixar tentar pela ambição monetária, ser superior a subornos ou a prostituição ética e, se necessário, estar pronto a dar a vida por Roma ou pela sua honra.
Bem difícil! O problema era: como podia uma rapariga de um meio tão protegido ter a certeza de fazer um julgamento acertado? Então, decidiu falar com os três membros adultos da sua família mais chegada Marco Cota, Rutília e o seu meio-irmão mais velho, Lúcio Aurélio Cota - e pedir-lhes opiniões sinceras sobre cada um dos seus pretendentes. Os três ficaram surpreendidos mas tentaram ajudar tanto quanto possível; infelizmente, todos eles tiveram de admitir que tinham preconceitos pessoais que deformavam a sua avaliação, e isso acabou por não adiantar muito para Aurélia.
- Não há nenhum que ela realmente prefira - disse Cota com tristeza à mulher.
- Nem um só! - afirmou Rutília, suspirando.
- É inacreditável, Rutília! Uma rapariga de dezoito anos que não tem desejo por ninguém? O que se passará com ela?
- Como hei-de saber? - perguntou Rutília, sentindo-se injustamente obrigada a pôr-se na defensiva. - Ela não herdou isso do meu lado!
- Com certeza que não o herdou do meu! - disse Cota com secura, e a seguir tentou afastar a exasperação, beijou a mulher para recompor as coisas e voltou a cair na depressão. - Era capaz de apostar que acabará por decidir que nenhum presta!
- Estou de acordo - disse Rutília.
- O que vamos fazer, então? Se não tivermos cuidado acabaremos por ter a primeira solteirona voluntária em toda a história de Roma!
- É melhor mandá-la ir ter com o meu irmão - disse Rutília. - Poderá discutir o assunto com ele.
Cota animou-se.
- Que excelente ideia! - concordou.
No dia seguinte, Aurélia foi a pé desde a mansão de Cota, no Palatino, até à casa de Públio Rutílio, nas Carinas, acompanhada pela serva particular, Cardixa, e dois enormes escravos gauleses cujas obrigações eram numerosas e variadas mas exigiam todas muita força física; Cota e Rutília não tinham querido estragar a reunião entre Aurélia e o tio com a presença de pais. Marcara-se hora, pois sendo um cônsul encarregado da administração de Roma - libertando assim Cneu Málio Máximo, ocupado a recrutar o enorme exército que tencionava levar para a Gália Transalpina no fim da Primavera - Rutílio Rufo era um homem ocupado. Mas nunca demasiado para tratar dos assuntos familiares que vinham ao seu encontro.
Marco Cota procurara o cunhado pouco antes do amanhecer e explicara-lhe a situação - que parecera diverti-lo enormemente.
- A pequena! - exclamou, sacudindo os ombros. - Completamente virgem. Bem, teremos de ver se ela não toma a decisão errada e não permanece virgem o resto da vida, por mais maridos e filhos que tenha.
- Espero que tenhas uma solução, Públio Rutílio - disse Cota. - Eu nem vislumbro o menor raio de luz.
- Eu sei o que fazer - disse Rutílio Rufo com presunção. - Manda-ma cá antes da décima hora. Poderá jantar comigo. Não tenhas receio, porque a mandarei para casa numa liteira sob forte protecção.
Quando Aurélia chegou, Rutílio Rufo mandou Cardixa e os dois servos gauleses jantar e ficar à espera o tempo necessário nos alojamentos dos escravos; conduziu Aurélia até à sala de jantar e fê-la sentar-se confortavelmente numa cadeira de espaldar direito onde poderia conversar tão bem com o tio como com alguém que se sentasse à sua esquerda.
- Espero apenas um convidado - informou ele, enquanto se instalava no seu leito. - Brrr! Isto está gelado, não achas? Que me dizes a umas meias quentes de lã, sobrinha?
Outra rapariga de dezoito anos teria preferido morrer a usar uma coisa tão feia como um confortável par de meias de lã, mas o mesmo não pensava Aurélia, que comparou a temperatura ambiente da sala com o seu estado e assentiu.
- Obrigada, tio Públio.
Chamaram Cardixa e pediram-lhe que fosse pedir ao mordomo o par de meias, o que ela fez com prontidão.
- Como és sensata! - afirmou Rutílio Rufo, que adorava o bom senso de Aurélia tal como outro homem podia adorar uma pérola perfeita encontrada nos baixios de óstia. Como não era grande apreciador de mulheres, nunca parava para pensar que o bom senso era uma qualidade tão rara nos homens como nas mulheres; simplesmente, como só procurava essa falha nas mulheres, acabava muitas vezes por encontrá-la. Era assim que via Aurélia: era a sua pérola miraculosa, encontrada nos baixios do sexo feminino, e ele estimava-a muito.
- Obrigada, tio Públio - disse Aurélia, dando depois atenção a Cardixa, que estava a retirar as meias, ajoelhada.
As duas raparigas estavam absortas a calçar as meias quando entrou o único convidado; nenhuma delas se deu ao trabalho de olhar ao ouvirem os cumprimentos, à sua esquerda.
Quando Aurélia se endireitou, olhou Cardixa nos olhos e agradeceu, dirigindo-lhe um dos seus raros sorrisos.
E quando se endireitou totalmente e olhou o tio e o convidado do outro lado da mesa, o sorriso ainda se mantinha, tal como o rubor por ter estado inclinada; era de deixar a respiração suspensa.
A do convidado também ficou suspensa, tal como a de Aurélia.
- Caio Júlio, apresento-te Aurélia, a filha da minha irmã - disse Públio Rutílio suavemente. - Aurélia, gostava que conhecesses o filho do meu velho amigo Caio Júlio César: chama-se Caio, tal como o pai, mas não é o mais velho.
Com os olhos púrpura ainda maiores do que de costume, Aurélia observou a forma do seu destino, e nem por uma vez pensou no ideal romano nem em Cornélia, a mãe dos Gracos. Ou talvez tenha pensado a um nível mais profundo; porque ele estava à altura, embora apenas o tempo pudesse provar-lho. Neste momento do encontro, tudo o que via Aurélia era o seu longo rosto romano com o seu longo nariz romano, olhos mais azuis que há, o cabelo louro levemente ondulado, a boca bonita, E, depois de todo aquele debate interno, de todas as deliberações vãs, resolveu o seu dilema da forma mais natural e satisfatória. Apaixonou-se.
Claro que eles falaram. De facto, foi um jantar muito agradável, Rutílio Rufo reclinou-se apoiado no cotovelo esquerdo e deu-lhes a palavra, divertido com a sua inteligência a escolher entre as centenas de jovens que conhecia o que iria agradar à sua pérola preciosa. Escusado será dizer que gostava imenso de Caio Júlio César e tinha expectativas em relação aos anos que se seguiam; o rapaz pertencia ao melhor tipo de família romana. E como era um verdadeiro romano, Públio Rutílio Rufo gostava particularmente - se a atracção entre Caio Júlio César e a sobrinha chegasse a florescer, como ele secretamente esperava que acontecesse que se criasse uma ligação quase familiar entre ele e o seu velho amigo Caio Mário. Os filhos do jovem Caio Júlio César e da sua sobrinha Aurélia seriam primos direitos dos Filhos de Caio Mário.
De um modo geral demasiado acanhada para fazer perguntas, Aurélia esqueceu-se totalmente das boas maneiras e perguntou tudo o que lhe apeteceu ao jovem Caio Júlio César. Descobriu que ele estivera em África com o cunhado Caio Mário no cargo de tribuno militar júnior e fora condecorado em diversas ocasiões: uma Corona Muralis pela batalha na cidadela do Mulucha, um estandarte após a primeira batalha fora de Cirta, e nove phalerae de prata depois da segunda. Sofrera um ferimento grave na anteperna durante o segundo combate e fora mandado para casa, honrosamente desmobilizado. A nada disto ele atribuiu grande valor, pois estava mais interessado em contar-lhe as façanhas do seu irmão mais velho, Sexto, nas mesmas campanhas.
Ela descobriu ainda que nesse ano o rapaz tinha sido escolhido para moedeiro, um dos três jovens encarregados da cunhagem das moedas romanas durante os anos pré-senatoriais, o que lhes dava a oportunidade de aprender como funcionava a economia romana.
- O dinheiro desaparece da circulação - afirmou ele, que nunca tinha tido um público tão interessante como interessado. - A nossa tarefa é fazer mais dinheiro, mas não à nossa vontade! É o Tesouro que determina a quantidade de moedas novas a ser cunhadas por ano; nós limitamo-nos a cunhá-las.
- Mas como podem as moedas desaparecer? - perguntou Aurélia, franzindo o sobrolho.
- Oh, podem cair numa sargeta ou arder num incêndio - respondeu o jovem César. - Algumas moedas ficam gastas. Mas a maior parte das vezes as moedas desaparecem porque são amealhadas. E quando o dinheiro é amealhado, não pode cumprir a sua função.
- Qual é a sua função? - perguntou Aurélia, que nunca ligara muito ao dinheiro, pois tinha necessidades simples e os seus pais eram sensíveis a elas.
- Mudar de mãos constantemente - explicou o jovem Caio César. -
Chama-se a isso circulação. E quando o dinheiro circula, cada mão por onde passou foi abençoada por ele. O dinheiro serve para comprar bens ou trabalho. Mas tem de ser mantido em circulação.
- Então, tens de fazer dinheiro novo para substituir as moedas que alguém anda a amealhar - disse Aurélia com ar pensativo. - No entanto, se as moedas foram amealhadas, ainda existem, não é? O que acontecerá, por exemplo, se de repente uma grande quantidade de moedas que foram amealhadas for... desamealhada?
- O dinheiro passa a valer menos.
Depois da sua primeira lição de economia básica, Aurélia passou ao processo da cunhagem da moeda.
- Somos nós que decidimos o que vem nas moedas - disse o jovem Caio César ansiosamente, cativado pela sua ouvinte atenta.
- Referes-te à Vitória na sua biga?
- Bem, é mais fácil pôr um carro de dois cavalos numa moeda do que um de quatro, e é por isso que a Vitória conduz uma biga e não uma quadriga - respondeu ele. - Mas os que têm alguma imaginação gostam de fazer algo mais original do que a Vitória ou Roma. Quando há três edições de moedas num ano, e geralmente há-as, cada um de nós pode escolher o que aparecerá numa das edições.
- E vais escolher alguma coisa? - perguntou Aurélia.
- Sim. Tirámos à sorte e eu fiquei com o denário de prata. Por isso, o denário deste ano terá a cabeça de lúlo, filho de Eneias, de um dos lados e a Aqua Marcia do outro, em honra de Marcius Rex, meu avô - revelou o jovem César.
Depois, Aurélia descobriu que ele iria candidatar-se à eleição para tribuno dos soldados no Outono; o seu irmão, Sexto, fora eleito tribuno dos soldados este ano e ia para a Gália com Cneu Málio Máximo.
Depois de terminarem o último prato, o tio Públio mandou a sobrínha para casa na liteira bem protegida que prometera. Mas convenceu o seu convidado masculino a ficar mais um pouco.
- Toma uma ou duas taças de vinho puro comigo - disse-lhe. - Estou tão cheio de água que vou ter de ir lá fora encher um balde inteiro.
- Eu acompanho-te - disse o convidado a rir.
- E que tal achaste a minha sobrinha? - perguntou Rutílio Rufo depois de lhes terem servido uma excelente colheita da Toscânia.
- Isso é o mesmo que perguntar se gosto de viver! Há alguma alternativa?
- Gostaste assim tanto dela?
- Se gostei dela? Sim, gostei. Até estou apaixonado! - afirmou o jovem César.
- Queres casar com ela?
- É evidente que quero! E segundo penso, tal como metade de Roma.
- É verdade, Caio Júlio, Isso faz-te desistir?
- Não. Irei ter com o seu pai... quero dizer, o seu tio Marco. E tentarei voltar a vê-la, fazer com que pense em mim com simpatia. Vale a pena tentar, porque sei que gostou de mim.
Rutílio Rufo sorriu.
- Sim, também penso que gostou - deslizou do leito. - Vai para casa, jovem Caio Júlio, conta os teus planos ao teu pai, e depois vai ter com Marco Aurélio amanhã. Quanto a mim, estou cansado e vou para a cama.
Apesar de se ter mostrado muito confiante a Rutílio Rufo, o jovem Caio César foi para casa num estado de espírito bem menos confiante. A fama de Aurélia era conhecida. Muitos dos seus amigos tinham pedido a sua mão; Marco Cota havia-se recusado a acrescentar alguns deles à lista, enquanto outros tinham sido admitidos. Entre os candidatos bem sucedidos havia nomes mais augustos que o dele, quanto mais não fosse por estarem associados a grandes fortunas. Ser um Júlio César significava pouco mais que uma distinção social, mas tão segura que nem a pobreza destruía a sua aura. Porém, como poderia ele competir com jovens como Marco Lívio Druso ou Escauro ou Licínio Orador ou múcio Cévola ou O mais velho dos irmãos Aenobarbos? Como não sabia que Aurélia tivera a oportunidade de escolher o marido, o jovem César via as suas hipóteses muito reduzidas.
Quando passou a porta principal e entrou no átrium, viu as luzes acesas no gabinete do pai e afastou algumas lágrimas repentinas antes de se dirigir em silêncio à porta meio-aberta e bater.
- Entra - disse uma voz cansada.
Caio Júlio César estava a morrer. Todos na casa o sabiam, incluindo ele próprio, apesar de não se ter dito nenhuma palavra sobre o assunto. A doença começara por uma dificuldade em engolir, uma coisa insidiosa que ia avançando, tão lentamente no início que era difícil dizer se havia piorado. Então, a voz começou a enrouquecer-lhe, e depois vieram as dores; de início não eram insuportáveis. Agora, tinham-se tornado constantes, e Caio Júlio César já não conseguia engolir alimentos sólidos. Até aí, recusara-se a ser visto por um médico, apesar de Márcia insistir com ele todos os dias.
- Pai?
- Vem fazer-me companhia, jovem Caio - disse César, que fazia sessenta anos este ano mas à luz da lamparina parecia ter oitenta. Perdera tanto peso que a pele lhe pendia, parecia um esqueleto e o sofrimento constante retirara a vida dos seus olhos, outrora de um azul intenso. Estendeu a mão na direcção do filho; sorriu.
- Oh, pai! - O jovem César tentou corajosamente afastar a emoção da voz, mas não conseguiu; atravessou a sala, dirigindo-se a César, pegou-lhe na mão e beijou-a, depois aproximou-se mais e apertou o pai contra si, com os braços em torno dos seus ombros descarnados, as bochechas encostadas ao cabelo prateado-dourado agora baço.
- Não chores, meu filho - disse César, com voz rouca. - Em breve tudo estará acabado. Atenodoro Sículo vem cá amanhã.
Um romano não chorava. Ou não devia chorar. Embora para o jovem César isso parecesse um padrão de comportamento errado, dominou as lágrimas, afastou-se e sentou-se a uma distância suficiente para manter o aperto daquela mão parecida com uma garra.
- Talvez Atenodoro saiba o que fazer - sugeriu.
- Atenodoro saberá o que todos sabemos, que tenho uma excrescência incurável na garganta - respondeu César. - Contudo, a tua mãe está a espera de um milagre e já estou num ponto em que Atenodoro nem poderá pensar em conceder-lhe um. Continuei a viver por um motivo: para me assegurar de que todos os membros da minha família têm o necessário e estão bem casados - César fez uma pausa, e com a mão livre procurou a taça de vinho puro que era agora o seu único consolo físico. Deu um ou dois goles minúsculos e depois continuou.
- Tu és o último, jovem Caio - murmurou. - O que poderei esperar para ti? Há muitos anos, concedi-te um luxo, de que ainda não te serviste: o de escolheres a tua própria esposa. Agora, penso que chegou a hora de fazeres a tua escolha. Ficarei mais descansado se souber que estás bem casado.
O jovem Caio César levantou a mão do pai e levou-a até à sua bochecha, inclinando-se para a frente e suportando-lhe o peso do braço.
- Encontrei uma, pai - disse-lhe. - Conheci-a esta noite... Não é estranho?
- Em casa de Públio Rutílio? - perguntou César com incredulidade, O jovem fez um sorriso largo.
- Penso que ele esteve a fazer de alcoviteiro!
- Que estranho papel para um cônsul.
- Sim. - O jovem César respirou. - Ouviste falar da sobrinha dele, a enteada de Marco Cota, Aurélia?
- A beldade do dia? Acho que já todos devem ter ouvido falar,
- É ela.
César ficou com um ar perturbado.
- A tua mãe disse-me que há uma lista enorme de pretendentes, incluindo os homens solteiros mais ricos e nobres de Roma... e até mesmo alguns que não são solteiros, segundo ouvi dizer.
- Tudo isso é verdade - afirmou o jovem Caio. - Mas serei eu a casar com ela, não duvides!
- Se os teus instintos não te enganam, vais arranjar lenha para te queimares - disse o pai muito sério. - As beldades do calibre dela não dão boas esposas, Caio. São mimadas, caprichosas, teimosas e petulantes. Deixa-a casar com outro homem e escolhe uma rapariga mais humilde
- ficou mais sossegado ao lembrar-se de um facto reconfortante. Felizmente, não és ninguém, comparado com Lúcio Licínio Orador ou Cneu Domício Júnior, apesar de seres um patrício. Estou certo que Marco Aurélio nem se dará ao trabalho de considerar a tua proposta. Por IssO, não vires o teu coração para ela excluindo todas as outras.
- Ela casará comigo, tata, espera e verás!
E desse ponto, Caio Júlio César não tinha força para demover o seu filho, pelo que deixou que este o ajudasse a ir até à cama onde se habituara a dormir sozinho, tão curtos e inquietos eram os seus períodos de sono.
Aurélia estava deitada de barriga para baixo, dentro da liteira fechada que abanava e saltitava, subindo e descendo as colinas entre a casa do tio Públio e a do tio Marco. Caio Júlio César Júnior! Como era maravilhoso perfeito! Mas quereria casar com ela? O que pensaria Cornélia, a mãe dos Gracos?
Partilhando a liteira com a ama, Cardixa observava-a com grande curiosidade; esta era uma Aurélia que ela nunca tinha visto antes. Direita como um fuso, a um canto e segurando uma vela protegida por alabastro fino para que o interior da liteira não estivesse totalmente às escuras, notou sintomas de mudança. O corpo tenso de Aurélia estava completamente repousado, os lábios estavam menos apertados e as pestanas creme cobriam o que se lhe ocultava nos olhos. Extremamente inteligente como era, Cardixa conhecia a razão da mudança; o jovem incrivelmente belo que Rutílio Rufo apresentara quase como se fosse o prato principal. Oh, como era matreiro! E no entanto, o jovem Caio Júlio César era uma pessoa muito especial; a pessoa certa para Aurélia. Cardixa pressentia-o.
O que quer que Cornélia, a mãe dos Gracos, tivesse feito numa situação semelhante, quando Aurélia acordou na manhã seguinte sabia o que ia fazer. A primeira coisa que fez foi enviar Cardixa até à casa de César com uma mensagem para o seu jovem.
- Pede-me em casamento - dizia muito simplesmente a mensagem. A seguir, não fez exactamente nada, escondeu-se na sua salinha de trabalho e apareceu o menos possível às refeições, pois tinha a consciência de que estava a mudar e não queria que os seus pais atentos dessem por isso antes de ela actuar.
No dia seguinte, esperou que Marco Cota despachasse os seus clientes, sem pressa, pois o secretário tinha-a informado de que ele não teria de assistir a nenhumas sessões do Senado ou do Povo; certamente ficaria em casa uma hora ou duas depois de ter saído o último cliente.
- Pai?
Cota levantou os olhos dos papéis que tinha na mesa de trabalho.
- Ah, então hoje tratas-me por pai? Entra, filha, entra - e dirigiu-lhe um sorriso carinhoso. - Também queres que a tua mãe esteja presente?
- Sim, por favor.
- Então vai buscá-la.
Ela saiu, voltando a aparecer pouco depois, com Rutília.
- Sentem-se, damas - disse Cota.
Elas instalaram-se ao lado uma da outra num leito.
- Então, Aurélia?
- Há mais alguns pretendentes? - perguntou abruptamente a rapariga.
- Com efeito, há. O jovem Caio Júlio César veio ter comigo ontem, e como não tenho nada contra ele, acrescentei-o à lista. O que totaliza os trinta e oito.
Aurélia corou. Cota olhou para ela fascinado, pois nunca a tinha visto transtornada desde que a conhecia. Uma pontinha de língua rosada surgiu, humedeceu os lábios. Ele reparou que Rutília se virara no leito para observar a filha e estava igualmente intrigada com o rubor e o ar transtornado.
- Tomei a minha decisão - revelou Aurélia.
- Excelente! Diz-nos! - incitou Cota.
- Caio Júlio César Júnior.
- O quê? - foi a única pergunta de Cota.
- Quem? - foi a única pergunta de Rutília.
- Caio Júlio César Júnior - repetiu Aurélia pacientemente.
- O último cavalo inscrito na corrida - disse Cota, divertido.
- A entrada tardia do meu irmão - disse Rutília. - Deuses, como é esperto! Como é que ele soube?
- É um homem notável - comentou Cota para a mulher, e depois disse para a enteada: - Conheceste Caio Júlio Júnior em casa do teu tio anteontem... Foi a primeira vez que o viste?
- Sim.
- Mas é com ele que queres casar.
- sim.
- Minha querida, é um homem relativamente pobre - disse a mãe.
- Não terás uma vida de luxo se fores mulher do jovem Caio Júlio.
- As pessoas não se casam para viver luxuosamente.
- Alegra-me que tenhas o bom senso de saber isso, minha filha. Contudo, não é o homem que eu escolheria para ti - disse Cota, não muito contente.
- Gostaria de saber porquê, pai - inquiriu Aurélia.
- A família dele é estranha. Muito, muito pouco ortodoxa. E eles estão ligados ideologicamente e pelo casamento a Caio Mário, um homem que eu detesto absolutamente - afirmou Cota.
- O tio Públio gosta de Caio Mário - disse Aurélia.
- O teu tio Públio por vezes é pouco sensato - respondeu Cota com um ar severo. - Apesar disso, não é tão embrutecido que fosse votar contra a sua própria classe por causa de Caio Mário, ao passo que não posso dizer o mesmo dos Júlios da família de Caio Mário! O teu tio Públio esteve na tropa com Caio Mário durante muitos anos e isso cria um laço compreensível. Mas o velho Caio Júlio César recebeu Caio Mário de braços abertos e ensinou toda a sua família a estimá-lo.
- O Sexto Júlio não casou com uma das Cláudias mais novas há pouco tempo? - perguntou Rutília.
- Creio que sim.
- Isso é uma união irrepreensível. Talvez os filhos não estejam tão ligados a Caio Mário como tu julgas.
- São cunhados, Rutília. Aurélia interrompeu-o.
- O pai e a mãe deixaram-me decidir - afirmou duramente. - Vou casar com Caio Júlio César e acabou-se - isto foi dito com uma grande firmeza mas sem insolência.
Cota e Rutília olharam para ela consternados, compreendendo por fim; a Aurélia friamente sensata estava apaixonada.
- É verdade que deixámos - disse Cota prontamente, decidindo que não havia outra alternativa senão tirar o melhor partido possível da situação. - Bem, vão-se daqui! - disse, fazendo sinal à mulher e à sobrinha para que se fossem embora. - Tenho de mandar os escribas escrever trinta e sete cartas. E depois, é melhor ir ter com Caio Júlio... com o pai e com o filho.
A carta geral que Marco Aurélio Cota enviou dizia:
Após ter considerado cuidadosamente, decidi permitir à minha sobrinha e pupila escolher o seu marido. A minha mulher, sua mãe, concordou. Venho por este meio comunicar que Aurélia tomou a sua decisão. O seu marido será Caio Júlio César Júnior filho mais novo do Pai Conscrito Caio Júlio César. Creio que todos me acompanharão desejando ao casal as maiores felicidades no seu próximo casamento.
O secretário olhou para Cota de olhos arregalados.
- Não fiques aí sentado, começa com isso! - exclamou Cota com demasiada brusquidão para um homem de temperamento sempre tão igual. - Quero trinta e sete cópias desta carta daqui a uma hora, cada uma dirigida a um homem desta lista - colocou a lista sobre a mesa. Eu mesmo as assinarei e serão entregues logo de seguida.
O secretário começou o trabalho; e assim os boatos cresceram, aumentando em muito o conteúdo das cartas. Muitos foram os corações ofendidos e novas invejas quando a notícia correu, pois era óbvio que Aurélia tomara uma decisão com base nas suas emoções e não na conveniência. De certo modo isso tornava a decisão menos desculpável; nenhum dos concorrentes da lista de pretendentes de Aurélia gostava de ser vencido pelo filho mais novo de um mero senador de segunda linha, por mais augusta que fosse a sua ascendência. Além do mais, o sortudo era muito bonito e isso costumava ser visto como uma vantagem injusta.
Depois de ter recuperado do choque inicial, Rutília sentiu-se inclinada a aprovar a decisão da filha.
- Oh, pensa nos filhos que ela terá! - sussurrou para Cota, enquanto lhe vestiam a toga debruada a púrpura para ir a casa dejúlio César, situada numa parte menos elegante do Palatino. - Se não considerares o dinheiro, é um partido esplêndido para uma Aurélia, para já não falar numa Rutília. Os Júlios são o topo da escala social.
- A antiguidade de uma família não dá pão a ninguém - resmungou Cota.
- Vamos, Marco Aurélio, as coisas não são assim tão más! A ligação com Mário aumentou enormemente a fortuna dos Júlios, e sem dúvida continuará a fazê-lo. Não vejo qualquer motivo para que o jovem Júlio não venha a ser cônsul. Ouvi dizer que é muito inteligente e capaz.
- O hábito não faz o monje - disse Cota, céptico.
No entanto, ele mesmo partiu com um aspecto magnífico, na sua toga, sendo também um belo homem, apesar da pele corada que todos os Aurélios Cota possuíam; era uma família cujos membros não chegavam à velhice, visto que tinham uma acentuada tendência para apoplexias.
Como o informaram de que o jovem Caio Júlio César não estava em casa, perguntou pelo homem mais velho, e ficou surpreendido com o ar sério do mordomo.
- Peço licença, Marco Aurélio, mas terei de indagar - disse o mordomo. - Caio Júlio não está bem.
Era a primeira vez que Cota ouvia falar de uma doença, mas após reflectir um pouco, reparou que o velho homem não aparecia no Senado há algum tempo.
- Esperarei - disse.
O mordomo regressou rapidamente.
- Caio Júlio vai receber-te - informou o mordomo, conduzindo Cota até ao gabinete. - Devo avisar-te que o seu aspecto te chocará.
Satisfeito por ter sido avisado, Cota escondeu o choque quando os dedos ossudos conseguiram desempenhar a enorme tarefa de avançar precipitadamente para dar um aperto de mão.
- Marco Aurélio, é um prazer - disse César. - Senta-te! Peço desculpa por não poder levantar-me, mas o meu mordomo deve ter-te dito que não me encontro bem - um sorriso ténue aflorou os lábios finos. Um eufemismo. Estou a morrer.
- Oh, certamente que não - afirmou Cota pouco à vontade, sentando-se na ponta da cadeira com as narinas comprimidas; havia naquela sala um cheiro especial a algo de desagradável.
- Com certeza que sim. Tenho uma excrescência na garganta. Foi confirmado esta manhã por Atenodoro Sículo.
- Causa-me mágoa ouvir-te, Caio Júlio. Todos sentiremos a tua falta na Assembleia, em especial o meu cunhado Públio Rutílio.
- É um bom amigo - os olhos congestionados de César pestanejaram, fatigados. - Imagino o que te trouxe aqui, Marco Aurélio, mas peço-te que mo digas.
- Quando a lista dos pretendentes da minha sobrinha e pupila Aurélia se tornou tão longa, e cheia de nomes poderosos, que receei que a escolha do seu marido traria aos meus filhos mais inimigos do que amigos, autorizei-a a escolher esposo - contou Cota. - Há dois dias, ela conheceu o teu filho mais novo em casa do seu tio, Públio Rutílio, e hoje disse-me que o tinha escolhido.
- E isso desagrada-te tanto como a mim - afirmou César.
- Desagrada - Cota suspirou, encolheu os ombros. - Contudo, dei a minha palavra de honra, por isso mantê-la-ei.
- Eu fiz a mesma concessão ao meu filho mais novo há muitos anos
- revelou César, e sorriu. - Concordaremos então em tirar o melhor partido disso, Marco Aurélio, e esperemos que os nossos filhos tenham mais bom senso do que nós.
- Deveras, Caio Júlio.
- Deves querer conhecer a situação do meu filho. -já ma expôs quando pediu a mão dela.
- Pode não ter sido explícito. Há terras mais do que suficientes para lhe garantir um lugar no Senado, mas de momento, nada mais - disse César. - Infelizmente, não estou em posição de comprar uma segunda casa em Roma, e isso é uma dificuldade. Esta casa irá para o meu filho mais velho, Sexto, que casou recentemente e vive aqui com a mulher, que está nos primeiros meses da primeira gravidez. A minha morte está iminente, Marco Aurélio. Depois, será Sexto o pater familias, e ao casar, o meu filho mais novo terá de encontrar outro lugar para viver.
- Certamente saberás que Aurélia possui um grande dote - disse Cota. - Talvez a coisa mais sensata fosse investir o dote numa casa - aclarou a garganta. - Ela herdou uma enorme quantia do pai, meu irmão, que foi investida há alguns anos. Apesar dos altos e baixos do mercado, de momento o valor encontra-se por volta dos cem talentos. Quarenta talentos darão para uma casa no Palatino ou nas Carinas. Naturalmente a casa ficaria em nome do teu filho, mas se em qualquer altura ocorresse um divórcio, ele teria de repor a quantia que a casa custasse. Mas exceptuando o caso de um divórcio, Aurélia teria ainda uma quantia suficiente em seu nome para garantir que não optaria por essa solução.
César franziu as sobrancelhas.
- Desagrada-me a ideia do meu filho ir viver numa casa paga pela mulher - retorquiu, em voz rouca. - Seria uma presunção da sua parte. Não, Marco Aurélio, parece-me que as circunstâncias exigem algo que salvaguarde melhor o dinheiro de Aurélia do que uma casa que não lhe pertencerá. Cem talentos comprarão uma ínsula excelente aqui no Esquilino. E deve ser comprada para ela, em seu nome. O casal pode viver sem pagar renda num dos apartamentos do rés-do-chão e a tua sobrinha pode dispor de um rendimento, alugando os outros apartamentos, um rendimento maior do que o que poderá obter de outro tipo de investimentos. O meu filho terá de esforçar-se para poder comprar uma casa particular, e isso manterá a sua coragem e ambição num nível alto.
- Não posso permitir que Aurélia viva numa ínsula! - exclamou Cota, horrorizado. - Não, porei de parte quarenta talentos para comprar uma casa, e deixarei os restantes sessenta talentos seguramente investidos.
- Uma ínsula em nome dela - disse César com teimosia. E arfou, engasgou-se, inclinou-se para a frente, tentando respirar.
Cota encheu uma taça de vinho e colocou-a na mão crispada de César, ajudando-o a levá-la aos lábios.
- Estou melhor - disse César daí a a pouco.
- Talvez seja preferível tornar noutra altura - sugeriu Cota.
- Não, vamos pôr um ponto final na questão, Marco Aurélio. Ambos concordamos que este casamento não é o que teríamos escolhido para eles. Então, não lhes vamos facilitar as coisas. Ensinemos-lhes o preço do amor. Se estiverem bem um para o outro, algumas dificuldades apenas irão fortalecer a sua ligação. Se não estiverem, as dificuldades irão acelerar a separação. Faremos com que Aurélia mantenha o dote por inteiro, e não afectaremos mais do que o necessário o orgulho do meu filho. Uma ínsula, Marco Aurélio! Terá de ser da melhor construção, por isso encarrega-te de mandar homens honestos inspeccioná-la. E - prosseguiu a voz murmurante - não te preocupes demasiado com a sua localização. Roma está a crescer rapidamente mas o mercado de alojamento barato é muito mais constante do que o do alojamento que encarece. Quando os tempos estão difíceis, o alojamento de tendência ascendente baixa de preço, por isso há sempre inquilinos à procura de rendas mais baratas.
- Deuses, a minha sobrinha seria uma vulgar senhoria! - exclamou Cota, revoltado com a ideia.
- E porque não? -perguntou César sorrindo, extenuado. - Ouvi dizer que é uma beldade colossal. As duas coisas não ligam? Se não, talvez deva pensar duas vezes antes de casar com o meu filho.
- É verdade que é uma beldade colossal - afirmou Cota, sorrindo duma piada secreta. - Hei-de trazê-la para te conhecer, Caio Júlio, e farás o que entenderes - levantou-se, inclinou-se para tocar ao de leve no ombro magro. - É esta a minha última palavra: será Aurélia a decidir o uso a dar ao seu dote. Faz-lhe a proposta da ínsula e eu faço a minha sugestão da casa. De acordo?
- De acordo - disse César. - Mas manda-a cá depressa, Marco Aurélio! Amanhã, ao meio-dia.
- Dirás isso ao teu filho?
- Sim, poderá trazer-ma cá amanhã.
Em circunstâncias normais, Aurélia não estremeceria ao pensar no que ia vestir; adorava cores fortes e gostava de misturá-las, mas a decisão era tão rápida e lógica como nela era tudo o mais. No entanto, ao ser informada de que o noivo viria buscá-la para conhecer os futuros sogros, estremeceu. Por fim, escolheu uma veste inferior em lã cor de cereja e cobriu-a com uma roupagem de lã rosa, suficientemente fina para deixar ver a cor mais escura, e cobriu-a com uma segunda roupagem num tom rosa pálido, tão fina como um véu de casamento. Tomou banho e perfumou-se com essência de rosas mas manteve o cabelo preso atrás num rolo, como de costume, e recusou a oferta da mãe de um pouco de carmim e stibium.
- Estás demasiado pálida hoje - protestou Rutília. - É da tensão. Tenta ficar com o melhor aspecto possível, por favor! Só um toque de carmim nos lábios e uma linha a contornar os olhos.
- Não - disse Aurélia.
A palidez acabou por não ter qualquer importância, pois quando Caio Júlio César Júnior foi buscá-la, Aurélia adquiriu o tom que a mãe desejaria.
- Caio Júlio - disse a rapariga, estendendo a mão.
- Aurélia - respondeu-lhe ele, apertando-a. Depois, ficaram sem saber o que fazer.
- Vão-se embora; adeus! - disse Rutília sentindo-se irritada; era tão estranho ver a primeira filha ir para este rapaz tão atraente quando ela própria se sentia com dezoito anos apenas.
Puseram-se a caminho, seguidos por Cardixa e pelos gauleses.
- Devo avisar-te que o meu pai não está de saúde - disse o jovem César controlando-se. - Tem uma excrescência maligna na garganta e tememos que não fique na nossa presença durante muito mais tempo.
- Oh! - exclamou Aurélia.
Viraram uma esquina.
- Recebi a tua mensagem - disse o rapaz - e apressei-me a vir ter com Marco Aurélio. Mal posso acreditar que me tenhas escolhido!
- Mal posso acreditar que te encontrei - ecoou Aurélia.
- Pensas que Públio Rutílio agiu de propósito? A pergunta provocou nela um sorriso.
- Com toda a certeza.
Continuaram a andar até ao fim do quarteirão e viraram numa esquina.
- Vejo que não és faladora - comentou o jovem César.
- Não - respondeu Aurélia.
E foi tudo o que disseram até chegarem à casa de César.
Mal viu a noiva escolhida pelo filho, César mudou de ideias. Não era nenhuma beldade mimada e caprichosa! Era tudo o que ja ouvira dizer dela - colossalmente bela - mas não de algum modo reconhecido. Então, ocorreu-lhe que era por isso que era a única pessoa a quem aplicavam a hipérbole ”colossal.” Que filhos maravilhosos haveriam de ter! Filhos que ele já não poderia ver.
- Senta-te, Aurélia - a sua voz mal se ouvia, e por isso apontou para uma cadeira ao lado da sua mas bastante de frente para poder vê-la. Instalou o filho do outro lado.
- O que te contou Marco Aurélio acerca da conversa que tivemos? perguntou então.
- Nada - respondeu Aurélia.
César entrou directamente na discussão que tivera com Marco Aurélio acerca do dote, não hesitando em falar dos seus sentimentos ou dos de Cota.
- O teu tio, teu tutor, diz que a escolha é tua. Preferes uma casa ou uma ínsula? - perguntou olhando-a no rosto.
O que faria Cornélia, a mãe dos Gracos? Desta vez, ela sabia a resposta: Cornélia, a mãe dos Gracos, faria o que fosse mais honroso, por mais duro que fosse. Só que agora, ela tinha duas honras a ter em consideração: a do seu amado e a sua. Escolher a casa seria mais confortável e habitual mas ofenderia o orgulho do seu amado saber que a casa fora paga com o dinheiro da mulher.
Deixou de olhar César fixamente e lançou um olhar muito sério ao filho deste.
- Qual delas preferirias? - perguntou.
- A decisão é tua, Aurélia - afirmou o rapaz.
- Não, Caio Júlio, a decisão é nossa. Eu vou ser tua mulher. Tenciono ser uma mulher digna, e sei qual é o meu lugar. Tu serás o chefe da nossa casa. Tudo o que peço em troca por te ceder o primeiro lugar é que lides sempre comigo honesta e honradamente. A escolha do lugar onde viveremos cabe-te a ti. Eu reger-me-ei por ela, tanto em factos como em palavras.
- Então, pediremos a Marco Aurélio que te arranje uma ínsula e registe a escritura em teu nome - disse o jovem César sem hesitar. - Deve ser a propriedade mais rentável e bem construída que encontrarmos e concordo com o meu pai... A sua localização não interessa de momento. O rendimento das rendas será teu. Viveremos num dos apartamentos do rés-do-chão até eu estar em posição de comprar uma habitação particular. Sustentar-te-ei a ti e aos nossos filhos com os rendimentos dos meus terrenos. Isto implica que serás responsável pela tua ínsula: eu não tomarei parte nisso.
Notou-se logo que ela estava contente, embora não dizendo nada.
- Não és faladora! - exclamou César, admirado.
- Não - respondeu Aurélia.
Cota deitou mãos à obra com vontade, embora a sua intenção fosse encontrar um prédio agradável numa das melhores zonas de Roma. Mas isso não viria a acontecer; por mais que procurasse, o investimento mais sensato era uma ínsula bastante grande no coração da Subura. Não era um prédio de apartamentos (fora construído pelo seu dono cerca de trinta anos antes, e como o dono vivera no maior dos dois apartamentos do rés-do-chão, fizera uma construção para durar), tinha socos e fundações de pedra e argamassa com quinze pés de profundidade e cinco de largura; as paredes exteriores e as paredes de apoio tinham dois pés de espessura e levavam de cada lado uma camada irregular de tijolo e argamassa denominada opus incertum e estavam cheias de uma mistura firme de argamassa e cascalho; as janelas eram todas abobadadas em relevo e feitas de tijolo; o edifício era reforçado com vigas de madeira de pelo menos um pé quadrado de espessura e até cinquenta pés de comprimento; as vigas de madeira suportavam o chão de argamassa dos andares inferiores e o chão dos andares superiores era suportado por traves de madeira; o vão amplo servia de apoio mas a clarabóia era sustentada por um sistema de pilares de dois pés de espessura a cada cinco pés, unidos em cada andar por traves de madeira maciça.
Era uma ínsula bastante modesta com nove andares de nove pés de altura cada um, incluindo o chão de um pé de espessura - a maioria das ínsulas da vizinhança tinham entre dois e quatro andares mais - mas ocupava toda a área de um pequeno prédio triangular situado no local onde a Subura se cruzava com o Vicus Patricil. O seu vértice embotado dava para o cruzamento; de um dos lados tinha a Subura Menor e do outro o Vicus Patricii, e a base do triângulo era formada por uma ruela que ligava essas duas ruas.
Encontraram-na ao fim de uma longa lista de outros prédios; por isso, Cota, Aurélia e o jovem César estavam habituados à gíria de um pequeno vendedor fluente de irrepreensível ascendência romana - não havia gregos libertados a trabalhar na empresa de venda de imóveis de Tório Póstumo!
- Reparem no estuque das paredes, tanto no interior como no exterior - prosseguia monotonamente o agente. - Não se vê uma racha; as fundações são firmes como as garras de um sovina presas à sua última barra de ouro... oito lojas, todas de aluguer longo, não há problemas com inquilinos ou com rendas... dois apartamentos do rés-do-chão com salas de visita com a altura de dois andares... dois apartamentos apenas no andar seguinte... oito apartamentos por andar até ao sexto andar... doze apartamentos no sétimo, outros doze no oitavo... todas as lojas têm um andar superior para habitação... há um espaço adicional para arrumações acima dos tectos falsos nos quartos dos apartamentos do rés-do-chão...
E lá continuou ele a expor as virtudes do prédio; ao fim de algum tempo, Aurélia deixou de ouvi-lo e concentrou-se nos seus pensamentos. O tio Marco e Caio Júlio podiam escutá-lo e dar-lhe atenção. Era um mundo que ela não conhecia mas estava decidida a conhecer a fundo, e se isso implicasse um modo de vida muito diferente daquele a que estava habituada, tanto melhor.
Era óbvio que tinha os seus receios, não estava ansiosa por iniciar duas mudanças de uma só vez: a vida de casada e passar a viver numa ínsula. E no entanto, descobria em si ao mesmo tempo uma certa intrepidez nascida de um sentido de liberdade demasiado recente para ser assimilado de imediato. A ignorância de qualquer outro tipo de vida excluíra a hipótese de ela sentir tédio ou frustração durante a infância, que fora bastante atarefada, pois envolvera muitos processos de aprendizagem. Mas assim que o casamento surgiu, começou a interrogar-se acerca do que faria com o tempo se não pudesse preenchê-lo com tantas crianças como Cornélia, a mãe dos Gracos - e era raro haver um nobre que quisesse ter mais de dois filhos. Por natureza, Aurélia era uma pessoa activa, trabalhadora; o seu nascimento reduzira muito o seu campo de acção. Agora, ia ser senhoria e esposa, e tinha a perspicácia de perceber que pelo menos a primeira tarefa lhe oferecia raras oportunidades de trabalho. Não apenas trabalho, mas trabalho interessante e estimulante.
Por isso, olhava à sua volta com os olhos a brilhar e fazia planos e esquemas, tentando imaginar como as coisas seriam.
Havia uma diferença de tamanho entre os dois apartamentos do rés-do-chão, pois o construtor fizera o maior para si, com grande orgulho. Comparado com a mansão de Cota no Palatino, era muito pequeno; com efeito, a superfície da mansão de Cota era maior do que toda a superfície do rés-do-chão desta ínsula, incluindo as lojas, a taberna do cruzamento e os dois apartamentos.
Embora a sala de jantar mal desse para os três leitos habituais e O gabinete fosse mais pequeno do que qualquer gabinete duma casa particular, estas divisões eram amplas; a parede entre elas era mais uma divisória e não ia até ao tecto, deixando entrar o ar e a luz do saguão através da sala de jantar e passar para o gabinete atrás. A sala de recepção (hoje em dia chamar-lhe-íamos átrio) tinha um bom chão de tijoleira e paredes de estuque, e as duas colunas ao centro eram de madeira sólida pintada a imitar mármore; o ar e a luz vinham da rua através de um enorme gradeamento de ferro bastante elevado na parede exterior entre o fim de uma loja e o vão de escadas que dava para os andares superiores. Três pequenos quartos de dormir sem janelas davam para a sala de recepção e outros dois, um deles mais largo, davam para o gabinete. Havia uma salinha que ela podia usar como sala de estar, e entre esta e o vão das escadas havia um pequeno quarto que podia ficar para a Cardixa. Mas o maior alívio foi descobrir que o apartamento tinha casa de banho e sanita - pois, como o agente explicou jovialmente, a ínsula ficava na transversal de um dos mais importantes esgotos de Roma, e estava ligada à tubagem de abastecimento de água.
- Há uma latrina pública mesmo em frente da Subura Menor, e os Banhos da Subura são mesmo ao lado - explicou o agente. - O abastecimento de água não tem qualquer problema. A altitude é a ideal, suficientemente baixa para terem um bom abastecimento dos depósitos do Agger mas a uma altura suficiente para não sofrer com as inundações do Tibre, e o tubo que liga às canalizações é mais largo do que os que as companhias de água estão a fornecer... Se os novos prédios puderem ser ligados às canalizações! Naturalmente o antigo dono era o único que utilizava a água e os esgotos... Mas os inquilinos estão bem servidos, devido ao cruzamento com a latrina e os banhos mesmo em frente.
Aurélia ouviu isto com fervor, porque lhe haviam dito que o seu estilo de vida não incluiria o luxo de ter água canalizada e sanita; se havia aspecto que lhe desagradava em relação à vida numa ínsula, era a ideia de ter de passar sem o seu banho privado e as suas excreções privadas. Nenhuma das outras ínsulas que viram antes tinha água nem esgotos, apesar de a maioria delas se localizar em bairros melhores. Se Aurélia ainda não tivesse decidido que esta ínsula era a que lhe interessava, decidira-se agora.
- De quanto é a renda? - perguntou o jovem César.
- Dez talentos por ano: um quarto de milhão de sestércios.
- Excelente, excelente! - disse Cota, acenando.
- A manutenção do edifício é insignificante, pois foi construído de acordo com os melhores padrões de qualidade - afirmou o agente. - Isso só por si significa que nunca deixa de estar cheio de inquilinos... Há muitas ínsulas que desabam ou ardem como a casca seca das árvores. Esta não! E tem uma fachada em dois dos seus três lados e uma ruela um pouco mais larga do que de costume, o que a torna menos atreita a incêndios se um prédio da vizinhança arder. Sim, este prédio é tão sólido como um barco de Grânio. Punha as minhas mãos no fogo por ele.
Como era insensato fazer a travessia da Subura de liteira ou numa cadeirinha, Cota e o jovem César haviam trazido os dois gauleses como protecção extra, e escoltaram Aurélia a pé. Não por correrem grandes riscos, pois era dia claro, e as pessoas nas ruas apinhadas estavam mais interessadas nos seus negócios do que em molestar a bela Aurélia.
- O que te parece? - perguntou-lhe Cota quando chegaram à rampa pouco inclinada que ia da Fauces Suburae até ao Argileto e se preparavam para atravessar o extremo mais baixo do Fórum Romano.
- Oh, tio, acho que é ideal! - exclamou ela, virando-se depois para fitar o jovem César. - Concordas, Caio Júlio?
- Penso que nos servirá muito bem - respondeu o rapaz.
- Nesse caso, fecharei o negócio esta tarde. Por noventa e cinco talentos é um bom negócio, ou mesmo uma bagatela. E ficarão com cinco talentos para comprar mobília.
- Não - replicou o jovem César com firmeza -, a mobília é da minha responsabilidade, e não sou pobre, como sabes! A minha terra nas Bovilas dá-me um bom rendimento.
- Eu sei, Caio Júlio - disse Cota pacientemente. - Contaste-mo, recordas-te?
Não se recordava. Nos últimos tempos, o jovem César só pensava em Aurélia.
Casaram em Abril, num dia perfeito de Primavera, com todos os presságios auspiciosos; até Caio Júlio César estava com melhor aspecto. Rutília chorou, por um lado, porque era a primeira vez que um filho seu casava, e por outro porque era a sua última filha a fazê-lo. Júlia e Julilla assistiram ao casamento, bem como a mulher de Sexto, Cláudia, mas os seus maridos não; Mário e Sila ainda estavam em África e Sexto César fora recrutado para ir para Itália e não conseguira obter licença do cônsul Cneu Málio Máximo.
Cota queria alugar uma casa no Palatino para passarem o primeiro mês juntos.
- Primeiro, tens de habituar-te a estar casada, e depois habitua-te a viver na Subura - disse, muito preocupado com a sua única filha.
Mas o jovem casal recusou firmemente, pelo que o cortejo de casamento foi longo, e a noiva foi muito aclamada - ao que parecia – por toda a Subura. O jovem César estava imensamente contente por o véu esconder o rosto da noiva, mas recebeu a sua quota-parte de gracejos obscenos sem se ofender, sorrindo e fazendo vénias ao passar.
- É a nossa nova vizinhança; é melhor aprendermos a lidar com eles
- alegou. - Limita-te a não dar ouvidos.
- Eu preferiria que os evitasses - resmungou Cota, que quisera contratar gladiadores para escoltar o cortejo; perturbavam-no imenso as massas e a taxa de criminalidade, bem como a linguagem baixa.
Quando chegaram à ínsula de Aurélia, seguia-os uma enorme multidão, provavelmente à espera de encontrar bastante vinho no fim da caminhada, e decidida a invadir a festa. Contudo, o jovem César abriu a grande porta e pegou na mulher ao colo para a levar através da entrada; Cota, Lúcio Cota e os dois gauleses conseguiram manter a populaça o tempo suficiente para o jovem César entrar e bater com a porta. Por entre gritos de protesto, Cota desceu o Vicus Patricii de cabeça erguida.
Cardixa era a única pessoa que se encontrava no apartamento; Aurélia decidira usar o dinheiro que sobrara do seu dote para comprar servos para a casa, mas adiara a tarefa até depois do casamento, pois queria tratar de tudo sozinha, sem a presença da mãe ou da sogra. O jovem César também precisava de comprar servos - o mordomo, o servo encarregado do vinho, o seu secretário, um escrivão e um criado de quarto - mas Aurélia tinha mais: duas raparigas permanentes para limpezas, uma lavadeira, um cozinheiro e um ajudante de cozinha, dois servos para todo o serviço e um homem forte. Não era uma criadagem numerosa mas no número conveniente.
Lá fora ia escurecendo mas o apartamento estava muito mais escuro, algo que a visita no pino do dia não permitira ver. A luz filtrada através dos nove andares do saguão central extinguia-se cedo, tal como a luz que vinha da rua, uma garganta de ínsulas altas. Cardixa acendera todas as lamparinas que havia, mas eram poucas para acabar com os cantos escuros; ela retirara-se para o seu quarto para deixar os recém-casados à vontade.
O que espantava Aurélia era o barulho. Vinha de todos os lados - da rua, do vão das escadas que davam para os andares superiores, do saguão central - até o chão parecia ressoar. Gritos, imprecações, embates, conversas aos berros, discussões e insultos, bebés aos gritos, choros de crianças, homens e mulheres escarrando e cuspindo, uma banda de músicos tocando ruidosamente tambores e címbalos, partes de canções, vacas a mugir, cabras a balir, mulas e jumentos a arfar, as rodas das carroças sempre a girar, risadas estrondosas.
- Oh, não conseguiremos ouvir os nossos pensamentos! - disse ela, afastando as lágrimas inesperadas. - Caio Júlio, desculpa! Não me lembrei do barulho.
O jovem César tinha a sensatez e sensibilidade necessárias para entender que esta explosão pouco comum não era devida ao barulho mas a um nervosismo não reconhecido trazido pela agitação dos últimos dias, pela pura e simples tensão provocada pelo casamento. Ele próprio a sentira; e devia ser muito maior para a sua mulherzinha.
Por isso, riu-se e disse:
- Havemos de habituar-nos a ele, não tenhas receio. Garanto-te que dentro de um mês já nem daremos por ele. Além disso, no nosso quarto nem se deve ouvir - e levou-a pela mão, que sentia tremer.
O quarto de dormir do senhor, onde se chegava atravessando o gabinete, estava silencioso. E ficava totalmente escuro e sem ar a menos que a porta do gabinete ficasse aberta, pois haviam construído no quarto um tecto-falso para arrumações.
Deixando Aurélia no gabinete, o jovem César foi buscar uma lamparina à sala de recepção. De mãos dadas, entraram no quartinho e ficaram encantados. Cardixa enfeitara-o com flores, cobrira o leito duplo com flores cheirosas, dispusera vasos de todos os tamanhos encostados às paredes e enchera-os de rosas, goivos e violetas; sobre uma mesa estava um jarro de vinho, outro de água, duas taças de ouro e um grande prato de bolos de mel.
Nenhum deles era tímido. Como Romanos que eram, estavam devidamente informados em relação a questões sexuais mas eram recatados. Os Romanos preferiam que as suas actividades íntimas decorressem em privacidade, se possível, especialmente se envolvessem a nudez; no entanto, não eram inibidos. Evidentemente o jovem César tivera a sua quota-parte de aventuras, embora o rosto lhe desmentisse a natureza; o primeiro era espantosamente notável, a segunda sobriamente apagada. Porque apesar de todos os seus dotes inegáveis, o jovem César era basicamente um homem reservado, sem o dinamismo e a determinação de uma personalidade agressiva e política; um homem em quem os outros podiam confiar mas que mais provavelmente promoveria as carreiras deles do que a sua própria.
O instinto de Públio Rutílio não se enganara. O jovem César e Aurélia adaptavam-se maravilhosamente um ao outro. Ele era meigo, atencioso, respeitador, amava com mais ternura que ardor; se ardesse de paixão, talvez Aurélia se tivesse abrasado no seu fogo, mas isso nunca viriam a saber. O modo como faziam amor era cheio de toques delicados, beijos suaves, decorria lentamente. E satisfazia-os; inspirava-os mesmo. E Aurélia pôde dizer a si mesma que recebera a aprovação incondicional de Cornélia, pois tudo correra como teria corrido com a mãe dos Gracos, com um prazer e contentamento que garantiam que o acto em si nunca dominaria a sua vida nem ditaria a sua conduta fora do leito matrimonial - mas também assegurava que este nunca viria a desagradar-lhe.
Durante o Inverno que Quinto Servílio Cepião passou em Narbona, lamentando o ouro perdido, recebeu uma carta do brilhante jovem defensor Marco Lívio Druso, um dos mais ardentes - e mais desiludidos - pretendentes de Aurélia.
Tinha eu apenas dezoito anos quando meu pai, o Censor, morreu e me deixou em herança não só, todos os bens como também a posição de pater familias. Talvez por sorte, o meu único encargo oneroso era a minha irmã de treze anos, privada de pai e mãe. Nessa altura, minha mãe, Cornélia, pediu-me que levasse minha irmã para sua casa, mas obviamente recusei. Embora nunca se tivessem divorciado, sei que tinhas consciência da frieza das relações entre meus pais, que atingiu o auge quando meu pai concordou com a adopção do meu irmão. Minha mãe sempre gostou mais dele do que de mim, e por isso quando o meu irmão passou a ser Mamerco Emílio Lépido Liviano, a minha mãe apresentou como desculpa a sua tenra idade, e mudou-se com ele para a sua nova casa, onde de facto foi encontrar um tipo de vida muito mais livre e licencioso do que alguma vez poderia ter vivido sob o tecto de meu pai. Deixa-me refrescar-te a memória sobre estes assuntos como ponto de honra, visto que sinto que a minha honra ficou manchada pelo comportamento desprezível e egoísta de minha mãe.
Posso gabar-me de ter educado a minha irmã, Lívia Drusa, como o exigia a sua posição. Tem agora dezoito anos, e está pronta para casar. Tal como eu, Quinto Servílio, apesar de ter só vinte e três anos. Sei que é mais habitual esperar até aos vinte e cinco para casar, e sei que muitos preferem esperar até entrarem para o Senado. Mas eu não posso fazê-lo, Sou o pater familias, e o único Livio Druso da minha geração. O meu irmão, Mamerco Emílio Lépido Liviano, deixou de ter direito ao nosso nome e à herança familiar. Por esse motivo, compete-me casar e procriar, embora tenha decidido na altura da morte do meu pai que esperaria até minha irmã chegar à idade de casar.
A carta era tão altiva e formal como o jovem que a escrevera, mas isso para Quinto Servílio Cepião não era defeito; ele e o pai do rapaz tinham sido bons amigos, tal como o eram agora os filhos.
Por isso, Quinto Servílio, como chefe da família, desejo propor-te a ti, chefe da tua família, uma aliança conjugal. não me pareceu sensato discutir O assunto com o meu tio, Públio Rutífio Rufo. Embora não tenha nada a criticar-lhe como marido de minha tia Lívia, nem como pai dos seus filhos, não considero que o seu sangue e o temperamento tenham o peso suficiente para tornarem válido o seu conselho. Só recentemente, por exemplo, fiquei a saber quefoi ele quepersuadiu Marco Aurélio Cota a autorizar a enteada, Aurélia, a escolher o próprio marido, É difícil de conceber um acto menos romano. E obviamente, ela deixou-se seduzir pela beleza de um júlio César, um sujeito frívolo e superficial que nunca virá a ser ninguém,
Aí estava uma coisa que punha Públio Rutílio Rufo à margem. E Marco Lívio Druso continuou a perorar, ferido não só no coração mas também na dignitas.
Ao escolher o rumo de minha irmã, tive em mente aliviar a minha esposa da responsabilidade de lhe dar abrigo e responder pela sua conduta. não vejo a menor virtude em passarmos as nossas obrigações para cima de outros que não terão o mesmo grau de preocupação.
O que agora proponho, Quinto Servílio, é que me autorizes a desposar a tua filha, Servília de Cepião, e autorizes o teu filho, Quinto Servílio Júnior, a desposar a minha irmã, Lívia Drusa. Será a solução ideal para todos. Os nossos laços conjugais remontam a muitas gerações, e tanto minha irmã como tua filha tém dotes iguais, pelo que não haveria necessidade de o dinheiro trocar de mãos. uma vantagem nestes tempos, em que há tanta falta de liquidez.
Peço-te que me comuniques a tua decisão.
Não havia nada a decidir; era o casamento com que Quinto Servílio sempre sonhara, dado que era bem elevada a fortuna de Lívio DrusO, assim como a sua nobreza. A resposta seguiu imediatamente:
Meu caro Marco Lívio, estou encantado. Tens a minha permissão para efectuar todos os preparativos.
E depois, Druso abordou o assunto com o seu amigo Cepião Júnior, ansioso por preparar o terreno para a carta de Quinto Servílio Cepião ao filho, que ele já sabia que estava prestes a chegar; era melhor que Cepião Júnior encarasse o seu futuro casamento como uma coisa desejável em vez de o considerar uma ordem a cumprir.
- Gostaria de desposar a tua irmã comunicou Druso a Cepião Júnior, de modo um pouco mais abrupto do que tencionara.
Cepião Júnior pestanejou mas não deu qualquer resposta.
- Também gostaria que desposasses a minha irmã prosseguiu Lívio Druso.
Cepião Júnior pestanejou várias vezes, mas não deu qualquer resposta.
- Então, o que dizes? perguntou-lhe o amigo.
Por fim, Cepião Júnior pôs em ordem as ideias (que não tinham comparação em termos de grandeza com a sua fortuna ou mesmo com a nobreza), e disse:
- Terei de pedir autorização ao meu pai.
- Eu já pedi informou Druso. Ficou encantado.
- Oh! Então, parece-me que não há problema disse Cepião Júnior.
- Quinto Servílio, Quinto Servílio, quero saber a tua opinião! exclamou o outro exasperado.
- Bem, como a minha irmã gosta de ti, parece-me que está tudo bem... E eu gosto da tua irmã, mas... e não disse mais nada.
- Mas o quê? perguntou Druso.
- Não me parece que ela goste de mim. Foi a vez de Druso pestanejar.
- Que disparate! Como podia ela não gostar de ti? És o meu melhor amigo! É claro que gosta de ti! É a combinação ideal; ficaremos todos juntos.
- Nesse caso, agradar-me-ia muito disse Cepião Júnior.
- Óptimo! exclamou Druso animadamente. Tratei de todas as questões na carta que escrevi ao teu pai... Dotes e tudo o mais. Não há motivo para preocupações.
- Óptimo disse Cepião Júnior.
Estavam sentados num banco sob um magnífico carvalho no lago Cúrcio, no baixo Fórum Romano, pois tinham acabado de comer um delicioso almoço que consistira em pães ázimos recheados com uma mistura de lentilhas e carne de porco picada.
Levantando-se, Druso entregou o seu grande guardanapo ao seu servo particular e manteve-se de pé enquanto este verificava se a sua toga alva não ficara conspurcada pela comida.
- Onde vais com tanta pressa? - indagou Cepião Júnior.
- Vou para casa contar a notícia à minha irmã - disse Druso, e levantou uma sobrancelha negra e fina. - Não te parece que devias ir contar a notícia à tua?
- Penso que sim - disse Cepião Júnior de um modo dúbio. - Não preferias transmiti-la tu mesmo? Ela gosta de ti.
- Não, tu é que deves informá-la, tonto! Neste momento actuas in loco parentis, por isso, cabe-te essa tarefa... Tal como me compete a mim informar Lívia Drusa - e Druso subiu o Fórum em direcção às escadas de Vesta.
A irmã estava em casa - onde havia de estar? Desde que Druso era o chefe da família e a mãe deles, Cornélia, fora proibida de entrar, que Lívia Drusa não saía por um momento que fosse sem autorização do irmão. Nem ela se atreveria a escapar-se, pois estava potencialmente marcada pela vergonha da mãe aos olhos do seu irmão, que a considerava uma criatura fraca e passível de corrupção que não poderia ter o mínimo de liberdade; acreditaria nas piores coisas acerca dela, mesmo sem provas.
- Pede à minha irmã que venha ter ao meu gabinete - disse Druso ao mordomo, mal chegou a casa.
A casa era considerada a mais bela de Roma e fora acabada quando Druso, o Censor, morreu. A vista da varanda da loggia na parte da frente do piso superior era magnífica, pois a casa ficava no ponto mais alto da escarpa do Palatino, acima do Fórum Romano. Ao lado, ficava a área Flacciana, o lote vazio onde outrora estivera a casa de Marco Fúlvio Flaco, e do outro lado, ficava a casa de Quinto Lutácio Catulo César.
Era uma casa construída no verdadeiro estilo romano; mesmo do lado do bloco vazio não tinha janelas, visto que quando construíssem aí outra casa as suas paredes exteriores ficariam ligadas às de Druso. Uma parede alta com uma porta forte de madeira e uma porta de serviço davam para o Clivus Victoriae, nas traseiras; a parte da frente da habitação abrangia toda a vista, tinha três pisos e fora construída sobre pilares firmes assentes no declive da rocha. O piso superior, ao nível do Clivus Victoriae, alojava a nobre família; as despensas, cozinhas e alojamentos dos servos ficavam no piso de baixo e não ocupavam todo o bloco devido à sua inclinação abrupta.
As portas de ser-viço davam directamente para o jardim do peristilo, tão grande que nele haviam seis maravilhosas árvores de lótus desenvolvidas, trazidas de África em rebentos noventa anos antes por Cipião Africano, então o dono do local. Todos os Verões, davam uma cascata de flores - duas verdes, duas laranja e duas amarelo-escuras - que duravam mais de um mês e enchiam a casa com o seu perfume; mais tarde, adquiriam uma camada fina de folhas compostas parecidas com as do feto; e no Inverno ficavam despidas, permitindo que o sol alongasse a sua permanência no pátio. Havia um tanque comprido e estreito revestido de mármore branco, com quatro fontes de bronze harmoniosas feitas por Mirão e Lisipo, uma em cada canto, e outras estátuas em grande escala alinhadas de cada lado do tanque: sátiros e ninfas, Artemisa e Actéon, Dioniso, e Orfeu. Todas estas estátuas de bronze haviam sido pintadas com uma verosimilhança surpreendente, e à primeira vista o pátio sugeria uma reunião de imortais.
O jardim do peristilo era ladeado por uma colunata dórica, apoiada por colunas de madeira pintadas de amarelo, com bases e capitéis de cores vivas, ao longo da parede que dava para a rua. O chão da colunata era de tijoleira polida, a parede posterior estava pintada em tons verdes, azuis e amarelos, e entre os espaços das pilastras vermelho-acastanhadas estavam penduradas algumas das maiores pinturas do mundo - uma com crianças com uvas, de Zêuxis, uma ”Loucura. de Ájax”, de Parrásio, alguns nus masculinos de Timantes, um dos retratos de Alexandre, o Grande, de Apeles e um cavalo pintado por Apeles, tão semelhante ao natural que, visto do outro extremo da colunata, parecia mesmo preso à parede.
O gabinete dava para a parte de trás da colunata, de um dos lados das portas de bronze; a sala de jantar dava para o outro lado. E mais à frente havia um magnífico átrium do tamanho da casa de César, iluminado por uma abertura rectangular no tecto suportada por colunas nos quatro cantos e nas extremidades do tanque abaixo dela. As paredes estavam pintadas em trompe Poeil, imitando pilastras, rodapés, entablamentos, e no meio havia painéis de cubos brancos e pretos quase reais e painéis com turbilhões de flores; as cores eram vivas, na sua maioria vermelhos com azuis, verdes e amarelos.
Os armários ancestrais com as máscaras de cera dos antepassados de Lívio Druso estavam todos em perfeito estado de conservação; pedestais pintados denominados hermes por serem enfeitados com órgãos genitais masculinos erectos serviam de suporte aos bustos dos antepassados ou reis ou mulheres míticas ou filósofos gregos, todos requintadamente pintados de forma a parecerem reais. Estátuas em grande escala, pintadas a imitar o real, ladeavam o tanque de impluvium e as paredes, uns sobre bases de mármore e outros no chão. Havia enormes candelabros de prata suspensos do tecto de estuque ornamentado a grande altura (pintado de forma a simular o céu estrelado por entre filas de flores de estuque), ou com sete ou oito pés de altura, pousados no chão de mosaico colorido descrevendo as orgias de Baco e as suas Bacantes dançando e bebendo, alimentando veados, ensinando leões a beber vinho.
Druso não reparava na magnificência, pois estava habituado a ela e era-lhe insensível; haviam sido o pai e o avô a escolher estas belas obras de arte. Lívia Drusa estava sempre solitária. A casa era tão grande que ela nem podia alegar a necessidade de exercício para ir passear pelas ruas, e quando lhe apetecia ir às compras o irmão muito simplesmente mandava lá a casa lojas e vendas inteiras e pedia aos comerciantes que estendessem os seus produtos nos aposentos ao longo da colunata, e dava ordens ao mordomo que pagasse tudo o que Lívia escolhesse. Enquanto ambas as Júlias haviam percorrido as zonas mais respeitáveis de Roma sob a vigilância da mãe ou dos servos e Aurélia fazia visitas constantes a parentes e colegas de escola e as Clitumnas e Nicópoles de Roma viviam em tamanha liberdade que até jantavam reclinadas em leitos, Lívia Drusa estava perfeitamente enclausurada, prisioneira de uma riqueza e exclusividade tais que proibíam às mulheres o direito de sair; ela fora também a vítima da fuga da mãe, da liberdade actual da mãe para fazer o que lhe apetecesse.
Lívia Drusa tinha dez anos de idade quando a mãe - uma Cornélia dos Cipiões - deixara a casa onde vivia a família de Lívio Druso; ela deixara-os entregues à indiferença do pai - que preferia passear pelas suas colunatas olhando para as obras de arte - e a algumas servas e tutores que temiam demasiado o poder de Lívio Druso para serem amigos dela. Raramente via o irmão mais velho, que tinha então quinze anos. E três anos após a partida da mãe com o irmão mais novo, Mamerco EmíliO Lépido Liviano - o seu nome actual - tinham-se mudado da casa antiga para este mausoléu enorme; e ela sentira-se perdida, como um átomo minúsculo vagueando em vão numa eternidade de espaço vazio, privada de amor, conversa, companhia, atenção. Quando o pai morreu quase imediatamente após a mudança, a sua morte não trouxe a menor diferença.
Estava tão pouco habituada ao riso que quando às vezes se ouviam risadas vindas das celas dos servos, se interrogava sobre o que seria e por que motivo o fariam. O único mundo que ela amara encontrava-se entre os cilindros de livros, pois ninguém a impedia de ler e escrever. E dedicava-se diariamente por muito tempo a ambas as actividades, estremecia com as façanhas da cólera de Aquiles e com os feitos de Gregos e Troianos, animava-se com as lendas dos heróis, monstros e com as raparigas mortais por quem eles pareciam suspirar mais do que por qualquer imortal. E quando conseguira lidar com o terrível choque das manifestações físicas da puberdade - pois não havia ninguém que lhe explicasse o que se passava e o que havia a fazer - a sua natureza sedenta e apaixonada descobriu a riqueza da poesia escrita acerca do amor. Igualmente fluente em grego e em latim, descobriu Álcman - que, segundo se dizia, fora o inventor do poema de amor - e passou para as canções das donzelas de Píndaro, Safo e Asclepíades. O velho Sósio do Argileto, que de tempos a tempos juntava um monte de livros e os enviava para casa de Druso, não fazia ideia de quem os lia; limitava-se a supor que o leitor era Druso. E pouco depois de Lívia Drusa fazer dezassete anos, ele começou a enviar-lhe os poemas do novo poeta Meléagro, de grande vivacidade e atraidíssimo pela luxúria, bem como pelo amor. Mais fascinada do que chocada, Lívia Drusa conheceu a literatura erótica, e graças a Meléagro, finalmente despertou a sua sexualidade.
Mas isso não lhe servia de muito: não ia a lado nenhum, não via ninguém. Naquela casa, teria sido impensável fazer propostas a um escravo, ou um escravo fazer propostas a Lívia Drusa. Por vezes, encontrava os amigos do irmão Druso, mas apenas de passagem. Excepto o seu melhor amigo, Cepião Júnior. E Cepião Júnior - de pernas curtas, rosto borbulhento, desajeitado - fazia-lhe lembrar os bobos das peças de Menandro, ou o repelente Tersita que Aquiles fez andar à roda com uma pancada depois de Tersita ter acusado o grande herói de ter feito amor com o cadáver de Pentesileia, rainha das Amazonas.
Não por Cepião Júnior alguma vez ter feito qualquer coisa que lhe recordasse os bobos ou Tersita; mas na sua imaginação carente dotara esses homens com o rosto de Cepião Júnior. O seu herói antigo preferido era o rei Odisseu (como pensava nele em grego, adoptava a versão grega do nome), pois gostava do seu modo brilhante de resolver todos os dilemas dos outros, e o modo como ele cortejara a mulher e o duelo com os pretendentes dela, que durara vinte anos, enquanto Penélope esperava em casa a sua vinda, pareciam-lhe a mais romântica e satisfatória das histórias de amor. E a Odisseu dera o rosto do jovem que vira apenas uma vez ou duas na loggia da casa abaixo da de Druso. Essa casa pertencia a Cneu Domício Aenobarbo, que tinha dois filhos; mas nenhum deles era o rapaz da loggia, pois a esses vira-os de passagem, de visita ao irmão.
Odisseu tinha cabelo ruivo e era canhoto (embora se tivesse lido com mais atenção e descoberto que ele tinha as pernas demasiado curtas para o tronco, talvez acabasse Por perder o entusiasmo, pois as pernas curtas eram a coisa que Lívia Drusa mais detestava); e era assim o estranho jovem que ela vira na loggia de Domício Aenobarbo. Era muito alto, tinha ombros largos e a sua toga tombava de um modo que sugeria que o resto do corpo devia ser bastante esbelto. Ao sol, o seu cabelo ruivo faiscava, e a cabeça, sobre o pescoço comprido, era muito altiva: era a cabeça de um rei como Odisseu. Mesmo à distância a que o vira, o nariz aquilino do jovem era evidente, mas ela não conseguia distinguir mais nada no seu rosto - mesmo assim, sabia intuitivamente que os seus olhos deviam ser grandes, luminosos e cinzentos como os do rei Odisseu de ítaca.
Por isso, quando lia os ardentes poemas de amor de Meléagro, assumia o papel da rapariga ou rapaz que era acometido pelo poeta, e o poeta era sempre o jovem na varanda de Aenobarbo. Se alguma vez pensava em Cepião Júnior, fazia-o sempre com uma careta de repulsa.
- Lívia Drusa, Marco Lívio Druso quer que te dirijas imediatamente ao seu gabinete - disse o mordomo, interrompendo o seu sonho, que era permanecer na loggia o tempo suficiente para ver o estranho de cabelo ruivo aparecer trinta pés mais abaixo.
Mas obviamente o chamamento apoderou-se do seu desejo; virou-se e acompanhou o mordomo.
Druso estava a analisar um papel que tinha à sua frente, mas mal a sua irmã entrou no gabinete levantou os olhos, tendo no rosto uma vaga expressão de interesse, calmo e indulgente.
- Senta-te - disse-lhe, indicando a cadeira reservada aos clientes. Ela sentou-se e olhou para o irmão com a mesma calma e falta de humor; nunca vira Druso rir e raramente o vira sorrir. Ele poderia dizer o mesmo acerca dela.
Um pouco alarmada, Lívia Drusa percebeu que ele a estudava com mais atenção do que de costume. O seu interesse era por procuração, se a analisava era por conta de Cepião Júnior, facto que a rapariga não Podia saber.
Sim, era bonita, pensou ele, e embora a sua estatura fosse baixa, ao menos escapara ao defeito familiar - não pernas curtas. A sua figura era agradável, de peito cheio e cintura fina, de ancas esbeltas; os seus pés e mãos eram delicados e esguios - um sinal de beleza - e não roía as unhas mas mantinha-as bem tratadas. Tinha o queixo pontiagudo, testa larga, um nariz razoavelmente longo e ligeiramente aquilino. A boca e os olhos preenchiam todos os critérios da verdadeira beleza, pois os olhos eram muito grandes e abertos e os lábios pequenos como um botão de rosa. Vestia-se com elegância e tinha os cabelos negros, tal como os olhos, sobrancelhas e pestanas.
Sim, de facto, Lívia Drusa era bela. Embora não se comparasse com Aurélia. O coração do rapaz contraíu-se de dor; acontecia sempre que pensava em Aurélia. Com que rapidez escrevera a Quinto Servílio mal soubera do casamento iminente de Aurélia! Tanto melhor; não tinha nada a criticar aos Aurélios, mas não se comparavam aos patrícios Servílios quer em riqueza quer em posição social. Além do mais, sempre gostara da jovem Servília de Cepião, e não hesitava em desposá-la.
- Minha querida, arranjei-te um marido - informou sem preâmbulos, e mostrando-se muito satisfeito consigo mesmo.
Obviamente, a irmã ficou chocada, embora o seu rosto se mantivesse impassível. Humedeceu os lábios e depois conseguiu perguntar:
- Quem, Marco Lívio Ele ficou entusiasmado.
- O melhor dos sujeitos, um amigo maravilhoso! Quinto ServíliO Júnior.
O rosto da rapariga gelou-se-lhe numa expressão de absoluto terror; abriu os lábios secos para falar mas não conseguiu.
- Qual é o problema? - perguntou o irmão, verdadeiramente cOnfuso.
- Não posso casar com ele - murmurou Lívia Drusa.
- Porquê?
- É repugnante... repelente!
- Não sejas ridícula!
Ela começou a abanar a cabeça, e continuou a abaná-la cada vez com mais veemência.
- Não casarei com ele!
Um pensamento horrível passou pela mente de Druso, sem deixar de pensar na mãe; levantou-se, deu a volta à mesa e parou ao pé da irmã.
- Tens-te encontrado com alguém?
O movimento da cabeça parou e Drusa levantou-a e fitou-o, ultrajada.
- Eu? Como podia encontrar-me com alguém, enterrada nesta casa todos os dias da minha vida? Os únicos homens que vejo são os que vêm visitar-te, e nem tenho oportunidade de conversar com eles! Quando os convidas para jantar, não me convidas a mim... E a única altura em que posso aparecer ao jantar é quando convidas esse imbecil horroroso do Quinto Servílio Júnior!
-Que atrevimento! - exclamou o irmão, cada vez mais zangado; nunca lhe ocorrera que ela tivesse uma opinião diferente da sua acerca do seu melhor amigo.
- Não casarei com ele! - gritou a rapariga. - Antes morrer!
- Vai para o teu quarto - disse o irmão, com dureza.
Drusa levantou-se logo e dirigiu-se para a porta que dava para a colunata.
- Eu não disse para a salinha, Lívia Drusa. Para o quarto. E ficas lá até voltares a ser razoável.
A única resposta dela foi um olhar fulminante, mas virou-se e saiu pela porta para o átrium.
Druso permaneceu perto da cadeira vazia e tentou dominar a fúria. Era absurdo! Como se atrevia ela a desafiá-lo?
Ao fim de algum tempo, as suas emoções acalmaram; conseguira agarrar o touro pelos cornos, embora não soubesse o que fazer com ele. Em toda a sua vida, ninguém o desafiara; ninguém o colocara numa posição donde não pudesse ver qualquer saída lógica. Habituado a que lhe obedecessem e o tratassem com um grau de respeito e deferência geralmente não concedido a uma pessoa tão nova, não fazia ideia do que fazer. Se conhecesse melhor a irmã... E agora tinha de admitir que não, a conhecia absolutamente nada... E o pai estivesse vivo - e se a mãe... Oh, que sarilho! O que havia de fazer?
Amaciá-la um pouco, foi a resposta; chamou logo o mordomo.
- A senhora Lívia Drusa ofendeu-me - afirmou, com uma calma admirável e sem qualquer expressão de ira -, e mandei-a para o quarto. Até arranjares um ferrolho, manterás alguém de guarda à porta dia e noite. Põe à sua disposição uma mulher que ela não conheça para atender às suas necessidades. Não tem autorização para deixar o quarto, Seja por que razão for, entendeste?
- Perfeitamente, Marco Lívio - respondeu o mordomo inexpressivamente.
E assim se iniciou o duelo. Lívia Drusa foi posta numa prisão mais pequena do que aquela a que se habituara, não tão escura ou abafada como a maioria dos pequenos quartos de dormir, pois ficava ao lado da loggia e tinha uma grade na parede. Mas não deixava de ser uma prisão sombria. Quando pediu livros e papel para escrever, descobriu como era triste a sua reclusão, visto que o pedido foi recusado. Entre quatro paredes de oito por oito pés, com um vaso de noite e refeições insípidas num tabuleiro trazido por uma mulher que nunca tinha visto antes, era agora a sorte de Lívia Drusa.
Entretanto, Druso estava confrontado com a tarefa de esconder do seu melhor amigo a relutância da irmã, e não perdeu tempo. Mal deu as suas ordens em relação a Lívia Drusa, voltou a vestir a toga e foi visitar Cepião Júnior,
- Oh, óptimo! - exclamou Cepião Júnior a sorrir.
- Pareceu-me melhor falar um pouco mais contigo - disse Druso, não mostrando qualquer interesse em sentar-se e sem fazer ideia do que iria dizer a seguir.
- Bem, antes disso, Marco Lívio, importas-te de ir falar com a minha irmã? Ela está muito inquieta.
Isso, ao menos, era um bom sinal; ela devia ter recebido a notícia dos seus esponsais, se não com alegria, pelo menos com serenidade, pensou o decepcionado Druso.
Foi encontrá-la na sua salinha e não teve qualquer dúvida de que o seu pedido era desejado, porque a rapariga se pôs de pé logo que ele apareceu à porta, pendurando-se-lhe ao pescoço de um modo muito desconfortável.
- Oh, Marco Lívio! - exclamou, lançando-lhe um olhar de adoração comovida.
Por que seria que Aurélia nunca o tinha olhado assim? Mas afastou esse pensamento firmemente e sorriu para a palpitante Servília de Cepião. Não era nenhuma beldade e tinha as pernas curtas da família, mas felizmente escapara à tendência familiar para ter acne - tal como a sua irmã - e tinha uns olhos particularmente belos, com uma expressão suave e terna, bastante grandes de um tom escuro e transparente. Embora não estivesse apaixonado, pensava que com o tempo viria a amá-la, e sempre gostara dela.
Por isso, beijou-lhe os lábios macios, ficou surpreendido e contente com a resposta e permaneceu o tempo suficiente para conversar um pouco.
- E a tua irmã, Lívia Drusa, está satisfeita? - perguntou Servília de Cepião quando ele se levantou para partir.
Druso ficou em silêncio.
- Muito satisfeita - respondeu, acrescentando depois palavras que lhe surgiram sem ele saber donde. - Infelizmente, agora não se encontra muito bem.
- Oh, que pena! Não faz mal, diz-lhe que assim que lhe apeteça receber visitas, irei vê-la. Vamos ser duplamente cunhadas, mas preferia que fôssemos amigas.
Isso fez com que ele sorrisse.
- Obrigado - disse-lhe.
Cepião Júnior esperava impacientemente no gabinete do pai, que ocupava na ausência dele.
- Estou encantado - disse Druso, sentando-se. - A tua irmã está satisfeita com o casamento.
-já te tinha dito que ela gostava de ti - afirmou Cepião Júnior. Mas como recebeu Lívia Drusa as notícias?
Agora, estava bem preparado.
- Ficou encantada - mentiu maliciosamente - Infelizmente, encontrei-a de cama com febre. O médico estava lá, um pouco preocupado. Parece que há complicações e ele receia que seja contagioso.
- Deuses! - exclamou Cepião Júnior, empalidecendo.
- Aguardemos - disse Druso suavemente. - Gostas muito dela, Quinto Servílio, não é verdade?
- O meu pai diz que não encontro melhor que Lívia Drusa. Diz que tenho muito bom gosto. Contaste-lhe que eu gostava dela?
- Contei - Druso sorriu ligeiramente. - Há vários anos que isso se nota.
- Recebi hoje a carta do meu pai; estava cá quando cheguei a casa. Diz que Lívia Drusa é tão rica como nobre. E também gosta dela - afirmou Cepião Júnior.
- Quando se sentir melhor, jantaremos juntos e falaremos sobre o casamento. No início de Maio? Antes da data agoirenta - Druso levantou-se.
- Não posso demorar-me, Quinto Servílio, tenho de ir ver como está a minha irmã.
Tanto Cepião Júnior como Druso haviam sido eleitos tribunos dos soldados e Iam para a distante Gália com Cneu Málio Máximo. Mas a posição social, a riqueza e a conformidade política tinham importância; enquanto o relativamente obscuro Sexto César nem conseguia obter Uma licença das suas tarefas de recrutamento para assistir ao casamento do irmão, Druso e Cepião ainda não tinham sido chamados. Era certo que Druso não via qualquer obstáculo em planear um duplo casamento para o início de Maio, embora nessa altura os noivos estivessem de serviço; mesmo que o exército se encontrasse já a caminho da Gália, podiam sempre ir depois ao encontro das tropas.
Druso deu ordens a toda a criadagem para o caso de Cepião Júnior ou a sua irmã virem saber da saúde de Lívia Drusa, e ordenou que a sua dieta passasse a ser pão ázimo e água, Durante cinco dias, deixou-a completamente sozinha, e depois mandou-a ir ao seu gabinete.
Ela apareceu a piscar os olhos por causa da luz, cambaleando um pouco e com o cabelo mal penteado. Pelos olhos, notava-se que não estivera a dormir, mas o irmão não detectou marcas de choro prolongado. As mãos tremiam-lhe, tinha dificuldade em controlar os lábios e o lábio inferior estava mordido.
- Senta-te - disse Druso secamente, Ela sentou-se.
- Qual é a tua posição acerca do casamento com Quinto Servílio? Todo o corpo dela começou a tremer; as poucas cores que tinha desapareceram por completo.
- Não quero - respondeu.
O irmão inclinou-se para a frente, com as duas mãos de dedos entrelaçados.
- Lívia Drusa, eu sou o chefe da casa. Tenho domínio absoluto sobre a tua vida. Até tenho domínio absoluto sobre a tua morte. Acontece que gosto muito de ti. Isso significa que me desagrada magoar-te e me causa aflição ver-te sofrer. Neste momento estás a sofrer. Estou desolado. mas somos ambos romanos. Esse facto é da maior importância; é mais importante para mim do que para ti, ou do que para quem quer que seja! Lamento muito que não gostes do meu amigo Quinto Servílio. No entanto, vais casar com ele! Como mulher romana que és, é teu dever obedecer-me como sabes. Quinto Servílio é o marido que o teu pai te destinou, tal
como destinou Servília de Cepião para minha mulher. Por momentos, considerei a hipótese de escolher uma mulher, mas os acontecimentos apenas provaram aquilo que o meu pai, que repouse em paz!, era mais sensato do que eu. Além disso, temos o problema de uma mãe que provou que não era uma mulher romana ideal. Graças a ela, a responsabilidade que pesa sobre ti é muito maior. Nada do que faças ou digas pode dar às pessoas razões para pensarem que os defeitos dela também existem em ti.
Lívia Drusa inspirou fundo com dificuldade e repetiu, desta vez com a voz a tremer ainda mais.
- Não quero!
- Isto não tem nada a ver com querer - disse Druso com firmeza. Quem pensas que és, Lívia Drusa, para pôres a tua vontade pessoal acima da honra e posição social da tua família? Habitua-te à ideia de que casarás com Quinto Servílio e ninguém mais. Se persistires neste desafio, não casarás com ninguém. Nunca mais deixarás o teu quarto, enquanto viveres. Ficarás lá, sem companhia nem diversões, todos os dias, para sempre - os olhos dele fixaram-na com menos emoção do que duas pedras negras. - Estou a falar a sério, irmã. Nada de livros nem papel nem comida além de pão e água, nada de banhos, espelhos, servas, roupa limpa, braseiro durante a noite, lençóis, sapatos ou chinelos, nada de cintos ou grinaldas ou fitas, tesoura para cortar as unhas ou o cabelo, nada de facas com que te possas apunhalar... E se tentares morrer à fome, ordenarei que te empurrem a comida pela boca abaixo.
Druso estalou os dedos e o mordomo apareceu com um ar suspeito que sugeria que tinha estado a escutar à porta.
- Leva a minha irmã de volta para o quarto. E traz-ma amanhã de madrugada, antes de mandares entrar os clientes.
O mordomo teve de ajudá-la a pôr-se de pé e conduzi-la até ao quarto.
- Espero a tua resposta amanhã - afirmou Druso.
O mordomo não lhe dirigiu palavra ao conduzi-la através do átrium; firmemente mas com delicadeza, introduziu-a no quarto, afastou-se, fechou a porta e trancou o ferrolho que Druso mandara colocar do lado de fora.
Escurecia; Lívia Drusa sabia que não lhe restavam mais de duas horas antes de cair o manto negro e vazio a envolvê-la durante a longa noite de Inverno. Até agora, não tinha chorado. A consciência de que tinha razão e uma indignação inflamada haviam-na mantido durante os três primeiros dias e noites, e depois disso consolara-se pensando nas dificuldades por que haviam passado todas as heroínas que descobrira através da leitura. A espera de vinte anos de Penélope vinha no topo da lista claro, mas Dária fora fechada no seu quarto pelo pai, e Ariadne abandonada por Teseu na praia de Naxos... Em todos os casos, as coisas haviam mudado para melhor. Odisseu voltara para casa, Perseu nascera e Ariadne fora salva por um deus...
Mas com as palavras do irmão ainda a ecoar-lhe na mente, Lívia Drusa começou a compreender a diferença entre a grande literatura e a vida real. A literatura nunca fora escrita com a intenção de ser um fac-símile ou um eco da vida real; fora escrita para afastar a vida real por alguns momentos, libertar a mente atormentada das considerações mundanas para que ela pudesse tirar umas férias no meio da linguagem gloriosa e de imagens visuais e ideias inspiradoras ou encantadoras. Ao menos Penélope gozara da liberdade dos átrios do seu próprio palácio e da companhia do filho; e Dáriae pudera deslumbrar-se com a chuva de ouro; e a rejeição de Teseu para Ariadne não foi mais que uma pequena contrariedade até a desposar alguém muito maior que Teseu. Mas na vida real, Penélope teria sido violada e obrigada a casar e ter-lhe-iam morto o filho, e Odisseu nunca teria voltado para casa; e Dáriae e o seu filho teriam flutuado dentro da cesta até que o mar os afogasse; e Ariadne teria ficado grávida de Teseu e morrido num parto solitário...
Viria Zeus aparecer numa chuva de ouro para alegrar a longa prisão de Lívia Drusa na Roma moderna? Ou viria Dionísio penetrar na sua pequena alcova fria conduzindo um carro puxado por leopardos? Ou iria Odisseu retesar aquele enorme arco, matando o seu irmão e CepiãoJúnior com a mesma seta que atirara por entre os machados? Não! Claro que não! Todos eles tinham vivido há mais de mil anos - se é que alguma vez tinham possuído existência, salvo nas linhas indeléveis de um poeta. Seria isso a imortalidade, viver através das linhas de um poeta e não em carne e osso?
De certo modo, ela convencera-se que o seu herói ruivo da varanda de Aenobarbo, uns cinquenta pés abaixo, tomaria conhecimento da sua situação e entraria através da grade de ferro do quarto e levá-la-ia como que por encanto para uma ilha encantada no mar cor-de-vinho. E durante aquelas horas terríveis, sonhara com ele, tão alto e parecido com Odisseu, brilhante, de uma coragem fantástica. A casa de Marco Lívio Druso não passaria de um obstáculo insignificante se o herói soubesse que ela estava ali cativa!
Ah, mas esta noite era diferente. Esta noite começava realmente uma prisão que não teria um final feliz, nenhum salvamento miraculoso. Quem sabia que ela estava cativa excepto o irmão e os servos? E qual dos servos se atreveria a escarnecer das ordens do seu senhor, ou a sobrepor a piedade ao temor que sentiam por ele? Druso não era um homem cruel; ela sabia-o bem. Mas estava habituado a que lhe obedecessem, e a irmã mais nova pertencia-lhe, tal como os escravos ou os cães que tinha no seu pavilhão de caça na úmbria. A sua palavra ditava a vida dela. Os seus desejos para ela tinham de ser ordens. O que ela queria não tinha a menor importância, e por isso não podia ter existência fora da sua mente.
Sentiu comichão debaixo do olho esquerdo, e depois um rasto quente e que provocava comichão, descendo-lhe pela bochecha esquerda. Sentiu um salpico nas costas da mão. Tinha um prurido no olho direito, sentia uma ardência na bochecha direita; os salpicos tornaram-se mais frequentes, semelhantes ao início das chuvas de Verão, com as gotas a cair cada vez com mais intensidade. Lívia Drusa estava a chorar, porque tinha o coração destroçado. Inclinou-se para trás e para a frente; limpou o rosto, a torrente dos olhos e o nariz; e chorou de novo, pois o seu coração estava verdadeiramente magoado. Chorou durante muitas horas, sozinha num oceano de trevas da Estige, prisioneira da vontade do irmão e da sua própria relutância em cumprir a vontade dele.
Mas quando o mordomo veio desaferrolhar-lhe a porta, fazendo o brilho ofuscante da lamparina penetrar na frieza bafienta do quarto, ela estava sentada na borda da cama, de olhos já completamente secos e tranquila. E levantou-se e saiu do quarto à frente do homem, atravessando o vasto átrium em direcção ao gabinete do irmão.
- Então? - perguntou Druso.
- Desposarei Quinto Servílio - respondeu ela.
- óptimo. Mas exijo algo mais de ti, Lívia Drusa.
- Esforçar-me-ei por agradar-te em tudo, Marco Lívio - afirmou prontamente Drusa.
- óptimo - o irmão estalou os dedos, o mordomo apareceu imediatamente. - Manda levar vinho quente com mel e bolos de mel para a salinha da senhora Lívia, e diz à sua serva que lhe prepare um banho.
- Obrigada - disse Drusa, inexpressivamente.
- Tenho todo o gosto em fazer-te feliz, Lívia Drusa: desde que te comportes como uma verdadeira Romana e faças o que se espera de ti. Espero que te comportes com Quinto Servílio como qualquer mulher cujo casamento tivesse sido desejado. Dir-lhe-ás que estás satisfeita e tratá-lo-ás com deferência, respeito, interesse e preocupação inabaláveis, Nunca... Nem na privacidade do vosso quarto após o casamento... Nunca darás a Quinto Servílio a mais ténue indicação de que não é o marido do teu agrado. Compreendeste? - perguntou-lhe com firmeza.
- Compreendi, Marco Lívio.
- Acompanha-me.
E conduziu-a através do átrium, onde o enorme rectângulo do tecto começava a empalidecer, e por onde entrava uma luz cor de pérola, mais pura que a das lamparinas, mais fraca mas mais luminosa. Na parede havia um pequeno sacrário dedicado aos deuses da casa, os Lares e os Penares, ladeados pelas miniaturas de templos requintadamente pintadas que abrigavam as imagens dos homens famosos da família de Lívio Druso, desde o pai, o Censor, até ao primeiro antepassado. E aí, Marco Lívio Druso obrigou-a a fazer uma jura terrível aos terríveis deuses romanos que não possuíam estátuas nem mitologia nem humanidade, que eram personificações de qualidades da mente e não homens e mulheres divinos; sob pena de lhes desagradar, Drusa jurou ser uma esposa terna e carinhosa para Quinto Servílio Cepião Júnior.
Depois de concluído o juramento, o irmão mandou-a para o quarto, onde a esperavam o vinho quente com mel e os bolos de mel. Drusa bebeu algum vinho e sentiu logo o seu efeito, mas ficou com um nó na garganta ao pensar em engolir os bolos, e por isso, pô-los de lado sorrindo para a serva, e levantou-se.
- Quero tomar banho - disse.
E nessa tarde, Quinto Servílio Cepião Júnior e a irmã, Servília de Cepião, foram jantar com Marco Lívio Druso e a irmã, Lívia Drusa, um quarteto simpático com casamentos a planear. Lívia Drusa cumpriu o juramento, agradecendo a todos os deuses por a sua família não ser sorridente; ninguém achou estranho que estivesse absolutamente séria, pois era assim que todos estavam. Conversou com Cepião Júnior em voz baixa e mostrando interesse, enquanto o irmão se concentrava em Servília de Cepião e pouco a pouco foram desaparecendo os temores de CepiãoJúnior. Por que chegara a pensar que Lívia Drusa não gostava dele? Podia estar abatida pela doença mas não havia dúvidas quanto ao brando entusiasmo com que acolhera os autoritários planos do irmão em relação a um casamento duplo no início de Maio, antes de Cneu Málio Máximo começar a sua marcha através dos Alpes.O PRIMEIRO HOMEM DE ROMA
Antes da data agoirenta. Mas todas as datas são agoirentas para mim, pensou Lívia Drusa. Contudo, não o disse.
Escreveu Públio Rutílio Rufo a Caio Mário, em junho, antes que as notícias da captura de Jugurta e do fim da guerra em África tivessem chegado a Roma:
Tivemos um Inverno difícil e uma Primavera de pinico. Os Germanos puseram-se a caminho para o Sul, em direcção à nossa província ao longo do rio Ródano. Vínhamos recebendo cartas urgentes dos Éduos, nossos aliados gauleses, desde antes dofinal do anopassado, comunicando-nos que os Germanos, seus hóspedes indesejáveis, iam avançar. E em Abril chegou a primeira delegação dos Éduos, dizendo que os Germanos haviam limpo os celeiros dos Éduos e dos Ambarros e estavam a carregar as carroças. Contudo, tinham dito que o seu destino seria a Espanha, e os membros do Senado que acharam mais sensato não ligar à ameaça dos Germanos apressaram-se a espalhar a notícia.
Felizmente, Escauro não Pertence a esse grupo, nem Cneu Domício Aenobarbo. Por isso, pouco depois de Cneu Málio e eu termos iniciado o nosso consulado, formou-se uma facção forte exigindo que fosse recrutado um novo exército para qualquer emergência, e Cneu Málio recebeu ordens para reunir seis novas legiões.
Rutílio Rufo endureceu a sua posição como se tivesse de evitar uma tirada habitual de Mário e sorriu pesarosamente.
Sim, bem sei! Domina o teu mau gênio, Caio Mário, e deixa-me expor o meu caso antes de começares aos pulos sobre a minha pobre cabeça - e refiro-me ao pedaço de ossos e carne que trago assente no pescoço! Por direito, devia ser eu a recrutar e comandar este novo exército; tenho consciência disso. Sou eu o cônsul sénior, tenho uma carreira militar longa e muito bem sucedida e gozo neste momento de alguma fama, agora que o meu manual de prática militar foi finalmente publicado. Ao passo que o meu colega, Cneu Málio, é quase inexperiente,
Tudo por tua culpa! Todos sabem da minha ligação a ti, e suponho que os teus inimigos na Assembleia preferiam que Roma perecesse sob uma inundação de Germanos a gratificar-te a ti e aos teus. Por conseguinte, Metelo Numídico Suíno levantou-se efez um magnífico discurso dizendo que eu era demasiado velho para comandar um exército e que os meus talentos inegáveis seriam mais úteis se eu permanecesse em Roma. Todos seguiram como carneiros aquele chefe que os condenou à chacina e aprovaram todos os decretos necessários. Por que motivo não os combati?,
oiço-te perguntar. Oh, Caio Mário, eu não sou como tu! Não nutro por eles o mesmo ódio destrutivo que tu lhes tens. nem tenho a tua energia fenomenal. Por isso, contentei-me com insistir que Cneu Málio recebesse alguns legados séniores experientes. E ao menos isso fez-se. Ele tem o.apoio de Marco Aurélio Escauro
- sim, eu disse Aurélio e não Emílio. A única coisa que tem de comum com o nosso estimado Chefe da Assembleia é um cognomen. Apesar disso, desconfio que as suas capacidades militares são consideravelmente superiores às dofamoso Escauro. Para bem de Roma e de Cneu Málio, assim o espero!
E, no fim de tudo, Cneu Málio saiu-se bastante bem. Optou por recrutar homens dos capite censi, epodia apontar o nosso exército africano como exemplo da sua eficácia. Nos fins de Abril, quando chegou a notícia de que os Germanos se dirigiriam para Sul, a caminho da nossa província romana, Cneu Málio tinha seis legiões alistadas, inteiramente constituídas por homens dos capite censi, quer romanos, quer latinos. Mas então, chegou a delegação de Éduos, e pela primeira vez a Assembleia possuía estimativas definidas sobre o número de Germanos envolvidos na migração. Descobrimos, por exemplo, que os Germanos que mataram Lúcio Cássio na Aquitânia - pensávamos que eram cerca de um quarto de milhão - eram apenas um terço desse número, se tanto. De acordo com os Éduos, são uns oitocentos mil guerreiros germanos, mulheres e crianças, que se dirigem neste momento para a costa gaulesa do mar Central. É de espantar, não achas?
A Assembleia deu a Cneu Málio toda a autoridade para recrutar mais quatro legiões, passando o seu exército a totalizar as dez legiões e cinco mil soldados de cavalaria. E nesta altura, a notícia dos Germanos corria por toda a Itália, por mais que a Assembleia tentasse sossegar toda a gente. Estamos muito, mas muito preocupados, especialmente porque até agora não ganhámos nenhum combate contra os Germanos. Desde o tempo de Carbio que temos tido uma história de derrotas. E há pessoas, em particular entre a gente comum, que dizem agora que a nossa máxima famosa de que seis boas legiões romanas podem vencer um quarto de milhão de bárbaros indisciplinados não passa de merda. Digo-te, Caio Mário, toda a Itália está com medo! E desta vez não posso culpá-la.
Imagino que devido ao pânico geral, vários dos nossos Aliados Italianos inverteram a sua política das últimas guerras e contribuíram com tropas voluntárias para o exército de Cneu Málio. Os Samnitas mandaram uma legião de infantaria ligeira e os Marsos mandaram uma estupenda legião de infantaria ao estilo romano. Há ainda uma legião auxiliar composta da úmbria, Etrúria e Piceno. Por isso, como deves imaginar, os outros Pais Conscritos estão como um gato que acabou de comer um peixe - muito satisfeitos e enfatuados. Mas das quatro legiões extra, há três que estão a ser pagas e mantidas pelos Aliados Italianos.
Tudo isto é positivo. Mas existe um lado oposto, é evidente. Temos uma terrível falta de centuriões, pelo que nenhumas das tropas recém-alistadas dos capite censi receberam treino, e a única legião de homens de capite censi das últimas quatro legiões não tem quase nenhuma experiência. O legado de Cneu Málio, Aurélio, sugeriu-lhe que repartisse igualmente os centuriões experientes pelas suas sete legiões de capite censi, e isso significa que apenas uns quarenta por cento dos centuriões de qualquer das legiões já estiveram em combate. Os tribunos militares são bons, mas não preciso de dizer-te que são os centuriões que mantêm as centúrias e coortes unidas.
Com toda a franqueza, temo pelos resultados. Cneu Málio não é mau tipo, mas não o considero capaz defazer a guerra contra os Germanos. O próprio Cneu Málio reforçou esta opinião nos fins de Maio, quando se levantou na Assembleia e disse que não podia garantir que todos os homens do seu exército soubessem o que deveriam fazer no campo de batalha! Há sempre homens que não sabem o que fazer no campo de batalha, mas ninguém se levanta na Assembleia para o dizer!
E o quefez a Assembleia? Ordenou que Quinto Cepião, em Narbona, atravessasse o Ródano com o seu exército e se juntasse ao de Cneu Málio. Desta vez a Assembleia não se demorou - a mensagem foi levada por um correio a cavalo e nem levou duas semanas a chegar de Roma a Narbona. Nem Quinto Servílio tardou a responder! Recebemos ontem a resposta. E que resposta!
Como era de esperar, as ordens senatoriais mandavam Quinto Cepião subordinar-se com as suas tropas ao Imperium do cônsul do ano. Tudo perfeitamente normal e explícito. O cônsul do ano passado talvez tenha imPerium proconsular, mas em qualquer empresa conjunta, o cônsul desse ano assume o comando sénior.
Oh, Caio Mário, isto não caiu nada bem a Quinto Cepião! A Assembleia até pensaria que ele - um Servílio patrício descendente directo de Caio Servilio Ahala, o salvador de Roma - aceitaria ser subordinado de um Homem Novo arrogante sem uma única imagem nos armários ancestrais, um homem que apenas alcançara o consulado por não se ter candidatado ninguém de melhores ürigens? Havia cônsules e cônsules, disse Quinto Cepião. Sim, juro-te que o disse mesmo! No ano dele, os candidatos eram respeitáveis, mas este ano, o melhor que Roma conseguiu arranjar foi um nobre arruinado (eu) e um novo-rico presunçoso com mais dinheiro do que gosto (Cneu Málio). Por isso, dizia Quinto Cepião no final da sua carta que marcharia de imediato para o Ródano - mas quando lá chegou esperava encontrar um correio senatorial à sua espera, informando-o de que seria o comandante supremo nesta empresa mista. Com Cneu Málio como seu subordinado, disse Quinto Cepião, estava certo de que tudo correria na perfeição.
Começava a ter cãibras na mão; Rutílio Rufo pousou a caneta de junco com um suspiro e massajou os dedos, olhando o vazio. Pouco depois, as pálpebras começaram a descer, a cabeça pendeu-lhe e dormitou; quando acordou com um estremeção, ao menos tinha a mão em melhor estado pelo que concluiu a carta.
Oh, que carta tão longa! Mas ninguém mais te fará um relato honesto dos acontecimentos e tens de saber como se passaram as coisas. A carta de Quinto Cepião vinha dirigida a Escauro Princeps Senatus e não a mim, e obviamente conheces o nosso amado Marco Emílio Escauro! Leu a carta terrível na Assembleia dando mostras de um prazer vampiresco. Foi um disparate. E provocou uma grande zaragata. Havia rostos afogueados, punhos levantados e surgiu uma rixa entre Cneu Málio e Metelo Suíno, que detive chamando os lictores que estavam no vestíbulo da Cúria - gesto que Escauro não apreciou. Oh, que dia para Marte! Foi pena que não pudéssemos embalar todo aquele ar quente e despachar os Germanos com a arma mais venenosa que Roma possui.
A conclusão de tudo isto foi que estará efectivamente um correio à espera de Quinto Cepião nas margens do Ródano - mas as novas ordens serão exactamente iguais às anteriores. Terá de subordinar-se ao cônsul eleito do ano, Cneu Málio Máximo, Que pena aquele tolo ter atribuído a si mesmo um cognomen como Máximo, não achas? É um pouco como se tivesses atribuído a ti mesmo uma Coroa de Ervas após os teus homens te terem salvo, ao contrário do que devia ser. Não se trata apenas da estupidez de alguém dar a si mesmo uma palmadinha nas costas, mas se não se é um Fábio, o cognomen Máximo é duma Presunção enorme, É claro que ele insiste que a avó era uma Fábia Máxima, e que o avô usava esse nome, mas tudo o que sei é que o pai nunca o usou. E duvido muito da história de Fábia Máxima.
De qualquer modo, sinto-me como um cavalo de guerra que foi posto a Pastar, ansioso por estar no lugar de Cneu Málio e em vez disso vejo-me ocupado con, decisões importantíssimas, tais como pensar se poderemos cobrir de pez os celeiros do Estado, depois depagarmos o equipamento de sete novas legiões de capite censi. Acreditas que a Assembleia só discutiu esse assunto durante oito dias. com Roma inteira preocupada com os Germanos ? É de endoidecer um homem!
Apesar de tudo, tenho uma ideia e vou desenvolvê-la. Quer seJamos vencedores ou derrotados na Gália, vou levá-la para afrente. Como não há um só homem em Roma que chegue aos calcanhares de um centurião, vou recrutar instrutOres treinados e outros das escolas de gladiadores. Cápua está cheia de escolas de gladiadores - e são dos melhores - e por isso, o que é que poderia convir-nos mais?
considerando que Cápua é também o acampamento de base de todas as novas tropas? Se Lúcio Tidlipus não puder contratar gladiadores em número suficiente para um bom espectáculo no funeral do pai, tanto pior para ele! As necessidades de Roma são maiores do que as de Lúcio Tidlipus! Por este plano, também poderás perceber que continuo a recrutar entre os homens dos capite censi.
Manter-te-ei informado, claro está. Como correm as coisas no país dos lotófagos, sereias e ilhas encantadas? Ainda não conseguistepôr as grilhetas nos pés dejugurta? Aposto que não deve faltar muito. O Metelo Numídico Suíno ultimamente tem andado um tanto nervoso. Não consegue decidir se há-de concentrar o seu ódio em ti ou em Cneu Málio. É evidente que fez um discurso magnífico apoiando a promoção de Quinto Servílio, a comandante-chefe. Isso proporcionou-me o enorme prazer de destruir a sua argumentação com meia dúzia de dardos bem lançados.
Deuses, Caio Mário, como me fazem ficar esgotado! Fartam-se de gabar os feitos dos seus malditos antepassados, quando aquilo de que Roma precisa neste momento é de um gênio militar bem vivo! Apressa-te a regressar, sim? Nós precisamos de ti, pois eu sozinho não chego para o Senado inteiro.
Havia um post-scriptum:
A propósito, tem havido alguns incidentes peculiares na Campânia. Não me agradam mas também não consigo entender por que motivo aconteceram. Nosprincípios de Maio, houve uma revolta de escravos em Nucéria - foi facilmente reprimida e resultou apenas na execução de trinta criaturas vindas de todas as partes do mundo. Mas há três dias, rebentou outra revolta, desta vez num grande acampamento fora de Cápua para escravos à espera de compradores que necessitassem de cem trabalhadores das docas ou nas pedreiras e carreiras. Desta vez, havia quase 250 escravos envolvidos. Foi logo reprimida, porque havia várias coortes de recrutas acampados perto de Cápua, Cerca de cinquenta insurrectos pereceram na luta e os outros foram logo executados. Mas isto não me agrada, Caio Mário. É um augúrio, Os deuses estão contra nós neste momento; pressinto-o.
E um segundo post-scriptum:
Chegou neste momento uma triste notícia para ti. Como já combinei com Marco Grânio de Putéolos o envio da minha carta na sua encomenda rápidapara útica, no fim da semana, ofereci-me Para te contar o que aconteceu. O teu muito querido sogro, Caiojúlio, César, morreu esta tarde. Como sabes, sofria há tempos
de uma excrescência na garganta. E esta tarde, tombou sobre a sua espada. Escolheu a melhor alternativa, como estou certo que concordarás. Homem nenhum deveria ser um fardo para os outros, especialmente quando isso diminui a sua dignidade e integridade como homem. Há algum de nós que prefira a vida à morte quando a vida significa jazer sobre os próprios excrementos ou ver esses excrementos serem limpos por um escravo? Não, quando um homem não consegue comandar os inteçtinos ou a garganta, é tempo de morrer. Parece-me que Caiojúlio teria escolhido morrer antes, mas preocupava-se com o filho mais novo, que, como deves saber, casou recentemente. Fui ver Caiojúlio há dois dias, e ele conseguiu murmurar através da coisa que o sufoca que as suas dúvidas acerca do casamento do jovem Caio Júlio estavam agora acalmadas, pois a bela Aurélia - a querida do meu coração, admito-o - era a mulher certa para o seu rapaz. Por isso, ave arque vale, Caiojúlio César.
No fim de Junho, o cônsul Cneu Málio Máximo partiu para a longa marcha rumo ao Norte e ao Oeste, com os seus dois filhos e os vinte e quatro tribunos eleitos dos soldados desse ano distribuídos por sete das suas dez legiões. Sexto Júlio César, Marco Lívio Druso e Quinto Servílio Cepião Júnior marcharam com ele, bem como Quinto Sertório, como tribuno militar júnior. Das três legiões de Aliados Italianos, a dos Marsos era a melhor treinada e experiente das dez; era comandada pelo filho de um nobre dos Marsos, de vinte e quatro anos de idade chamado Quinto Popédio Silo - sob a chefia de um legado romano, evidentemente.
Como Málio Máximo insistia em carregar bastantes cereais comprados ao Estado para alimentar todo o exército durante dois meses, a sua coluna de carga era enorme e o avanço processava-se com lentidão; ao fim dos primeiros dezasseis dias, nem havia chegado ao Adriático, a Fano. Falando com muita dificuldade e ardor, o legado Aurélio conseguiu então convencê-lo a deixar a coluna de carga ao cuidado de uma das legiões e avançar com as outras nove, levando apenas um carregamento leve. Foi muito difícil convencer Málio Máximo de que as suas tropas não iam morrer à fome antes de chegarem ao Ródano e que, mais tarde ou mais cedo, a pesada bagagem chegaria em segurança.
Ao fim de uma caminhada muito mais curta ao nível do solo, Quinto Servílio Cepião alcançou o enorme rio Ródano antes de Málio Máximo. Só levou consigo sete das suas oito legiões - a oitava seguiu de barco para a Espanha Citerior - e não levou cavalaria, pois dera-lhes licença no ano anterior, por a ter considerado uma despesa desnecessária. Apesar das ordens que recebera e da insistência dos legados, Cepião recusou-se a sair de Narbona até chegar uma comunicação vinda de Esmirna. E estava sempre mal disposto; quando não estava a queixar-se do atraso do contacto entre Esmirna e Narbona, queixava-se da falta de sensibilidade do Senado ao pensar que ele cederia o supremo comando do Grande Exército a um novo-rico como Málio Máximo. Mas afinal de contas, foi obrigado a avançar sem a carta, deixando indicações explícitas em Narbona para que esta lhe fosse enviada assim que chegasse.
Mesmo assim, Cepião ainda chegou ao destino comum com grande vantagem sobre Málio Máximo. Em Nemauso, uma pequena cidade de comércio nos arrabaldes a ocidente da vasta zona pantanosa que rodeava o delta do Ródano, o correio do Senado alcançou-o e transmitiu-lhe as novas ordens do Senado.
Nunca ocorrera a Cepião que a sua carta não conseguisse demover os Pais Conscritos, especialmente tendo sido lida à Assembleia por Escauro. Por isso, ao abrir o cilindro e ler por alto a breve resposta do Senado, sentiu-se ultrajado. Impossível! Intolerável! Ele, um patrício Servílio, cedendo aos caprichos de Málio Máximo, um Homem Novo? Nunca!
Roma foi informada pelos seus espiões de que os Germanos iam agora a caminho do sul, atravessando as terras dos Alóbroges, uma tribo celta que odiava Roma e se encontrava agora em situação difícil; Roma era inimigo que eles conheciam e os Germanos o inimigo que desconheciam. E esta confraternidade druídica dizia há dois anos a todas as tribos da Gália que os Germanos aí não tinham lugar. Certamente os Alóbroges não iriam ceder o seu território para abrigar um povo muito mais numeroso do que eles. E estavam bastante perto dos Éduos e dos Ambarros para ter conhecimento da carnificina feita pelos Germanos nas terras dessas tribos intimidadas. Por isso, os Alóbroges retiraram-se para os montes dos seus amados Alpes e limitaram-se a saquear os Germanos o mais que puderam.
Os Germanos atravessaram a província romana da Gália Transalpina a norte do posto comercial de Viena em finais de junho, e não tiveram qualquer oposição. A multidão de três quartos de milhão desceu a margem oriental do enorme rio, pois as suas planícies eram mais vastas e seguras, e menos expostas às ferozes tribos das terras altas da Gália Central e da Cebenna.
Ao ser informado disto, Cepião abandonou a Via Domícia em Nemauso, e em vez de atravessar os pântanos do delta pelo longo caminho construído por Aenobarbo, marchou com o seu exército para norte da margem ocidental, deixando assim o rio entre ele e os Germanos. Estava-se em meados do mês de Sextilis.
Mandou de Nemauso um correio rápido para Roma com outra carta para Escauro, na qual declarava que não receberia ordens de Málio Máximo, e isso era terminante. Depois de tomar esta posição, a única rota que podia seguir mantendo a sua honra seria para o lado oeste do rio.
Na margem oriental do Ródano, cerca de quarenta milhas a norte do ponto em que a Via Domícia se cruzava com o rio num longo caminho que terminava em Arelas, havia uma cidade comercial de certa importância; chamava-se Arausio. E na margem ocidental, a dez milhas de Arausio, Cepião mandou montar um acampamento para os quarenta mil soldados e mil e quinhentos não-combatentes. E ficou à espera que Málio Máximo aparecesse na outra margem - e que o Senado respondesse à sua última carta.
Málio Máximo chegou antes da resposta do Senado, no fim de Sextilis. Mandou os seus cinquenta e cinco mil soldados de infantaria e os trinta mil não-combatentes montar um forte acampamento à beira do rio, a cinco milhas de Arausio, usando o rio na sua defesa e no abastecimento de água.
O terreno a norte do acampamento era ideal para uma batalha, pensou Málio Máximo, considerando o rio como a sua maior protecção. Foi este o seu primeiro erro, O segundo foi separar os seus cinco mil soldados de cavalaria do acampamento, mandando-os servir de guarda avançada trinta milhas a norte. E o terceiro foi escolher o seu melhor legado, Aurélio, para os comandar, privando-se assim do seu conselho. Todos estes erros faziam parte da estratégia de Málio Máximo; tencionava usar Aurélio e a cavalaria como um travão ao avanço dos Germanos - não dando combate mas concedendo aos Germanos uma primeira visão da resistência romana. Porque Málio Máximo queria negociar e não lutar, na esperança de que os Germanos voltassem pacificamente para o centro da Gália, bem longe do avanço para sul da província romana. Todas as anteriores batalhas entre os Germanos e Roma tinham sido impostas Por Roma, e só depois de os Germanos se terem mostrado dispostos a retirar pacificamente do território romano. Por isso, Málio Máximo Pôs bastantes esperanças - não sem fundamento - na sua esplêndida estratégia.
Contudo, a sua primeira tarefa era levar Cepião da margem oriental do rio para a ocidental. Ainda magoado com a carta insultuosa e insensível de Cepião que Escauro lera na Assembleia, Málio Máximo deu uma ordem concisa e não dissimulada a Cepião: ”Atravessa imediatamente o rio com o teu exército e instala-te no meu acampamento.” A mensagem foi transmitida por uma equipa de remadores que seguiram de barco, assegurando a rapidez da entrega.
Cepião usou o mesmo barco para enviar a resposta a Málio Máximo. Com igual concisão, informava-o de que ele, um Servílio patrício, não aceitaria ordens de um negociante arrogante e pretensioso, e permaneceria onde estava, na margem ocidental.
A directiva seguinte de Málio Máximo dizia:
Como teu comandante supremo, torno a ordenar-te que atravesses já o rio com o teu exército, Peço-te que consideres esta minha segunda ordem como a última. Caso persistas em desafiar-me, instaurarei processos legais contra ti em Roma, Serás acusado de alta traição e as tuas atitudes pomposas condenar-te-ão.
A resposta de Cepião era igualmente litigiosa:
Não te aceito como comandante supremo. Podes instaurar umprocesso de traição contra mim. Eu também te instaurarei um processo de traição. Como ambos sabemos quem ganhará, exijo que me passes já o comando supremo.
Málio Máximo respondeu com ainda mais sobranceria. E as coisas continuaram assim até meados de Setembro, altura em que chegaram de Roma seis membros do Senado, completamente exaustos pela rapidez e desconforto da viagem. Rutílio Rufo, o cônsul em Roma, havia tentado com êxito enviar a sua comitiva, mas Escauro e Metelo Numídico conseguiram desprestigiá-la, recusando-se a permitir que esta incluísse qualquer membro de estatuto senatorial ou com peso político. O membro mais importante da comitiva era um simples pretor de origens nobres, o cunhado de Rutílio Rufo, Marco Aurélio Cota. Poucas horas após a comitiva ter chegado ao acampamento de Málio Máximo, Cota compreendeu a gravidade da situação.
E meteu mãos à obra com grande energia e um ardor que lhe eram estranhos, concentrando os seus esforços em Cepião. Este manteve-se obstinado. Uma visita ao acampamento trinta milhas a norte fê-lo voltar à carga com determinação redobrada, porque o legado Aurélio o levara às escondidas até um monte alto, donde pôde ver o avanço dos Germanos.
Cota olhou e empalideceu.
- Devias estar no acampamento de Cneu Málio - disse.
- Se quiséssemos um combate, sim - afirmou Aurélio, inabalável na sua calma, pois havia dias que observava o avanço dos Germanos e já se habituara ao espectáculo. - Cneu Málio pensa que podemos repetir êxitos anteriores, que têm sido sempre diplomáticos. As vezes em que os Germanos lutaram foi porque nós os levámos a isso. Não tenho qualquer intenção de começar o ataque... E isso significará, estou certo, que eles também não o começarão. Tenho comigo uma equipa de intérpretes competentes e passei dias a doutriná-los em relação ao que devem dizer quando os Germanos enviarem os seus chefes para conferenciar, e tenho a certeza de que o farão assim que compreenderem que os espera um exército romano de enormes dimensões.
- Mas eles já o sabem! - exclamou Cota.
- Duvido - comentou Aurélio, imperturbável. - Eles não se deslocam à maneira militar. Se é que conhecem a existência de batedores, até agora não se deram ao trabalho de usá-los. Limitam-se a avançar! Aceitando o que vier da minha parte e de Cneu Málio.
Cota virou o cavalo na direcção oposta.
- Tenho de ir ter com Cneu Málio quanto antes, primo. Dê por onde der, tenho de convencer o imbecil emproado do Cepião a atravessar o rio, senão de nada serve termos o seu exército por perto.
- Estou de acordo - disse Aurélio. - Contudo, Marco Aurélio dos Cotas, se for exequível, gostaria que viesses ter comigo aqui logo que eu mande avisar que chegou uma delegação germana. Com os teus cinco colegas! Os Germanos ficarão impressionados por o Senado ter enviado seis representantes de Roma para negociar com eles - Aurélio sorriu de esguelha. - É evidente que não vamos dizer-lhes que o Senado tinha enviado esses seis representantes para conferenciar com os nossos generais imbecis!
O imbecil emproado do Quinto Servílio Cepião estava - inexplicavelmente - com muito melhor disposição e mais disposto a ouvir cota no dia seguinte, quando atravessou o Ródano de barco.
- A que se deve essa boa disposição tão repentina, Quinto ServíliO?
- perguntou Cota, confuso,
- Acabei de receber uma carta de Esmirna - disse Cepião, - Uma carta que devia ter recebido há vários meses. - Mas em vez de explicar O que podia conter qualquer carta de Esmirna para ele ficar assim tão contente, Cepião concentrou-se nas negociações: Está bem, disse ele, vou atravessar amanhã o rio, e apontou para o mapa com uma vara de marfim coroada por uma águia de ouro que indicava o alto grau do seu imperium; ainda não tinha consentido ver Málio Máximo em pessoa. E indicou: Atravessá-lo-ei neste ponto.
- Não seria mais prudente atravessar a sul de Arausio? - perguntou Cota hesitante.
- De modo nenhum! - afirmou Cepião. - Se atravessar a norte, ficarei mais perto dos Germanos.
Fiel à sua palavra, Cepião levantou o acampamento na madrugada do dia seguinte e marchou para norte até um vau vinte milhas acima da fortaleza de Málio Máximo, e apenas dez milhas a sul do lugar onde Aurélio estava acampado com a sua cavalaria.
Cota e os seus companheiros do Senado também cavalgaram para norte, com a intenção de estarem no acampamento de Aurélio quando os chefes dos Germanos chegassem para conferenciar. Pelo caminho encontraram Cepião na margem oriental, com a maioria do seu exército do outro lado do rio. Mas o que viram voltou a trazer o desânimo aos seus corações, pois era óbvio que Cepião se preparava para montar um acampamento bem defendido no preciso lugar em que se encontrava.
- Oh, Quinto Servílio, não podes permanecer aqui! - exclamou Cota logo que deixaram os cavalos num cume acima do novo acampamento, onde figuras apressadas cavavam valas e formavam muralhas com a terra empilhada.
- Porquê? - perguntou Cepião, levantando as sobrancelhas.
- Porque vinte milhas a sul daqui há um acampamento já montado, e suficientemente grande para instalar as tuas legiões além das dez que já lá se encontram! É lá o teu lugar, Quinto Servílio, e não aqui, demasiado longe de Aurélio, que está a norte, e de Cneu Málio, a sul, para seres útil a algum deles... ou até para ti mesmo! Por favor, Quinto Servílio, peço-te! Monta aqui um acampamento de marcha hoje e vai ter com Cneu. Málio amanhã de manhã - implorou Cota com a maior veemência.
- Eu disse que atravessaria o rio - informou Cepião -, mas não dei qualquer indicação quanto ao que faria depois de atravessá-lo! Tenho sete legiões, todas excelentemente treinadas e de soldados experientes. E não só; eles são homens possuidores de bens, verdadeiros soldados romanos! Pensas que eu consentiria partilhar um acampamento com a ralé de Roma e de italianos... homens sem terra e trabalhadores, homens que não sabem ler nem escrever? Marco Cota, antes morrer!
- Pode ser que morras - disse Cota secamente.
- Nem eu, nem o meu exército - afirmou Cepião, intransigente, Estou vinte milhas a norte de Cneu Málio e da sua ralé repugnante. Por isso serei o primeiro a encontrar-me com os Germanos. E vencê-los-ei, Marco Cota! Um milhão de bárbaros não podem vencer sete legiões de verdadeiros soldados romanos! Deixar esse... esse negociante do Málio ficar com o mínimo de crédito? Não! Quinto Servílio Cepião festejará o seu segundo triunfo pelas ruas de Roma em vitória singular! Málio terá de ficar a assistir.
Inclinando-se na sela, Cota estendeu a mão e agarrou o braço de Cepião.
- Quinto Servílio - disse, mais seriamente do que alguma vez falara em toda a sua vida -, imploro-te, junta-te a Cneu Málio! O que é mais importante para ti, a vitória de Roma ou a vitória da nobreza romana O que interessa saber quem ganha, se for Roma a ganhar? Não se trata de uma pequena guerra de fronteira contra meia dúzia de Escordiscos, nem de uma campanha insignificante contra os Lusitanos! Vamos necessitar do exército melhor e maior que alguma vez tivemos, e a tua contribuição para esse exército é vital! Os homens de Cneu Málio não tiveram o tempo de serviço nem o treino dos teus homens. A tua presença no meio deles irá equilibrá-los, dar-lhes um exemplo a seguir, Porque devo dizer-te com toda a firmeza que vai haver uma batalha! Pressinto-o. Qualquer que tenha sido o comportamento dos Germanos no passado, desta vez vai ser diferente. Eles provaram o nosso sangue e gostaram, sentiram a nossa coragem e acharam-na fraca. É Roma que está em perigo, Quinto Servílio, e não apenas a nobreza de Roma! Mas se insistires em ficar isolado do outro exército, digo-te sem rodeios que o futuro da nobreza romana também estará em perigo. Tens nas mãos o futuro de Roma e da tua classe. Procede acertadamente para o bem de ambos, por favor! Vai amanhã para o acampamento de Málio e alia-te a ele.
Cepião deu uma palmada no cavalo e afastou-se, libertando-se do aperto de Cota.
- Não! - exclamou. - Fico aqui.
Então, Cota e os seus cinco companheiros cavalgaram para o norte, enquanto Cepião construía à beira do rio uma cópia idêntica mas mais pequena do acampamento de Málio.
Os membros do Senado chegaram mesmo a tempo, pois o grupo germano de negociações entrou no acampamento de Aurélio mal terminava a madrugada do dia seguinte. Eram cinquenta, com idades compreendidas entre os quarenta e os sessenta, pensou Cota apavorado, pois nunca tinha visto homens tão grandes - nenhum deles parecia ter menos de seis pés de altura e a maioria tinha mesmo mais umas seis polegadas. Montavam enormes cavalos hirsutos e despenteados aos olhos dos romanos, com grandes jubas e crinas caídas sobre os olhos suaves; não tinham de suportar o estorvo das selas mas tinham freios.
- Estes cavalos parecem elefantes de guerra - comentou Cota.
- Só alguns - retorquiu Aurélio, despreocupado. - A maior parte deles monta vulgares cavalos gauleses; julgo que estes homens têm direito a escolha.
- Olha para aquele jovem! - exclamou Cota, ao ver um sujeito que deveria ter uns trinta anos desmontar e ficar parado com um ar extremamente confiante, olhando à sua volta como se não achasse nada do que via digno de nota,
- Um verdadeiro Aquiles - disse Aurélio, impávido.
- Pensei que os Germanos só traziam uma capa vestida sobre o corpo nu - disse Cota ao ver uns calções de couro.
- Eles andam assim na Germânia, segundo dizem, mas pelo que temos visto destes Germanos, vestem calças como os Gauleses. Vestiam calças mas nenhum deles usava camisa, apesar do tempo frio. Muitos usavam ao peito ornamentos quadrados de ouro que iam de um mamilo ao outro e todos traziam vazias as bainhas de espadas longas nos talabartes. Tinham muitos ornamentos em ouro - nos peitorais, ornamentos dos elmos, bainhas das espadas, cintos, talabartes, fivelas, braceletes e colares - embora nenhum usasse o colar de metal torcido dos Celtas. Cota achava os elmos fascinantes: não tinham rebordo e eram redondos; alguns tinham adornos simétricos acima das orelhas, tais como cornos magníficos ou tubos ocos com punhados de plumas, enquanto outros mais pareciam cabeças de serpentes ou dragões, pássaros terríveis ou leopardos de mandíbulas escancaradas.
Todos usavam a barba rapada e o longo cabelo cor de linho em tranças ou solto e tinham poucos pêlos no peito. A pele não era tão rosada como a dos Celtas, reparou Cota - era mais de um tom dourado. Não tinham sardas nem cabelos ruivos. Os seus olhos eram azuis claros e não se viam tons verdes nem cinzentos, Mesmo os mais velhos conservavam-se em
excelente forma, sem barriga e com ar guerreiro, sem apresentarem marcas de comodismo; embora os Romanos não o soubessem, os Germanos matavam os homens que se desleixavam.
A negociação decorreu sob a mediação dos intérpretes de Aurélio, na sua maioria éduos e ambarros, embora dois ou três fossem germanos capturados na Nórica por Carbão antes da sua derrota. O que eles queriam, explicaram os guerreiros germanos, era obter o direito de passagem que fica através da Gália Transalpina, pois dirigiam-se para a Espanha. Foi Aurélio que conduziu a primeira fase das conversas, vestido em traje de gala militar - de couraça de prata ajustada ao tronco, elmo ático de prata com plumas escarlate e o saiote duplo de tiras duras de couro chamadas pleryges sobre uma tânica carmesim. Como era consular, usava uma capa púrpura atada aos ombros da couraça e um cinturão carmesim atado igualmente preso por uma presilha à volta da couraça mesmo acima da cintura trazia o distintivo de general.
Cota assistia encantado, agora com mais receio do que alguma vez sonhara ter, mesmo no limite do desespero. Sabia que estava a assistir à condenação de Roma. Nos meses que se seguiriam, aqueles guerreiros germanos assombraram o seu sono tão desapiedadamente que ele passava os dias a cambalear, absorto e de olhos congestionados, e mesmo quando a força do hábito reduziu a sua capacidade de manter-se acordado, dava consigo sentado na cama, boquiaberto, porque eles haviam entrado com os seus cavalos gigantescos num pesadelo menos importante. Segundo o parecer dos espiões, deviam ultrapassar os três quartos de milhão, no mínimo trezentos mil guerreiros gigantescos. Tal como a maioria dos homens da sua posição, Cota vira a sua quota-parte de guerreiros bárbaros, Escordiscos e lapudos, Salassos e Carpetanos; mas nunca vira outros como os Germanos. Todos consideravam os Gauleses gigantes mas não passavam de homens vulgares em comparação com os Germanos.
E o pior terror é que condenavam Roma à destruição por Roma nãO os ter levado a sério e não ter resolvido a discórdia entre as Ordens; como podia Roma esperar derrotá-los quando dois generais romanos se recusavam a cooperar e trocavam entre si os epítetos de snobe e novo-rico e amaldiçoavam os soldados um do outro? Se Cepião e MálIo Máximo trabalhassem em equipa, Roma teria perto de cem mil homens e isso seria uma proporção razoável se o moral fosse elevado, o treino fosse completo e a chefia competente.
”Oh”, pensou Cota, de entranhas revolvidas, ”entrevi o destino de Roma! Não poderemos sobreviver a esta horda loura, se nem já conseguimos sobreviver a nós mesmos.”
Por fim, Aurélio cessou o debate e cada um dos lados se afastou para conferenciar.
- Aprendemos uma coisa - disse Aurélio a Cota e aos outros cinco senadores. - Eles não se denominam a si mesmos Germanos. Com efeito, dizem pertencer a três povos diferentes aos quais chamam Cimbros, Teutões e um terceiro grupo poliglota formado por vários povos mais pequenos que se juntaram aos Cimbros e aos Teutões durante as suas deambulações - os Marcomanos, Queruscos e Tigurinos - que, de acordo com o meu intérprete germano, são de origem mais céltica do que germana.
- Deambulações? - perguntou Cota. - Há quanto tempo andam a deambular?
- Nem eles sabem, mas há muitos anos. Talvez há uma geração. O fedelho novo com ar de Aquiles bárbaro era uma criança quando a sua tribo, os Cimbros, deixaram a sua pátria.
- Têm algum rei? - perguntou Cota.
- Não, têm um conselho de chefes, a maioria dos quais se encontram à tua frente. No entanto, aquele fedelho novo com ar de Aquiles bárbaro está a subir muito depressa no conselho e os seus adeptos já começam a chamar-lhe rei. O nome dele é Boiorix e é de longe o mais truculento de todos. Não está interessado em suplicar-nos que os autorizemos a ir para o sul: acredita que a razão está do lado da força e defende que devem acabar com as conversações e avançar para o sul, dê por onde der.
- É demasiado novo para ser rei e constitui um perigo - disse Cota.
- E quem é aquele homem ali? - perguntou, indicando discretamente um homem de cerca de quarenta anos que tinha como adornos um peitoral de ouro e várias libras de ouro.
- É Teutobod, o chefe supremo dos Teutões. Também começa a querer que lhe chamem rei, ao que parece. Tal como Bóiorix, acredita na razão do mais forte e que muito simplesmente deveriam seguir para o sul, quer os Romanos concordem ou não. Isto não me agrada, primo. Ambos os meus intérpretes germanos dos tempos de Carbão me dizem que a disposição deles é muito diferente do que era dantes: ganharam confiança em si mesmos e desprezo por nós - Aurélio mordeu o lábio.
- Vivem no meio dos Éduos e dos Ambarros há tempo suficiente para estarem informadíssimos sobre Roma. E o que ouviram acalmou-lhes os temores. E não é só isso: se excluíres o primeiro combate de Lúcio Cássio... E quem terá problemas em excluí-lo, dadas as consequências?... Até este momento têm vencido todas as lutas contra nós. Agora, Bóiorix e Teutobod dizem-lhes que não têm qualquer razão para nos temerem só por estarmos mais bem armados e treinados. Somos como espantalhos de crianças, só metemos medo a fingir. Bóiorix e Teutobod querem a guerra. Com Roma ultrapassada, podem andar por onde muito bem quiserem e fixar-se onde escolherem.
As negociações recomeçaram, mas desta vez Aurélio fez avançar os seus seis convidados, todos de toga e escoltados por doze lictores com as túnicas carmesim e cinturões de ouro trabalhado para uso em serviço fora de Roma, e transportando fasces com machados. Era óbvio que todos os germanos haviam reparado neles, mas agora que decorriam as apresentações, olhavam espantadíssimos para as túnicas brancas ondulantes: eram tão pouco marciais! Os Romanos eram todos assim? Cota era o único que usava a toga praetexta debruada a púrpura do magistrado curul, e era para ele que dirigiam todas as arengas de sons estranhos e incompreensíveis.
Ele aguentou-se bem sob a pressão: altivo, sereno, falando sem erguer a voz. Os germanos não viam mal nenhum em ficar vermelhos de cólera, soltar perdigotos a pontuar as palavras e bater com um punho na palma da outra mão mas não havia dúvidas de que haviam ficado confusos e pouco à vontade com a tranquilidade inabalável dos romanos.
Desde o início da sua participação nas negociações, a resposta de Cota fora sempre a mesma: não. Não, a migração não podia seguir para o sul; não, o povo germano não tinha o direito de atravessar qualquer território ou província romana; não, a Espanha não era um destino exequível, a menos que eles pretendessem limitar-se à Lusitânia e à Cantábria, pois o resto de Espanha pertencia a Roma. Cota exortava-os constantemente a voltarem para o norte; de preferência para o seu território, onde quer que se encontrasse, ou então, que atravessassem o Reno e se fixassem na Germânia, no meio dos seus.
Foi só ao cair da noite que os cinquenta guerreiros germanos se sentaram nos cavalos e partiram. Os últimos a sair foram Bóiorix e Teutobod, e o mais novo afastou-se fitando os romanos até onde pôde fazê-lo. A sua expressão não era de simpatia ou de admiração. Aurélio tem razão: é um verdadeiro Aquiles, pensou Cota, embora de início a justeza da comparação tivesse sido um mistério. Depois, entendeu que era porque no belo rosto do jovem Germano se encontrava toda a teimosia cruel e vingativa de Aquiles. Aqui estava um homem que deixaria os seus homens morrerem como moscas à menor ofensa à sua honra. E o coração de Cota batia, desesperado; e não se poderia dizer o mesmo de Cepião Júnior?
Duas horas depois do cair da noite, a lua cheia brilhava; libertos do estorvo das togas, Cota e os seus cinco companheiros jantaram em silêncio à mesa de Aurélio e prepararam-se para seguir para o sul.
- Esperem que amanheça - suplicou Aurélio. - Não estamos em Itália, não há estradas romanas de confiança e vocês não conhecem o estado do terreno. Meia dúzia de horas não farão grande diferença.
- Não, penso chegar ao acampamento de Quinto Servílio de madrugada - disse Cota - e tentar mais uma vez convencê-lo a juntar-se a Cneu Málio. Vou dar-lhe a saber o que aconteceu aqui hoje. Mas faça Quinto Servílio o que fizer, irei ter com Cneu Málio amanhã e não tenciono dormir enquanto não o encontrar.
Apertaram as mãos. O vulto de Aurélio permaneceu claramente delineado contra a luz da fogueira e do luar, de braço erguido em sinal de despedida, enquanto Cota e os senadores se afastaram com a sua escolta de lictores e servos.
Não voltarei a vê-lo, pensou Cota; é um homem corajoso, dos melhores em Roma.
Cepião nem chegou a ouvir o que Cota tinha para lhe dizer, quanto mais escutar a voz da razão.
- Ficarei aqui - foi tudo o que disse.
E Cota seguiu sem parar para matar a sede no acampamento meio-terminado de Cepião, decidido a alcançar Cneu Málio o mais tardar ao meio-dia.
De madrugada, enquanto Cota e Cepião se desentendiam, os Germanos atacaram. Era o segundo dia de Outubro e o frio ainda não chegara. Quando as primeiras filas da turba germana avançaram contra o acampamento de Aurélio, nunca mais pararam. Aurélio não tinha compreendido bem o que se estava a passar; pensara que os seus esquadrões de cavalaria teriam tempo de montar - que a muralha do acampamento, extremamente bem fortificada, impediria os Germanos de entrar até as suas tropas saírem pela cancela traseira do acampamento e tentarem atacar o inimigo de flanco. Mas isso não chegaria a acontecer. Os Germanos
foram tão rápidos que em pouco tempo surgiram aos milhares, vindos de todos os lados do acampamento. Os soldados de cavalaria de Aurélio fizeram o melhor que podiam, embora não estivessem habituados a lutar a pé, mas o combate em breve se transformou numa derrota. Em meia hora, quase não havia um romano ou um auxiliar vivo e Marco Aurélio Escauro foi feito prisioneiro antes de ter tempo de cair sobre a sua espada.
Levado à presença de Bóiorix, Teutobod e dos restantes que haviam tomado parte nas negociações, Aurélio teve uma conduta extraordinária: de porte imponente, modos insuportavelmente arrogantes; nenhuma indignidade ou dor que lhe fosse infligida o faria vergar a cabeça ou vacilar. Por isso, puseram-no numa jaula de verga à medida dele e obrigaram-no a assistir, enquanto faziam uma pira de madeira, lhe pegaram fogo e a deixaram arder. Aurélio assistiu, direito, sem medo no rosto nem tremores nas mãos, sem mesmo se agarrar às grades da sua pequena prisão. Como não estava nos planos deles que Aurélio morresse asfixiado com o fumo - ou demasiado rapidamente, devorado pelas chamas - esperaram que a pira ardesse, a seguir colocaram-lhe em cima a jaula de verga e assaram Aurélio vivo. Mas ele ganhou, embora a sua vitória fosse solitária. Porque não se contorceu de dores nem gritou, nem deixou as pernas dobrarem-se. Morreu como um nobre romano, decidido a mostrar-lhes pela sua conduta a verdadeira medida de Roma, o que podia ser um lugar que via nascer homens como ele, um verdadeiro Romano.
Os Germanos demoraram-se mais dois dias junto das ruínas do acampamento da cavalaria romana e depois iniciaram de novo a sua marcha para o sul, igualmente de improviso. Quando chegaram perto do acampamento de Cepião continuaram o seu caminho, milhares e milhares e milhares, até os aterrorizados soldados de Cepião desistirem de contá-los e alguns decidirem mesmo livrar-se das armaduras e nadar até à margen, ocidental do rio, pondo-se a salvo. Mas isso era um último recurso que Cepião tencionava manter apenas para si; queimou todos os barcos da sua pequena frota excepto um, montou forte vigilância na margem do rio e mandou executar qualquer homem que tentasse fugir. À deriva nun vasto mar de Germanos, os cinquenta e cinco mil soldados e não-combatentes do exército de Cepião não podiam fazer mais nada senão esperar para ver se a inundação passava por eles sem atacar.
Pelo sexto dia de Setembro, as primeiras filas dos Germanos havia,” chegado ao acampamento de Málio Máximo, que preferiu não manter o exército encurralado dentro de muros. Por isso, mandou formar as suas dez legiões e fê-las marchar em direcção ao norte, antes que os Germanos, que já se avistavam, pudessem cercar o acampamento. Dispôs as tropas ao longo do terreno plano entre a margem do rio e a primeira elevação do terreno que anunciava as extremidades dos tentáculos dos Alpes, apesar de estes se encontrarem a quase cem milhas para leste. As legiões ficaram voltadas para norte, lado a lado ao longo de quatro milhas, o que constituiu o quarto erro de Málio Máximo; podia ser atacado pelos flancos - porque não tinha a cavalaria a proteger-lhe a ala direita exposta e os seus homens estavam demasiado longe para poderem acudir.
Málio Máximo não havia tido conhecimento do que acontecera no norte a Aurélio ou a Cepião e não tinha ninguém que pudesse fazer penetrar nas hordas de Germanos, pois todos os intérpretes e batedores disponíveis tinham seguido com Aurélio. Por isso, a única coisa que poderia fazer era esperar pela chegada dos Germanos.
A sua posição de comando era no topo da torre mais alta do acampamento fortificado, e foi aí que se colocou, com o seu estado-maior a cavalo e pronto para seguir a galope a transmitir as suas ordens às legiões; desse estado-maior faziam Parte os seus dois filhos e o vigoroso filho de Metelo Numídico Suíno, o Bacorinho. Talvez por Málio Máximo considerar a legião de Marsos de Quinto Popédio Silo como estando melhor treinada e equipada - ou talvez por achar que as suas vidas valiam menos do que as dos romanos, mesmo a escumalha - esta ficou no extremo leste da fila, à direita dos romanos e sem a protecção da cavalaria. A seguir, estava uma legião recrutada no início do ano, comandada por Marco Lívio Druso, cujo adjunto era Quinto Sertório. Seguiam-se os auxiliares samnitas e outra legião romana de recrutas recentes; quanto mais a fila se aproximava do rio, pior treinadas e inexperientes eram as legiões e mais tribunos dos soldados as apoiavam. A legião de CepiãoJúnior, de tropas completamente novatas, estava estacionada ao longo da margem do rio, e encontrava-se logo a seguir Sexto Júlio César, comandando tropas de preparação equivalente.
Parecia haver um plano ténue no ataque quase simultâneo dos Germanos ao acampamento de Cepião e à linha de combate de Málio Máximo duas horas após o amanhecer do sexto dia de Outubro.
Nenhum dos cinquenta e cinco mil homens de Cepião sobreviveu quando os Germanos que os cercavam avançaram para o interior do acampamento e se lançaram sobre eles até a pilha de homens ser tão grande que os feridos ficavam esmagados debaixo dos mortos. Cepião não esperou.
Mal viu que os seus soldados não conseguiam deter o avanço dos Germanos, atirou-se à água, entrou no seu barco e mandou os remadores alcançarem a margem direita do Ródano o mais depressa possível. Alguns dos seus homens tentaram por-se a salvo lançando-se ao rio, mas os Germanos eram tantos que nenhum romano teve tempo de tirar a cota de malha de vinte libras ou desapertar o elmo, e acabaram por morrer todos os que tentaram essa via. Cepião e a tripulação do barco foram os únicos sobreviventes.
Málio Máximo não teve melhor sorte. Os Marsos pereceram até ao último homem no combate aos deuses gigantescos, e o mesmo aconteceu à legião de Druso, que combatia ao lado dos Marsos. Silo tombou, com um ferimento de lado e Druso perdeu os sentidos devido a um golpe de espada germana pouco depois de ter entrado em combate a sua legião; Quinto Sertório tentou reagrupar os seus cavaleiros mas era totalmente impossível deter o ataque dos Germanos. Assim que um era derrubado, apareciam novos germanos a substituí-lo, incessantemente. Sertório também tombou com um ferimento na anca, no local onde os nervos principais da perna eram mais vulneráveis; o facto de a lança ter trespassado os nervos e parado pouco antes da artéria femoral apenas se ficou a dever à sorte.
As legiões que estavam mais perto do rio recuaram e lançaram-se à água - a maior parte deles conseguiu desembaraçar-se do equipamento antes de mergulhar - e escaparam, atravessando o Ródano a nado. Cepião júnior foi o primeiro a ceder à tentação, mas Sexto César foi ferido por um dos seus soldados quando tentava impedir a retirada e desapareceu no meio da confusão com uma anca retalhada.
Apesar dos protestos de Cota, os seis senadores haviam sido levados de barco para o lado ocidental do rio antes de começar a batalha; Málio Máximo insistira que, como observadores civis que eram, deveriam abandonar o campo de batalha e permanecer num local absolutamente seguro.
- Se tombarmos, vocês devem ficar vivos para levar a notícia ao Senado e ao povo de Roma - explicou.
Era habitual os Romanos pouparem a vida de todos os que eram derrotados, pois os guerreiros ilesos eram vendidos aos melhores preços como escravos para trabalhar nas minas, docas, pedreiras e nas obras. Mas nem os Celtas nem os Germanos poupavam as vidas dos homens contra quem combatiam; preferiam tornar escravos os que falavam a sua língua e apenas na quantidade que a sua vida não estruturada exigisse.
E quando, ao fim de uma breve hora inglória de combate, a hoste germana saiu vitoriosa, os seus membros percorreram o campo e mataram todos os romanos que encontraram vivos por entre os milhares de cadáveres. Felizmente, não o fizeram de um modo disciplinado ou concertado; se assim tivesse sido, nem um dos vinte e quatro tribunos dos soldados teria sobrevivido na batalha de Arausio. Druso estava tão inconsciente que parecia morto a qualquer germano que passasse por ele, e o corpo de Quinto Popédio Silo, debaixo de um monte de cadáveres de Marsos, estava tão coberto de sangue que ninguém o descobriu. Incapaz de se mexer por ter a perna completamente paralisada, Quinto Sertório parecia morto. E Sexto César, totalmente exposto, fazia tanto esforço a respirar e estava com o rosto tão azul que nenhum Germano que reparasse nele se daria ao trabalho de acabar com uma vida tão perto do fim.
Os dois filhos de Málio Máximo morreram na missão de transmitir as ordens do pai, mas o filho de Metelo Numídico Suíno, o jovem Bacorinho, era de outra cepa; ao ver que a derrota era inevitável, levou o impávido Málio Máximo e meia dúzia dos seus adjuntos através dos taludes do acampamento até ao rio e pô-los num barco. As atitudes de Metelo Bacorinho não eram inteiramente ditadas pela necessidade de autopreservação, visto que coragem não lhe faltava; simplesmente, preferia usar essa coragem para salvar a vida do seu comandante.
Estava tudo terminado à quinta hora do dia. E então, os Germanos voltaram a seguir para o norte, para o acampamento de Aurélio - agora morto - a trinta milhas daí, onde tinham deixado os seus milhares de carroças. No acampamento de Málio Máximo - e no de Cepião - fizeram uma descoberta maravilhosa: enormes armazéns de trigo e outros alimentos, e veículos, mulas e bois para transportar tudo. O ouro, dinheiro, roupas e mesmo as armas e armaduras não tinham exercido a menor atracção sobre eles. Mas os alimentos de Málio Máximo e de Cepião eram irresistíveis, e por isso pilharam tudo até à última fatia de toucínho e ao último pote de mel. Sem contar com centenas de amphorae de vinho.
Um dos intérpretes germanos, capturado quando o acampamento de Aurélio fora destruído e devolvido ao povo Cimbro, ao fim de permanecer entre os seus, meia dúzia de horas, percebeu logo que vivera entre os Romanos demasiado tempo para que lhe restasse algum amor pela vida que levavam os bárbaros. Por isso, quando ninguém estava a ver, roubou um cavalo e galopou para a cidade de Arausio, ao sul. Passou
bem a leste do rio, pois não tinha vontade nenhuma de ver os resultados da terrível derrota romana, nem de sentir o cheiro dos cadáveres Por enterrar.
No nono dia de Outubro, três dias depois do combate, fez o seu corcel extenuado percorrer o empedrado da rua principal daquela cidade próspera, à procura de alguém a quem pudesse contar as notícias, mas não encontrou vivalma. Toda a população parecia ter desaparecido antes do avanço dos Germanos. Mais à frente, no extremo da rua principal, espreitou a villa da figura mais importante de Arausio - um cidadão romano, claro está - e viu que havia movimento.
A figura mais importante de Arausio era um gaulês local chamado Marco Antônio Memínio, pois recebera de um Marco Antônio a ambicionada cidadania, por serviços prestados no exército de Cneu Domício Aenobarbo dezassete anos atrás. Exaltado pela distinção e ajudado pelo patrocínio da família de António a ganhar concessões comerciais entre a Gália Transalpina e a Itália romana, Marco Antônio Memínio, foi extremamente próspero. Era agora o primeiro magistrado da cidade e tentara convencer toda a gente a ficar em casa, pelo menos o tempo suficiente para ver se o resultado da batalha que estava a ser travada ao norte era contra ou a favor de Roma. Não teve qualquer êxito mas decidiu ficar, limitando-se à precaução de deixar os filhos ao cuidado do pedagogo, enterrar o ouro e esconder o alçapão da adega com uma laje de pedra. A mulher informou-o de que preferia ficar com ele a ir com as crianças, e os dois, acompanhados por alguns servos fiéis, haviam escutado a breve cacofonia de aflição vinda do acampamento de Málio Máximo.
Ao verem que não aparecia ninguém - nem germanos nem Romanos
- Memínio mandou um escravo saber o que se passava, e ainda estava a recompor-se das notícias quando o primeiro dos oficiais séniores romanos a salvar a pele chegou à cidade. Eram Cneu Málio Máximo e os seus adjuntos, comportando-se mais como animais drogados a caminho da matança ritual do que como altos militares romanos; esta impressão de Memínio foi reforçada pelo comportamento do filho de Numídico, que tomava conta deles com uma ferocidade de cão pastor. Memínio e a mulher vieram buscar o grupo, levando-o para a sua villa, deram-lhe de comer e de beber e tentaram obter um relato coerente dos acontecimentos. Mas todas as tentativas falharam: o único que mantinha um discurso coerente, o jovem Metelo Bacorinho, não dizia duas palavras seguidas, e Memínio e a mulher não falavam grego, mas apenas o latim básico.
Outros vieram a arrastar-se nos dois dias que se seguiram, mas eram em número muito reduzido e não havia entre eles soldados rasos, embora um centurião dissesse que havia milhares de sobreviventes na margem oeste do rio, vagueando desorientados. Cepião foi o último a chegar, acompanhado pelo filho, Cepião Júnior, que ele encontrara na margem oeste do rio quando se dirigia para Arausio. Quando Cepião soube que Málio Máximo estava alojado na casa de Memínio, recusou-se a ficar, preferindo seguir para Roma, levando consigo o filho. Memínio deu-lhe dois carros, cada um atrelado a quatro mulas, e forneceu-lhe comida e condutores para a viagem.
Vergado de sofrimento pela morte dos filhos, só no terceiro dia é que Málio Máximo conseguiu perguntar pelos seis senadores; até lá, Memínio nem sabia da existência deles, mas quando Málio Máximo insistiu para que partisse um grupo à sua procura, Memínio levantou objecções, com receio de que os Germanos ainda estivessem na posse do campo de batalha e mais preocupado em preparar-se ele, a mulher e todos os seus convidados, para uma fuga rápida.
Era esta a situação quando o intérprete germano chegou a Arausio e localizou Memínio. Este percebeu logo que o homem vinha cheio de notícias importantes, mas infelizmente ninguém entendia o latim do outro, e Memínio não se lembrou de pedir a Málio Máximo para falar com o homem. Em vez disso, deu-lhe abrigo e mandou-o esperar até chegar alguém que tivesse conhecimento da língua e falasse com ele.
Sob a chefia de Cota, a delegação senatorial aventurou-se a atravessar o rio de barco assim que os Germanos viraram costas e seguiram para Norte, e começou à procura de sobreviventes no meio daquela terrível carnificina. Eram vinte e nove ao todo, incluindo os lictores, e executavam a sua tarefa sem precauções de segurança. Durante todo o tempo, nunca apareceu alguém que os ajudasse.
Druso recuperou os sentidos ao cair da noite, passou a noite meio inconsciente, e com a madrugada recuperou o suficiente para rastejar em busca de água, a única coisa em que pensava; o rio ficava a três milhas de distância e o acampamento quase à mesma distância, pelo que seguiu para leste esperando encontrar um ribeiro no local onde o terreno subia. A poucos pés dali, encontrou Quinto Sertório, que lhe acenou quando o VIU.
- Não consigo mexer-me - disse Sertório, humedecendo os lábios rebentados. - Tenho a perna sem vida. Esperava que viesse alguém. Pensei que fosse um germano.
- Tenho sede - disse Druso com voz rouca. - Vou buscar água e já volto, Havia mortos por todos os lados, acres e acres deles, mas encontravam-se principalmente no caminho que Druso seguiu com passo incerto em busca de água, pois era a linha da frente onde havia começado a batalha, e os Romanos não tinham avançado nem uma polegada, apenas haviam tombado em massa. Tal como ele, Sertório permanecera na linha da frente; se tivesse ficado entre as pilhas de romanos mortos na sua retaguarda, Druso nunca o teria visto.
Druso perdera o pesado elmo ático; um pequeno sopro de vento fez voar uma madeixa até à enorme protuberância acima do olho direito, que estava tão inchada, com a pele e o tecido tão retesados e o osso frontal tão ensanguentado, que o toque dessa única madeixa fez Druso tombar de joelhos com as dores.
Mas a vontade de viver é muito forte. Druso pôs-se de pé, soluçando, e continuou a caminhar para leste, e lembrou-se que não tinha onde transportar a água, e que Sertório não seria o único a necessitar de água. Gemendo de dores ao dobrar-se, Druso tirou os elmos a dois soldados marsos mortos e prosseguiu, pegando nos elmos pelas correias.
E no meio do campo dos Marsos havia um burrinho com um carregamento de água, com os seus olhos de longas pestanas a brilhar perante aquela carnificina mas sem poder mexer-se, pois tinha o cabresto bem enrolado à volta do braço de um homem afundado sob vários cadáveres. O burro tentara soltar-se mas só conseguiu esticar mais a corda, ao ponto de ficar com a pele negra nos vincos. Com o punhal, Druso cortou a corda no sítio onde ela se enrolava no braço e atou-a à cintura, para que se desmaiasse o burro não pudesse fugir. Mas o burro estava muito contente por encontrar um homem vivo, pelo que esperou pacientemente até Druso matar a sede, e depois seguiu-o sem refilar.
Na orla daquela confusão de corpos à volta do burro havia duas pernas a mexer; por entre gemidos que o burro repetia com tristeza, DrusO conseguiu afastar os mortos até descobrir um oficial marso que ainda se encontrava bem vivo. A sua couraça de bronze estava cortada do lado direito, mesmo abaixo e à frente do braço direito do homem, e de um buraco no meio da amolgadela saía um líquido rosado que não parecia ser sangue.
Com a maior delicadeza possível, Druso tirou o oficial do meio dos cadáveres, colocou-o numa extensão de erva e começou a desapertar a couraça dos lados. O oficial tinha os olhos fechados, mas sentiam-se bater com força as pulsações no pescoço e quando Druso retirou a parte da couraça que devia proteger o peito e o abdómen, ele deu um grito.
- Continua com cuidado! - disse uma voz irritada no mais puro latim. Druso parou por um momento e depois acabou de desapertar a protecção de couro.
- Fica parado, idiota! - disse. - Só estou a tentar ajudar. Queres água primeiro?
- Agua - repetiu o oficial dos Marsos.
Druso deu-lhe água de um elmo e teve a recompensa de dois olhos verde-amarelados abertos, uma visão que lhe fazia lembrar cobras; os Marsos eram encantadores de serpentes, adoravam-nas e dançavam com elas e chegavam mesmo ao ponto de beijá-las na boca. Era fácil acreditar nisso, ao ver aqueles olhos.
- Quinto Popédio Silo - disse o oficial dos Marsos. - Um irramumator qualquer de oito pés de altura apanhou-me em flagrante - fechou os olhos; duas lágrimas rolaram pelas bochechas ensanguentadas. - Os meus homens... Estão todos mortos, não estão?
- Receio bem que sim - disse Druso com suavidade. - Tal como os meus - e todos os outros. Eu chamo-me Marco Lívio Druso. Espera aí, vou tirar-te o justilho I.
A ferida estancara, graças à túnica de lã que fora empurrada pela espada do germano contra ela; Druso sentia pedaços de costelas partidas, mas a couraça, o justilho e as costelas haviam impedido a lâmina de penetrar no peito e no estômago.
- Vais sobreviver - afirmou Druso. - Consegues levantar-te com a minha ajuda? Deixei para trás um camarada que precisa de mim. Por isso, ou ficas aqui e vens ter comigo logo que possas ou vens agora pelo teu próprio pé - outra madeixa de cabelos bateu-lhe na têmpora direita, e ele deu um grito de dor.
Quinto Popédio Silo considerou a situação.
- Nunca conseguirás tratar de mim, no estado em que estás - disse.
- Vê se me passas o punhal, que eu corto um pouco da minha túnica para atar a ferida. Não posso voltar a sangrar no meio deste tártaro.
Nota: Justilho: espécie de corpete de couro justo ao corpo. (N. da T.)
Druso deu-lhe o punhal e seguiu caminho com o burro.
- Onde posso encontrar-te? - perguntou Silo.
- Mais além, na próxima legião - respondeu Druso.
Sertório ainda estava consciente. Depois de beber, agradecido, conseguiu sentar-se. Dos três era o que tinha a pior ferida e não podia ser retirado dali antes de Druso ter a ajuda de Silo. Por isso, Druso deitou-se perto de Sertório e repousou, levantando-se apenas uma hora mais tarde, quando Silo apareceu. O sol estava a subir e cada vez estava mais calor.
- Nós os dois teremos de levar Sertório até longe dos mortos para que a perna corra menos riscos de ficar infectada - disse Silo. - Depois, sugiro que lhe façamos um abrigo e procuremos outros sobreviventes.
Tudo isto decorreu com uma lentidão frustrante e sob grande sofrimento, mas por fim Sertório ficou o melhor instalado possível e Druso e Silo partiram em sua busca. Não tinham avançado muito quando Druso ficou enjoado e tombou no chão poeirento por entre convulsões e gritos de agonia. Em pouco melhores condições, Silo caiu perto dele, e o burro, ainda atado ao cinto de Druso, esperou pacientemente.
Então, Silo rolou e observou a cabeça de Druso; deu um grunhido:
- Se conseguires suportar, penso que terias muito menos dores se eu te abrisse esse inchaço com a minha faca e deixasse sair sangue. Estás de acordo?
- Era capaz de desafiar a hidra de sete cabeças, se isso me curasse! disse Druso, ofegante.
Antes de abrir a intumescência com a ponta do punhal, Silo pronunciou qualquer feitiço ou encantamento numa língua antiga que Druso não conseguiu identificar; não era oscano, pois essa entendia ele bem. Um encantamento de serpentes, é o que ele está a murmurar, pensou Druso, sentindo-se estranhamente reconfortado. Druso desmaiou. E enquanto estava inconsciente, Silo espremeu tanto sangue e líquidos malditos quanto pôde, limpando tudo com um pedaço de pano que rasgou da túnica de Druso; quando Druso veio a si, estava a arrancar-lhe outro pedaço.
- Sentes-te melhor? - perguntou Silo.
- Muito melhor - respondeu Druso.
- Se o atar, dói-te mais, por isso usa isto para ires limpando quando não conseguires ver. Mais tarde ou mais cedo, vai parar de correr - SilO levantou os olhos para o sol impiedoso. - Temos de encontrar uma sombra, senão não iremos longe... e o jovem Sertório também não - disse ele, pondo-se de pé.
À medida que se aproximavam do rio, cambaleantes, descobriam mais sinais de homens vivos; gritos débeis de socorro, movimentos, gemidos.
- Isto é uma ofensa aos deuses - disse Silo com ar sombrio. - Nenhuma batalha foi pior planeada do que esta. Foi uma carnificina! Maldito seja Cneu Málio Máximo! Que a grande Serpente luminosa lhe atormente os sonhos!
- Concordo que foi um fiasco, e não fomos melhor comandados do que os homens de Cássio em Burdígala. Mas tem de se atribuir a culpa com justiça, Quinto Popédio. Se Cneu Málio é culpado, não o é menos Quinto Servílio Cepião. - Como lhe custava dizê-lo! Tratava-se do pai da sua mulher.
- Cepião? O que teve ele a ver com isto? - perguntou Silo.
A ferida da cabeça estava muito melhor; Druso descobriu que podia facilmente virar-se e olhar para Silo.
- Não sabes? - perguntou.
- O que sabe um italiano das decisões do comando romano? - Silo cuspiu no chão. - Nós, Italianos, só estamos aqui para lutar; não temos direito a opinião quanto ao modo como lutamos, Marco Lívio.
- Desde que chegámos aqui, vindos de Narbona, Quinto Sertório recusou-se a colaborar com Cneu Málio - disse Druso, a tremer. - Não quis aceitar ordens de um Homem Novo.
Silo olhou para Druso: um par de olhos verdes-amarelados fixo num par de olhos negros.
- Então, Cneu Málio queria Quinto Servílio no seu acampamento?
- É evidente que queria! Tal como os seis senadores vindos de Roma. Mas Quinto Servílio recusou-se a submeter-se a um Homem Novo.
- Estás a dizer que foi Quinto Servílio que impediu os dois exércitos de se juntarem? - Silo parecia não acreditar no que estava a ouvir.
- Sim, foi Quinto Servílio - Druso não conseguiu deixar de dizê-lo.
- É meu sogro; sou casado com a única filha dele. Como posso aguentar isto? O filho dele é o meu melhor amigo, casado com a minha irmã... E combateu aqui hoje, ao lado de Málio Máximo. Deve estar morto - o líquido que Druso limpava da cara era na sua maioria constituído por lágrimas. - Orgulho, Quinto Popédio! Um orgulho estúpido e inútil! Silo parara de caminhar.
- Morreram aqui ontem seis mil soldados dos Marsos e dois mil escravos marsos... e vens dizer-me que foi porque um idiota romano de raça superior teve uma implicação com um idiota romano de raça inferior? Silo silvava e tremia de raiva. - Que a grande Serpente luminosa os apanhe aos dois!
- Alguns dos teus homens podem ainda estar vivos - disse Druso, não para desculpar os seus superiores mas num esforço para reconfortar este homem, de quem gostava muito. E que estava submerso na dor, uma dor que não tinha nada a ver com qualquer ferida física, uma dor que apenas assentava numa mágoa terrível. Ele, Marco Lívio Druso, que só agora começava a conhecer as realidades da vida, chorava de vergonha ao pensar numa Roma conduzida por um homem que podia causar tanta dor apenas por uma querela entre classes.
- Não, estão mortos - disse Silo. - Porque julgas que levei tanto tempo a vir ter com Quinto Sertório e contigo? Andei pelo meio deles. Mortos. Todos mortos!
- E os meus também - disse Druso ainda a chorar. - Nós aguentámos o peso do combate e não se vê nem um soldado de cavalaria. Pouco depois, viram o grupo senatorial à distância e pediram auxílio, Marco Aurélio Cota levou os tribunos dos soldados Para Arausio, percorrendo penosamente as cinco milhas de carroça, porque o passo e o tipo de transporte tornavam a viagem mais fácil; deixou os colegas a tentar pôr alguma ordem naquele caos. Marco Antônio Memínio havia conseguido convencer algumas das tribos celtas locais que viviam em quintas na região de Arausio a prestar auxílio.
- Mas estamos na noite do terceiro dia - disse Cota a Memínio quando este chegou à villa do primeiro magistrado local -, e teremos de tratar dos mortos.
- Os habitantes da cidade partiram e os camponeses estão convencidos de que os Germanos voltarão... Não fazes ideia de como tive de ser duro para mandar alguém ir lá ajudar-vos - disse Memínio.
- Não sei onde estão os Germanos - disse Cota - e não imagino Por que motivo terão ido para o norte. Mas até agora não vi vestígios deles. Infelizmente, não tenho ninguém para ir em reconhecimento; o can’PO de batalha é mais importante.
- Oh! - Memínio bateu com a mão na testa. - Apareceu aqui um sujeito há umas horas, e ao que suponho, deve ser um dos intérpretes germanos que estavam ligados ao acampamento de cavalaria. Fala latim, mas o seu sotaque é demasiado forte para mim. Importas-te de falar com ele? Talvez esteja disposto a fazer o reconhecimento.
E Cora foi chamar o germano, e a novidade que recebeu alterou tudo.
- Houve um conflito muito grave, o conselho de guerreiros dividiu-se e os três povos foram cada um por seu caminho - informou o homem.
- Um conflito entre os guerreiros, dizes tu? - perguntou Cota.
- Pelo menos entre Teutobod, dos Teutões, e Bóiorix, dos Cimbros disse o intérprete. - Os guerreiros regressaram às carroças e o conselho reuniu-se para dividir os despojos. Havia muito vinho roubado dos três acampamentos dos romanos e os guerreiros beberam-no. Depois, Teutobod contou que tivera um sonho durante a viagem até às carroças do seu povo: fora visitado pelo grande deus Ziu, e Ziu dissera-lhe que se o seu povo continuasse a marchar para o sul, entrando nas terras dos Romanos, estes infligir-lhes-iam uma derrota na qual todos os guerreiros, mulheres e crianças seriam mortos ou vendidos como escravos. Por isso, Teutobod disse que levaria os Teutões até à Espanha atravessando as terras dos Gauleses e não as dos Romanos. Mas Bóiorix protestou, acusou Teutobod de cobardia e anunciou que os Cimbros seguiriam para sul através das terras dos Romanos, fosse qual fosse a decisão dos Teutões.
- Tens a certeza disso tudo? - perguntou Cota, com dificuldade em acreditar. - Como sabes? Ouviste contar? Ou estavas lá?
- Estava lá, dominus.
- Como estavas lá? Porquê?
- Estava à espera que me levassem às carroças dos Cimbros, o meu povo. E estavam todos muito bêbados, por isso ninguém reparou em mim. Resolvi que não queria continuar a ser germano e decidi descobrir o que pudesse e fugir.
- Continua, homem! - exclamou Cota, impaciente.
- Bem, os outros guerreiros entraram no conflito, e a seguir Getorix, que comanda os Marcomanos, os Queruscos e os Tigurinos, propôs que resolvessem a questão permanecendo entre os Éduos e os Ambarros. Mas só o seu povo foi a favor dessa decisão. Os guerreiros teutões colocaram-se ao lado de Teutobod e os guerreiros cimbros alinharam com Bóiorix. O conselho terminou ontem com os três povos querendo cada um a sua coisa. Teutobod mandou os Teutões seguir para a Gália distante, e atravessar as terras dos Cardúrcios e dos Petrocórios no caminho para a Espanha. Getorix e o seu povo vão ficar entre os Éduos e os Ambarros. E Bóiorix vai levar os Cimbros para o outro lado do rio Ródano e viajar para a Espanha pelos limites dos territórios romanos e não pelo meio deles,
- Então, é por isso que não os temos visto! - exclamou Cota.
- Sim, dominus. Eles não virão para o Sul passando por território romano - afirmou o Germano.
Cota voltou a ir ter com Antônio Memínio e contou-lhe as notícias, com um sorriso largo.
- Espalha as notícias, Marco Memínio, e o mais depressa possível! Tens de queimar todos esses corpos, senão o solo e a água ficarão contaminados e a doença será muito mais prejudicial ao povo de Arausio do que os Germanos - avisou Cota; depois, franziu o sobrolho e mordeu o lábio. - Onde está Quinto Servílio Cepião?
- Já se encontra a caminho de Roma, Marco Aurélio.
- O quÊ??
- Partiu com o filho para levar a Roma as notícias o mais rapidamente possível - disse Memínio, confuso.
- Oh, aposto que sim! - disse Cota com aspereza. - Seguiu por estrada?
- Evidentemente, Marco Aurélio. Dei-lhe carros de quatro mulas dos meus próprios estábulos.
Cota levantou-se, revigorado, apesar do cansaço.
- Serei eu a levar as notícias a Roma - proferiu. - Nem que tenha de arranjar asas, baterei Quinto Servílio, juro-o! Marco Memínio, dá-me o melhor cavalo que tiveres. Partirei para Massília ao romper da aurora.
Partiu a galope para Massília, sem escolta, trocou de cavalo em Glanum e de novo em Aquac Sextiae, e chegou a esta cidade sete horas depois de ter deixado Arausio. O grande porto de mar fundado pelos gregos séculos antes não tivera conhecimento da enorme batalha; Cota encontrou a cidade - tão bela e tão grega, tão branca e reluzente - febril com o temor da vinda dos Germanos.
Cota entrou na casa do etnarca com a arrogância e pressa de um magistrado curul romano numa questão urgente. Como Massília queria manter laços de amizade com Roma sem ter de submeter-se a um curul romano, Cota poderia ter sido amavelmente acompanhado até à porta. Mas é óbvio que isso não aconteceu. Especialmente depois de tanto O etnarca como alguns dos seus conselheiros, que viviam na vizinhança, terem ouvido o que Cota tinha a dizer.
- Quero o barco mais rápido que tenhas e os melhores marinheiros e remadores de Massília - disse. - Não há carregamentos para atrasar a viagem, por isso levarei duas equipas suplentes de remadores, para o caso de termos que remar contra o vento ou o mar estar picado. E juro-te, etnarca Aristides, que chegarei a Roma em três dias, nem que tenha de remar todo o caminho! Não vamos rente à costa: navegaremos para óstia o mais a direito que for possível ao melhor remador de Massília. Quando é a próxima maré?
- Terás o teu barco e a tripulação de madrugada, Marco Aurélio, e coincide com a maré - disse o emarca lentamente. E depois tossiu com grande delicadeza. - Mas quem vai pagar tudo?
É um típico grego de Massília, disse Cota para consigo.
- Passa-me uma factura - disse. - O Senado e Povo de Roma pagarão. A factura foi logo passada; Cota olhou para o preço ultrajante e resmungou:
- É uma tragédia - disse ao emarca Aristides - que as más notícias custem o mesmo que outra guerra contra os Germanos. Não poderias tirar uns dracmas?
- Estou de acordo, é uma tragédia - afirmou o emarca com suavidade. - Mas negócio é negócio. É este o preço, Marco Aurélio. Ou o aceitas ou não.
- Aceito - disse Cota.
Cepião e o filho não se deram ao trabalho de fazer um desvio por Massília. Ninguém sabia melhor do que Cepião - veterano de um ano em Narbona e um ano em Espanha quando fora pretor - que o vento sopra sempre ao contrário no Sínus Gallicus. Tomaria a Via Domícia até ao vale do rio Druência, atravessaria a Gália Italiana pelo desfiladeiro do monte Geneva e passaria o mais depressa possível pela Via Aemilia e pela Via Flamínia. Com sorte, faria uma média de setenta milhas por dia, se conseguisse arranjar montadas decentes regularmente, e ele esperava que o seu imperium proconsular lho proporcionasse. E proporcionou mesmo: à medida que as milhas passavam, Cepião começou a sentir-se confiante de que chegaria até a bater o correio de Roma. A sua passagem dos Alpes fora tão rápida que os Vocôncios, sempre à espreita de viajantes romanos vulneráveis que passassem pela Via Domícia, não conseguiram organizar um ataque aos dois carros que seguiam a galope.
Quando chegou a Arímino, no fim da Via Aemilia, Cepião sabia que poderia chegar de Arausio a Roma em sete dias, com o auxílio de boas estradas e trocando as mulas muitas vezes. E começou a descansar. Podia estar exausto, ter uma dor de cabeça de proporções fenomenais, Mas a sua versão do que acontecera em Arausio seria a primeira a ser ouvida em Roma, e isso significava nove décimos da batalha. Quando surgiu Fano e os carros viraram para a Via Flamínia para a passagem dos Apeninos e a descida do vale do Tibre, Cepião soube que vencera. Seria sua a versão de Arausio em que Roma acreditaria.
Mas a Fortuna tinha um preferido; Marco Aurélio percorreu de barco o Sinus Gallicus de Massília até óstia com ventos ora favoráveis ora não existentes, numa travessia muito melhor do que o previsto. Quando o vento diminuía, os remadores tomavam os seus lugares nas guigas, o hortator começava a marcar a batida no seu tambor e trinta costas musculadas inclinavam-se ao mesmo tempo. Era um barco pequeno, mais para viagens rápidas do que para transporte de carga e, para Cota, tinha o ar suspeito de um barco de guerra massiliota, embora os massiliotas não devessem entrar em guerra sem a aprovação de Roma. Os seus remos, quinze de cada lado, estavam alojados em guigas encimadas por cobertas que podiam ser defendidas por uma fila de escudos e transformadas em plataformas de combate, e a grua montada na coberta da popa parecia ser de construção bastante casual; talvez seja habitual, pensou Cota, haver uma catapulta forte em vez da grua. A pirataria era uma indústria rentável, e espalhava-se de uma ponta à outra do mar Central.
Mas Cota não era homem para recusar uma dádiva da Fortuna, e por isso concordou quando o capitão lhe explicou que fazia habitualmente viagens de passageiros, e que as guigas eram um bom lugar para os passageiros estenderem as pernas, porque o camarote era um tanto primitivo. Antes de partirem, o capitão convencera Cota de que eram excessivas duas equipas de remadores suplentes, pois os seus homens eram os melhores no ramo e manteriam um ritmo excelente apenas com uma equipa extra. Agora, Cota estava contente por ter anuído, pois seguiam mais leves por levarem menos homens, e o vento era suficiente para ambas as equipas de remadores poderem repousar assim que davam mostras de exaustão.
O barco partira do magnífico porto de Massília na madrugada do décimo primeiro dia de Outubro e ancorara no lúgubre porto de óstla na madrugada do dia antes dos Idos, exactamente três dias depois. E daí a três horas, Cota entrou na casa do cônsul Públio Rutílio Rufo, e os clientes afastavam-se à sua passagem como galinhas perseguidas por uma raposa.
- Fora! ordenou ao cliente que estava sentado à frente de Rutílio Rufo e caiu em peso sobre a cadeira, enquanto o cliente surpreendido se dirigia para a porta.
Por alturas do meio-dia, o Senado foi convocado para uma sessão de urgência na Cúria Hostília; Cepião e o seu filho percorriam nesse momento a toda a brida o último pedaço da Via Aemilia.
- Deixa as portas abertas disse Públio Rutílio Rufo ao chefe dos escribas. - O Povo deve assistir a esta sessão. E quero que seja transcrita textualmente para os registos.
Apesar da brevidade da notícia, a Assembleia estava quase cheia; no modo insondável com que as notícias antecedem a sua divulgação oficial, corria já pela cidade o boato de que tinha havido um grande revés contra os Germanos na Gália. O vão dos Comícios perto da base das escadas da Cúria Hostília enchia-se rapidamente de gente, tal como os degraus e todos os lugares vazios.
Os Pais Conscritos estavam irritados; tinham conhecimento das cartas de Cepião protestando contra Málio Máximo e pedindo a autoridade suprema e temiam o renovar das discussões. O valente Marco Emílio Escauro, que não recebia notícias de Cepião há semanas, estava em desvantagem, e sabia-o muito bem. Por isso, quando o cônsul Rutílio Rufo ordenou que as portas da Assembleia ficassem abertas, Escauro não insistiu para que as fechassem. Nem Metelo Numídico. Todos os olhos estavam fixos em Cota, sentado numa cadeira na fila da frente, perto do estrado onde se encontrava a cadeira de marfim do cunhado Rutílio Rufo.
Marco Aurélio Cota chegou a Óstia esta manhã contou Rutílio Rufo. Há três dias, encontrava-se em Massília, e no dia antes estava em Arausio, perto do local onde as nossas tropas estavam estacionadas. Invoco Marco Aurélio Cota para que fale e informo a Assembleia de que esta sessão está a ser transcrita textualmente para os registos.
Cota tinha-se lavado e mudado de roupa, mas era patente o cansaço no seu rosto geralmente com belas cores, e ao levantar-se, todo o seu corpo evidenciava a imensidade dessa fadiga.
Pais Conscritos, no dia antes das Nonas de Outubro, travou-se uma batalha em Arausio disse Cota sem necessitar de projectar a voz, porque a Assembleia se encontrava em silêncio total. Os Germanos aniquilaram-nos. Morreram oitenta mil dos nossos soldados.
Ninguém protestou, ninguém se mexeu; toda a Assembleia estava mergulhada num silêncio tão profundo como o da gruta da Sibila de Cumas.
- Quando digo oitenta mil soldados, só me refiro a eles, porque os não-combatentes mortos são vinte e quatro mil. E ainda falta a cavalaria. A sua voz inexpressiva elevou-se. Cota continuou a contar aos senadores exactamente o que acontecera a partir do momento em que ele e os seus homens haviam chegado a Arausio: as tentativas vãs de demover Cepião; a atmosfera de confusão e intranquilidade que o desprezo patente nas ordens de Cepião causara na cadeia de comando de Málio Máximo, que alinhara em parte com Cepião, tal como o filho de Cepião; o desamparo do consular Aurélio, demasiado longe para poder agir integrado na máquina militar:
- Pereceram cinco mil soldados de cavalaria, todos os seus não-combatentes e todos os animais do acampamento de Aurélio. O legado Marco Aurélio Escauro foi feito prisioneiro pelos Germanos e usado como exemplo. Queimaram-no vivo, Pais Conscritos. Morreu, segundo me contou uma testemunha, com uma coragem e valentia extremas.
Viam-se agora entre os senadores rostos pálidos, pois a maioria tinha filhos, irmãos ou sobrinhos num ou noutro dos exércitos; alguns choravam em silêncio, com a cabeça oculta pela toga, ou inclinados para a frente, de mãos no rosto. Escauro Princeps Senatus foi o único a permanecer direito, com duas marcas no rosto e os lábios apertados.
- Todos os que estão aqui hoje devem aceitar uma quota-parte de responsabilidade - afirmou Cota. - A vossa delegação não continha nem um consular, e eu, um mero ex-pretor!, era o único magistrado curul. Daí resultou que Quinto Servílio se recusasse a falar connosco como seus iguais em nascimento ou senioridade. Ou mesmo em experiência. Em vez disso, entendeu a nossa insignificância, a nossa falta de influência, como uma mensagem do Senado de que a delegação estava abaixo dele na sua posição contra Cneu Málio Máximo. E tinha razão para isso, Pais Conscritos! Se quisessem realmente que Quinto Servílio obedecesse à lei subordinando-se ao cônsul do ano, teriam enchido a delegação de consulares! Mas não o fizeram. Enviaram deliberadamente cinco Pedarii e um ex-pretor para tratar com um dos membros mais elitistas e séniores da Assembleia!
Nem uma cabeça se levantou; cada vez se afundavam mais nas pregas das togas. Mas Escauro Princeps Senatus permanecia na sua pose altiva, de olhos flamejantes fixos no rosto de Cota.
- O conflito entre Quinto Servílio Cepião e Cneu Málio Máximo impediu a junção das suas forças. Em vez de um exército uno de dezassete legiões e mais de cinco mil soldados de cavalaria, Roma possuía dois exércitos a vinte milhas de distância; o menor deles estava mais perto dos Germanos e separado da unidade de cavalaria. Quinto Servílio Cepião disse-me pessoalmente que não compartilharia o seu triunfo com Cneu Málio Máximo, por isso, colocara o seu exército a norte, longe de Cneu Málio, para impedir a participação dele na sua batalha.
Cota inspirou com uma aspereza tal no meio do silêncio que Rutílio Rufo saltou; Escauro não. Ao lado de Escauro, Metelo Numídico retirou lentamente a cabeça da prega da sua toga, revelando um rosto empedernido.
- Mesmo que ponhamos de lado o conflito desastroso entre eles, Pais Conscritos, a verdade é que nem Quinto Servílio nem Cneu Málio tinham suficiente talento militar para vencer os Germanos! No entanto, dos dois comandantes é Quinto Servílio que tem maiores culpas. Pois além de ser tão mau general como Cneu Málio, desprezou a lei. Colocou-se acima da lei, considerou a lei um instrumento ao serviço de mortais inferiores a si mesmo! Um verdadeiro Romano, Marco Emílio Escauro Princeps Senatus
- isto foi dito directamente para o Presidente da Assembleia, que não se mexeu, põe a lei acima de tudo, sabendo que à face da lei não existem distinções sociais mas apenas um sistema de controlo e equilíbrio criado para assegurar que nenhum homem se considere acima dos seus semelhantes. Quinto Servílio Cepião comportou-se como se fosse o Primeiro Homem de Roma. Mas à face da lei, não pode haver nenhum Primeiro Homem em Roma! Por isso vos digo que Quinto Servílio agiu contra a lei, ao passo que Cneu Málio apenas teve uma conduta inadequada como general.
O sossego e o silêncio mantinham-se; Cota suspirou.
Arausio é uma calamidade pior do que Canas, membros do Senado. A fina flor dos nossos homens pereceu. Eu sei, porque estive lá. Cerca de treze mil soldados sobreviveram, as tropas mais inexperientes, porque fugiram desordenadamente e deixaram as armas e armaduras atrás, atravessando o Ródano a nado. Todos eles vagueiam ainda pela margem oeste do rio, e, pelos relatos que tenho recebido, tal é o seu receio dos Germanos que preferem esconder-se a correrem o risco de ser encontrados e reintegrados num exército romano. Ao tentar detê-los, o tribuno Sexto Júlio César foi ferido pelos seus próprios soldados. Tenho o prazer de informá-los de que está vivo, pois eu mesmo o encontrei no campo de batalha, visto que os Germanos o deram por morto. Eu e os meus companheiros, vinte e nove ao todo, éramos os únicos disponíveis para socorrer os feridos, e durante cerca de três dias ninguém mais apareceu em nosso auxílio. Embora a maioria dos homens em campo estivesse morta, não há dúvida de que alguns poderiam não ter morrido se tivessem sido socorridos após o combate.
Apesar do seu férreo autodomínio, Metelo Numídico elevou a Mão como que para fazer uma pergunta incómoda. Cota surpreendeu o gesto e olhou para o inimigo de Caio Mário, que era seu amigo; Cota não morria de amores por Caio Mário.
- O teu filho, Quinto Cecílio Metelo Numídico, escapou ileso mas sem qualquer cobardia. Salvou o cônsul Cneu Málio e algum do seu estado-maior. No entanto, os dois filhos de Cneu Málio foram mortos. Dos vinte e quatro tribunos eleitos dos soldados, apenas três sobreviveram: Marco Lívio Druso, Sexto Júlio César e Quinto Servílio Cepião júnior. Marco Lívio e Sexto Júlio foram gravemente feridos. Quinto Servílio júnior, que comandava a legião mais inexperiente, a que estava mais perto do rio, escapou ileso atravessando o rio a nado, mas desconheço as condições em que o fez.
Cota fez uma pausa para aclarar a garganta, pensando se o grande alívio que detectava nos olhos de Metelo Numídico se devia à sobrevivência do filho ou à notícia de que não tinha agido de modo cobarde.
- Contudo, os números de baixas perdem o relevo quando comparados com o facto de não estar vivo nenhum centurião experiente de nenhum dos dois exércitos. Roma não tem oficiais, Pais Conscritos! E o grande exército da Gália Transalpina deixou de existir - parou por um momento, e a seguir, acrescentou. - Aliás, nem chegou a existir, graças a Quinto Servílio Cepião.
Para lá das grandes portas de bronze da Cúria Hostília, os que conseguiam ouvir as notícias iam-nas comunicando aos que se encontravam demasiado longe, num público cada vez maior que continuava a reunir-se, espalhado agora pelo Argileto e pelo Clivus Argentarius, pelo baixo Fórum Romano e atrás do vão dos Comícios. Era uma multidão enorme mas que se encontrava em silêncio. Os únicos sons que podiam ouvir-se eram de lágrimas. Roma perdera a batalha crucial- E a Itália estava aberta aos GermanosAntes que Cota se sentasse, Escauro falou:
- E onde se encontram agora os Germanos, Marco Aurélio? Onde estavam eles quando partiste de Arausio para nos trazeres as notícias? E onde poderão estar neste momento? - perguntou.
- Honestamente, não sei, Princeps Senatus. Porque quando a batalha terminou... e apenas durou uma hora... os Germanos dirigiram-se para norte, aparentemente para irem buscar as carroças e as mulheres e crianças. Mas quando parti, ainda não tinham voltado. E falei com um germano que Marco Aurélio Escauro tinha contratado para intérprete das negociações com os chefes germanos. Este homem foi capturado, e como foi reconhecido como germano, não lhe fizeram mal. Segundo ele disse, os Germanos desentenderam-se e, pelo menos por agora, separaram-se em três grupos. Parece que nenhum dos três grupos tem confiança suficiente para entrar pelo nosso território em direcção ao sul. Por isso, vão seguir para Espanha por várias rotas através da Gália-de-Longos-Cabelos. Mas a discórdia foi provocada pelo vinho romano que roubaram. Não é possível prever quanto tempo durará a separação. Nem posso ter a certeza de que o homem com quem falei disse a verdade. Nem sequer parcialmente. Ele disse que tinha fugido porque não queria continuar a viver como germano. Mas é possível que tenha sido enviado pelos Germanos para acalmar os nossos temores e tornar-nos uma presa ainda mais fácil. Tudo o que posso afirmar com certeza é que quando parti não havia sinais de qualquer movimentação dos Germanos rumo ao sul - comunicou Cota, sentando-se a seguir.
Rutílio Rufo levantou-se.
- Esta não é a altura certa para um debate, Pais Conscritos. Nem para recriminações nem mais discórdias. A altura é para a acção.
- Ouçam, ouçam! - disse uma voz no fundo da sala.
- Amanhã são os Idos de Outubro - prosseguiu Rutílio Rufo. Significa que a estação de campanha está quase a acabar. Mas resta-nos pouquíssimo tempo para impedir os Germanos de invadir a Itália quando quiserem. Formulei um plano de acção que tenciono apresentar agora, mas primeiro quero fazer-vos um aviso solene: ao menor sinal de discussão, desentendimento ou qualquer outra forma de polarização desta Assembleia, exporei o meu plano ao Povo e aprová-lo-ei na Assembleia da Plebe, privando-vos assim, Pais Conscritos, da vossa prerrogativa de tomar a dianteira em todos os assuntos relacionados com a defesa de Roma. A conduta de Quinto Servílio Cepião mostra a maior fraqueza da nossa ordem senatorial... Nomeadamente, a sua falta de vontade de admitir que o Acaso, a Fortuna e a Sorte por vezes se unem para dotar os homens mais humildes com mais capacidades do que aqueles de nós que se acham no direito de governar o Povo de Roma, e comandar os seus exércitos, só porque o nascimento e a tradição lhes concederam esse direito. Virara-se e elevara a voz em direcção às portas abertas, e o som alto flutuava no ar acima dos Comícios.
- Vamos precisar de todos os homens válidos de Itália, isso é certo. De todos os homens válidos: desde os capite censi, passando pelas ordens e classes até ao Senado! Por isso, exijo um decreto vosso exigindo que a Plebe vote de imediato uma lei que proíba qualquer homem entre as idades de dezassete e trinta e cinco anos... qualquer homem, seja ele Romano ou Latino ou Italiano... de partir por mar ou atravessar o Arno ou o Rubicão em direcção à Gália Italiana. Amanhã quero que partam correios para todos os portos da nossa península com ordens para que nenhum barco aceite qualquer homem válido como parte da tripulação ou como passageiro. A infracção será punida com a pena de morte, tanto para o homem que tente escapar ao serviço militar como para aquele que o aceitar.
Ninguém disse nada; nem Escauro Princeps Senatus, nem Metelo Numídico, nem Metelo Dalmático Pontifex Maximus, nem Aenobarbo Sénior, nem Catulo César, nem Cipião Nasica. óptimo, pensou Rutílio Rufo. Não se oporão a esta lei.
- Todos os que estiverem disponíveis ocupar-se-ão do recrutamento de soldados de todas as classes, dos capite censi até ao Senado. E isso implica, Pais Conscritos, que aqueles de vós que tiverem menos de trinta e cinco anos serão automaticamente integrados nas legiões, independentemente das campanhas que tenham feito anteriormente. Se esta lei for cumprida, teremos soldados. Contudo, receio bem que não consigamos reunir O número suficiente. Quinto Servílio acabou com os últimos homens de toda a Itália que possuíam bens, e Cneu Málio Máximo integrou quase setenta mil homens dos capite censi, entre soldados e não-combatentes.
”Por isso, temos de contar com outros exércitos disponíveis. Na Macedónia: apenas duas legiões, ambas de auxiliares, que não podem ser usadas. Em Espanha: duas legiões na província mais distante e uma na mais próxima: duas destas legiões são Romanas e a outra é auxiliar... que não só têm de permanecer em Espanha como terão de ser reforçadas, pois os Germanos tencionam invadir a Espanha - fez uma pausa.
E Escauro Princeps Senatus deu finalmente sinais de vida.
- Continua, Públio Rutílio! - disse, irritado. - Fala-nos de África... e de Caio Mário!
Públio Rutílio pestanejou, fingindo-se surpreso.
- Obrigado, Princeps Senatus, obrigado! Se não o tivesses referido, ter-me-ia esquecido! Oh, mereces bem ser chamado o cão de guarda do Senado! O quefaríamos sem ti?
- Poupa-me o sarcasmo, Públio Rutílio! - disse Escauro com rispidez. - Limita-te a continuar!
- Com certeza! Há três aspectos em África que devem ser considerados. Em primeiro lugar, foi uma guerra bem sucedida: um inimigo foi completamente aniquilado, um rei inimigo e a sua família esperam neste momento o seu castigo aqui em Roma, como hóspedes do nosso nobre Quinto Cecílio Metelo Suíno... perdão, Quinto Cecílio! - quero dizer Numídico!...
”O segundo aspecto - prosseguiu - é o facto de ser um exército de seis legiões, composto por membros dos capite censi!... Mas excelentemente treinadas, valentes e comandadas, desde o centurião até ao legado, passando pelo cadete-tribuno. A par delas há ainda dois mil soldados de cavalaria igualmente experientes e valorosos.”
Rutílio Rufo parou, girou nos calcanhares e fez um sorriso cruel à sua volta.
- O terceiro aspecto, Pais Conscritos, é um homem. Um único homem. É evidente que me refiro ao procônsul Caio Mário, comandante supremo do exército africano e único planeador de uma vitória tão completa que iguala as de Cipião Emiliano. A Numídia não mais se levantará. A ameaça aos cidadãos, aos bens, à província e à produção agrícola romana em África deixou de existir. Com efeito, Caio Mário lega-nos uma África tão subjugada e pacificada que nem é necessário deixar lá nenhuma legião como guarnição.
Rutílio Rufo deixou o estrado onde estavam as cadeiras curuis, desceu para o chão antigo de lajes brancas e pretas e dirigiu-se para as portas, colocando-se num lugar de onde a voz chegava até ao Fórum,
- Roma precisa ainda mais de um general do que de soldados ou centuriões. Tal como Caio Mário disse uma vez nesta mesma Assembleia, milhares e milhares de soldados romanos pereceram durante os poucos anos que nos separam da morte de Caio Graco... E deve-se unicamente à incompetência dos homens que os comandaram a eles e aos seus centuriões! E na altura em que Caio Mário disse isto a Itália tinha ainda mais cem mil soldados do que tem neste momento. Mas quantos soldados, centuriões e não-combatentes perdeu o próprio Caio Mário? Absolutamente nenhum, Pais Conscritos! Há três anos, levou consigo seis legiões para África, e ainda as tem. Seis legiões de veteranos, seis legiões com centuriões!
Fez uma pausa, e a seguir, gritou:
- Caio Mário é a resposta à necessidade que Roma tem de um exército - e é um general competente!
A sua figura pequena surgiu por um momento contra a multidão de ouvintes fora do pórtico, quando se virou ao tornar para o estrado da Assembleia.
- Ouviram Marco Aurélio Cota dizer que houve uma discórdia entre os Germanos, e que neste momento parecem ter abandonado a sua intenção de atravessar a nossa província da Gália Transalpina. Mas não podemos ficar sossegados por causa deste relato. Temos de ser cépticos e não nos deixarmos animar por ele, continuando a incorrer na estupidez. Contudo, um facto é certo: temos o próximo Inverno para nos prepararmos. E a primeira fase de preparação deverá ser indigitar Caio Mário para procônsul na Gália, com um imperium que não possa ser rescindido até os Germanos serem derrotados.
Houve um burburinho geral, prenúncio de futuros protestos. Depois, ouviu-se a voz de Metelo Numídico.
- Conceder a Caio Mário o comando da Gália Transalpina com imperium proconsular por vários anos? - perguntou, incrédulo. - Só por cima do meu cadáver!
Rutílio, Rufo bateu com o pé no chão e brandiu o pulso.
- Oh, deuses, lá estás tu! - gritou. - Quinto Cecílio, Quinto Cecílio, ainda não compreendeste a enormidade da situação? O que nós precisamos é de um general do calibre de Caio Mário!
- Nós precisamos das tropas dele - disse Escauro Princeps Senatus em voz alta. - Não precisamos de Caio Mário! Há outros tão bons como ele.
- Referes-te ao teu amigo Quinto Cecílio Suíno, Marco Emílio?
- Rutílio Rufo fez um ruído grosseiro. - Que disparate! Durante dois anos, Quinto Cecílio andou a perder tempo em África: eu sei, porque estive lá! Trabalhei com Quinto Cecílio e Suíno é um bom nome para esse senhor, pois é tão previsível como qualquer bácoro! E também trabalhei com Caio Mário. E talvez não seja esperar demasiado que alguns homens desta Assembleia se lembrem que eu próprio não sou mau militar! Devia ter sido eu a receber o comando da Gália Transalpina e não Cneu Máximo! Mas o que passou, já passou, e não tenho tempo para recriminações.
”Deixem que vos diga, Pais Conscritos, que a desgraça de Roma é demasiado grande e urgente para favorecermos meia dúzia de pessoas da nobreza! Deixem que vos diga, Pais Conscritos, todos os que se encontram nas bancadas desta Assembleia!, que há apenas um homem capaz de nos libertar do perigo! E esse homem é Caio Mário! Que mal tem que não seja um verdadeiro Romano? Quinto Servílio Cepião é um verdadeiro Romano, e vejam a posição em que nos colocou! Sabem qual é? Mesmo no meio da merda!”
Rutílio Rufo rosnava de fúria e de medo, certo de que eles não iam ver a razão da sua proposta.
- Ilustres membros desta Assembleia... homens de bem... membros do Senado! Peço-vos que ponham de parte os preconceitos nem que seja só por esta vez! Temos de conceder a Caio Mário o imperium proconsular na Gália Transalpina durante o tempo que for necessário para conseguir empurrar os Germanos de volta para a Germânia!
E este último pedido apaixonado surtiu efeito. Tinha-os conquistado. Escauro sabia-o e Metelo Numídico também.
O pretor Mânio Aquílio pôs-se de pé; era um homem nobre mas de uma família cuja história fora mais marcada pela cupidez do que por feitos gloriosos; fora o seu pai que, nas guerras que se seguiram ao momento em que o rei Átalo do Pérgamo legou o seu reino a Roma, vendera toda a Frígia ao quinto rei Mitríades do Ponto por uma quantia enorme de dinheiro, dando assim o impenetrável Oriente à Ásia Menor.
- Públio Rutílio, peço a palavra - disse ele.
- Fala, então - disse Públio Rutílio, sentando-se depois, extenuado.
- Eu é que peço a palavra! - disse Escauro Princeps Senatus furioso.
- A seguir a Mânio Aquílio, - disse Rutílio Rufo suavemente.
- Públio Rutílio, Marco Emílio, Pais Conscritos - começou Aquílio
com correcção -, concordo com o cônsul quando diz que existe apenas um homem com o gênio capaz de libertar-nos desta calamidade, e concordo que esse homem é Caio Mário. Mas a proposta do nosso estimado cônsul não está correcta. Não podemos dar a Caio Mário um imperium proconsular limitado à Gália Transalpina. Em primeiro lugar, o que acontecerá se a guerra se expandir para fora dessa província? Se ela mudar para a Gália Italiana, ou para a Espanha, ou mesmo para a Itália? O comando mudará automaticamente para o governador dessa província ou para o cônsul do ano! Caio Mário tem muitos inimigos nesta Assembleia. E não tenho a certeza de que esses inimigos irão pôr Roma acima dos seus ressentimentos. A recusa de Quinto Servílio Cepião em colaborar com Cneu Málio Máximo é um exemplo perfeito do que acontece quando um membro da antiga nobreza coloca a sua dignitas acima da dignitas de Roma.
- Estás enganado, Mânio Aquílio - interrompeu Escauro. - Quinto Servílio colocou a sua dignitas ao nível da dignitas de Roma!
- Agradeço-te a rectificação, Princeps Senatus - disse Aquílio calmamente, fazendo uma vénia que ninguém podia honestamente considerar irónica. - Tens toda a razão em corrigir-me. A dignitas de Roma e de Quinto Servílio Cepião são idênticas! Mas por que razão consideras dignitas de Caio Mário inferior à de Quinto Servílio Cepião? A sua participação pessoal é tão elevada como a de Cepião, senão mais elevada, apesar de os seus antepassados não terem nada! A carreira de Caio Mário tem sido brilhante! E algum membro desta Assembleia acredita honestamente que Caio Mário será capaz de pôr o Arpino acima de Roma Algum membro desta Assembleia acredita que Caio Mário não considera o Arpino apenas como uma parte de Roma? Todos nós temos entre os nossos antepassados alguns Homens Novos! O próprio Encias... que veio para o Lácio vindo do distante ílio... era um Homem Novo! Caio Mário foi pretor e cônsul, por isso, enobreceu-se a si e aos seus descendentes.
Os olhos de Aquílio percorreram as fileiras de homens vestidos de branco.
- Vejo aqui vários Pais Conscritos com o nome de Pórcio Catão. O avô deles era um Homem Novo. Mas não vemos hoje estes Pórcios Catões como os pilares desta Assembleia, descendentes nobres de um homem que, na sua época, teve o mesmo efeito em homens com o nome de Cornélio Cipião como Caio Mário tem hoje em homens com o nome de Cecílio Metelo?
Aquílio encolheu os ombros, desceu do estrado e imitou RutíliO Rufo, dirigindo-se para um lugar perto das portas abertas.
- É Caio Mário e nenhum outro que deve deter o comando supremo contra os Germanos. Onde quer que seja o teatro da guerra! Por isso, não chega investir Caio Mário de um imperium proconsular limitado à Gália Transalpina.
Aquílio virou-se para a Assembleia e vociferou:
- Como é evidente, Caio Mário não está aqui para dar a sua opinião, e o tempo corre como um cavalo a galope. Caio Mário tem de ser cônsul. É a única forma de lhe concedermos o poder de que irá precisar. Tem de ser proposto como candidato as próximas eleições consulares, um candidato in absentia!
Toda a Assembleia resmungava e murmurava mas Mânio Aquíli’ prosseguiu e captou as atenções.
- Alguém pode negar que os homens das Centúrias são a fina flor do Povo? Deixem os homens das Centúrias decidir eleger Caio Mário para cônsul in abçentia ou não o eleger! Pois a escolha de quem terá o comando supremo constitui uma decisão demasiado importante para esta Assembleia, para a Assembleia da Plebe ou mesmo para todo o Povo. Deixem que vos diga, Pais Conscritos, que a decisão de quem deterá o comando supremo contra os Germanos deve ser entregue à secção do Povo Romano que tem mais importância: os homens da Primeira e Segunda Classe de cidadãos, que votam na sua própria assembleia das centúrias, a Comitia Centuriata!
Aqui temos um Ulisses!, pensou Rutílio Rufo. Eu nunca teria pensado nisto! Nem aprovo. Mas, mesmo assim, ele tem a facção de Escauro na mão. Não, nunca teria tido efeito levar a difícil questão do imperium de Caio Mário até ao Povo, para ser discutida por tribunos da plebe no meio de gritos, berros e rixas! Para homens como Escauro, a Assembleia da Plebe serve apenas como desculpa para a ralé governar Roma. Mas os homens da Primeira e Segunda Classes? Oh, esses são um tipo diferente de Romanos! Que esperteza, Mânio Aquílio!
Primeiro, faz-se uma coisa inédita ao propor que um homem seja eleito cônsul quando nem sequer aqui está para se candidatar ao cargo, e a seguir informa-se a facção de Escauro que se está disposto a colocar a decisão nas mãos dos melhores de Roma! Se os melhores de Roma não quiserem Caio Mário, só terão de escolher outros dois homens para a votação da Primeira e Segunda Classes das Centúrias. Se quiserem Caio Mário, apenas terão de votar nele e noutro homem. E aposto que a Terceira Classe nem terá a hipótese de votar. A exclusividade será satisfeita.
O verdadeiro subterfúgio legal é a cláusula in absentia. Mas Mânio Aquílio terá de dirigir-se à Assembleia da Plebe, Pois ela não lhe será concedida pelo Senado. Que contentamento mostram os tribunos da plebe! Não surgirá nenhum veto entre eles: levarão a dispensa in absentia à Plebe, e esta, espantada com a visão de dez tribunos da plebe de acordo, aprovará uma lei especial autorizando Caio Mário a ser eleito cônsul in absentia. É evidente que Escauro, Metelo Numídico e os outros discutirão o poder restritivo da lex Vilha annalis, que diz que nenhum homem pode candidatar-se segunda vez ao consulado antes do prazo de dez anos. E Escauro e Metelo Numídico e os outros perderão.
É preciso ter este Mânio Aquílio debaixo de olho, pensou Rutílio Rufo, virando-se na cadeira para observar. Incrível!, pensou. Eles podem ficar sentados anos seguidos, tão sossegados e recatados como Vestais, e de repente, apresenta-se a oportunidade e despem a pele de carneiros, revelando a sua verdadeira pele de lobos. Tu, Mânio Aquílio, és um lobo.
Governar África foi um prazer não só para Caio Mário mas também para Lúcio Cornélio. Os deveres militares foram trocados por tarefas administrativas mas a nenhum dos dois desagradava o desafio de organizar de cima a baixo a Província Africana e os dois reinos à sua volta.
Gauda era agora rei da Numídia; não era muito notável mas tinha no príncipe Hiêmpsal um bom filho - que não tardaria a ser rei, pensou logo Mário. Oficialmente reintegrado como Amigo e Aliado do Povo de Roma, Boco da Mauritânia recebeu a maior parte da Numídia ocidental, o que aumentou enormemente o seu reino. A antiga fronteira orental era antigamente o rio Mulucha, mas esta era agora a apenas cinquenta milhas a oeste de Cirta e de Rusicade. A maior parte da Numídia oriental passou a pertencer a uma Província Africana muito maior, governada por Roma, por isso, Caio Mário podia dar a todos os cavaleiros e proprietários da sua clientela as ricas terras costeiras da Sirte Menor, incluindo a antiga e ainda poderosa cidade púnica de Leptis Magna, bem como o lago Tritão e o porto de Tacape. Para si, Mário guardou as férteis ilhas da Sirte Menor; tinha planos para elas, em particular para Meninge e Cercina.
- Quando desmobilizarmos as tropas - disse Mário a Sila -, temos o problema de saber o que fazer com elas. Como os soldados pertencem todos aos capite censi, não possuem quintas ou negócios que possam retomar. Poderão alistar-se noutros exércitos, e desconfio que alguns quererão fazê-lo, mas outros não. No entanto, o seu equipamento pertence ao Estado e não poderão ficar com ele, e isso implica que os únicos exércitos que poderão ser recrutados sejam exércitos dos capite censi. Com Escauro e Suíno opondo-se na Assembleia ao financiamento dos exércitos de capite censi, existe a possibilidade de os futuros exércitos de capite censi virem a ser uma espécie de aves raras, pelo menos depois do problema dos Germanos ser resolvido... Oh, Lúcio Cornélio, não seria excelente participar naquela campanha? Mas eles nunca concordarão com isso.
- Eu dava os olhos da cara - afirmou Sila.
- Podias bem poupá-los - disse Mário.
- Prossegue o que estavas a dizer sobre os homens que quererão ser desmobilizados - incitou Sila.
- Parece-me que o Estado deve aos soldados dos capite censi um Pouco mais do que a comparticipação das pilhagens no final da campanha. Penso que o Estado deveria dar a cada homem um lote de terreno para ele se estabelecer quando entendesse. Por outras Palavras, torná-los em cidadãos de posses modestas mas decentes.
- Uma versão militar das doações de terras que os irmãos Gracos tentaram introduzir? - perguntou Sila, franzindo um pouco as sobrancelhas.
- Exactamente. Não aprovas?
- Estava a pensar na oposição que haverá na Assembleia.
- Eu tenho pensado que a oposição seria muito menor se os terrenos envolvidos não fossem agerpublicus, na posse de Roma. Assim que se falar em ceder o agerpublicus vai haver sarilho; há demasiados homens poderosos a alugá-lo. Não, os meus planos são: assegurar a autorização da Assembleia... ou do Povo, se a Assembleia não ma conceder, mas espero que não chegue a esse ponto... para estabelecer os soldados dos capite censi em bons lotes de terreno em Cercina e em Meninge, aqui em África, na Sirte Menor. Dar a cada um deles, digamos, cem iugera, e ele terá duas funções para Roma. Em primeiro lugar, com os seus companheiros formarão o núcleo de um corpo de homens treinados que podem ser chamados no caso de haver qualquer futura guerra em África. E em segundo lugar, levarão Roma até às províncias - as ideias, hábitos, língua e modo de vida de Roma.
Mas Sila franziu o sobrolho.
- Não sei, Caio Mário. Parece-me errado pretender fazer a segunda coisa. As ideias, hábitos, a língua e o modo de vida de Roma pertencem a Roma. Enxertá-los na África Púnica, com os seus Berberes e Mouros, parece-me uma traição a Roma.
Mário elevou os olhos até ao tecto.
- Não há dúvida, Lúcio Cornélio, de que és um aristocrata! Por mais baixa que tenha sido a tua vida até aqui, as tuas ideias não o são - e retomou as suas tarefas. - Tens as listas pormenorizadas dos saques? Que os deuses nos ajudem se nos esquecermos de anotar seja o que for... e em quadruplicado!
- Os funcionários do Tesouro, Caio Mário, são as fezes da taça de vinho de Roma - comentou Sila, procurando papéis.
- De qualquer taça de vinho, Lúcio Cornélio.
Nos Idos de Novembro, chegou a útica uma carta do cônsul Públio Rutílio Rufo. Mário tomara o hábito de compartilhar estas cartas com Sila, que gostava do estilo Incisivo de Rutilio Rufo ainda mais do que o próprio Mário, pois lidava melhor com as palavras. Contudo, Mário estava sozinho quando a carta lhe foi entregue no seu gabinete, facto que lhe agradou; porque gostava de ter a oportunidade de lê-la primeiro Para se familiarizar com o texto, pois, sempre que Sila o ouvia murmurar entredentes aqueles infindáveis floreados, tentando percebê-los, tinha tendência para desistir.
Mas assim que começou a lê-la em voz alta para si mesmo, deu um pulo, estremeceu e levantou-se. A seguir gritou: - Júpiter! - e precipitou-se para o gabinete de Sila.
Entrou a correr, pálido e acenando com o rolo de papel.
- Lúcio Cornélio! Uma carta de Públio Rutílio!
- O quê? O que aconteceu?
- Cem mil romanos mortos - começou Mário, lendo as partes importantes do que já tinha lido -, oitenta mil dos quais são soldados... Os Germanos aniquilaram-nos... O imbecil do Cepião recusou-se a unir os seus soldados aos de Málio Máximo... insistiu em ficar vinte milhas a norte... O jovem Sexto Júlio César foi gravemente ferido, bem como o jovem Sertório... Sobreviveram apenas três dos vinte e quatro tribunos dos soldados... Pereceram todos os centuriões... Os soldados que sobreviveram eram os mais inexperientes e desertaram... Uma legião inteira de proprietários marsos, e os Marsos já levaram um protesto ao Senado... alegam enormes danos e irão a tribunal, se necessário. Os Samnitas também estão furiosos...
- Júpiter! - bramiu Sila, enfiando-se na cadeira.
Mário continuou a ler, num murmúrio baixo demais para Sila ouvir; e a seguir, lançou-se numa gritaria peculiar. Pensando que Mário ia ter uma apoplexia, Sila levantou-se, mas não teve tempo de dar a volta à mesa antes de surgir o motivo.
- Eu... sou... cônsul! - disse Mário, arquejante. Sila deteve-se.
- Júpiter! - exclamou de novo, sem conseguir lembrar-se de mais nada.
Mário começou a ler para Sila a carta de Públio Rutílio, desta vez sem se preocupar com o modo como lia os floreados.
Ainda o dia não terminara quando o Povo levou a melhor. Mânio Aquílio teve tempo de retomar o seu lugar, já os dez tribunos da plebe se levantavam e saíam porta fora em direcção aos rostros, com o que parecia ser metade de Roma apinhada no vão dos Comícios e a outra metade enchendo por completo o baixo FÓrum. É evidente que toda a Assembleia seguiu os tribunos da plebe, deixando Escauro e o nosso amigo Suíno aos berros para os bancos, entretanto virados.
Os tribunos da plebe convocaram a Assembleia da Plebe e em pouco tempo foram aprovados dois plebiscitos. Fico sempre surpreendido por conseguirmos alinhar melhor as coisas num abrir e fechar de olhos do que ao fim de vários meses de tentativas de toda a gente e mais alguma. Isto apenas demonstra que toda essa gente faz pouco mais do que transformar a boa legislação em más leis.
Cota tinha-me dito que Cepião ia a caminho de Roma a toda a pressa, para dar a sua versão em primeiro lugar, mas tencionava manter o seu imperium ficando para lá do pomerium e enviando o filho e os seus agentes para o substituir dentro da cidade. Desse modo, pensava ficar a salvo, protegido pelo seu imperium, até a sua versão dos acontecimentos ser a oficial. Penso que disse - correctamente - que conseguiria obter a prorrogação do seu mandato, mantendo o imperium e o comando da Gália Transalpina durante o tempo necessário para deixar o fedor dissipar-se.
Mas a Plebe apanhou-o! Votou em peso para que o irnperium de Cepião lhe fosse imediatamente retirado. E quando ele chegarperto de Roma, achar-se-á tão despido como Ulisses na praia de Scheria. O segundo plebiscito, Caio Mário, ordenava que o funcionário eleitoral - eu - inscrevesse o teu nome como candidato ao consulado, apesar de não poderes estar em Roma para as eleições.
- Isto é obra de Marte e Belona, Caio Mário! - exclamou Sila. - Uma dádiva dos deuses da guerra.
- Marte? Belona? Não! Isto é obra da Fortuna, Lúcio Cornélio. A tua e minha amiga, Lúcio Cornélio. Fortuna!
E Mário Prosseguiu a leitura:
Como o Povo me ordenou queprosseguísse com as eleições, não tive outra opção senão obedecer
Por acaso, depois da aprovação dos plebiscitos, Cneu A enobarbo - sentindo um interesse de proprietário, pois deve considerar-se o fundador da Gália Transalpina
- tentou falar dos rostros contra o plebiscito que te autorizava a candidatura a cônsul in absentia. Sabes bem como aquela família é colérica - são todos uns arrogantes! E Cneu Aenobarbo espumava de raiva, Quando a multidão se fartou dele e o vaiou, ainda tentou calá-la! E sendo um Cneu Domicio, penso que até tinha boas hipóteses de fazê-lo. Mas algo bateu dentro da sua cabeça ou do
seu coração, pois caiu nos rostros como morto. Isso arrefeceu as coisas, e a sessão terminou e a multidão dispersou. O mais importante, porém, estava feito,
Os plebiscitos foram aprovados na manhã seguinte, sem a discordância de nenhuma tribo. O que me deixou caminho aberto para organizar as eleições. E eu não perco tempo com coisas inúteis. Um pedido delicado ao Colégio de Tribunos da Plebe pôs tudo a correr. O novo colégio será votado dentro de dias. É um grupo bastante semelhante ao anterior e superior, talvez devido a questões como a dos antagonismos entre generais. Temos o filho mais velho do falecido Cneu Domício Aenobarbo e ofilho mais velho do falecido Lúcio Cássio Longino. Penso que Cássio vai querer provar que nem todos os membros da família matam irresponsavelmente soldados romanos e por isso deve ser-te útil, Caio Mário. E Lúcio Márcio Felipe também entra, bem como um Clódio da grande brigada de Cláudios-Clódios, Deuses, como eles se reproduzem,
A Assembleia Centurial votou ontem e - como escrevi há alguns parágrafos atrás - Caio Mário foi reeleito cônsul sénior por todas as centúrias da Primeira Classe e todos os votos da Segunda Classe que faltavam. Alguns senadores séniores teriam adorado acabar com todas as tuas hipóteses, mas és demasiado conhecido como patrono honrado e apoiante honesto do grande negócio (em especial depois de teres cumprido as tuas promessas em África). Os cavaleiros que votaram não tinham problemas de consciência quanto a pormenores tais como o facto de alguém se candidatar a cônsul pela segunda vez no espaço de três anos ou in absentia.
Mário ergueu os olhos, exultante.
- Que tal um mandato do Povo, Lúcio Cornélio? Cônsul pela segunda vez e sem saber que era candidato! - Esticou os braços acima da cabeça como se quisesse alcançar as estrelas. - Levarei Marta, a profetisa, connosco para Roma. Ela verá com os seus próprios olhos o meu triunfo e a cerimónia de posse no mesmo dia, Lúcio Cornélio! Porque já tomei a decisão: o triunfo será celebrado no Dia de Ano Novo.
- E depois, partiremos para a Gália - disse Sila, muito mais interessado neste aspecto. - Isto é, Caio Mário, caso me queiras.
- Meu caro, eu já não poderia passar sem ti ou sem Quinto Sertório!
- Acaba de ler a carta - disse Sila, achando que precisava de mais tempo para assimilar todas aquelas notícias incríveis antes de discuti-las profundamente com Mário.
Por isso, quando te vir, Caio Mário, será para te passar o cargo. Quem me dera poder dizer que estou totalmente satisfeito comigo mesmo. Por Roma, era vital que recebesses o comando germano, mas gostava que tivesse sido feito de modo mais ortodoxo! Quando penso nos inimigos que irás acrescentar aos que já fizeste, todo o meu corpo estremece. Tu causaste muitas mudanças na forma como funciona a nossa máquina legislativa. Sei bem que todas essas mudanças eram necessárias para a tua sobrevivência. Mas, como os Gregos disseram a propósito de Ulisses, o fio da sua vida era tão importante que afectava todos os outros fios com que se cruzava até rebentarem. Penso que Marco Emílio Escauro Princeps Senatus tem uma certa razão do seu lado na presente situação, pois não compartilha da miopia de homens como o Numídico Suíno. Escauro vê a transformação que Roma está a sofrer, tal como eu. E parece-me que Roma está ocupada a construir a sua pira fúnebre; se o Senado te tivesse deixado tratar dos Germanos como entendesses e no tempo de que necessitasses, nenhuma destas medidas surpreendentes, extraordinárias e pouco ortodoxas teriam sido necessárias. Mas nem por isso me aflijo.
A voz de Mário não vacilara, tal como não vacilara a sua decisão de ler a carta a Sila, embora a conclusão fosse menos satisfatória e lhe retirasse todo o prazer
- Ainda há mais - disse - Vou ler.
A tua candidatura, devo acrescentar em conclusão, afastou todos os homens de honra e reputação. Alguns sujeitos decentes tinham chegado a candidatar-se a cônsules, mas todos se retiraram. Foi o que fez Quinto Lutácio Catulo César, declarando recusar-se a ser teu colega, tal como se recusaria se fosse eleito o seu cão. Consequentemente, o teu colega de consulado é um homem sem importância quase nenhuma. Isso pode desmoralizar-te bastante, porque não irá proporcionar-te nenhum confronto. Sei que estás morto por saber quem é, mas apenas direi que é venal, embora ache que já o saiba. O nome dele é Caio Flávio Fímbria.
Sila afirmou, desdenhoso:
- Oh, conheço-o. Um amador de sensações fortes, que ia procurar nos prostíbulos de Roma, que eu frequentava. É um homem muito desonesto - mostrou os dentes brancos, que seriam bem mais estranhos se o seu rosto fosse um pouco mais escuro. - Quero dizer com isto, Caio Mário: não te deixes enrolar por ele.
- Esquivar-me-ei a tempo - disse Mário com um ar sério. Depois, estendeu a mão a Sila, que logo lha apertou. - Isto é um juramento, Lúcio Cornélio, de que tu e eu derrotaremos os Germanos.
O exército de África e o seu comandante navegaram de útica para Putéolos em finais de Novembro, com boa disposição. O mar estava calmo para essa época do ano, e nem o Vento Norte, o Septentrio, nem o Vento Noroeste, Corus, perturbaram a travessia. Era exactamente o que Mário esperava; a sua carreira estava em via ascendente, a Fortuna estava ao seu comando, tal como os seus soldados. Além do mais, Marta, a profetisa síria previra uma viagem bastante suave. Ela seguia com Mário no seu navio almirante, um saco de ossos cacarejante para os marinheiros - supersticiosos -, que a olhavam de soslaio e a evitavam. O rei Gauda não gostou que ela partisse; e ela cuspiu no chão de mármore em frente do trono dele e ameaçou lançar um mau olhado sobre ele e sobre a sua casa. Depois disso, o rei não podia deixar de querer ver-se livre dela.
Em Putéolos, Mário e Sila foram recebidos por um dos novos questores do Tesouro, muito brusco e ansioso por saber o montante das pilhagens, mas cheio de deferência. Mário e Sila tiveram gosto em ser-lhe úteis, e como os seus livros de contas estavam em ordem, todos ficaram contentes. O exército montou um acampamento fora de Cápua, rodeado pelos novos recrutas que estavam a ser treinados pelos gladiadores alistados por Rutílio Rufo. Os centuriões de Mário ficaram a ajudar os gladiadores. O pior, no entanto, era o baixo número de novos recrutas, A Itália era um poço seco, e continuaria a sê-lo até o número suficiente de jovens da nova geração terem dezassete anos, para voltarem a aumentar as fileiras. Os próprios capte censi estavam depauperados, pelo menos entre os cidadãos romanos.
- E duvido muito que o Senado aprove que eu recrute entre os Italianos dos capite censi - afirmou Mário.
- O Senado não tem grande escolha - disse Sila.
- É verdade. Se eu os forçar a isso. Mas neste momento não me convêm a mim... nem a Roma... forçá-los.
Mário e Sila iam ficar separados até ao Dia de Ano Novo. Sila podia entrar na cidade, mas Mário, ainda na posse do seu imperium proconsular, perdia-o ao atravessar o limite sagrado da cidade. Sila dirigiu-se a casa, ao passo que Mário se dirigiu para a sua villa de Cumas.
O cabo Miseo formava a formidável parte norte do que era conhecido pela baía da Cratera, um enorme e seguro ancoradouro com portos de mar - Putéolos, Nápoles, Herculano, Estábias e Surrento. Rezava uma lenda mais antiga que a memória que a baía da Cratera fora um vulcão gigantesco que explodira e deixara o mar entrar. Não faltavam marcas dessa actividade vulcânica. Os Campos de Fogo incendiavam os céus nocturnos para lá de Putéolos, as chamas surgiam saídas do chão, as poças de lama ferviam e por todo o lado se viam incrustraçoes sulfúricas de um amarelo vivo e atroadoras colunas de fumo. Estas, tanto se desvaneciam como aumentavam; e ainda havia o Vesúvio - um simples pináculo de rocha com milhares de pés de altura, do qual se dizia ter sido um vulcão activo - embora ninguém soubesse quando isso acontecera, pois o Vesúvio dormira pacificamente durante toda a História registada.
Havia duas pequenas cidades, uma de cada lado da garganta estreita do cabo Miseno, perto de vários lagos misteriosos. Do lado do mar estava Cumas, e do lado da baía da Cratera Baias, e os lagos eram de dois tipos diferentes - a água de um deles era tão pura e tépida que era o local ideal para introduzir viveiros, o outro era quente e deitava um fumo de cor sulfúrica. De todas as estâncias marítimas, Cumas era a mais cara, ao passo que Baias era relativamente pouco desenvolvida. De facto, Baias parecia estar a tornar-se um lugar de viveiros e comércio de ostras, pois meia dúzia de entusiastas estavam a tentar encontrar uma forma de criar ostras, chefiados pelo aristocrata patrício empobrecido Lúcio Sérgio, que esperava renovar a fortuna da família produzindo e embarcando ostras de viveiro para os Epicuros e gastrónomos mais ricos de Roma.
A villa de Mário ficava no topo de um grande rochedo em Cumas; de lá viam-se as ilhas de Enária, Pandatária e Pôncia, três picos com declives e planícies a grande distância, como topos de montanha emergindo de um lençol de nevoeiro azul-claro. E aí, na villa de Mário, Júlia esperava o marido.
Haviam passado mais de dois anos e meio desde que eles se tinham visto; Júlia tinha agora quase vinte e quatro anos e Mário cinquenta e dois. Caio Mário sabia que ela ansiava ardentemente por vê-lo dado que viera de Roma até Cumas numa época do ano em que a praia era tempestuosa e fria, e o melhor lugar onde se podia estar era em Roma. A tradição impedia-a de viajar com o marido, especialmente se ele estivesse encarregado de qualquer assunto público; não podia ir juntar-se-lhe à província que ele governava, nem em qualquer das suas viagens por Itália, a menos que o marido a convidasse formalmente, e era considerado pouco educado fazer tais convites. No Verão, quando a mulher de um nobre romano ia para a praia, este ia ter com ela sempre que possível, mas faziam as viagens separadamente; e se ele quisesse passar uns dias na sua quinta ou numa das suas várias villas fora de Roma, raramente levava consigo a mulher.
Júlia não estava exactamente apreensiva; escrevera a Mário uma vez por semana durante a sua ausência e o marido respondera-lhe com a mesma regularidade, Nenhum deles se dedicava a mexericos, pelo que a sua correspondência era breve e apenas ocupada por assuntos familiares, mas era inabalavelmente afectuosa e meiga. Era evidente que não tinha nada a ver com a possibilidade de ele ter tido outras mulheres durante a ausência, e Júlia era demasiado bem educada e formada para pensar sequer em perguntar nem esperava que o marido lho comunicasse de livre vontade. Tais coisas faziam parte do reino dos homens e não tinham nada a ver com as mulheres. A esse respeito, tal como a mãe, Márcia, tivera o cuidado de lhe dizer, tivera a sorte de casar com um homem trinta anos mais velho do que ela; porque o seu desejo sexual - dissera Márcia - seria mais contido do que o de um homem mais novo, tal como o prazer em rever a mulher seria maior do que o de um homem mais novo.
Mas Júlia sentira terrivelmente a falta dele, não apenas porque o amava, mas também porque o marido lhe agradava. Com efeito, gostava dele, e isso tornava as separações mais difíceis, porque sentia tanto a falta do amigo como do marido e do amante.
Quando ele entrou na salinha dela sem avisar, a mulher levantou-se desajeitadamente, apercebeu-se de que não se aguentava nas pernas e voltou a tombar na cadeira. Como ele era alto! Como estava moreno, em forma e cheio de vivacidade! Não parecia ter envelhecido um dia - parecia mesmo mais novo do que ela se lembrava. Havia um sorriso largo e branco à sua espera - os dentes de Mário estavam tão bons como sempre - e as fabulosas sobrancelhas luxuriantes brilhavam com dois pontos de luz por trás, e as suas mãos grandes e bem feitas estavam estendidas à frente de Júlia. E ela era incapaz de se mexer! O que pensaria o marido?
Os pensamentos dele eram ternos, porque avançou para a mulher e a levantou com meiguice, sem fazer qualquer gesto para abraçá-la, limitando-se apenas a ficar parado a olhá-la com aquele sorriso largo. Depois, envolveu o rosto dela com as mãos e beijou-lhe ternamente as pestanas, as bochechas, os lábios. Os braços da mulher enrolaram-se à volta dele; inclinou-se para Mário e enterrou o rosto no seu ombro.
- Oh, Caio Mário, estou tão contente por te ver! - disse.
- Não estás mais contente do que eu por te ver - as suas mãos acariciaram as costas de Júlia, que as sentiu tremer,
A mulher levantou o rosto.
- Beija-me, Caio Mário! Dá-me um beijo decente!
E o encontro foi exactamente como tinham desejado, terno, repleto de amor e de paixão. E não apenas isso; havia o encanto do jovem Mário e a mágoa escondida pela morte do seu segundo filho.
Para grande surpresa do pai, o jovem Mário era magnífico: alto, bem constituído, de tez bastante clara e com um par de grandes olhos cinzentos que encontraram os do pai sem temor. Fora sujeito a pouca disciplina, desconfiou Mário, mas tudo isso iria mudar. O mariola em breve aprenderia que um pai não podia ser dominado e manipulado; um pai era alguém que se devia reverenciar e respeitar, tal como ele, Caio Mário, reverenciava e respeitava o seu querido pai.
Havia outras mágoas além da morte do segundo filho; Mário sabia que júlia perdera o pai, mas recebeu a notícia, dita com sensibilidade. Morrera na altura certa e só depois das eleições em que o seu filho mais velho se tornara cônsul pela segunda vez em circunstâncias tão surpreendentes. A sua morte fora rápida e clemente, quando estava ocupado a falar com uns amigos acerca das boas-vindas que o Arpino iria dar ao seu melhor cidadão.
Mário pousou o rosto no peito de Júlia e chorou; e ficou reconfortado. Mais tarde, foi capaz de ver que tudo ocorrera no momento certo. A sua mãe, Fulcínia, morrera sete anos antes, e o pai sentira-se muito sozinho; já que a Fortuna não lhe havia permitido tornar a ver o filho, a deusa permitira-lhe ao menos saber que o filho se distinguira extraordinariamente.
- Por isso, não há motivo para eu ir ao Arpino - disse Mário mais tarde a Júlia. - Ficaremos aqui, meu amor.
- Públio Rutílio deve estar a chegar. Disse que vinha depois de se estabelecerem os novos tribunos da plebe. Penso que receia que eles sejam problemáticos - alguns são muito inteligentes.
- Então, até que chegue Públio Rutílio, minha querida, terna e bela esposa, não vamos pensar em coisas exasperantes como a política,
A chegada de Sila foi muito diferente. As suas expectativas não contemplavam o prazer simples, manifesto e ardente de Mário. Ele não queria saber a razão disso, porque, tal como Mário, se abstivera de qualquer relação sexual durante os dois anos que passara na província de África por outros motivos que não o amor da esposa, mas abstivera-se igualmente.
A página totalmente nova que virara sobre a sua vida antiga nunca deveria ser maculada; haviam acabado as desonestidades, a deslealdade para com os seus superiores, as intrigas ou estratagemas para conquistar poder ou as fraquezas carnais, o que quer que pudesse diminuir a sua honra ou dignitas corneliana.
Como actor nato que era, dedicara-se em exclusivo ao novo papel que o mandato como questor de Mário lhe atribuíra, vivera-o interiormente e em todos os seus actos, olhares, palavras. Até aqui, não se cansara, porque o papel lhe oferecia um divertimento constante, enormes desafios e uma grande satisfação. Embora não pudesse mandar fazer a sua imagem de cera antes de se tornar cônsul ou ser suficientemente famoso ou distinto, poderia encomendar a Mágio do Velabro uma instalação dos seus troféus de guerra, a sua Coroa de Ouro e as phalerae e colares de metal; e podia vigiar a instalação do testemunho da sua valentia no átrium da casa. Os anos em África haviam sido uma vingança; apesar de nunca poder vir a tornar-se um dos grandes cavaleiros do mundo, tornara-se um dos seus soldados, e o troféu de Mágio, no átrium da casa, mostrá-lo-ia a Roma.
E no entanto... a sua vida passada não mudara e ele sabia-o. A ânsia de visitar Metróbio, o amor do grotesco - dos anões e travestis e velhas prostitutas e personagens escandalosas -, a aversão indomável pelas mulheres que usassem os seus poderes para dominá-lo, a capacidade de acabar com uma vida em caso de grande ameaça, a falta de vontade de aturar parvos, a ambição devoradora e desgastante... A temporada africana do actor terminara, mas ele não considerava a hipótese de um repouso prolongado; o futuro reservava-lhe muitos papéis. E contudo... Roma era o palco onde actuara o seu antigo eu; Roma significara tudo, desde a ruína à frustração e à descoberta. Por isso, voltava a Roma com prudência, consciente das profundas mudanças ocorridas em si mesmo mas sabendo ainda que muito pouco mudara. Um actor entre cenas não podia sentir-se muito à vontade.
E Julilla esperara por ele de um modo diferente do modo como Júlia esperara por Mário, certa de amar Sila muito mais do que júlia amava Mário. Para julilla, qualquer mostra de disciplina ou autocontrolo era a prova de um tipo de amor inferior; o verdadeiro amor devia dominar por completo, invadir, fazer estremecer o interior, afastar qualquer vestígio de pensamento racional, bramir tempestuosamente, arrastar tudo à sua frente, tal como um enorme elefante. Por isso, esperava-o com grande ardor, incapaz de se preocupar com outra coisa para além da garrafa de vinho, da roupa mudada várias vezes no mesmo dia, do cabelo com todos os tipos de penteados e que punha os servos doidos.
E lançou tudo isto a Sila, como um manto feito de telas de aranha tentaculares. Mal ele entrou no átrium, correu para o marido de braços estendidos e rosto transfigurado; antes que ele pudesse olhá-la ou sentir o que quer que fosse, já havia colado a sua boca à de Sila como uma sanguessuga, devoradora, contorcida, húmida, toda sangue e negrume. As suas mãos procuravam-lhe os órgãos genitais, fazia ruídos do prazer mais lascivo e começou mesmo a enroscar as pernas à roda dele naquele local tão público, sob os olhares de uma dúzia de escravos, a maioria dos quais o marido nem sequer conhecia.
Sila não conseguiu conter-se; as suas mãos afastaram os braços de Julilla, a cabeça tombou-lhe para trás, soltando os lábios dos dela.
- RecomPõe-te! - ordenou-lhe. - Não estamos sós!
Julilla ficou boquiaberta, como se ele lhe tivesse cuspido na cara mas comportou-se mais ponderadamente; tomou-lhe o braço muito desajeitadamente e caminhou com Sila para o peristilo, seguindo depois para a sua salinha, nos antigos aposentos de Nicópole.
- Aqui já é suficientemente privado? - perguntou, com uma pontinha de ironia.
Mas a disposição dele já estava arruinada antes deste acesso de escárnio; não queria que a boca ou as mãos dela penetrassem atabalhoadamente nos recantos mais escondidos do seu corpo.
- Mais tarde, mais tarde! - disse-lhe, enquanto se sentava numa cadeira.
Ela ficou imóvel, assustada e espantada, como se o seu mundo tivesse acabado. Mais bela do que nunca, mas de uma beleza frágil, desde os braços magros emergindo de um tecido da moda - um homem com as origens de Sila nunca perdia o gosto pela linha ou pelo estilo - até aos enormes olhos enfiados nas órbitas no meio de sombras azuladas.
- Não... não compreendo! - exclamou Julilla sem ousar mexer-se do lugar onde estava, olhando-o com menos avidez, como um rato olha o sorriso no focinho do gato, avaliando: és amigo ou inimigo?
-Julilla - começou ele com o máximo de paciência -, estou cansado. Ainda não tive tempo de pôr os pés no chão. Mal conheço o pessoal desta casa. E como não estou nada bêbedo, tenho todas as inibições de um homem sóbrio quanto ao grau de licenciosidade que um casal deve permitir-se em público.
- Mas eu amo-te! - protestou a mulher.
- Espero bem que sim. Tal como eu te amo a ti. Mesmo assim, há limites - respondeu o marido com dureza, querendo que tudo na sua esfera romana estivesse em ordem, desde a esposa até à casa ou à sua carreira no Fórum.
Quando pensara em Julilla durante os dois anos de ausência, não se lembrara de como era a mulher - mas apenas do que ela parecia e como era freneticamente e excitantemente apaixonada no leito. De facto, pensara nela tal como um homem pensa na amante e não na mulher. Agora, ao olhar para a rapariga com quem casara, decidiu que ela daria uma excelente amante - alguém que fosse visitar quando quisesse e com quem não tivesse de partilhar a casa nem de apresentar os amigos e associados.
Nunca devia ter casado com ela, pensou. Vi o meu futuro através dos olhos dela - foi a única coisa que me fez: serviu para transportar uma visão da Fortuna ao seu eleito. Eu não parei para pensar que haveria dezenas de mulheres nobres romanas disponíveis mais adequadas do que uma pobre criatura que tentou matar-se à fome pelo seu amor por mim. Isto, só por si, é um excesso. Não por me incomodarem os excessos - o que me incomoda são os excessos de que sou eu o objecto. Só me interessam aqueles de que sou o autor! Porque passei a vida metido com mulheres que querem sufocar-me?
O rosto de Julilla alterou-se. Os seus olhos afastaram-se das duas esferas que a observavam com um interesse cínico que não continham qualquer chama de amor, nem de prazer. Era isso! O que seria dela sem ele? Esse ao menos era fiel... Sem se preocupar com o que pensaria o marido, dirigiu-se a uma mesinha, encheu uma taça de vinho puro e bebeu-o de um único trago e só depois se lembrou dele e lhe perguntou:
- Queres vinho, Sila?
Ele estava de sobrolho carregado:
- Pousa isso imediatamente! Costumas beber vinho desse modo?
- Precisei de beber! - disse ela, irritada. - Estás a ser frio e deprimente.
Ele suspirou.
Concordo. Deixa estar, Julilla. Hei-de melhorar. Ou talvez tu é que devas melhorar... Sim, quero vinho! - Quase lhe arrancou das mãos a taça que ela lhe estendia em silêncio há algum tempo e bebeu, mas não de seguida. - Da última vez que tive notícias tuas... Não gostas muito de escrever, pois não?
As lágrimas corriam pelo rosto de Julilla, mas não soluçou; chorou silenciosamente.
- Detesto escrever cartas!
- Isso é bom de ver - disse ele, com secura.
- E depois? - perguntou a mulher, enchendo uma segunda taça e bebendo-a tão depressa como a primeira.
- Eu ia dizer que da última vez que tive notícias tuas pensei que tínhamos dois filhos, uma rapariga e um rapaz, não foi? Não por te teres dado ao trabalho de me falar do rapaz; soube-o pelo teu pai.
- Eu estava doente - disse ela, ainda a chorar.
- E não posso ver os meus filhos?
- Estão ali! - exclamou ela, apontando precipitadamente para o fundo do peristilo.
Sila deixou-a a limpar o rosto com um lenço; depois, voltou a encher a taça.
Viu-os através da janela aberta do quarto das crianças e eles não o viram. Ouvia-se uma voz de mulher em ruído de fundo, mas não a viu. Apenas viu as duas crianças que gerara. Uma rapariga, que devia ter agora dois anos e meio, debruçada sobre um rapaz de um ano e meio.
Ela era encantadora, era a boneca mais perfeita que Sila já vira. Uma cabeça coroada por caracóis de um louro arruivado, uma pele cor de leite e rosas com sardas nas bochechas rosadas e rechonchudas, e, sob umas sobrancelhas suaves de um louro arruivado, grandes olhos azuis, felizes e a sorrir, cheios de ternura pelo irmãozinho.
Ele era ainda mais encantador, este filho que nunca vira. já andava, o que era bom sinal, e estava totalmente nu - razão por que a irmã estava a arreliá-lo, e por isso devia ser habitual - e falava - respondia-lhe à altura, o patife. E estava a rir. Tinha o ar de um César - o rosto longo e atraente, o cabelo louro e espesso, os olhos azuis com a mesma vivacidade dos do falecido sogro de Sila.
E o coração adormecido de Lúcio Cornélio Sila não se limitou a acordar espreguiçando-se, deu um salto até ao mundo do sentimento tal como Arena deve ter saltado do penhasco de Zeus, totalmente desenvolvida e armada, tocando o clarim. À entrada da porta, ajoelhou-se e estendeu os braços para as crianças, de olhos a brilhar.
- Está aqui o tata - disse. - O tata já voltou.
Nem hesitaram; correram ao encontro do seu abraço e cobriram-lhe o rosto de beijos.
Públio Rutílio não foi o único magistrado a visitar Mário em Cumas; o herói ainda mal se instalara quando o mordomo lhe veio perguntar se desejaria receber o nobre Lúcio Marco Filipe. Curioso em relação ao que Filipe quereria - pois nunca o conhecera e conhecera a sua família da forma mais curiosa - Mário deu ordens para o visitante ser conduzido ao seu gabinete.
Filipe não prevaricou; foi direito ao motivo da sua visita. Era um sujeito de ar bastante mole - com demasiada gordura à volta da cintura, duplo-queixo - mas com toda a arrogância e autoconfiança do clã de Márcio, que dizia descender de Anco Márcio, o quarto rei de Roma e construtor da Ponte de Madeira.
- Não me conheces, Caio Mário - disse, com os seus olhos castanhos escuros fixando os de Mário -, por isso quis aproveitar a primeira oportunidade para rectificar a omissão... dado que és o cônsul sénior do próximo ano e eu sou um tribuno da plebe recentemente eleito.
- É simpático da tua parte vires rectificar essa omissão - disse Mário, sorrindo sem ironia.
- Penso que sim - disse Filipe suavemente; depois, encostou-se na cadeira e cruzou as pernas, afectação que Mário nunca tivera por achá-la pouco masculina.
- Que posso fazer por ti, Lúcio Márcio?
- Bastante - Filipe avançou com a cabeça para a frente e a sua expressão tornou-se de súbito menos suave, selvagem. - Encontro-me em dificuldades financeiras, Caio Mário, e pensei que me competia... digamos... oferecer-te os meus serviços como tribuno da plebe. Pensei, por exemplo, que poderás querer aprovar uma lei. Ou talvez queiras apenas saber que tens em Roma um apoiante leal entre os tribunos da plebe, enquanto estiveres fora, a manter o lobo germano à distância. Que tolos são os Germanos! Ainda não entenderam que Roma é um lobo, pois não? Mas estou certo de que hão-de compreendê-lo. Se existe alguém capaz de mostrar-lhes a natureza de Roma, esse alguém és tu.
A mente de Mário seguira este preâmbulo com uma rapidez singular. Também se encontrava encostado, mas sem as pernas cruzadas.
- Com efeito, meu caro Lúcio Márcio, há uma pequena lei que eu gostaria de ver aprovada na Assembleia da Plebe com o máximo de
discrição. Teria todo o gosto em ajudar-te a libertares-te das tuas dificuldades financeiras, se me puderes evitar dificuldades legislativas.
- Quanto mais generoso for o teu donativo para a minha causa, Caio Mário, maior discrição receberá a minha lei - disse Filipe com um sorriso largo.
- Esplêndido! Diz o teu preço - disse Mário.
- Céus! Tantafranqueza!
- Diz o teu preço - repetiu Mário.
- Meio milhão - afirmou Filipe.
- Sestércios - disse Mário.
- Denários - retorquiu Filipe.
- Oh, hei-de querer muito mais do que uma lei por meio milhão de denários - disse Mário.
- Por meio milhão de denários, Caio Mário, terás muito mais. Não apenas os meus serviços durante o meu tribunato, mas também depois. juro-to.
- Então, negócio fechado.
- Que fácil! - exclamou Filipe, descontraindo-se. - O que posso fazer por ti?
- Preciso de uma lei agrária - respondeu Mário.
- Não é nada fácil! - Filipe endireitou-se, espantado. - Mas para que diabo queres uma lei agrária? Eu preciso de dinheiro, Caio Mário, mas só se sobreviver para gastar o que restar das minhas dívidas! Não faz parte das minhas ambições ser apunhalado no Capitólio, porque não sou nenhum Tibério Graco!
- Esta lei é de natureza agrária mas não é contenciosa - disse Mário, apaziguador. - Garanto-te, Lúcio Márcio, que não sou nenhum reformador ou revolucionário, e não tenciono dar o precioso agerpublicus aos pobres de Roma! Vou alistá-los nas legiões... e fazê-los trabalhar pela terra que lhes der! Nenhum homem deve receber nada de graça, porque um homem não é um bicho.
-Mas que outra terra existe para distribuir, além do ager publicus? A menos que queiras que o Estado compre mais terras. Mas isso implica arranjar mais dinheiro - disse Filipe, ainda pouco à vontade.
- Não há motivo para inquietações - asseverou Mário. - A terra a que me refiro já se encontra na posse de Roma. Enquanto eu tiver o imperium proconsular sobre a África, cabe à minha província nomear a utilidade das terras conquistadas ao inimigo. Posso arrendá-la aos meus clientes ou vendê-las pela melhor oferta, ou dá-las a qualquer rei estrangeiro, Tudo o que necessito é que o Senado confirme as minhas disposições.
Mário mudou de posição, inclinou-se para a frente e prosseguiu: ”Mas não tenciono tornar-me vulnerável aos intentos de Metelo Numídico: prosseguirei a minha conduta como sempre, seguindo rigorosamente a lei tanto como a prática e a precedência gerais. Por isso, no Dia de Ano Novo, tenciono entregar o meu imperium proconsular da África sem dar a Metelo Numídico qualquer hipótese de morder.
- Todas as disposições principais do território que adquiri em nome do Senado e Povo de Roma já receberam a sanção senatorial. Mas há um assunto que não me interessa abordar. É um assunto tão delicado, que deverei cumprir o meu propósito em duas fases separadas. Uma no próximo ano e a outra no seguinte.
A tua tarefa, Lúcio Márcio, será dar seguimento à primeira fase, Resumindo, acredito que se Roma continuar a recrutar exércitos decentes, as legiões têm de tornar-se uma carreira atraente para um homem dos capite censi e não uma alternativa para a qual é só empurrado por zelo patriótico nas emergências, ou pelo tédio nas outras alturas. Se tiver os estímulos habituais: um soldo reduzido e uma pequena parte de qualquer pilhagem que render uma campanha, não será atraído. Mas se lhe garantirem um bom lote de terreno para se instalar ou vender no final da campanha, sentir-se-á muito mais tentado. No entanto, não podem ser terras na Itália; nem vejo por que razão haveriam de ser em Itália.”
- Parece-me que começo a entender o que queres, Caio Mário - disse Filipe, mordendo o lábio inferior. - É interessante.
- Também me parece. Reservei as ilhas da Sirte Menor de África para fixar os meus soldados dos capite censi no fim da campanha... o que, graças aos Germanos, não acontecerá de imediato. Desta vez, aproveitarei para garantir a aprovação do Povo da atribuição de terras na Meninge e em Cercina aos meus soldados. Mas tenho muitos inimigos que tentarão deter-me, nem que seja por as suas carreiras serem feitas à custa desse propósito - afirmou Mário.
Filipe assentiu com a cabeça, como um sábio.
- É bem verdade que tens inimigos, Caio Mário.
Sem ter a certeza se este comentário continha ou não algum sarcasmo, Mário lançou a Filipe um olhar fulminante e depois continuou:
- A tua tarefa, Lúcio Márcio, é apresentar na Assembleia da Plebe uma lei que reserve as ilhas da Sirte Menor Africana no agerpublicus sem possibilidade de aluguer ou subdivisão a não ser através de plebiscitos posteriores. Não mencionarás os soldados nem os capite censi. Tudo o que tens de fazer é... e de um modo muito fortuito e sereno... garantir que essas ilhas sejam postas de parte, bem guardadas de quaisquer mãos ambiciosas. É vital que os meus inimigos não suspeitem que estou por detrás da tua pequena lei.
- Penso que o conseguirei - disse Filipe, mais animado.
- Óptimo. No dia em que a lei entrar em efeito, mandarei os meus banqueiros depositar meio milhão de denários em teu nome, de tal forma que a alteração da tua fortuna não possa ser relacionada com a minha, disse Mário.
Filipe levantou-se.
- Acabaste de comprar um tribuno da plebe, Caio Mário - afirmou, estendendo a mão. - E continuarei a ser o teu homem ao longo da tua carreira política.
- Alegra-me ouvi-lo - disse Mário, apertando-lhe a mão. Mas assim que Filipe saiu, mandou vir água quente e lavou as mãos.
- Lá por fazer uso do suborno, não quer dizer que goste dos homens que compro - disse Caio Mário a Públio Rutílio Rufo quando este chegou a Cumas, cinco dias depois.
Rutílio Rufo fez uma careta de resignação.
- Ele cumpriu a palavra - disse Rutílio. - Apresentou a tua modesta lei agrária como se tivesse sido ideia dele, e fê-lo de uma forma tão lógica que ninguém se deu ao trabalho de discuti-la. É um tipo sagaz, aquele Filipe. Ficou com os louros pelo patriotismo de ter dito na Assembleia que uma parte insignificante das terras da grande África tinha de ser salva... ”depositada”, foi o termo que usou!... para o futuro do povo de Roma. Havia mesmo alguns dos teus inimigos a dizer que ele só estava a fazer isso para te irritar. A lei foi aprovada sem qualquer oposição.
- óptimo! - disse Mário, com um suspiro de alívio. - Durante algum tempo, poderei ter a certeza de que essas terras ficarão à minha espera, intactas. Preciso de mais algum tempo para provar o valor dos legionários dos capite censi, antes de me atrever a dar-lhes esses terrenos. Não te parece? O antigo soldado romano não precisava de ser subornado com terras; por que há-de o soldado moderno receber um tratamento preferencial? - Encolheu os ombros. - De qualquer modo, basta de falar neste assunto. O que mais se passou?
- Fiz aprovar uma lei que autoriza os cônsules a indigitar tribunos suplementares sem que haja eleição, sempre que o Estado se encontrar numa situação de emergência - informou Rutílio.
- Tens sempre em vista o futuro! E escolheste alguns tribunos dos soldados a coberto dessa lei?
-Vinte e um. O mesmo número dos que morreram em Arausio.
- Incluindo...
- O jovem Caio Júlio César.
- Isso é que é uma boa notícia! Na maioria dos casos, os familiares não as proporcionam. Lembras-te do Caio Lúsio, casado com GraÈídia, a irmã do meu cunhado?
- Vagamente. O da Numância?
- Esse mesmo. Um crápula dos piores, mas muito rico. Ele e Gratídia tiveram um filho herdeiro, que tem agora vinte e cinco anos. Pedem-me que o leve comigo para combater os Germanos. Nunca o vi mas tive de concordar, senão o meu irmão Marco nunca mais deixava de ouvi-los falar nisso.
- Por falar na tua numerosa família, ficarás contente por saber que o jovem Quinto Sertório está em Nérsia, em casa da mãe, e em forma para ir contigo para a Gália.
- Excelente! Cota também foi para a Gália este ano. Rutílio Rufo explodiu.
- Por favor, Caio Mário! Um ex-pretor e cinco membros de segunda linha para formar uma delegação encarregada de lidar com tipos como o Cepião? Mas eu conhecia o meu Cota, ao passo que o Escauro Dalmático e o Suíno não o conheciam. Não duvidei que o que houvesse a salvar, seria salvo por ele.
- E Cepião, agora que voltou?
- Oh, está quase a afundar-se, mas tem tentado tudo para conseguir aguentar-se. Com o tempo, é provável que se canse até só se lhe verem as narinas. Há muita oposição pública contra ele, e por isso os seus amigos do Senado não podem ajudá-lo tanto como gostariam.
- Ainda bem! Devia ser lançado para o Tuliano e ficar lá até morrer à fome - disse Mário, num tom ameaçador,
- Só depois de ter cortado lenha para oitenta mil piras fúnebres comentou Rutílio, de dentes à mostra.
- E os Marsos, já acalmaram.
- Referes-te ao processo pelos danos causados? A Assembleia retirou-O dos tribunais, como se esperava, mas Roma não ganhou mais amigos por isso. O comandante da legião dos Marsos, Quinto Popédio Silo, veio a Roma depor, e aposto que não sabes quem depôs a favor dele - disse Rutílio Rufo. Mário sorriu.
- Tens razão; não sei. Quem?
- Nada mais nada menos que o meu sobrinho, o jovem Marco Lívio Druso. Parece que se conheceram depois do combate... parece que a legião de Druso estava ao lado da de Silo. Mas Cepião ficou chocado quando o meu sobrinho, que por sinal é genro dele, se ofereceu para depor num caso que dependia directamente da conduta de Cepião.
- É um cachorro de dentes aguçados - disse Mário, lembrando-se do jovem Druso no tribunal.
- Ele mudou desde Arausio - disse Rutílio Rufo. - Diria mesmo que cresceu.
- Então, talvez Roma tenha um bom homem para o futuro - afirmou Mário.
- Parece que sim. Mas noto uma mudança evidente em todos os sobreviventes de Arausio - comentou Rutílio Rufo com tristeza. -Ainda não foi possível encontrar todos os soldados que fugiram atravessando o Ródano a nado. Duvido que alguma vez o façam.
- Hei-de encontrá-los - ameaçou Mário. - Eles pertencem aos capite censi, o que significa que estão à minha responsabilidade.
- É essa a ideia de Cepião - disse Rutílio Rufo. - Está a tentar pôr as culpas em Cneu Málio e na ralé dos capite censi, como chama a esse exército. Os Marsos e os Samnitas não estão contentes por serem considerados dos capite censí, e o meu jovem sobrinho Marco Lívio veio a público e jurou que os capite censi nada têm a ver com isso. Ele é bom orador e ainda melhor como homem de espectáculo.
- E como pode o genro de Cepião criticar o sogro? - perguntou Mário, cheio de curiosidade. - Parece-me que mesmo os piores opositores de Cepião se horrorizariam com essa falta de lealdade familiar.
- Não tece críticas a Cepião... pelo menos directamente. É muito simples. Não diz nada contra Cepião; limita-se a refutar a acusação de Cepião, segundo a qual a derrota se ficou a dever ao exército de capite censi de Cneu Málio. Mas reparo que o jovem Marco Lívio e o jovem Cepião não estão tão íntimos como dantes, o que é bastante difícil, porque Cepião Júnior é casado com a minha sobrinha, irmã de Druso - disse Rutílio Rufo.
- O que esperavas, se todos vocês, malditos nobres, insistem em casar com os primos uns dos outros em vez de deixarem renovar o vosso sangue?
- perguntou Mário, encolhendo os ombros. - Mas acabemos com este assunto! Há mais novidades?
- Só acerca dos Marsos, ou antes, dos Aliados Italianos. A oposição contra nós tem alimentado, Caio Mário, como sabes, há meses que ando a tentar recrutar soldados. Mas os Aliados Italianos recusaram-se a colaborar. Quando lhes pedi homens dos capte censi italianos, já que eles insistem que não têm proprietários em idade para se alistarem, disseram que também não tinham homens dos capite censi!
- Eles são povos rurais; é possível que assim seja - disse Mário, - Absurdo! Entre homens sem terra, pastores e trabalhadores migrantes, qual é a comunidade rural em que não existam em grande número Mas os Aliados Italianos insistem que não há homens dos caPite censi italianos! Porquê? Perguntei-lhes por carta. Porque, como me disseram, quaisquer homens italianos que pudessem ter preenchido essa categoria foram todos feitos escravos pelos Romanos, na sua maioria sujeitos a pagar a sua liberdade. Oh, é muito duro! - disse Rutílio Rufo gravemente. Todos os povos italianos escreveram ao Senado em protesto contra o modo como Roma os trata... E não só Roma como também os seus cidadãos que ocupam cargos de poder. Os Marsos, os Peligni, os Picentinos, os úmbrios, os Samnitas, os Ápulos, os Lucanos, os Etrúrios, os Marrucinos e os Vestinos, Caio Mário!
- Já sabíamos que esses problemas estavam a fermentar há algum tempo - disse Mário. - A minha esperança é que a ameaça comum dos Germanos sirva para reunir a nossa península tão dispersa.
- Não me parece que venha a fazê-lo - disse Rutílio Rufo. - Todos esses povos dizem que Roma se habituou a manter os seus proprietários tanto tempo longe de casa que as suas quintas e negócios faliram, e todos os homens que tiveram a sorte de sobreviver encontraram no regresso dívidas aos senhorios romanos ou comerciantes locais com a cidadania romana. Assim, segundo dizem, Roma já tem na sua posse os seus homens dos capite censi, pois os escravos multiplicam-se duma ponta à outra do mar Central! Em particular, segundo eles, nos lugares onde Roma precisa de escravos com conhecimentos de agricultura: em África, na Sardenha e na Sicília.
Mário também começou a ficar pouco à vontade.
- Não fazia ideia de que as coisas tivessem chegado a esse ponto, disse. - Eu próprio possuo bastantes terras na Etrúria, incluindo muitas quintas confiscadas por causa de dívidas. Mas o que mais se pode fazer?
Se eu não tivesse comprado as quintas, fá-lo-iam o Suíno ou o irmão, Dalmático! Tenho propriedades na Etrúria que eram da família da minha mãe, Fulcínia, razão pela qual estou a concentrar-me lá. Mas não posso negar que sou um grande proprietário.
- E aposto que nem sabes o que os teus agentes fizeram aos homens cujas terras confiscaste - afirmou Rutílio.
- Tens razão, não sei - disse Mário, sentindo-se desconfortável. - Eu não fazia ideia que tínhamos assim tantos escravos italianos. É como escravizar romanos!
- Nós fazemos isso quando os romanos se endividam.
- Cada vez menos, Públio Rutílio!
- É verdade.
- Tratarei da queixa dos Italianos logo que tomar posse - asseverou Caio Mário, decidido.
A insatisfação dos Italianos pairou no ar obscuramente durante esse Dezembro, tendo por núcleo as tribos das terras altas centrais por detrás dos vales Tibre e do Liris, comandadas pelos Samnitas. Mas também havia outros burburinhos, relacionados com os privilégios da nobreza romana e gerados por outros nobres romanos.
Os novos tribunos da plebe estiveram em grande actividade. Sofrendo por o seu pai ser um dos generais incompetentes e odiados naquela altura, Lúcio Cássio Longino elaborou uma lei surpreendente para discussão numa reunião contio da Assembleia da Plebe. Todos os homens a quem a Assembleia havia retirado o imperium, deviam perder também as suas posições no Senado. Isso era declarar guerra contra Cepião com uma vingança! Porque toda a gente achava que Cepião seria absolvido, se e quando fosse julgado por traição, no sistema vigente. Graças ao seu poder e riqueza, tinha na mão demasiados cavaleiros na Primeira e Segunda Classes, pelo que seria ilibado. Mas a lei da Assembleia da Plebe, que lhe retirava o lugar no Senado, era diferente. E por mais que Metelo Numídico e os seus colegas tentassem contrariá-lo, o decreto acabou por vir a ser lei. Lúcio Cássio não partilharia o ódio do seu pai.
E então, rebentou a tempestade religiosa, enterrando com a sua fúria todas as outras questões; como ela tinha o seu lado cómico, era inevitável - os Romanos adoravam o ridículo. Ao tombar morto nos rostros durante o motim relacionado com a candidatura de Caio Mário in absentia, Cneu Domício Aenobarbo deixara atrás de si uma coisa por resolver.
Ele era um pontifex, um sacerdote de Roma, e a sua morte deixara um vazio no Colégio de Pontífices. Nessa altura, o Pontifex Maximus era o envelhecido Lúcio Cecílio Metelo Dalmático, e entre os sacerdotes encontravam-se Marco Emílio Escauro Princeps Senatus, Públio Licínio Crasso e Cipião Nasica.
Os novos sacerdotes eram cooptados pelos restantes membros do colégio; um plebeu era substituído por outro plebeu e um patrício era substituído por outro patrício; os colégios de sacerdotes e de átigures eram geralmente constituídos por igual número de plebeus e patrícios. De acordo com a tradição, o novo sacerdote devia pertencer à mesma família do falecido, para que estes cargos passassem de pai para filho, ou de tio para sobrinho, ou de primo para primo. Tinha de ser preservada a honra e dignitas da família. E Cneu Domíci o Aenobarbo Júnior, o actual chefe da família, esperava agora ser chamado a aceitar o lugar do pai.
No entanto, havia um problema chamado Escauro. Quando o Colégio de Pontífices reuniu para cooptar o seu novo membro, Escauro anunciou que não era a favor de conceder ao filho do falecido Aenobarbo o lugar do pai. Mas não disse em voz alta uma das razões, apesar de estar subjacente a tudo o que ele dizia e aparecia de forma igualmente evidente para os treze sacerdotes que o ouviam; nomeadamente, que Cneu Domicio Aenobarbo fora um homem casmurro, crítico, irascível e desagradável, e criara um filho que era ainda pior. Nenhum nobre romano se importava com as idiossincrasias dos seus semelhantes e todos estavam prontos para lhes suportar as bizarrias, desde que pudessem escapar-lhes quando quisessem. Mas os sacerdotes eram muito unidos e reuniam-se no espaço reduzido da Regia, o pequeno gabinete do Pontifex Maximus - e o jovem Aenobarbo tinha apenas trinta e três anos. Para aqueles que, como Escauro, haviam suportado o seu pai durante muitos anos, a ideia de ter de suportar o filho não era de modo nenhum atraente. E, por sorte, Escauro tinha duas razões válidas para apresentar aos colegas em relação à recusa do lugar ao jovem Aenobarbo.
A primeira era que quando Marco Lívio Druso, o Censor, morrera, o cargo não passara para o filho, com dezanove anos na altura, pois tinha sido considerado demasiado novo. A segunda era que o jovem Marco Lívio Druso mostrava tendências alarmantes de abandono da sua herança de conservadorismo; Escauro sentia que o facto de receber o cargo do pai iria levá-lo ao encontro dos seus antepassados. O seu pai fora um inimigo acerrado de Caio Graco, mas o comportamento do jovem Druso no Fórum Romano aproximava-se mais do de Caio Graco! Escauro defendeu que havia circunstâncias atenuantes, em particular o choque de Arausio. Por isso, que solução melhor havia senão cooptar o jovem Druso para o colégio sacerdotal do seu pai?
Os outros treze sacerdotes, incluindo Dalmático Pontifex Maximus, acharam que esta era a melhor solução para o dilema de Aenobarbo, em especial porque o velho Aenobarbo assegurara um lugar de augure para o filho mais novo, Lúcio, pouco antes de morrer. Assim, a família não podia argumentar que se vira privada de todas as suas prerrogativas religiosas.
Mas quando Cneu Domício Aenobarbo ouviu dizer que o seu lugar tão esperado ia para Marco Lívio Druso, não ficou contente. Ficou Mesmo ultrajado. Na reunião do Senado que se seguiu, anunciou que ia processar Marco Emílio Escauro Princeps Senatus por sacrilégio. O pretexto era a adopção de um patrício por um plebeu, e este assunto complicado requeria a punição do Colégio de Pontífices, bem como dos Lictores das Trinta Cürias; o jovem Aenobarbo alegou que Escauro não havia cumprido as formalidades como devia. Consciente do verdadeiro motivo que se ocultava por detrás deste ataque súbito de minúcia sacerdotal, a Assembleia não ficou impressionada. Nem o próprio Escauro, que apenas se levantou e olhou com arrogância para Aenobarbo, vermelho de raiva.
- Cneu Domício, tu, que nem és um pontifex acusas-me a mim, Marco Emílio, pontifex e Chefe da Assembleia, de sacrilégio? - perguntou Escauro num tom cortante. - Vai para a Assembleia da Plebe brincar com os teus novos brinquedos e aparece quando cresceres!
E o assunto parecia arrumado. Aenobarbo abandonou a sessão no meio de gargalhadas e as pessoas gritavam:
- Não sabes perder!
Mas Aenobarbo ainda não estava vencido. Escauro dissera-lhe que fosse para a Assembleia da Plebe brincar com os seus novos brinquedos, e era mesmo isso o que iria fazer! Dois dias depois, já havia elaborado uma nova lei, e antes do fim do ano, submetera-a à aprovação e votação: segundo a lex Domitia de sacerdotiis, no futuro, os novos sacerdotes e augures não seriam cooptados pelos outros membros; passavam a ser eleitos por uma assembleia tribal especial e qualquer um poderia candidatar-se.
- Que querido! - disse Metelo Dalmático Pontifex Maximus a Escauro.
- É mesmo querido!
Mas Escauro só se ria.
- Lúcio Cecílio, admite que ele nos enrolou muito bem! - afirmou, enxugando os olhos. - Devo dizer que gosto mais dele por isso.
- Quando morrer o próximo, ele candidata-se às eleições - disse Dalmático Pontifex Maximus com tristeza.
- E por que não? Mereceu-o - retorquiu Escauro.
- E se for eu? Ele viria a ser Pontifex Maximus!
- Que maravilhosa elevação isso não nos traria! - comentou Escauro, obstinado.
- Ouvi dizer que agora anda atrás do Marco Júnio Silano - disse Metelo Numídico.
- Sim, acusa-o de ter iniciado ilegalmente uma guerra contra os Germanos na Gália Transalpina - confirmou Dalmático Pontifex Maximus.
- Pode fazer com que Silano seja julgado pela Assembleia da Plebe,
onde uma acusação de traição significa ir para as centúrias - afirmou Escauro, e depois assobiou. - Ele é bom, sabes? Começo a lamentar não o termos cooptado para ocupar o lugar do pai.
- Que disparate! Não lamentas nada! - exclamou Metelo Numídico.
- Estás a divertir-te imenso com este enorme fiasco.
- E por que não havia de divertir-me? - perguntou Escauro, fingindo-se surpreendido. - Estamos em Roma, Pais Conscritos! E Roma é como é! Todos os nobres estão empenhados numa competição saudável!
- Só disparates! - gritou Metelo Numídico, ainda irritado por o consulado de Caio Mário estar próximo. - A Roma tal como a conhecemos está a morrer! Há homens a serem eleitos cônsules pela segunda vez em três anos e que nem se apresentaram em Roma de toga cândida, os capite censi entraram nas legiões, os sacerdotes e augures são eleitos, as decisões do Senado sobre quem irá governar o quê, são anuladas pelo Povo, o Estado paga fortunas pelos exércitos de Roma, há Homens Novos e recém-chegados a governar!
DURANTE O CONSULADO DE CAIO MÁRIO E CAIO FLÁVIO FIMBRIA
Sila fora encarregado de organizar o desfile triunfal de Mário; e seguia escrupulosamente as ordens que recebia, apesar das apreensões que tinha quanto ao resultado das ordens de Mário.
- Quero que tudo fique concluído o mais breve possível - dissera-lhe Mário em Putéolos, logo que haviam chegado de África. - Estaremos no Capitólio o mais tardar à sexta hora do dia e iniciaremos depois a cerimónia de posse e a sessão do Senado. Apressa-te, pois decidi que o banquete terá de ser memorável. Afinal de contas, é o meu segundo banquete; sou um general triunfante e o novo cônsul sénior. Por isso, só quero coisas de primeira, Lúcio Cornélio! Nada de ovos demasiado cozidos nem queijos de má qualidade, ouviste? Quero comida, bailarinas, cantores e músicos dos melhores e mais caros, baixelas de ouro e leitos de púrpura.
Sila ouvira tudo isto desmoralizado. Mário nunca deixaria de ser um provinciano com ambições sociais; o desfile e as cerimônias consulares feitas à pressa, seguidas de um banquete de reis: que mau gosto! Especialmente aquele banquete ostentatório e banal!
No entanto, Sila cumpriu à letra as indicações. Havia carroças transportando tanques impermeáveis de barro - encerados por dentro - para transportar as travessas de ostras de Baias, caranguejos da Campânia e camarões da baía da Cratera, e outras carroças semelhantes, cheias de enguias, lúcios e percas do Tibre; uma equipa de pescadores experientes de siluros encontravam-se perto das saídas principais dos esgotos de Roma; engordados com uma dieta de bolos de mel ensopados em vinho, os capões e patos, leitões e cabritos, faisões e crias de veados eram enviados para os fornecedores os assarem e estufarem, arranjarem e entremearem; Mário e Sila trouxeram de África uma grande remessa de caracóis gigantes com os cumprimentos de Públio Vagiennius, que pedia um relato sobre as reacções dos gastrónomos romanos.
O desfile triunfal de Mário decorreu com eficácia e rapidez; Sila pensou que quando fizesse os festejos do seu triunfo, ele seria tão grande que duraria três dias a percorrer a antiga via, tal como Emílio Paulo. A duração e o esplendor de um triunfo eram a marca do aristocrata, desejoso de fazer o povo participar da festa; ao passo que a duração e o esplendor do banquete no templo de Júpiter Optimus Maximus que se lhe seguia constituíam a marca do provinciano, desejoso de impressionar meia dúzia de privilegiados.
Apesar disso, Sila conseguiu tornar memorável a parada triunfal. Havia carros alegóricos exibindo todos os feitos importantes das campanhas de África, desde os caracóis do Mulucha à espantosa Marta, a profetisa; ela era a estrela dos quadros alegóricos, reclinada num leito de ouro e púrpura montado num estrado alto construido como a sala do trono do príncipe Gauda, na Velha Cartago, com um actor no papel de Caio Mário e outro no de Gauda, de sapatos de ponta revirada. Sila fez transportar todas as condecorações de Mário numa carroça coberta sumptuosamente ornamentada. Havia carroças cheias do produto das pilhagens, de troféus que consistiam em armaduras do inimigo e de mostras importantes - dispostas de forma a que o público pudesse admirá-las individualmente - e carroças de leões, macacos e símios estranhos enjaulados e duas dúzias de elefantes desfilavam abanando as suas enormes orelhas. As seis legiões do exército africano marchavam sem lanças, punhais ou espadas, transportando em vez deles bordões de madeira adornados com os louros da vitória.
- Vamos a marchar, seus cunni! - gritou Mário aos soldados na extensão de relva coçada da Villa Pública quando a parada estava pronta para avançar. - Tenho que estar no Capitólio à sexta hora, Pelo que não poderei estar de olho em vocês. Mas não terão desculpa se me desonrarem, ouviram, seus fellatores?
Todos os soldados adoravam que o general lhes dirigisse obscenidades; mas era um facto que adoravam que ele lhes falasse, de toda e qualquer maneira.
Jugurta também marchava, nas suas vestes reais de púrpura, trazendo pela última vez na cabeça a fita branca enfeitada com borlas conhecida por diadema, todos os seus colares de ouro e anéis e braceletes reluzindo ao sol da manhã, pois aquele era um belo dia de Inverno, sem muito frio nem vento. Acompanhavam-no os dois filhos, também vestidos de púrpura.
Quando Mário trouxe Jugurta a Roma, o númida nem podia acreditar, pois quando ele e Bomílcar haviam deixado a cidade, tivera a certeza de que nunca mais voltaria a vê-la. A cidade de terracota de cores vivas - colunas pintadas, paredes fulgurantes, estátuas dispersas por toda a parte, tão vivas que quem as visse esperava que começassem a discursar, a lutar, a galopar ou a chorar. A branca África não tinha qualquer semelhança com Roma, onde já não se construíam muitas casas de terra, e as suas paredes já não eram caiadas mas pintadas. As colinas e penhascos, os jardins, os ciprestes em forma de lápis e os pinheiros em forma de sombrinhas, os altos templos sobre os seus pódios com vitórias aladas conduzindo quadrigas no topo dos frontões, a cicatriz do grande incêndio do Viminal e do Esquilino, que começava a ganhar erva. Roma, a cidade que estava à venda. E que tragédia fora o não ter podido arranjar dinheiro para comprá-la! Como as coisas seriam diferentes se o tivesse feito.
Quinto Cecílio Metelo Numídico alojara-o, hóspede de honra que no entanto não podia pôr os pés fora de casa. Estava escuro quando o levaram para lá, e aí ficou durante meses, expulso da loggia que dava para o Fórum Romano e para o Capitólio, limitado ao jardim do peristilo, como um leão numa jaula. O seu orgulho não o deixava desanimar; todos os dias, corria no mesmo lugar, tocava com os dedos das mãos nos pés, elevava-se até o queixo tocar no ramo que lhe servia de barra. Queria que aqueles romanos vulgares o admirassem quando desfilasse na parada triunfal de Caio Mário - que o tomassem por um opositor formidável e não por qualquer potentado oriental barrigudo.
Com Metelo Numídico, mostrara-se bastante distante, recusando-se a alimentar o ego de Roma - facto que sentiu ter desiludido muito o seu anfitrião. Numídico esperara recolher provas de que Mário abusara do seu lugar de procônsul. Jugurta sentiu um prazer secreto em desiludi-lo, pois sabia qual fora o romano que temera e pelo qual se alegrava de ter sido vencido. Numídico era um nobre importante, mas como homem e como soldado nem chegava aos calcanhares de Caio Mário. Era evidente para Metelo Numídico, Caio Mário era pouco mais do que um bastardo; por isso, Jugurta, que sabia tudo acerca da bastardia, permanecia ligado a Caio Mário numa singular e implacável camaradagem.
Uma noite antes de Caio Mário entrar em Roma em triunfo como cônsul pela segunda vez, Metelo Numídico e o silencioso filho deram um jantar em honra de Jugurta e dos seus dois filhos. Só havia mais um convidado, Públio Rutílio Rufo, por quem Jugurta perguntara. Só faltava Caio Mário, do grupo que havia lutado na Numância ao comando de Cipião Emiliano.
Foi uma noite muito estranha. Metelo Numídico deu um banquete sumptuoso - pois, como ele dizia, não tinha intenção de comer à custa de Caio Mário após a sessão da cerimónia inaugural do Senado no templo de Júpiter Optimus Maximus.
- Mas quase não há caranguejos ou ostras à venda, nem caracóis nem nada de especial - disse Numídico quando se preparavam para jantar. Mário limpou completamente os mercados.
- Atribuis-lhe as culpas disso? - perguntou Jugurta, já que Rutílio Rufo não dissera nada.
- Atribuo a Caio Mário todas as culpas - disse Numídico.
- Não devias. Se ele tivesse surgido das fileiras da alta nobreza, Quinto Cecílio, teria sido muito bom. Mas isso não aconteceu. Foi Roma que fez surgir Caio Mário. Não me refiro à cidade nem à nação mas a Roma, a deusa imortal, o génio da cidade, o seu espírito motor. Quando é necessário que surja um homem, ele aparece - disse Jugurta da Numídia.
- Há alguns de nós, de boas origens, que poderiam ter feito o que Caio Mário fez - disse Numídico teimosamente. - Com efeito, devia ter sido eu. Caio Mário roubou-me o meu imperium e amanhã, roubar-me-á os meus galardões - o ténue olhar de incredulidade no rosto de Jugurta incomodou-o, e ele acrescentou com uma certa maldade. - Por exemplo, não foi exactamente Caio Mário que te capturou, rei. O teu captor, Lúcio Cornélio Sila, é de boas origens. Pode dizer-se... e é um silogismo válido!... que foi Lúcio Cornélio Sila e não Caio Mário que pôs termo à guerra Numídico inspirou ao ter de sacrificar as suas prerrogativas de proeminência no altar aristocrático de Lúcio Cornélio Sila. - De facto, Lúcio Cornélio é como se fosse um Caio Mário Romano.
- Nem pensar! - exclamou Jugurta com ar de troça, sabendo que Rutílio Rufo o observava fixamente. - Ele é muito diferente, Caio Mário é mais directo, se é que me entendes.
- Entendo-te perfeitamente - disse Rutílio Rufo, e sorriu deliciado. Jugurta sorriu para Rutílio Rufo com o sorriso da Numância.
- Caio Mário é uma aberração - disse ele -, um fruto perfeito de Uma árvore abandonada e vulgar nascida fora do pomar. Homens como ele não podem ser detidos ou desviados, meu caro Quinto Cecílio. Têm o coração, a coragem, os miolos e o laivo de imortalidade necessários para saltarem todos os obstáculos que encontrarem no caminho. Os deuses amam-nos! É neles que os deuses depositam todos os dons da Fortuna. Por isso, Caio Mário segue a direito, e mesmo quando se vê obrigado a caminhar de través, segue um caminho direito.
- Tens toda a razão! - concordou Rutílio Rufo.
- Lú-Lú-Lúcio Cor-Cor-Cornélio é me-me-me-melhor! - exclamou o jovem Metelo Bacorinho, furioso.
- Não! - disse Jugurta, abanando a cabeça enfaticamente. - O nosso amigo Lúcio Cornélio tem miolos ... e coragem ... e talvez coração ... mas não me parece que possua o laivo de imortalidade. Os caminhos tortos parecem-lhe os mais direitos. Um homem que é mais feliz montado numa mula não merece um elefante de guerra. Ele é corajoso como um touro! Numa batalha, não há ninguém mais rápido na condução do ataque, ou a formar uma coluna de auxílio, ou a incitar ao combate uma centúria em fuga. Mas Lúcio Cornélio Sila não liga a Marte. Ao passo que Caio Mário não ouve senão Marte. A propósito, ”Mário” é uma distorção latina de ”Marte”? Do filho de Marte? Não sabem? Nem me parece que te interesse saber, Quinto Cecílio! É pena. O latim é uma língua com um som extremamente poderoso. Muito viva mas ressoante.
- Conta-me mais coisas acerca de Lúcio Cornélio Sila - disse Rutílio Rufo, escolhendo um pedaço de pão claro e o ovo de aspecto mais simples. Jugurta devorava caracóis; não os comia desde o início do seu exílio.
- O que há a contar? É um Produto da sua classe. Tudo o que faz,
fá-lo bem. Pelo menos suficientemente bem para nove pessoas em dez não saberem se é genuíno naquilo que faz ou apenas um homem afectado mas muito inteligente e bem treinado. Mas durante o tempo que passei com ele, nunca fiz qualquer ideia do que seria a sua tendência natural ou a sua esfera. É claro que há-de ganhar guerras e chefiar governos, disso não duvido, mas nunca com o lado espiritual da sua mente. - O molho de alho e azeite escorria pelo queixo do convidado de honra; cessou de falar enquanto um servo lhe limpava a cara, incluindo a barba; depois, vomitou e prosseguiu. - Há-de sempre preferir as conveniências, porque lhe falta o poder que só possuem os que têm em si esse laivo de imortalidade. Se Lúcio Cornélio for confrontado com duas alternativas, escolhe aquela que lhe parecer levá-lo mais facilmente aonde ele quiser. Não é tão completo como Caio Mário; nem tão clarividente, julgo eu.
- Co-co-co-como é que sa-sa-sabes tan-tan-tanto acerca de Lú-LúLú-Lúcio Cornélio? - perguntou Metelo Bacorinho.
- Uma vez, fiz com ele um notável trajecto a cavalo - disse Jugurta, com ar pensativo, usando um palito. - E fizemos Juntos uma viagem ao longo da costa africana, de Icosium a útica. Vimo-nos muito - e o modo como disse isto fez os outros pensar nos múltiplos sentidos inerentes, mas ninguém perguntou nada.
Então, vieram as saladas, e a seguir os assados. Metelo Numídico e os convidados prosseguiram com prazer, exceptuando os dois príncipes lampsas e Oxyntas.
- Eles querem morrer comigo - explicou Jugurta a Rutílio Rufo, em voz baixa.
- Ninguém aprovará tal coisa - disse Rutílio Rufo.
- Foi o que eu lhes disse.
- Eles sabem para onde vão?
- Oxyntas vai para a cidade de Venúsia, onde quer que seja, e lampsas vai para Ásculo, outra cidade misteriosa.
- Venúsia fica a sul da Campânia, na estrada para Brindísio e Ásculo fica a noroeste de Roma, do outro lado dos Apeninos. São bastante confortáveis.
- Quando durará a detenção deles? - perguntou Jugurta. Rutílio Rufo reflectiu e depois encolheu os ombros.
- É difícil dizer-to, Certamente durará alguns anos. Até os magistrados locais escreverem um relatório ao Senado dizendo que estão completamente romanizados e não será um perigo para Roma enviá-los para casa.
- Então, parece-me que ficarão cá toda a vida. Será melhor que morram comigo, Públio Rutílio!
- Não, Jugurta, não podes ter a certeza. Quem sabe o que o futuro lhes reserva?
- É verdade.
A refeição prosseguiu com mais assados e saladas e terminou com carnes doces, pastéis, doces com mel, queijos, as poucas frutas da época e frutos secos. lampsas e Oxyntas foram os únicos que não fizeram justiça à refeição.
- Diz-me Quinto Cecílio - perguntou Jugurta a Metelo Numídico quando os restos da comida foram levados e trouxeram vinho puro da melhor colheita -, o que farás se um dia aparecer outro Caio Mário, com todo o vigor e visão e o tal laivo de imortalidade, na pele de um romano patrício?
Numídico pestanejou.
- Não sei aonde queres chegar, rei disse. Caio Mário é Caio Mário.
- Não é necessariamente único disse Jugurta. O que farias com um Caio Mário vindo de uma família patrícia?
- É impossível - afirmou Numídico.
- Absurdo! Claro que é possível disse Jugurta, saboreando o excelente vinho de Quios.
Parece-me que Quinto Cecílio está a tentar dizer que Caio Mário é um produto da sua classe disse Rutílio Rufo com delicadeza.
- Um Caio Mário pode pertencer a qualquer classe insistiu Jugurta. Todas as cabeças romanas se abanaram num não simultâneo.
Não, disse Rutílio Rufo, falando pelo grupo. O que estás a dizer pode servir para a Numídia ou para qualquer outro lugar. Mas não serve para Roma! Nenhum romano patrício poderia pensar ou agir como Caio Mário.
E o assunto estava arrumado. Depois de mais algumas bebidas, o banquete terminou, Rutílio Rufo foi-se deitar e os habitantes da casa de Metelo Numídico dirigiram-se para as suas camas. Jugurta da Numídia dormiu um sono profundo e tranquilo, depois de tão excelente comida, vinho e companhia.
Quando o escravo que fazia de seu criado de quarto foi acordá-lo, duas horas antes da aurora, Jugurta levantou-se fresco e revigorado. Deixaram-no tomar um banho quente e ele arranjou-se e vestiu-se com muito esmero; o seu cabelo foi disposto em rolos largos com a ajuda de ferros quentes e a sua barba foi penteada e atada com fios de ouro e prata. As zonas barbeadas das bochechas e do queixo foram escanhoadas. Perfumado com fragrâncias caras, de diadema e com todas as suas jóias (que já haviam sido catalogadas pelos funcionários do Tesouro e seriam divididas juntamente com o produto das pilhagens no Campo de Marte, no dia seguinte ao do triunfo), o rei Jugurta deixou os seus aposentos como um soberano helenizado; um rei da cabeça aos pés.
Hoje disse aos filhos enquanto seguiam para o Campo de Marte em cadeirinhas, irei ver Roma pela primeira vez em toda a minha vida.
Foi Sila que os recebeu no meio do que parecia uma confusão caótica, onde apenas havia a luz de archotes; mas a madrugada rompia sobre a crista do Esquilino e Jugurta suspeitou que a agitação era devida ao número de pessoas reunidas na Villa Pública e que afinal havia ali uma ordem aerodinâmica.
As grilhetas eram a fingir; em toda a Itália, para onde podia um rei-guerreiro púnico fugir?
Ontem à noite falámos de ti disse Jugurta a Sila em tom de conversa.
Sim? perguntou Sila, de couraça de prata reluzente epteryges, grevas de prata protegendo as canelas das pernas, elmo ático com um penacho de plumas escarlate e uma capa militar escarlate. Para Jugurta, que o conhecia de chapéu de aba larga, estava ali um estranho. Atrás dele, o seu servo particular trazia uma moldura onde estavam penduradas as suas condecorações de mérito, uma colecção bastante imponente.
Sim respondeu Jugurta ainda em tom de conversa. Houve um debate acerca de quem venceu a guerra contra mim: se Caio Mário ou tu.
Os olhos esbranquiçados elevaram-se, pousando no rosto de Jugurta.
Um debate interessante, rei. Qual dos lados defendeste?
O lado da razão. Disse que Caio Mário tinha ganho a guerra. Foram suas as decisões de comando, e seus os homens que tomaram parte nela, incluindo tu. E foi dele a ordem que te levou até ao meu sogro, Boco Jugurta fez uma pausa, e sorriu. No entanto, o meu único aliado foi o meu velho amigo Públio Rutílio. Tanto Quinto Cecílio como o seu filho insistiram que tinhas sido tu a ganhar a guerra, por me teres capturado.
Defendeste o lado da razão disse Sila.
O lado da razão é relativo.
Neste caso, não afirmou Sila, de plumas apontadas na direcção dos soldados de Mário. Nunca terei o seu dom para lidar com eles. Não tenho qualquer sentimento de camaradagem.
Disfarças bem comentou Jugurta.
Eles sabem-no disse Sila. Foi Mário que ganhou a guerra, com eles. A minha contribuição podia ter sido dada por qualquer outro legado Sila respirou fundo. Deves ter passado uma noite agradável, rei.
Muito agradável! Jugurta agitou as correntes e achou-as muito leves, fáceis de transportar. Quinto Cecílio e o seu filho gago deram um banquete real em minha honra. Se se perguntasse a um númida o que ele gostaria de comer na noite antes da morte, a resposta seria invariavelmente: caracóis. E ontem à noite, comi caracóis.
Então, estás de barriga cheia, rei. Jugurta fez um sorriso largo.
- Estou! Eu diria que é assim que se deve ir para o nó do estrangulador.
- Não, isso decido eu disse Sila, sorrindo, de dentes agora aparentemente mais escuros no rosto branco.
O sorriso de Jugurta desvaneceu-se.
- O que dizes?
- Sou eu que trato da organização do desfile triunfal, rei Jugurta. Por isso, sou eu que decido como morrerás. É verdade que devias ser estrangulado, mas isso não é obrigatório; existe um método alternativo: atirar-te para o Tuliano e deixar-te apodrecer o sorriso de Sila aumentou. - Após um tal repasto, e especialmente, após teres tentado lançar a discórdia entre mim e o meu comandante, seria pena que não te deixássemos acabar de digerir os teus caracóis. Por isso, não terás o nó do estrangulador, rei! Vais poder morrer a pouco e pouco.
Felizmente, os seus filhos estavam demasiado longe para ouvirem; o rei ficou a olhar enquanto Sila lhe acenava, afastando-se, e depois viu-o dirigir-se aos seus filhos e verificar-lhes as correntes. Olhou em volta, viu o pânico dos que o rodeavam: as multidões agitadas de escravos distribuíam coroas e grinaldas de folhas de louro da vitória, os músicos tocavam cornetins e as estranhas trompetas com cabeças de cavalos que Aenobarbo trouxera da Gália-de-Longos-Cabelos, as bailarinas ensaiavam os últimos rodopios, os cavalos fungavam e resfolegavam, batendo com os cascos no chão, impacientes, os bois estavam presos a carroças às dúzias, de chifres enfeitados e papos engrinaldados, havia um burrinho de um chapéu de palha com uma coroa de louros, com as orelhas de fora, uma velha desdentada e de seios descaídos a abanar, vestida de púrpura e ouro dos pés à cabeça vinha num carro alegórico, deitada num leito de púrpura como se fosse a maior cortesã do mundo, e olhou-o fixamente com uns olhos parecidos com os do Cão do Hades, ela devia ter três cabeças...
Mal se pôs em marcha, o desfile avançou depressa. Geralmente, o Senado e todos os magistrados exceptuando os cônsules iam à frente, seguidos de alguns músicos, de bailarinas e bobos que imitavam os poderosos; a seguir vinha o produto das pilhagens e os carros alegóricos, e mais bailarinas, músicos e bobos a acompanhar os animais sacrificiais e os sacerdotes auxiliares; atrás, vinham os prisioneiros importantes e o general triunfante conduzindo a sua antiga quadriga; e, no fim, vinham as legiões do general. Mas Caio Mário mudou um pouco a sequência, precedendo as pilhagens e os carros alegóricos, de modo a chegar ao Capitólio e estar no sacrifício dos animais a tempo de tomar posse, assistir à sessão no Senado e presidir ao seu banquete no templo de Júpiter Optimus Maximus.
Jugurta foi capaz de gozar o seu primeiro e último passeio a pé pelas ruas de Roma. Que importava o modo como ia morrer? Um homem tinha que morrer mais cedo ou mais tarde e a sua vida fora muito satisfatória, embora tivesse acabado em derrota. Dera grande saída ao dinheiro dos Romanos. O seu irmão, Bomílcar... também morrera numa masmorra. Talvez o fratricídio desagradasse aos deuses, por mais válido que fosse o motivo. Apenas os deuses sabiam o número dos familiares que ele mandara matar, nos casos em que não haviam morrido às suas mãos. A não participação faria as suas mãos ficarem mais limpas?
Oh, como os edifícios eram altos! O desfile entrou lentamente no Vicus Tuscus do Velabro, uma parte da cidade que estava cheia de ínsulas inclinadas como se quisessem abraçar-se. Havia caras em todas as janelas, rostos que davam vivas, e Jugurta surpreendeu-se por também o aplaudirem a ele, por o exortarem a morrer, com palavras de encorajamento e felicitações.
Então, o desfile aproximou-se do Mercado da Carne, o Fórum Boarium, onde a estátua nua de Hércules Triumphalis estava enfeitada para o dia do triunfo do general de toga picta em púrpura e ouro, túnica palmata bordada com palmas, o ramo de loureiro numa das mãos e na outra o ceptro de marfim com a águia no topo, de rosto pintado de minim vermelho vivo. O comércio estava suspenso, pois não havia tendas nem barracas nos templos magníficos nos limites do enorme mercado. Lá estava o templo de Ceres, considerado o mais belo da cidade e era vistoso, com tons vermelhos, azuis, verdes e amarelos, sobre um pódio como todos os templos romanos; Jugurta sabia que era lá a sede da Ordem Plebeia, onde se encontravam os seus registos e edis.
O desfile penetrou no Circo Máximo, a maior construção que alguma vez vira; estendia-se pelo Palatino e tinha lugar para cerca de cento e cinquenta mil pessoas. As bancadas de madeira estavam apinhadas de gente que aplaudia o desfile triunfal de Caio Mário; de onde estava, Jugurta conseguia ouvir os gritos de adulação dirigidos ao general. Ninguém se incomodava com o ritmo apressado da marcha, pois Mário mandara os seus clientes e agentes espalhar à multidão que se apressava porque se preocupava com Roma e queria ir ter com os Germanos à Gália Transalpina logo que fosse possível.
Os espaços verdes e as imponentes mansões do Palatino também estavam cheias de gente, acima do nível da multidão, protegidos de assaltos e roubos: eram mulheres, amas, raparigas e rapazes de boas famílias, como Jugurta tinha ouvido dizer. Depois, o desfile deixou o Circo Máximo e entrou na Via Triunfal, que limitava o extremo do Palatino e era encimado por rochedos e jardins à esquerda e tinha à sua direita, abaixo do monte Célio, outro bairro de edifícios de apartamentos. A seguir, entraram no Palus Ceroliae o pântano abaixo das Cari nas e do Fagutal e por fim, viraram para a Vélia e desceram até ao Fórum Romano através do antigo caminho sagrado, a Via Sacra.
Finalmente, Jugurta ia ver o centro do mundo, tal como em tempos idos o fora a Acrópole. E quando viu o Fórum Romano, a desilusão foi grande. Os edifícios eram pequenos e velhos e não estavam dispostos de modo lógico, pois eram todos orientados para norte, ao passo que o Fórum era virado para noroeste ou para sueste; o efeito geral era de desleixo e o local tinha um ar decrépito. Mesmo os edifícios mais novos - que, ao menos, estavam dispostos num ângulo certo em relação ao Fórum não estavam em bom estado de conservação. Com efeito, os prédios ao longo do trajecto eram muito mais imponentes e os templos maiores, mais ricos, mais grandiosos. Os alojamentos dos sacerdotes haviam sido pintados recentemente e o pequeno templo circular de Vesta era bonito, mas só o sublime templo de Castor e Pólux e a austeridade dórica do templo de Saturno eram dignos de admiração. Era um lugar desinteressante e sombrio, afundado num vale desagradável, húmido e feio.
Jugurta e os seus filhos e todos os outros cativos foram afastados do desfile em frente ao templo de Saturno de cujo pódio os funcionários séniores do Tesouro assistiam ao desfile; viram passar os lictores do general, as bailarinas, os músicos e os homens que transportavam os turíbulos, os tocadores de tambores e trompetes, os legados e, a seguir, a quadriga do general, distante e irreconhecível e de rosto pintado de vermelho com minim. Todos eles subiram a colina até ao lado do grande templo de Júpiter Optimus Maximus que dava para o Fórum. A sua fachada dava para o sul. O sul, em cuja direcção ficava a Numídia.
Jugurta olhou para os filhos.
Tenham uma vida longa e boa disse-lhes; ambos iam ficar presos em distantes cidades romanas mas os seus barões e as mulheres regressariam à Numídia.
Os lictores que rodeavam o rei levaram-no através dos pavilhões apinhados do baixo Fórum, passaram pelo Poço de Cúrcio e pela estátua do sátiro Mársias tocando oboé, pelo grande anfiteatro onde se reuniam as Tribos e foram até ao início do Clivus Argentarius. Acima deles elevava-se o Arx do Capitólio e o templo de Juno Moneta, onde se encontrava guardado o dinheiro. E lá estava o velho edifício do Senado, no extremo dos Comícios, e atrás dele a pequena e miserável Basílica Porcia, construída por Catão, o Censor.
Mas o passeio de Jugurta por Roma não foi mais longe. O Tultano ficava situado no sopé do Arx, atrás das Escadas de Gemónia; era um edifício muito pequeno, feito com enormes pedras ditas ciclópicas, não ligadas por argamassa. O templo tinha apenas um piso e uma entrada, uma abertura rectangular, sem porta. Jugurta baixou a cabeça ao entrar, mas passou sem dificuldade, pois a abertura servia de passagem a qualquer mortal.
Os lictores retiraram-lhe as roupas, jóias e o diadema e entregaram-no aos funcionários do Tesouro, que o esperavam; um documento trocou de mãos, como prova de que a propriedade do estado estava a ser tratada convenientemente. Jugurta manteve apenas um pano a cingir-lhe os rins, como o aconselhara Metelo Numídico, pois conhecia o rito: depois de cobrir a origem do seu ser, um homem podia morrer decentemente.
A única luz vinha da entrada atrás dele mas esta permitia a Jugurta ver o buraco redondo no alçapão. Era ali que iam pô-lo. Se fosse estrangulado, o estrangulador acompanhá-lo-ia até lá abaixo com ajudantes a segurá-lo, e quando terminasse, lançariam o seu corpo por uma das aberturas do esgoto e regressariam todos de novo a Roma e ao seu mundo.
Mas Sila tivera tempo de dar a contra-ordem, pois não estava presente nenhum estrangulador. Alguém trouxe uma escada, mas jugurta recusou-a; foi até à beira do fosso e saltou no vazio sem uma palavra. O que havia a dizer - numa altura destas? O ruído da queda foi quase imediato, pois a cela não era funda. Ao ouvi-lo, os acompanhantes retiraram-se em silêncio. Ninguém tapou o buraco nem fechou a entrada. NãO havia retorno do terrível fosso do Tuliano.
Dois bois brancos e um touro branco eram a contribuição de Mário para os sacrifícios desse dia, mas só os bois diziam respeito ao triunfo. Mário desceu da sua quadriga na base das escadas do templo de júpiter Optimus Maximus e subiu-as sozinho. Dentro da sala principal do templo, colocou o ramo de loureiro e a coroa de louros na base da estátua de Júpiter Optimus Maximus, após o que os seus lictores se alinharam para oferecerem ao deus as coroas de louros.
Era meio-dia. Nunca houvera um desfile triunfal tão rápido; mas o que restava - o essencial - prosseguia num local mais aprazível, onde as pessoas tivessem espaço suficiente para ver os carros alegóricos, o produto das pilhagens, os troféus e os soldados. Começava agora a parte mais importante do dia para Mário, que desceu os degraus, juntando-se aos senadores reunidos; vinha de rosto pintado de vermelho, de toga em púrpura e ouro, túnica bordada com ramos de palmeira e o ceptro de marfim na mão direita. Caminhava apressado, decidido a dar início à cerimónia da posse e considerando as suas vestes um pequeno inconveniente que tinha de suportar.
- Vamos a isto! - disse, impaciente.
A resposta foi o silêncio total. Ninguém se mexeu, ninguém traiu o que pensava por qualquer expressão. O próprio Caio Flávio Fímbria, colega de Mário, e o cônsul demissionário Públio Rutílio Rufo (Cneu Málio Máximo mandara dizer que estava doente) ficaram onde estavam.
- O que se passa convosco? - perguntou Mário, de mau humor. Do meio da multidão surgiu Sila, de toga, após ter tirado a armadura de prata. Exibia um sorriso largo e vinha de mão estendida, no papel do questor prestável e atencioso.
- Caio Mário, Caio Mário, esqueceste-te! - exclamou em voz alta ao chegar perto de Mário fazendo-o girar com uma força inesperada. - Vai a casa mudar de roupa! - murmurou.
Mário abriu a boca para discutir mas captou um olhar de gozo no rosto de Metelo Numídico, e levou a mão à cara, observando depois a palma vermelha.
- Deuses! - exclamou, com uma expressão cómica. - Peço perdão, Pais Conscritos - disse Mário, de novo virado para eles. - Bem sei que tenho pressa de ir ter com os Germanos, mas isto é ridículo! Peço que me desculpem. Estarei de volta o mais depressa possível. As insígnias do general... mesmo as do general triunfal!... não podem ser usadas numa sessão do Senado dentro dopomerium - e enquanto avançava pelo Asylum em direcção ao Arx, exclamou por cima do ombro. - Agradeço-te, Lúcio Cornélio!
Sila afastou-se dos espectadores silenciosos e correu atrás dele, coisa que nem todos os homens conseguiam fazer de toga; mas ele corria bem, com um ar natural.
- Agradeço-te - disse Mário quando Sila o alcançou. - Mas que importância tem isto? Agora terão de ficar todos ao frio durante uma hora, enquanto eu lavo esta tinta e visto a toga praetexta!
- Tem importância para eles - afirmou Sila -, e também tem importância para mim - as suas pernas curtas moviam-se mais rapidamente do que as de Mário. - Irás precisar dos membros do Senado, Caio Mário, por isso, peço-te que não os hostilizes mais hoje! Para começar, já não gostaram muito de ter de partilhar a sua cerimónia inaugural com o teu triunfo: não lhes lembres mais esse facto!
- Está bem, está bem! - disse Mário, resignado; a seguir, subiu a três e três os degraus que iam do Arx até à porta das traseiras da sua casa e empurrou a porta com tal violência, que o servo que foi abri-la caiu no chão e desatou a gritar, aterrorizado. - Cala-te, homem; eu não sou gaulês e já não estamos há trezentos anos! - exclamou, e chamou o criado de quarto, a mulher e o servo encarregado do banho.
- já está tudo pronto - disse Júlia, aquela rainha entre as mulheres, com um sorriso sereno. - Pensei que chegarias com a pressa habitual. O banho está quente e todos estão a postos, por isso desanda, Caio Mário - e voltando-se para Sila, disse-lhe sorrindo. - Bem-vindo, irmão. O tempo arrefeceu. Vem aquecer-te à braseira na minha salinha enquanto te trago vinho quente.
- Tens razão, está um gelo - comentou Sila, aceitando a taça da cunhada quando ela a trouxe. - Habituei-me a África. Enquanto seguia o Grande Homem, pensei que estava calor, mas agora tenho frio.
Júlia sentou-se à sua frente, de cabeça erguida, com um ar inquiridor.
- O que é que correu mal? - perguntou.
- Oh, tu és uma esposa - disse ele, traindo um certo azedume.
- Deixaremos esse assunto para mais tarde - respondeu Júlia. - Conta-me primeiro o que correu mal.
Ele sorriu secamente, abanando a cabeça.
- Sabes que gosto tanto dele quanto posso gostar de qualquer homem - disse -, mas às vezes era capaz de mandá-lo para o estrangulador do Tuliano como a mesma facilidade com que mandaria um inimigo. Júlia soltou um riso abafado.
- Também eu - revelou, tranquilizadora. - É normal. É um Grande Homem e é muito difícil viver com eles. O que fez hoje?
- Ia participar na cerimônia de posse com o trajo próprio do triunfo - disse Sila.
- Oh, meu caro irmão! E discutiu acerca da perda de tempo e hostilizou toda a gente? - perguntou a mulher fiel mas lúcida do Grande Homem.
- Felizmente, reparei no que ele ia fazer, apesar de toda aquela tinta vermelha no rosto. - Sila sorriu. - São as sobrancelhas. Ao fim de três anos com Caio Mário, só um tolo não consegue ler o que lhe vai na mente através das sobrancelhas, que se mexem e saltam segundo um código... Tu bem o sabes, pois não és tola nenhuma!
- Sei, sim - disse ela, com um sorriso.
- Então, fui ter com ele e gritei qualquer coisa sugerindo que houvera um esquecimento. Mas fiquei de respiração suspensa, porque pouco faltou para que mandasse atirar-me ao Tibre. Até que viu Quinto Cecílio Metelo e mudou de ideias. Que actor! Públio Rutílio deve ter sido o único que não acreditou que ele esquecera mesmo o que tinha vestido.
- Obrigada, Lúcio Cornélio! - exclamou Júlia.
- O prazer foi todo meu - disse ele, sem fingir.
- Mais vinho quente?
- Sim, agradeço-te.
Quando ela voltou, trazia um tabuleiro de pãezinhos fumegantes.
- Acabaram de sair do forno; são levedados e têm chouriço dentro. São excelentes! O nosso cozinheiro está sempre a fazê-los para o jovem Mário, que está na fase terrível em que não comem nada do que devem.
- Os meus dois comem tudo o que se lhes põe à frente - disse Sila, radiante. - Oh, Júlia, são amorosos! Nunca tinha pensado que pudesse haver coisa tão perfeita!
- Eu também gosto muito deles - disse a tia.
- Quem me dera que Julilla também gostasse... - disse ele, de ar sombrio.
- Eu sei - disse suavemente a irmã de Julilla.
- O que se passa com ela? Sabes?
- Penso que a amimámos demasiado. O pai e a mãe não queriam ter um quarto filho; tinham tido dois rapazes e quando eu apareci, não se importaram que houvesse uma rapariga na família. Mas com a Julilla, tiveram um choque. E éramos demasiado pobres. Por isso, quando ela cresceu, todos sentiram pena dela. Especialmente o pai e a mãe, por não a terem querido. Arranjávamos uma desculpa para tudo o que fazia. Se havia um ou dois sestércios a mais, eram para ela desbaratar, e nunca ninguém lhe ralhava por isso. Penso que já nasceu com esse defeito, mas nós não a ajudámos a lidar com ele: não lhe ensinámos a ser paciente e indulgente, como devíamos. A Julilla cresceu imaginando que era a pessoa melhor do mundo, e por isso ficou egoísta. Em grande parte, a culpa é nossa, mas é ela quem mais sofre com isso.
- Ela bebe demais - disse Sila.
- Eu sei.
- E quase não quer saber das crianças.
Os olhos de Júlia encheram-se de lágrimas.
- Eu sei.
- O que posso fazer?
- Podes divorciar-te - disse Júlia, de lágrimas a correr pelo rosto. Sila levou as mãos à cabeça.
- Como posso fazer isso, se vou deixar Roma durante o tempo que for necessário para vencer os Germanos? E é a mãe dos meus filhos. Amei-a tanto quanto posso amar alguém.
- Estás sempre a dizer isso, Lúcio Cornélio. Se tu amas, amas! Porque hás-de amar menos do que os outros homens?
O comentário atingia-o no âmago, e por isso, ele fechou-se.
- Eu cresci sem amor e nunca aprendi a amar - disse, apresentando a sua desculpa habitual. - Já não a amo. De facto, penso que a odeio. Mas é a mãe dos meus filhos, e até os Germanos serem vencidos eles têm de contar com a Julilla. Se eu me divorciasse, ela iria ter qualquer acto teatral: enlouquecer ou suicidar-se, ou triplicar a dose de vinho ou qualquer outra alternativa igualmente desesperada e irreflectida.
- Sim, tens razão, o divórcio não ia resolver nada. Iria prejudicar ainda mais as crianças - Júlia suspirou, enxugou os olhos. - Neste momento há duas mulheres perturbadas na nossa família. Posso sugerir outra solução?
- Faz o favor! - exclamou Sila.
- A minha mãe é a segunda mulher perturbada. Não é feliz a viver com o meu irmão Sexto, a mulher e o filho. A maioria dos problemas entre ela e a minha cunhada Cláudia resulta de a minha mãe ainda se considerar dona da casa. Os Cláudios são teimosos e dominadores, e todas as mulheres dessa família são ensinadas a desprezar as antigas virtudes femininas, ao passo que a minha mãe é exactamente o oposto - explicou Júlia, abanando a cabeça com tristeza.
Sila tentou mostrar-se entendido e à vontade em relação a esta lógica feminina mas não disse nada.
Júlia continuou.
- A mamã mudou depois da morte do meu pai. Nenhum de nós pode imaginar como era forte a ligação deles, ou como ela contava com a sabedoria e orientação dele. Por isso, tornou-se irritável e implicativa e vê defeitos em tudo. Por vezes, é insuportavelmente crítica! Caio Mário tomou conhecimento da situação e ofereceu-se para comprar à mamã uma villa na costa, para que o pobre Sexto pudesse ter sossego. Mas ela virou-se contra ele como um gato assanhado e disse que sabia bem quando não era desejada e que nunca deixaria a sua casa.
- Suponho que sugeres que a convide para viver com ajulilla e comigo - disse Sila -, mas por que lhe agradará esta sugestão, se a ideia da villa na costa não resultou?
- Porque sabia que a ideia de Caio Mário era apenas um subterfúgio para se ver livre dela, e está demasiado embirrenta para ser amável para a mulher de Sexto - expôs Júlia honestamente. - Convidá-la para viver contigo e com Julila é totalmente diferente. Por um lado, ficaria a viver na casa ao lado; por outro lado sentir-se-ia desejada. útil. E podia tomar conta da julilla.
- Ela ia querer? - perguntou Sila, coçando a cabeça. - Pelo que a julilla disse, nunca vai vê-la, apesar de viver mesmo ao lado.
- Ela e a Julilla também discutem - disse Júlia, começando a sorrir, à medida que a preocupação se dissipava. - Se discutem! Mal a julilla a vê entrar, manda-a voltar para casa. Mas se tu a convidares a ir viver convosco, a Julilla não pode fazer nada.
Sila também sorria.
- Parece que estás decidida a transformar a minha casa num Tártaro - disse.
Júlia franziu uma sobrancelha.
- Isso afligia-te, Lúcio Cornélio? Tu vais estar longe.
Sila também franziu o sobrolho enquanto mergulhava as mãos na taça de água que um servo lhe trouxera.
- Agradeço-te, cunhada - levantou-se, inclinou-se e beijou Júlia no rosto. - Visitarei Márcia amanhã e convidá-la-ei a vir viver connosco. E serei totalmente franco quanto ao motivo do convite. Só suporto estar longe dos meus filhos se souber que eles são amados.
- Os teus escravos não tratam bem deles? - perguntou Júlia, levantando-se ao mesmo tempo que ele.
- Os escravos estragam-nos com mimos! - queixou-se o pai. - Devo dizer que Julilla arranjou umas óptimas amas; mas isso vai transformá-los em escravos, Júlia! Como os Trácios ou os Celtas, ou qualquer outra nacionalidade a que as amas pertençam. Elas têm imensas superstições e hábitos estrangeiros, pensam primeiro noutras línguas e não em latim, consideram os seus pais e familiares figuras distantes representantes da autoridade. Eu quero que os meus filhos sejam educados decentemente, à romana, e por uma mulher romana. Deveria ser a mãe; mas como duvido que isso aconteça, não vejo melhor alternativa do que a intrépida avó Márcia.
- Excelente - disse Júlia.
Os dois dirigiram-se para a porta.
- A Julilla é-me infiel? - perguntou ele subitamente. Júlia não fingiu horror nem se enfureceu.
- Duvido muito, Lúcio Cornélio. O seu vício é o vinho e não os homens. Como és homem, consideras os homens um vício muito pior do que o vinho. Não estou de acordo. Penso que o vinho pode prejudicar muito mais os teus filhos do que a infidelidade. Uma mulher infiel não deixa de dar atenção aos filhos nem pega fogo à casa, como pode fazer uma mulher bêbeda. O que interessa é pormos a mamã a trabalhar!
Caio Mário entrou na salinha vestido a preceito, com a toga debruada a púrpura dos cônsules.
- Vamos, Lúcio Cornélio! Vamos terminar a cerimónia antes que o Sol se ponha e a Lua nasça!
Júlia e o cunhado trocaram sorrisos pesarosos e os dois homens seguiram para a cerimónia de posse.
Mário fez todos os possíveis para apaziguar os Aliados Italianos. -Eles não são romanos - disse à Assembleia na sua primeira sessão ordinária, nos Idos de janeiro -, mas são os nossos aliados mais próximos em todas as nossas empresas, e compartilham connosco a península da Itália, bem como o fardo de fornecerem tropas para defender a Itália; e não têm sido recompensados, tal como Roma não o tem sido. Como sabem, Pais Conscritos, está neste momento a decorrer um facto lamentável na Assembleia da Plebe, onde o consular Marco Júnio Silário está a defender-se de uma acusação feita pelo tribuno da plebe Cneu Domício. Embora a palavra ”traição” não tenha sido utilizada, a implicação é nítida: Marco Júnio é um dos comandantes consulares recentes que perderam um exército inteiro, incluindo legiões de homens dos Aliados Italianos.
Mário voltou-se para olhar de frente para Silano, presente na Assembleia porque os Nonos eram fasti - dias feriados ou de negócios - e a Assembleia da Plebe não podia reunir.
- Não me cabe hoje fazer qualquer acusação contra Marco Júnio. Limito-me a relatar um facto. Há outros organismos e outros homens que se ocuparão do processo de Marco Júnio; estou apenas a relatar um facto. Marco Júnio não tem necessidade de proceder aqui hoje à sua defesa por minha causa; limito-me a relatar um facto.
Mário fez uma pausa deliberada para aclarar a garganta, dando a Silano uma oportunidade para dizer qualquer coisa; mas Silano permaneceu no silêncio total, fingindo que Mário não existia.
- Limito-me a relatar um facto, Pais Conscritos. Nada mais, nada menos. Um facto é um facto.
- Expõe-no! - disse Numídico, aborrecido. Mário fez uma grande vénia, um sorriso largo.
- Obrigado, Quinto Cecílio! Como podia deixar de expô-lo depois de ter sido incitado por um consular tão augusto e tão distinto como tu?
- ”Augusto” e ”distinto” significam o mesmo, Caio Mário - informou Metelo Dalmático Pontifex Maximus com um tédio semelhante ao do irmão mais novo. - Pouparias um tempo considerável a esta Assembleia se falasses um latim menos tautológico.
- Peço perdão ao augusto e distinto consular Lúcio Cecílio - disse Mário com outra vénia -, mas numa sociedade tão democrática como a nossa, a Assembleia está aberta a todos os Romanos, mesmo àqueles que, como eu, não podem gabar-se de serem augustos e distintos - e fingiu perscrutar a mente, de sobrancelhas juntas acima do nariz.
- Onde é que eu ia? Ah! O fardo que os Aliados Italianos partilham connosco, fornecendo-nos tropas para defender a Itália. Uma das objecções levantadas contra o fornecimento de tropas pelos magistrados dos Samnitas, dos Apúlios, dos Marsos e outros nas suas cartas - e dizendo isto, mostrou à Assembleia uma pilha de pequenos rolos - diz respeito à legalidade do nosso pedido para que os Aliados forneçam tropas para as campanhas fora das fronteiras da Itália e da Gália Italiana. Os Aliados Italianos, augustos e distintos Pais Conscritos, insistem que têm fornecido tropas... que tem perdido aos milhares de homens!... para, e cito as cartas, ”as guerras de Roma com o estrangeiro”!
Ouviu-se murmurar e segredar na Assembleia.
- Essa alegação não tem qualquer fundamento! - alegou Escauro com secura. - Os inimigos de Roma são também inimigos de Itália!
- Eu limito-me a citar cartas, Marco Emílio Princeps Senatus - proferiu Mário, apaziguador. - Devemos tomar conhecimento delas, pela simples razão de que esta Assembleia terá em breve de receber delegações de todos os povos italianos que exprimiram o seu descontentamento. A sua voz mudou; perdeu o tom levemente irónico.
- Mas basta de discussões! Nós vivemos numa península, lado a lado com os nossos amigos italianos que não são e nunca poderão vir a ser Romanos. O facto de terem alcançado esta importância no mundo deve-se em parte aos grandes feitos de Roma e dos Romanos. O facto de haver um grande número de italianos espalhados pelas províncias e esferas de influência de Roma deve-se unicamente aos grandes feitos de Roma e dos Romanos. O pão que eles comem, as suas fogueiras, a sua riqueza e o número de filhos que têm devem-nos a Roma e aos Romanos. Antes de Roma, era o caos. A desunião completa. Antes de Roma, havia os cruéis reis etruscos no Norte da península, e os ambiciosos Gregos ao Sul. Para não falar dos Celtas da Gália.
A Assembleia acalmara. Quando Mário falava a sério, todos escutavam, mesmo os seus inimigos mais inflexíveis. Porque o Homem Militar - por mais obstinado e directo que fosse - era um poderoso orador, e desde que os seus sentimentos estivessem contidos, o seu latim não diferia muito do latim de Escauro.
- Pais Conscritos, vós e o Povo de Roma concederam-me um mandato para nos livrar - e livrar a Itália! - dos Germanos. Logo que seja possível, levarei comigo o propretor Mânio Aquílio e o valoroso Lúcio Cornélio Sila como meus legados para a Gália Transalpina. Livrar-vos-emos dos Germanos, nem que isso nos custe a vida, e daremos a Roma e a Itália a segurança para sempre. Prometo-o em meu nome e no de todos os meus soldados. O dever para nós é sagrado; não nos pouparemos a esforços e seguiremos as águias prateadas das legiões de Roma e sairemos vitoriosos!
As multidões anónimas de membros do Senado ao fundo da Assembleia começaram a aplaudir e patear, e ao fim de alguns momentos, as filas da frente começaram a aplaudir, incluindo o próprio Escauro, mas não Metelo Numídico.
Mário aguardou que se fizesse silêncio.
- No entanto, antes de partir, tenho de pedir a esta Assembleia que faça todos os possíveis para aliviar o fardo dos nossos Aliados Italianos.
Não podemos dar crédito a essas alegações de que as tropas italianas estão a ser usadas para lutar em campanhas que não lhes dizem respeito. Nem podemos cessar de recrutar os soldados que os Aliados Italianos nos concederam por tratado. Os Germanos constituem uma ameaça para toda a península, incluindo a Gália Italiana. Mas a terrível escassez de homens adequados para servir as legiões afecta tanto os Aliados Italianos como afecta Roma. O poço secou, caros membros do Senado, e levará algum tempo a encher de novo. Gostaria de dar aos Aliados a minha garantia pessoal de que enquanto respirar este corpo não-augusto e não-distinto, as tropas italianas ou romanas nunca mais desperdiçarão as suas vidas num campo de batalha. Tratarei as vidas dos homens que levar comigo para defender a minha pátria com mais respeito e reverência do que a minha própria vida! Juro-o.
Nos aplausos e pateadas as filas da frente foram mais rápidas, mas Metelo Numídico e Catulo César não aplaudiram.
Mais uma vez, Mário aguardou que se fizesse silêncio.
- Chamaram-me a atenção para uma situação lamentável: nós, o Senado e Povo de Roma, escravizámos muitos milhares de Aliados Italianos e enviámo-los como escravos para as terras que controlamos à volta do mar Central. Como a maioria deles tem origens rurais, as suas dívidas estão a ser resgatadas pelo trabalho nos nossos campos da Sicília, Sardenha, Córsega e África. Isto, Pais Conscritos, é uma injustiça! Se deixámos de reduzir à escravatura os nossos devedores romanos, não devíamos fazê-lo aos nossos Aliados Italianos? Não, eles nunca poderão ser Romanos mas são os nossos irmãos mais novos da Península Italiana. E nenhum Romano reduz à escravatura o seu irmão mais novo.
Mário não deu aos proprietários de terras tempo para protestarem e avançou para a peroração.
- Até eu poder retribuir aos nossos agricultores a sua mão-de-obra sob a forma de escravos germanos, eles deverão procurar outros trabalhadores que não os escravos italianos. Porque nós, Pais Conscritos, teremos de fazer votar hoje mesmo um decreto - e a Assembleia do Povo deverá ratificar esse decreto - libertando todos os escravos dos Aliados Italianos. Nós não Podemos fazer aos nossos aliados mais antigos e leais aquilo que não fazemos a nós mesmos. Esses escravos terão de ser libertados! Terão de regressar à Itália e cumprir o seu dever natural para com Roma, que é o de servir nas legiões auxiliares de Roma.
Mas Sila, pensativo, ao contrário do costume, disse:
- Não sabemos quase nada acerca deles.
- Acabei de fazer notar isso! - disse Mário, bruscamente.
- Não, eu estava a seguir uma linha diferente de raciocínio. Mas deu uma palmada nos joelhos - meditarei um pouco mais no assunto antes de me pronunciar. Afinal de contas, não sabemos bem o que encontraremos quando atravessarmos os Alpes.
- Temos de decidi-lo - disse Mário.
- O quê? - perguntou Aquílio.
- Atravessar ou não os Alpes. Agora que estamos certos de que os Germanos não constituirão ameaça antes de Maio ou junho, no mínimo, não aprovo de modo nenhum que atravessemos os Alpes. Pelo menos, pela via habitual. Partiremos no fim dejaneiro, com uma enorme coluna de carga, por isso, seguiremos devagar. A única coisa que direi a favor de Metelo Dalmático como Pontifex Maximus é que ele é fanático em relação às datas, pelo que as estações e meses coincidem. Tiveste frio este Inverno? - perguntou a Sila.
- De facto, tive, Caio Mário.
- Também eu. Temos o sangue fraco, Lúcio Cornélio. Foi todo aquele tempo em África onde o frio é breve e só há neve nas montanhas mais altas. Por que haverá de ser diferente para as tropas? Ser-lhes-á muito duro atravessar o desfiladeiro do monte Geneva no Inverno.
- Após a licença na Campânia, precisarão de endurecer um pouco comentou Sila, desagradavelmente.
- Sim! Mas não é a ficar com frieiras e a perder dedos gelados que endurecem. Eles têm equipamento de Inverno, mas aqueles incómodos cunni, usá-lo-ão?
- Usarão se forem obrigados a isso.
- Estás decidido a ser arrevesado - disse Mário. - Está bem, não tentarei ser razoável; limitar-me-ei a dar ordens. Não vamos levar as tropas para a Gália Transalpina pela via habitual. Marcharemos para lá ao longo da costa.
- Deuses, levaremos uma eternidade! - gritou Aquílio.
- Há quanto tempo houve algum exército que tivesse marchado para a Espanha ou para a Gália pela costa? - perguntou Mário a Aquílio.
- Não me lembro de nenhum que o tenha feito!
- Aí tens! - disse Mário, num tom triunfante. - É por isso que vamos fazê-lo. Quero saber se é difícil, quanto tempo leva, como estão as estradas, o terreno, tudo. Levarei quatro legiões em ordem de marcha ligeira e tu, Mânio Aquílio, levarás as outras duas legiões e as coortes extras que conseguimos reunir, e escoltarás a coluna de carga. Se os Germanos se dirigirem para a Itália e não para Espanha quando virarem para sul, como sabemos se passarão o desfiladeiro do monte Geneva a caminho da Gália Italiana ou se irão direitos a Roma, seguindo pela costa? Eles parecem ter muito pouco interesse em descobrir como as nossas mentes funcionam, e por isso como irão descobrir que o caminho mais rápido e mais curto para Roma não é ao longo da costa mas sim pelos Alpes, através da Gália Italiana?
Os legados olharam para ele espantados.
- Estou a entender - disse Sila -, mas para quê levar o exército inteiro? Bastaria irmos nós os dois e um pequeno esquadrão.
Mário abanou a cabeça vigorosamente.
- Não! Não quero ter o meu exército a várias centenas de milhas de distância para lá das montanhas. Onde quer que eu for, irá todo o meu exército.
E no fim de janeiro, Caio Mário levou todo o exército para norte, pela Via Aurélia, ao longo da costa; pelo caminho, ia tirando notas e enviava breves cartas ao Senado pedindo-lhe que mandasse reparar um ou outro lance de estrada, construir ou reforçar pontes, fazer ou renovar viadutos.
Uma dessas missivas dizia o seguinte:
Estamos em Itália, e todas as vias a norte da península, a Gália Italiana e a Ligúria devem ser mantidas em perfeito estado de conservação, senão, talvez nos arrependamos um dia.
Em Pisa, onde o rio Arno corre para o mar, entraram na Gália Italiana, que era uma área muito especial, pois nem era oficialmente uma província nem era governada como a Itália. Era uma espécie de limbo. De Pisa até Vada Sabatia, a estrada era nova, embora estivesse por concluir; fora a contribuição de Escauro como censor. Mário escreveu a Marco Emílio Escauro Princeps Senatus:
Louvo a tua capacidade de previsão, pois a Via Aemilia Scauri parece-me ser uma das obras mais essenciais para a defesa de Roma e de Itália desde a abertura do desfiladeiro do monte Geneva e desde então já passou muito tempo, considerando
que este foi usado por A níbal. O teu ramal para Dertona é de uma importância vital em termos estratégicos, pois é a única via que atravessa os Apeninos ligúricos do Pó até à costa tirrena - a costa romana.
Existem graves problemas. Falei com os nossos engenheiros, que me pareceram dos mais capazes, e alegro-me por poder comunicar-te o seu pedido de fundos adicionais, de forma a aumentarem a mão-de-obra neste troço de estrada. A via necessita de alguns dos viadutos mais altos - e mais longos - que já vi, mais relacionados com a construção de aquedutos do que de estradas. Felizmente, há pedreiras locais, de onde se pode extrair pedra mas o facto de o pessoal ser reduzido está a atrasar o ritmo a que, na minha opinião, o trabalho deve prosseguir. Com o devido respeito, posso pedir-te que uses a tua enorme influência para obter o dinheiro necessário da Assembleia e do Tesouro para apressar este projecto? Se puder estar pronto no fim do próximo Verão, Roma poderá ficar mais descansada ao pensar que apenas cinquenta milhas de estrada podem salvar várias centenas de soldados de um exército.
- Isto deve manter o rapaz ocupado e feliz! - disse Mário a Sila.
- Concordo contigo - disse Sila, sorrindo de dentes à mostra.
A Via Aemilia acabava na Vada Sabatia; a partir daí, não existia estrada no sentido romano do termo mas apenas um carreiro, seguindo a linha de menor resistência através de uma área de montanhas muito altas e escarpadas.
- Vais arrepender-te de teres escolhido este caminho - disse Sila.
- Pelo contrário, estou contente. Posso ver mil lugares possíveis para uma emboscada, compreendo o motivo por que ninguém no seu perfeito juízo vai para a Gália Transalpina por aqui, porque Públio Vagiennius, que é destes lados, conseguiu trepar por uma parede íngreme para encontrar o seu viveiro de caracóis e também porque não temos de recear que os Germanos escolham esta via. Podem começar por vir pela costa, mas uns dias de caminhada e um batedor indo à frente para explorar o resto do percurso fá-los-ão regressar. Se é difícil para nós, para eles será impossível. Excelente!
Mário virou-se para Quinto Cecílio, que, apesar do seu estatuto subalterno, gozava de uma posição privilegiada alcançada unicamente pelo mérito.
- Quinto Sertório, meu rapaz, onde pensas que está a coluna de carga? - perguntou-lhe.
- Algures entre a Populónia e Pisa, dado o estado lastimável da Via Aurélia - respondeu Sertório.
- Como está a tua perna?
- Não está a postos para tal caminhada - Sertório parecia sempre adivinhar as ideias de Mário.
- Então, arranja-me três homens que possam fazê-la e manda-os seguir com isto - disse Mário, entregando-lhe tábuas de cera.
- Vais enviar a coluna de carga pela Via Cássia para Florência e pela Via Ânia para a Bonónia, seguindo depois pelo desfiladeiro do monte Geneva - disse Sila, suspirando de satisfação.
- Ainda podemos precisar de todas aquelas vigas, peças e gruas disse Mário; depois, carregou os dedos na cera para produzir uma impressão perfeita do seu anel de sinete e cobriu a tabuinha. - Toma - disse, estendendo-a a Sertório. - E verifica se volta bem atada e selada; não quero que ninguém a leia. Deves entregá-la a Mânio Aquílio em pessoa, entendeste?
Sertório assentiu e deixou a tenda de comando.
- Quanto a este exército, vai ter trabalho - disse Mário a Sila. Manda avançar os batedores; faremos um caminho razoável ja que não existe estrada.
Na Ligúria, tal como noutras regiões onde as montanhas eram escarpadas e havia pouca terra arável, os habitantes tinham uma vida campestre, a viver do banditismo e da pirataria ou, como Públio Vagiennius, entravam para as legiões e cavalaria auxiliares de Roma. Sempre que visse barcos e uma aldeia aninhada num ancoradouro, com barcos mais apropriados para abordagens do que para a pesca, Mário queimava tanto os barcos como a aldeia, deixava mulheres, velhos e crianças para trás e levava consigo os homens para os trabalhos de melhoramento da estrada. Entretanto, à medida que o tempo passava, os relatórios de Arausio, Valência, Viena e mesmo Lugduno tornavam cada vez mais claro que os confrontos com os Germanos não seriam para esse ano.
No início de junho, ao fim de quatro meses de caminhada, Mário conduziu as suas quatro legiões para as vastas planícies costeiras da Gália Transalpina e fez uma pausa na região bem povoada entre Arelas e Aquae Sextiae, nas proximidades da cidade de Glanum, a sul do rio Druência. A carga tinha chegado antes dele, levando apenas três meses e meio por estrada.
Mário escolheu o local do acampamento com muito cuidado, para não ocupar terreno arável; era um grande monte de encostas rochosas e com uma encosta ideal para os movimentos das tropas em relação ao acampamento, que seria no topo, onde havia várias nascentes.
- É aqui que passaremos as muitas luas que se seguirão - disse Mário abanando a cabeça de satisfação. - Agora, vamos para Carcassona. Nem Sila nem Mânio Aquílio fizeram qualquer comentário, mas Sertório não conseguiu dominar-se.
- É mesmo necessário? - perguntou. - Se pensas que vamos permanecer neste distrito durante muitas luas, não seria muito mais fácil acomodar as tropas em Arelas ou Glanum? Que motivo temos para ficar aqui? Porque não vamos procurar os Germanos e lutamos com eles antes que cheguem cá?
- jovem Sertório - explicou Mário -, tudo indica que os Germanos se dispersaram muito. Os Cimbros, que pareciam dispostos a atravessar para oeste do Ródano, mudaram de ideias e dirigiram-se para Espanha, suponho, pelo extremo de Cebenna, através das terras dos Arvernos. Os Teutões e os Tigurinos deixaram as terras dos Éduos e fixaram-se nas terras dos Belgas. Pelo menos, é o que dizem as minhas fontes; e é o que todos pensam que terá acontecido.
- Não podemos ter a certeza? - perguntou Sertório.
- Como? - perguntou Mário. - Os Gauleses não têm motivos para gostarem de nós e é com eles que temos de contar para recebermos informações. E só nos têm dado estas informações porque também não querem os Germanos por perto. Mas com uma coisa podes contar: quando os Germanos chegarem aos Pirenéus, voltarão para trás. E duvido muito que os Belgas os recebam melhor que os Celtiberos dos Pirenéus. Quando tento ver um possível alvo do ponto de vista dos Germanos, penso sempre na Itália. Por isso, ficaremos aqui até os Germanos chegarem, Quinto Sertório. Mesmo que levem anos a chegar.
- Mas se levarem anos a chegar, Caio Mário, o exército amolecerá e tu serás destituído do comando supremo - salientou Mânio Aquílio.
- O nosso exército não vai amolecer, porque vou pô-lo a trabalhar -
explicou Mário. - Temos cerca de quarenta mil homens dos capite censi. São pagos pelo Estado; as armas e armaduras pertencem ao Estado e é ele que os alimenta. Quando se reformarem, tentarei que o Estado os ampare na velhice, Mas enquanto estiverem ao serviço no exército do Estado, não passam de seus empregados. Como cônsul, quem representa o Estado sou eu. Por isso, são meus empregados. E estão a custar-me muito dinheiro. Se apenas lhes pedirmos em troca que fiquem parados à espera do combate, calcula a enormidade dos custos desse combate, quando acabar Por verificar-se - as sobrancelhas de Mário agitaram-se velozmente.
- Não
assinaram um contrato para ficarem sentados à espera da batalha; alistaram-se no exército do Estado para fazerem o que ele lhes exigir. Como é o Estado que lhes paga, devem-lhe o esforço do seu trabalho. E é o que vão fazer. Trabalhar! Este ano, vão reparar a Via Domícia, de Nemauso a ócelo. E no próximo ano, cavarão um canal que irá do mar até ao Ródano, em Arelas.
Todos o olhavam fascinados, mas passou um longo momento antes que alguém soubesse o que dizer.
Então, Sila silvou:
- Um soldado é pago para combater!
- Se comprar o equipamento com o seu próprio dinheiro e não receber nada do Estado além da comida que come, pode fazer o que entender. Mas isso não se aplica aos meus homens - disse Caio Mário. - Quando não estiverem a lutar, farão os trabalhos públicos necessários, nem que seja para os fazer compreender que estão ao serviço do Estado, tal como poderiam estar ao serviço de qualquer homem. E isso mantê-los-á em forma!
- E nós? - perguntou Sila. - Pretendes transformar-nos em engenheiros?
- Por que não? - perguntou Mário.
- Eu não sou empregado do Estado. Por um motivo - explicou Sila, bem-disposto. - O meu tempo é cedido como uma dádiva, bem como o de todos os legados e tribunos.
Mário lançou-lhe uma olhadela perspicaz.
- Acredita, Lúcio Cornélio, é uma dádiva que muito prezo - disse-lhe, deixando as coisas nestes termos.
Mas Sila partiu descontente. Empregados do Estado! Os homens dos capte censi sê-lo-iam, mas não os tribunos e legados, como fizera notar. Mário expusera o seu ponto de vista e retirara-se. As recompensas monetárias dos tribunos seriam a sua quota-parte das pilhagens. E ninguém fazia ideia de quanto renderiam os Germanos em pilhagens. O produto da venda dos prisioneiros como escravos pertencia ao general, que não o compartilhava com os seus legados, tribunos, centuriões ou com as tropas. E Síla pressentia que no fim daquela campanha, que duraria vários anos, os ganhos seriam escassos, excepto no que dizia respeito a escravos.
Sila não gostara da longa e tediosa viagem até ao Ródano. Quinto Sertório farejara o caminho como um cão preso à trela, de cauda a abanar, palpitando à mera sugestão de qualquer tipo de tarefa. Habituara-se a usar o groma, o instrumento de trabalho do agrimensor; pusera-se a observar como os grupos de engenheiros procediam no caso dos rios a transbordar ou quando havia pontes caídas ou aluimentos de terras; até fora antecipadamente ao local para analisar o terreno; chegara mesmo ao ponto de tratar e amestrar uma águia jovem que tinha uma asa partida, que vinha visitá-lo de vez em quando. Sim, tudo ser-via a Quinto Sertório, nem que fosse para se notar que se encontrava ligado a Caio Mário.
Mas Sila precisava de drama; tinha adquirido suficiente conhecimento de si mesmo para compreender que agora, que era senador, isso era um defeito no seu carácter. No entanto, sabia que não era aos trinta e seis anos que iria conseguir eliminar uma faceta pessoal tão inata. Até àquela desoladora e interminável viagem através da Via Aemilia Scailr e dos Alpes Marítimos, havia gostado absolutamente da sua carreira militar, porque a achava plena de acção e desafios, quer em combate, quer no delinear de uma nova África. Mas construir estradas e cavar canais? Não fora para isso que viera até à Gália Transalpina! Nem iria fazê-lo!
E no fim do Outono eram as eleições consulares, Mário seria substituído por alguém de uma facção inimiga, e tudo o que tinha para apresentar do seu tão gabado segundo consulado era uma estrada magnificamente mal conservada e que já possuía o nome de outro. Como podia o homem permanecer tão tranquilo, tão despreocupado? Nem sequer se incomodara a responder à meia afirmação de Aquílio, segundo o qual lhe seria retirado o comando. O que estava a preparar a raposa do Arpino? A que motivo se devia tal despreocupação?
Subitamente, Sila esqueceu aquelas questões tão difíceis de responder, porque vislumbrara uma coisa que prometia ser deliciosamente picante; os seus olhos agitavam-se, de interesse e contentamento.
Do lado de fora da tenda de rancho dos tribunos, dois homens conversavam. Ou pelo menos era o que parecia a um observador casual. Para Sila, aquela era a cena de abertura de uma farsa maravilhosa. O mais alto era Caio Júlio César. O mais baixo era Caio Lúsio, sobrinho (apenas por afinidade, apressara-se Mário a informar) do Grande Homem.
Sila aproximou-se dos dois homens.
- Oh, Lúcio Cornélio! - disse Caio Lúsio com voz aguda. - Estava a perguntar a Caio Júlio se sabia que tipo de vida nocturna há em Arelas, e a convidá-lo para vir comigo experimentá-la.
O rosto longo e belo de César era uma máscara inexpressiva de delicadeza, mas a sua ansiedade em ver-se livre da companhia era nítida, pensou Sila: eram os olhos que tentavam permanecer focados na cara de Lúsio mas se desviavam, os movimentos mínimos que os seus pés faziam dentro das botas militares, os gestos súbitos dos dedos.
- Talvez Lúcio Cornélio conheça a vida nocturna melhor do que eu - disse César, iniciando a retirada apoiando todo o seu peso num dos pés e avançando um pouco o outro.
- Não vás, Caio Júlio! - protestou Lúsio. - Quantos mais, melhor! - e deu uma risadinha.
- Lamento, Caio Lúsio, mas chama-me o dever - disse César, e partiu. Sila, cuja altura se aproximava muito da altura de Lúsio, apoiou-lhe a mão no ombro e afastou-o da tenda. Depois, retirou a mão.
Caio Lúsio era muito atraente. Os seus olhos eram verdes e com grandes pestanas; o cabelo, um emaranhado de caracóis de um ruivo escuro; as sobrancelhas eram arqueadas e escuras; o nariz era aquilino. ”Parece um pequeno Apolo”, pensou Sila, impassível.
Sila duvidava que Mário tivesse sequer pousado os olhos no jovem; não seria habitual em Mário. Pressionado pela sua família a aceitar Caio Lúsio na sua família militar - escolhera Caio Lúsio para tribuno não-eleito dos soldados porque este estava na idade -, Mário teria preferido esquecer-se de que o jovem existia. Até que a sua presença se fizesse notar, oxalá por meio de qualquer feito valoroso ou por demonstrar capacidades extraordinárias.
- Caio Lúsio, vou dar-te um conselho - disse Sila secamente. As longas pestanas de Lúsio abanaram e baixaram-se.
- Agradeço qualquer conselho vindo de ti, Lúcio Cornélio.
- Só te juntaste a nós ontem, vindo de Roma - começou Sila. Lúsio interrompeu-o.
- De Roma, não, Lúcio Cornélio. De Ferentino. O meu tio Caio Mário concedeu-me uma licença especial para permanecer em Ferentino, porque a minha mãe estava doente.
”Ah!” pensou Sila. ”Isso explica o modo duro e sem cerimónias com que Mário se referia a este sobrinho por afinidade! Como Mário odiaria ter de avançar essa desculpa para a chegada tardia do sobrinho, quando nunca a teria usado para si próprio!”
- O meu tio ainda não me chamou - queixava-se agora Lúsio. Quando poderei vê-lo?
- Só quando te chamar, e duvido que venha a fazê-lo. Até provares o teu valor, és um embaraço para ele, nem que seja por teres exigido um privilégio extra antes de ter sequer começado a campanha, visto que chegaste tarde.
- Mas a minha mãe estava doente! - disse Lúsio indignado.
- Todos nós temos mães, Caio Lúsio; ou todos as tivemos. Muitos de nós tivemos de partir em serviço militar quando as nossas mães estavam doentes. Muitos de nós soubemos da morte das nossas mães quando nos encontrávamos em serviço, muito longe delas. Muitos de nós estamos profundamente ligados às nossas mães, ainda vivas. Mas a doença de uma mãe não costuma considerar-se uma boa desculpa para se aparecer tarde no serviço. Suponho que já deves ter informado todos os teus companheiros de tenda do motivo do atraso.
- Sim - afirmou Lúsio, cada vez mais espantado.
- É lamentável. Terias feito muito melhor se os tivesses deixado na dúvida. Não será por isso que irão pensar melhor de ti, e o teu tio sabe que não terão melhor opinião dele por isso. Mas os laços de sangue são o que são, e muitas vezes, originam injustiças - Sila encolheu os ombros. - No entanto, não era isto o que tinha para te dizer. Este é o exército de Caio Mário e não o de Cipião Africano. Sabes a que é que me refiro?
- Não - disse Lúsio, que estava completamente fora do seu elemento.
- Catão, o Censor, acusou Africano e os seus oficiais séniores de comandarem um exército crivado de relaxamento moral. Acontece que o modo de pensar de Caio Mário está mais próximo do de Catão, o Censor, do que do de Cipião Africano. Faço-me entender?
- Não - repetiu Caio Lúsio, empalidecendo.
- Creio que me expliquei muito bem - afirmou Sila, com um sorriso que lhe punha à mostra os dentes enormes. - Sentes-te atraído por rapazes novos e não por raparigas. Não posso acusar-te de efeminamentO às claras, mas se continuares a fazer olhinhos a Caio Júlio, que por sinal é cunhado do teu tio, tal como eu, ver-te-ás metido num grande sarilho. A preferência pelo seu próprio sexo não é uma virtude romana. Antes pelo contrário, é considerada - e especialmente nas legiões! - um vício indesejável. Senão, talvez as mulheres das cidades próximas do acampamento não fizessem tanto dinheiro, nem as mulheres dos inimigos que capturamos seriam as primeiras a tomar contacto com as espadas romanas. Mas tens de ficar um pouco a par disto, pelo menos!
Lúsio estremeceu, dilacerado entre um sentimento de inferioridade inexplicável e um sentido de injustiça que o despedaçava.
- Os tempos estão a mudar - protestou. - Isso já não é visto como uma tara social!
- Tu não entendes os tempos, Caio Lúsio, provavelmente por quereres que eles mudem, e por estares ligado a um grupo de gente que sente o mesmo que tu. Por isso, juntam-se e comparam as vossas opiniões, aproveitando qualquer comentário para apoiar a vossa contenda. Garanto-te - disse Sila, muito sério - que quanto mais andares pelo mundo onde nasceste, mais descobrirás que andas a iludir-te. E emparte nenhuma encontrarás menor perdão pela tua preferência do que no exército de Caio Mário. E ninguém te cairá em cima com mais dureza do que Caio Mário, se descobrir o teu segredo.
Quase a chorar, Lúsio torceu as mãos numa vã angústia.
- Vou enlouquecer! - gritou.
- Não vais, não. Vais disciplinar-te, ser extremamente cuidadoso em quaisquer propostas que faças, e, logo que possas, aprenderás os sinais que vigoram aqui entre homens do teu género - disse Sila. - Não posso ensinar-te esses sinais, pois não me entrego a esse vício. Se ambicionas ter êxito numa carreira pública, Caio Lúsio, aconselho-te vivamente a não cederes ao vício. Mas como, afinal de contas, és novo, se descobrires que não consegues controlar os teus apetites, trata de escolher o homem certo - e com um sorriso mais simpático, Sila virou-lhe as costas e desapareceu.
Por momentos, Sila limitou-se a vaguear sem destino, de mãos atrás das costas, observando a actividade ordenada à sua volta. As legiões haviam recebido ordens para construir um acampamento temporário, apesar de não haver nenhuma força inimiga dentro da província; simplesmente, o exército romano não dormia desabrigado. Os agrimensores e engenheiros já estavam a tratar da construção do acampamento no topo do monte, e as companhias de cavalaria que não haviam sido destacadas para essa tarefa, ocupavam-se dos primeiros estádios da fortificação do monte. Para esse efeito, tinham de arranjar madeira para as vigas, postes e edifícios. E o baixo vale do Ródano tinha poucas florestas, pois era densamente povoado há vários séculos, desde que os Gregos haviam fundado Massília e a influência grega - e a seguir romana - se expandira para o interior.
O exército ficava acampado para o Norte das vastas marinhas que formavam o delta do Ródano e se expandiam tanto para oeste como para leste; era típico de Mário escolher terrenos não cultivados para a construção dos acampamentos, quer os temporários, quer os permanentes.
- Não há razão para hostilizar os nossos aliados potenciais - explicou. - Além de que, com cinquenta mil bocas extra para alimentar na região, necessitarão de toda a terra arável que tiverem.
Os encarregados dos cereais e alimentos de Mário já haviam ido fechar os contratos com os agricultores, e alguns dos soldados construíam celeiros no topo do monte com cereais que chegavam para alimentar cinquenta mil homens durante os doze meses entre uma colheita e a outra. A pesada carga continha todo o tipo de artigos que as fontes de informação de Mário tinham dito serem impossíveis de obter ou simplesmente escassas na Gália Transalpina - pez, vigas maciças, roldanas, moinhos, cal e uma quantidade enorme de parafusos e pregos de ferro. Em Populónia e Pisa, os dois portos que recebiam os lingotes de ferro maleável da ilha de Elba, o praefectus fabrum havia comprado todos os lingotes disponíveis e trouxera-os, para o caso de os engenheiros terem de fazer aço; no pesado carregamento encontravam-se bigornas, cadinhos, martelos, tijolos refractários e todas as ferramentas necessárias. Um grupo de soldados já havia partido em busca de madeira para fazer um grande armazenamento de carvão, pois sem carvão era impossível obter uma fornalha com o Calor necessário para fundir o ferro, e muito menos para transformá-lo em aço.
E quando Sila se dirigiu para a tenda de comando do general, tinha decidido que chegara a sua altura; havia delineado uma resposta para o tédio, uma resposta que lhe daria todo o drama por que ansiava. A ideia germinara enquanto ainda estava em Roma, crescera durante o percurso ao longo da costa, e agora podia dar flor. Sim, era altura de ir ter com Caio Mário.
O general estava só, escrevendo industriosamente.
- Caio Mário, acaso terás uma hora livre? Gostava que me acompanhasses num passeio - disse Sila, segurando a tira que separava a tenda do abrigo onde se encontrava o oficial de dia. Um raio de luz indiscreto imiscuira-se por detrás dele, rodeando-o de uma aura de ouro líquido, A sua nuca descoberta e os ombros brilhavam com o fogo dos cabelos aos caracóis.
Mário olhou-o com desagrado.
- Precisas de um corte de cabelo - disse-lhe secamente. - Mais umas polegadas e pareces uma bailarina!
- Que extraordinário! - disse Sila sem se mexer.
- Eu chamar-lhe-ia antes desmazelo.
- Não, o que é extraordinário é que não tenhas reparado nisso há meses e repares exactamente neste momento, em que isso me ocupa a mente. Talvez não leias as mentes das pessoas, Caio Mário, mas penso que estás sintonizado com a mente daqueles com quem trabalhas.
- Também pareces uma bailarina a falar - comentou Mário. - Por que queres que te acompanhe no passeio?
- Porque preciso de falar-te em particular, Caio Mário, em qualquer lugar onde possa estar certo de que nem as paredes nem as janelas tenham ouvidos. Um passeio deve servir.
Mário pousou a pena, enrolou o rolo de papel e levantou-se de imediato.
- Prefiro muito mais passear do que escrever, Lúcio Cornélio, por isso, vamos - disse.
Os dois atravessaram o acampamento rapidamente, sem falar nem reparar nos olhares curiosos que lhes lançavam os grupos de centuriões, cadetes e outros soldados; ao fim de três anos de campanha com Caio Mário e Lúcio Cornélio Sila, os homens destas legiões tinham desenvolvido um sentido de segurança acerca dos seus comandantes que os alertava sempre que estava para acontecer alguma coisa importante. E hoje era um desses dias: todos o pressentiam.
Era demasiado tarde para subir o monte, e Mário e Sila pararam num lugar onde o vento lhes levava as palavras.
- O que se passa? - perguntou Mário.
- Comecei a deixar crescer o cabelo em Roma - disse Sila.
- Não me tinha apercebido até agora. Suponho que o cabelo deve ter a ver com o assunto de que me queres falar.
- Vou transformar-me em gaulês - anunciou Sila. Mário ficou de sobreaviso.
- Continua, Lúcio Cornélio.
- O aspecto mais frustrante desta campanha contra os Germanos é a nossa abismal falta de informações credíveis acerca deles - explicou Sila. - Desde o início, quando os Tauriscos nos mandaram o pedido de auxílio e soubemos que os Germanos estavam em migração, temos estado incapacitados pelo facto de não sabermos absolutamente nada sobre eles. Não sabemos quem são, donde vêm, que deuses adoram, por que motivo migraram da sua terra natal, que tipo de organização social ou de governo têm. Acima de tudo, não sabemos por que razão continuam a derrotar-nos e a desaparecer de Itália, quando não terias detido Aníbal ou Pirro com uma barricada de um milhão de elefantes de guerra.
Os olhos de Sila observavam Mário a noventa graus, e os últimos raios de sol brilhavam neles, enchendo Mário de um receio incómodo; em raras ocasiões, era surpreendido por uma faceta de Sila normalmente escondida, a faceta que considerava a desumanidade de Sila, e não aplicava esse termo a nenhuma das suas conotações mais aceites, Simplesmente, Sila tinha a capacidade de deixar subitamente cair um véu que o revelava como não humano - mas também não divino - uma invenção diferente dos deuses. Essa qualidade neste momento encontrava-se reforçada, com o sol preso nos seus olhos como se fosse aí a sua morada.
- Continua - disse Mário. Sila continuou.
- Antes de partirmos de Roma, comprei dois novos escravos. Viajaram comigo, e ainda os tenho. Um deles é um gaulês dos Carnutos, a tribo que controla toda a religião céltica. É um tipo de adoração estranho: acreditam que as árvores são animadas, que têm espíritos ou sombras, ou qualquer coisa do gênero. O outro é um germano dos Cimbros, capturado na Nórica quando Carbona foi derrotada. Mantenho-os isolados um do outro. Nenhum deles sabe da existência do outro.
- Não conseguiste obter informações sobre os Germanos do teu escravo germano? - perguntou Mário.
- Nada. Finge que não sabe quem são nem donde vêm. Os meus questionários levam-me a crer que esta ignorância é uma característica geral dos poucos Germanos que conseguimos capturar e escravizar, embora eu duvide muito que qualquer outro dono de escravos romano tenha feito tentativas para obter informações. Isso é irrelevante. A minha intenção ao comprar este germano era obter informações, mas como se mostrou recalcitrante... e não faz sentido torturar uma pessoa que se mantém firme como um touro gigantesco... tive uma ideia melhor. As informações, Caio Mário, surgem geralmente em segunda mão. E para os nossos intentos, isso não serve.
- É verdade - afirmou Mário, que sabia agora aonde Sila queria chegar mas não fazia tenção de apressá-lo.
- Por isso, comecei a pensar que se a guerra com os Germanos não estava iminente, isso permitia-nos tentar obter informações acerca deles em primeira mão - disse Sila. - Os meus dois escravos estão ao serviço dos Romanos há tempo suficiente para terem aprendido latim, embora no caso do germano seja um latim muito rudimentar. Soube através do meu gaulês dos Carnutos que para lá do mar Central, na Gália-de-Longos-Cabelos, a segunda língua falada pelos Gauleses é o latim e não o grego! Não quero com isto dizer que os Gauleses troquem entre si ditos espirituosos em latim, mas apenas que graças aos contactos entre as tribos enraizadas como os Éduos e nós mesmos, seja pela via dos soldados ou dos negociantes, há um ou outro gaulês que fala um pouco de latim e aprendeu a ler e a escrever. Como as línguas deles não são escritas, quando lêem e escrevem fazem-no em latim. E não em grego. Não é fascinante? Estamos tão habituados a pensar no grego como a língua franca do mundo que é quase hilariante encontrar uma parte do mundo que prefere o latim!
- Não sendo nenhum erudito nem filósofo, Lúcio Cornélio, devo confessar que isso não me excita particularmente. No entanto - disse Mário, com um sorriso ténue -, estou extremamente interessado em saber mais acerca dos Germanos!
Sila elevou as mãos, rendendo-se com uma certa ironia.
- Fizeste valer a tua opinião, Caio Mário! Muito bem. Há cerca de cinco meses que ando a aprender a língua dos Carnutos do centro da Gália-de-Longos-Cabelos e a dos Cimbros Germanos. O meu professor de Carnuto está muito mais entusiasmado com o projecto do que o meu professor de germano; mas ele também é um sujeito mais inteligente Sila fez uma pausa para meditar na sua afirmação e mostrou-se descontente com ela. - A minha impressão de que o germano é mais desinteressante talvez não esteja correcta, Como o choque da separação dos seus é muito maior para ele do que para o gaulês, talvez esteja a sofrer com o afastamento mental. Ou então, dada a sorte de apanhá-lo e o facto de ser suficientemente tolo para se ter deixado capturar numa guerra ganha pelo seu povo, talvez seja apenas um germano pouco inteligente.
- Lúcio Cornélio, a minha paciência não é infinita - disse Mário, resignado e sem qualquer sinal de irritação. - Tens todos os sintomas de um Peripatético extremamente peripatético!
- As minhas desculpas - disse Sila com um esgar, virando-se depois para olhar Mário de frente. A luz apagara-se-lhe nos olhos e voltara a assumir um ar humano.
- Com o meu cabelo, pele e olhos - disse Sila, decidido -, passo bem por gaulês. Tenciono transformar-me num gaulês e viajar até áreas onde nenhum romano ousaria ir. Em especial, tenciono vigiar de perto os Gauleses no seu caminho para a Espanha, o que, segundo penso, incluirá o povo dos Cimbros e também outros povos. Sei o suficiente de germano cimbro para entender minimamente o que eles dizem, pelo que me concentrarei nos Cimbros - e prosseguiu, rindo. - O meu cabelo devia estar mais comprido do que o de uma bailarina, mas de momento bastará que fique assim. Se me interrogarem acerca do tamanho, direi que tive uma doença no escalpe que me obrigou a rapá-lo. Felizmente, cresce muito depressa.
Sila ficou em silêncio. Durante alguns momentos, Mário não disse nada, limitando-se a pôr o pé sobre um tronco, apoiar o cotovelo no joelho e o queixo no punho. A verdade é que não sabia o que dizer. Há meses que receava que Lúcio Cornélio preferisse a abundância de Roma à campanha, por esta poder ser demasiado aborrecida, e durante todo esse tempo Lúcio Cornélio tinha estado a elaborar um plano que prometia não vir a ser aborrecido. Que plano! E que homem! Ulisses fora o primeiro espião de que havia notícia, disfarçando-se de vulgar troiano e penetrando nas muralhas do Ilio para recolher todas as informações possíveis. E um dos temas favoritos dos alunos de um grammaticu era debater se Calcante fora ou não derrotado pelos Aqueus por estar farto dos Troianos ou por estar a fazer espionagem ao serviço do rei Príamo, ou ainda por querer semear a discórdia entre os reis da Grécia.
Também Ulisses tinha cabelos ruivos; e provinha de uma família de origens nobres. E no entanto, Mário não conseguia ver Sila como um Ulisses actual. Ele era o seu homem, completo e perfeito, tal como o seu plano. Era nítido que não conhecia o medo; encarava esta missão de modo bem ligeiro e... e até invulnerável, Por outras palavras, encarava-a como o aristocrata romano que era. Não tinha dúvidas de que iria ter êxito, pois sabia que era melhor do que os outros homens.
Mário endireitou-se, inspirou e perguntou-lhe:
- Pensas mesmo que conseguirás fazer isso, Lúcio Cornélio? És tão Romano! Estou cheio de admiração por ti, e é um plano verdadeiramente brilhante. Mas terás de apagar em ti toda e qualquer marca que te identifique como romano, e não sei se algum romano poderá fazer tal coisa. A nossa cultura é de uma força incrível; deixa em nós marcas indeléveis. Terás de viver uma mentira.
Sila ergueu uma sobrancelha ruivo-dourada; os cantos dos seus belos lábios desceram.
- Oh, Caio Mário, toda a minha vida tem sido uma mentira, de uma forma ou de outra!
- Mesmo agora?
- Mesmo agora.
E os dois viraram-se, para regressar.
- Tencionas ir sozinho, Lúcio Cornélio? - perguntou Mário. - Não seria boa ideia levares companhia? E se por acaso precisares de enviar-me uma mensagem urgente e não puderes sair? Não seria uma boa ajuda teres contigo um camarada que te servisse de espelho, e tu a ele?
- Pensei em tudo isso, - disse Sila - e gostaria de levar comigo Quinto Sertório.
De início, Mário pareceu encantado, mas depois encolheu os ombros.
- Ele é demasiado escuro; nunca passaria por gaulês e muito menos por germano.
- É verdade. Mas poderia ser um grego com sangue celtibero - Sila aclarou a garganta. - Dei-lhe um escravo quando partimos de Roma: um celtibero, da tribo dos Ilergetes. Não contei a Quinto Sertório o que andava no ar mas disse-lhe que devia aprender a falar celtibero.
Mário ficou espantado.
- Estás bem preparado; aprovo.
- Posso então levar Quinto Sertório?
- Sim; embora ele me pareça demasiado escuro e me interrogue se esse facto não te arruinará.
- Não, vai correr tudo bem. Quinto Sertório é-me extremamente valioso, e a sua tez redundará numa vantagem. É que Quinto Sertório tem uma certa magia animal, e os homens com essa qualidade são muito respeitados por todos os povos bárbaros. A tez contribuirá para o seu poder de xamane.
- Magia animal? O que queres dizer com isso?
- Quinto Sertório sabe chamar a si animais selvagens. Reparei nisso em África, quando chamou um leopardo e lhe fez festas. Mas só comecei a pensar no papel dele para esta missão quando domesticou a águia bebé que nós tratámos sem aniquilar o seu desejo natural de ser livre e selvagem. E agora, a águia vive como as outras da sua espécie mas permanece amiga dele e vem vísitá-lo, pousa no seu braço e beija-o. Os soldados veneram-no; é um augúrio poderoso.
- Eu sei - disse Mário. - A águia é o símbolo das legiões e Quinto Sertório reflorçou-o.
Ficaram os dois a olhar para o local onde estavam a colocar seis argenteas águias sobre postes de prata ornamentados com coroas e phalerae: à sua frente ardia uma fogueira sobre um tripé, as sentinelas estavam em sentido e um sacerdote de toga cujas pregas se encontravam subidas de forma a cobrir-lhe a cabeça atirava incenso para as achas enquanto dizia as orações do pôr do sol.
- Qual é exactamente a importância da magia animal? - perguntou Mário.
- Os Gauleses são altamente supersticiosos quanto aos espíritos que habitam a natureza selvagem, tal como os Germanos cimbros, suponho eu. Quinto Sertório disfarçar-se-á de xamane de uma tribo espanhola tão distante que nem as tribos dos Pirenéus podem saber muito deles - disse Sila.
- Quando tencionas partir?
- Muito em breve. Mas preferia que fosses tu a informar Quinto Sertório - respondeu Sila. - Ele vai querer vir, mas a sua lealdade em relação a ti é total, por isso é melhor que sejas tu a dizer-lhe - Sila soprou pelas narinas. - Mais ninguém deve saber de nada. Ninguém!
- Não posso estar mais de acordo - disse Mário. - No entanto, há três escravos que sabem qualquer coisa, pois têm-te dado lições de línguas. Queres que sejam vendidos e enviados de barco para qualquer lado?
- Para quê tanto trabalho? - perguntou Sila, surpreendido, - Tenciono matá-los.
- É uma excelente ideia, mas perderás dinheiro.
- Não perderei nenhuma fortuna. Considera esse dinheiro a minha contribuição para o êxito da campanha contra os Germanos - disse Sila.
- Mandá-los-ei matar logo que partas.
Mas Sila abanou a cabeça.
- Não, eu mesmo me ocuparei das tarefas sujas. Ensinaram-me a mim e a Quinto Sertório tudo o que sabiam. Amanhã mandá-los-ei fazer-me um recado a Massília - Sila espreguiçou-se, bocejou voluptuosamente. - Sou bom no arco, Caio Mário. E as marinhas são desertas. Todos pensarão que fugiram. Incluindo o próprio Quinto Sertório.
”Sou demasiado terra-a-terra”, pensou Mário. ”Não é que me importe de mandar matar homens, mesmo a sangue-frio. Isso faz parte da vida, como todos sabemos, e não ofende os deuses. Mas ele é mesmo um Romano patrício; demasiado acima da terra. Um verdadeiro semi-deus.” E Mário viu-se a rever na sua mente as palavras da profetisa síria, Marta, agora luxuosamente instalada como convidada de honra na sua casa de Roma. Um Romano muito mais importante, um Caio Júlio e não Mário... seria isso o que faltava? Essa gota semi-divina de sangue patrício?
Dizia Públio Rutílio numa carta para Caio Mário, datada de fins de Setembro:
Públio Licínio Nerva encheu-se por fim da coragem necessária para escrever ao Senado com uma franqueza total acerca da situação na Sicília. Como cônsul sénior, enviar-te-ão os despachos oficiais, mas primeiro vais ouvir a minha versão, porque sei muito bem que preferes ler a minha carta antes dos entediantes despachos, e consegui arranjar lugar para ela no saco do correio oficial.
Mas antes de te contar as notícias acerca da Sicília, é necessário remontarmos ao início do ano, quando - como sabes - a Assembleia recomendou ao Povo nas suas tribos que devia ser aprovada uma lei que libertasse todos os escravos dos povos Aliados Italianos do mundo inteiro. Mas não deves saber que isso teve uma repercussão inédita - nomeadamente, que os escravos dos outros povos, em especial os daqueles oficialmente designados por Amigos e Aliados do Povo Romano, ou assumiram que a lei também lhes dizia respeito, ou ficaram enormemente descontentes por ela não lhes ser dirigida. Foi o que aconteceu com os escravos gregos, que constituem a maioria dos escravos que trabalham nos campos de cereais da Sícília, e estão em maioria entre os escravos da Campânia.
Em Fevereiro, o filho de um cavaleiro da Campânia, o cidadão romano Tito Vétio, de apenas vinte anos de idade, parecia ter enlouquecido. A causa da sua loucura foi uma dívida; comprometera-se apagar sete talentos deprata por uma rapariga escrava da Cítia. Mas como o velho Tito Vétio é um avarento de primeira e demasiado idoso para ser pai de um rapaz de vinte anos, o jovem Tito Vétio pediu o dinheiro emprestado com juros altíssimos, alegando como garantia adicional toda a sua herança. É evidente que ficou tão indefeso como uma galinha depenada nas mãos dos que lhe emprestaram o dinheiro e que insistiram para que ele o pagasse ao fim de trinta dias. Ora ele não conseguiupagá-lo, e obteve um adiamento do prazo por mais trinta dias. Mas como voltou a não poder pagar-lhes, eles dirigiram-se ao pai dele, pedindo-lhe o dinheiro do empréstimo - a juros exorbitantes, O pai recusou, e desonrou o filho. E este enlouqueceu.
A seguir, o jovem Tito Vétio pôs um diadema e uma túnica púrpura, declarou-se rei da Campâna e levou à insurreição todos os escravos da zona. O pai, apresso-me a acrescentar, é um daqueles criadores de gado à antiga - trata bem os seus escravos e não tem italianos entre eles. Mas pelo caminho havia um dos novos criadores de gado, daqueles homens odiosos que compram escravos ao preço da chuva, os acorrentam para trabalhar, não querem saber as suas origens e os fazem dormir em barracas de ergastulum. O nome do sujeito desprezível era Marco Macrino Matador, que por sinal foi um grande amigo do nosso colega júnior no consulado, o nosso Caio Flávio Fímbria, maravilhosamente empertigado e honesto,
No dia em que Tito Vétio enlouqueceu, comprou quinhentos grupos de armas antigas que uma escola gladiatorial tinha para leiloar e armou os seus escravos. Lá marchou o pequeno exército pela estrada fora em direcção ao poço de escravidão de Marco Macrino Matador. E matou Matador e a família e libertou uma grande quantidade de escravos, muitos dos quais pertenciam aos povos Aliados Italianos, pelo que foram detidos ilegalmente.
Muito em breve, o jovem Tito Vétio, o rei da Campânia, tinha um exército de escravos de mais de quatro mil homens, e fizera uma barricada num acampamento muito bem fortificado, no topo de uma colina. E os servos recrutas continuavam a juntar-se! Cápua fechou as portas, alinhou todas as suas escolas de gladiadores e pediu auxílio ao senado.
Fímbria foi muito enfático em relação ao assunto e carpiu a morte do seu amigo Matador Carniceiro até os Pais Conscritos estarem tão fartos de ouvi-lo que encarregaram o praetor peregrinus, Lúcio Licínio Lúculo, de reunir um exército e esmagar o levantamento dos servos. Sabes bem que tipo de aristocrata é Lúcio Licínio Lúculo! Não viu com bons olhos o facto de receber ordens para ir limpar a Campânia, vindas de uma barata como o Fímbria.
E agora, uma ligeira divagação. Suponho que sabes que Lúculo é casado com a irmã do Metelo Suíno, Metela Calva. Têm doisfilhos de mais ou menos catorze e doze anos de idade, dos quais se diz que são extremamente promissores; e como o filho do Suíno, o Bacorinho, não consegue dizer duas palavras seguidas, a família inteira assenta todas as suas esperanças no jovem Lúcio e no jovem Marco Lúculo. Agora para, Caio Mário! já ouço aqui os teus murmúrios de dúvida! Tudo isto é importante, tens de acreditar. Como podes movimentar-te incólumepelo labirinto da vida pública de Roma se não te deres ao trabalho de conhecer as ramificações familiares e as intrigas? A mulher de Lúculo - que é irmã do Suíno
- é conhecida pela sua imoralidade. Em primeiro lugar, trata dos assuntos do coração em público, com cenas de histeria em frente de lojas de joalheiros populares e uma ou outra tentativa de suicídio, na qual despe todas as suas roupas e tenta atirar-se da muralha para o Tibre. Mas, em segundo lugar, a pobre Metela Calva não namorisca com homens da sua classe, e é isso o que magoa o nosso pomposo Suíno. Para não falar do arrogante Lúculo. Não; Metela Calva gosta de escravos bonitos, ou trabalhadores pesadões que apanha nas docas do porto de Roma. Isso transforma-a num pesado fardo tanto para o Suíno como para Lúculo, apesar de eu crer que é uma excelente mãe para os seus filhos.
Acabou a divagação. Referi isto para dar à história um pouco de sabor, tão necessário, Isto para te dar a entender a razão que levou Lúculo a partir para a Campânia sofrendo por ter de obedecer às ordens do homem que teria agradado a Metela Calva se fosse mais pobre - pois não poderia ser mais grosseiro! Passa-se qualquer coisa muito estranha com Fímbria. Tornou-se amigo de Caio Mémio, e ambos estão cheios de dinheiro, que passa de mãos sem que se saiba com que propósito.
De qualquer modo, Lúculo partiu pouco depois para a Campânia. O jovem Tito Vétio foi executado, bem como os seus oficiais e os membros do seu exército de escravos. Lúculo foi elogiado pelo seu trabalho e voltou a fazer interrogatórios jurídicos em lugares como Areate.
Mas não te contei que há algum tempo tive o pressentimento das pequenas sublevações do ano passado na Campânia? Estava certo. Primeiro, tivemos Tito Vétio. E agora, temos uma guerra de escravos na Sicília!
Sempre pensei que Públio Licínio Nerva parecia um rato e agia como tal, mas quem iria sonhar que seria perigoso enviá-lo para a Sicília como pretor-governador? Ele é tão meticuloso que o cargo lhe assentava na Perfeição. Corrida para aqui, corrida para ali, passar o Inverno nos celeiros, escrever relatórios cheios de pormenores com a ponta da pena afogada em tinta, de suíças a tremer.
Evidentemente, tudo teria corrido bem se não fosse a maldita lei acerca da libertação dos escravos dos Aliados Italianos. O nosso pretor-governador Nerva apressou-se a ir para a Sicília e começou a alforriar os italianos, que são aproximadamente um quarto do total dos escravos que trabalham nos campos de cereais. E ele começou em Siracusa, ao passo que o seu questor partiu do Lilibeu, no outro extremo da ilha. Sendo Nerva como é, tudo correu na maior das lentidões e das precisões - a propósito, ele desenvolveu um sistema excelente para apanhar os escravos que se afirmavam italianos sem o serem, fazendo-lhes um interrogatório sobre a geografia oscana e local da nossa península. Mas publicou o seu decreto apenas em latim, pensando que isso também iria excluir os potenciais impostores. O resultado foi que aqueles que liam grego necessitaram de auxílio na tradução e a confusão não parou de aumentar.
Nas últimas duas semanas de Maio, Nerva libertou cerca de oitocentos escravos italianos em Siracusa, enquanto o seu questor no Lilibeu marcava passo, à espera de ordens. Então, chegou a Siracusa uma delegação muito zangada de agricultores, com ameaças que iam da castração aos processos judiciais, se Nerva continuasse a libertar escravos. Nerva entrou em pânico à vista deste gato raivoso e apressou-se a fechar o tribunal. Não seriam libertados mais escravos. Esta directiva chegou ao seu questor no Lilibeu um pouco tarde demais, infelizmente, pois este cansara-se de esperar e montara o tribunal no mercado. Agora, que mal tinha começado, também teve de encerrá-lo. Os escravos alinhados no mercado estavam literalmente doidos de raiva e foram-se embora furiosos.
A consequência disto foi uma revolta no extremo ocidental da ilha. Tudo começou com o assassínio de dois irmãos ricos que tinham uma grande propriedade perto de Halteias, e a partir daífoi sempre alastrando. Por toda a Sicília, escravos às centenas, e mais tarde aos milhares, abandonaram as quintas, alguns deles depois de terem assassinado os capatazes e até mesmo os donos, e convergiram para a Mata dos Palicos, que fica, julgo eu, a quarenta milhas a sudoeste do monte Etna. Nerva chamou a sua milícia e pensava ter esmagado a revolta quando tomou de assalto uma antiga cidadela cheia de escravos refugiados. Então, desfez a milícia e mandou os homens para casa.
Mas a revolta estava apenas no início e voltou a atear-se perto de Heracleia Minoa, e quando Nerva tentou voltar a reunir a milícia, todos fizeram orelhas moucas. Então viu-se forçado a recorrer a uma coorte de auxiliares estacionados no Ema, bastante longe de Heracleia Minoa, pois constituíam a única força disponível. Desta vez, Nerva não venceu, A coorte inteira foi abatida e os escravos adquiriram armas.
Enquanto isto decorria, os escravos escolheram um chefe, como era de prever, um italiano que não fora liberto antes de Nerva ter mandado fechar os tribunais. Chama-se Sálvio e pertence aos Marsos. Quando era um homem livre, parece que era encantador de serpentes, e foi escravizado por ter sido apanhado a tocar flauta para mulheres envolvidas nos ritos dionisíacos que tanto preocuparam o Senado há uns anos. Agora, Sálvio intitula-se rei, mas, sendo italiano, o seu conceito de rei é romano e não helénico. Prefere usar a toga praetexta em vez de um diadema, e é precedido por lictores portando os fasces com os machados.
Na extremidade da Sicília, algures perto do Lilibeu, surgiu depois um segundo rei-escravo, desta vez um grego chamado Athenion, e que também sublevou um exército. Tanto Sálvio como Athenion convergiram para a Mata dos Palicos, onde fizeram uma reunião. O resultado foi que Sálvio (que se intitula agora rei Trifão passou a ser o governante de todos, e escolheu para residência um lugar inexpugnável chamado Tridcala, situado nasfaldas das montanhas acima da costa oPosta a África, a meio caminho entre Agrigento e Lilibeu.
Nestepreciso momento, a Sicília éuma verdadeira Ilíada de temores. A colheita encontra-se pisada no solo, além do que os escravos colheram para encherem a barriga, e Roma não receberá cereais da Sicília este ano. As cidades da Sicília estão a rebentar pelas costuras, devido ao número de refugiados que vieram procurar abrigo dentro das suas muralhas, e a fome e as doenças já andam à espreita pelas ruas. Um exército de mais de sessenta mil escravos bem armados - e cinco mil escravos a cavalo - lança-se de modo selvagem por todo o lado, de uma ponta à outra da ilha, e quando é ameaçado retira-se para a sua fortaleza inexpugnável de Tridcala. já atacaram e tomaram Murgância, e só não conseguiram conquistar Lilibeu, que felizmente foi salvo por alguns veteranos vindos de África de barco em nosso auxílio quando souberam da desordem.
E eis que surge a última indignidade. Não só Roma terá de enfrentar uma escassez drástica de cereais, como parece que alguém tentou manipular os acontecimentos na Sicília de forma a criar essa mesma escassez! A sublevação dos escravos transformou o que teria sido umafalta simulada numafalta verdadeira, mas o nosso estimado Princeps Senatus está a farejar uma pista que o conduzirá, ou pelo menos espera-o, ao maior culpado de todos. Imagino que suspeita do nosso desprezível cônsul Fímbria e de Caio Mémio, Por que haveria um homem decente e íntegro como Mémio de se aliar com tipos como o Fímbria? Penso que posso responder. Ele devia ter sido pretor há vários anos mas apenas ascendeu ao cargo agora, e não tem dinheiro para concorrer para cônsul E quando afalta de dinheiro mantém um homem afastado de uma cadeira na qual se acha no direito de se sentar, pode fazer muitas coisas imprudentes.”
Caio Mário pousou a carta com um suspiro, puxou os despachos do Senado para perto dele e leu-os também, confortavelmente só, podendo assim deslindar em voz alta a confusão de palavras, se o desejasse. Não havia mal nisso; todos liam em voz alta; mas em princípio, todos os outros sabiam grego.
Públio Rutílio tinha razão, como sempre. A sua carta extremamente longa informava muito mais do que os despachos, embora nestes estivesse incluída a carta de Nerva e imensas estatísticas. Mas não eram tão apelativas nem recheadas de novidades. Nem colocavam um homem em primeiro plano, como Rutílio fazia.
Mário conseguia facilmente imaginar a consternação em Roma. Uma falta drástica de cereais punha em risco as futuras medidas políticas, e um Tesouro resmungão, a competição dos edis para arranjarem fontes alternativas de cereais. A Sicília era o celeiro, e quando a sua colheita não era boa, Roma ficava com a fome estampada no rosto. Nem África nem a Sardenha enviavam tanta produção de cereais como a Sicília. Nem as duas juntas! A crise actual faria o Povo culpar o Senado por ter enviado um governador incompetente para a Sicília, e os capite censi atribuiriam ao Povo e ao Senado as culpas pelas suas barrigas vazias.
Os capite censi não eram um organismo político; tanto lhes fazia governarem como serem governados. A totalidade da sua participação na vida pública resumia-se aos lugares nos jogos e às distribuições gratuitas durante as festas. Até ao momento de terem a barriga vazia, altura em que passavam a ser uma força a ter em conta.
Não era que os capite censi não pagassem os cereais que comiam; mas o Senado, através dos seus edis e questores, garantia que pagassem os cereais a um preço razoável e, mesmo em períodos de escassez, isso implicava comprar cereais caros para vendê-los aos mesmos preços acessíveis, para grande contrariedade do Tesouro. Qualquer cidadão romano residente em Roma podia comprar uma ração de cereais a preços fixos, por mais rico que fosse, desde que estivesse disposto a juntar-se à enorme fila que se amontoava em frente da mesa do edil curul, no Pórtico de Minúcio, para obter as suas notas de despesa; estas, quando apresentadas num dos celeiros do Estado ao longo das escarpas do Aventino, acima do porto de Roma, permitiam comprar cinco modii de cereais baratos. Poucas pessoas ricas se davam a esse trabalho por pura conveniência; era muito mais fácil fazer as compras no mercado de cereais do Velabro e deixar a cargo dos comerciantes o transporte dos celeiros particulares na base do Palatino, no Vicus Tuscus.
Vendo-se apanhado no que podia ser uma posição política precária, Caio Mário franziu as suas magníficas sobrancelhas. Assim que o Senado pedisse ao Tesouro para abrir as suas caixas-fortes cheias de telas de aranha para comprar cereais caros para os capite censi, começaria o barulho. Os chefes dos tribuni aerarii - os burocratas - protestariam que não podiam pagar enormes quantias pelos cereais quando estava um exército de capite censi de seis legiões na Gália Transalpina ocupada com obras públicas! Isso por sua vez faria passar o encargo para o Senado, que teria de travar uma batalha feroz com o Tesouro para obter os cereais extra; e então, o Senado queixar-se-ia ao Povo de que, como de costume, os capite censi constituíam um incómodo altamente dispendioso.
- Que maravilha! Como conseguiria Mário ser eleito cônsul in absentia, se comandava um exército de capite censi e Roma estava à mercê de uma massa esfomeada de capite censi? Que Públio Licínio Nerva apodrecesse, bem como todos os especuladores de cereais!
Marco Emílio Escauro foi o único a pressentir qualquer coisa antes da crise. Em alturas normais, o preço dos cereais em Roma baixava um pouco no fim do Verão, antes da colheita. Mas este ano subira a um ritmo constante. A razão parecia óbvia: a libertação dos escravos italianos ia limitar a colheita, mas previra-se que ela fosse normal, porque os escravos que trabalhavam nos campos não tinham sido libertados. Nessa altura, os preços deveriam ter baixado drasticamente. Mas não baixaram: pelo contrário, continuaram a subir.
Para Escauro, tudo indicava que havia uma manipulação com origem no Senado, e as suas observações apontavam para o cônsul Fímbria e para o pretor urbano Caio Mémio, que tinham passado a Primavera e o Verão a juntar dinheiro desesperadamente. Para comprar cereais baratos e os venderem com enormes lucros, conforme concluiu Escauro.
Então, chegou a notícia da sublevação de escravos na Sicília. E Fímbria e Mémio desataram a vender tudo o que tinham excepto as suas casas no Palatino e as terras suficientes para garantirem a permanência no censo senatorial. Visto isto, Escauro concluiu que, fosse qual fosse a natureza do negócio, este não podia deixar de estar relacionado com o abastecimento de cereais.
O seu raciocínio foi enganoso, mas era desculpável; se o cônsul e o pretor urbano tivessem tido alguma coisa a ver com a escalada dos preços dos cereais, estariam agora sentados de papo para o ar em vez de andarem a estafar-se para pagar empréstimos. Não, não eram Fímbria e Mémio! Teria de ir procurar a explicação noutro lado.
Depois da carta de Públio Licínio Nerva confessando que a crise da Sicília atingira Roma, Escauro começou a ouvir um nome senatorial entre os mercadores de cereais; o seu faro apurado detectou caça mais tenra e maior - que a enganadora pista de Fímbria e Mémio: Lúcio Apuleio Saturnino, o questor do porto de óstia. Era jovem e novo no Senado mas detinha a posição mais sensível que poderia ter um jovem membro do Senado se estivesse interessado nos preços dos cereais. É que o questor de óstia supervisionava o embarque e armazenamento de cereais, conhecia e falava com toda a gente envolvida no seu abastecimento, tinha acesso a todo o tipo de informações muito antes do resto do Senado.
Depois de fazer mais algumas investigações, Escauro convenceu-se de que descobrira o réu, e traçou a sua desgraça para bem do Senado numa sessão deste organismo em princípios de Outubro. Lúcio Apuleio Saturnino era o principal responsável pela subida prematura do preço dos cereais que impedira o Tesouro de adquirir os fornecimentos adicionais para os celeiros do Estado a um preço razoável: foi o que Escauro Princeps Senatus afirmou perante uma Assembleia silenciosa. E a Assembleia encontrara o seu bode expiatório; com grande indignação, os senadores votaram em massa a demissão de Lúcio Apuleio Saturnino do seu posto de questor, privando-o assim do cargo na Assembleia e deixando-o sujeito a processos judiciais maciços por extorsão.
Chamado a comparecer na Assembleia, vindo de óstia, Saturnino pouco mais podia fazer além de negar as acusações de Escauro. Provas factuais não as havia - quer contra, quer a favor - e por isso a questão resumiu-se a decidir qual dos dois homens era mais digno de crédito.
- Apresenta-me provas de que estou implicado! - gritou Saturnino.
- Apresenta-me provas de que não estás! - troçou Escauro.
E como era natural, a Assembleia acreditou no Princeps Senatus, pois Escauro encontrava-se acima de qualquer suspeita na pista da infracção como todos sabiam. Saturnino foi privado de tudo.
Mas Lúcio Apuleio Saturnino era um lutador. Estava na idade exacta para ser questor e ocupara o cargo no Senado há pouco tempo, pois tinha trinta anos. Por isso ninguém sabia muito sobre ele, que nunca se salientara pelos dotes de oratória ou pelos feitos militares e provinha de uma família de Piceno. Saturnino não teve outra opção que não fosse perder o cargo de questor e o lugar no Senado; nem pôde protestar quando a Assembleia se virou e concedeu o seu amado emprego em óstia a Escauro Princeps Senatus até ao fim do ano! Mas ele era um lutador.
Ninguém em Roma acreditou na sua inocência. Onde quer que fosse, cuspiam-lhe em cima, insultavam-no, chegavam a apedrejá-lo e a parede exterior da sua casa estava coberta de grafiti: PORCO, PEDERASTA, PUSTULA, AMBICIOSO, MONSTRO, IRRUMATOR e outras calúnias disputavam a proeminência na superfície de estuque. A mulher e a filha foram votadas ao ostracismo e passavam a maior parte dos dias num vale de lágrimas. Até os servos o olhavam de viés e eram lentos a responder aos seus pedidos, ou - quando a sua paciência era posta à prova - aos seus gritos.
O melhor amigo de Saturnino era relativamente desconhecido: Caio Servílio Gláucia. Alguns anos mais velho do que Saturnino, Gláucia tinha alguma fama como defensor nos tribunais e como brilhante autor de PrOjectos de lei; mas não gozava da distinção de ser um Servílio patrício, nem mesmo de ser um importante Servílio plebeu. Exceptuando a sua reputação como advogado, Gláucia estava em igualdade de condições com outro Caio Servílio que fizera dinheiro e conseguira entrar para O Senado a coberto da toga do seu patrono Aenobarbo; no entanto, este outro Servílio plebeu ainda não adquirira um cognomen, ao passo que ”Gláucia” era um cognomen muito respeitável, visto que se referia aos belos olhos verdes-acinzentados da família.
Faziam um belo par, Saturnino e Gláucia, um muito moreno e o outro muito louro, cada qual na melhor das formas. A sua amizade baseava-se numa igual agudeza de espírito e profundidade de intelecto, bem como no propósito confessado de alcançar o consulado e enobrecer para sempre as suas famílias. A política e a legislação fascinavam-nos, pelo que se adequavam perfeitamente ao tipo de trabalho a que o seu nascimento obrigava.
- Ainda não estou vencido - disse Saturnino a Gláucia, de lábios apertados. - Há outra via para regressar ao Senado e vou usá-la.
- Não é por intermédio dos censores - disse Gláucia.
- De modo nenhum! Não, vou candidatar-me às eleições como tribuno da plebe - informou Saturnino.
- Nunca conseguirás entrar - Gláucia não estava a ser pessimista mas sim realista.
- Entrarei se arranjar um aliado poderoso.
- Caio Mário.
- Quem mais poderia ser? Ele não aprecia Escauro nem Numídico ou qualquer dos políticos - disse Saturnino. - Navegarei até Massília amanhã de manhã, para ir explicar o meu caso ao único homem que pode ouvir-me e oferecer-lhe os meus préstimos.
Gláucia acenou com a cabeça.
- Sim, é uma boa táctica, Lúcio Apuleio. Afinal de contas, não tens nada a perder - ocorreu-lhe um pensamento e Gláucia sorriu. - Imagina como podes divertir-te a fazer a vida negra ao velho Escauro quando fores tribuno da plebe!
- Não. Não é ele que eu quero - disse Saturnino com ironia. - Ele agiu como achou que devia e não posso queixar-me. Houve alguém que me transformou em isco, e é essa pessoa que eu quero. E como tribuno da plebe, poderei fazer-lhe a vida negra. Isto é, se conseguir saber quem é.
- Vai a Massília falar com Caio Mário - disse Gláucia. - Entretanto, começarei a tentar descobrir o culpado.
No Outono era possível navegar para o Oeste e Lúcio Apuleio Saturnino fez uma boa travessia para Massília. Daí, seguiu a cavalo até ao acampamento romano fora de Glanum e pediu para ser recebido por Caio Mário.
Não fora um grande exagero da parte de Caio Mário informar os seus oficiais de que planeava construir uma segunda Carcassona, embora esta fosse uma versão em madeira e terra, em vez de pedra. O monte onde o acampamento romano fora construído estava cheio de fortificações; Saturnino pensou logo que um povo pouco hábil para cercos como os Germanos nunca iria conseguir tomá-lo, nem com todos os seus homens.
- Só que a finalidade desta fortificação - explicou Mário enquanto levava o seu hóspede inesperado a ver as construções - não é proteger o meu exército mas sim fazer os Germanos acreditarem nisso.
”E ainda dizem que este homem não é subtil! - pensou Saturnino, apreciando subitamente o intelecto de Caio Mário. Se há alguém que me possa ajudar, é ele.”
Os dois homens simpatizaram logo um com o outro, pressentindo uma crueldade e determinação comuns, e talvez uma certa iconoclastia pouco romana. Saturnino estava profundamente feliz por descobrir que - como esperara - fora ele o primeiro a trazer a Glanum a notícia da sua desgraça em Roma. No entanto, era difícil dizer quanto tempo teria de esperar até revelar a sua triste história, pois Caio Mário era o Comandante-em-chefe de uma empresa poderosa e tanto a sua vida como o seu discutível ócio não lhe pertenciam de modo nenhum.
Esperando deparar-se com uma sala de jantar cheia de gente, Saturnino ficou surpreendido ao descobrir que ele e Mânio Aquílio seriam os únicos a partilhar a refeição com Caio Mário.
- Lúcio Cornélio está em Roma? - perguntou. Imperturbável, Mário serviu-se de um ovo recheado.
- Não, está fora numa missão especial - limitou-se Mário a dizer. Entendendo que não havia motivo para esconder a sua situação difícil a Mânio Aquílio, que provara ser o homem de mão de Mário no ano anterior - e que traria de Roma as cartas com todos os mexericos -, Saturnino começou a contar a sua história mal terminaram a refeição. Os dois homens escutaram-no em silêncio até ao fim, não interrompendo para fazer uma única pergunta, o que fez Saturnino pensar que expusera os acontecimentos com clareza e lógica.
A seguir, Mário suspirou.
- Estou muito contente por teres vindo falar comigo - disse. - Isso dá uma força considerável ao teu caso, Lúcio Apuleio. Um homen, culpado teria recorrido a muitos estratagemas mas nunca viria ter comigo. Não sou um homem crédulo. Nem Marco Emílio o é. Mas, cai como tO, parece-me que quem investigou esta situação tortuosa foi levado até ti por uma série de ilusões. Como questor em óstia, eras um isco perfeito.
- Se o processo contra mim falha em algum aspecto, Caio Mário, é no facto de eu não ter dinheiro para comprar cereais em grandes quantidades - comentou Saturnino.
- É verdade, mas isso também não te exclui automaticamente - lembrou Mário. - Podias tê-lo feito por um suborno muito grande, ou ter pedido um empréstimo.
- Pensas que o fiz?
- Não. Penso que és a vítima e não o criminoso.
- Também eu - concordou Mânio Aquílio. - É demasiado simples.
- Então ajudas-me a candidatar-me às eleições para tribuno da plebe? - perguntou Saturnino.
- Oh, com certeza - disse Mário sem hesitações.
- Retribuir-te-ei da forma que puder.
- Excelente! - disse Mário.
A partir daí, tudo se passou muito rapidamente. Saturnino não tinha tempo a perder, pois as eleições tribunícias estavam marcadas para o início de Novembro, e tinha de voltar a Roma a tempo de se candidatar e receber o apoio que Mário lhe prometera. E, com um enorme maço de cartas de Mário para várias pessoas de Roma, Saturnino partiu em direcção aos Alpes num carro puxado por quatro mulas e com o dinheiro suficiente para poder substituir as montadas por outras tão boas como as quatro com que iniciara a viagem.
Quando estava de partida, surgiu um trio extraordinário às portas do acampamento. Três gauleses. Gauleses bárbaros! Saturnino, que nunca tinha visto um bárbaro na vida, ficou boquiaberto. Um deles parecia ser um prisioneiro, porque estava acorrentado. Estranhamente, esse parecia menos bárbaro do que os outros dois! Era um sujeito de estatura média, de tez clara mas não demasiado, cabelos longos mas cortados como os de um grego, escanhoado, com calças de gaulês e um casaco de lã felpuda num complexo padrão axadrezado de tom claro. O segundo sujeito era muito moreno mas tinha a cabeça coberta de plumas negras e um fio de ouro, o que o identificava como celtibero; e pouco mais roupa vestia, apresentando em vez delas um corpo musculado. Era evidente que o terceiro homem era o chefe: um verdadeiro bárbaro gaulês com a pele lisa do peito descoberto branca como o leite mas com pêlos, de calças presas com tiras de couro como um germano ou um dos belgas míticos; os cabelos de um ruivo-dourado tombavam-lhe sobre as costas, tinha longos bigodes do mesmo tom e usava à volta do pescoço um colar de metal torcido com uma enorme cabeça de dragão, aparentemente de ouro verdadeiro.
O carro começou a andar; ao passar mais perto pelo pequeno grupo, o olhar de Saturnino cruzou-se com os frios olhos claros do chefe, fazendo-o estremecer. Aquele era um verdadeiro bárbaro!
Os três gauleses continuaram a subir a encosta, passando as portas principais do acampamento, sem que ninguém os desafiasse até chegarem à mesa do oficial de dia, debaixo do toldo da casa de madeira do general.
- Caio Mário, por favor - disse o chefe num latim fluente. O oficial de dia nem pestanejou.
- Vou ver se Mário tem visitas - disse, levantando-se. Daí a pouco, estava de volta. - O general diz que podes entrar, Lúcio Cornélio - anunciou, com um enorme sorriso.
- Muito bem - disse Sertório ao passar pelo oficial de dia com a cobertura serpenteante. - Nada de conversas acerca disto, ouviste?
Ao ver os seus dois tenentes, Mário olhou-os de um modo tão intenso como Saturnino, mas com menos espanto.
- já era tempo de regressares - disse a Sila, apertando-lhe a mão afectuosamente e estendendo-a de seguida a Sertório.
- Não nos demoramos muito - informou Sila, empurrando o cativo que trouxera. - Só viemos trazer-te uma prenda para o teu desfile triunfal. Apresento-te o rei Copillus dos Volcos Tectósagos, que foi conivente na aniquilação do exército de Lúcio Cássio, em Burdígala.
- Ah! - Mário observou o prisioneiro. - Não parece gaulês, pois não? Tu e Quinto Sertório parecem muito mais impressionantes.
Sertório sorriu; Sila respondeu:
- Como a sua capital é Tolosa, há muito que está exposto à civilização; fala bem grego e apenas deve ser meio-gaulês no modo de pensar. Apanhámo-lo fora de Burdígala.
- Valerá o esforço? - perguntou Mário.
- Verás que sim - respondeu Sila, sorrindo do seu modo mais feroz.
- E que ele tem uma história curiosa a contar... e pode contá-la na língua que Roma compreende.
Alertado pela expressão no rosto de Sila, Mário olhou mais atentamente para o rei Copillus.
- Que história?
- Uma história acerca de dois tanques outrora cheios de ouro. Ouro esse que foi carregado em carroças romanas e enviado pela estrada de Tolosa até Narbona no tempo em que um certo Quinto Servílio Cepião era procônsul. Ouro esse que desapareceu misteriosamente não muito longe de Carcassona, deixando uma coorte de soldados romanos mortos ao longo da estrada, sem armas nem armaduras. Copillus estava perto de Carcassona quando o ouro desapareceu. Afinal de contas, o ouro foi posto à sua guarda por direito, de acordo com o seu modo de pensar. Mas o grupo de homens que o levou para o sul era demasiado grande e bem armado para ter de atacar, pois Copillus apenas tinha consigo alguns homens. O que é interessante é que houve um sobrevivente romano: Fúrio, o praefectusfabrum. E um sobrevivente grego, um escravo liberto: Quinto Servílio Bias. Mas Copillus não estava perto de Málaga. Vários meses mais tarde, quando as carroças cheias de ouro foram parar a uma fábrica de peixe pertencente a um dos clientes de Quinto Servílio Cepião, nem estava perto de Málaga quando o ouro foi embarcado para Esmirna com o rótulo de ”Garum de Málaga à Consignação de Quinto Servílio Cepião”. Mas Copillus tem um amigo que tem outro amigo que tem outro amigo que conhece bem um bandido turdetano chamado Brigantius, e segundo diz este Brigantius, foi contratado para roubar o ouro e levá-lo para Málaga pelos agentes de Quinto Servílio Cepião, nomeadamente Fúrio e o homem libertado Bias. O pagamento de Brigantius foram as carroças, as mulas e seiscentos conjuntos de boas armas e armaduras romanas, tiradas aos homens mortos por Brigantius. Quando o ouro foi para oeste, Fúrio e Bias partiram com ele.
”Nunca vi Mário assim estupefacto”, pensou Sila. ”Mesmo quando foi eleito cônsul in absentia, apenas perdeu o fôlego, ao passo que isto põe à prova a sua credulidade.”
- Deuses! - murmurou Mário - Ele não ousaria tal coisa!
- Pois ousou - contrapôs Sila com desprezo. - O que interessava que o preço fossem as vidas de seiscentos bons soldados romanos? Afinal de contas, havia mil e quinhentos talentos de ouro naquelas carroças! Acontece que os Volcos Tectósagos não se consideram os donos do ouro mas os seus guardiões. Era a riqueza de Delfos, Olímpia, Doclona e de uma dúzia de outros santuários mais pequenos, que o segundo Breno levou como propriedade de todas as tribos gaulesas. E agora, os Volcos Tectósagos foram amaldiçoados, e o rei Copillus, duplamente amaldiçoado. A riqueza da Gália desapareceu.
Refazendo-se do choque, Mário olhava agora mais para Sila do que para Copilus. Parecia ser uma historieta contada em tons expressivos, mas era mais do que isso: era contada por um bardo gaulês e não por um membro do Senado Romano.
- És um grande actor, Lúcio Cornélio - disse Mário. Sila fez um ar absurdamente feliz.
- Os meus agradecimentos, Caio Mário.
- Mas não ficam? E o Inverno? Aqui estarão mais confortáveis Mário sorriu -, especialmente o jovem Sertório, se não tiver outra roupa além dessa coroa de penas.
- Não, partimos amanhã. Os Cimbros estão na base dos Pirenéus, com as tribos locais a fazerem-lhes emboscadas sempre que podem. os Germanos parecem ter um fascínio por montes! Mas eu e Quinto Sertório demorámos todos estes meses a aproximar-nos dos Cimbros. Tivemos de estabelecer contacto com metade da Gália e da Espanha - disse Sila.
Mário encheu duas taças de vinho, olhou para Copillus e encheu uma terceira taça, que estendeu ao prisioneiro. Ao dar a bebida a Sertório, observou o seu parente sabino de alto a baixo com ar sério.
- Pareces o frango de Plutão - disse-lhe.
Sertório bebeu um golo de vinho e suspirou, deliciado.
- Tusculano! - disse ele, empertigando-se. - Antes ser o frango de Plutão que o corvo de Proserpina.
- Que notícias tens dos Germanos? - perguntou Mário.
- Resumindo, contar-te-ei mais ao jantar... muito poucas. Ainda é cedo para poder informar-te de onde eles vêm ou quais são os seus objectivos. Fica para a próxima. Mas não receies, pois voltarei lá muito antes de qualquer movimentação deles em direcção à Itália. No entanto, posso dizer-te onde estão todos neste preciso momento. Os Teutões e Tigurinos, Marcomanos e Queruscos estão a tentar atravessar o Reno, a caminho da Germânia, e os Cimbros estão a tentar atravessar os Pirenéus a caminho de Espanha. Não penso que qualquer dos grupos venha a ser bem sucedido - comentou Sila, pousando a taça. - Oh, o vinho era óptimo!
Mário chamou o oficial de dia.
- Podes mandar-me três homens de confiança? - pediu. - E se consegues arranjar alojamento confortável para o rei Copilius- Terá de ficar fechado, infelizmente, mas só até podermos levá-lo para Roma.
- Eu não o levaria para Roma - disse Sila pensativamente, depois de o oficial de dia ter saído. - Ficaria até muito calado acerca do lugar onde o pusesse.
- Cepião? Ele não ousaria! - disse Mário.
- Foi ele que roubou o ouro - lembrou Sila.
- Está bem, levaremos o rei para Nérsia - disse Mário com vivacidade. - Quinto Sertório, a tua mãe tem amigos que não se importassem de alojar o rei por um ou dois dias? O pagamento será compensador.
- Há-de arranjar alguém - respondeu Sertório, confiante.
- Que sorte! - exclamou Mário. - Nunca pensei que viéssemos a obter provas que nos permitissem mandar Cepião para um exílio bem merecido, mas o rei Copillus; constitui uma boa prova. Vamos manter tudo em segredo até regressarmos a Roma após os Germanos serem derrotados e depois acusaremos Cepião de extorsão e traição!
- Traição? - perguntou Sila, pestanejando. - Isso não nos vai ser possível, com os amigos que ele tem nas Centúrias!
- Ah! - exclamou Mário maliciosamente. - Mas os amigos das Centúrias não podem ajudá-lo se ele for julgado num tribunal especial para casos de traição composto apenas por cavaleiros.
- O que andas a tramar, Caio Mário? - perguntou Sila.
- Comprei dois tribunos da plebe para o próximo ano! - disse Mário num tom triunfante.
- Talvez eles não entrem - afirmou Sertório, prosaicamente.
- Hão-de entrar! - disseram Mário e Síla em coro.
Os três desataram a rir, e o prisioneiro continuou em pé com grande dignidade, fingindo que entendia o latim deles e aguardando o que se seguiria. Foi então que Mário se lembrou de ter bons modos e mudou a conversa do latim para o grego, acolhendo Copillus; calorosamente no grupo e prometendo que as grilhetas lhe seriam em breve retiradas.
- Quinto Cecílio - disse Marco Emílio Escauro Princeps Senatus a Metelo Numídico -, sabes que me agrada imensamente ser questor em óstia? Aqui estou, com cinquenta e cinco anos de idade, calvo como um ovo, com rugas tão profundas no rosto que o meu barbeiro já não consegue fazer-me bem a barba... e sinto-me como se tivesse voltado a ser um rapaz! Oh, e a facilidade com que se resolvem os problemas! Aos trinta, pareciam montanhas inultrapassáveis; lembro-me bem. Aos cinquenta e cinco, são totalmente insignificantes.
Escauro veio a Roma a fim de participar numa sessão especial do Senado convocada pelo praetor urbanus Caio Mémio para discutir UM assunto com certa gravidade respeitante à Sardenha; o cônsul júnior, Caio Flávio Fímbria, estava indisposto, coisa que parecia ser muito comum nesses tempos.
- Ouviste o boato que corre? - perguntou Metelo Numídico, à medida que os dois subiam os degraus da Cúria Hostília e entravam no Senado; o arauto ainda não convocara a Assembleia, mas os Senadores que tinham chegado cedo na sua grande maioria não se deram ao trabalho de esperar lá fora: entraram e continuaram a conversa até o início da sessão, quando o magistrado que convocara a sessão iria oferecer um sacrifício e fazer as orações.
- Que boato? - perguntou Escauro um pouco desatento; ultimamente, tinha a mente absorvida pelo abastecimento de cereais.
- Lúcio Cássio e Lúcio Márcio juntaram-se e tencionam pedir a Assembleia da Plebe que Mário seja autorizado a candidatar-se mais uma vez a cônsul, e ainda por cima in absentia!
Escauro parou a poucos passos do lugar onde o criado particular lhe colocara o banco na habitual posição na fila da frente, com Metelo Dalmático Pontifex Maximus ao lado. Os seus olhos muito abertos fixaram-se no rosto de Numídico.
- Não ousariam fazer tal coisa! - exclamou.
- Ousariam sim! Estás a imaginar? Um terceiro mandato como cônsul é coisa sem precedentes; é tornar o homem um ditador a longo prazo! Por que outro motivo nas raras ocasiões em que Roma precisou de um ditador o seu mandato era limitado a seis meses, senão para garantir que o detentor do cargo não exagerasse a ideia da sua supremacia? E agora, aqui vem este... este campónio fazer as suas próprias leis! - Metelo Numídico espumava de raiva.
Escauro tombou na cadeira como um velho.
- A culpa é nossa - disse calmamente. - Não tivemos a coragem dos nossos antecessores para nos livrarmos deste cogumelo nocivo! Porque será que Tibério Graco e Marco Fúlvio e Caio Graco foram eliminados, ao passo que Caio Mário está vivo? Devia ter sido liquidado a anos. Metelo Numídico encolheu os ombros.
- Mário é um camponês. Os Gracos e Fúlvio Flaco eram nobres. ”Cogumelo nocivo” é um bom termo para descrevê-lo: nasce em qualquer parte de um dia para o outro, mas quando se vai apanhá-lo já esta noutro lugar.
- Isto tem de acabar! Ninguém pode ser eleito cônsul in absentia, quanto mais duas vezes! Esse homem adulterou mais as tradições de Roma do que qualquer outro homem ao longo da história da República. Começo a crer que quer ser rei e não O Primeiro Homem de Roma.
- Concordo contigo - disse Metelo Numídico, sentando-se. - Mas como poderemos ver-nos livres dele? Nunca fica por cá o tempo suficiente para poder ser assassinado!
- Lúcio Cássio e Lúcio Márcio - disse Escauro estupefacto. - Não entendo! São dois nobres vindos das melhores e mais antigas famílias plebeias! Ninguém poderá apelar ao seu sentido de decoro, de decência?
- Todos conhecemos Lúcio Márcio - afirmou Metelo Numídico. Mário pagou-lhe todas as dívidas; pela primeira vez, ao longo de uma vida repugnante, a sua situação é solvente. Mas Lúcio Cássio é diferente. Foi morbidamente sensível à opinião do Povo acerca dos generais incompetentes como o seu falecido pai, e tomou uma consciência doentia da reputação de Mário entre o Povo. Pensa que poderá reabilitar a reputação da família se o virem ajudar Mário a livrar-se dos Germanos.
Escauro limitou-se a soltar uma interjeição de desagrado como resposta às teorias expostas.
Não lhes foi possível continuar a discutir a questão; a sessão começou e Caio Mémio, cujo ar esgazeado adquirido nos últimos tempos lhe conferia uma beleza ainda maior, levantou-se para falar.
- Pais Conscritos - proferiu com um pequeno documento na mão recebi uma carta de Cneu Pompeu Estrabão, que está na Sardenha. A carta foi-me dirigida a mim e não ao nosso estimado cônsul Caio Flávio porque, como pretor urbano, é meu dever supervisionar os tribunais de Roma.
Caio Mémio fez uma pausa para lançar um intenso olhar de ódio às filas posteriores do Senado; esses senadores captaram a mensagem e mostraram-se muito atentos.
- Para refrescar a memória aos membros das filas lá de trás, que raramente honram esta Assembleia com a sua presença, Cneu Pompeu Estrabão é questor do governador da Sardenha, que, como faço questão de recordar, é este ano Tiro Ânio Albúcio. Agora compreendemos todos estas relações complicadas, Pais Conscritos? - perguntou num tom quase sarcástico.
Ouviu-se um burburinho, que Mémio tomou por assentimento.
- Óptimo! - disse. - Então, vou ler a carta que Cneu Pompeu me escreveu. Estamos todos a ouvir?
Mais barulho.
- Muito bem! - Mémio desenrolou o Papel que tinha na mão e estendeu-o à sua frente, começando depois a ler com uma dicção clara e viva a que ninguém apontaria a menor falha.
Escrevo, Caio Mémio, com o intuito de pedir autorização para processar Tito Ânio Albúcio, governador propraetore da nossa província da Sardenha, imediatamente após o nosso regresso a Roma nofim do ano. Como a Assembleia sabe, há um mês, Tito Ânio informou que conseguira acabar com os assaltos na sua província, e pedia uma ovação pelo seu trabalho. O pedido foi-lhe recusado, o que me parece justo. Embora alguns ninhos desses indivíduos nefastos tenham sido erradicados, a província não se encontra de modo nenhum livre de ladrões. Mas o motivo por que quero processar o governador reside na sua conduta não-romana após ter sabido que o seu pedido de ovação tinha sido negado. Não só se referiu aos membros do Senado como um grupo de irrumatores insensíveis como também procedeu - com grande despesa - à celebração de uma paródia de triunfo pelas ruas de Caralis! Considero que estas atitudes são ameaças ao Senado e Povo de Roma, e vejo o seu triunfo como uma traição. Com efeito, o meu repúdio é tal que faço questão de ser eu mesmo a conduzir o processo. Peço que me respondam com brevidade.
Mémio pousou a carta no meio de um profundo silêncio.
- Gostava de ouvir a opinião do sábio Chefe da Assembleia, Marco Emílio Escauro - disse, sentando-se de seguida.
Com uma expressão carregada no rosto sulcado de rugas, Escauro avançou para o meio da sala.
- É estranho - começou -, pois mesmo antes da sessão, falava eu de assuntos semelhantes. Assuntos que indicam a erosão dos nossos sistemas de governação e conduta pessoal no governo, honrados através dos tempos. Em anos recentes este augusto organismo composto pelos maiores de Roma sofreu a perda não somente do seu poder como também da sua dignidade como braço sénior no governo de Roma. Nós, os maiores de Roma!, já não podemos dirigir os seus passos. Nós, os maiores de Roma!, habituámo-nos ao Povo: inconstante, inexperiente, ambicioso e desprovido de pensamento, políticos amadores; habituámo-nos a que o Povo nos arraste o rosto pela lama! Nós, os maiores de Roma!, não somos tidos em consideração! Ninguém tem em conta a nossa sabedoria, a nossa experiência, a distinção das nossas famílias ao longo das muitas gerações que nos separam da fundação da República. Apenas o Povo importa. E digo-vos, Pais Conscritos, que o Povo não tem competência para governar Roma!
Marco Emílio Escauro virou-se para as portas abertas e lançou a sua voz na direcção do local dos Comícios.
- Que segmento do Povo dirige a Assembleia da Plebe? - gritou. Os homens da Segunda, Terceira e mesmo Quarta Classes, pequenos cavaleiros desejosos de governar Roma como se fosse um dos seus negócios, donos de lojas e pequenos agricultores, e mesmo artesãos! E homens que se autodenominam defensores, mas têm de angariar clientes entre os camponeses e os imbecis; e homens que se autodenominam representantes, mas nunca sabem dizer bem o que representam! As suas actividades privadas aborrecem-nos e por isso frequentam os Comícios, gabando-se de governarem melhor Roma nas suas tribos do que nós na nossa exclusividade das Cúrias! O calão político solta-se-lhes das línguas como um vómito, e tagarelam, dizem ter entretido este ou aquele tribuno da plebe e aplaudem quando as suas prerrogativas são entregues aos cavaleiros! Estes sujeitos são homens medianos! Nem são suficientemente importantes para pertencerem à Primeira Classe das Centúrias, nem suficientemente insignificantes para se meterem na sua vida, tal como a Quinta Classe e os capite censi! Repito, Pais Conscritos, que o Povo não tem competência para governar Roma! já lhe foi dado demasiado Poder e agora, na sua enorme arrogância, e com o auxílio e apoio de variados membros desta Assembleia quando tribunos da plebe!, pretende ignorar os nossos conselhos, directivas, e até mesmo a nós próprios!
Como todos reconheceram, este seria um dos discursos mais famosos de Escauro; o seu próprio secretário e vários outros escribas transcreviam literalmente as suas palavras, e ele falava com a lentidão necessária para assegurar uma transcrição correcta.
-já é tempo - prosseguiu em tom grandiloquente - de o Senado inverter este processo. já é tempo de mostrar ao Povo que é júnior na nossa associação governativa! - Escauro parou para respirar e prosseguiu em tom de conversa. - É evidente que são fáceis de apontar as origens desta erosão do poder senatorial. O nosso augusto organismo admitiu demasiados novos-ricos, demasiados cogumelos nocivos, demasiados Homens Novos nas suas magistraturas séniores. O que significa o Senado de Roma para um homem que teve de limpar a trampa de porco que lhe cobria o rosto antes de vir a Roma tentar a sorte na política? O que significa o Senado de Roma para um homem que é, na melhor das hipóteses, um meio-latino dos territórios limítrofes dos Samnitas; que chegou pela primeira vez ao consulado agarrado às saias de uma mulher patrícia comprada? E o que significa o Senado de Roma para um estrábico híbrido dos montes do norte do Piceno, infestados de Celtas
Escauro ia atacar Mário; isso já se esperava. Mas a tangência da abordagem bastava para proporcionar um repouso e a Assembleia sentiu que a reprimenda lhe era dirigida. E continuou a escutar com interesse, mas também com o sentido do dever.
- Pais Conscritos - prosseguiu Escauro com tristeza -, os nossos filhos são criaturas tímidas; crescem num ambiente político sufocante para o Senado, que insufla vida no Povo de Roma. Como podemos esperar que os nossos filhos governem Roma quando chegar a sua vez, se o Povo romano os intimida? Digo-vos: se ainda não começaram a fazê-lo, a partir de hoje, deveis ensinar os vossos filhos a serem fortes na defesa do Senado e inclementes para o Povo! Façai-os compreender a superioridade natural do Senado! E preparai-os para que possam lutar na defesa dessa superioridade!
Escauro não saíra de perto das portas e dirigia-se agora à bancada dos tribunos, que estava cheia.
- Alguém poderá explicar-me por que motivo um membro desta augusta Assembleia se disporia deliberadamente a destruí-la? Alguém poderá explicar-me? Porque isso está sempre a acontecer! Ali estão eles. Intitulam-se a si mesmos senadores, membros desta augusta Assembleia; mas também se intitulam tribunos da plebe! Encontram-se ao serviço de dois amos, nos dias que correm! Que se lembrem que são primeiro senadores, e apenas em segundo lugar tribunos da plebe. O seu verdadeiro dever em relação à plebe é ensiná-la a ocupar um papel secundário. Mas fazem-no? Não! É claro que não fazem! Alguns destes tribunos permanecem fiéis à sua ordem, reconheço-o, e muito os louvo por isso. Outros, como sempre aconteceu em todos os tempos, não fazem nada para o Senado nem para o Povo, com receio de que, ao ocuparem os extremos do banco, todos os outros se levantem, transformando-os em motivo de risota geral. Mas outros ainda, Pais Conscritos, destroem deliberadamente este organismo, o Senado de Roma. Porquê? O que poderá levá-los a destruir a sua própria ordem?
Os dez tribunos estavam sentados no banco assumindo diversas POsições que reflectiam as suas atitudes políticas: os que eram leais ao Senado estavam radiantes, direitos, enfatuados; os homens sentados a meio do banco agitavam-se um pouco e tinham os olhos no chão; e os tribunos activos mantinham o rosto e o olhar firmes, provocadores e impenitentes.
- Eu sei a resposta, membros do Senado - afirmou Escauro com desprezo. - Alguns deixam-se comprar como bugigangas de quinquilharia numa tenda barata de mercado; todos os compreendemos bem! Mas há outros com razões mais subtis, e desses homens, o primeiro foi Tibério Semprónio Graco. Refiro-me ao tipo de tribuno da plebe que vê na plebe um meio para servir as suas ambições, o tipo de homem que quer ter o estatuto de Primeiro Homem de Roma sem o ter merecido, tal como Cipião Emiliano, e Cipião Africano, e Emilio Paulo, e, peço o vosso perdão pela minha presunção, Marco Emílio Escauro Princeps Senatus! Herdámos dos Gregos um termo que classifica os tribunos da plebe do estilo de Tibério e Caio Graco: chamamo-lhes demagogos. No entanto, não damos a esse termo o mesmo sentido que os Gregos. Os nossos demagogos não levam a cidade inteira até ao Fórum clamando por sangue, nem derrubam senadores dos degraus da Cúria, nem impõem a sua vontade pela violência. Os nossos demagogos contentam-se com inflamar os frequentadores habituais dos Comícios e impor a sua vontade pela lei. Oh, também há violência de tempos a tempos, mas mais frequentemente somos nós, o Senado, que temos de recorrer a ela para restabelecer o status quo. Porque os nossos demagogos são legisladores e autores de projectos de lei, mais subtis, mais vingativos, muito mais perigosos que os meros incitadores de motins! Porque eles corrompem o Povo para promover as suas próprias ambições. E isso, Pais Conscritos, nem merece o nosso desprezo. E no entanto, é o que acontece todos os dias, e cada vez com maior frequência. O atalho para o Poder, o caminho fácil para a proeminência.
Escauro fez uma pausa, virou-se, prendeu o amontoado de pregas da toga debruada a púrpura que lhe tombavam sobre o braço esquerdo e se encostavam ao pescoço, e dobrou o braço direito de forma a poder continuar a sublinhar as palavras com gestos.
- O atalho para o Poder, o caminho fácil para a proeminência - repetiu sonoramente. - Todos conhecemos esses homens, não é verdade? O primeiro é Caio Mário, o nosso estimado cônsul sénior que, segundo ouvi dizer, quer voltar a ser eleito cônsul uma vez mais, e outra vez ainda, in absentia! Por nossa vontade? Não! Pela acção do Povo, é claro! De que outro modo poderia Caio Mário ter chegado onde está hoje, senão pela acção do Povo? Alguns de nós combatêmo-lo com unhas e dentes até à exaustão, e combatêmo-lo com todas as armas legais do nosso arsenal constitucional! Em vão. Caio Mário tem o apoio do Povo, a atenção do Povo, e despeja dinheiro para as bolsas de alguns tribunos da plebe. Nesta altura e idade, esses bastam-lhe. Rico como Creso, consegue comprar o que não pode obter por outras vias. Eis o que é Caio Mário. Mas não me levantei para falar de Caio Mário. Perdoar-me-ão, Pais Conscritos, por ter deixado as minhas emoções afastarem-me do alvo principal do meu discurso.
Escauro retomou a posição inicial e virou-se para o estrado onde se encontravam sentados os magistrados curuis, dirigindo os seus comentários a Caio Mémio.
- Levantei-me para falar de outro novo-rico de uma espécie diferente de Caio Mário. O tipo de novo-rico que afirma ter antepassados no Senado, fala bem grego e recebeu instrução e cujos olhos nunca viram uma pocilga; se é que chegam a ver seja o que for! não é um verdadeiro Romano, por mais que o diga. Falo-vos do questor Cneu Pompeu Estrabão, nomeado por esta augusta Assembleia para servir o governador da Sardenha, Tito Ânio Albúcio.
”E quem é este Cneu Pompeu Estrabão? Um Pompeu que afirma ter laços de sangue com os Pompeus que pertencem a esta Assembleia há várias gerações, embora fosse interessante descobrir a proximidade desses laços. Rico como Creso, com metade da Itália do Norte na sua clientela, é um rei dentro dos limites das suas terras. Eis o que é este Cneu Pompeu Estrabão.”
A voz de Escauro ergueu-se num bramido.
- Membros do Senado, aonde chegará este organismo augusto, quando um senador recente disfarçado de questor tem a ousadia e a... a grosseria de processar o seu superior? Teremos falta de jovens romanos para não conseguirmos encher com romanos os meros trezentos bancos desta Assembleia? Estou escandalizado! Este Pompeu terá assim tão pouca educação e desconhecerá as normas de comportamento que se esperam de um membro do Senado para chegar ao ponto de sonhar processar o seu superior? O que se passará connosco para deixarmos homens como este Pompeu Estrábico sentar o seu rabo grosseiro nos bancos do Senado? E que terá ele para fazer uma coisa destas? Ignorância e falta de educaÇãO, é o seu problema! Há coisas, Pais Conscritos, que muito simplesmente não se fazem! Coisas como processar um nosso superior ou um familiar próximo, incluindo um parente por afinidade. Não se fazem! É grosseiro, estúpido, mal-educado, presunçoso... a língua latina não possui suficientes epítetos mordazes para classificar as deficiências de um cogumelo nocivo como este Cneu Pompeu Estrabão, este Pompeu Estrábico!
Uma voz surgiu do banco dos tribunos.
Queres dizer com isso, Marco Emílio, que Tito Anio Albúcio deve ser louvado pelo seu comportamento? perguntou Lúcio Cássio.
O Princeps Senatus empertigou-se como uma cobra e silvou, venenoso:
- Oh, vê se cresces, Lúcio Cássio! O assunto em causa não é Tito Ânio. Naturalmente, trataremos dele da forma apropriada, que neste caso é o processo legal. Se for considerado culpado, terá o castigo adequado previsto pela lei. O assunto em causa é o protocolo, a delicadeza, a etiqueta; mais concretamente, Lúcio Cássio, a educação. O nosso cogumelo nocivo, Pompeu Estrábico, é culpado de uma flagrante falta de educação!
Escauro percorreu com os olhos a Assembleia.
- Pais Conscritos, sugiro que Tito Ânio seja acusado de traição; mas que o praetor urbanus escreva simultaneamente uma carta muito dura ao questor Cneu Pompeu Estrabão, informando-o de que, em primeiro lugar, em caso algum poderá processar o seu superior, e em segundo lugar, tem a educação de um campónio.
A Assembleia votou com uma entusiástica salva de palmas, tornando desnecessária uma Divisão.
- Parece-me, Caio Mémio disse Lúcio Márcio Filipe num tom arrastado e nasal de superioridade aristocrática (estava ressentido com a ilação de que Mário comprara os seus serviços), que a Assembleia devia agora escolher um demandante para tratar do caso de Tito Ânio Albúcio.
- Há alguma objecção? perguntou Mémio, olhando em volta. Ninguém se opôs.
Muito bem, nesse caso, a Assembleia escolherá um demandante para o processo movido pelo Estado contra Tito Ânio Albúcio. Alguém quer sugerir nomes? perguntou Mémio.
Oh, meu caro praetor urbanus, só há um nome possível! exclamou Filipe, ainda a voz arrastada.
Então, nomeia-o, Lúcio Márcio.
O teu experiente jovem dos tribunais, César Estrabão disse Filipe.
- Não privemos Tito Ânio por completo da sensação de estar a ser perseguido por uma voz do passado! Penso que o demandante tem de ser estrábico!
A Assembleia desatou a rir, Escauro mais que ninguém; e quando a hilariedade cessou, a votação foi unânime: o estrábico jovem Caio Júlio César Estrabão, irmão mais novo de Catulo César e Lúcio César, foi escolhido para demandante de Tiro Ânio Albúcio. E deste modo, a Assembleia vingou-se notavelmente em Pompeu Estrabão. Quando Pompeu Estrabão recebeu a seca carta do Senado (com uma cópia do discurso de Escauro, aí colocada por Caio Mémio, para lançar sal na ferida), compreendeu tudo. E jurou que um dia havia de vingar-se daqueles aristocratas altivos, fazê-los precisar mais dele do que ele necessitava deles.
Por mais que lutassem, quer Escauro, quer Metelo Numídico não conseguiram obter os votos suficientes na Assembleia da Plebe para impedir a nomeação de Caio Mário como candidato ao consulado in absentia. Nem conseguiram influenciar a Assembleia Centurial, pois a Segunda Classe de votantes ainda estava ressentida com a alusão de Escauro no seu discurso memorável, segundo a qual eram homens medianos e tão repreensíveis como a Terceira e Quarta Classes. A Assembleia Centurial concedeu a Mário um mandato contínuo para deter os Germanos, e não quis ouvir falar de outro homem para ocupar o seu lugar. Eleito cônsul sénior pela segunda vez consecutiva, Caio Mário era o homem do momento, e podia, sem receio de ser desmentido, afirmar-se como o Primeiro Homem de Roma.
- Mas não primus inter pares, o primeiro entre iguais - comentou Metelo Numídico para o jovem Marco Lívio Druso, de regresso aos tribunais após a breve carreira militar do ano anterior. Tinham-se encontrado em frente do tribunal do pretor urbano, onde Druso fora com o seu amigo e cunhado Cepião Júnior.
- Receio bem, Quinto Cecílio - disse Druso, sem qualquer tom de desculpa na voz -, que desta vez não tenha subscrito a opinião dos meus semelhantes. Eu votei em Caio Mário. Sim, isso impede-vos de avançar, não é? Mas eu não só votei nele como também consegui convencer a maioria dos meus amigos e todos os meus clientes a votarem nele.
- Traíste a tua classe! - vociferou Numídico.
- De modo nenhum, Quinto Cecílio. É que eu estive em Arausio explicou Druso, calmamente. - E vi com os meus próprios olhos o que pode acontecer quando a exclusividade senatorial se sobrepõe ao bom senso romano. E digo-te terminantemente: mesmo que Caio Mário fosse tão estrábico como Pompeu Estrabão, de nascimento tão baixo como trabalhador do porto de Roma, tão grosseiro como o cavaleiro Sexto Perquitienus, teria votado nele! Não creio que tenhamos outro militar do seu calibre, e não admito que se coloque acima dele um cônsul que possa tratá-lo como Quinto Servílio Cepião tratou Cneu Málio Máximo! E Druso afastou-se com grande dignidade, deixando Metelo Numídico boquiaberto a olhar para ele.
- Está mudado disse Cepião Júnior, que ainda seguia Druso, embora com menos entusiasmo, desde o seu regresso da Gália Transalpina. O meu pai diz que se Marco Lívio não tiver cuidado tornar-se-á um demagogo da pior espécie.
- Não pode fazer isso! exclamou Metelo Numídico. O pai dele era o inimigo mais obstinado de Caio Graco; o jovem Marco Lívio foi criado da maneira mais conservadora!
Foi Arausio que o transformou insistiu Cepião Júnior. Talvez tenha sido esse o ponto de viragem; de qualquer modo, é a opinião do meu pai. Desde que regressou, tem sido inseparável de Silo, o sujeito marso que conheceu após a batalha. Cepião Júnior bufou de raiva. Silo é de Alba Fucentia e anda pela casa de Marco Lívio como se ela fosse sua, passam horas seguidas a conversar e nunca me convidam para me juntar a eles.
Um assunto muito lamentável, Arausio pronunciou Metelo Numídico com um certo esforço, pois estava a transmitir estes comentários ao filho do homem a quem se atribuía a maior parte da responsabilidade.
Cepião Júnior escapou-se logo que possível e foi para casa com a noção de uma vaga insatisfação que o envolvera desde... não sabia bem, mas por volta da altura em que casara com a irmã de Druso, e Druso casara com a sua irmã. Embora não houvesse nenhum motivo, era assim que se sentia. E as coisas haviam mudado desde Arausio! O seu pai também não era o mesmo homem; podia num momento desatar a rir sem que Cepião Júnior entendesse o motivo, e no momento seguinte estar nas profundezas do desespero devido à vaga crescente de ressentimento público em relação a Arausio, e pouco depois gritar de raiva pela injustiça de tudo aquilo. Mas Cepião Júnior ainda não descortinara o que era o ”tudo aquilo”.
E os sentimentos de Cepião Júnior em relação a Arausio nunca poderiam ser isentos de culpa: enquanto Druso, Sertório e Sexto César e até esse Silo tinham ficado estendidos no campo de batalha, dados como mortos, ele fugira a nado pelo rio como um cachorro escorraçado, tão ansioso por sobreviver como o último recruta dos capite censi da sua legião. Claro que não falara disto a quem quer que fosse, nem mesmo ao pai; era o terrível segredo de CepiãoJúnior. No entanto, todas as vezes que encontrava Druso, preocupava-se com o que este pensaria.
A sua mulher, Lívia Drusa, estava na sua sala de estar com a filha no colo, pois tinha acabado de lhe dar a mamada. Como sempre, este acontecimento provocou um sorriso e isso devia tê-lo animado. Mas nunca acontecia. Os olhos dela não ligavam com o resto da cara, pois nunca provinha deles um sorriso, ou a menor chama de interesse. Sempre que falava com ele ou o escutava, CepiãoJúnior reparava que os olhos da mulher nunca fixavam os seus, nem mesmo por um momento. Porém, nenhum outro homem recebera a bênção de ter por esposa alguém mais doce e flexível. Nunca estava demasiado cansada ou mal disposta para acolher os seus avanços sexuais, nem punha objecções a qualquer pedido sexual que ele lhe fizesse. Era evidente que nessas ocasiões não podia ver os olhos dela; então, como poderia estar tão certo de que não havia neles o menor vislumbre de prazer?
Um homem mais sensível e inteligente teria interrogado Lívia Drusa gentilmente quanto a estas questões, mas Cepião Júnior tendia a atribuir tudo isso à sua imaginação; tinha tão pouca imaginação que não se apercebia da sua falta. Possuidor de uma agudeza mental que lhe permitia detectar qualquer coisa de radicalmente errado, não tinha no entanto a agudeza necessária para fazer as deduções acertadas. Nunca lhe devia ter ocorrido que ela não o amava, embora antes do casamento tivesse acreditado cegamente que não gostava dele. Mas fora imaginação sua. Ela não podia deixar de gostar dele, visto que provara ser uma esposa romana modelo. Por isso, tinha de gostar dele.
A filha, Servília, era mais um objecto que uma criatura humana para Cepião Júnior, que ficara desiludido por não ter tido um rapaz. Cepião Júnior sentou-se, enquanto Lívia Drusa dava algumas palmadas nas costas da bebé, entregando-a depois à ama macedónia.
- Sabias que o teu irmão votou mesmo em Caio Mário nas eleições consulares? - Perguntou Cepião Júnior.
Lívia Drusa abriu muito os olhos.
- Não. Tens a certeza?
- Contou-o hoje a Quinto Cecílio Metelo Numídico. E eu estava por perto. Continuou a referir-se a Arausio. Oh, quem me dera que Os inimigos do meu pai esquecessem o assunto!
- Dá tempo ao tempo, Quinto Servílio.
- Está a piorar - disse Cepião Júnior, desanimado. -jantas em casa?
- Não, vou voltar a sair. Vou jantar a casa de Lúcio Licínio Orador. Marco Lívio também estará lá.
- Oh - limitou-se Lívia Drusa a dizer.
- Desculpa, devia ter-te avisado esta manhã. Esqueci-me - informou o marido, levantando-se. - Não te importas, pois não?
- Não, claro que não - respondeu Lívia Drusa de modo inexpressivo. Era evidente que se importava; não por sentir a falta do marido mas porque uma pequena previsão da parte dele teria poupado dinheiro e o trabalho na cozinha. Viviam os dois com o pai Cepião, que estava sempre a queixar-se das contas e a culpar Lívia Drusa por não ser uma dona de casa cuidadosa. Nunca lhe ocorrera, tal como não ocorria ao filho, que nenhum deles se dava ao trabalho de lhe comunicar o que faziam, e todos os dias ela tinha de mandar fazer um jantar decente, mesmo que não aparecesse ninguém para comê-lo e voltasse para trás intacto, para as gargantas dos estáticos escravos do pai Cepião.
- Domina, levo o bebé para a sala das crianças? - perguntou a rapariga macedónia.
Lívia Drusa abandonou os seus devaneios e assentiu.
- Sim - disse-lhe, sem mesmo lançar um olhar à criança, quando a serva a levou. O facto de estar a amamentar a filha não se devia a qualquer consideração pelo bem-estar de Servília; fazia-o por saber que enquanto desse o seu leite à criança, não voltaria a engravidar.
Lívia Drusa não se importava muito com Servília; cada vez que olhava para a fedelhazita, via uma cópia do pai em miniatura: pernas curtas, uma cor tão escura que era assustadora, um denso manto de pêlos negros ao longo da espinha, braços e pernas, e os chocantes pêlos negros e curtos na testa e na base da nuca, como a pelugem de um animal. Para Lívia Drusa, a pequena Servília não tinha quaisquer virtudes. Nem tentara inumerar as qualidades da bebé, que não eram de modo nenhum desprezíveis, pois tinha um par de olhos negros tão grandes e escuros que eram uma promessa de beleza, uma boca que parecia um botão de rosa, e era silenciosa e reservada, outro prenúncio de beleza.
Os dezoito meses do seu casamento não haviam reconciliado Livia Drusa com o destino, apesar de nunca ter desobedecido às ordens do irmão; a sua cortesia e procedimento eram perfeitos. Até nos seus frequentes encontros sexuais com Cepião Júnior se portava impecavelmente. Felizmente, o seu estatuto impedia-a de responder com ardor; CepIão Júnior teria ficado surpreendido se ela gemesse no êxtase ou exprimisse o gozo como uma amante. Tudo o que era obrigada a fazer, fazia-o como uma boa esposa: deitada de barriga para cima, sem movimentos de ancas nem uma recompensa adequada de Calor, numa modéstia irrepreensível. Oh, mas era difícil! Mais difícil do que qualquer outro aspecto da sua vida, pois quando o marido a tocava, ela sentia vontade de gritar espavorida e vomitar-lhe na cara.
Não havia nela lugar para lamentar CepiãoJúnior, que de facto nunca fizera nada para merecer a repulsa apaixonada que lhe provocava. Neste momento, ele e o irmão Druso estavam fundidos numa presença vasta e ameaçadora, capaz de reduzi-la a circunstâncias muito piores; con um terrível medo deles, Lívia Drusa caminhava cada dia em direcção à moriconsciente de que nunca saberia o que era viver.
O pior de tudo era o seu exílio geográfico. A casa de Servílio Cepião situava-se no lado do Palatino onde ficava o Circo Máximo, dava para o Aventino e não tinha outras casas abaixo dela mas apenas uma escarpa íngreme e rochosa. Não havia mais hipóteses de ficar na loggia de Druso a observar a varanda da casa de baixo, à espera de vislumbrar o seu Odisseu de cabelos ruivos.
O pai de Cepião era um homem singularmente desagradável, que com o tempo vinha a tornar-se cada vez pior; e nem tinha uma mulher para aliviar o fardo de Lívia Drusa, embora tanto ele como a sua relação com o filho fossem tão distantes que ela nunca tivera a coragem de perguntar a nenhum se a sua mulher/mãe estava viva ou morta. Claro que a maneira de ser dele sofrera uma dura prova com a sua participação no desastre de Arausio. Primeiro, fora-lhe retirado o imperium, depois, o tribuno da plebe. Lúcio Cássio Longino conseguira fazer aprovar uma lei que lhe retirava o lugar no Senado, e agora, mal passava um mês sem que qualquer homem com ambições a demagogo tentasse mover-lhe um prOcesso por traição. Virtualmente confinado à sua casa pelo ódio virulento do Povo e pelo seu vivo sentido de autopreservação, Cepião-pai passava grande parte do tempo a observar Lívia Drusa: e a criticá-la impiedosamente.
No entanto, Lívia Drusa não fazia tolices que lhe dessem motivo para tal. Um dia, a mania de observação do sogro fê-la ficar tão furiosa que foi para o meio do jardim do peristilo, onde ninguém podia ouvi-la, e começou a falar sozinha em voz alta. Mal os escravos começaram a agrupar-se sob a colunata, discutindo o que estaria ela a fazer, Cepião-pai saiu do seu gabinete com ar decidido.
O sogro avançou para o caminho e vigiou-a com um ar feroz.
- O que estás a fazer, rapariga? - perguntou.
Os seus grandes olhos negros abriram-se muito.
- Estou a recitar o poema do rei Odisseu - respondeu.
- Pois não o recites - rosnou o sogro. - Estás a dar espectáculo! Os servos dizem que enlouqueceste! Se quiseres mesmo recitar Homero, recita-o onde alguém saiba que é Homero! Embora estranhe o motivo por que o fazes.
- Ajuda a passar o tempo - informou a nora.
- Há maneiras melhores de passar o tempo, rapariga, Monta o teu tear ou canta para a bebé, ou faz o mesmo, que as outras mulheres. Va, anda, põe-te a mexer!
- Não sei o que fazem as mulheres, pai - disse ela, levantando-se. O que fazem as mulheres?
- Põem os homens doidos! - respondeu o sogro, e dirigiu-se para o gabinete, batendo com a porta.
Depois disso, ela foi ainda mais longe, pois seguiu o conselho do sogro e montou o tear. O único problema foi ter começado a tecer uma série de vestidos fúnebres; e à medida que trabalhava, falava com um rei Odisseu imaginário, fingindo que ele se encontrava fora há vários anos e ela tecia vestidos fúnebres para adiar o dia em que teria de escolher um novo marido. Frequentemente, fazia uma pausa no seu monólogo e sentava-se com a cabeça de lado, como se estivesse a ouvir alguém falar. Desta vez, Cepião-pai mandou o filho ver o que se passava.
- Estou a tecer o meu vestido fúnebre - disse ela calmamente - e a tentar saber quando o rei Odisseu voltará para me salvar. Ele virá salvarme um dia.
Cepião Júnior ficou estupefacto.
- Salvar-te? O que estás a dizer, Lívia Drusa?
- Nunca ponho os pés fora desta casa - respondeu a mulher. Cepião Júnior ergueu as mãos aos céus, exasperado.
- Por Juno, o que te impede de fazer o que quiseres?
Ela fixou-o boquiaberta; não conseguiu pensar em mais nada senão em dizer:
- Não tenho dinheiro.
- Queres dinheiro? Eu dou-te dinheiro, Lívia Drusa! Mas pára de preocupar o meu pai! - exclamou Cepião Júnior, picado dos dois lados.
- Vai aonde quiseres! Compra o que quiseres!
De rosto sorridente, ela atravessou o quarto e beijou o esposo no rosto.
- Obrigada - disse-lhe, com tanta sinceridade que chegou a abraçá-lo. Fora tão simples! Todos aqueles anos de solidão forçada tinham acabado. Lívia Drusa não se lembrara de que, ao passar da autoridade do irmão para a do marido e do seu pai as regras poderiam mudar um pouco.
Quando Lúcio Apuleio Saturnino foi eleito tribuno da plebe, a sua gratidão para com Caio Mário não tinha limites. Agora poderia vingar-se! E não estava completamente desprovido de aliados, como não tardou a descobrir; um dos outros tribunos da plebe era um cliente de Mário, da Etrúria, um tal Caio Norbano, que possuía uma riqueza considerável mas não tinha influência no Senado, ao qual a sua família nunca pertencera. E havia um Marco Bébio, do clã dos tribunos Bébios que eram famosos por aceitarem subornos; poderia ser comprado, se fosse necessário.
Infelizmente, o extremo oposto do banco dos tribunos era ocupado por três opositores extremamente conservadores. Mesmo no extremo do banco estava Lúcio Aurélio Cota, filho do falecido cônsul Cota, sobrinho do ex-pretor Marco Cota e meio-irmão de Aurélia, a mulher do jovem Caio Júlio César. Ao lado dele, sentava-se Lúcio Antístio Regino, de famílias respeitáveis mas não famosas, e que se dizia ser cliente do consular Quinto Servílio Cepião, pelo que partilhava vagamente o ódio de Cepião. O terceiro homem era Tiro Dídio, um homem muito eficiente e sereno cuja família era da Campânia e que criara uma reputação considerável como soldado.
No centro do banco encontravam-se meros tribunos da plebe que pareciam considerar como seu papel principal ao longo do ano vindouro impedir os ocupantes dos extremos opostos do banco de apertarem as gargantas uns aos outros. Com efeito, não havia grandes amores entre os homens que Escauro teria designado por demagogos e aqueles que Escauro recomendava por nunca se esquecerem que eram membros do Senado antes de serem tribunos da plebe,
Isso não preocupava Saturnino. Entrara para o cargo numa posiÇão superior, seguido de perto por Caio Norbano, o que indicava que Os conservadores não tinham perdido o seu afecto por Caio Mário; e que Mário não achara que valesse a pena gastar muito do seu dinheiro a comprar votos para Saturnino e Norbano. Era preciso que Saturnino e Norbano atacassem depressa, pois o interesse na Assembleia da Plebe diminuira drasticamente ao fim de três meses; isto devia-se em parte ao tédio por parte do Povo e também por nenhum tribuno da plebe conseguir manter o ritmo por mais de três meses. O tribuno da plebe esgotava-se depressa tal como a lebre de Esopo, ao passo que a tartaruga senatorial mantinha o mesmo passo.
- Não verão senão o pó que se levantar à minha passagem - disse Saturnino a Gláucia quando se aproximava o décimo dia do mês de Dezembro, dia em que o novo colégio entraria em funções.
- O que temos em primeiro lugar? - perguntou Gláucia indolentemente, um pouco incomodado por ele, mais velho do que Saturnino, ainda não ter tido a oportunidade de concorrer às eleições para tribuno da plebe.
Saturnino sorriu ferozmente.
- Uma pequena lei agrária - disse -, para ajudar o meu amigo e benfeitor Caio Mário.
Com muito cuidado na sua exposição e através de um discurso magnífico, Saturnino apresentou à discussão uma lei defendendo a atribuição do ager africanus, reservado ao domínio público por Lúcio Márcio Filipe um ano antes; iria agora ser dividido pelos capite censi de Mário no final do seu serviço nas legiões: uma iugera por homem. Oh, como ele adorava aquilo! Os gritos de aprovação do Povo, as injúrias do Senado, o punho levantado por Lúcio Cota, o discurso cândido e enérgico de Caio Norbano em apoio desta medida.
- Nunca imaginei como o tribunato da plebe podia ser interessante
- disse depois de terminado o contio, ao jantar, na casa de Gláucia.
- Os políticos deviam estar na defensiva - afirmou Gláucia, sorrindo,
- Pensei que Metelo Numídico ia ter uma apoplexia!
- Foi pena não a ter - Saturnino encostou-se com um suspiro de contentamento, observando os desenhos que o fumo das lamparinas e o braseiro formavam no tecto, que estava a precisar de pintura. - É estranho o modo de pensar deles, não achas? Basta referir-se o termo ”lei agrária”, e desatam logo aos berros acerca dos irmãos Gracos, horrorizados com a ideia de dar qualquer coisa de graça a homens que não têm a perspicácia para adquirir o que quer que seja. Os próprios capite censi não aprovam a ideia de se oferecer qualquer coisa de graça!
- É uma bela história para todos os romanos bem-pensantes - disse Gláucia.
- E depois de terem discutido esse assunto, começaram a berrar acerca do tamanho desmesurado dos lotes: que eram dez vezes maiores do que uma pequena herdade na Campânia, como resmungaram os políticos. Deviam saber que uma ilha na Sirte Menor africana é dez vezes menos fértil do que a pior das herdades da Campânia, e as chuvas são um décimo menos seguras - disse Saturnino.
- Sim, mas a questão era mais acerca dos novos milhares de clientes de Caio Mário, não era? - perguntou Gláucia. - É aí que lhes dói. os veteranos de um exército de capite censi são potenciais clientes do seu general, especialmente se este se tiver dado ao trabalho de lhes garantir terrenos para a reforma. É a ele que ficam reconhecidos! E não vêem que o verdadeiro benfeitor é o Estado, pois é quem providencia os terrenos. É ao general que agradecem: a Caio Mário. E é isso que faz os políticos exaltarem-se.
- De acordo. Mas discutir não é a solução, Caio Servílio. A solução é aprovar uma lei geral que cubra todos os exércitos de capte censi para sempre: dez iugera de boa terra para todos os homens que completem o serviço nas legiões; digamos quinze anos? Vinte? Atribuídos sem ter em conta ao serviço de quantos generais esses soldados estão, ou em quantas campanhas diferentes participam.
Gláucia riu-se, genuinamente divertido.
- Parece-me ser uma mostra de bom senso, Lúcio Apuleio! E pensa nos cavaleiros que uma lei dessas afastaria. Menos terras para eles arrendarem; para já não falar nos nossos estimados senadores pastoris!
- Se os terrenos fossem na Itália, ainda entendia - comentou Saturnino.
- Mas as ilhas da costa de África? Diz-me, Caio Servílio, que utilidade podem ter para esses cães que guardam os seus velhos ossos? Em comparação com os milhões de iugera de terra ao longo do Ubus e do Chelif e do lago Tritão que Caio Mário deu em nome de Roma; e ainda por cima aos mesmos homens que agora se opõem! É um desperdício!
Gláucia girou os olhos verdes-acinzentados de longas pestanas, recOstou-se, bateu as palmas como uma tartaruga virada ao contrário a bater as barbatanas e desatou de novo a rir.
- No entanto, o discurso de que mais gostei foi o de Escauro. É intiligente. Os outros não têm muita importância para além da sua influência - Gláucia levantou a cabeça e olhou para Saturnino. - Estás preparado para a sessão de amanhã no Senado? - perguntou.
- Penso que sim - retorquiu Saturnino, contente. - Lúcio Apuleio está de volta! E desta vez não podem afastar-me antes do fim do meu mandato! Para isso, seriam necessárias as trinta e cinco tribos e elas não irão fazer tal coisa. Quer os políticos gostem quer não, voltei a entrar pelas suas portas sagradas, tão furioso e incómodo como uma vespa.
Gláucia entrou no Senado como se este lhe pertencesse, fazendo uma grande vénia a Escauro Princeps Senatus e acenando com a mão direita a ambos os lados da Assembleia, que estava quase cheia: prenúncio seguro de que se aproximava uma batalha. O resultado não lhe interessava muito, pois a arena em que o verdadeiro combate se decidiria era fora das portas da Cúria Hostília, no local dos Comícios. O descaramento estava na ordem do dia, e o desgraçado questor dos cereais metamorfoseado em tribuno da plebe constituía uma surpresa amarga para os políticos.
E Gláucia ia levar aos Pais Conscritos do Senado uma nova orientação, que apresentaria mais tarde na Assembleia da Plebe; agora, estava ainda na viagem experimental.
- Não há muito tempo que a esfera de influência de Roma se limita à Itália - disse. - Todos sabemos os problemas que Jugurta nos causou. Todos estamos eternamente agradecidos ao nosso estimado cônsul sénior Caio Mário por ter resolvido a guerra em África de um modo tão brilhante e tão conclusivo. Mas como podemos nós, Romanos, garantir às gerações vindouras que as nossas províncias permanecerão em Paz e a sua produção continuará a ser nossa? Temos uma tradição relativa aos costumes dos povos que não são romanos apesar de viverem nas nossas províncias: são livres de seguirem as suas práticas religiosas, comerciais e políticas. Desde que essas práticas não prejudiquem nem constituam uma ameaça para Roma. Mas um dos efeitos secundários da nossa tradição de não interferência é a ignorância. Nenhuma das nossas províncias para lá da Gália Italiana e da Sicília conhece o suficiente acerca de Roma e dos Romanos para valorizar a cooperação em desfavor da resistência. Se o povo da Numídia nos conhecesse melhor, Jugurta não teria conseguido convencer o rei Boco a segui-lo.
Gláucia aclarou a garganta; até ao momento, a Assembleia estava a receber bem as suas palavras, mas ele ainda não concluíra a sua exposição. Nem a concluiu.
- Isto leva-me a falar do ager Africanus insularum. Estrategicamente, essas ilhas não têm grande importância. Nenhum de nós aqui na Assembleia
sentirá a sua falta: não têm ouro, prata, ferro nem especiarias. Não são particularmente férteis quando comparadas às fabulosas terras de cultivo do rio Bágradas, onde muitos membros desta Assembleia possuem propriedades, bem como muitos membros da Primeira Classe. Então, por que não havemos de dá-las aos soldados dos capite censi de Caio Mário quando forem desmobilizados? Quereremos ter cerca de quarenta mil veteranos dos capite censi pelas tabernas e vielas de Roma? Sem ocupação, objectivos ou dinheiro depois de terem gasto a sua mísera parte das pilhagens do exército? Não será melhor para eles, e para Roma!, estabelecê-los no ager Africanus insularum? Porque, Pais Conscritos, há uma ocupação possível para eles depois da desmobilização: podem levar Roma até à Província de África! A nossa língua, os nossos costumes, os nossos deuses, o nosso próprio modo de vida! Através desses valentes e joviais soldados romanos expatriados, os povos da Província de África podem vir a compreender melhor Roma, pois esses valentes e joviais soldados romanos expatriados são vulgares; não são melhores, nem mais inteligentes, nem mais privilegiados do que muitos outros homens dos povos nativos com que irão misturar-se na sua vida quotidiana. Alguns, desposarão raparigas locais. Todos confraternizarão. E o resultado disso será menos guerra e uma paz mais duradoura.
Gláucia disse isto de modo persuasivo, razoável, sem os grandes períodos e gestos da retórica asiática. E, à medida que Gláucia se entusiasmava com a sua peroração, Saturnino começou a acreditar que ele iria conseguir fazer os teimosos membros daquela elite ver aonde a visão de homens como Mário - e ele próprio! - conduziriam Roma.
E, ao dirigir-se para o seu extremo do banco dos tribunos, Gláucia não pressentiu qualquer oposição no silêncio que se seguiu. Esperavam que um dos políticos apontasse o caminho. Carneiros! Malditos carneiros sem miolos.
- Dás-me licença? - perguntou Lúcio Cecílio Metelo Dalmático Pontifex Maximus ao cônsul Júnior, Caio Flávio Fímbria.
- Tens a palavra, Lúcio Cecílio - disse Fímbria.
Lúcio Cecílio tomou a palavra e a sua fúria, bem disfarçada até então, rebentou subitamente.
- Roma é exclusiva! - berrou tão alto que alguns dos seus ouvintes se sobressaltaram. - Como pode algum romano honrado pela participação nesta Assembleia propor um programa destinado a transformar o resto do mundo em imitações dos Romanos?
A habitual pose distante e superior de Dalmático desaparecera; estava inchado, ruborizado, as veias abaixo das bochechas rosadas e rechonchudas tinham o mesmo tom, Com a ira, todo ele vibrava à velocidade das asas de uma borboleta. Fascinados, receosos, todos os homens da Assembleia se inclinavam para ouvir um Dalmático Pontifex Maximus com cuja existência nunca haviam sonhado.
- Pais Conscritos, todos conhecemos este romano, não é verdade? bramiu. - Lúcio Apuleio Saturnino é um ladrão, um especulador, um efeminado grosseiro, um desencaminhador de rapazinhos que nutre paixões repugnantes pela irmã e pela filha, um fantoche manipulado pelo bonecreiro do Arpino na Gália Transalpina, uma barata dos piores antros de Roma, um proxeneta, um maricas, um homem pornográfico, a pior criatura de qualquer verpa da cidade! O que sabe ele de Roma, o que sabe o seu bonecreiro do Arpino acerca de Roma? Roma é exclusiva! Roma não pode ser lançada ao mundo como a merda ou o cuspo que se lançam nos esgotos! Iremos suportar a diluição da nossa raça através de uniões híbridas com as mulheres esfarrapadas de cinquenta povos? E no futuro, viajaremos até lugares distantes de Roma para ouvirmos o ultraje de um calão latino abastardado? Eles que falem grego! Que adorem Serápis do Scrotum ou Astarte do Anus! O que nos interessa? Mas vamos dar-lhes Quirino? Quem são os Quirites, os filhos de Quirino? Somos nós! Pois quem é Quiríno? Só um romano o sabe! Quirino é o espírito da cidadania romana; Quirino é o deus da assembleia de homens romanos; Quirino é o deus invicto, porque Roma nunca foi conquistada; e nunca será conquistada, caro Quirites!
A Assembleia rompeu em aplausos; enquanto Dalmático Pontifex Maximus cambaleava até ao seu banco, quase se abatendo sobre ele, os homens choravam, batiam os pés, batiam palmas até as mãos lhes doerem, viravam-se uns para os outros e abraçavam-se, de lágrimas a escorrerem-lhes pelo rosto.
Mas a emoção incontida escoou-se como a espuma do mar se esvai sobre as rochas, e quando as lágrimas secaram e os corpos se acalmaram, os homens do Senado de Roma ficaram extenuados e arrastaram-se até às suas casas para voltarem a rever em sonhos o momento mágico em que lhes aparecera a visão do Quirino sem rosto, lançando a sua toga sobre eles como um pai faria aos filhos honestos e leais.
A Assembleia estava quase vazia quando Cássio Orador, Quinto Múcio Cévola, Metelo Numídico, Catulo César e Escauro PrincePs Senatus conseguiram pôr termo à sua conversa eufórica e pensar seguir os passos dos outros. Lúcio Cecílio Metelo Dalmático Pontifex Maximus permaneceu sentado no seu banco, de mãos cruzadas sobre o colo como uma menina bem comportada. Mas a cabeça tombara-lhe para a frente, tinha o queixo apoiado no peito, os tufos de cabelos esbranquiçados esvoaçavam, agitados pela brisa que entrava pelas portas abertas.
- Irmão meu, foi o melhor discurso que ouvi até hoje! - exclamou Metelo Numídico, pousando a mão no ombro de Dalmático. Dalmático continuou sentado, sem falar nem mover-se; só então descobriram que estava morto.
- Morreria feliz se fizesse o meu melhor discurso no dia da minha morte.
Mas nem o discurso nem a morte de Metelo Dalmático Pontifex Maximus, nem toda a cólera e força do Senado impediram a Assembleia da Plebe de passar a lei o decreto de Saturnino. E a carreira tribunícia de Lúcio Apuleio Saturnino teve um início fulgurante, uma mistura curiosa de infâmia e adulação.
- Adoro isto! - disse Saturnino a Gláucia ao jantar, no fim do dia em que a lex Apuleia agrária foi aprovada. Era frequente jantarem juntos, geralmente em casa de Gláucia; a mulher de Saturnino nunca chegara a recuperar dos acontecimentos terríveis que se tinham seguido à denúncia de Escauro quando Saturnino era questor em óstia. - Sim, adoro isto! Pensa, Caio Servílio, que a minha carreira poderia ter sido diferente, se não fosse aquele velho mentula intrometido do Escauro.
- Os rostros estão bem para ti - disse Gláucia, comendo uvas. Afinal de contas, talvez exista algo a definir as nossas vidas.
Saturnino resmungou.
- Oh, referes-te a Quirino?
- Podes fazer troça, se quiseres. Mas eu defendo que a vida é uma coisa muito estranha - afirmou Gláucia. - Há mais formas e menos hipóteses do que num jogo de cottabus.
- E nenhum elemento de Estóico ou de Epicuro, Caio Servílio? Nem fatalismo ou hedonismo? Aconselho-te a teres cautela, senão confundes todos os antigos desmancha-prazeres gregos que afirmam que nós, Romanos, nunca criaremos uma filosofia que não lhes tenha sido tomada de empréstimo.
- Os Gregos são. Os Romanos fazem. Escolhe! Nunca conheci homem nenhum que conseguisse combinar esses dois estados. Gregos e Romanos, somos os extremos opostos do tubo digestivo. Os Romanos são a boca: absorvemos. Os Gregos são o ânus: expelem. Sem qualquer desrespeito pelos Gregos, é apenas uma figura de estilo - explicou Gláucia, pontuando a sua afirmação enfiando uvas na extremidade romana do tubo digestivo.
- Como nenhuma das extremidades pode fazer alguma coisa sem a contribuição da outra, é melhor juntarmo-nos - disse Saturnino. Gláucia sorriu.
- Isso é que é um romano a falar! - exclamou.
- Dos pés à cabeça, embora Metelo Dalmático diga que não sou. Não foi inesperado o velho fellator morrer em tão boa altura? Se os políticos fossem mais activos, podiam ter feito dele um exemplo imperecível. Metelo Dalmático: o novo Quirino! - Saturnino agitou as borras do vinho na sua taça e atirou-as com perícia para um prato vazio; os salpicos eram contados de acordo com o número de braços que irradiavam do corpo central. - Três - disse, e estremeceu. - É o número da morte.
- E onde está agora o nosso Céptico? - disse Gláucia em tom trocista.
- É pouco habitual serem apenas três.
Gláucia cuspiu habilmente e destruiu a forma dos salpicos com três pevides de uva.
- Três! Três mortos por outros três!
- Morreremos ambos daqui a três anos - disse Saturnino.
- Lúcio Apuleio, és uma contradição pegada! Estás tão pálido como um Lúcio Cornélio Sila, e com muito menos desculpa. Isto não passa de um jogo de cottabus! - afirmou Gláucia, mudando de assunto. - Concordo que a vida nos rostros é muito mais excitante do que a vida do favorito dos políticos. É um grande desafio manipular politicamente o Estado. Um general tem as suas legiões. Um demagogo não tem nada mais afiado que a língua. - Gláucia riu-se entredentes. - E não foi uma maravilha ver a multidão afugentar Marco Bébio do Fórum esta manhã, quando ele tentou interpor o veto?
- Foi um espectáculo rejuvenescedor! - respondeu Saturnino a rir, enquanto afastava da memória o espectro dos números três ou trinta e três.
-A propósito - comentou Gláucia, voltando a mudar subitamente de assunto -, já ouviste o último boato que corre no Fórum?
- Que foi o próprio Quinto Servílio Cepião quem roubou o ouro de Tolosa? - perguntou Saturnino.
Gláucia ficou com ar desiludido.
- Que Dis te leve! Pensei que tinha sabido a notícia antes de ti!
- Soube-a por uma carta de Mânio Aquílio - informou Saturnino. Quando Caio Mário está demasiado ocupado, é Aquílio que me escreve em vez dele. E confesso que não me queixo, pois escreve muito melhor do que o Grande Homem.
- Da Gália Transalpina? Como o sabem eles?
- Foi a partir de lá que se espalhou o boato. Caio Mário fez um prisioneiro: nada menos que o rei de Tolosa. E ele alega que Cepião roubou os quinze mil talentos de ouro.
Gláucia assobiou.
- Quinze mil talentos! Incrível, não é? Mas é demasiado; todos sabem que um governador tem o direito aos seus lucros, mas mais ouro do que há no Tesouro? É um pouco excessivo!
- Concordo. Mas o boato favorecerá bastante Caio Norbano quando levantar o processo a Cepião, não é? A história do ouro circulará pela cidade em menos tempo do que a Metela Calva leva a levantar a túnica para acolher um grupo de marinheiros.
- Gosto da tua metáfora! - disse Gláucia. E de repente disse com brusquidão: - Chega de conversas! Temos de trabalhar nos projectos de lei e coisas parecidas. Não podemos deixar passar nada despercebido.
O trabalho de Saturnino e Gláucia quanto aos projectos de lei e outros foi planeado e coordenado com o cuidado que se coloca em qualquer grande estratégia militar. A intenção deles era retirar às Centúrias os julgamentos por traição na província, o que levava a uma insuportável sequência de entraves e becos sem saída. A seguir, tencionavam retirar ao Senado os julgamentos por extorsão e suborno, substituindo os júris senatoriais por júris compostos unicamente por cavaleiros.
- Em primeiro lugar, Norbano tem de condenar Cepião na Assembleia da Plebe por qualquer acusação aceitável: desde que a acusação não se refira a traição, podemos tratar já disso, enquanto os ânimos populares estão contra Cepião devido ao ouro roubado - expôs Saturnino.
- Isso nunca resultou na Assembleia da Plebe - disse Gláucia, pouco convencido. - Foi isso mesmo que o nosso exaltado amigo Aenobarbo tentou fazer ao acusar Silano de ter dado origem a uma guerra ilegal contra os Germanos, e não havia aí qualquer menção a traição! Mas a Assembleia da Plebe rejeitou o processo. O problema é que ninguém gosta de julgamentos por traição.
- Bem, continuaremos a trabalhar nisto - disse Saturnino. - Para obtermos uma condenação das Centúrias, o réu tem de confessar ter sido conivente na ruína do seu país. E ninguém é assim tão tolo que o confesse. Caio Mário tem razão; temos de prender as asas dos políticos mostrando-lhes que não estão acima da censura moral ou da lei. E só podemos fazê-lo num organismo de homens que não sejam membros do Senado.
-E por que não fazemos aprovar já a nova lei referente à traição, e levamos depois Cepião a julgamento num tribunal especial? - perguntou Gláucia. - Sim, bem sei que os membros do Senado vão guinchar como porcos, mas afinal não é o que fazem sempre?
Saturnino fez uma careta.
- Queremos viver, não queremos? Mesmo que tenhamos apenas mais três anos, sempre é melhor que morrermos depois de amanhã.
- Tu e os teus três anos!
- Escuta - insistiu Saturnino -, se conseguirmos que Cepião seja condenado na Assembleia da Plebe, o Senado aceitará a nossa sugestão: de que o Povo está farto de membros do Senado a encobrir os outros. De que não há uma lei para os senadores e outra para todos os outros homens. Está na altura de o Povo acordar! E vou ser eu quem vai acordá-lo! Desde o início desta República, o Senado tem feito crer ao Povo que os senadores são superiores e podem fazer e dizer o que quiserem. ”Votem em Lúcio Tidlipus: foi a sua família que deu a Roma o primeiro cônsul!” E alguém se importa que Lúcio Tidlipus seja um incompetente egoísta e ambicioso? Não! Lúcio Tidlipus tem o nome de família e a tradição familiar do serviço na esfera pública de Roma. Os irmãos Gracos tinham razão: devemos retirar os tribunais da coorte de Lúcio Tidlipus e dá-los aos cavaleiros!
Gláucia estava meditativo.
- Acaba de ocorrer-me uma coisa, Lúcio Apuleio. Ao menos, o Povo é responsável e bem-educado. Pilares da tradição romana. Mas... e se um dia alguém começar a falar dos capite censi no tom em que agora te referes ao Povo?
Saturnino riu.
- Os capite censi ficam contentes se tiverem a barriga cheia e os edis organizarem bons jogos. Para os tornares politicamente conscientes, terias de transformar o Fórum Romano no Circo Máximo!
- Este Inverno não têm a barriga tão cheia como deviam - comentou Gláucia.
Estão cheias quanto baste, graças ao nosso venerado Presidente da Assembleia, Marco Emílio Escauro. Não lamento que nunca consigamos convencer Numídico ou Catulo César a ver as coisas à nossa maneira, mas não deixo de pensar que é pena que nunca venhamos a persuadir Escauro disse Saturnino.
Gláucia olhou-o com curiosidade.
Nunca atribuíste a Escauro as culpas por teres sido expulso da Assembleia, pois não?
Não. Ele fez o que achava certo. Mas um dia, Caio Servílio, descobrirei os verdadeiros culpados, e então... hão-de desejar não terem nascido! ameaçou Saturnino com um ar feroz.
Em princípios de Janeiro, o tribuno da plebe Caio Norbano acusou Quinto Servílio Cepião na Assembleia da Plebe daquilo a que chamava a ”perda do seu exército”.
Os ânimos exaltaram-se logo no início, pois o Povo era unânime na oposição à exclusividade senatorial, e todos os membros da plebe que pertenciam ao Senado compareceram para combater Cepião. Muito antes das tribos serem chamadas a votar, deflagrou a violência e correu sangue. O tribuno da plebe Tito Dídio e Lúcio Aurélio Cota avançaram para vetar o processo e foram afastados dos rostros por uma multidão furiosa. Caíam pedras, batiam paus em ancas e pernas; Dídio e Lúcio Cota foram expulsos do local dos Comícios e literalmente empurrados pela multidão até ao Argileto, onde os mantiveram sequestrados. Embora estivessem feridos e chocados, ainda tentaram gritar os seus vetos através de um mar de rostos furiosos, mas por repetidas vezes foram impedidos de falar.
Não havia dúvidas de que o boato acerca do ouro de Tolosa pesara muito na balança contra Cepião e contra o Senado; desde os capite censi à Primeira Classe, toda a cidade lançava imprecações contra Cepião, o ladrão, Cepião, o traidor, Cepião, o egoísta. As pessoas incluindo as mulheres, que nunca haviam mostrado qualquer tipo de interesse pelo que se passava no Fórum ou na Assembleia vinham ver este Cepião, um criminoso a uma escala até então inimaginável; discutia-se a altura das pilhas de ouro, o seu peso e quantidade. E fazia-se sentir o ódio, porque ninguém gosta de ver um indivíduo apoderar-se de dinheiro considerado pertença de todos. Em especial tanto dinheiro.
Decidido a que o julgamento prosseguisse, Norbano ignorou o tumulto, os berros, o caos quando o público habitual da Assembleia
penetrou por entre a multidão que viera apenas ver e caluniar Cepião, que permanecia nos rostros, guardado por lictores destacados para protegê-lo e não para o deter. Os membros patrícios do Senado que não podiam participar na Assembleia da Plebe, reunidos nos degraus da Cúria Hostília, intimidaram Norbano, até que um grupo começou a apedrejá-los. Escauro caiu inamimado, sangrando de um ferimento na cabeça. Isso não deteve Norbano, que prosseguiu o julgamento sem mesmo parar para saber se o Princeps Senatus estava morto ou apenas inconsciente.
Quando chegou à altura da votação, esta decorreu com grande rapidez; as primeiras dezoito das trinta e cinco tribos condenaram Quinto Servilio Cepião, pelo que as outras tribos não foram convocadas. Encorajado por esta indicação sem precedentes do grau de ódio contra Cepião, Norbano pediu então à Assembleia da Plebe para impor uma sentença específica por voto: uma sentença tão dura que todos os senadores presentes vociferaram protestos vãos. Mais uma vez, as primeiras dezoito tribos escolhidas por sorteio votaram no mesmo sentido, infligindo um castigo terrível a Cepião. Foi-lhe retirada a cidadania, proibidos fogo e água a menos de oitocentas milhas de Roma, multaram-no em mil e quinhentos talentos de ouro e preso nas celas das Lautúmias sob guarda e sem poder falar com ninguém, nem mesmo com os membros da sua própria família, até iniciar a sua viagem para o exílio.
Por entre apertos de mãos e gritos triunfantes de que ele já não teria hipóteses de ver os seus corretores e banqueiros depositar a fortuna, Quinto Servílio Cepião, ex-cidadão de Roma, foi escoltado pelos seus lictores na pequena distância que separava o local dos Comícios das celas em ruínas das Lautúmias.
Completamente satisfeita com os acontecimentos de um dia deliciosamente excitante e pouco comum, a multidão seguiu para os seus lares, deixando no Fórum Romano meia dúzia de membros do Senado.
Os dez tribunos da plebe distribuíam-se por grupos segundo as suas reacções: Lúcio Cota, Tiro Dídio, Marco Bébio e Lúcio Antístio Regino tinham a tristeza estampada no rosto; os quatro intermediários mostravam um ar desesperado; e um exaltado Caio Norbano e Lúcio Apuleio Saturnino falavam com grande animação e muitos risos a Caio Servílio Gláucia, que viera dar-lhes os parabéns. já nenhum dos dez tribunos da plebe vestia a toga, rasgada no meio da confusão.
Marco Emílio Escauro estava sentado de costas apoiadas à base da estátua de Cipião Emiliano Africano, enquanto Metelo Numídico tentava estancar o sangue que corria livremente de um corte numa têmpora; Cássio Orador e o seu companheiro inseparável (e primo direito) QuInto Múcio Cévola rondavam em torno de Escauro com ar abatido; chocados, Druso e Cepião Júnior estavam nos degraus do Senado guardados Por Marco Aurélio Cota e pelo tio de Druso, Públio Rutílio Rufo; e o cônsul júnior, Lúcio Aurélio Orestes, que não estava no melhor dos estados, visto que jazia no vestíbulo, onde um pretor preocupado o tratava.
Rutílio Rufo e Cota acorreram para amparar Cepião Júnior quando este tombou subitamente sobre o pálido e surpreso Druso que passara um braço à volta dos seus ombros.
- Que podemos fazer? - perguntou Cota.
Druso abanou a cabeça, demasiado emocionado para falar, e Cepião Júnior parecia não ouvir nada.
- Alguém se lembrou de mandar chamar alguns lictores para protegerem a casa de Quinto Servílio da multidão? - perguntou Rutílio Rufo, Druso conseguiu responder:
- Eu mandei chamá-los.
- E a mulher do rapaz? - perguntou Cota, indicando CepiãoJúnior.
- Ordenei que a levassem para minha casa com o bebé - disse Druso, levando a mão que tinha livre à bochecha, como se quisesse verificar se tudo aquilo estava realmente a acontecer.
Cepião Júnior estremeceu, olhou surpreendido para os três homens que o rodeavam, e disse:
- Só se interessaram pelo ouro! Nem pensaram em Arausto. Não o condenaram por Arausio. Só se interessaram pelo ouro!
- Faz parte da natureza humana - afirmou Rutílio Rufo com suavIdade - preocupar-se mais com o ouro do que com as vidas humanas. Druso olhou de relance para o tio, mas mesmo que as palavras de Rutílio Rufo fossem ditas num tom irónico, Cepião Júnior nunca teria reparado.
- Quem tem a culpa é Caio Mário - afirmou Cepião Júnior. Rutílio Rufo pôs a mão no cotovelo de Cepião Júnior.
- Vem, jovem Quinto Servílio; Marco Aurélio e eu vamos levar-te a casa do jovem Marco Lívio.
Quando avançavam em direcção às escadas do Senado, Lúcio Antístio Regino separou-se de Lúcio Cota, Dídio e Bébio e afastou-se a passos largos para defrontar Norbano, que recuou e tomou uma atitude de defesa agressiva.
- Oh, não te preocupes! vociferou Antístio. Não iria conspurcar as minhas mãos com rafeiros como tu! Antístio empertigou-se; era um homem grande, e era evidente que tinha sangue celta. Vou às Lautúmias libertar Quinto Servílio. Nenhum homem na história da nossa República foi preso enquanto aguardava a partida para o exílio e não deixarei que Quinto Servílio seja o primeiro! Podes tentar impedir-me, se quiseres, mas mandei irem buscar a minha espada a casa, e por Júpiter, Caio Norbano, se tentares impedir-me, mato-te!
Norbano riu-se.
- Oh, leva-o! disse. Leva Quinto Servílio para tua casa e limpa-lhe as lágrimas... para já não falar do rabo! Se fosse a ti, não me aproximava da casa dele.
- Vê se lhe cobras bastante dinheiro! exclamou Saturnino quando a figura de Antístio quase não se via. Olha que ele pode pagar em ouro!
Antístio voltou-se e fez um gesto inconfundível com os dedos da mão direita.
Ora, nem penses que possa fazê-lo! gritou Gláucia rindo. Lá por seres uma rainha, não quer dizer que os outros também o sejam!
Caio Norbano desinteressou-se.
- Vem disse a Gláucia e Saturnino. Vamos jantar.
Embora se sentisse muito enjoado, Escauro teria preferido morrer a sofrer a desonra de vomitar em público, e por isso obrigou a sua mente agitada a concentrar-se nos três homens que se afastavam a rir, animados, vitoriosos.
- São lobisomens comentou Metelo para Numídico, cuja toga estava manchada com o sangue de Escauro. Olha para eles! Não passam de meros instrumentos de Caio Mário!
-Já podes levantar-te, Marco Emílio? perguntou Numídico.
Só quando me sentir melhor do estômago.
Parece que Públio Rutílio e Marco Aurélio levaram os dois jovens de Quinto Servílio para casa disse Numídico.
- Óptimo. Vão precisar que alguém tome conta deles. Nunca vi uma multidão tão sedenta de sangue patrício; nem nos piores dias de Caio Graco afirmou Escauro, respirando fundo. Agora, teremos de andar calmamente, Quinto Cecílio. Se nos apressarmos, os lobisomens correrão ainda mais.
Maldito sejam Quinto Servílio e mais o seu ouro! vociferou Numídico.
Como se sentia melhor, Escauro permitiu que o ajudassem a levantar-se.
- Então, pensas que foi ele que ficou com o ouro’
Metelo Numídico fez um ar irónico.
- Vamos, não tentes ludibriar-me, Marco Emílio! - disse. - Sabe-lo tão bem como eu. É claro que foi ele quem o roubou! E nunca lhe perdoarei por isso. O ouro pertencia ao Tesouro.
- O problema - comentou Escauro quando começou a caminhar sobre o que parecia ser uma série de nuvens desiguais - e o de não termos nenhum sistema interno que permita a homens como tu ou eu punir aqueles de entre nós que nos traírem.
Metelo Numídico encolheu os ombros.
- Deves estar consciente de que não pode existir um sistema desses. Instituí-lo seria admitir que os nossos homens por vezes ficam aquém do que deviam. E se mostrarmos ao mundo as nossas fraquezas, estamos acabados.
- Antes morto que acabado - disse Escauro.
- Também acho - disse Metelo Numídico com um suspiro. - Só espero que os nossos filhos sintam o mesmo que nós.
- Isso - disse Escauro com secura - não foi delicado da tua parte.
- Marco Emílio, Marco Emílio! O teu rapaz é muito novo! Sinceramente, não vejo nele nada de errado.
- Então, queres trocar de filho?
- Não - respondeu Metelo Numídico -, nem que fosse porque esse gesto mataria o teu filho. O seu pior defeito é saber perfeitamente que o desaprovas.
- É um fraco - disse Escauro, o forte.
- Talvez uma boa mulher ajude - sugeriu Numídico. Escauro parou e virou-se para encarar o amigo.
- É uma ideia! Ainda não o destinei a ninguém; é tão... grosseiramente imaturo! Tens alguém em mente?
- A minha sobrinha. A filha de Dalmático, Metela Dalmática. Daquí a dois anos terá dezoito. Agora que o caro Dalmático morreu, sou o tutor dela. O que dizes, Marco Emílio?
- Negócio fechado, Quinto Cecílio!
Mal percebeu que Cepião-pai ia ser condenado, Druso mandou O mordomo Cratipo e todos os escravos fisicamente aptos irem até à casa de Servílio Cepião.
Transtornada pelo julgamento e pelo pouco que conseguira escutar da conversa entre Cepião Júnior e Cepião-pai, Lívia Drusa pusera-se a trabalhar no tear, pois não tinha mais nada que fazer; nenhum livro a cativava, nem mesmo a poesia picante de Meléagro. Como não esperava a invasão dos servos do irmão, alarmou-se com a expressão de pânico dominado patente no rosto de Cratipo.
- Depressa, dominilla, junta as coisas que quiseres levar contigo! disse, observando a salinha dela. - Mandei a tua criada empacotar as tuas roupas e a ama tomar conta do bebé, e por isso só tens de apontar-me o que queres levar contigo: livros, papéis, tecidos...
Lívia Drusa olhou para o mordomo de olhos esbugalhados.
- O que foi? O que aconteceu?
- Foi o teu sogro, dominilla. Marco Lívio diz que o tribunal vai condená-lo - explicou Cratipo.
- Mas por que tenho de partir? - perguntou ela, aterrorizada com a ideia de voltar a ficar prisioneira na casa do irmão, agora que descobrira a liberdade.
- A cidade quer o sangue dele, dominilla. O rosto de Lívia empalideceu.
- O sangue dele? Vão matá-lo?
- Não. Não é assim tão grave - asseverou Cratipo, num tom consolador. - Vão confiscar os seus bens. Mas a multidão está tão furiosa que o teu irmão acha que quando acabar o julgamento muitos dos mais vingativos podem vir direitos até cá, para roubar.
Daí a uma hora, a casa de Quinto Servílio Cepião estava vazia de servos e familiares, com os portões fechados e trancados; quando Cratipo levou Lívia Drusa ao longo do ClivuN Palatinus, chegou um grande grupo de lictores, apenas de túnicas vestidas e com paus em vez de fasces. Iam ficar de serviço à porta da casa e manter a turba irada à distância, porque o Estado queria os bens de Cepião intactos até poderem ser catalogados e leiloados.
Servília de Cepião, estava à porta da casa de Druso para recebê-la, tão pálida como ela.
- Anda ver - disse, seguindo com Lívia Drusa em passo rápido através do jardim do peristilo e da casa, orientando-a para fora da loggia, que dava para o Fórum Romano.
E aproximava-se o fim do julgamento de Quinto Servílio Cepião. A turba violenta dividia-se em tribos para votar a sentença de exílio distante e severas perdas, uma curiosa série de linhas ondulantes que ainda se encontravam ordenadas no local dos Comícios mas que se tornaram caóticas quando se lhes reuniu a enorme multidão de espectadores. Os punhos indicavam as lutas que estavam a decorrer; os turbilhões revelavam onde estas haviam começado, tornando-se algo semelhante ao núcleo de um motim; nas escadas do Senado, havia muitos homens agrupados; e nos rostros, no canto do local dos Comícios, estavam os tribunos da plebe e uma pequena figura cercada pela multidão que Lívia presumiu ser o sogro, o seu.
Servília de Cepião começou a chorar; ainda demasiado entorpecida para conseguir chorar, Lívia Drusa aproximou-se dela.
- Cratipo disse que o povo podia ir saquear a casa do pai - afirmou ela. - Eu não sabia! Ninguém me contou nada!
Tirando o lenço, Servília de Cepião enxugou-lhe as lágrimas.
- Marco Lívio temia isto - disse. - É aquela maldita história do ouro de Tolosa! Se não a pusessem a circular, as coisas teriam sido bem diferentes. Mas a maioria das pessoas de Roma parece ter julgado o pai antes do julgamento; e por algo de que ele nem é acusado!
Lívia Drusa virou costas.
- Tenho de ir ver onde Cratipo pôs o meu bebé.
Esse comentário provocou uma nova onda de lágrimas a Servília de Cepião, que não conseguira engravidar até ao momento, embora desejasse desesperadamente um bebé.
- Por que não terei concebido? - perguntou Servília a Lívia Drusa.
- Tens tanta sorte! Marco Lívio diz que vais ter outro bebé e eu ainda nem consegui ter o primeiro!
- Há tempo de sobra - disse Lívia Drusa, reconfortando-a. - Não te esqueças de que esperámos meses por ele depois de termos casado, e Marco Lívio Druso está muito mais ocupado do que o meu Quinto ServílIO. Dizem que quanto mais ocupado está o marido, mais dificuldade tem a mulher em conceber.
- Não, sou estéril - murmurou Servília de Cepião. - Sei que sou estéril; pressinto-o! E Marco Lívio é tão meigo e compreensivo! - e desatou de novo a chorar.
- Vamos, não te arrelies tanto por causa disso - disse Lívia Drusa, que conseguira levar a cunhada até ao átrium onde olhou em volta e”’ busca de auxílio. - Não vais tornar as coisas mais fáceis se te enfureceres. Os bebés gostam de barrigas calmas.
Cratipo apareceu.
- Oh, dou graças aos deuses! - exclamou Lívia Drusa. - Cratipo, podes chamar a criada da minha irmã? E podes mostrar-me onde vou dormir e onde dormirá a pequena Servília?
Numa casa tão grande, o alojamento de várias pessoas a mais não constituía problema; Cratipo cedeu a Cepião Júnior e à mulher um dos apartamentos que davam para o jardim do peristilo e outro a Cepião-pai; a bebé Servília ficou no quarto de crianças ao longo da distante colunata.
- Que ordens devo dar para o jantar? - perguntou o mordomo a Lívia Drusa quando esta dirigia o desempacotamento das bagagens.
- Isso é com a minha irmã, Cratipo! Não quero sobrepor-me à sua autoridade.
- Ela está deitada em estado de grande perturbação, dominilla.
- É melhor ordenar que o jantar esteja pronto dentro de uma hora; os homens podem ter vontade de comer. Mas prepara-te para adiá-lo.
Houve uma agitação no jardim; Lívia Drusa saiu para ver e encontrou o seu irmão Druso amparando Cepião Júnior ao longo da colunata.
- O que aconteceu? - perguntou ela. - Posso ajudar? - Lívia Drusa olhou para Druso. - O que aconteceu? - repetiu.
- Quinto Servílio, o nosso sogro, foi condenado a um exílio a não menos de oitocentas milhas de Roma, uma multa de mil e quinhentos talentos de ouro, o que implica a confiscação de todo e qualquer bem da sua família, e a prisão nas Lautúmias até ser deportado - informou Druso.
- Mas todo o dinheiro do pai não dá cem talentos de ouro! - exclamou Drusa horrorizada.
- Claro. Por isso, nunca mais poderá regressar.
Servília de Cepião veio a correr e Lívia Drusa pensou que ela parecia Cassandra voando a fugir dos conquistadores gregos, de cabelos revoltos, olhos enormes marejados de lágrimas, boquiaberta.
- O que foi? O que foi? - gritou.
Druso acolheu-a ternamente mas com firmeza, enxugou-lhe as lágrimas e proibiu-a de lançar-se nos braços do irmão. Com este tratamento, a mulher acalmou-se subitamente, como que por magia.
- Venham, vamos todos para o teu gabinete, Marco Lívio - disse ela, seguindo à frente.
Lívia Drusa ficou para trás, aterrorizada.
- O que se passa contigo? - perguntou Servília de Cepião.
- Não podemos entrar no gabinete com os homens!
- Claro que podemos! - disse Servília impaciente. - Não é altura para manter as mulheres da família na ignorância e Marco Lívio sabe-o. Se não ficarmos juntos, caímos juntos. Um homem forte deve ter mulheres fortes à sua volta.
Com a cabeça a andar à roda, Lívia Drusa tentou assimilar todas as viragens súbitas dos últimos momentos e acabou por entender que fora uma tola durante toda a vida. Druso contava ter à sua espera uma mulher vivamente perturbada, mas depois esperava que ela se acalmasse, e fosse extremamente prática e lhe desse apoio. E Servília de Cepião agira exactamente como ele esperava.
Por isso, Lívia Drusa seguiu Servília de Cepião e os homens até ao gabinete e tentou não se mostrar horrorizada quando Servília de Cepião serviu vinho puro para todos. Lívia escondeu o turbilhão dos seus pensamentos - e a sua fúria - enquanto saboreava a primeira bebida alcoólica que alguma vez provara.
Ao fim da décima hora, Lúcio Antístio Regino trouxe Quinto Servílio Cepião para casa de Druso. Cepião tinha um ar exausto mas mais irritado do que deprimido.
- Fui buscá-lo às Lautúmias - explicou Antístio, de lábios apertados. - Nenhum consular romano será encarcerado enquanto eu for tribuno da plebe! É uma afronta a Rómulo e a Quirino, e ajúpiter Optimus Maximus. Como ousaram eles?
- Ousaram porque o Povo os encorajou, tal como todos os refugiados dos jogos - disse Cepião, bebendo o vinho de uma só vez. - Além do mais estou farto de Roma - disse então, e lançou um olhar fulminante a Druso, fitando a seguir o filho. - A partir de agora, cabe-vos defender o direito da minha família a gozar dos seus antigos privilégios e da sua proeminência natural. Com as próprias vidas, se necessário. Os Mários, os Saturninos e os Norbanos têm de ser exterminados: nem que seja à faca, se for o único modo, entendem!
Cepião Júnior assentiu obedientemente, mas Druso ficou sentado com a taça de vinho na mão e de ar bastante inexpressivo.
- Pai, juro-te que a nossa família nunca virá a perder a sua dignitas enquanto o paterfamilias for eu - proferiu Cepião Júnior solenemente; parecia agora mais tranquilo.
”Está cada vez mais parecido com o pai”, pensou Lívia Drusa odiando-o. ”Por que o odiarei tanto? Por que me obrigou o meu irmão a casar com ele?”
Então, a sua situação aligeirou-se, pois vira no rosto de Druso uma expressão que a fascinou, intrigou. Não parecia exactamente discordar das palavras do sogro, mas era como se estivesse a classificá-las, a arquivá-las dentro da sua mente como muitas outras coisas, das quais grande parte nem fazia sentido. E Lívia Drusa pensou subitamente que o irmão sentia uma profunda aversão pelo sogro. Oh, como Druso mudara! Enquanto Cepião Júnior nunca mudaria, limitar-se-ia a ser cada vez mais o que sempre fora.
- O que tencionas fazer, pai? - perguntou Druso.
Um sorriso de curiosidade aflorou o rosto de Cepião; a irritação desapareceu-lhe dos olhos e foi substituída por um sentimento mais complexo, uma mistura de triunfo, astúcia, dor e ódio.
- Meu caro rapaz, irei para o exílio, cumprindo a decisão da Assembleia da Plebe - respondeu o sogro.
- Mas para onde, pai? - perguntou Cepião Júnior.
- Esmirna.
- Como arranjaremos dinheiro? - perguntou Cepião Júnior. - Não é tanto por mim... Marco Lívio auxiliar-me-á... mas por ti. Como conseguirás viver confortavelmente no exílio?
- Tenho dinheiro depositado em Esmirna, mais do que o suficiente para as minhas necessidades. Quanto a ti, filho, não há razão para preocupações. A tua mãe deixou uma grande fortuna, que deixei a teu cargo. Esse dinheiro será mais do que suficiente para vos sustentar - disse Cepião.
- Mas não será confiscado?
- Não. Por dois motivos: em primeiro lugar, já se encontra em teu nome e não no meu; e em segundo lugar, não está depositado em Roma. Encontra-se em Esmirna, junto com o meu dinheiro - o sorriso cresceu.
- Terás de viver nesta casa com Marco Lívio, durante vários anos, findos os quais começarei a enviar a fortuna para cá. E se me acontecer alguma coisa, os meus banqueiros darão seguimento a isso. Entretanto, genro, toma nota de todos os dinheiros que gastares com o meu filho. A seu tempo ele to restituirá até ao último sestércio.
Abateu-se sobre o grupo um silêncio cheio de tanta energia e emoção que era quase visível, enquanto cada um dos seus membros imaginava o que Cepião não estava a dizer; que fora ele quem tinha roubado o ouro de Tolosa, que o ouro de Tolosa estava agora em Esmirna e que pertencia agora a Quinto Servílio Cepião, livre, seguro e a salvo. Que Quinto Cepião era quase tão rico como a própria Roma.
Cepião virou-se para Antístio, silencioso como os outros.
- Pensaste no que te pedi no caminho para cá?
Antístio aclarou a garganta ruidosamente.
- Pensei, Quinto Servílio. E gostaria de aceitar.
- Excelente! - Cepião olhou para o filho e para o genro. - O meu caro amigo Lúcio Antístio concordou em escoltar-me até Esmirna, para me oferecer a companhia e a protecção de um tribuno da plebe. Quando chegarmos a Esmirna, tratarei de convencer Lúcio Antístio a permanecer lá comigo.
- Ainda não o decidi - disse Antístio.
- Não há pressa - afirmou Cepião calmamente; depois, esfregou as mãos como se quisesse aquecê-las. - Declaro que estou esfomeado! Há jantar?
- É evidente, pai - disse Servília de Cepião. - Se forem para a sala de jantar, eu e Lívia Drusa tratamos das coisas na cozinha.
Claro que não era bem assim que as coisas se passavam; era Cratipo que se ocupava das coisas na cozinha. Mas as duas mulheres procuraram-no, e acabaram por encontrá-lo na loggia que dava para o Fórum Romano, onde as sombras cresciam.
- Vejam aquilo! já tinham visto tamanha confusão? - perguntou o mordomo indignado, apontando. - Lixo por todo o lado! Sapatos, trapos, paus, restos de alimentos, garrafas de vinho, uma desgraça!
E ali estava ele, o seu Odisseu de cabelos ruivos, com Cneu Domício Aenobarbo na varanda da casa abaixo; tal como Cratipo, os dois homens pareciam irritados com o lixo.
Lívia Drusa estremeceu, humedeceu os lábios, olhou angustiada para o jovem tão perto dela... e no entanto tão longe. O mordomo dirigiu-se às escadas da cozinha; surgira a sua hipótese, agora que a conversa teria o ar de um inquérito banal.
- Irmã - perguntou -, quem é aquele homem ruivo que está na varanda com Cneu Domício? Vísita-o há anos, mas não sei quem é; não estou a localizá-lo. Sabes? Podes dizer-me?
Servília de Cepião troçou dele.
- Aquele! É Marco Pórcio Catão - disse com desdém.
- Catão? Como Catão, o Censor?
- O mesmo nome. Novos-ricos! É neto de Catão, o Censor.
- Mas a avó não era Licínia e a mãe Emília Paula? isso torna-o aceitável! - objectou Lívia Drusa, de olhos a brilhar.
Servília de Cepião voltou a indignar-se,
- Pertence ao ramo errado, minha querida. Ele não é filho de Emília Paula; se o fosse, teria de ser muito mais velho do que é. Não! Não é um Catão Liciano! É um Catão Saloniano, e é bisneto de um escravo.
O mundo imaginário de Lívia Drusa alterou-se: estilhaçou-se em pequenos cacos.
- Não compreendo - disse, desorientada.
- Então não conheces a história? É filho do segundo casamento do filho de Catão, o Censor.
- Com a filha de um escravo? - inquiriu Lívia Drusa, sobressaltada.
- A filha do seu escravo, para ser mais exacta. Ela chamava-se Salónia. Considero uma desonra absoluta poderem misturar-se connosco como descendentes da primeira mulher de Catão, o Censor, Licínia! E até conseguiram entrar para o Senado. É claro - informou Servília de Cepião que os Pórcios Catões Licianos não lhes falam. Nem nós.
- Então, porque é que Cneu Domício o atura?
Servília de Cepião riu-se com um riso muito semelhante ao do seu insuportável pai.
- Os Domícios Aenobarbos não são assim tão ilustres, pois não? Têm mais dinheiro do que antepassados, apesar de tudo o que contam sobre terem herdado de Castor e Pólux o tom ruivo das suas barbas! Não sei ao certo por que motivo o aceitam. Mas posso imaginar. O meu pai tem uma versão.
- Que versão? - perguntou Lívia Drusa, de coração aos pés.
- A segunda família de Catão, o Censor, é ruiva. O próprio Catão era ruivo. Mas Licínia e Emília Paula nasceram morenas, por isso os seus filhos têm cabelos e olhos castanhos. Ao passo que Salónio, o escravo de Catão, o Censor, era um celtibero de Salo, na Espanha Citerior, e era louro. A sua filha Salónia tinha o cabelo muito claro. E foi por isso que os Catões Salonianos mantiveram o cabelo ruivo e os olhos cinzentos - Servília de Cepião encolheu os ombros. - Os Domícios Aenobarbos tiveram de perpetuar o mito que criaram acerca das barbas ruivas herdadas do antepassado tocado por Castor e Pólux. Por isso casavam sempre com mulheres ruivas, que são raras. E se não houvesse nenhuma mulher ruiva de melhores famílias, penso que Domício Aenobarbo casaria com uma da família de Catão Salónio. São tão presunçosos que pensam que o seu sangue pode absorver qualquer coisa sem valor.
- Então, o amigo de Domício deve ter uma irmã.
- Tem uma irmã - Servília de Cepião agitou-se. - Tenho de ir para dentro. Oh, que dia! Anda; o jantar deve estar pronto.
- Vai à frente - disse Lívia Drusa. - Tenho de alimentar a minha filha antes de me alimentar a mim.
A simples menção do bebé bastou para apressar a pobre Servília de Cepião, tão desejosa de ter um filho. Lívia voltou para a balaustrada e olhou para fora. Sim, Cneu Domício Aenobarbo e o seu visitante ainda lá estavam. A visita cujo bisavô era um escravo. Talvez a melancolia fosse responsável pelo escurecimento do seu cabelo, pela diminuição da estatura, da largura dos ombros. O pescoço dele parecia-lhe agora levemente ridículo, demasiado longo e magro para pertencer a um romano. Quatro lágrimas caíram, salpicando a balaustrada pintada de amarelo, mas não se lhe seguiram mais nenhumas.
”Fui uma tola, como de costume”, pensou Lívia Drusa. ”Sonhei e divaguei durante quatro anos a respeito de um homem que é afinal descendente de um escravo; um escravo real e não do mundo da fantasia. Imaginei-o como um rei tão nobre e valente como Odisseu. Vi-me como Penélope, à sua espera. E agora, descubro que não é nobre. Nem sequer é de boasfamílias! Afinal, quem era Catão senão um camponês de Túsculo, protegido por um patrício chamado Valério Flaco? Um verdadeiro precursor de Caio Mário. O homem da varanda abaixo é o descendente actual de um escravo espanhol e de uma camponesa de Túsculo. Que parva! Que estúpida e idiota!”
Quando chegou ao quarto das crianças, encontrou a pequena Servília esfomeada, e sentou-se durante quinze minutos, a alimentar a pequena, cuja rotina regular tinha sido abalada pelos acontecimentos dos últimos dias.
- É melhor arranjares-lhe uma ama de leite - disse à macedónia, quando se preparava para sair. - Gostava de ter uns meses de repouso antes de voltar a conceber. E quando este bebé vier, podes arranjar amas de leite desde o início. Amamentar não impede a gravidez; senão, nãO estaria grávida.
Lívia Drusa entrou na sala de jantar quando os pratos principais estavam a ser servidos e sentou-se com a maior modéstia possível numa cadeira direita à frente de Cepião Júnior. Todos pareciam apreciar a refeição; Lívia Drusa descobriu que também tinha fome.
- Sentes-te bem, Lívia Drusa? - perguntou Cepião Júnior, um PO’Co ansioso. - Pareces estar adoentada.
Surpreendida, Lívia olhou para ele, e pela primeira vez em todos os anos desde que o conhecera, não sentiu repulsa. Não, ele não tinha cabelo ruivo, nem olhos cinzentos; não era alto e elegante, nem tinha ombros largos; nunca se transformaria no rei Odisseu. Mas era o seu marido; amara-a com lealdade; era o pai dos seus filhos; e era um Romano patrício tanto da parte do pai como do da mãe.
Por isso dirigiu-lhe um sorriso total.
- Penso que deve ser do dia, Quinto Servílio - respondeu a mulher, com suavidade. - Há anos que não me sentia tão bem.
Encorajado pelo resultado do julgamento de Cepião, Saturnino começou a agir com uma arrogância arbitrária que agitou o Senado até aos alicerces. Logo a seguir ao julgamento de Cepião, Saturnino processou Cneu Málio Máximo na Assembleia da Plebe por este ter ”perdido o seu exército”. O resultado foi semelhante: Málio Máximo, que já perdera os filhos na batalha de Arausio, perdia agora a cidadania romana e todos os bens, indo para o exílio em situação muito pior do que fora o ambicioso Cepião.
Então, no fim de Fevereiro, surgiu a lei relativa às traições, a lex Apuleia de maiestate, que retirava os julgamentos por traição às incómodas Centúrias e os atribuía a um tribunal especial integralmente composto por cavaleiros. O Senado não teria qualquer papel nesse tribunal. Apesar disso, os senadores poucas críticas fizeram ao decreto durante o debate obrigatório e não tentaram opôr-se à aprovação da lei.
Por maiores que fossem estas mudanças e apesar da sua inimaginável importância para o futuro governo de Roma, não atraíram o interesse do Senado ou do Povo do mesmo modo que as eleições pontificais, que decorriam ao mesmo tempo. A morte de Lúcio Cecílio Metelo Dalmático Pontifex Maximus deixara não apenas uma mas duas vagas no Colégio de Pontífices; e no entanto, como ambas tinham sido preenchidas pelo mesmo homem, havia quem argumentasse que bastava uma só eleição. Mas como Escauro Princeps Senatus fez notar, de voz perigosamente trémula e lábios a tremer, tal coisa apenas seria possível se o homem que fosse eleito pontifex também se candidatasse ao cargo superior. Por fim, ficou acordado que o Pontifex Maximus seria eleito em primeiro lugar.
- Então se verá - disse Escauro, respirando fundo e dando apenas uma risada.
Escauro Princeps Senatus e Metelo Numídico tinham-se candidatado ao cargo de Pontifex Maximus, tal como Catulo César. E Cneu Domício Aenobarbo.
- Se eu for eleito, Quinto Lutácio também será; e terá de haver uma segunda eleição para o pontifex, pois ambos nos encontramos já no colégio - afirmou Escauro, controlando a voz heroicamente.
Entre eles encontrava-se um tal Servílio Vata, um Élio Tuberão e Metelo Numídico. E Cneu Domício Aenobarbo.
A nova lei estipulava que dezassete das trinta e cinco tribos seriam escolhidas por sorteio, e que só essas votariam. Fez-se o sorteio e determinaram-se as dezassete tribos que iriam votar. Tudo isto foi feito num espírito de bom humor e grande tolerância; nada de violências no Fórum Romano naquele dia! Porque Escauro Princeps Senatus não era o único que ria entredentes. Nada agradava mais ao sentido de humor dos Romanos do que uma questiúncula envolvendo os nomes mais augustos das listas dos censores, em especial quando a parte ofendida conseguia virar tão habilidosamente as coisas contra os ofensores.
Cneu Domício Aenobarbo era o herói do momento. Por isso, ninguém se surpreendeu muito quando o elegeram Pontifex Maximus, tornando desnecessária uma segunda eleição. Por entre palmas e fiadas de flores atiradas ao ar, Cneu Domício Aenobarbo obteve a vingança perfeita sobre aqueles que haviam passado o cargo sacerdotal do seu falecido pai ao jovem Marco Lívio Druso.
Escauro desatou a rir às gargalhadas no momento da leitura do resultado, para grande desgosto de Metelo Numídico, que não conseguia ver piada nenhuma em tudo aquilo.
- Marco Emílio, és o máximo! É vergonhoso! - lamentou-se. - Esse pipinna mal-humorado e libertino para Pontifex Maximus? Depois dO meu irmão, Dalmático E em alternativa a ti? Ou a mim - Metelo Numídico bateu com o punho num dos beques dos barcos volscos que haviam dado o nome aos rostros. - Se há alturas em que detesto os Romanos é quando o seu sentido pervertido do ridículo ultrapassa o sentido normal da justeza! Consigo perdoar mais facilmente a aprovação da lei de Saturnino do que esta! Ao menos, numa lei de Saturnino, as opiniões fundadas do povo estão presentes. Mas isto... esta farsa? É uma irresponsabilidade total! Apetece-me ir para o exílio com Quinto ServíliO, de tanta vergonha que sinto.
Mas quanto maior era a fúria de Metelo Numídico, mais Escauro se ria. Por fim, controlando-se e olhando para Metelo Numídico através de uma cortina de lágrimas, conseguiu dizer a custo:
- Pára de te comportares como uma Vestal velha ao deparar com um par de bolas peludas e um pénis erecto! É hilariante! E merecemos tudo o que ele nos cozinhou! - E Escauro teve um novo acesso de riso, emitindo o som de um gatinho que tivesse sido pisado. Metelo Numídico afastou-se.
Numa das suas raras cartas para Rutílio Rufo, que o destinatário recebeu em Setembro, Mário escrevia o seguinte:
Bem sei que devia escrever com mais frequência, velho amigo, mas o problema é que não sou um bom correspondente. Agora, as tuas cartas são como um pedaço de cortiça atirado a um náufrago, cheias como estão de ti; sem floreados nem formalismos. Isso mesmo! Consegui fazer estilo, mas não calculas com que esforço.
É verdade que tens ido ao Senado aturar os grunhidos do nosso Suíno contra os custos que o Estado tem de suportar para manter um exército de capite censi mais um ano parado no extremo dos Alpes? E como conseguirei obter o meu quarto mandato como cônsul pela terceira vez consecutiva? Evidentemente, é o que tenho de fazer Senão, perco tudo. Porque o próximo ano, Públio Rutílio, será o ano dos Germanos. Pressinto-o. Sim, admito que ainda não tenho bases para dizê-lo, mas quando Lúcio Cornélio, e Quinto Sertório regressarem, estou certo de que será isso o que dirão. Não recebo notícias deles desde o ano passado, quando vieram trazer-me o rei Copillus. E embora me alegre por os meus dois tribunos da plebe terem conseguido condenar Quinto Servílio Cepião, ainda me sinto triste por não ter podido fazê-lo eu mesmo, tendo Copillus por testemunha, Mas não faz mal. Quinto Servílio teve a recompensa que merecia. É pena que Roma nunca mais ponha a vista em cima do ouro de Tolosa; teria de ser usado para pagar muitos exércitos de capite censi.
Por aqui, a vida corre como de costume. A Via Domícia está agora como nova desde Nemauso até Ocelum, o que irá, de futuro, facilitar a marcha às legiões. Estava em ruínas. Algumas partes não eram reparadas desde que o tata do nosso Pontifex Maximus por aqui passou, hádois anos. As inundações, geadas e o escoamento de cargas de água súbitas tornaram o trabalho árduo. Claro que não é o mesmo que construir uma estrada nova, Uma vez colocadas as pedras, a base permanece lá para sempre. Mas os homens, carroças e montadas não Podem passar em segurança pelos altos e baixos das pedras salientes. A superfície superior de
areia e pó de pedra têm de ficar lisas como cascas de ovo e ser regadas até formarem um bloco parecido com argamassa. Acredita no que te digo: neste momento, a Via Domícia é um crédito para os meus homens.
A propósito, também construímos uma passagem através dos pântanos do Ródano, de Nemauso a Arelas. E estamos a acabar um novo canal desde o mar até Arelas, através dos lodaçais, pântanos e bancos de areia. Todos os gregos importantes de Massília me agradecem profundamente, como hipócritas que são. Mas faço notar que essa gratidão não fez baixar os preços do que quer que vendam ao meu exército!
Caso venhas a ouvir falar nisso e a história chegue até ti distorcida - como sempre acontece nas histórias que se contam acerca de mim e dos meus - vou contar-te o que aconteceu a Caio Lúsio. Se bem te recordas, é o filho da irmã da minha cunhada. Caio Lúsio veio ter comigo como tribuno dos soldados. Só que não era esse opapel que ele queria junto dos soldados. O meu chefe dapolícia militar veio ter comigo há duas semanas com o que pensou ser uma notícia péssima. Caio Lúsio fora encontrado morto nas barracas dos soldados, rasgado da garganta ao estômago com o mais perfeito golpe de espada que...
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