Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ANTIQUÁRIO
Primeira Parte
Chamem um trem! que um trem seja chamado e que o homem que o chamar, sendo o chamador, não chame outra coisa, ao chamá-lo, senão um trem. Um trem! Um trem! Um trem! Ó deuses, um trem!
Chrononhotonthologos (1)
Era de manhã, por um belo dia de Verão, em fins do século XVIII. Um jovem de aspecto distinto, que se dirigia à Escócia, marcara lugar numa das diligências públicas que percorrem toda a estrada de Edimburgo e de Queensferry, local onde, como o nome o indica, todos os meus leitores do Norte sabem que se encontra uma barca para atravessar o estreito de Forth. A carruagem destina-se a acolher regularmente seis viajantes, além daqueles que o cocheiro possa apanhar pelo caminho e que venham comprimir nos seus bancos os legítimos possuidores. Os bilhetes que davam direito a um lugar nessa carruagem pouco cômoda eram distribuídos por uma velha de olhar penetrante, em cujo nariz comprido e afilado se encavalitava um par de óculos. Ela habitava uma loja subterrânea em High-Street, isto é, uma espécie de "cave", para onde se descia por uma escada muito íngreme e estreita. Ali, vendia fitas, linhas, agulhas, meadas de lã, tecidos ordinários e outros artigos de
(1) Nome de uma personagem da tragédia burlesca inglesa; que também serve de título à peça. N. do T.
capelista, a quem tivesse a coragem e a destreza de descer às profundidades da sua casa, sem lá cair de cabeça para baixo e sem derrubar nenhum dos artigos que, acumulados a cada lado da escada, indicavam o género de comércio que se fazia lá em baixo.
O letreiro escrito à mão e colado numa tábua saliente, que anunciava que a diligência de Queensferry, ou a Mosca em Hawes, partia ao meio-dia em ponto de terça-feira, 15 de Junho de 17... a fim de garantir aos viajantes a travessia do Forth com a maré cheia; parecia-se com um boletim; pois, apesar do meio-dia ter soado no relógio de São Giles e o da igreja de Tron o ter repetido, a carruagem não se via no local indicado. É certo que só estavam marcados dois lugares, e é possível que a senhora da loja subterrânea se tivesse entendido com o seu Automedon (1) para deixar decorrer alguns momentos em casos semelhantes, a fim de obter probabilidade de encher os lugares vagos, ou o supradito Automedon tivera possibilidade de servir no cortejo de algum enterro e se demorasse devido à necessidade de retirar do seu veículo os panejamentos de luto; ou talvez se tivesse detido para beber meia pinta a mais com o seu compadre estalajadeiro. O facto é que não aparecia.
O jovem, que começava a impacientar-se um pouco, não tardou em ser abordado por um companheiro de infortúnio: a pessoa que marcara o segundo lugar. Quem vai fazer uma viagem, em regra, distingue-se facilmente dos outros concidadãos. As botas, a comprida sobrecasaca, o guarda-chuva, o pequeno embrulho que traz na mão, o chapéu enterrado na cabeça, o ar resoluto, o passo firme e importante, a brevidade das respostas às saudações ociosas dos conhecidos, são indícios pelos quais quem está habituado a viajar em diligência ou mala-posta reconhece de longe ocompanheiro de jornada, quando ele se apressa a chegar ao local da partida. Ê então que, o que primeiro chegou, com uma prudência um pouco egoísta, se apressa a apoderar-se do melhor lugar da carruagem, e a arrumar a bagagem da maneira mais cômoda
(1 Expressão também usada para designar cocheiro. N. do T.
antes da chegada dos seus competidores. O nosso jovem, que não era dotado de muita previdência e que, aliás, devido à ausência do veículo, estava na impossibilidade de aproveitar o direito de prioridade, divertiu-se, para se entreter, a fazer conjecturas sobre as ocupações e o carácter do homem que acabava de chegar.
Era pessoa bastante bem parecida, de cerca de sessenta anos, talvez mais; mas a tez viva e a firmeza da marcha indicavam que os anos não tinham alterado nem a sua força nem a sua saúde. A sua fisionomia acusava o verdadeiro carácter escocês: as feições fortemente vincadas e talvez um pouco duras, o olhar vivo e penetrante e uma gravidade habitual animada por um leve espírito satírico. O vestuário era de cor uniforme e adequada à sua idade e à sua gravidade; a peruca bem empoada e protegida por um chapéu de abas derrubadas, dava-lhe o ar de pertencer a uma profissão séria; podia ser um eclesiástico, no entanto o aspecto tinha alguma coisa de mais mundano do que o dos membros da igreja da Escócia, e a sua primeira exclamação tirou logo todas as dúvidas.
Chegou a passo apressado e, lançando um olhar alarmado, primeiro para o relógio da igreja, depois para o local onde deveria achar-se a carruagem, exclamou: "Diabos me levem, se cheguei demasiado tarde! "
O jovem aliviou-o da inquietação, dizendo-lhe que o veículo ainda não aparecera. O velho gentleman, parecendo ele próprio sentir a sua falta de pontualidade, não se julgou logo com o direito de queixar-se da do cocheiro. Tirou um volume, que aparentava conter um grosso in-fólio, das mãos de um rapazinho que o seguira, e, dando-lhe uma leve palmada na face, recomendou-lhe que regressasse, e dissesse a Mr. B... que, se soubesse que ainda dispunha de tanto tempo, não teria rematado tão facilmente o negócio; depois incitou o pequeno a ser trabalhador e pontual, dizendo-lhe que ele avançaria na sua carreira tão bem como qualquer outro moço de livraria. O rapaz parecia aguardar, talvez na esperança de que ele lhe desse um penny para comprar bolinhas de pedra para brincar, mas nada disso sucedeu. O sujeito idoso encostou o seu pequeno embrulho a um dos barrotes que estavam ao cimo da escada; e, postando-se diante do jovem viajante, esperou em silêncio, durante cerca de cinco minutos, a chegada da diligência.
Por fim, depois de ter lançado uma ou duas vezes um olhar impaciente ao grande ponteiro do relógio, de o ter comparado com um velho e pesado relógio de ouro de repetição de que sacara para esse fim, e após ter composto o rosto para dar uma expressão mais enérgica a duas ou três exclamações de cólera, chamou a velha negociante da loja subterrânea.
- Boa mulher! Como diabo é o seu nome? Senhora Macleuchar!
A senhora Macleuchar, que bem pressentia que seria obrigada a manter a defensiva no assalto que ia ter de suportar, não se apressou a responder.
- Senhora Macleuchar! Boa mulher! - continuou ele, alteando a voz; depois, baixando-a, acrescentou Velha bruxa, é surda como uma porta, não é verdade, senhora Macleuchar?
- Eu sigo um costume! - exclamou ela - A verdade, querida, é que não lhe posso abater nem um ceitil.
- Então julga - prosseguiu o viajante - que temos tempo para a esperar aqui até que a senhora tenha apanhado a essa pobre rapariga meio ano de salários e ganhos?
- Apanhado! - exclamou a senhora Macleuchar, aproveitando este ensejo de questionar sobre um ponto mais fácil de defender -Eu rejeito as suas palavras, senhor. O senhor é uma pessoa indelicada; peço que não esteja assim no alto da escada a caluniar-me na minha casa.
- Esta mulher - disse o ancião, lançando um olhar malicioso ao seu futuro companheiro de viagem - não compreende as formas expeditivas. Mulher - continuou ele, voltando-se para a "cave" - eu não ataco o teu carácter; queria somente saber o que é feito da tua carruagem.
- Que é que o senhor quer? - perguntou a senhora Macleuchar, que voltara a ensurdecer.
- Minha senhora - disse o jovem - nós marcámos lugares na sua diligência de Quieensferry.
- Que devia estar a meio caminho a esta hora
- ajuntou o ancião, o mais impaciente dos dois viajantes, cuja cólera aumentava consoante ia falando e agora é provável que não apanhemos a maré, tendo eu um negócio importante, e a sua maldita carruagem...
- A carruagem? Valha-nos Deus! Pois, quê, ainda não está no seu lugar? - replicou com espanto a velha, cuja voz guinchava e irritada se adoçou para dar lugar a um tom dolente e quase justificativo - É pela carruagem que os senhores esperam?
- E para que havíamos nós de ficar, a grelhar ao sol, ao lado da sua goteira, mulher sem fé? Hem!
A senhora Macleuchar apareceu então no alto da escada do alçapão (pois poder-se-ia chamar assim, embora fosse uma escada de pedra), e assomando o nariz ao nível do passeio, limpou os vidros dos óculos, para melhor ver a carruagem que ela sabia muito bem não se encontrar ali; depois, com uma surpresa bastante bem fingida - Santo Deus! -exclamou ela -Já alguma vez se viu uma coisa assim?
- Sim - retorquiu, colérico, o viajante idoso - Sim, mulher abominável, já se viu e ver-se-á uma coisa assim, e ainda pior, de cada vez que houver alguma coisa a tratar com o seu sexo maldito.
Depois, passeando a grandes passos e cheio de indignação diante da porta da loja, passando e tornando a passar, como um vaso de guerra que defronta um forte inimigo, descarregou uma saraivada de protestos, ameaças e censuras contra a confusa senhora Macleuchar. Tão depressa queria alugar uma cadeira de posta, tão depressa chamar um trem, como tomar quatro cavalos; ele devia, ele precisava de estar no Norte nesse mesmo dia, e todas as despesas da viagem, além dos prejuízos quer directos quer indirectos, deviam recair sobre a cabeça da senhora Macleuchar.
Havia alguma coisa de tão cômico neste colérico ressentimento, que o viajante jovem, que não tinha tanta pressa de partir, não pôde deixar de divertir-se, tanto mais que o ancião, apesar de muito indignado, ria-se involuntariamente de vez em quando do calor com que abordava o caso. Mas, como a senhora Macleuchar se permitiu rir também, ele refreou a sua alegria descabida.
- Mulher - disse ele, mostrando um papel impresso, todo amarrotado - isto não é uma folha dos teus -+ anúncios? Não anuncias que, com a vontade de Deus, segundo as tuas expressões hipócritas, a diligência de Queensferry, ou a Mosca ãe Hawes, partirá hoje ao meio-dia? Não é agora meio-dia e um quarto? Pois não vemos a tua Mosca ou diligência. Conheces bem as consequências de abusar assim do público com um falso aviso? Sabes que, com isto, podiam fazer-te aplicar a lei contra a impostura? Vejamos, responde. E que seja uma vez na tua longa, inútil e miserável vida, com palavras francas e verdadeiras: tens a tal carruagem, existe ela in rerum natura? Ou este anúncio enganoso não passa de um anzol lançado ao viajante crédulo para lhe fazer perder o seu tempo, a sua paciência e três xelins de prata deste reino? Pergunto eu: essa carruagem existe, sim ou não?
- Oh! Francamente, senhor, e os viajantes conhecem-na bem; é verde, salpicada de vermelho, com três rodas amarelas e uma preta.
- Mulher, essa descrição não significa nada. Não passa talvez de uma mentira, e com as circunstâncias - ó senhor, senhor -disse a pobre senhora Macleuchar, acabrunhada por se ver por tanto tempo exposta àquela retórica - receba os seus três xelins, e que eu não o oiça falar mais.
- Um momento, um momento, boa mulher: os teus três xelins transportar-me-ão a Queensferry, conforme a promessa do teu pérfido programa? Ou indemnizam-me do transtorno de ter deixado os meus negócios em suspenso, ou das despesas que serei obrigado a fazer, se me demorar um dia em Southferry para esperar a maré? Chegar-me-ão para alugar uma barca cujo preço vulgar é de cinco xelins?
Nesta altura a sua argumentação foi interrompida por um ruído pesado que se reconheceu ser o do veículo que se esperava, e que tratou de chegar com toda a velocidade de que eram capazes as duas pilecas asmáticas que o puxavam. Foi com inexprimível prazer que a senhora Macleuchar viu, enfim, o seu perseguidor instalado na carruagem; mas no momento em que esta partia, ainda ele meteu a cabeça pela portinhola para lhe lembrar, com palavras abafadas pelo ruído das rodas, que se a diligência não chegasse à barcaça a tempo de aproveitar a maré, ela, senhora Macleuchar, seria responsabilizada por todas as consequências.
O veículo rodara durante uma ou duas milhas, antes que o estrangeiro tivesse recobrado toda a tranquilidade de espírito, como se podia avaliar pelas exclamações que lhe escapavam de vez em quando sobre a probabilidade ou mesmo a certeza de não apanhar a maré. Gradualmente, porém, a sua cólera ia-se acalmando; limpou a fronte e, desfazendo o embrulho que trazia na mão, tirou o in-fólio, que examinava de quando em quando de olho entendido, admirando a sua altura e estado de conservação e certificando-se por inspecção particular e minuciosa de que cada folha estava completa e em bom estado, desde o título à última linha. O companheiro de viagem tomou a liberdade de lhe perguntar qual era o género dos seus estudos; e o ancião, lançando-lhe um olhar em que entrava alguma coisa de troça, como se o supusesse incapaz de saborear ou mesmo de compreender a sua resposta, informou-o de que aquele livro era o Itinirarium Setentrionale de Sandy Gordon, obra destinada a divulgar as ruínas romanas na Escócia. O jovem, sem se mostrar aturdido com o título erudito, continuou a fazer várias perguntas que mostravam que soubera aproveitar de uma educação esmerada, e que, embora não fosse muito profundo em antigüidades, estudara bastante os clássicos para compreender quem falasse delas, e escutar com interesse. O viandante idoso, notando com prazer quanto o seu companheiro de viagem era capaz de o entender e de lhe responder, não tardou em mergulhar em profundas dissertações sobre túmulos, vasos, altares votivos, fortificações dos Romanos e a arte de arranjar os acampamentos.
O prazer desta conversa teve um efeito tão salutar, que, apesar da viagem sofrer duas vezes atraso por circunstâncias cada uma das quais ocasionou uma demora muito mais longa do que aquela que provocara a sua cólera contra a desditosa senhora Macleuchar, o nosso Antiquário não manifestou o seu descontentamento senão por algumas exclamações de impaciência, que pareciam referir-se mais à interrupção das suas sábias dissertações do que ao atraso da viagem.
Uma mola partida, que mais de meia hora não chegou para reparar, causou o primeiro atraso; quanto ao outro, o Antiquário contribuiu muito para ele, se acaso não foi o principal causador, ao notar que um dos cavalos perdera uma ferradura da frente e avisando o cocheiro desse acidente. "É Jamie Martingale quem está encarregado de fornecer os cavalos e de os manter - respondeu John - e eu não devo parar nem sofrer qualquer prejuízo devido a essa espécie de percalços".
- E quando tu fores para o diabo, como mereces, patife, quem formará a empresa para te levar? Se não paras imediatamente e não mandas ferrar este pobre animal pelo ferrador mais próximo, mando-te castigar, se se encontrar um juiz de paz em todo o Mid Lothian (1).
E, abrindo a portinhola, saltou para fora do veículo, enquanto o cocheiro, resmungava entre dentes que se aqueles senhores faltassem à maré tinham de concordar que era por culpa deles, visto que ele o que queria era avançar.
Gostamos tão pouco de analisar a complicação das causas que influem nas acções humanas que não ousaríamos afirmar que a piedade do Antiquário pelo pobre animal não fosse em parte estimulada pelo seu desejo de mostrar ao companheiro os restos de um acampamento, ou de uma fortificação, sobre o qual acabavam de discutir longamente, e do qual se encontravam precisamente vestígios muito curiosos e muito bem conservados nas vizinhanças do local onde esta interrupção se verificou. Mas se quiséssemos dissecar os motivos que fizeram actuar o nosso digno amigo (isto é, o senhor de vestuário simples, peruca bem empoada e chapéu de abas descaídas), teríamos de declarar que, apesar de em caso algum ele permitir ao cocheiro continuar o caminho com um cavalo incapacitado para o serviço, e ao qual a marcha poderia causar sofrimento, no entanto a maneira agradável como o ancião encontrou um meio de preencher este intervalo poupou certamente ao cocheiro violentas reprimendas e injúrias, às quais de outro modo não teria escapado.
(1) Distrito ou condado de Edimburgo. - N. do T.
Estas interrupções consumiram um tempo tão considerável que, quando desceram a montanha que vem terminar na estalagem do Hawes (é assim que se chama a estalagem instalada do lado sul de Queensferry), o olhar experimentado do Antiquário reconheceu logo, pela quantidade de areia molhada e pelo número de pedras negras e de rochas misturadas com ervas marinhas, que a hora da maré tinha passado. O viajante jovem esperava uma nova explosão de cólera; mas fosse, como diz Croaker no Homem bom, porque o nosso herói se tivesse esgotado antes em protestos contra os seus infortúnios, de maneira a já não os sentir quando realmente sucediam, fosse porque a companhia em que se encontrava se lhe tornasse bastante agradável para o impedir de se queixar das circunstâncias que retardavam a sua viagem, o facto é que se submeteu à sua sorte com muita resignação.
- Diabos levem a diligência e a velha bruxa a quem ela pertence! Diligência! Ah! Preguiça é que devia chamar-lhe! A Mosca, dizia ela; sim, realmente, avança como uma mosca embaraçada num tacho de visco. Mas, no entanto, o tempo e a maré não esperam por ninguém; assim, meu jovem amigo, faríamos bem em comer alguma coisa nesta estalagem, que é bastante asseada e terei a satisfação de acabar os pormenores que lhe estava a dar sobre o processo de fortificação dos antigos... castra statiua e castra aestiva, duas coisas que a maior parte dos autores confundiram demasiado. Ah, meu Deus, se eles quisessem certificar-se com os seus próprios olhos, em vez de se referirem cegamente uns aos outros!... Pois bem, estaremos comodamente na estalagem onde a diligência se detém, e como, afinal, teríamos de jantar em qualquer parte, será mais agradável fazer a travessia na vazante e com brisa da tarde.
Foi nesta disposição cristã de tomar tudo pelo melhor que os nossos viajantes se apearam da diligência à porta da estalagem.
Senhor, injuriaram-me aqui. Todos os dias um mísero pescoço de carneiro magro e assado afé se converter em pó e, para o poder engolir, uma missura de cerveja e soro de leite. Isto é contra os meus direitos, o meu pafrimónio. Vinho, Eis a palavra que alegra o coração do homem em minha casa bebe-se vinho. Vinho de Espanha, indica o meu ramo de louro. Rejubilemos e bebamos Xerez. - é o que eu quero.
BEN-JOHNSON - A Nova Estalagem
Ao descer o ruim degrau da diligência diante da estalagem, o viajante idoso foi cumprimentado pelo seu hospedeiro, homem gordo, gotoso e asmático, com aquele misto de familiaridade e de respeito que os estalajadeiros escoceses da velha escola tinham por costume permitir-se com os seus clientes mais estimados.
- Meu Deus, Monkbarns! - disse-lhe ele, tratando-o pelo nome da sua terra, a coisa mais agradável que pode soar aos ouvidos de um proprietário escocês
- É bem o senhor? Eu não duvidava de ainda ver Vossa Honra antes do fim da sessão do Estio.
- Velho tonto - respondeu o recém-chegado, cuja pronúncia escocesa, antes muito pouco perceptível, se tornava muito mais quando estava encolerizado - Velho idiota, que tenho eu a fazer na sessão, com os patos que se agrupam ou os falcões que se preparam para lhes cair em cima?
- Isso é bem verdade! - disse o estalajadeiro, que não falara senão segundo uma ideia bastante confusa da primeira educação do estrangeiro, mas que se poderia melindrar que o julgassem menos exactamente informado acerca da categoria e da profissão do nosso viajante, ou de qualquer outro que por vezes se detivesse na sua casa -É bem verdade, mas eu julgava que tivesse algum processo a vigiar por sua conta. Eu tenho um; é uma causa pendente que meu pai me deixou, e que também já lhe fora legada por seu pai. Trata-se do nosso saguão... Talvez o senhor tivesse ouvido falar no parlamento, Hutchison contra Mackitchinson. Ah! É uma causa bem conhecida, compareceu quatro vezes perante os juizes, e diabos me levem se o mais sabedor dentre eles percebeu alguma coisa, a não ser mandá-la de novo para a Câmara Superior (1). Oh, é uma bela coisa a lentidão e a reflexão que se usam para fazer justiça neste país!
- Cale-se, velho louco - disse o viajante, num tom de boa disposição - e diga-nos o que pode dar de jantar a este jovem gentleman e a mim.
- Primeiro, temos peixe, isto é, trutas do mar, e bacalhau - disse Mackitchinson, torcendo o seu guardanapo -: Depois, tem costeletas de carneiro, e há tortas de frutas bem conservadas, e, por fim, há tudo o que o senhor quiser.
- O que quer dizer que não há mais nada. Pois bem, seja! O peixe, as costeletas e uma torta chegam; mas não vá imitar os prudentes atrasos que o senhor acaba de gabar aos tribunais; que não haja demora nem na câmara inferior nem na câmara superior: compreende?
- Não, não - respondeu Mackitchinson, que, à força de ler com toda a atenção volumes inteiros do Jornal dos Tribunais, fixara alguns termos jurídicos - O jantar será servido quamprimum e peremptorie- e com o sorriso satisfeito de um estalajadeiro de bom augúrio, deixou-os numa sala térrea, ornamentada com gravuras das quatro Estações.
Como, em despeito das promessas, os gloriosos pormenores da lei não deixaram de ser imitados na cozinha da estalagem, o viajante jovem aproveitou par'a sair e fazer algumas perguntas às pessoas da casa sobre a classe e o estado do seu companheiro de viagem. As informações que obteve, embora menos autênticas e de uma natureza mais genérica do que as que nós próprios vamos dar, deram-lhe a conhecer o nome, a história e a posição do gentleman que vamos tentar apresentar ao leitor, o mais brevemente possível.
Jonathan Oldenbuck ou Oldinbuck, de que uma
(1) Outer-House, literalmente, Casa Exterior. - N. do T.
contracção popular fizera Oldbuck, era o segundo filho de um gentleman, possuidor de uns pequenos bens nas vizinhanças de um porto de mar florescente na costa norte da Escócia, e ao qual por várias razões chamamos Fairport. Tinham-se estabelecido, havia algumas gerações, como proprietários na província e na maior parte dos condados de Inglaterra. Esta família teria desfrutado de alguma importância, mas o condado de... estava cheio de gentlemen de origem mais antiga e de fortuna mais considerável. Além disso, todos os gentlemen da região da última geração foram, quase sem excepção, jacobitas, ao passo que os proprietários de Monkbarns, como os burgueses da cidade perto da qual viviam, eram firmes sustentáculos da liga protestante. A família de que falamos tinha porém uma origem da qual se orgulhava tanto como aqueles que a desprezavam sentiam estima, cada um de seu lado, pela sua genealogia saxónia, normanda ou céltica. O primeiro Oldenbuck que se estabeleceu nesta terra descendia, segundo se dizia, de um daqueles que introduziram a imprensa na Alemanha, e abandonara a sua pátria para se furtar às perseguições movidas contra os que professavam a religião reformada. Encontrara asilo na cidade perto da qual moravam os seus descendentes, com tanta mais facilidade que ele era vítima da causa protestante; o que não lhe foi prejudicial, foi o ter trazido bastante dinheiro para comprar o pequeno domínio de Monkbarns, então posto à venda por um laird perdulário, ao pai do qual esse bem fora dado com outras terras da Igreja, por ocasião da destruição de um rico e poderoso mosteiro a que pertencera. Os Oldenbucks eram, pois, súbditos fieis em todos os casos de insurreição; e como estava em bom entendimento com o burgo vizinho, o laird de Monkbarns que vivia em 1745 foi nomeado preboste da cidade durante esse desgraçado ano e distinguiu-se pelo seu zelo em favor do rei Jorge, ao serviço do qual fez despesas, das quais, segundo a liberalidade habitual de todo o governo para com os seus amigos, nunca foi indemnizado.
À força de solicitações, porém, e de crédito no burgo, chegou a obter um lugar nas Alfândegas, e como era um homem cuidadoso e pouco gastador, depressa se encontrou em situação de aumentar consideràvelmente a sua fortuna paterna. Tinha dois filhos, dos quais, como já o demos a entender, o lairâ actual era o mais jovem, e duas filhas, uma das quais florescia ainda nas doçuras do celibato, enquanto a outra, muito mais nova, contraira matrimónio de inclinação com um capitão do 42.º, que não tinha outros bens senão a sua companhia e uma genealogia escocesa. A pobreza perturbou uma união que o amor teria tornado feliz, e o capitão Mac Intyre, no interesse dos seus dois filhos, um rapaz e uma menina, viu-se obrigado a procurar fortuna nas índias Orientais. Sendo enviado numa expedição contra Hyder Ally, o destacamento a que pertencia foi cortado em pedaços, e sua infeliz mulher nunca soube se ele perecera no campo de batalha, se fora estrangulado na prisão, ou se sobrevivera no cativeiro que o carácter de um tirano indiano tornava sem esperança. Ela sucumbiu ao duplo peso da incerteza e da dor, deixando um filho e uma filha a cargo de seu irmão, o lord, actual de Monkbarns.
A própria história deste proprietário não será longa. Não sendo mais, conforme dissemos, do que o segundo filho, seu pai destinara-o a participar de empresas comerciais de sólida vantagem, às quais se dedicavam alguns parentes maternos. Mas, como o espírito de Jonathan nunca se pôde conciliar com este projecto, puseram-no em aprendizagem num procurador, onde aproveitou até o ponto de em breve estar informado de todas as formas de investiduras feudais, e experimentava tal prazer em explicar as suas bizarrias e em investigar a sua origem, que o seu patrão concebeu a mais viva esperança de um dia vê-lo hábil notário.
Mas deteve-se no limiar da porta doutoral e, embora tivesse adquirido conhecimentos da origem e do sistema das leis do seu país, ninguém o pôde persuadir a fazer deles uso prático e lucrativo. Não era, porém, por inconsciência das vantagens inerentes à posse do dinheiro que assim iludia as esperanças do seu mestre. "Se ele fosse estouvado, insensato, ou ei suse prodigus - dizia o seu patrão - compreendê-lo-ia; mas ele nunca deu um xelim sem examinar, cuidadosamente o troco que trazia. Faz com que uma moeda de seis -pence vá mais longe que uma meia coroa. É capaz de ficar aqui dias inteiros a meditar sobre uma velha cópia em letra gótica de actas do parlamento, em vez de ir ao golfe ou à bolsa, e, no entanto, não dedicaria um dia a um pequeno negócio de rotina que lhe metesse vinte xelins no bolso: misto bem singular de desleixo e de indústria, de economia e descuido pelos seus interesses; em verdade, não compreendo nada. "
Mas, com o tempo, o discípulo obteve meios para dispor dele próprio, conforme os seus gostos; porque seu pai morreu, seguindo-o de muito perto o filho mais velho, amador da caça e da pesca, e que faleceu em consequência de uma constipação que apanhou quando se entregava ao pendor favorito de atirar aos patos nos plainos pantanosos chamados Kittlefitting-nioss, em despeito de ter bebido uma garrafa de aguardente, nessa mesma noite, para manter o estômago quente. Jonathan herdou então o domínio e, com ele, os meios de subsistir sem recorrer à odiosa profissão da lei. Os seus desejos eram bastante moderados, e como o rendimento da pequena propriedade aumentara na proporção do melhoramento das terras, depressa ultrapassou em muito as suas necessidades e a sua despesa; e embora demasiado indolente para poder ganhar dinheiro, ele não era de todo insensível ao prazer de vê-lo acumular-se.
Os burgueses da cidade vizinha olhavam-no com uma espécie de inveja, como alguém que mostrava manter-se fora da posição que eles ocupavam na sociedade, e cujos estudos e prazeres igualmente lhe pareciam incompreensíveis. No entanto, uma espécie de respeito hereditário, que o conhecimento dos seus meios pecuniários ainda aumentava, conservava-lhe uma certa importância entre esta classe de vizinhos. Os gentlemen da região, que em regra lhe eram superiores em riqueza, mas inferiores em faculdades intelectuais, poucas relações tinham com Mr. Oldbuck de Monkbarns, com excepção de um só, com o qual ele convivia em certa intimidade. Tinha no entanto o recurso habitual do pastor ou do doutor, sempre que desejasse, e além das ocupações e dos prazeres que lhe eram próprios, estava em correspondência com a maior parte dos sábios do seu tempo, que, tal como ele, gostavam de medir fortificações em ruína, de reconstituir os planos de um castelo em ruínas, de decifrar inscrições ilegíveis e de escrever ensaios sobre medalhas, à razão de doze páginas por cada letra do exergo.
Adquirira uma certa irritabilidade de carácter, proveniente em parte, dizia-se, de uma desilusão amorosa que sofrera na sua mocidade e que, segundo ele, o tornara misógamo, mas mais particularmente porque o estragaram as atenções e os cuidados a que o habituaram a sua velha irmã solteira e sua sobrinha órfã, que ele acostumara a olharem-no como o maior homem do mundo, e que gabava como sendo as únicas mulheres suas conhecidas que eram adestradas e submissas ao freio da obediência; o que não impedia que Miss Grizzy Oldbuck se permitisse às vezes respingar quando sentia as rédeas demasiado curtas. Esta história acabará por desvendar o seu carácter, e nós terminamos com prazer a tarefa fastidiosa das explicações.
Durante o jantar, Mr. Oldbuck, impelido pela mesma curiosidade que experimentara a respeito do seu companheiro de viagem, fez algumas perguntas que a sua idade e a sua posição lhe permitiam tornar mais directas, para conhecer o nome, a situação e o destino do jovem estrangeiro.
O jovem respondeu que o seu nome era Lovel.
"Quê! O gato, o rato, e o nosso cão Lovel! " (1). Acaso descendia do favorito do rei Ricardo?
Não, não tinha direito algum, dizia ele, a passar por um cão dessa raça. Seu pai era do norte de Inglaterra. Quanto a ele, dirigia-se agora a Fairport, a cidade próxima de Monkbarns; e se o local lhe agradasse, talvez lá passasse umas semanas.
A excursão de Mr. Lovel não tinha outro objectivo senão o prazer?
- Não, inteiramente.
Talvez tivesse negócios com algum dos comerciantes de Fairport?
Em parte, era bem por negócios, mas não tinham relação alguma com o comércio.
(1) Dos versos tradicionais: A rat, a cat and Lovel our dog: Um rato, um gato e o nosso cão Lovel. - N. do T.
Aqui acabou o interrogatório com as respostas, porque Mr. Oldbuck, levando as suas perguntas tão longe quanto a delicadeza lho permitia, foi obrigado a mudar de conversa. O Antiquário, apesar de não sentir aversão pelos bons pitéus, era no entanto inimigo declarado de toda a despesa inútil em viagem; por isso, quando o seu companheiro aludiu a uma garrafa de vinho da Porto, fez uma descrição pavorosa da mistura que se vendia geralmente sob esse nome, ajuntando que um pouco de ponche era muito mais natural na estação que decorria; propunha-se chamar para pedir o que era preciso, mas Mackitchinson determinara já o que eles iriam beber, e apareceu, trazendo na mão uma enorme garrafa de dois litros, chamada na Escócia magnum, toda coberta de poeira e teias de aranha, testemunhos da sua velhice.
- Ponche! -disse ele, apanhando esta palavra no ar, ao entrar no refeitório - Diabos me levem se o senhor bebe uma gota de ponche, hoje, aqui, Monkbarns, tenha a certeza.
- Que pretende dizer, patife sem vergonha?
- Não grande coisa. Mas o senhor lembra-se da partida que me pregou a última vez que veio aqui?
- Eu preguei-lhe uma partida?
- Sim, Monkbarns, o senhor mesmo. O laird de Tamlowrie, sir Gilbert Grizzlecleuh, o velho Rossballoh e o bailio acabavam de entrar para passar aqui o seu serão; e o senhor, com algumas das suas histórias do mundo antigo às quais as pessoas não resistem, levou-os lá abaixo para verem o acampamento romano. Ah, senhor - ajuntou ele, volvendo-se para Lovel Ele seria capaz de atrair os pássaros do cimo das árvores quando fala da gente de outrora! E não perdi eu o consumo de seis pintas de bom vinho clarete? Porque, diabos me levem, se algum deles se mexia daqui sem as ter bebido.
- Está a ver que velhaco ele me saiu? - disse Monkbarns, a rir; porque o digno estalajadeiro, tal como disso se gabava, conhecia a forma do pé do seu hóspede, tão bem como os sapateiros deste lado do Solway - Pois bem - ajuntou ele - pode mandar-nos uma garrafa de Porto.
- De Porto! Não, não, deixe o Porto e o ponche aos outros; o clarete é que é digno dos senhores. Atrevo-me a dizer que nenhum desses antigos de quem o senhor fala tanto, bebeu alguma vez um ou outro.
- Já viu um velhaco mais completo? Bem, meu jovem amigo, é preciso pelo menos uma vez preferir o Falerno ao vile Siábinum.
O obsequioso estalajadeiro desrolhou imediatamente o vinho de Bordéus e vazou-o num frasco de tamanho conveniente, assegurando que o seu perfume embalsamava o aposento; e deixou os hóspedes a formar a sua opinião.
O vinho de Mackitchinson era realmente bom e produziu os seus efeitos na cabeça do mais velho dos dois convivas, que contou histórias divertidas, e entrou, por fim numa discussão sábia sobre os antigos autores dramáticos. Encontrou o seu novo conhecido tão firme neste campo que acabou por suspeitar de que ele os tivesse estudado por profissão. E disse com os seus botões: "Ele viaja, em parte por prazer, em parte por negócios; o teatro concilia tudo isso, visto ser um ofício penoso para os actores, e que oferece, ou pelo menos tem forma de oferecer, aos espectadores uma distracção agradável. Em verdade, parece, no que respeita a educação e maneiras, acima da classe de jovem que segue essa carreira; mas lembro-me de ter ouvido dizer que o teatro de Fairport devia abrir com a estreia de um jovem que ainda não aparecera em teatro algum. Se fosse este Lovel?... Sim, justamente, Lovel e Belville são geralmente nomes deste género que os jovens estúrdios adoptam nestas circunstâncias. Palavra que tenho pena deste rapaz.
Mr. Oldbuck, em regra, era econômico, mas sem mesquinhez. O seu primeiro pensamento foi poupar ao jovem companheiro a sua parte nas despesas da refeição, que, na sua posição, segundo presumia, poderia afectá-lo, mais ou menos. Aproveitou, pois, o momento para pagar em particular a Mr. Mackitchinson. O jovem viajante protestou contra esta liberalidade, à qual não se submetia senão por deferência pela idade e pelo carácter respeitável do velho genfleman.
O mútuo prazer que o convívio proporcionava um ao outro incitou Mr. Oldbuck a propor e Lovel a aceitar pressuroso um meio de rematarem juntos a sua viagem. Mr. Oldbuck manifestou desejo de pagar dois terços do aluguer de uma cadeira de posta, dizendo que ele ocupava bem um lugar proporcional; mas Lovel recusou-o resolutamente. A sua despesa foi, pois, partilhada igualmente, com excepção de um xelim que Lovel metia de vez em quando na mão do postilhão rezingão; porque Oldbuck, agarrado aos seus costumes antigos, nunca estendia a liberalidade para além de três moedas de seis pence por posto. Assim viajaram até Fairport, onde chegaram no dia seguinte pelas duas horas da tarde.
Talvez Lovel esperasse ver-se convidado para jantar, após a chegada, pelo seu companheiro de viagem, mas este, que suspeitava de que nada estivesse preparado em sua casa para receber um hóspede imprevisto, e que talvez ainda tivesse outros motivos, não julgou conveniente, nesse momento, cumulá-lo dessa gentileza. Pediu-lhe somente que viesse visitá-lo tantas vezes quantas pudesse, de manhã, e recomendou-o a uma viúva que tinha quartos para alugar, assim como a uma pessoa que dispunha de uma mesa bastante agradável; mas advertiu ambas separadamente de que, não conhecendo Mr. Lovel senão como um bom companheiro de viagem, não pretendia tornar-se responsável das contas que ele pudesse fazer durante a sua permanência em Fairport. No entanto, o aspecto e as maneiras do jovem, sem falar de uma mala bem recheada que em breve chegou pelo mar com o seu endereço, tiveram provavelmente tanto peso em seu favor como a recomendação limitada do seu velho companheiro de caminho.
Possuía uma quantidade de coisas antigas e verdadeiramente singulares. - elmos de aço ferrugentos e cotas de malha com ferro suficiente para prover de pregos durante um ano os três Lothians; e caçarolas com saleiros de madeira mais antigos que o dilúvio.
BURNS
Depois de se ter instalado no seu novo domicílio em Fairport, Mr. Lovel pensou em aceder ao convite do seu companheiro de viagem. Não o fez mais cedo; porque, através de toda a afabilidade e camaradagem do velho gentleman, notara-lhe nas maneiras e na linguagem um ar superior que a diferença de idade não lhe parecia justificar inteiramente. Esperou, pois, que a bagagem chegasse de Edimburgo, a fim de poder vestir-se à moda e que o seu exterior correspondesse à categoria que possuía, ou àquela a que ele se julgava com direito na sociedade.
Foi no quinto dia após a chegada que, obtendo as informações necessárias sobre o caminho que devia tomar, partiu com o fim de ir cumprimentar o proprietário de Monkbarns. Um sendeiro que cruzava uma colina coberta de mato e dois ou três prados conduziram-no à sua habitação, situada na vertente oposta dessa colina e dominando uma bela vista da baía e dos navios que ela continha, separada da cidade pela mesma elevação de terreno, que também a protegia dos ventos do Norte. Esta casa tinha um ar de solidão e de isolamento; o exterior era de muito pouca aparência: uma construção irregular, de um gosto antigo, da qual algumas partes tinham pertencido a uma granja ou herdade, ocupada pelo bailio ou o ecónomo do mosteiro, quando este local se encontrava na posse dos monges. Era ali que a comunidade guardava o grão que recebia dos seus vassalos como um tributo territorial; porque, com a prudência que distinguia a sua ordem, todos os direitos do convento eram pagos em espécie, e daí provém, como o proprietário gostava de dizer, o nome de Monkbarns (1).
Os habitantes laicos que sucederam fizeram vários acrescentes ao que restava da casa do bailio, devido às necessidades de suas famílias; e como estes trabalhos foram executados com igual desprezo pelas comodidades interiores e pela regularidade exterior da arquitectura, o conjunto parecia-se bastante com um lugarejo que se tivesse detido bruscamente a meio de uma dança campestre conduzida pela música de Orfeu de Anfíon. O edifício achava-se cercado de altas sebes talhadas em teixos e azevinhos, dos quais alguns ainda ofereciam uma amostra da habilidade do artista topiário, e figuravam cadeirões bizarros, torres e imagens de São Jorge com o dragão. O gosto de Mr. Oldbuck não perturbara estes monumentos de uma arte agora desconhecida, e seria tanto menos tentado a fazê-lo, porquanto o velho jardineiro certamente morreria de desgosto. Um teixo alto e frondoso fora entretanto respeitado pela poda, e foi no banco de jardim, por cima do qual ele estendia a sua sombra, que Lovel encontrou o seu velho amigo, que, de óculos no nariz e tabaqueira a seu lado, estava atentamente ocupado em ler a Cronica de Londres, agradàvelmente afagado pela brisa que agitava a folhagem e pelo murmúrio distante das vagas que vinham quebrar-se na praia.
Mr. Oldbuck levantou-se logo e avançou para cumprimentar o seu conhecido de viagem com um cordial aperto de mão.
- Palavra de honra - disse ele - começava a supor que o senhor tivesse mudado de ideias e que, achando muito pesados e estúpidos os habitantes de Fairport, indignos de o apreciar, se tivesse despedido deles à francesa, como o fez o meu velho amigo e confrade em antigüidades, Mac Cribb, quando partiu, levando uma das minhas medalhas sírias.
- Espero, pelo menos, meu caro senhor, que eu não venha a merecer uma censura semelhante.
- Uma mais grave, creia, se fugisse sem me proporcionar o prazer de o tornar a ver: preferiria que
(1) Palavras que significam Granja de Monges, - N, do T.
me levasse o meu Otho de cobre. Mas venha, quero conduzi-lo ao meu sanctum sanctorum, à minha cela; posso chamar-lhe assim, porque, exceptuando duas impertinentes fêmeas - (por esta frase de desdém, bebida no seu confrade antiquário, o cínico Anthony Wood, costumava Mr. Oldbuck designar o belo sexo em geral, e sua irmã e sua sobrinha em particular) exceptuando, dizia eu, duas impertinentes fêmeas que, sob qualquer ocioso pretexto de parentesco, se instalaram em minha casa, eu vivo aqui tão cenobita como o meu antecessor John Girnell, de quem logo lhe mostrarei o túmulo.
Assim falando, o velho gentleman avançou à frente para uma porta baixa; mas, antes de entrar, deteve-se de súbito, a fim de chamar a atenção para uns vestígios do que ele afirmava ser uma inscrição, e sacudindo a cabeça ao declarar que ela estava quase ilegível.
- Ah, Mr. Lovel, se soubesse o tempo e o trabalho que os traços apagados destes caracteres me custaram! As dores da maternidade nem se lhes comparam, e tudo isto sem resultado... apesar de eu ter quase a certeza de que estes dois últimos sinais designam as figuras ou as letras L V, o que nos pode ajudar bastante bem a encontrar a data real desta construção, visto que sabemos, aliunde, que foi fundado pelo abade Waldimir a meio do século XIV, e não duvido de que olhos melhores do que os meus possam reconhecer o ornamento que está ao centro.
- Parece-me - disse Lovel, querendo adular a mania do velho sábio - que isto se parece um pouco com uma mitra.
- Iria jurar que o senhor tem razão, tem razão! Isso nunca me ocorrera! Veja o que é ter olhos jovens! Sim, em verdade, é uma mitra. Isso corresponde-lhe em todos os aspectos.
A semelhança não era muito maior do que a nuvem de Polonio com uma baleia ou um melro; mas era o bastante para fazer trabalhar a cabeça do Antiquário.
- Uma mitra, meu caro senhor - prosseguiu ele, conduzindo o jovem através de um labirinto de corredores incômodos, ao mesmo tempo que acompanhava a sua dissertação de certos avisos muito prudentes e muito necessários - Uma mitra, meu caro senhor, corresponde tanto ao nosso abade como a um bispo. Era um abade mitrado, e absolutamente à cabeça da lista... Cuidado com esses três passos... Eu sei que Mac Cribb contesta este facto, mas também é certo que tomou o meu Antigonus sem licença. O senhor pode ver o nome do abade Trotcosey, Abb-as Trottocosiensis, à cabeça das listas do parlamento nos séculos XIV e XV... É um pouco escuro aqui, e estas malditas fêmeas deixam sempre os seus banquinhos na passagem. Agora, tome cuidado com a esquina, desça doze degraus e pronto.
Mr. Oldbuck atingira então o alto da escada de caracol que conduzia aos seus aposentos. Abrindo uma porta e arredando para o lado um pano de tapeçaria que a encobria, a sua primeira exclamação foi:
- Que fazem vocês aqui?
Uma criada bastante suja e descalça, assustada por se ver surpreendida no delito abominável de arrumar o sanctum sanctorum, largou o seu esfregão e fugiu para longe da vista de seu amo irritado. Uma jovem de rosto agradável, que vigiava a operação, agüentou o embate, mas com alguma timidez.
- Em verdade, meu tio, o seu quarto não se encontrava em estado de ser visto, e eu entrei somente para ver se Jenny punha tudo no seu lugar.
- E como ousas tu, assim como Jenny, tomar a liberdade de te meter es nos meus assuntos? - (Mr. Oldbuck tinha tanta aversão à palavra arrumar como o doutor Osborne ou qualquer outro sábio de profissão)
- Vai para os teus bordados, pequena idiota, e que não volte a encontrar-te aqui, se tens amor às orelhas. Asseguro-lhe, Mr. Lovel, que as últimas incursões destas pretensas amigas da limpeza foram tão fatais à minha colecção como a visita de Hudibras à de Sidrophel; e poderia dizer também que depois me faltaram
As minhas folhas de cobre e o meu quadrante. lunar,
Os meus almanaques e os meus dados de Napier,
Os meus cálculos e mais de uma pedra do céu
Cuja queda permitiu enfeitar o meu aposento;
Enfim, faltaram-me a pulga e o percevejo
Que adquiri a muito custo para os ver à minha vontade.
E assim por diante, como dizia o velho Butler.
Depois de fazer uma reverência a Lovel, a jovem aproveitara o momento para se escapar durante a inumeração das perdas de seu tio.
- O senhor vai ficar sufocado com a quantidade de poeira que elas levantaram aqui - continuou o Antiquário - mas asseguro-lhe que, ainda não há uma hora, esta poeira era muito antiga, muito aprazível, muito pacífica, e assim permaneceria durante cem anos, se estas bruxazinhas não se lembrassem de a perturbar, como perturbam, aliás, tudo o que existe no mundo.
com efeito, decorreu algum tempo antes de que Lovel pudesse distinguir, através da espessura da atmosfera, uma espécie de covil onde o seu velho amigo escolhera o seu retiro. O compartimento era muito alto, mas de um tamanho normal e recebia uma claridade sombria por altas e estreitas janelas gradeadas. Um dos extremos era inteiramente ocupado por prateleiras, cujo espaço fora excessivamente limitado pelo número de volumes que as enchiam, e com os quais se fizeram duas ou três filas, enquanto uma grande quantidade de outros livros atravancava o chão, no meio de um caos de mapas geográficos, de gravuras, de bocados de pergaminho, de maços de papéis, e de peças de velhas armaduras, de espadas, de punhais, de elmos e de escudos escoceses.
Atrás da cadeira de Mr. Oldbuck, antigo cadeirão de couro que o uso tornara luzidio, achava-se um enorme armário de carvalho, ornado a cada canto por querubins holandeses, com suas pequeninas asas de pato depenadas, entre as quais mostravam as grossas cabeças grotescas. A cúpula do armário estava cheia de bustos, de lâmpadas, de páteras romanas, misturadas com duas ou três figuras de bronze. As paredes do aposento achavam-se em parte tapadas com uma velha e sombria tapeçaria, representando a memorável história das núpcias de sir Gawaine, e na qual se prestou toda a justiça à fealdade da dama em repouso ou lady Lothely, embora as feições com que o gentil noivo estava retratado lhe dessem um pouco de direito a sentir-se revoltado contra aquela união, por causa da desigualdade das vantagens exteriores.
O resto do quarto revestia-se de um sombrio lambril de carvalho, do qual pendiam dois ou três retratos de personagens favoritos de Mr. Oldbuck, pertencentes à história da Escócia, e de um número igual de majestosos representantes da sua família, com perucas atadas e fatos bofdados. Acumulava-se numa grande e velha mesa de carvalho toda uma profusão de papéis, de livros e uma infinidade de pequenas coisas, de ninharias e insignificâncias impossíveis de descrever e que não tinham outro preço senão o que lhes dava a ferrugem que atestava a sua antigüidade. Entre todos estes despejos de alfarrábios e utensílios, e com uma gravidade semelhante à de Mário no meio das ruínas de Cartago, achava-se sentado um grande gato preto, que, para as pessoas supersticiosas, poderia representar o genius loci, ou demónio tutelar do aposento. O soalho, tal como a mesa e as cadeiras, estava obstruído pelo mesmo maré magnum, amálgama de velharias de toda a espécie em que seria tão difícil encontrar o objecto que ali se procurasse como servir-se dele depois de o ter descoberto.
No meio desta confusão, não era fácil puxar uma cadeira sem cair sobre um in-fólio, ou sem ee expor mais aborrecidamente ainda a derrubar alguma amostra da louça dos Romanos ou dos antigos Bretões. E quando se tivesse alcançado essa cadeira, era preciso desembaraçá-la com cuidado de gravuras que poderiam sofrer dano, ou de antigas esporas e escudos que certamente o causariam se se sentasse sem precaução. O Antiquário teve um cuidado especial em prevenir Lovel a esse respeito, acrescentando que o reverendo doutor Heavysterne, dos Países Baixos, se ferira gravemente por se ter sentado brusca e imprudentemente sobre três antigas armadilhas, que pouco antes se tinham encontrado no pântano perto de Banockburn, e que, depois de terem sido de início colocadas por Robert Bruce para lacerar os pés dos cavalos ingleses, se destinaram com o decorrer do tempo a vir danificar as partes traseiras de um sábio professor de Utreque.
Lovel, depois de finalmente se instalar, apressou-se a fazer perguntas sobre os objectos que o cercavam; perguntas às quais o anfitrião estava igualmente disposto a responder. O Antiquário apresentou-lhe uma maça ou um cacete rematado por um pico de ferro, que se encontrara ultimamente num campo do domínio de Monkbarns, adjacente a um antigo lugar de sepultura. Parecia-se muito com aqueles bastões que geralmente usam os ceifeiros das terras altas nas suas excursões anuais às montanhas; mas Mr. Oldbuck estava fortemente inclinado a pensar que, como a forma era estranha, pudesse ser uma daquelas clavas ou maças com que os monges armavam os seus camponeses, em vez de armas mais marciais, e de onde, observava ele, os vilões tinham tirado os nomes colve-carles, ou Kolb-kerls, isto é, clavigeri, ou portadores de clavas. Na afirmação deste costume, ele citava a Cronica de Antuérpia e ia de São Martinho, contra a autoridade da qual Lovel nada tinha a objectar, porque nunca ouvira falar nisso em sua vida.
Mr. Oldbuck mostrou em seguida espécies de algemas que serviam para torturar as articulações dos conventuais, e um colar com o nome de um homem convicto de roubo, e que, como o dizia, a inscrição, tinha sido condenado a servir um barão da vizinhança, em vez do castigo agora usado na Escócia, e que consiste em enviar os culpados a enriquecer a Inglaterra com o seu trabalho e a enriquecerem-se a eles próprios com a sua habilidade. As curiosidades que ele expôs em seguida eram numerosas e variadas, recitando, com complacência, ao mostrar as prateleiras poeirentas onde elas se acumulavam, os versos do velho Chaucer:
Preferiria cem vezes ter à minha cabeceira
Vinte tomos vestidos de vermelho ou violeta
Onde o grande Aristóteles legou o seu gênio,
Aos ricos mantos e ao conjunto completo
De instrumentos encantadores pela sua doce harmonia.
Debitou este expressivo trecho balanceando a cabeça, e dando a cada som gutural a verdadeira pronúncia anglo-saxónica, agora esquecida nos lugares meridionais deste reino.
A sua colecção era com efeito curiosa e poderia provocar a inveja de um amador. No entanto, não se constituira aos preços dos nossos tempos modernos, preços cuja enormidade teria apavorado bibliómano mais antigo e o mais decidido, e que, segundo a minha opinião, não foi outro senão o célebre Dom Quixote de la Mancha, visto que, entre outros sintomas de um espírito doente, o seu muito verídico historiador, Cid Hamet Benengeli, conta que ele trocou prados e herdades por in-fólios e in-quartos sobre cavalaria. Nesta alta façanha do nosso bom cavaleiro errante o imitou mais de um lorde, de um cavaleiro ou de um escudeiro dos nossos dias, embora, afinal, ninguém fosse capaz de tomar uma estalagem por um castelo ou de arremeter com sua lança contra um moinho de vento.
Mr. Oldbuck não seguia as pegadas desses fazedores de colecções a altos preços; mas, pelo contrário, experimentando prazer nas pesquisas difíceis que lhe custava a sua biblioteca, ele poupava o seu dinheiro a expensas do seu tempo e dos seus trabalhos. Não era protector dessa raça engenhosa de intermediários peripatéticos que, tornando-se agentes entre o dono obscuro de uma barraca de venda e o ávido amador, aproveitam igualmente da ignorância do primeiro e dos conhecimentos e do gosto que o outro pagou tão caros. Quando se falava diante dele dessa espécie de pessoas, raramente deixava de fazer notar a que ponto era necessário agarrar de passagem o objecto da sua curiosidade, e de contar a sua anedota predilecta do aspirador David, a propósito do Jogo de Xadrez de Caxton.
- David Wilson, vulgarmente conhecido pelo aspirador David, por causa do seu pronunciado pendor para o rapé, era um verdadeiro deus em matéria de descobertas e na exploração de sendeiros obscuros, lojas subterrâneas e tendas ou barracas, em busca de obras raras. Ele farejava a sua presa com a finura de um cão de caça e abatia-a com a destreza de um buldogue. Seria capaz de desencantar uma velha balada em letra gótica no meio das folhas de um "dossier", e uma edição princeps escondida sob a máscara de um Corderius. O aspirador David comprou o Jogo de Xadrez, edição da 1474, o primeiro livro que foi impresso em Inglaterra, numa barraca na Holanda por cerca de dois groschen, ou dois pence na nossa moeda. Vendeu-o em seguida a Osborne por vinte libras esterlinas e um número de livros equivalentes a essa importância. Osborne revendeu essa pechincha ao doutor Askew por sessenta guinéus. À venda do doutor Askew - continuou o velho gentleman, animando-se conforme falava -este inestimável tesouro brilhou em todo o esplendor do seu valor, e foi comprado pelo próprio soberano por cento e setenta libras esterlinas. Se ainda se pudesse encontrar um exemplar, só Deus - exclamou ele com um profundo suspiro e erguendo as mãos ao céu -só Deus saberia o seu preço e, no entanto, no princípio, o saber e a pesquisa valem a quantia de dois pence. Feliz, três vezes feliz Mr. Davy, o aspirador, e felizes também eram, os tempos em que a tua indústria podia obter semelhante recompensa!
"Eu próprio, senhor, embora muito inferior em indústria, em discernimento e em presença de espírito a esse grande homem, poderia mostrar-lhe um pequeno número, um bem pequeno número de objectos que recolhi, não a preço de ouro, como poderia fazê-lo todo o homem rico, embora, segundo o meu amigo Luciano, ele pudesse muito bem (esbanjar o seu dinheiro para melhor fazer brilhar a sua ignorância, mas que obtive de uma maneira que prova que não sou inteiramente ignorante nesse ponto. Veja esse maço de baladas das quais nenhuma tem data mais recente do que 1700, e em que algumas contam mais de uma centena de anos: consegui que mas cedesse uma velha; que as preferia ao seu livro de salmos. Tabaco, senhor, rapé e a Sereia Completa (1), eis tudo o que me custou. Por este exemplar mutilado do Lamento da Escócia ajudei a beber numa reunião doze dúzias de garrafas de cerveja forte com o seu último e sábio possuidor, que, em sinal de gratidão, mo legou no seu testamento. Estes pequenos Elzevires são testemunhos e troféus de vários passeios nocturnos e matinais através de Cowgate, Canongate, Bow e alameda de Santa Maria, em todos os lugares, enfim, onde se encontram alfarrabistas, antiquários e adelos, esses negociantes de objectos diversos, raros e curiosos. Quantas vezes me demorei a discutir um penny, com receio de que, com uma anuência muito fácil ao preço pedido pelo vendedor, ele suspeitasse da importância que eu próPrio atribuía a esse artigo! Como eu temia que aparecesse algum transeunte para me disputar o objecto a que aspirava; olhando cada pobre estudante de teologia
(1) The Complete Syren, livrinho de canções escocesas para o povo. - N. do T.
que chegava para folhear os livros expostos, como um amador rival ou como um ávido livreiro disfarçado! E depois, Mr. Lovel, a secreta satisfação com que se paga o artigo comprado e se mete na algibeira, afectando um ar frio e indiferente, enquanto a mão treme de prazer! Depois, deslumbrar os olhos desses curiosos rivais mais opulentos, mostrando-lhes um tesouro como este -ajuntou ele, mostrando um pequeno volume enegrecido pelo fumo e com cerca do tamanho de uma cartilha - Gozar a sua surpresa e inveja, disfarçando a superioridade dos nossos conhecimentos e da nossa habilidade sob o véu de uma misteriosa reserva! Eis, meu jovem amigo, eis os momentos brilhantes da vida, aqueles que nos indemnizam das canseiras, dos trabalhos e da atenção assídua que a nossa profissão exige tão particularmente acima das outras!
Lovel não se divertia pouco ao escutar o velho discorrer assim, e embora incapaz de compreender todo o mérito do que via, admirou, no entanto, os vários tesouros que Oldbuck lhe mostrou, tanto quanto dele se podia esperar. Aqui, edições muito estimadas porque eram as mais antigas; ali, outras que não o eram menos, como sendo as últimas e as melhores; aqui, um livro precioso porque tinha correcções finais do autor; além -coisa bizarra! -um outro que se procurava porque não as encontravam; um era precioso porque era um in-fólio; outro porque era um duodécimo; uns porque eram longos, alguns outros porque eram curtos. O mérito deste estava no titulo, o daquele no arranjo das letras da palavra finis; enfim, parecia que não havia sinal particular, por insignificante ou ligeiro que fosse, que não pudesse dar preço a um volume, contanto que se lhe atribuísse a qualidade indispensável de raridade.
Não menos mágica era a folha volante ou disparada o tiro, contendo "As últimas palavras" ou "O abominável assassínio"... "Ou o crime sangrento"... A maravilha das maravilhas na sua condição de rasgada, tal como foi apregoada primitivamente nas ruas e vendida pela quantia módica e fácil de realizar de um -penny. O nosso Antiquário debruçava-se com entusiasmo sobre estes objectos, e lia numa voz encantada os títulos elaborados, que eram pouco mais ou menos, na proporção do seu conteúdo, o que são para o peso dos animais representados no cartaz de uma barraca de feira os que se mostram lá dentro. Mr. Oldbuck, por exemplo, ufanava-se de possuir um impresso único, intitulado: Novidades estranhas e maravilhosas de Chipping-Norton, no condado de Oxon; de certas aparições terríveis que se viram no ar, a 26 de Julho de 1610, às nove e meia da manhã, e que continuaram até às onze, prazo durante o qual se viram várias espadas flamejantes, estranhos movimentos das esferas superiores à claridade cintilante e extraordinária das estrelas, e a sua sinistra continuação, com a descrição da maneira como o céu se abriu e das coisas singulares que se mostraram; acompanhado de outras circunstâncias prodigiosas de que nunca se ouviu falar em século algum, para grande espanto de todos os que foram testemunhas, e segundo a comunicação que foi feita numa carta a um tal Mr. Colley, morador em West Smithfield, e que foi atestada por Thomas Brown, Elisabeth Greenaway e Anna Gutheridge, espectadores ou testemunhas das ditas terríveis aparições. E se alguém desejar certificar-se melhor da verdade desta narrativa, dirija-se a Mr, Nightingale, estalagem do Urso, em West Smithfield, onde obterá toda a satisfação.
- Isto fá-lo rir - disse o proprietário da colecção e eu desculpo-o. Confesso que os encantos que constituem as nossas delícias não impressionam mais os olhos da juventude do que os de uma linda mulher; mas o senhor tornar-se-á mais prudente e verá com mais nitidez quando usar óculos... Entretanto, espere, ainda tenho um bocado de antigüidade de que talvez goste mais.
Assim falando, Mr. Oldbuck abriu uma gaveta e tirou dela um molho de chaves, depois arredou um Pano de tapeçaria que ocultava a porta de um pequeno gabinete, ao qual se descia por quatro degraus de Pedra, e, após uns tinidos de garrafas e copos, voltou a sair com dois copos altos e de pé em forma de sino, como se vêem nos quadros de Teniers, uma pequena garrafa do que ele chamava excelente vinho das Canárias, com um bocado de bolo numa bandeja de Prata de um omato antigo e delicado. - Não digo nada da bandeja - observou ele - embora a julguem obra daquele velho louco florentino, Benvenuto Cellini. Mas, Mr. Lovel, os nossos antepassados bebiam vinho das Canárias; o senhor, que é admirador do drama, conhece o fundo da questão. Bebo pelo êxito dos seus assuntos em Fairport.
- E eu, senhor, ao aumento dos seus tesouros, sem mais dificuldades da sua parte do que as necessárias para tornar uma aquisição mais preciosa.
Após uma libação tão adequada ao género de distracção em que acabavam de ocupar-se, Lovel levantou-se para se despedir, e Mr. Oldbuck preparou-se para o acompanhar uma parte do caminho e mostrar-Lhe uma coisa digna de atenção no seu regresso a Fairport.
O velho manhoso, encurtando a distância, aproximou-se humildemente de mim, com inúmeros bons-dias e boas-tardes, e disse-me Meu bom senhor, teria a bondade de dar asilo a um simples e pobre homem como eu.
O Homem do Alforge
Os dois amigos atravessaram um pequeno pomar cujas velhas árvores bem carregadas de frutos demonstravam, como muitas vezes sucede na proximidade dos mosteiros, que a vida dos frades nem sempre era passada na indolência, mas que frequentemente se dedicavam à agricultura e à jardinagem. Mr. Oldbuck não deixou de fazer notar a Lovel que os plantadores de então possuíam o segredo actual de impedir que as raízes das árvores frutíferas penetrassem no terreno, e de as obrigar a estender-se numa direcção lateral, por meio de pavimentes que colocavam debaixo das árvores de maneira a interpor-se entre as suas fibras e a profundidade do solo.
- Esta velha árvore -disse ele -que foi abatida no Verão passado, e que, apesar de meio debruçada para a terra, ainda está coberta de frutos, foi dotada de uma barreira semelhante entre as suas raízes e o terreno ingrato. Conta-se uma anedota acerca desta árvore. Os seus frutos chamam-se mapas ãe abade. A mulher de um barão vizinho era tão gulosa que visitava, frequentemente, Monkbarns, para ter o gosto de colher os frutos na árvore. O marido, homem ciumento, talvez suspeitasse de que um gosto semelhante ao da nossa mãe Eva prognosticasse uma queda semelhante. Como se tratava da honra de uma nobre família, não direi mais sobre o assunto. Simplesmente os domínios de Lochard "e de Cringlecut ainda pagam anualmente uma multa de seis sacos de cevada para apagar o crime do seu temerário senhor que, nas suas suspeitas mundanas, se atreveu a violar o retiro onde o abade recebia a penitente. Admire esta pequena torre de sino que se ergue acima do pórtico forrado de era. Houve ali um hospitium, haspitale ou hospitamentum (porque esta palavra encontra-se de todas estas maneiras nos escritos e nos velhos autos), onde os monges recebiam os peregrinos. Eu sei que o nosso pastor disse, no seu relatório estatístico, que o hospitium é nas terras de Haltweary ou nas de Half-starvet, mas é inexacto, Mr. Lovel. Eis a entrada, ainda chamada porta do Peregrino, e o meu jardineiro, cavando o terreno para o aipo de Inverno, encontrou várias pedras de talha, das quais enviei amostras aos meus sábios amigos e a diversas sociedades de antiquários de que sou membro indigno. Mas não direi mais, presentemente; é preciso guardar alguma coisa para outra visita, e temos agora diante de nós um objecto digno de toda a nossa curiosidade.
Dizendo isto, adiantou-se a passo rápido e, cruzando duas ou três ricas pastagens, atingiu uma charneca descoberta, pertencente à comuna, e sobre uma pequena eminência.
- Mr. Lovel - disse ele - eis um lugar verdadeiramente notável.
- A vista é soberba - declarou o seu companheiro, relanceando o olhar.
- É verdade; mas não foi por causa da vista que eu o trouxe aqui... Não vê nada mais, nada de notável, não nota nada na superfície do terreno?
- Perdão, vejo uma coisa que se parece com um fosso confusamente traçado.
- Confusamente! Desculpe, senhor, mas a confusão está toda nas suas faculdades visuais; nada pode estar mais claramente indicado. É bem o agger ou valliim verdadeiro, com o seu fosso, fossa, correspondente Confusamente, diz o senhor? Deus o ajude! Mas a minha sobrinha, essa jovem tão tonta como qualquer ave do seu sexo, viu ao primeiro relance os vestígios de um fosso. Confusamente! com a breca, o posto importante de Ardoch ou o de Burnswark no Annandale vêem-se mais distintamente, sem dúvida, porque são fortes estacionários, ao passo que este não foi mais do que um acampamento momentâneo. Confusamente! Mas pense que labregos, aldeões, idiotas lavraram esta terra, e, como animais e ignorantes selvagens que são, apagaram os dois lados do bloco, e danificaram muito o terceiro; mas veja, senhor, o quarto está inteiro.
Lovel tentou desculpar-se e explicar a sua frase desastrada, alegando a sua inexperiência. Mas não o conseguiu logo inteiramente. A sua primeira exclamação saira com excessiva franqueza, e de maneira demasiado natural para não alarmar o Antiquário, que teve dificuldade em refazer-se do choque que sofrera.
- Meu caro senhor - continuou o ancião - aos seus olhos não falta experiência e presumo que distingue um fosso de um terreno liso. Confusamente! Mas a gente do povo, o insignificante rapazito que vem pastorear uma vaca, chama-lhe Kaim de Kinprunes (1), e se isto não significa um antigo camp, acampamento, não sei o que seja.
Lovel concordou e, logrando enfim acalmar a vaidade irritada e suspicaz do Antiquário, este continuou na sua tarefa de cicerone.
- É preciso que o senhor saiba - disse ele - que os arqueólogos escoceses estiveram muito divididos relativamente à localização da última batalha entre Agrícola e os Caledónios. Sustentam uns que foi em Ardoch, no Strathallan, outros em Innerpeffrey; e há os que querem que seja em Raedykes, no Mearns, enquanto outros colocam o teatro desta acção no norte de Blair, em Athole. Ora, depois de todas estas discussões - continuou o velho gentleman, com um desses olhares expressivos de uma secreta satisfação
(1) Kaim corrupção da palavra camp. - N. do T.
- que diria Mr. Lovel se acontecesse que a cena memorável dessa acção se tivesse passado no próprio lugar chamado Kaim de Kinprunes, na propriedade da humilde pessoa que lhe fala agora?
Depois de se ter detido um momento para dar tempo ao seu companheiro de se refazer do espanto em que tão importante novidade o devia lançar, prosseguiu na sua dissertação num tom mais elevado:
- Sim, meu bom amigo, enganar-me-ia eu muito se este local não correspondesse a todos os sinais que indicam o célebre lugar desse combate. Foi perto dos montes Grampians; o senhor está a vê-los ali, erguendo assuas cristas até as nuvens e disputando-lhes o limite do horizonte. Foi in conspectu classis, à vista da frota romana; algum almirante romano ou bretão poderia desejar uma baía mais propícia do que esta que o senhor vê à mão direita? É espantoso como nós, arqueólogos, por vezes somos cegos; sir Robert Sibbald, Saunders Gordon, o general Roy, o doutor Stukely, não tiveram esta ideia. Eu evitava dizer alguma palavra, antes de me assegurar da posse do terreno, porque este pertencia ao velho Johnnie Howie, um laird camponês daqui perto, e tivemos várias conferências para nos podermos entender. Por fim, quase tenho vergonha de o dizer, decidi-me a dar-lhe o mesmo número de acres dos meus bons campos de trigo em troca deste terreno estéril. Mas também era um interesse nacional, e quando o teatro de um acontecimento tão célebre me pertence, sinto-me bem indemnizado. Quem, haverá que o patriotismo não aqueça, como diz o velho Johnson, no plaino da Maratona? Comecei a fazer revolver o terreno para ver o que se poderia descobrir, e ao terceiro dia, senhor, encontrámos uma pedra que mandei transportar para Monkbarns, a fim de moldar a escultura em gesso de Paris. Representava um vaso de sacrifícios, com as letras A. D. L. L. que não é difícil explicar assim: Agricola dicauit libens, lubens (1).
- Certamente, senhor, visto que os arqueólogos holandeses reivindicam para Calígula a invenção dos
(1) Agrícola dedicou de boa vontade. - A", do T.
faróis, sob a única autoridade das letras C. C. P. F. que eles interpretam por Caius Caligula pharum fecit (1).
- É verdade, e essa interpretação sempre se considerou muito justa. Vejo que vou fazer alguma coisa do senhor, mesmo antes de usar óculos, apesar de ter achado os vestígios daquele soberbo acampamento confusos, à primeira vista.
Com o tempo e por meio de boas instruções... o senhor tornar-se-á mais hábil... Não tenho a menor dúvida... Aquando da sua nova primeira visita a Monkbarns, terá de ler o meu livrinho Ensaio sobre a Castrametation, com algumas anotações especiais sobre os vestígios das antigas fortificações ultimamente descobertas pelo autor no Kaim de Kinprunes. Creio ter revelado o segredo infalível de reconhecer o que pertence à antigüidade. Começo por algumas regras gerais que se ligam a este ponto, saber, sobre a natureza dos testemunhos que se devem recolher em semelhante caso. Entretanto, queira notar, por exemplo, que eu poderia ter-me apoiado no famoso verso de Cláudio:
lile Caledoniis posuit qui castra pruinis (2) Porque pruinis, embora interpretado por geadas brancas, às quais, confesso, estamos muito sujeitos nesta costa nordeste, poderia também significar uma localidade, como Prunes; o Castra pruinis posita seria pois o Kaim de Kinprunes. Mas ponho isto de lado, porque sinto que os críticos poderiam apoiar-se nisso para arremessar o meu castra para o tempo de Teodósio, pois que Valentiniano não fez a expedição à Bretanha senão nas proximidades do ano 367. Não, não meu bom amigo, eu faço apelo aos olhos das pessoas: não está aí a porta Decuman; e aqui, se não fosse por causa dos estragos dessa horrível charrua, como diz um sábio amigo, não encontramos a porta Pretoriana à mão esquerda? O senhor pode ver alguns ligeiros vestígios da porta Sinistra, e à direita, a um lado, a porta Dextra quase toda inteira. Coloquemo-nos, pois, sobre estes
(1 Caius Caligula inventou o farol. -N, do T.
(2) Aquele que vem acampar nas geadas da Caledónia. N. do T.
tumulus, que mostra os fundamentos de construções arruinadas, no ponto central, o prsetrorium sem dúvida do acampamento. Deste lugar, que já quase não se distingue do resto das fortificações senão por uma ligeira eminência e pela erva mais verde que a cobre, podemos supor que Agrícola contemplou o imenso exército dos caledónios a ocupar a vertente da colina oposta; a infantaria erguendo-se fila por fila, e a forma do terreno a alastrá-la em toda a sua vantagem; a cavalaria e os covinarii, os quais eu depreendo serem os que tripulavam os carros, outra espécie de gente diferente dos elegantes de Bond Street, que conduziam quatro cavalos a percorrerem lá em baixo os espaços mais lisos.
Veja, Lovel, veja descer as montanhas
Esse exército que inunda os nossos soberbos campos!
Veja o brilho dos cavaleiros, no horizonte,
A eclipsar em sua frente as escamas do dragão!
O ruído das fileiras cresce: é o ruído do trovão,
Que começa ao longe e ameaça a terra.
Olhe, contemple esses Romanos belicosos,
E veja Roma, por fim, desaparecer com eles! "
- Sim, meu caro amigo, depois desta estância (1), é provável - que digo eu? - é certo que Julius Agrícola contemplou o que o nosso Beaumont tão admiràvelmente descreveu do alto deste preetorium".
Uma voz que soou à retaguarda veio interromper esta descrição entusiástica.
- Pretoriano para aqui, pretoriano para acolá, lembro-me bem de quando isto foi construído.
Ambos se voltaram; Lovel somente com espanto, e Oldbuck com surpresa e indignação, por se ver interrompido de maneira tão pouco delicada. Uma testemunha, que eles não viram nem ouviram, deslizara até junto deles, no meio das declamações enérgicas do Arqueólogo e da atenção respeitosa que Lovel lhe prestava. O seu aspecto era o de um mendigo. Um
(1) Excerto de uma tragédia inglesa de Beaumont, autor contemporâneo de Shakspeare. - N. do T.
grande chapéu de abas derrubadas, uma longa barba branca que se misturava com o cabelo grisalho, um rosto envelhecido pelos anos, mas notável pela sua expressão, e que o vento constante ao qual se expunha tingira de um moreno vermelho-escuro, um comprido roupão azul com uma placa de estanho no braço direito; dois ou três sacos ou alforges para guardar as diversas qualidades de farinha quando recebia a esmola em géneros daqueles que não eram mais ricos do que ele: todos estes sinais indicavam ao mesmo tempo um mendigo de profissão, e um daqueles que pertencem a essa classe privilegiada que na Escócia se chama Bedesrnen do rei, ou vulgarmente os túnicas azuis.
- Que dizia, Edie? - perguntou Oldbuck, esperando talvez que os seus ouvidos o tivessem enganado De que falava?
- Dos vestígios de construção, Vossa Honra - respondeu o imperturbável Edie - Lembro-me em que ocasião se construiu aí.
- Como, velho louco, já lá estavam antes de tu nasceres e estarão ainda muito tempo depois de te enforcarem.
- Enforcado ou afogado, aqui ou além, morto ou vivo, isso não impede que eu me recorde da origem desses vestígios.
- O senhor... O senhor!... - disse o Arqueólogo, titubeando de confusão e de raiva -Velho vagabundo, que diabo podes tu saber?
- Oh! Tudo o que sei! E que proveito tiraria eu de lhe dizer uma mentira, Monkbarns? Tudo o que sei é que há uns vinte anos, eu e outros bons rapazes como eu, cont os pedreiros que construiram o fosso que se estende além, ao longo da avenida, e dois ou três pastores talvez, metemos mãos à obra e construímos aqui uma cerca, da qual o senhor vê além as ruínas a que chama... o... praetorium E tudo isto para poder lá dançar na boda do velho Aiken Drum, e lá dançámos alegremente, digo-lho eu, apesar do tempo chuvoso. Em testemunho disto, Monkbarns, se o senhor mandar revolver os escombros, como parece ter começado a fazer, encontrará, se acaso já o não encontrou, uma pedra na qual um dos pedreiros, para fazer partida ao noivo, gravou estas quatro letras:
"Isto, pensou Lovel, é uma excelente contrapartida da história de Keip on thís syde". Aventurou-se então a lançar um olhar ao Antiquário, mas logo o desviou por pura compaixão; porque, amigo leitor, se já alguma vez viu o rosto de uma rapariga de dezasseis anos cujo romance de amor acaba por ser rematado por uma descoberta prematura, ou uma criança de dez anos cujo castelo de cartas foi destruído por um camarada malicioso, posso assegurar-lhe que Jonathan Oldbuck não tinha um ar menos confuso nem menos descontente.
- Há nisso alguma coisa de menosprezo - disse ele, voltando bruscamente as costas ao mendigo.
- Diabos me levem, se é da minha parte - respondeu o obstinado pobre - Eu não tenho essa espécie de desdéns. O senhor tem aí, Monkbarns, com Vossa Honra, um jovem gentleman que talvez despreze um velho labrego como eu, enquanto eu aposto que poderia dizer-lhe onde estava ele ontem à noitinha, se talvez não lhe fosse aborrecido ouvir falar em companhia.
Todo o sangue de Lovel lhe subiu às faces, com o calor e a vivacidade dos vinte e dois anos.
- Não dê ouvidos a esse velho tonto -disse Mr. Oldbuck -e não suponha que eu tenha menos consideração por si por causa da sua profissão. Só um fátuo ou um néscio com preconceitos pode pensar de outra maneira. O senhor lembra-se do que disse o Cícero na sua arenga pro Archia poeta, a propósito de alguém da sua profissão: Quis nostrum iam animo agresti ac duro fuit ut... ut... Esqueci o meu latim, mas o sentido é este: Quem será tão grosseiro, tão bárbaro, que não se comova com a morte do grande Roscius, a qual, apesar da sua idade avançada, estávamos tão longe de esperar, antes esperaríamos que um homem tão perfeito, tão superior na sua arte, estivesse isento da sorte que submete todos os outros à
(1) A grande colher de Aiken Drum. Aiken Drum o herói de uma canção escocesa. - N. do T.
morte. É assim que o príncipe dos oradores fala do Teatro e dos que fazem dele profissão.
As palavras do velho sábio chegaram aos ouvidos de Lovel sem levarem ao seu espírito qualquer ideia precisa, porque estava profundamente ocupado em pensar por que meios o velho mendigo, que continuava a olhá-lo com um ar de inteligência e de malícia que se lhe tornava insuportável, conseguira achar-se assim no conhecimento dos seus assuntos. Meteu a mão ao bolso, como processo mais rápido de lhe dar a entender que desejava segredo e assegurar-se da sua discrição, e, dando-lhe uma esmola, mais proporcionada aos seus receios do que à sua caridade, olhou-o com expressão significativa, que o mendigo, fisionomista de profissão, pareceu entender perfeitamente.
- Não se apoquente comigo, senhor, eu não sou um divulgador de histórias; mas há no mundo outros olhos além dos meus - respondeu ele, metendo no bolso a dádiva liberal de Lovel, e isto em tom de ser ouvido só por este e com uma expressão que supria tudo quanto não ajuntava. Depois, voltando-se para Oldbuck - Vou para o presbitério, e se Vossa Honra tem algum recado para lá, ou para sir Arthur, eu volto antes da noite para o castelo de Knockwinnock.
Oldbuck estremeceu como se acordasse de um sonho, e num tom breve, que indicava o seu despeito e o desejo de o ocultar, disse, lançando o seu tributo no chapéu enxovalhado e luzidio de Edie:
- Vai a Monkbarns e pede de jantar; se fores ao presbitério ou a Knockwinnock, é inútil contares essa estúpida história.
- Quem, eu? - replicou o mendigo - Deus abençoe Vossa Honra, jamais alguém ouvirá uma palavra da minha boca, como se estas ruínas aí estivessem desde o dilúvio. Mas, santo Deus! asseguraram-me que Vossa Honra deu acre por acre a Johnnie Howie das suas boas terras em troca desta ruim charneca. Ora, se ele o ludibriou a respeito das ruínas ao ponto de o levar a acreditar que eram as de uma antiga obra de arte, a minha opinião é de que o negócio não é bom, e seria anulado, se o senhor se resolvesse a fazê-lo julgar pela lei, dizendo que o enganaram.
- Diabos levem o patife! - murmurou entre dentes o Antiquário, irritado - Hei-de dar a conhecer o teu dorso ao chicote do carrasco! -e ajuntou, mais alto - Não te apoquentes com isso, Edie, não passa de uma desconsideração.
- Sim, é o que eu penso - ajuntou o seu perseguidor, que parecia achar prazer em irritar-lhe as feridas-Foi o que eu sempre pensei, porque ainda não há muito tempo dizia eu à velha Luckie GenunelSi: Acredita, Luckie, que Sua Honra Monkbarns iria fazer a asneira de dar boas terras, que que valem bem cinquenta xelins o acre, por uma terra estéril que não vale uma libra da Escócia? Não, não, ajuntei eu, tenho a certeza de que o laird foi enganado por esse velho demónio do Johnnie Howie... Mas, valha-nos Deus, replicou ela, como se pode fazer isso, sendo o laird tão sábio nos livros que não há outro igual para estes lados do país e Johnnie Howie mal tem inteligência para chamar as vacas para fora do estábulo?... Está bem, está bem, respondi eu, mas você deve ter ouvido dizer que ele o enleou com algumas daquelas velhas histórias do Outro Mundo, pois o senhor bem se recorda, laird, daquele caso do bodle que tomou por uma velha moeda.
- Vai para o diabo! -exclamou Oldbuck; e acrescentou, num tom mais doce - Vamos, despache-se para ir a Monkbarns, e no meu regresso mando-lhe uma garrafa de cerveja à cozinha.
- Deus pague a Vossa Honra -estas palavras foram pronunciadas num tom arrastado de mendigo; e, mantendo o bastão ferrado à sua frente, começou a andar na direcção de Monkbarns - Mas, a propósito - disse ele, voltando-se - Vossa Honra nunca fez com que lhe devolvessem o dinheiro que dera ao bufarinheiro por essa bodle?
- Maldito sejas! Vai à tua vida.
- Vamos, vamos, senhor, Deus abençoe Vossa Honra, mas espero que faça dançar Johnnie Howie e que eu viva o bastante para o ver.
Dizendo isto, o velho mendigo retirou-se finalmente e aliviou Mr. Oldbuck de recordações que só lha eram desagradáveis.
- Quem é este velho familiar? - indagou Lovel, quando o mendigo já se afastava.
- Oh! Um dos flagelos do país. Fui sempre contrário às taxas para os pobres e para as casas de trabalho; mas julgo que acabaria por votar em seu favor, para lá meter este velho tonto. Realmente, semelhante hóspede em breve o conhece tão bem como à sua escudela, e torna-se tão familiar consigo como aqueles animais domésticos e amigos do homem que geralmente se ligam aos da sua profissão. Quem é ele? pergunta o senhor. Exerceu todos os misteres; foi soldado, cantor de baladas, caldeireiro ambulante e ei-lo hoje mendigo. É adulado por todos os nossos imbecis gentlemen que se riem das suas saídas e repetem os bons ditos de Edie tão exactamente como os de Joe Miller. - com efeito, a liberdade que ele parece tomar pode dar um certo atractivo ao seu espírito.
- Oh, liberdade não lhe falta! Geralmente, inventa alguma maldita mentira bastante insensata para atormentar as pessoas, como essa estupidez que debitou há pouco. Não é que eu não queira, entretanto, antes de publicar o meu Ensaio, examinar a coisa a fundo.
- Em Inglaterra - disse Lovel - um mendigo assim não tardaria em ser metido na prisão.
- Sim, os vossos bedeis e os vossos oficiais de polícia teriam pouco respeito pelo seu bom humor; mas, aqui, este maldito homem é uma espécie de peste privilegiada, uma das derradeiras amostras do antigo mendigo escocês, que tinha por hábito dar a sua volta por um espaço particular, e era o portador de notícias, o menestrel e por vezes o historiador do distrito. Este velho patife, por exemplo, sabe mais de velhas canções e de tradições do que nenhum outro indivíduo desta paróquia e das quatro paróquias vizinhas; e afinal - continuou ele, amansando conforme ia fazendo a descrição dos dons naturais de Edie - o maroto não deixa de ter espírito e bom humor. Suportou a sua triste sorte com uma alegria inalterável, e seria crueldade recusar-lhe a consolação de rir à custa dos que são mais felizes. O prazer de me ter feito afinar vale para ele o de beber e comer durante um ou dois dias. Mas preciso de regressar para o ter debaixo de olho, senão espalha a maldita história por meio país.
Assim falando, os nossos heróis separaram-se; Mr. Oldbuck voltou ao seu hospitium de Monkbarns, e Lovel continuou o seu caminho para Fairport, onde chegou sem outra aventura.
Lancelot Qobbo: Reparai em mim vou erguer as águas.
SHAKSPEARE - O Mercador de Veneza
O teatro de Fairport estava aberto; mas ninguém com o nome de Lovel aparecera no seu palco. Nada tão-pouco no porte e nos hábitos do jovem que o usava autorizava as conjecturas de Mr. Òldbuck a tal respeito. O Antiquário não deixava de pedir regularmente notícias desse pequeno teatro a um velho barbeiro que penteava as três únicas perucas da paróquia que, em despeito das taxas e âa dureza dos tempos, ainda se sujeitavam à operação do pó e do frisado, e dividia assim o tempo entre as três práticas que a moda lhe deixara. Mr. Òldbuck, dizia eu, informava-se, pois, regularmente junto deste personagem do que se passava no teatro, esperando todos os dias ouvir falar da estreia de Mr. Lovel, circunstância em que o velho gentleman resolvera meter-se em despesas em honra do seu jovem amigo, e não só ir ele próprio ao espectáculo, mas também levar as fêmeas. O velho Jacob Caxon, porém, não lhe trouxe informação alguma que pudesse justificar uma diligência tão decisiva como a de reservar um camarote.
Pelo contrário, contou que havia um jovem em Fairport, nesse momento, que era um enigma para toda a cidade, isto é, para todas as comadres que, não tendo assuntos pessoais, preenchiam os seus ócios ocupando-se dos outros. Não procurava relações e antes parecia evitar as que a delicadeza e a doçura das suas maneiras, ajudadas por um grãozinho de curiosidade, induziram várias pessoas a oferecer-lhe. Nada era mais regular e menos se assemelhava ao de um aventureiro do que o seu género de vida, que era simples, mas tão conforme a todas as conveniências que todas as pessoas que tinham qualquer contacto com ele não cessavam de se ufanar disso altamente.
Estas virtudes, em regra, não são as de um jovem atacado da loucura do teatro, pensava Òldbuck; e embora habitualmente muito obstinado nas suas opiniões, ele seria obrigado a abandonar a que formara neste caso, se não fosse um pormenor de Caxon: "Ouve-se muitas vezes, disse este, o jovem falar sozinho e gesticular como as pessoas de teatro".
Entretanto, nada, a não ser esta circunstância, veio confirmar a suposição de Mr. Oldbuck, e cada um perguntava-se, como questão muito embaraçosa a resolver, o que podia vir fazer a Fairport um jovem bem-educado, onde não tinha amigos, nem parentes, nem emprego de espécie nenhuma. Nem o vinho do Porto nem o whist pareciam ter encantos para ele. Recusara jantar à mesa dos voluntários que acabavam de ser incorporados, e evitara juntar-se às reuniões de um e de outro dos dois partidos que dividiam então Fairport, como dividiam todas as localidades mais importantes. Tinha muito pouco de aristocrata para fazer número no clube de Royal True Blues, e não tinha bastante de democrata para confraternizar numa sociedade filiada nos chamados amigos do povo, que o burgo também se honrava de possuir. Tinha os "cafés" em aversão, e, custa-me dizê-lo, pouca inclinação para a mesa do chá. Em suma, desde que o seu nome estava em moda nos romances, isto é, há muito tempo, nunca houve um Mr. Lovel de quem se soubesse tão pouca coisa de positivo, e, para acabar o retrato, que tão universalmente fosse descrito por negativas.
Uma dessas negativas, porém, era importante. Ninguém dizia mal de Lovel; e se mal existisse, rapidamente se tornaria público; porque o desejo natural de dizer mal do próximo não seria combatido, neste caso, por nenhum sentimento de interesse por um ser tão insociável. Numa só circunstância ele se tornou suspeito. Como fazia frequentemente uso do seu lápis nos seus passeios solitários, e desenhara várias vistas do porto nas quais a torre dos sinais e mesmo as quatro baterias de canhão tiveram o seu lugar, alguns zelosos amigos do público fizeram circular o boato de que aquele misterioso estrangeiro era certamente um espião francês. Em Consequência disto, o sherif foi apresentar os seus cumprimentos a Mr. Lovel; mas na entrevista que se seguiu, parece que ele dissipou inteiramente as suspeitas do magistrado" visto que não só não sucedeu que o perturbassem no seu retiro, mas também até contou que ele lhe enviara dois convites para jantar, que de ambas as vezes receberam uma delicada recusa. O magistrado, no entanto, guardou profundo silêncio sobre o género de explicação que houvera entre eles, não só para o público, mas também para o seu substituto, o seu escriturário, sua mulher e suas duas filhas, que constituíam o seu conselho particular em todas as circunstâncias oficiais.
Todos estes pormenores, fielmente relatados por Mr. Caxon a seu patrão Monkbarns, contribuíram muito para elevar Lovel na opinião do seu companheiro de viagem. "É um rapaz modesto e sensato, pensou ele, que desdenha imiscuir-se nas frivolidades e loucuras destes imbecis de Fairport. Preciso de demonstrar-lhe alguma consideração; quero oferecer-lhe um jantar; e vou escrever a sir Arthur convidando-o a vir a Monkbarns nesse dia. Tenho de consultar as fêmeas".
Por isso, depois desta consulta, um mensageiro; especial que não era outro senão o próprio Caxon, recebeu ordem de se preparar para partir para o castelo de Knockwinnock, com uma carta dirigida ao respeitável sir Arthur, de Knockwinnock, baronnet, cujo conteúdo rezava assim:
"Meu caro sir Arthur,
"Terça-feira, 17 do corrente, stylo novo, tenho um symposium cenobítico em Monkbarns, ao qual peço que assista às quatro horas em ponto. Se a minha bela inimiga, Miss Isabel, puder e quiser honrar-nos com a sua companhia, as minhas fêmeas sentir-se-ão orgulhosas da assistência de uma tal auxiliar da liga de resistência oposta aos direitos da supremacia; de contrário mandarei as minhas fêmeas passar o dia no presbitério. Tenho um novo conhecimento que desejo apresentar-lhe; é um jovem dotado de mais bom-senso do que o destes tempos de frivolidade, que sonharam os de uma idade mais madura, que possui algumas noções dos clássicos, e como, com estas qualidades, ele deve naturalmente experimentar desdém pelos habitantes de Fairport, desejo proporcionar-lhe o prazer de um convívio tão judicioso e sensato como respeitável.
"Sou, meu caro sir Arthur, etc... "
- Voa a Knockwinnock com esta carta, Caxon disse o velho sábio, entregando-lhe a missiva-; e traze-me a resposta. Vai depressa, como se o conselho da cidade reunido esperasse o preboste, e como se o próprio preboste esperasse pela sua peruca emproada de fresco.
- Ah, senhor-respondeu o mensageiro com um profundo suspiro - esses dias passaram há muito tempo! Diabos me levem se um preboste de Fairport usou uma peruca desde os tempos do velho Jervie; e havia uma velhaca de uma criada que a penteava com cabo da candeia e uma droga, em lugar de pó que não era senão farinha- Mas eu sou do tempo, Monkbarns, em que o conselho da cidade de Fairport poderia passar sem o seu escriturário, ou sem o seu cálice de aguardente, antes de se mostrar sem uma decente peruca bem polvilhada, bem justa na cabeça. Ai, senhores, que admira que as comunas estejam descontentes e se revoltem contra a lei, quando se vêem os magistrados, os bailios, os decanos e o próprio preboste de cabeças tão nuas como a minha?
- E bem mobiladas, também, lá por dentro, Caxon. Realmente, tens uma excelente maneira de encarar os problemas, e aposto que puseste o dedo na causa do descontentamento popular, tão justo como o preboste poderia ter feito o mesmo. Mas apressa-te a partir Caxon.
Caxon meteu-se ao caminho de Knockwinnock que era a três léguas dali...
Ele coxeava, mas tinha coragem intrépida; Enfim, não pôde tornar sua marcha mais rápida.
Enquanto ele vai a caminho, não será descabido dar algumas informações ao leitor acerca do proprietário do castelo ao qual foi enviado.
Dissemos que Mr. Oldbuck frequentava pouco os gentlemen da vizinhança, com excepção de um só: era sir Arthur Wardour, descendente de uma antiga família, e possuidor de uma fortuna considerável, mas embaraçada. Seu pai, sir Anthony, zeloso jacobita, apoiara com todo o entusiasmo este partido, enquanto não foi preciso senão palavras para o servir. Ninguém espremia uma laranja com um gesto mais significativo (1); ninguém sabia fazer mais habilmente um brinde sedicioso sem se arriscar às leis penais, e sobretudo ninguém bebia pelo êxito da causa com mais ardor e fé. Mas, à aproximação do exército dos montanheses em 1745, parece que o zelo do digno baronnet se moderara um pouco, e no próprio momento em que a sua energia poderia tornar-se mais importante. Em verdade, falava frequentemente em armar-se em favor dos direitos da Escócia e de Carlos Stuart; mas a sua sela de guerra não servia senão a um dos seus cavalos, e era precisamente o que não podia habituar-se a ver fogo. Talvez o venerável proprietário não estivesse longe de partilhar os receios deste judicioso quadrúpede, e começasse a pensar que uma coisa tão temida pelo cavalo não fosse senão muito dura para o cavaleiro. De qualquer modo, enquanto sir Anthony Wardour falava, bebia e se quedava hesitante, o preboste de Fairport, homem resoluto e que nós já demos a conhecer como pai do nosso Antiquário, saiu do seu antigo burgo à frente de um corpo de burgueses whigs, e, em nome de Jorge II, apoderou-se do castelo de Knockwinnock, dos quatro cavalos de tiro, e quase da pessoa do proprietário.
Sir Anthony foi, pouco depois, enviado a Londres, devido a um mandado do Secretário de Estado, com seu filho Arthur, então um jovem. Mas como nada indicava um acto claro de traição, pai e filho foram restituídos à liberdade e regressaram ao seu castelo de Knockwinnock para beberem mais do que nunca à saúde da família exilada e falarem dos sofrimentos Que suportaram pela causa real. Isto degenerou de tal forma num hábito em sir Arthur que, mesmo depois da morte de seu pai, o capelão não juramentado tinha Por costume rezar regularmente pela restauração do
(1) Os inimigos do rei Jack tinham por chefe o príncipe de Orange, que significa Laranja, e eram conhecidos por orangistas. - N. do T.
soberano legítimo, pela queda do usurpador e por ver a família livre dos seus inimigos crueis e sanguinários, embora seguramente toda a ideia de oposição séria à casa de Hanover há muito estivesse desvanecida, e essa liturgia sediciosa fosse conservada mais pela forma do que pela intenção que se lhe atribuía.
Isto era de tal maneira verdade que, por volta do ano de 1770, por ocasião de uma eleição contestada que se realizou no condado, o digno cavaleiro pronunciou os juramentos de abjuração e de obediência, a fim de servir um candidato por quem se interessava, abandonando assim o herdeiro para a restauração do qual implorava ao céu todas as semanas, e reconhecendo o usurpador pelo destronamento do qual não cessava de pedir. E para agravar este triste exemplo de incongruência humana, sir Arthur continuou a rezar em favor da casa Stuart, mesmo depois da extinção da família; e quando, na sua lealdade toda teórica, se comprazia em olhá-la como viva, não deixava de ser, em todas as ocasiões de serviço real e de actuação prática, um súbdito zeloso e devotado de JorgeIII.
Noutros aspectos, sir Arthur Wardour levava a vida da maior parte dos gentlemen dos condados da Escócia. Ia à caça, à pesca, dava e aceitava jantares, seguia as corridas de cavalos, era tenente-delegado ou comissário em todos os actos públicos que respeitavam ao condado: mas, avançando em idade, como se tornasse muito negligente e muito pesado para se entregar a exercícios no exterior, substituiu-os lendo uma vez por outra a história da Escócia; e tomando gradualmente gosto pelas antigüidades, embora este gosto não fosse nem muito profundo nem muito correcto, relacionou-se com o seu vizinho Mr. Oldbuck de Monkbarns e juntou-se aos seus trabalhos e às suas pesquisas.
Havia, porém, entre estes dois excêntricos, pontos de diferença que por vezes conduziam à discórdia. Sir Arthur, como antiquário, tinha uma fé sem limites, e Oldbuck, em despeito do praetorium de Kaim de Kinprunes, era muito mais escrupuloso em receber, velhas lendas por moeda corrente e autêntica. Sir Arthur julgar-se-ia réu de crime de lesa-majestade se duvidasse da existência de um só indivíduo desse formidável catálogo dos cento e quatro reis da Escócia, admitido por Boethius, e tornado clássico por Buchanan, em virtude do qual James reclamava o trono do seu' antigo reino, e cujos retratos ainda nos olham carrancudos das paredes de Holyrood. Oldbuck, pelo contrário, homem penetrante e desconfiado, e que não tinha grande respeito pelo direito divino de hereditariedade, propendia a discutir um pouco essa lista sagrada e a sustentar que toda essa sequência de posteridade de Fergus, que enche todas as páginas da história da Escócia, tinha tão pouca realidade e substância como as aparições luminosas dos descendentes de Banquo na caverna de Hécate.
Outro ponto muito delicado era a boa reputação da rainha Maria, de quem o baronete era o defensor mais cavalheiresco, ao passo que o escudeiro o atacava, em despeito da sua beleza e das suas desditas. Quando, por infelicidade, a conversa incidia sobre os tempos mais recentes, os assuntos de discórdia apresentavam-se quase em cada página da história. Oldbuck era por princípio um firme presbiteriano. Eles coincidiam, é certo, no seu sentimento de dedicação e obediência ao rei que ocupa agora o trono (1); mas era este o seu único ponto de concordância. Havia, pois, muitas vezes, entre eles discussões bastante vivas, nas quais Oldbuck nem sempre podia conter o seu humor cáustico, enquanto o baronnet achava, por seu lado, que o descendente de um impressor alemão cujos pais tinham procurado a convivência vil de desprezíveis burgueses, se esquecia estranhamente e tomava na discussão liberdades injustificáveis, dada a classe e a antiga origem do seu antagonista. A recordação da velha injúria feita a seu pai pelo de Mr. Oldbuck, quando foi apoderar-se dos cavalos, do solar e da torre fortificada, vinha também juntar-se ao resto para inflamar simultaneamente as faces e os argumentos do baronnet. E Mr. Oldbuck, que, sob vários aspectos, via o seu digno amigo e compadre quase como um néscio, acabava muitas vezes por lho dar a entender um pouco mais claramente do que a delicadeza requeria. Em casos semelhantes, separavam-se amiúde profundamente
(1) O autor referia-se a JorgeIII. - N. do T.
irritados e resolvidos a evitar daí em diante a companhia um do outro;
Mas a reflexão vinha no dia seguinte E então apertavam-se as mãos novamente.
Com efeito, como cada um por seu lado sentia que o hábito lhe tornara necessária a companhia do outro, não tardava a verificar-se uma reaproximação. Nessas ocasiões, Oldbuck, pensando que a irritabilidade do baronnet se assemelhava à de uma criança, mostrava a superioridade do seu bom-senso dando os primeiros passos para a reconciliação. Mas, por mais de uma vez, sucedeu que o orgulho aristocrático do cavaleiro de elevada origem tomara uns ares mais ofensivos para o descendente do impressor. Então, a rutura entre os dois excêntricos ter-se-ia tornada eterna sem a intervenção e os benignos esforços da filha do baronnet, Miss Isabel Wardour, a qual, mais um filho que servia então no estrangeiro, era tudo o que restava de sua família. Ela sabia até que ponto o pai precisava de Mr. Oldbuck para se distrair; e raro era que ela se interpusesse sem resultado, quando a picante causticidade de um ou os ares de superioridade do outro tornavam a sua mediação necessária. Sob a doce influência de Isabel, seu pai esquecia os ultrajes feitos à honra da rainha Maria, e Mr. Oldbuck perdoava as blasfêmias que tinham manchado a memória do rei Guilherme. No entanto, como, nessas discussões, Isabel tomava sempre de brincadeira o partido de seu pai, Oldbuck chamava-lhe habitualmente a sua bela inimiga, apesar de fazer mais caso dela que de qualquer outra do seu sexo, do qual, como já vimos, não era admirador.
Havia entre estes dois dignos gentlemen outro ponto que tinha alternadamente uma influência atractiva ou repulsiva na sua intimidade. Sir Arthur estava sempre necessitado de dinheiro; Mr. Oldbuck nem sempre estava disposto a emprestar-lho. Mr. Oldbuck, per contra, queria ser sempre reembolsado com pontualidade; sir Arthur não estava sempre, nem mesmo frequentemente preparado para satisfazer esse desejo muito razoável; e, nos arranjos que se verificavam entre pessoas de inclinação tão opostas, surgiam de quando quando pequenos atritos. No entanto, um espírito de acordo mútuo dominava geralmente, e seguiam o caminho como dois cães atrelados a par, não sem dificuldade e sem mostrarem por vezes os dentes e se atirarem às goelas um do outro.
Uma leve nuvem como as que acabamos de mencionar, proveniente de negócios ou de política, dividira as casas de Knockwinnock e de Monkbarns até o momento em que o enviado desta última se apresentou no desempenho da sua missão. O baronnet estava sentado num antigo locutório gótico cujas janelas davam de um lado para o inquieto Oceano e do outro para a longa e recta avenida do castelo. Alternadamente, ele passava as páginas de um in-fólio ou lançava um olhar enfadado para a folhagem de um verde sombrio onde brincavam os raios de sol, ou para o tronco liso e polido das altas e espessas tílias de que a avenida estava ornada. De súbito - oh, espectáculo agradável! -um objecto vivo acaba de aparecer, e o seu aspecto, dá lugar a perguntas vulgares: Quem é ele e que vem fazer? O velho fato de um cinzento esbranquiçado, o andar manquejante, o chapéu meio derrubado, meio levantado, depressa fizeram reconhecer o velho cabeleireiro decaído e não permitiram mais dúvidas senão sobre o segundo ponto, que depressa foi esclarecido pela entrada de um criado no locutório, com uma carta de Monkbarns.
Sir Arthur pegou na carta com toda a importância dignidade convenientes.
- Levem esse velho à cozinha e dêem-lhe um refresco - disse a jovem, que notara, de olhar compadecido, a sua cabeça grisalha e calva e o seu ar fatigado.
- Meu amor - disse o baronnet, após um momento de silêncio - Mr. Oldbuck convida-nos para jantar na terça-feira, 17 do corrente. Realmente, parece-me ter-se esquecido de que há pouco não se portou comigo daquela maneira que eu tinha direito a esperar dele.
- O meu querido senhor tem tantas vantagens sobre Mr. Oldbuck que não é de admirar que ele tenha por vezes humour; mas eu sei que ele sente bastante estima pela sua pessoa e pela sua conversa, e que nada lhe causaria mais desgosto do que faltar-lhe realmente ao respeito.
- É verdade, Isabel, é preciso conceder-lhe alguma indulgência ao pensar na sua primitiva origem: ainda há no seu sangue alguma coisa da grassaria alemã e um resto de oposição republicana e revolucionária às categorias e aos privilégios estabelecidos. Deve ter notado que ele nunca pôde registar vantagem alguma sobre mim na discussão, a não ser que recorra a essa espécie de conhecimento chicaneiro que ele possui das datas, dos nomes e de factos insignificantes e se sirva da fatigante e inútil exactidão de uma memória que não deve senão à sua baixa extracção.
- Ela deve, porém, servir-lhe nas suas pesquisas históricas, ao que parece, senhor - disse a donzela.
- Sim. mas fê-lo adquirir uma maneira de discutir tão cortante como indelicada, e nada mais desarrazoado do que vê-lo atacar a bela tradição de Hector Boethius, por Bellenden, que eu tenho o gosto de possuir e que é um in-fólio gótico de grande valor; e isto apoiado na autoridade de uns velhos bocados de pergaminho que arrancou à sorte que os esperava, a de cortar-se em medidas para alfaiates. Depois, aquele hábito da exactidão minuciosa e fatigante engendra uma maneira mercantil de tratar os assuntos à qual deveria ser superior um proprietário de bens territoriais, cuja família atravessou duas ou três gerações. Duvido que haja um comerciante em Fairport que saiba tirar uma conta de juros melhor do que Oldbuck.
- Mas o senhor aceita o seu convite?
- Ah!... sim; creio que não temos compromisso algum para esse dia. Quem poderá ser o jovem de quem nos fala? Ele raramente trava novos conhecimentos, e não tem outros parentes, que eu saiba.
- Provavelmente é algum parente do cunhado, do capitão Mac Intyre.
- É muito possível. Sim, aceitamos. Os Mac Intyre são de uma família muito antiga do Norte. Isabel, pode responder afirmativamente a esse bilhete; por mim, não tenho vagar para tomar o lugar de caro senhor.
Ficando resolvido este importante assunto, Miss Wardour escreveu "que ela apresentava a Mr. Oldbuck os cumprimentos de sir Arthur e os seus, e que teriam muita honra em aceitar o seu convite, ajuntando eme Miss Wardoour aproveitava essa ocasião para recomeçar as hostilidades com Mr. Oldbuck, por causa da sua longa ausência de Knockwinnock, onde se recebiam as suas visitas com tanto prazer". O seu bilhete rematava nestas expressões pacíficas. Entregou-o ao velho Caxon, que, depois de retomado o fôlego e de se ter refrescado suficientemente, se meteu a caminho da casa do Antiquário.
Por Woden, deus dos Saxões, de que provém a palavra quarta-feira, isto é, dia de Woden. A verdade será para mim uma coisa sagrada atéé o dia em que descer ao túmulo.
O Ordinário, de CARTWRIOHT
O nosso jovem amigo Lovel, que recebera um convite semelhante, pontual à hora marcada, chegou a Monkbarns cerca de cinco minutos antes das quatro horas do dia 17 de Julho. O calor fora sufocante durante todo o dia e grossas gotas de água caíram por diversas vezes, embora estes aguaceiros ameaçadores as tivessem afastado.
Mr. Oldbuck recebeu-o à chamada porta do Peregrino. Vestia um fato de fazenda castanha, com meias de seda cinzenta, e ostentava uma peruca empoada com toda a arte de Caxon, o veterano cabeleireiro que, tendo farejado o jantar, tivera o cuidado de não acabar a sua obra senão no mesmo instante em que se ia pôr a mesa, esperando assim obter o seu quinhão.
- Seja bem-vindo ao meu symposium, e permita-me que lhe apresente o meu clogdogdo, como tom Otter chama à minha maliciosa raça de fêmeas, mate bestiae, Mr. Lovel.
- Ficarei muito surpreendido, senhor, se as senhoras merecerem a sua sátira.
- Tréguas aos cumprimentos, Mr. Lovel, elas não passam de amostras do seu sexo. Mas ei-las, e, para seguir por ordem, apresento primeiro a minha muito discreta irmã, Griselda, que despreza a simplicidade e a paciência que o nome da sua pobre patrona Grizzel sugere; e a minha muito preciosa sobrinha Maria, cuja mãe se chamava Maria e por vezes Molly.
O roçagar ou rumor dos tafetás e dos cetins anunciara a velha solteirona, que trazia na cabeça um edifício semelhante ao penteado das damas do Jornal de Modas de 1770; soberbo pedaço de arquitectura que se poderia comparar a um castelo gótico, em que os "caracóis" representavam as torres, os ganchos pretos os cavalos de frisa, e os ornamentos de gaze as bandeiras.
Esta figura que, tal como as antigas estátuas de Vesta, era coroada de torres, era alta, larga, tinha nariz e mento com borbulhas, e parecia-se sob outros aspectos de uma maneira tão flagrante com Mr. Jonathan Oldbuck que se não aparecessem ambos juntos, como Sebastião e Viola na última cena da Noite dos Reis, (1), Lovel julgaria que o rosto que tinha diante dos olhos era o do velho amigo disfarçado de mulher. Um vestido de seda antiga com flores ornava a pessoa extraordinária que trazia aquele penteado sem igual e que, segundo seu irmão, mais parecia feito para servir de turbante a um discípulo de Maomé do que para cobrir a cabeça de uma criatura razoável e cristã. Dois longos braços descarnados, guarnecidos até os cotovelos por punhos de renda em tripla fileira, estavam cruzados diante dela, e, ornados de luvas altas, de um vermelho gritante, assemelhavam-se muito a um par de lagostas. Sapatos de salto e uma pequena manta de seda negligentemente lançada pelos ombros, completavam a toilette da menina Griselda.
Sua sobrinha, que Mr. Lovel avistara na sua primeira visita a Monkbarns, era uma juvenil e bonita pessoa, elegantemente vestida à moda da época, e que tinha um arzinho travesso que lhe ficava muito bem; possuía talvez a causticidade natural da família materna, mas que muito se adoçara ao transmitir-se até ela. Mr. Lovel apresentou as suas homenagens às duas
(1 Twelfth night, drama de Shakspeare. - N. do T.
damas, e, em troca, recebeu da mais velha uma daquelas profundas mesuras de 1760 e imitada dessa memorável época,
Em que o benedicile Ocupava metade de uma hora, Em que a sexta-feira festejada Não tinha em cada lar, Para jantar, sopa e manteiga Mas um só prato muito escasso,
enquanto a jovem lhe fazia uma reverenciazinha modesta que, tal como o benediciíe dos nossos eclesiásticos actuais, foi de muito pouca duração.
Durante esta troca de cumprimentos, sir Arthur, trazendo pelo braço a sua encantadora filha, depois de ter despedido a sua carruagem, parou à porta do jardim, e apresentou os seus cumprimentos às damas em todas as formas.
- Sir Arthur e minha bela inimiga - disse o Antiquário - permitam-me que lhes apresente o meu jovem amigo, Mr. Lovel, que, apesar da epidemia de escarlatina que reina presentemente na nossa ilha, tem o bom-senso e a decência de aparecer vestido com um fato de cor honesta. Como vêem, porém, essa cor da moda, que ele exclui do seu vestuário, refugiou-se nas suas faces. Sir Arthur, admita que eu o relacione com um jovem que o senhor achará, após melhor conhecimento, grave, sensato, educado, erudito e versado na leitura e na ciência das Belas Letras, e profundamente iniciado nos mistérios mais herméticos do teatro e dos bastidores, desde o tempo de Davie Lindsay (1) até os dias de Dibdin. Ei-lo a corar ainda, o que é bom sinal.
- O meu irmão - disse Miss Griselda, dirigindo-se a Lovel - tem uma maneira de se exprimir que só lhe pertence a ele; ninguém faz caso do que diz Monkbarns, por isso peço-lhe que não se perturbe com as
(1) Autor da mais antiga peça escocesa. - N. doT.
suas asneiras. O senhor deve ter tido bastante calor durante o caminho, com este sol escaldante; quer tomar alguma coisa, um copo de vinho de cidra?
O Antiquário exclamou, antes de que Lovel pudesse responder:
- Deus nos acuda, bruxa! Quer envenenar os meus hóspedes com as suas malditas mezinhas? Esqueceu a sorte do eclesiástico a quem convenceu a provar a sua pérfida beberagem?
- Ah, meu irmão! Sir Arthur, já ouviu alguma coisa semelhante? Nada se pode fazer senão conforme as suas ideias, de contrário, ele inventa destas histórias. Mas aí está Jerry, que vai tocar a sineta para nos anunciar que o jantar está servido.
De uma economia rígida, Mr. Oldbuck não tinha criado masculino, e disfarçava-a com o pretexto de que o sexo forte era demasiado nobre para se empregar nesses actos de servidão pessoal, que, nos primitivos tempos da sociedade, eram unicamente impostos à mulher.
- Por que motivo - dizia ele - por que razão Tom Rintherout, que eu, instigado por minha prudente irmã, e com igual prudência, consenti em experimentar, me roubava as maçãs, passava o seu tempo a apanhar ninhos, e, por último, roubara-me os óculos, se acaso ele não estivesse tomado daquela alta ambição que agita o coração das pessoas do nosso sexo? Ambição que o conduziu à Flandres, de espingarda ao ombro e que, decerto, o faria ganhar o glorioso cinturão ou talvez até a forca. E por que razão esta jovem, sua irmã legítima, Jenny Rintherout, segue o seu caminho num passo sossegado e seguro, calçada ou descalça, brando como o passo de um gato, e dócil como um cão fraldiqueiro, porquê? Ê que segue a sua vocação. As mulheres que nos sirvam, sir Arthur, que nos sirvam; é a única coisa para que elas foram feitas. Todos os antigos legisladores, desde Licurgo a Mohammed, corrupção chamada Maomé, estão de acordo em colocá-las no lugar subalterno que lhes convém, e foram as cabeças loucas dos nossos antepassados cavalheirescos que erigiram as suas Dulcineas em princesas tirânicas.
Miss Wardour protestou altivamente contra a pouca galantaria desta doutrina; mas a sineta soou para o jantar, e o velho gentleman ofereceu-lhe o seu braço e disse:
- Que uma bela antagonista me permita desempenhar junto dela todos os deveres da cortesia. Recordo-me, Miss Wardour, de que Mohammed, vulgarmente chamado, Maomé, estava embaraçado sobre a maneira de chamar os seus "moslems" ou muçulmanos, à oração. Rejeitava os sinos de que os cristãos se serviam e as trombetas, que eram o sinal dos guebros ou parsis; acabou por adoptar a voz humana. Eu experimentei o mesmo embaraço para mandar anunciar o meu jantar. Os gongos, agora em uso, parecem-me uma nova invenção toda paga, e a voz da espécie feminina desagrada-me igualmente, tão ácida como discordante; foi por isso que, contrariamente ao dito Mohammed ou Maomé, regressei ao som da sineta; ela tem uma propriedade local, visto que era o sinal do convento para anunciar os repastos no refeitório; e tem esta vantagem sobre a língua de Jenny, o primeiro ministro de minha irmã, que, apesar de um pouco menos alta e aguda, deixa de soar no momento em que se larga a corda, ao passo que sabemos o contrário, por triste experiência, que tentar fazer calar Jenny é incitar Miss Oldbuck e Maria Mac Intyre a elevarem a voz para fazerem coro em seu favor.
Ao terminar este discurso, chegou ao refeitório, que Lovel ainda não tinha visto. Era forrado de madeira e continha algumas pinturas curiosas. Jenny, servia à mesa; mas uma velha vigilante, espécie de mordomo-fêmea, mantinha-se junto do bufete, e teve de suportar algumas reprimendas de Mr. Oldbuck, e algumas censuras menos directas, mas ainda mais azedas, da parte de sua irmã.
O jantar era tal como se devia esperar em casa de um antiquário confesso: achavam-se várias amostras de pratos escoceses muito saborosos, apesar de banidos agora das mesas onde se afecta elegância. Havia pato de Solan, de gosto requintado, e cujo perfume era tão forte que nunca mais se desvanecia do interior das casas. Infelizmente, estava a sangrar, o que fez com que Oldbuck quase ameaçasse de atirar a ave aquática à cabeça da imprevidente dispenseira que, servindo de sacerdotisa nessa ocasião, apresentara a aromática oferenda. Mas, por boa sorte, ela fora mais feliz no hotch-potch (1), que foi unanimemente considerado incomparável.
- Julgo - disse o velho Oldbuck, num ar triunfante - que nisto atingimos o ideal, porque Davie Dibble, o jardineiro, velho solteirão como eu, tem o cuidado de evitar que o diabo das mulheres desonrem os nossos legumes. Eis o peixe com molho e cabeças de bacalhau. Concordo que as nossas mulheres se esmeraram neste prato; permite-lhes o prazer de tagarelar durante meia-hora, pelo menos duas vezes por semana, com a velha Maggy Mucklebackit. Recomendo-lhe, Mr. Lovel, o pastelão de aves feito segundo uma receita que me deixou minha avó de grata memória; e se quer experimentar um copo deste vinho, achá-lo-á digno daquele que professa a máxima do rei Afonso de Castela: Queimem os velhos bosques, leiam os velhos livros, bebam velho vinho e conversem com velhos amigos, sir Arthur; e jovens também, Mr. Lovel.
- E novidades da sua viagem, Monkbarns? - indagou sir Arthur. -Como vai a velha enfumadorada1)?
- O mundo está louco, sir Arthur, louco sem remédio, e resistirá a todos os remédios vulgares, como os banhos de mar e doses de heléboro. A pior de todas as loucuras, a loucura militar, apoderou-se dos homens, das mulheres e das crianças.
- É bem oportuna, creio eu - observou Miss Wardour - quando estamos ameaçados de uma invasão estrangeira e de uma insurreição interna.
- Oh, duvido muito de que o senhor se junte aos casacas encarnadas contra mim; as mulheres, como os perus, sempre se perturbaram com o escarlate. Que diz a isto, sir Arthur?
- Eu digo, Mr. Oldbuck - replicou o gentleman que, tanto quanto posso ajuizar, devemos resistir cum toto corpore regni (é esta a frase, se acaso não esqueci completamente o meu latim) a um inimigo que nos
(1) Espécie de sopa escocesa, à base de costeletas de carneiro e ervilhas. - N, do T.
(2) Alusão à cidade de Edimburgo. - N. do T.
vem propor uma espécie de governo whig, um sistema republicano, e que é ajudado e defendido pela pior qualidade de fanáticos que o país tem no seu seio. Eu tomei algumas precauções, tal como convinha à minha classe adoptar, e ordenei aos oficiais de polícia que detivessem esse velho patife de mendigo, Edie Ochiltree, que espalha o descontentamento contra a Igreja e o Estado por todas as paróquias. Ele diz claramente ao velho Caxon que a gorra de Willie Howie oculta mais sensatez do que as três perucas da paróquia. Penso que é tempo de compreender isso; mas temos de ensinar esse sujeito a viver.
- Oh, não, meu querido senhor - exclamou Miss Wardour -não ao velho Edie que nós conhecemos há tanto tempo; asseguro-lhe que ficaria a detestar o oficial de polícia que executasse semelhante ordem.
- Ora vejam! - disse o Antiquário - Sir Arthur, o senhor que é um firme tory, aumentou no seu seio um belo rebento do whigismo. Ah! Miss Wardour, sozinha, bastaria para dominar toda uma sessão. Uma sessão! Que digo eu? Uma assembleia geral. É uma Boadiceia, uma Amazona, uma Zenóbia.
- E no entanto, com toda a minha coragem, Mr. Oldbuck, tenho o gosto de perceber que o nosso povo se arma.
Vai armar-se. Deus lhe acuda! O senhor nunca ouviu contar a história de sóror Margarida, história concebida por uma cabeça que, apesar de velha e grisalha agora, encerra mais senso e sã política do que o senhor não encontrará em nossos dias em todo o sinodo? Recorda-se do sonho da ama, nessa excelente obra, que ela conta numa tão grande angústia de espírito a Hubble Bubble, quando, na sua visão, ela queria apanhar um bocado de pano e se ouviu uma detonação como a de uma peça de artilharia; e quando estendia a mão para agarrar um fuso, este se transformou em pistola apontada ao seu rosto? Sucedeu-me Pouco mais ou menos a mesma coisa em Edimburgo. Eu ia consultar o meu advogado, ele estava com uniforme de dragões, de cinturão e capacete, pronto a montar o cavalo, que o seu escriturário, vestido de atirador, passeava de um lado para o outro diante da Porta. Passei por casa do meu agente de negócios, Para o censurar por me ter mandado consultar semelhante louco; mas ele tinha posto na cabeça a pena, nos dias em que era sensato, se limitava a tê-la na mão, e figurava de oficial de artilharia. O meu fanqueiro, com baquetas de tambor na mão, servia-se delas em lugar da vara, para medir a sua fazenda. O empregado do banqueiro, encarregado de verificar as minhas contas de caixa, enganou-se três vezes, por ter a cabeça transtornada com a recordação do comando militar do exercício da manhã. Senti-me doente e chamei um cirurgião;
Ele veio, mas o seu olhar brilhava de uma tal coragem,
E sua espada ao lado cíntilava com tal brilho,
Que dir-se-ia vir para um assassínio
E não para me curar, em sua douta mensagem,
Recorro a um médico; mas também ele praticava um género de homicídio mais geral do que aquele que lhe é sempre atribuído e que a sua profissão autoriza; e agora, depois do meu regresso aqui, apercebi-me de que este espírito bélico dominou os nossos prudentes vizinhos de Fairport. Um pato bravo ferido não detesta mais do que eu uma espingarda, um quaker não odeia mais o som de um tambor; e eis que na praça da cidade não cessam de rufar, de disparar, tão bem que cada descarga e cada rufo de tambor vêm aqui penetrar-me até o fundo da alma.
- Meu querido irmão, não fale assim dos gentlemen voluntários; eles têm o mais Lindo uniforme! Ai, molharam-se até os ossos por duas vezes a semana passada. Encontrei-os a marchar num triste estado, e alguns apanharam uma constipação nesse dia. Penso que os trabalhos que eles suportam bem merecem a nossa gratidão.
- Também meu tio lhes enviou vinte guinéus para os auxiliar nas despesas de equipamento.
- Era para comprarem sumo de alcaçuz e açúcar cândi - disse o cínico - a fim de encorajar o comércio daquela cidade, e refrescar a goela dos oficiais que, se constiparam ao serviço do país.
- Cuidado, Monkbarns, não tardaremos em contá-lo entre os Gralhas.
- Não, sir Arthur, eu não passo de um velho descontente, e não reclamo senão o privilégio de grasnar.
Anui no meu canto, sem juntar a minha voz ao grande coro das rãs. Ni quito rey, ni pongo rey, não me meto a fazer nem a desfazer reis, como diz Sancho Pansa, mas limito-me a pedir sinceramente pelo nosso próprio soberano, a pagar a minha quota-parte do imposto, e a amaldiçoar por vezes o cobrador de taxas. Mas eis o queijo de leite de ovelha que chega muito a propósito; é melhor digestivo do que a política.
Quando acabou o jantar e as garrafas de vinho foram colocadas na mesa, Mr. Oldbuck propôs um brinde à saúde do rei; foi pressurosamente correspondido por Lovel e pelo baronnet, cujo jacobitismo não era mais do que uma espécie de opinião imaginária, a sombra de uma sombra.
Depois de se terem retirado as damas, o dono da casa e sir Arthur enfronharam-se em várias discussões eruditas, nas quais o jovem, ou devido à erudição abstracta em que eles mergulhavam, ou por outro motivo, não participou senão fracamente: até que, por fim, ele foi subitamente despertado do profundo devaneio a que se entregara por um apelo feito à sua opinião.
- Guiar-me-ei pelo que Mr. Lovel me disser; nasceu no norte de Inglaterra, e talvez conheça esse local.
Sir Arthur disse que julgava pouco provável que um homem tão novo prestasse muita atenção a uma coisa desse género.
Lovel foi obrigado a confessar que se encontrava na situação ridícula de quem ignorava igualmente o assunto da conversa e o da discussão que os ocupava havia uma hora.
- Deus valha ao pobre rapaz! O seu pensamento anda muito longe. Eu suspeitava de que assim seria desde que as mulheres fossem admitidas entre nós, e Que não haveria meio de obter uma palavra sensata ?o jovem, mesmo mais de seis horas depois. Escute, Pois: houve outrora um povo chamado Piks.
- Ou antes, Pieis - emendou o baronnet.
- Eu digo Piks, Pikar, Plhar, Piochtar, Piagther ?u Peughtar! - exclamou Oldbuck - Falavam dialecto gótico.
- O verdadeiro céltico - emendou de novo o baromnet.
- O gótico; eu morra se não era gótico - retorquiu o cavaleiro.
- Mas parece-me, senhores - disse Lovel - que esse ponto pode ser facilmente esclarecido pelos filólogos se houver restos dessas línguas.
- Não há senão uma só palavra - disse o baronnet - Mas apesar de toda a persistência de Mr. Oldbuck, ela resolve a questão.
- Sim, em meu favor - ajuntou Oldbuck -Mr. Lovel ajuizará. Nisto tenho o sábio Pinkerton do meu lado.
- E eu, do meu, o erudito e infatigável Chalmers.
- Gordon sustenta a minha opinião.
- Sir Robert Sibbald é pela minha.
- Innes está comigo - vociferou Oldbuck.
- Ritson não opõe qualquer dúvida! - exclamou o baronnet.
- Verdadeiramente, senhores - disse Lovel - antes de reunir as vossas forças e de me esmagarem com todas essas autoridades, gostaria de conhecer a palavra que dá motivo à discussão.
- Benval - disseram os dois antagonistas ao mesmo tempo.
- Que significa caput valli - ajuntou sir Arthur.
- A cabeça da parede - disse Oldbuck. Houve um momento de silêncio.
- Eis uma base que me parece um pouco fraca para nela fundamentar uma hipótese - observou o jovem árbitro.
- Nada disso! - exclamou Oldbuck - Os homens não combatem melhor do que num círculo estreito. A vastidão do terreno de nada serve a uma luta deste género.
- Ela é decididamente céltica - disse o baronnet Não há uma montanha nas terras altas que comece por Ben.
- Mas que nos diz de vai, sir Arthur; não é claramente a palavra saxónica wáll?
- É a palavra romana valiam-disse sir Arthur Os Picts pediram emprestada essa parte da palavra.
- Isso, não: se eles tivessem de pedir emprestada alguma coisa, seria o seu Ben, que poderiam tomar dos seus vizinhos Bretões de Strath Cluyd.
- Era preciso que os Piks, ou Picts - disse Lovel - tivessem um dialecto singularmente pobre, visto que última palavra que resta do seu vocabulário, pan que não se compõe senão de duas sílabas, foram evidentemente obrigados a pedir emprestada uma a outro idioma; parece-me, senhores, com todo o respeito por ambos, que esta discussão não é muito diferente do combate daqueles dois cavaleiros que se bateram por causa de um escudo que era preto de um lado e branco do outro. Cada um dos senhores reclama metade da palavra e parece abandonar a outra metade. Mas o que mais me impressiona é a pobreza de uma língua que não deixou dela senão tão fracos vestígios.
- O senhor está enganado - disse sir Arthur -era uma língua rica, e era um povo grande e poderoso, que construiu duas igrejas, uma em Brechin, outra em Abemtíthy. As filhas do sangue real dos Picts eram educadas no castelo de Edimburgo, chamado, por causa disso, Castrum puellarum.
- Tudo isso não passa de uma lenda pueril - disse Oldbuck - inventada para dar importância a fêmeas estúpidas. Chamavam-lhe o castelo da Virgem, qiiasi lucus a non lucendo, porque resistira a todos os ataques, coisa que as mulheres nunca fazem.
- Há uma lista de reis - insistiu sir Arthur
- da qual não se põe a autenticidade em dúvida, a contar desde Crentheminacheryme, cujo reinado é um pouco incerto, até Drusterstone, cuja morte terminou a dinastia. Metade desses nomes começa pelo Mac patronímico céltico; Mac, ou seja filius. Que diz a isto, Mr. Oldbuck? Há Drust Macmorachin, Trynel Maclachlin, o primeiro deste antigo clã segundo todas as probabilidades; e Gormach Macdonald, Alpin Macmetegus, Drust Mactallargam - (Nesta altura foi interrompido Por um ataque de tosse) - Hum! Hum! Hum!... Goj-arge Macchan... Hum! Hum!... Macchanam... Hum! Macchananail, JCenneth, hum! Macferedith; Eachan Macfungus, e vinte outros nomes, todos evidentemente célticos, que eu lhe citaria se esta maldita tosse mo Quisesse permitir.
- Beba um copo de vinho, sir Arthur, para fazer correr esse catálogo de nomes bárbaros que estrangulariam o diabo; o último desseis nomes é o único inteligível; são todos da tribo de Macfungus, raça e monarcas que proliferaram como cogumelos, e que não é mais do que o produto da cabeça leve de algum bardo escocês, nascido dos vapores da vaidade e da loucura, talvez não sem alguma mistura de artifício.
- Estou admirado de o ouvir falar assim, Mr. Oldbuck. O senhor sabe, ou devia saber, que a lista desses soberanos foi copiada por Henrique Maule de Melgum, segundo as cronicas de Lock-Leven e de Santo André' e dada por ele na sua curta mas satisfatória História dos Reis, impressa por Robert Feebairn, de Edinburgo, e vendida por ele na sua loja, na cerca do Parlamento, no ano da graça de 1705 ou 1706, não estou absolutamente certo; mas tenho um exemplar em minha casa, ao lado do meu exemplar de in-12 das Actas escocesas, e que ocupa bem o seu lugar nas minhas prateleiras, junto deste último. Que tem a dizer-me a isto, Mr. Oldbuck?
- Tenho a dizer que me rio de Henrique Maule e da sua história - respondeu Oldbuck - e que acedo assim ao seu pedido, tratando-o como ele merece.
- Não se ria do que vale mais do que o senhor replicou sir Arthur, um tanto desdenhosamente.
- É o que eu não julgo fazer, rindo-me dele ou da sua história.
- Henrique Maule de Melgum era um gentleman, Mr. Monkbarns.
- Suponho que não é nisso que ele tinha vantagem sobre mim - replicou o Antiquário, um pouco azedamente.
- Perdão, Mr. Oldbuck, era um gentleman de alta família, de uma origem antiga, e é por isso que...
- O descendente de um impressor da Vestefália não deve falar dele senão com respeito: assim deve ser a sua opinião, sir Arthur, mas não é a minha. Eu sou de opinião que a origem que tenho desse laborioso e industrioso tipógrafo Wolfbrand Oldenbuck, que, no mês de Dezembro de 1493, sob o patrocínio de Sebaldus Scheyter e de Sebastião Kammermaister, como nos diz o índice, acabou a impressão da Cronica de Nurembergu; sou de opinião, dizia eu, que essa origem é muito mais honrosa para mim, como homem de letras, do que se eu contasse na minha genealogia todos os velhos barões góticos, de grandes cabeças e punhos ferrados, que datam do tempo de Crentheminacheryme, e dos quais nenhum, ia apostar, sabia escrever o seu nome.
- Se essa observação é uma troça alusiva aos meus antepassados - disse o baromnet, tomando um tom de superioridade e de nobre desdém -tenho o prazer de o informar que o nome de um dos meus avoengos, Ganielyn de Guardover, Miles, está nitidamente escrito pelo seu próprio punho na mais antiga cópia da declaração de Ragnian.
- O que não serve senão para provar que foi um dos primeiros a dar o exemplo de uma baixa submissão a Eduardo I. Depois de uma tal traição, que tem a dizer-me em favor da lealdade sem mancha de sua família, sir Arthur?
- Basta, senhor! - exclamou sir Arthur, levantando-se altivamente e arredando a sua cadeira - Há-de decorrer muito tempo antes de que eu honre com a minha companhia alguém que corresponda tão mal ás minhas condescendências.
- Nisso fará o que mais lhe convier, sir Arthur; mas espero que, como eu não sentia toda a extensão da obrigação que lhe devia quando entrou na minha humilde casa, achará desculpável que não tenha levado o meu reconhecimento até o servilismo.
- Está bem, está bem, Mr. Oldbuck, desejo-lhe boa noite. Mr. Lovel, desejo-lhe boa noite.
E sir Arthur, irritado, precipitou-se para fora do refeitório, como se fosse impelido pelo espírito dos cavaleiros da Távola Redonda, e cruzou a grandes Passos o dédalo de passagens que conduzia ao salão.
- Já viu uma velha cabeça tão estúpida? - disse Oldbuck, dirigindo-se bruscamente a Lovel -Mas preciso de não o deixar partir daquela maneira louca.
Assim falando, correu empós o baronnet, seguindo-lhe o rastro pelo ruído das portas que ele abria e fechava com violência à procura da que devia conduzir ao salão.
- O senhor magoa-se! -gritou o Antiquário - Qui ambulat in tenebris, nescit quo vadit (1). O senhor cai Pela escada abaixo.
Sir Arthur chegara ao meio das trevas, cujo efeito calmante é bem conhecido das criadas e das governantas que têm de vigiar crianças traquinas. Mas se
(1 ) Quem anda nas trevas não sabe para onde vai. - N. Do T.
a obscuridade não acalmou a irritação do baronnet pelo menos retardou-lhe o passo, e Mr. Oldbuck, que conhecia melhor do que ele o local, alcançou-o quando ele lançava a mão ao fecho da porta do salão.
- Espere um minuto, sir Arthur - disse Oldbuck, opondo-se à sua entrada brusca -Não seja tão precipitado, meu velho amigo. Confesso a minha falta de delicadeza para consigo a propósito de sir Gamelyn, e no entanto é um dos meus velhos conhecimentos, mesmo um dos meus favoritos. Foi companheiro de Bruce e de Wallace; e eu juraria, sobre uma bíblia gótica, que ele não assinou o acto em questão senão na louvável e legítima intenção de manietar o traidor inglês. Foi um autêntico ardil escocês; vamos, vamos, olvido e perdão. Convenha em que demos a este jovem o direito de nos olhar como dois velhos loucos.
- Fale por si, Mr. Jonathan Oldbuck - disse sir Arthur, com majestade.
- Bem, bem... Deve deixar-se o caminho livre aos teimosos.
A porta abriu-se, e o imponente sir Arthur entrou no salão com uma cara que ainda parecia mais comprida e mais magra que de costume. Mr. Oldbuck e Lovel seguiram-no; todos três tinham um ar um pouco perturbado.
- Estava à sua espera, senhor - declarou Miss Wardour - para lhe propor irmos de passeio ao encontro da carruagem; a tarde está tão bela!
Sir Arthur apressou-se a anuir a esta proposta, que bem convinha à irritação de espírito em que estava; e, de acordo com o hábito estabelecido em casos de despeito, recusando o café e o chá que lhe ofereciam, tomou o braço de sua filha e, depois de cumprimentar as damas com cerimónia e Oldbuck muito secamente, retirou-se.
- Parece-me que sir Arthur ainda leva um cão preto atrás dele (1) - proferiu Miss Oldbuck.
- Diabos levem o seu mau humor! É mais absurdo
(1 Has got the black dog on his back again, provérbio escocês, que poderíamos traduzir por "ainda vai em sombria disposição". - N. do T.
uma mulher. Que diz a isto, Lovel? com a breca o jovem também se foi embora? -'Ele despediu-se enquanto Miss Wardour se preparava para se retirar; mas creio que o tio não fez reparo.
- Diabos os levem! Eis o que se ganha com os cuidados, os embaraços e os trabalhos que temos para os receber a jantar, sem contar com a despesa. O Seged, imperador da Etiópia! -exclamou ele, segurando com uma mão a sua chávena de chá e com a outra um volume do Vagabundo (porque era seu hábito regular ler, quando bebia e comia em presença de sua irmã, manifestando, com este costume, o seu desprezo pelo convívio das mulheres e a sua decisão de aproveitar todos os momentos para se instruir) - ó Seged, imperador da Etiópia, tu falavas com sabedoria. Quem de entre nós poderá dizer: "Este dia decorrerá em felicidade! "
Oldbuck continuou os seus estudos, durante perto de uma hora, sem ser interrompido pelas damas, que, ambas em profundo silêncio, se ocupavam de algum trabalho do seu sexo. Por fim, ouviu-se bater à porta do parlatório com uma pancada leve e modesta.
- É você, Caxon? Entre, entre, homenzinho.
O velho abriu a porta e não entremostrando senão o seu magro rosto, para o qual descaíam alguns cabelos grisalhos, e a mancha do seu fato esbranquiçado, disse em voz baixa e misteriosa:
- Desejava falar-lhe, senhor.
- Então, entra, velho imbecil, e diz o que tens a dizer!
- Eu não queria assustar as damas - disse o antigo cabeleireiro.
- Assustar! -estranhou o Antiquário - Que queres dizer? Não te apoquentes com as damas; tens ainda algum fantasma de Humlock Knove?
- Não, não, senhor; não se trata de fantasma desta Vez; mas não tenho o espírito tranquilo.
- Já viste alguém que o tivesse? - replicou Oldouck - E com que direito um velho e mísero fabriCante de perucas como tu teria o espírito mais tranquilo do que o resto do género humano?
- Não é por mim que eu receio, senhor; mas a noite ameaça tornar-se terrível; e sir Arthur e Miss Wardour, a pobre menina
- Bem, devem ter encontrado a sua carruagem no princípio da avenida, e com certeza que já estão em casa há muito tempo.
- Não, senhor, eles tomaram pelo caminho grande para irem ao encontro da carruagem. Foram pela praia.
Esta palavra produziu sobre Oldbuck um efeito de electricidade.
- Pela praia! - exclamou ele -Não é possível!
- Ai, senhor, foi o que eu disse ao jardíneiro; mas este assegurou-me que os viram voltar para Mussel Craig. Palavra, disse-me ele, se é assim, Davie, receio que...
- Um almanaque! Um almanaque! - exclamou Oldbuck, erguendo-se muito alarmado - Não, esse não disse ele, repelindo um pequeno almanaque de bolso que sua sobrinha lhe apresentava - Santo Deus! Pobre querida Miss Isabel! Procurem-me depressa o almanaque de Fairport - Foi-lhe trazido, consultado, e aumentou grandemente a sua agitação - Irei eu mesmo; chamem o jardineiro e o moço da lavoura, que tragam cordas e escadas; digam-lhes para trazerem um ajudante com eles; que subam e sigam pelos rochedos, e que os avisem com os seus gritos; eu também vou a correr.
- Mas que se passa então? - exclamaram ao mesmo tempo Miss Oldbuck e Miss Mac Intyre.
- A maré! A maré! - respondeu o Antiquário, aterrado.
- Se mandássemos Jenny a casa de Saunders Mucklebackit, dizer-lhe que metesse o seu barco ao mar; mas não, vou lá eu a correr -disse vivamente a jovem, que partilhava dos receios de seu tio.
- Muito bem, minha querida, é a coisa mais razoável que disseste até agora; trata de correr para lá... Ir pela praia! - disse ele, pegando na bengala e no chapéu - Já alguma vez se ouviu falar de tal extravagância?
Dedicaram-se um momento a contemplar o espectáculo aterrador e novo do vasto mar. As águas, ao retirar-se, tinham-lhe primeiro permitido seguir a margem alargada da costa mas em breve elas tornaram a invadir o caminho que eles percorriam, e diminuem de momento a momento o espaço que os separa.
CRABDE
A notícia de Davie Dibble, que espalhava um alarme tão geral em Monkbarns, não era senão demasiado exacta. Sir Arthur e sua filha tinham partido, como se propunham, primeiro pela estrada principal; mas quando atingiram o começo da álea marginada de sebes, que de um lado servia de certo modo de avenida à casa de Monkbarns, avistaram, a pouca distância deles, Lovel, que marchava a passo lento, como se tivesse desejo de se lhes juntar. Então, Miss Wardour propôs a seu pai tomar por outro caminho, e, como o tempo estava muito ameno, regressar pela praia que se prolonga a baixo de uma cadeia de rochedos pitorescos, oferecendo em todas as épocas uma passagem mais agradável entre Knockwinnock e Monkbarns do que a estrada principal.
Sir Arthur anuiu de boa vontade. Seria bastante desagradável, dizia ele, ser abordado por aquele indivíduo que Mr. Oldbuck tomara a liberdade de apresentar-lhe com a sua educação de antigos tempos, sir Arthur não possuía aquela facilidade dos nossos dias de se desfazer de uma pessoa com a qual se Passou uma semana, desde o momento que se julgue que o seu conhecimento pode tornar-se importuno. Resolveu-se, pois, a enviar um rapazinho, que, para ganhar um penny, devia ir ao encontro do cocheiro e preveni-lo de que levasse a carruagem para Knockwinnock.
Isto combinado e expedido o pequeno mensageiro, o gentleman e sua filha abandonaram a estrada principal, e, seguindo uma senda sinuosa pelas alturas arenosas cobertas de giestas e juncos, depressa atingiram a beira-mar. Faltava muito para que a maré estivesse tão afastada quanto eles supunham, mas isto não os alarmou logo, porque havia só dez dias no ano em que ela se aproximava dos rochedos o bastante para não deixar uma passagem seca. No entanto, em épocas de Primavera, ou mesmo quando os ventos fortes aceleravam o fluxo vulgar, o mar cobria inteiramente esse caminho, e a tradição conservara a memória de vários acontecimentos funestos, ocorridos nessas circunstâncias. Tais perigos, porém, tinham-se apresentado tão raramente que os tomavam como pouco prováveis, e essas histórias, assim como outras lendas, serviam mais para distrair o serão do que para impedir alguém de passar pelas areias, com o fim de ir de Knockwinnock a Monkbarns.
Caminhando com seu pai e desfrutando do que tinha de agradável a frescura da marcha pela praia rija e húmida, Miss Wardour não deixou de notar que a última maré se elevara a uma altura considerável acima das marcas que geralmente fixava. Sir Arthur fez a mesma observação, sem que o menor receia alarmasse o espírito de um ou de outro. O sol repousava o seu disco imenso nos confins do vasto oceano, e dourava em formas bizarras as nuvens através das quais viajara todo o dia, e que, acumuladas agora por todos os lados, pareciam anunciar os desastres que acompanham a decadência de um império ou a queda de um monarca. E no entanto o seu esplendor moribundo lançava uma sombria magnificência sobre aquele amálgama formidável de vapores, e dava àquela maça aérea a forma fantástica de pirâmides e de torres, das quais umas ofereciam um reflexo dourado, enquanto outras se cobriam de tintas púrpuras, ou de um vermelho sombrio e escuro. O vasto mar, estendendo-se sob este dossel pomposo e variado, repousava numa calma quase assustadora, e reflectia os raios brilhantes do astro no seu declínio, e o colorido rebrilhante das nuvens emque se deitava. Perto da costa, a onda vinha borbulhar e formar vagas cintilantes de espuma, que, imperceptivelmente, mas com rapidez, avançava a todos os momentos sobre a areia, com o espírito ocupado por esta cena pitoresca, ou talvez agitado por qualquer outro problema, Miss Wardour marchava em silêncio ao lado de seu pai, cuia dignidade recentemente ofendida não o dispunha a prestar-se à conversação. Seguindo as voltas da praia, atravessaram uma após outra várias passagens escarpadas e acharam-se, por fim, sob a imensa cadeia de rochedos pela qual esta costa é em alguns sítios defendida. Longos recifes, que se estendiam sob a água, e cuja existência não era indicada senão por uma ponta nua que aparecia aqui e além, e pela espuma das vagas que vinham quebrar-se contra eles que estavam parcialmente cobertos, tornavam a baía de Knockwinnock muito temida dos pilotos e dos mestres dos navios.
Os rochedos que orlam a praia, e que se erguem à altura de duzentos ou trezentos pés, oferecem as suas cavidades a um número infinito de aves marinhas, um asilo que parece fora do alcance da cobiça do homem. Vários desses bandos selvagens, com o instinto que os faz procurar terra antes do começo de uma tempestade, principiaram a voar em torno dos seus ninhos, com aquele grito agudo e aflitivo que anuncia a perturbação e o alarme. O disco do sol escurecera pouco a pouco antes de descer inteiramente abaixo do horizonte, e trevas súbitas e prematuras velaram o longo crepúsculo de uma tarde de Verão. O vento não tardou a levantar-se, mas fez ouvir seus gemidos tristes e lúgubres, e agitou o seio do oceano algum tempo antes de se fazer sentir em terra. A massa de águas, que se tornara sombria e ameaçadora, começou a encrespar-se profundamente; suas vagas, levantadas, avolumavam e formavam montanhas de escuma sobre os cachopos, ou arremessavam-se contra a praia com um ruído de trovão ao longe.
Atemorizada por esta brusca mudança de tempo, Miss Wardour aproximou-se de seu pai e apertou mais fortemente o seu braço.
- Eu preferiria - disse ela, por fim, mas quase em voz baixa e como se tivesse receio de exprimir o" seu terror nascente - eu preferiria que tivéssemos continuado a seguir a estrada principal, ou esperado em Monckbarns a chegada da carruagem.
Sir Arthur olhou em sua volta, mas não viu nada, ou não quis confessar que via sinais de uma tempestade próxima. Teriam tempo, disse ele, de chegar a Knockwinnock antes do começo da tempestade; mas a rapidez do seu passo, que Isabel tinha dificuldade em acompanhar, denunciava bem que ele julgava que todos os seus esforços eram necessários para realizar essa predição consoladora.
Aproximavam-se então do centro de uma baía estreita mas profunda, formada por duas rochas escarpadas e inacessíveis, cujas pontas avançavam em saliência para o mar, como as de um crescente. Nenhum deles ousava comunicar ao outro o receio que começavam a experimentar de que os progressos rápidos da maré os impedissem de dobrar o promontório que estava diante deles, ou de retomar o caminho que ali os tinha trazido.
Quando apressavam o passo, aspirando sem dúvida a trocar a linha curva que as sinuosidades da baía os obrigavam a adoptar, por um carreiro mais direito e mais directo, embora menos conforme as regras da beleza, sir Arthur avistou na praia um vulto humano que avançava ao encontro deles.
- Louvado seja Deus! - exclamou ele - Podemos voltar para Halket Head, aquela pessoa deve passar para lá.
Assim se abandonou à expansão de uma esperança, depois de ter reprimido a do terror.
- Ah, sim louvado seja Deus! -repetiu sua filha, menos distintamente, e como que exprimindo interiormente o reconhecimento que experimentava.
O vulto que avançava ao encontro deles fez-lhes sinais, que o vapor da atmosfera agitada pelo vento e por uma fina chuva os impediu de ver ou de compreender distintamente. Algum tempo antes de se reunirem, sir Arthur reconheceu o velho mendigo de túnica azul, Edie Ochiltree. Diz-se que no momento em que o perigo se torna eminente e comum, os próprios animais esquecem os seus ressentimentos e as suas antipatias. A praia que dominava Halket Head, diminuindo rapidamente de extensão pelas invasões da maré impelida por um vento noroeste, era um campo neutro onde mesmo o juiz de paz e o mendigo vagabundo podiam encontrar-se com mútua benevolência.
- Volte, volte para trás! - bradou o mendigo Porque não voltaram quando eu lhes fiz sinal?
- Julgávamos - disse sir Arthur muito agitado que teríamos tempo de atingir Halket Head.
- Halket Head! O mar cobre neste momento Halket Head e lança-se daí, como da cascata de Fyers. Tudo o que pude fazer, há vinte minutos, foi dobrá-lo; a água chega lá por três pontos ao mesmo tempo. Talvez possamos voltar ainda pela ponta de Bally-burgh Nesse. Que Deus nos proteja, é a nossa única via de salvação. Ainda podemos experimentar.
- Santo Deus, minha filha!
- Meu pai, meu bom pai! - exclamaram ao mesmo tempo pai e filha, enquanto o terror lhes dava forças e agilidade; voltaram para trás, tentando dobrar a ponta que forma a extremidade meridional da baía.
- Eu soube que estavam aqui pelo rapazinho que o senhor mandou ao encontro da carruagem - disse o mendigo, avançando a passo vigoroso atrás de Miss Wardour -e não pude pensar sem tremer no perigo que corria esta jovem e delicada menina, sempre tão bondosa para os corações aflitos que se refugiam junto dela. Observei então os progressos das ondas, e disse para comigo que, se pudesse chegar a tempo de os avisar que voltassem para trás, ainda tudo poderia correr bem. Mas receio, receio ter-me enganado, porque qual será o mortal que alguma vez viu o mar avançar tão furiosamente como agora? Vejam além a rocha de Ratton; sempre a vi erguer o seu topo acima da água. Pois bem! Está agora coberta.
Sir Arthur lançou um olhar para o lado indicado pelo velho. Viu que um imenso rochedo que, geralmente na maré alta, ostentava uma maça semelhante à quilha de um grande navio, estava agora todo debaixo de água, sem que nada marcasse o seu lugar senão o refervilhar e o refluxo das vagas que vinham lutar e quebrar-se contra aquele obstáculo submarino.
- Despache-se! Despache-se, minha boa menina continuou o velho - e talvez ainda cheguemos. Tome o meu braço; agora é velho e fraco, mas já defrontou mais de um temporal; apoie-se nele, minha bela menina! Vê além aquele ponto negro no meio das vagas escumosas? Esta manhã era tão alto como o mastro de um brigue; está bem pequeno agora, mas enquanto ele ocupar tanto espaço como a forma da meu chapéu, não desespero de que possamos tornejar o Bally-burgh Nesse, apesar do estado em que nos encontramos.
Isabel aceitou em silêncio o apoio que o velho lhe oferecia, e que sir Arthur não estava em estado de lhe proporcionar. As vagas avançavam então de tal maneira sobre a praia que eles foram obrigados a abandonar o caminho sólido e liso que tinham primeiro seguido sobre a areia, por uma senda áspera que contornava o precipício e que mesmo em alguns sítios atravessava as anfractuosidades existentes no seu rebordo. Teria sido absolutamente impossível a sir Arthur e a sua filha descobrirem um caminho entre aqueles escolhos, se não fossem guiados e encorajados pelo mendigo, que já ali se encontrara pelas marés altas, embora nunca, confessou ele, por uma noite tão assustadora como aquela.
A noite era, de facto, assustadora; e o mugido da tempestade misturava-se com os gritos das aves marinhas e ecoava como um sino funério sobre aquelas três vítimas que, suspensas entre os dois objectos, não os mais magníficos, mas os mais temíveis da Natureza, um mar em fúria e um abismo sem fundo, prosseguiam o seu caminho difícil e perigoso, muitas vezes batidos pela onda escumosa e gigantesca, que se elevava na praia por cima das que a tinham precedido. O seu inimigo, a cada minuto, ganhava imperceptivelmente terreno sobre eles! Entretanto, não podendo decidir-se a abandonar uma última esperança de salvação, eles fixaram seus olhares no rochedo negro que Ochiltree lhes mostrara. Ainda era fácil distingui-lo entre os cachopos, e continuou a sê-lo até que, seguindo o seu caminho duvidoso, chegassem a uma esquina onde uma saliência de rocha veio ocultá-lo de repente aos seus olhos.
Privados do seu único farol, com o qual tinham contado, acharam-se então entregues à dupla angústia da incerteza e do terror. Esforçaram-se, no entanto, por continuar, mas quando chegaram ao ponto de onde deveriam descobrir o rochedo negro, ele deixara de estar visível. Esse sinal de salvamento achava-se perdido no meio das ondas esbranquiçadas que, quebrando-se na ponta do promontório, se erguiam, em prodigiosas montanhas de escuma, à altura de um mastro de navio de guerra, contra a fronte lúgubre do precipício.
O velho empalideceu. Isabel soltou um grito débil. O seu guia pronunciou num tom solene: "Deus tenha piedade de nós! " e sir Arthur repetiu num tom lamentoso: "Minha filha, minha Isabel! Morrer de uma tal morte! "
- Meu pai! Meu bom pai! -exclamou sua filha, agarrando-se a ele - E o senhor, também - ajuntou ela, olhando para o mendigo - perde a vida, ao tentar salvar a nossa!
- Ela não vale a pena ser mencionada - respondeu o velho - Já vivi o bastante para estar farto da existência; quer seja aqui, quer seja além, à beira de um fosso, num montão de neve ou no seio de uma vaga, que importa o fim do pobre mendigo!
- Homem - disse sir Arthur - não pode encontrar nenhum meio, nenhum socorro? Farei a sua fortuna, dar-lhe-ei uma herdade eu...
- As nossas riquezas em breve serão iguais - respondeu o mendigo, contemplando o progresso das águas - Já o são, porque eu não tenho terras, e o senhor dará os seus campos férteis e a sua baronia por uma toeza quadrada de rocha que se conserva seca durante doze horas somente.
Enquanto trocavam estas palavras, atingiram a mais alta saliência da rocha a que puderam chegar; pois parecia que um esfoço mais para ir avante não serviria senão para apressar a sua perda. Aí, não lhes restava mais do que esperar os progressos lentos mas seguros do elemento furioso, lembrando assim de certo modo aqueles primeiros mártires da Igreja que, expostos pelos tiranos pagãos para serem lançados às feras, eram obrigados a contemplar durante algum tempo a impaciência e a raiva que agitavam aqueles animais, que esperavam que o sinal dado para abrir as jaulas lhes permitisse arremessar-se sobre as suas vítimas.
No entanto, esta pausa terrível deu a Isabel tempo de reunir todas as suas faculdades de um espírito naturalmente firme e corajoso, e que retomasse forças nesta temível conjuntura.
- Será preciso - disse ela - abandonar a vida sem tentar um derradeiro esforço? Não há uma senda, qualquer que seja o perigo que ofereça, pela qual possamos subir esta rocha, ou atingir um ponto bastante elevado acima do mar para aí podermos ficar até de manhã, ou pelo menos até que venha um socorro? Deve conhecer-se a nossa situação, e em breve virá toda a gente em nosso auxílio.
Sir Arthur, que ouviu, mas quase sem compreender, as perguntas da filha, voltou-se como que por instinto para o lado do mendigo, como se suas vidas estivessem nas suas mãos. Olchitree reflectiu.
- Outrora - disse ele - trepava eu ousadamente os rochedos, e derrubava mais de um ninho de falcão no meio destas mesmas rochas negras; mas isso foi há muito tempo, muito tempo, e era com 9 auxílio de cordas, porque nenhum mortal o poderia fazer sem isso; e mesmo que eu tivesse uma, já não tenho o golpe de vista tão justo, nem o pé tão seguro, nem a mão tão firme como tinha então. Como poderia eu, pois, salvá-los? Mas havia outrora um carreiro por aqui que, se o vissem, talvez preferissem ficar onda estão. Bendito seja o Senhor! - exclamou ele bruscamente - Eis alguém que desce neste mesmo instante pela rocha! - Depois, erguendo a voz com toda a sua força, para aquele cuja intrepidez desafiava semelhantes perigos, começou a dar-lhe todas as instruções que a sua antiga prática e a recordação das circunstâncias locais apresentaram de repente ao seu espírito
- Vai bem, vai bem!... Por aqui, por aqui!... Amarre bem a corda em volta do Chifre Crummie; é essa pedra que vê aí tão negra, dê-lhe duas voltas; é isso: agora avance um pouco mais para Leste, ainda um pouco, até a outra pedra: dantes havia aí a raiz de um roble; aí, é isso; detenha-se agora, retome fôlego e descanse, meu rapaz; que o Senhor o abençoe! Não tenha pressa. bom! Agora, é preciso chegar àquela outra pedra larga e azulada que se chama avental de Bessy, e depois julgo que, com a sua ajuda e com essa corda, chegarei até o senhor; depois poderemos subir a jovem lady e seu pai...
O intrépido aventureiro, seguindo os conselhos do velho Edie, lançou-lhe a ponta da corda, que o mendigo atou em volta do corpo de Miss Wardour, envolvendo-a primeiro, cuidadosamente, com o seu manto azul, para a resguardar tanto quanto possível das injúrias do tempo- depois, servindo-se ele próprio da corda que estava amarrada na outra extremidade, começou a subir a superfície da rocha, empresa perigosa e capaz de provocar vertigens, mas que depois de o ter exposto a cair uma ou duas vezes, o conduziu enfim são e salvo à larga pedra plana junto do nosso amigo Lovel. As suas forças reunidas conseguiram elevar e depor Isabel no lugar de salvamento que eles tinham atingido. Lovel desceu depois, a fim de socorrer sir Arthur, em volta do qual atou a corda; em seguida, tornando a subir ao seu lugar de refúgio, conseguiu com a assistência de Ochiltree e os esforços que sir Arthur fez por se ajudar a ele próprio, elevar-se acima do alcance das ondas.
A certeza de serem arrastados para uma morte próxima e inevitável teve sobre eles efeito diferente; pai e filha lançaram-se nos braços um do outro, abraçaram-se e choraram de alegria, conquanto o seu salvamento fosse acompanhado da perspectiva de passarem uma noite tempestuosa sobre a perigosa saliência de um rochedo que apenas apresentava o espaço suficiente para os quatro infelizes que, tremendo e aproximando-se uns dos outros, como as aves marinhas que os cercavam, se agarravam àquele lugar que lhes devia servir de asilo contra o elemento destruidor que ululava abaixo deles. As ondas escumosas, que atingiam gradualmente e de uma maneira assustadora o sopé do precipício, depois de terem inundado a praia em Que eles estiveram momentos antes, erguiam-se tão alto como o seu lugar de refúgio temporário e, pelo ruído atroador que faziam ao bater nos flancos das rochas menos elevadas, pareciam exigir os fugitivos na sua voz de trovão, como vítimas que lhes estivessem destinadas. Era, na verdade, uma noite de Verão; no entanto, parecia pouco provável que um corpo tão delicado como o de Miss Wardour pudesse resistir até de manhã àquela inundação de espuma; e o fustigar da chuva, acompanhado de longos e violentos turbilhões de vento, juntava-se a tudo o que a sua posição tinha de perigoso e difícil.
- Pobre menina! Pobre e boa menina! - disse o velho - Já passei mais de uma noite semelhante, exposto às injúrias do tempo; mas, valha-nos Deus, como a vai ela suportar?
Estes receios eram comunicados a Lovel, a meia voz; porque, por aquela espécie de instinto que faz com que os espíritos firmes e empreendedores se entendam e por assim dizer se reconheçam no momento do perigo, eles sentiam um no outro uma confiança mútua.
- Vou subir de novo a rocha - disse Lovel - Ainda há bastante claridade para me guiar; atinjo o topo e chamo por socorro.
- Vá, vá por amor de Deus! -disse sir Arthur, em tom desesperado.
- Está louco? - exclamou o mendigo - Francisco de Fowlsheugh, o rapaz mais intrépido da região para subir às rochas e procurar as aves nos seus próprios ninhos; o pobre diabo despedaçou-se sobre o Dunbuy Slaines. Pois bem, ele nunca se arriscaria a ir ao cimo do Halket depois, do pôr do Sol. É por graça de Deus, e mesmo por milagre, que o senhor não se encontra no meio das ondas depois de tudo ao que se arriscou. Eu não acreditava que ainda existisse um homem que descesse as rochas como o senhor o fez. Duvido de que eu próprio fosse capaz, àquela hora e com este tempo, quando tinha a força e a agilidade da juventude; mas experimentar subir de novo agora, seria tentar a Providência.
- Nada receio - replicou Lovel - fixei perfeitamente todos os sítios onde me detive ao descer, e ainda está bastante dia para os ver distintamente. Tenho pois a certeza de chegar sem perigo. Fique aí, meu bom amigo, junto de sir Arthur e da menina.
- Se o senhor lá vai - disse o bedesman - diabos me levem se não vou também, porque haverá bastante que fazer para nós dois ao chegar ao topo da rocha.
- Não, não, fique aqui junto de Miss Wardour; bem vê que sir Arthur está completamente exausto-
- Fique então o senhor, e vou eu -propôs o velho-Que a morte poupe o trigo verde e ceife o que está maduro!
- Fiquem os dois, rogo-lhes eu -disse Isabel, em voz fraca -Estou bem e posso passar a noite aqui; sinto-me muito melhor.
Ao dizer estas palavras, a voz faltou-lhe, e ela teria caído do rochedo se Lovel e Ochiltree não a agarrassem e a colocassem, meio deitada, meio sentada, lado de seu pai, inteiramente abatido pela fadiga do corpo e do espírito, tão violenta como extraordinária, já sentado numa pedra, numa espécie de alheamento.
- É impossível deixá-la - disse Lovel -Que havemos de fazer. Escute! Não é um grito que eu oiço?
- -É o grito de um mergulhão, reconheço-o bem.
- Não, por Deus - redarguiu Lovel - é uma voz
humana.
Fez-se ouvir de novo um grito distante, e apesar do estrondo dos elementos em fúria, e dos guinchos das gaivotas que os cercavam, chegou distintamente até eles. O mendigo e Lovel responderam, dando à sua voz toda a extensão que lhes era possível, o primeiro agitando o lenço branco de Isabel na ponta do seu bastão para indicar o local onde se encontravam. Embora os gritos fossem repetidos, decorreu algum tempo antes de que respondessem exactamente aos deles, deixando os nossos infelizes na incerteza de se, no meio das trevas que se adensavam e da tempestade que crescia, teriam podido fazer reconhecer o seu lugar de refúgio às pessoas que cruzavam, o rebordo do precipício para lhes trazer socorro, Por fim, receberam uma resposta regular e distinta aos seus gritos, e a sua coragem foi alimentada pela certeza de estarem ao alcance de voz, se não ainda não reunidos aos amigos que os vinham salvar.
Há um rochedo cujo cimo gigantesco e saliente domina de uma altura medonha o Oceano, ao qual serve de limite. Trata de me conduzires lá e eu acabarei com a miséria que te aflige.
SHAKSPEARE - Rei Lear
O ruído das vozes humanas que vinha de cima não tardou em aumentar, e o clarão dos archotes dePressa se juntou à frouxa claridade do crepúsculo que a obscuridade do temporal deixara. Os infelizes, do seu Precário asilo, e, do alto das rochas, os que vinham socorrê-los, tentaram mutuamente fazer-se entender mais distintamente; mas o rugido da tempestade limítou as suas comunicações aos gritos tão inarticulados como os dos habitantes alados daqueles retiros selvagens, que alarmados pelo som repetido das vozes humanas, ali onde tão raramente se faziam ouvir, formavam um triste concerto com seus guinchos.
Entretanto, um grupo inquieto reunira-se na crista do precipício; Oldbuck era o primeiro e o mais impaciente, e avançava com uma angústia inexprimível para a beira do rochedo, estendendo a cabeça, à qual o seu chapéu e a sua peruca estavam atados com um lenço, num ar de resolução que fez tremer os seus companheiros mais timoratos.
- Cuidado! Cuidado, Monkbarns! -bradou Caxon, agarrando-se às abas da labita do patrão, e puxando-o com tanta insistência quanto as suas forças lho permitiam-Cuidado, por amor de Deus! Sir Arthur já se afogou e se o senhor também cair no abismo, não haverá mais na paróquia senão a peruca do pastor.
- Estou a vê-los! Estou a vê-los! - exclamou Oldbuck - Ali, em baixo, na pedra plana. Olá! Olá Oh!...
- Também os vejo - disse Mucklebackit - Estão juntos lá em baixo, como caranguejos em tempo de nevoeiro. Mas julga que os ajudará, ficando a gritar como um velho mocho durante a tempestade? Steenie, meu rapaz, traz para aqui o mastro; eu levanto-os como levantávamos outrora os barris de genebra e aguardente; pega na enxada, faz um buraco para o mastro, arranja sòlidamente a cadeira de corda, experimenta-a bem com toda a tua força.
Os pescadores tinham trazido com eles o mastro de um barco, e como uma parte da pessoas da região acorrera por zelo ou por curiosidade, depressa o mergulharam na terra, onde ficou fortemente cravado. Uma vara atada em cruz à parte superior do mastro, com uma corda ao longo e nas extremidades da qual se suspendeu um grande peso, formou uma espécie de guindaste que proporcionava o meio de descer uma cadeira, sòlidamente atada, até a esplanada de rocha onde os infelizes se tinham refugiado. A alegria destes ao ouvir os preparativos que se faziam para o seu salvamento foi extremamente moderada quando se aperceberam por que precário meio de transporte iam atravessar as regiões do ar. A cadeira balouçava a cerca de uma toeza acima do lugar que eles ocupavam, descendo a todos os impulsos da tempestade e do vento e dependendo inteiramente da solidez de uma vida, que na obscuridade sempre crescente, não parecia mais do que um fio imperceptível. Além do perigo de confiar uma criatura humana aos espaços vazios do ar numa tão frágil máquina, havia o perigo mais terrível ainda de a cadeira e quem a ocupasse serem precipitados pelo vento, ou pelo balanço da corda, contra os flancos rochosos do precipício. Mas para diminuir o risco tanto quanto possível, o marinheiro experimentado descera com a cadeira uma outra corda que, ficando atada e segura pelas pessoas que permaneciam em cima, podia servir de corda de retenção e tornar o transporte mais regular e mais firme.
No entanto, para se confiar a semelhante máquina, no meio da fúria da tempestade, batido pelos ventos e pela chuva, com um rochedo inacessível por cima da cabeça e um abismo sem fundo debaixo dos pés, era precisa aquela coragem que não pode nascer senão do desespero. Contudo, por mais ameaçadora que fosse de todos os lados a perspectiva do perigo, e por mais incerto e perigoso que fosse esse meio de salvação, Lovel e o velho mendigo, depois de se terem consultado um momento, e depois de o primeiro, por um vigoroso esforço e com risco de sua vida, se ter assegurado da solidez da corda, concordaram que o melhor era atar Miss Wardolur à cadeira, e confiá-la aos cuidados e à afeição daqueles que vinham em seu socorro para a transportar sã e salva para o cimo do rochedo.
- O meu pai que suba primeiro! -exclamou Isabel- Por amor de Deus, meus amigos, cuidem dele Primeiro.
- É impossível, Miss Wardour; primeiro, é preciso salvar a sua vida. A corda que pode suportar o seu peso poderia...
- Não, não cedo a um tal sentimento de egoísmo!
- Mas é preciso ceder, minha boa menina - disse Ochiltree - porque disso depende a vida de todos nós. E depois, quando chegar lá acima, poderá informá-los da nossa situação neste lugar, porque julgo que neste momento sir Arthur não é capaz disso.
Tocada pela justeza deste raciocínio, ela exclamou:
- É verdade! Estou pronta e disposta a expor-me ao perigo em primeiro lugar. Que devo dizer aos nossos amigos, lá em cima?
- Que tomem cautela a corda não roce na superfície da rocha, depois baixarem a cadeira e elevá-la com mão firme e sem desvios; daremos sinal por meio de gritos.
com a terna solicitude que demonstra um pai por seu filho, Lovel atou Miss Wardour, com o seu lenço, a sua gravata e o cinturão de couro do mendigo, às costas e aos braços da cadeira, certificando-se bem da solidez de cada nó, enquanto Ochiltree procurava tranquilizar sir Arthur, que bradava:
- Que querem fazer de minha filha? Não a separem de mim! Isabel, ordeno-te que fiques comigo!
- Santo Deus, sir Arthur, cale-se e agradeça ao Céu que estejam aqui pessoas mais prudentes do que o senhor para orientar todo este assunto! - gritou o mendigo, fatigado das exclamações insensatas do baronnet.
- Parem um pouco agora, rapazes! - bradou o velho Mucklebackit, que estava encarregado do comando
- Voltem um pouco a vara; bom, é isso. Ei-la sã e salva em terra firme!
Gritos de triunfo anunciaram o êxito da empresa aos companheiros de sofrimento de Isabel, que responderam de baixo com alegres aclamações. Monkbarns, no êxtase do seu contentamento, despojou-se da sua sobrecasaca e envolveu a jovem com ela. Ele teria tirado também a sua labita, o seu colete e o seu chapéu, se o prudente Caxon não lho tivesse impedido.
- Cuidado, Vossa Honra vai matar-se com o tempo que está; serão precisos mais de quinze dias para o curar da constipação que apanhar esta noite, e isso não será bom nem para si nem para os outros. Não! Não! A carruagem está aí perto; não vale mais que duas destas pessoas levem para lá a menina?
- Tem razão - disse o Antiquário, tornando a enfiar as mangas da labita - Tem razão, Caxon: é uma noite péssima para passar ao ar livre. Miss Wardour, deixe-me conduzi-la à sua carruagem.
- Não, nem pelo Mundo inteiro, sairei daqui sem que meu pai esteja a salvo.
E de uma maneira confusa, que indicava até que ponto a sua coragem se sobrepusera ao receio mortal e uma situação tão perigosa, ela explicou o melhor que pôde a situação em que eles se encontravam em baixo, e as recomendações de Lovel e de Ochiltree.
- 'É justo, muito justo. Eu próprio estou impaciente por ver o filho de sir Gamelyn de Guardover em terra firme. Tenho a impressão de que nesse instante consentirá em assinar o juramento de abjuração. e ainda por cima a famosa lista de rendição, e até reconheceria a rainha Maria pelo que ela foi em realidade, a fim de se encontrar mais perto da minha garrafa de velho Porto, da qual se separou quando ela ainda estava no começo. Mas ele está agora em segurança, e ei-lo que aí vem - porque a cadeira descera de novo, na qual sir Arthur fora colocado, sem quase se aperceber disso - Puxem, rapazes. Detenham-se um momento por ele; uma genealogia tão antiga repousa numa corda de dez penes. Toda a baronia de Knockwinnock depende de três bocados de cânhamo. Respice finem, respice fanem, prestem atenção ao fim e á corda. Seja bem-vindo, meu bom velho amigo, à terra firme, embora não possa dizer à terra seca, e não faça calor aqui. Viva uma corda contra cinquenta toezas de água, embora não seja no sentido do provérbio vulgar: "Vale mais suspenso pelos rins do que Pelo pescoço".
Enquanto Oldbuck assim discorria, sir Arthur, chegado sem acidente, era ternamente apertado nos braços de sua filha, que, tomando então a autoridade que as circunstâncias requeriam, ordenou a algumas pessoas presentes que o transportassem à carruagem, Prometendo segui-los dentro de alguns minutos. Ela continuou no rochedo, apoiando-se no braço de um velho camponês, sem dúvida desejosa de ver chegar em segurança aqueles com quem acabava de partilhar os perigos.
- Quem vem aí? - indagou Oldbuck, quando a máQuina subiu mais uma vez - Quem temos ali, debaixo daqueles andrajos?
Depois, reconhecendo as faces crestadas e os cabelos grisalhos do velho Edie, quando o clarão dos archotes o iluminou, acrescentou:
- Quê! És tu, velho trocista? Temos de voltar a ser amigos... Mas, quem diabo é o quarto que está lá em baixo?
- Alguém que vale bem dois como nós, Monkbarns; é o jovem estrangeiro a quem chamam Lovel e que se portou, nesta bem-aventurada noite, como se tivesse várias vidas em seu poder, e as quisesse dar todas antes de expor as dos outros. Redobrem de cuidado, meus senhores, se quiserem ter em conta a bênção de um velho. Pensem que não há agora mais ninguém em baixo, para dirigir a corda de retenção... Cuidado com a Orelha do Gato... Tratem de evitar o Chifre da Vaca.
- Sim, tenham cuidado - repetiu Oldbuck - Quê! Ê o meu rara avis, o meu cisne negro, o meu fénix dos companheiros da cadeira de posta! Redobre de cuidado, Mucklebackit!
- Ponho nele tanto cuidado como se se tratasse de uma velha caixa de aguardente, e não poderia fazer mais, mesmo que os seus cabelos se parecessem com os de John Harlowe. Vamos, meus filhos, icem-no como deve ser.
Lovel corria, de facto, muito mais risco do que os que o tinham precedido. O seu peso não era suficiente para dar solidez à máquina durante a sua ascenção; foi, pois, balouçado como uma pêndula em movimento, com o perigo de se despedaçar contra alguma rocha. Mas era jovem, enérgico e ousado, e com a ajuda do bastão ferrado do mendigo, que guardara a seu conselho, conseguiu evitar todo o choque contra a rocha, e, o que mais perigoso era ainda, contra as saliências que eriçavam a sua superfície. Flutuando no imenso espaço vazio, como leve pena que o vento impele, com um balanço capaz de lhe causar o aturdimento do medo ou de lhe provocar vertigens, conservou no entanto a presença de espírito e a liberdade de acção que lhe eram necessárias, e só quando se encontrou deposto em segurança no topo da rocha experimentou uma tontura momentânea.
Quando se refez daquela espécie de desmaio, lançou olhares em redor; o objecto que ele tão ardentemente desejaria encontrar afastava-se nesse momento. Não se avistava mais do que o vestido branco de Isabel, que seguia a senda por onde devia reunir-se a seu pai. Ela não quisera abandonar aquele local sem ter visto livre de perigo o último dos seus companheiros de sofrimento, e sem que a voz rouca de Mucklebackit lhe desse a certeza de que o jovem chegara, com os seus membros inteiros, e que estava apenas um pouco aturdido. Mas Lovel até ignorava que ela tomara pela sua sorte aquele grau de interesse, porque, embora nada mais houvesse nesse sentimento do que o bem legitimamente devido àquele que a socorrera em semelhante perigo, ele não julgava comprá-lo demasiado caro se defrontasse perigos ainda maiores do que aqueles a que acabava de se expor. Ao retirar-se, Isabel recomendara ao mendigo que fosse essa mesma noite a Knockwinnock; ele, porém, excusou-se. "Pelo menos, que eu o veja amanhã", ajuntou ela. O velho prometeu lá ir; Oldbuck meteu-Lhe qualquer coisa na mão; Ochiltree, à claridade dos archotes, viu o que era e devolveu-lha.
- Não, não, eu nunca recebo ouro, Monkbarns... e amanhã o senhor poderia lamentar-se - Voltou-se então para o grupo de pescadores e camponeses, e indagou - Qual dos senhores me dá de cear esta noite e palha fresca para descansar?
- Eu! Eu! Eu! - exclamaram pressurosamente várias vozes.
- Pois bem, visto que assim é e que não posso dormir senão numa granja de cada vez, irei esta noite com Saunders Mucklebackit; ele tem sempre alguma coisa de bom. para a ceia; quanto a vocês, meus rapazes, viverei talvez para lhes recordar que me prometeram um abrigo e uma esmola.
Dizendo estas palavras, retirou-se com o pescador. Oldbuck apoderou-se de Lovel.
- Diabos me levem - disse ele - se o senhor volta esta noite para Fairport. Tem de vir comigo para Monkbarns... Quê, meu jovem, mas o senhor portou-se como um herói! O senhor é sob todos os aspectos um William Wallace. Vamos, meu rapaz, tome o meu braço; eu sou um apoio bastante firme para tanto vento; mas Caxon ajudar-nos-á. Aqui, velho imbecil, dê-lhe o seu braço do outro lado... E como diabo desceu o senhor àquele infernal Avental de Bessy, pois é assim que lhe chamam? Malditos sejam Bessy e o seu avental! Tudo o que tem nome de mulher ou pertence a uma mulher significa ruína ou destruição.
- Não é a primeira vez que trepo rochas – disse Lovel - e já observara há muito tempo os caçadores de pássaros, quando desciam ao longo deste precipício.
- Mas por que milagre veio o senhor a descobrir o perigo do extravagante baronnet e de sua interessante filha?
- Avistara-os da beira do precipício.
- Da beira? Diabo! E havia, pois, de o impelir dumosa pendere procul de rupe? (1) Embora dumosa não seja o termo apropriado (2). Que diabo, dizia eu, o impeliu para a beira do precipício?
- Confesso-lhe que gosto de ver acumular-se e ouvir rosnar a tempestade que se aproxima, ou, segundo as suas expressões clássicas, Mr. Oldbuck, suave mari, magno, etc. Mas eis a volta do caminho para Fairport, vou desejar-lhe muito boas noites.
- O senhor não se desvia nem um passo nem uma polegada, ou o comprimento de um salmão, palavra que, diga-se de passagem, tem embaraçado vários pretensos antiquários. O senhor sabe perfeitamente que o espaço que as leis concedem para a passagem de um salmão através de uma represa, de um dique, é precisamente o mesmo que é necessário aos movimentos de um porco gordo. Agora, pretendo eu provar-lhe que, da mesma forma que se faz uso dos objectos terrestres para estabelecer as medidas submarinas, se deve supor que os produtos das águas se consideraram como bases para medir as terras. Shathmant. salmão, o senhor vê a ligação íntima dos sons; toda a diferença consiste em suprimir duas letras e em juntar uma nova. Seria de desejar que um antiquário não exigisse mais difíceis concessões quando se propõe determinar uma etimologia.
- Mas, meu caro senhor, tenho realmente necessidade de ir para minha casa... estou encharcado até os ossos.
- Terá o meu roupão e as minhas pantufas, e tome cuidado, jovem, não apanhe a febre antiquária, como se apanha a peste ao usar o vestuário de um
(1) Suspenso de uma rocha forrada. - N. do T.
(2) Decerto porque o rochedo era nu e não forrado. N. do T.
estífero. Vamos, eu adivinho, o senhor receia meter um velho solteirão em despesas. Mas, acaso, não temos nós os restos daquele excelente pastelão de aves, que, meo arbítrio, é melhor frio do que quente, e aquela garrafa do meu velho vinho do Porto, do qual aquele imbecil do baronnet, a quem já não perdôo a estupidez desde que evitou quebrar o pescoço, não tomara senão um copo quando a sua má cabeça começou a desvairar a propósito da Gamelyn de Guardover?
E assim falando, arrastou Lovel até a porta do Peregrino de Monkbarns. Talvez nunca dois peões mais fatigados tivessem franqueado o seu limiar. O exercício que Monkbarns fizera, fora de um género bem diferente dos seus hábitos vulgares, e o seu companheiro, mais jovem e mais robusto, experimentara essa tarde uma agitação de espírito que o maçara ainda mais do que as fadigas corporais e extraordinárias que sofrera.
Se o senhor for valente, disse ela, ainda o poderemos alojar aqui; porque o quarto onde aparecem os espíritos é o mais belo da casa. Assim, pois, se a sua coragem não se abala por ouvir o chocalhar das correntes e por ver os seus cortinados agitar-se; se, quando o fantasma horrível se aproximar do seu leito, a sua língua intrépida encontrar força para proferir palavras e interrogá-lo sobre o motivo que o faz deixar o túmulo, fale, e eu vou preparar os lençóis e eu vou conduzi-lo ao quarto.
História verdadeira
Chegaram à sala onde tinham jantado, e foram alegremente acolhidos por Miss Oldbuck.
- Onde está a jovem? - indagou o Antiquário
- Em verdade, meu irmão, em toda esta desordem, Maria não quis guiar-se por mim; teve de partir também para Halket Head, e estou admirada de que o senhor a não tenha visto.
- Eh, como? Que diz, minha irmã? Essa jovem, com semelhante tempo, foi a Halket Head? Santo Deus!
As desgraças esta noite ainda não chegaram ao seu termo!
- Mas o senhor não me dá tempo de falar, Monkbarns; é tão imperioso e tão impaciente.
- Tréguas à estupidez, minha irmã! - disse o Antiquário, agitado - Onde está a minha querida Maria?
- Onde o senhor devia estar, Monkbarns, lá em cima no seu leito bem quente.
- Tê-lo-ia jurado - disse o Antiquário, evidentemente, muito aliviado - Tê-lo-ia jurado. A pequena preguiçosa inquietava-se muito pouco se nos tivéssemos todos afogado além; mas para que me disse que ela saira?
- Não me deixou terminar, Monkbarns; ela saiu, com efeito, e não voltou com o jardineiro senão quando teve a certeza de que nenhum de vós caira no precipício, e viu Miss Wardour sã e salva na sua carruagem. Não há mais de um quarto de hora que ela entrou, pois são perto de dez horas, e a pobre pequena estava tão encharcada que lhe misturei um copo de Xerez no caldo de farinha.
- Fez bem, Grizel; nada como vós, mulheres, para saberem tratar-se umas às outras. Mas escute, minha venerável irmã. e que esta palavra venerável a não faça recuar, porque se aplica a várias qualidades recomendáveis independentemente da idade, que é muito respeitável também, embora este seja o último título pelo qual as mulheres desejariam ser homenageadas; mas escute, dizia eu, mande-nos trazer imediatamente o resto do pastelão de aves e a garrafa de Porto.
- O pastelão de aves, o Porto, meu Deus! Não resta senão os ossos do pastelão, e apenas uma gota de vinho na garrafa.
A fronte do Antiquário ensombrou-se, embora ele fosse muito bem educado para exprimir em presença de um estranho a sua desagradável surpresa por falta dos pitéus com os quais tão confiadamente contava para cear. Mas sua irmã compreendeu os seus olhares irritados.
- Oh, Monkbarns - disse ela - para que apresentar esses modos?
- Eu não apresento modos, segundo a tua expressão.
- Não; de que serve fazer assim essa cara por causa de uns ossos descarnados? Se quer saber a verdade, dir-lhe-ei que o ministro veio esta tarde, o digno homem! e estava muito inquieto pela vossa precária situação, foi a palavra de que ele se serviu, porque, como sabe, o Céu concedeu-lhe o dom da palavra; não quis sair daqui senão quando teve a certeza de como o caso se volveu em vosso favor. Disse-me tão belas coisas sobre a resignação que se deve observar perante a vontade da Providência, o digno homem! Oldbuck replicou no mesmo tom:
- O digno homem! Tenho a impressão de que ele não se aborreceria de ver o domínio de Monkbarns passar para a minha herdeira. E foi enquanto prodigalizava as suas consolações cristãs sobre males futuros que o pastelão de aves e o vinho do Porto desapareceram?
- Meu caro irmão, como pode pensar nessas ninharias depois de ter escapado assim ao abismo?
- Quisesse Deus, minha querida Grizzie, que a minha ceia tivesse escapado ao abismo ou à gula do pastor! Devorou tudo, suponho eu?
- Ah, Monkbarns, o senhor fala como se estivéssemos desprovidos por completo de carne nesta casa. Deveria eu proceder de outro modo senão oferecendo a esse honesto homem que se refrescasse e restaurasse, depois de ter vindo do presbitério até aqui?
Oldbuck recitou, meio assobiando, meio cantando, este velho refrão escocês:
Regalaram-se primeiro com chouriços brancos
As marcelas vieram depois; E bebeu-se e comeu-se tão depressa Que a mim próprio me engoliriam, julgo eu.
Sua irmã apressou-se a acalmar os seus murmúrios, propondo alguns outros restos do jantar. Falou de outra garrafa de vinho do Porto, mas recomendou de preferência um copo de aguardente, que, de facto, era oprima. Como nenhuma instância pudera persuadir Lovel a envergar o roupão de florinhas e a gorra de veludo, Oldbuck, que pretendia ter conhecimentos da arte médica, aconselhou-o a deitar-se o mais cedo possíveL, e propôs enviar no dia seguinte, de manhã cedo, o infatigável Caxon a Fairport para lhe trazer a roupa branca e o fato.
Ao ouvir dizer, pela primeira vez, que o jovem forasteiro devia ser seu hóspede durante a noite, Miss Oldbuck foi atingida por uma tal surpresa que, sem a preponderância do peso que lhe atravancava a cabeça e que já descrevemos, seus cabelos grisalhos ter-se-iam eriçado de maneira a derrubarem todo o edifício.
- Valha-nos Deus! - exclamou a velha solteirona, toda confusa.
- Então que tem, Grizel?
- De que falava neste momento, Monkbarns?
- De que falava? Não ouviu? Dizia que tinha necessidade de me ir deitar, assim como este pobre jovem, a quem é preciso preparar um leito imediatamente.
- Um leito! Deus nos livre! - exclamou de novo Grizel.
- Mas, que significa isso? Não há bastantes quartos e leitos na casa? Não era antigamente um hospitium, no qual, ouso dizer, se dava todas as noites de dormir a uma vintena de peregrinos, pelo menos?
- Ó Monkbarns, quem sabe o que então se fazia! Foi há tanto tempo! Mas nos nossos dias... Não é, no entanto, que faltem camas aqui, nem quartos tão-pouco; mas bem sabe que ninguém se deita neles Deus sabe há quanto tempo, e que os quartos nem sequer foram abertos. Se nós soubéssemos, Miss Maria e eu teríamos ido para o presbitério; temos a certeza de dar sempre prazer a Miss Beekie, assim como ao ministro; mas agora Deus nos livre...
- E não há o quarto verde, Grizel?
- É verdade, e esse está em ordem, apesar de ninguém ter dormido nele depois do doutor Heavystente; mas...
- Mas... quê?
- Quê? Deve recordar-se da noite que ele lá passou, e o senhor certamente não quer expor este jovem gentleman a passar uma noite semelhante.
Ao ouvir esta discussão, Lovel quis fazê-la terminar, protestando que antes preferia regressar a pé a Sua casa do que causar-lhes o menor incômodo. O exercício, disse ele, far-lhe-ia bem; conhecia perfeitamente a estrada de Fairport, tanto de noite como de dia' aliás, a tempestade abrandava; e a isto ajuntou tudo o que a delicadeza lhe pôde sugerir para escapar-se a uma hospitalidade que parecia dever ser para os seus hóspedes mais incomodativa do que ele previra. Mas o ulular do vento e o ruído que a chuva fazia ao fustigar as vidraças, juntos ao pensamento das fadigas a que estivera exposto toda a tarde, teriam impedido Oldbuck de consentir na retirada do seu jovem amigo, mesmo que este lhe inspirasse menor interesse. Além disso, tinha a honra de mostrar que não se deixava governar por mulheres.
- Sente-se, jovem, sente-se - repetiu ele por várias vezes - Nunca mais desrolharia uma garrafa se o senhor e eu nos separássemos assim, e eis precisamente uma de excelente ale (1), verdadeiro anno Domini... nada que se pareça com os vossos pérfidos cozimentos, mas o licor natural, fabricado com cevada de Monkbarns. John de Girnel nunca abriu uma garrafa melhor para um menestrel errante ou peregrino que trouxesse as novidades mais frescas da Palestina. E para dissipar de vez do seu espírito o menor desejo de partir, saiba que, se o fizer, a sua reputação de valente cavaleiro se perderá para sempre. Ah! É uma autêntica aventura dormir no quarto verde de Monkbarns! Minha irmã, trate de o mandar preparar, e embora o aventureiro doutor Heavysterne não tenha sonhado senão desgostos e dor nesse compartimento encantado, não é razão para que um bravo campeão como o senhor, duas vezes tão grande e com metade do peso do doutor, não possa defrontar o encanto e destruí-lo?
- Como? É então um quarto de fantasmas?
- Exactamente... Cada casa desta região tem de ufanar-se da antigüidade dos seus fantasmas, e não se deve julgar que nós sejamos menos favorecidos do que os nossos vizinhos. Em verdade, eles começam a Passar um pouco de moda. Recordo-me do tempo em que se o senhor se permitisse duvidar da realidade de um espectro num velho solar, corria o risco, como diz Hamlet, de transformar-se em espectro. Sim, se o senhor tivesse contestado a existência do capuz vermelho no castelo de Glenstirym, o velho sir Peter Pepper-
(1) Cerveja forte. - N. do T.
brand chamá-lo-ia ao seu pátio e obrigá-lo-ia a recorrer à sua arma, e se o senhor não fosse o mais destro no combate, ele amarrá-lo-ia com um cadeado à grade da sua residência baronial. Eu próprio escapei por pouco a semelhante desafio. Mas humilhei-me perante o capuz vermelho e apresentei-lhe as minhas desculpas; porque, mesmo no tempo da minha juventude, nunca fui partidário da monomaquia ou do duelo, e estimei mais a companhia do padre que a do cavaleiro; e já não me preocupo em dar provas de bravura. Mas graças a Deus, eis-me velho, agora, e posso abandonar-me às minhas vivacidades, sem ser obrigado a defendê-las à ponta de espada.
Nesse momento, Miss Oldbuck tornou a entrar, com uma atitude singularmente grave.
- A cama de Mr. Lovel - disse ela - está pronta, meu irmão; acabam de lhe pôr lençóis brancos e secos, uma acha arde na chaminé... E asseguro-lhe, Mr. Lovel, que não lastimo o trabalho, e de todo o meu coração lhe desejo uma boa noite; mas...
- Mas, entretanto - disse o Antiquário - a senhora está decidida a fazer tudo o que puder para o perturbar.
- Eu? Asseguro-lhe que não disse nada, Monkbarns.
- Minha querida senhora - proferiu Lovel - permita-me que lhe pergunte a causa da solícita inquietação que experimenta a meu respeito.
- Oh! Monkbarns não gosta de ouvir falar disso... no entanto, ele sabe muito bem que o quarto tem má fama. Ainda não se esqueceu de que era lá que dormia o velho Rab Tull, o notário da cidade, quando ele teve aquela comunicação maravilhosa relacionada com o grande processo então pendente entre nós e os feudatários de Mussel Craig. Custou montes de dinheiro, Mr. Lovel, porque os processos, então como hoje, não se mantêm sem isso, e o Monkbarns desse tempo, nosso digno antepassado, Mr. Lovel, estava quase a perder em juízo por falta de um papel. Monkbarns bem sabe de que papel falo, embora não queira ajudar-me a dizê-lo... Não importa! Era um papel de grande importância para o processo, e sem o qual estávamos perdidos! Pois bem, a causa estava marcada para julgamento antes de quinze dias... como se diz, creio eu, e o velho Rab Tull, o notário que seguia este pleito veio dedicar-se a uma derradeira busca' desse Papel que era Preciso antes de que meu avô partisse de Edimburgo, a fim de terminar o processo; já não tinha senão muito pouco tempo diante dele... Rab não passava de um pobre homem, segundo ouvi dizer; mas era notário da cidade de Fairport, e os herdeiros de Monkbarns sempre o utilizaram por causa das suas relações com a cidade, como sabe.
- Isso torna-se insuportável, mana Grizel - disse o Antiquário, interrompendo-a - Declaro que a senhora teria tido tempo de evocar a sombra de todos os abades de Trotcosey, a contar de Waldimir, desde que iniciou a sua introdução à história de um só mísero espectro. Aprenda, pois, a usar de concisão nas suas narrativas, imite o laconismo do velho Aubrey, muita experiente neste assunto, e que contava os exemplos no seu jornal, no estilo breve e preciso de um negociante, exempli gratia: "Em Cirenscester, a 5 de Março de 1670, houve uma aparição: à pergunta se era um bom ou mau espírito, nenhuma resposta foi dada, mas tudo desapareceu, deixando um perfume singular e uma vibração harmoniosa. Vide as suas Miscelâneas, página 18, se a memória me não falha, a meio da página.
- Por Deus, Monkbarns, julga que toda a gente é tão sábia como o senhor? O seu gosto é obrigar as pessoas a fazer má figura: isso acontece muitas vezes com sir Arthur, e até com o pastor.
- A natureza favoreceu-me nesses dois casos, Grizel, e num terceiro de que não falarei; mas tome um um copo de ale, irmã Grizel, e acabe a sua história, que se faz tarde.
- Jenny está a aquecer o seu leito, Monkbarns, e o senhor tem de esperar que ela acabe... Pois bem, estava eu então à procura do que o nosso digno antepassado, o Monkbarns de então, fazia com a ajuda do velho Rab Tull. Mas, por mais que procurassem nada puderam encontrar que lhes servisse, e assim, depois de folhearem numa velha carteira de couro, e de engolirem muita poeira, Rab tomou a sua gota de ponche para limpar a goela; nunca houve grandes bebedores nesta casa, Mr. Lovel; mas aquele homem es-i tava tão habituado a ir beber com os bailios e os decanos, quando se reuniam para tratar dos interesses da região (e era quase todas as noites), que já não podia dormir sem aquilo. Depressa ele bebeu o seu ponche e se foi deitar; a meio da noite, teve um despertar terrível, tão terrível que depois disso, segundo se diz nunca mais foi o mesmo homem, e morreu de uma paralisia quatro anos depois, mais dia menos dia. Ele julgou então ouvir, a meio da noite, o roçagar dos seus cortinados, Mr. Lovel, e começou a olhar, pensando, o pobre homem, que talvez fosse o gato... Mas viu, Santo Deus, toda eu me arrepio, embora já tenha contado esta história pelo menos vinte vezes; viu, dizia eu, à luz do luar, um velho gentleman de boa cara, de pé junto do seu leito, vestido de maneira estranha, com muitos botões e cordões no casaco e essa parte do seu vestuário que não convém a uma dama citar (1), era ampla, comprida e tão longa como o que usam os marinheiros holandeses. Também tinha barba e os bigodes no lábio superior erguidos a cada canto e de um comprimento terrível. Rab forneceu ainda outros pormenores, mas agora já estão esquecidos, porque se trata de uma velha história... Ora, Rab era um homem honesto, apesar de procurador de província, e assustou-se menos do que se poderia esperar; perguntou ao espectro o que lhe desejava, mas este respondeu numa língua desconhecida; em seguida, Rab disse que experimentou falar-lhe em erse, porque viera na sua mocidade da região de Glenlivat; mas não se fez entender melhor; então, lembrou-se de duas ou três palavras latinas que aprendera nos processos da cidade, e mal tentara dizê-las ao espírito, logo este o inundou de súbito com um tal dilúvio de latim que o pobre Rab Tull, que não era muito forte nesse capítulo, ficou todo confuso. Contudo, não perdeu a cabeça, e lembrou-se do nome latino do documento que procurava, à força de ouvir o espectro gritar sempre carter, carter.
- Carta - emendou Oldbuck - não desnature a língua, por favor! Porque se o meu avoengo não aprendera outra no Outro mundo, é pelo menos provável
(1) Refere-se às calças em que uma pudica dama inglês" de outrora não falava. - N. do T.
que não tivesse esquecido o latim, pelo qual fora tão célebre neste.
- Pois bem, seja carta; mas os que me contaram a história disseram-me carter. Ele gritava sempre carta, visto que é carta, e fez sinal a Rab para o seguir. Rab tinha a coragem de um montanhês; saltou do leito, lançou mão às primeiras roupas que encontrou e seguiu a aparição escadas acima, escadas abaixo, até ao sítio a que nós chamamos pombal. É uma espécie de pequena torre à esquina da velha casa, onde havia uma porção de malas velhas e velhos baús; aí, o espectro arremessou Rab com um pontapé contra aquele velho armário gótico que meu irmão tem no seu gabinete perto da estante, e depois desapareceu como o fumo de um cachimbo, deixando o pobre Rab num estado deplorável.
- Ttennues secessit in auras (1) - disse Oldbuck Realmente, senhor, mctnsít odor(2); mas o que é certo é que o documento foi encontrado numa gaveta desse móvel esquecido, que continha vários papéis muito curiosos, cuidadosamente etiquetados e postos em ordem, e que parece terem pertencido ao meu avô, primeiro proprietário de Monkbarns. O documento encontrado de tão estranha maneira era a carta original da fundação da abadia de Trotcosey, das terras abaciais e assim, sucessivamente, de um senhorio soberano em favor do primeiro conde de Glengibber, favorito de James VI. Ostentava a assinatura do rei e a data de Westminster, do 17º dia de Janeiro anno Domini, ou ano da graça de 1612 ou 13. É inútil repetir o nome das testemunhas.
- Gostaria - disse Lovel, que começava a excitar-se - de conhecer a sua opinião sobre a maneira como esse documento foi descoberto.
- Mas, se eu tivesse necessidade de um apoio para a minha lenda, encontraria um nome não menos respeitável do que o do próprio Santo Agostinho, o qual conta a história de um personagem defunto que apareceu a seu filho, perseguido por uma dívida já paga, e lhe indicou onde se encontrava o roubo; mas confesso
(1) Desvaneceu-se no ar ligeiro - N. do T.
(2) O perfume ficou. - N. do T.
que sou antes da opinião de lorde Bacon, que disse que a imaginação tem muita parte na fé que damos a estes milagres. Sempre correram boatos acerca deste quarto, onde se pretendia que fazia a sua aparição o espírito do meu trisavô Aldobrand Oldenbuck; o meu trisavô ou o meu três vezes avô. É vergonhoso que na língua inglesa não tenhamos uma maneira menos ridícula de exprimir esta relação de parentesco de que tantas vezes temos ensejo de falar (1). Ele era estrangeiro e trazia o costume nacional de cuja tradição nos conservou uma descrição exacta; há mesmo uma gravura, atribuída a Reginald Elstracke, onde o apresentam a manobrar por suas mãos a prensa de onde saíram as folhas da sua edição rara da Confissão de Augsburgo. Ele era tão bom químico como mecânico, e cada uma destas qualidades bastava então para ser acusado de magia branca. O piedoso procurador supersticioso sabia tudo isto e provavelmente acreditava-o, e durante o seu sono a imagem e o pensamento do meu velho avô recordou a do velho armário, de que se tinham desembaraçado, atirando-o para o pombal, com o menosprezo que muitas vezes se mostra pelas antigüidades e pela memória dos nossos pais. Ajunte a tudo isto aquele qwntum sufficit de exagero, e terá a chave de todo o mistério.
- ó meu irmão, meu irmão! O senhor esquece o doutor Heavysterne, cujo sono foi tão horrivelmente interrompido, que declarou que não passaria outra noite no quarto verde, nem que lhe dessem todo o domínio de Monkbarns, se bem que Maria e eu fôssemos obrigadas a ceder-lhe o nosso...
- É preciso dizer, Grizel, que o doutor é um bom e honesto alemão de cabeça pesada, embora de muito mérito no seu género, mas que sempre foi admirador do místico e do maravilhoso, como todos os seus compatriotas. A senhora e ele não fizeram outra coisa essa noite senão falar dessa espécie de histórias; ele brindara-nos com os seus contos de Mesmer, de Shropfar e de Cagliostro, e outros que pretendem deter o segredo
(1) Para designar o parentesco de trisavô, o autor empregou esta palavra composta: great-great-great-grandfather. - N. do T.
de evocar os espíritos e descobrir tesouros, em troca das lendas do quarto verde que soubera por si. Ora, considerando que o ilustríssimo doutor comera libra e meia de picado escocês, à ceia, que fumara seis cachimbos e bebera ale e aguardente em proporção, não é muito de admirar que fosse assaltado por pesadelos. Mas tudo está preparado agora; permita-me que o alumie até o seu quarto, Mr. Lovel; tenho a certeza de que o senhor tem necessidade de sono, e espero que o meu trisavô conheça muito bem os deveres da hospitalidade para não perturbar o repouso que o senhor tanto merece pela sua brava e generosa acção.
Assim falando, o Antiquário pegou num castiçal de prata maciça e de forma antiga, o qual, observou ele, fora forjado com prata encontrada nas minas das montanhas de Harz e pertencera ao mesmo personagem que acabava de ser o tema da conversa. Concluindo assim, marchou à frente, cruzou diversas passagens sombrias e tortuosas, subiu e desceu várias vezes antes de chegar ao compartimento destinado ao seu jovem hóspede.
Quando a noite, na ausência da Lua, cobriu os céus com seu véu funéreo mas passageiro, à hora em que os mortais dormem, em que só os mortos velam e saem dos seus túmulos, nenhuma aparição cruel vem perseguir-me, nenhum pálido fantasma vem atemorizar-me no leito, mas, ai, minha imaginação confempla uma imagem ainda mais triste: é o fantasma da felicidade que há muito tempo me fugiu.
Quando chegaram ao quarto verde, pois é assim que lhe chamam, Oldbuck pôs a luz em cima da mesa de toilette, diante de um largo espelho com moldura negra do Japão e caixas semelhantes. Relanceou um olhar, com uma leve expressão de intranquilidade, e disse:
- Venho raras vezes a este aposento, mas nunca aqui entro sem experimentar a influência de uma sensação de tristeza, não certamente por causa das histórias pueris que Grizel lhe contou, mas pela recordação de circunstâncias ligadas a uma afeição da mocidade que não foi nada feliz. É em semelhantes momentos, Mr. Lovel, que nos apercebemos dos efeitos do tempo. Estão diante de nós os mesmos objectos esses objectos inanimados contemplámo-los nós nos dias da infância caprichosa, da mocidade ardente; da preocupada e empreendedora maturidade; permaneceram os mesmos: mas se os olhamos de novo quando já chegou a fria e insensível velhice, que poderemos dizer a nós próprios, mudados como estamos no carácter, nos gostos, nos sentimentos; mudados no aspecto das feições, da figura e das forças? Ou não deveremos antes lembrar-nos com espanto de que fomos outrora seres tão diferentes, tão distintos do que somos agora? O filósofo que chamava Filipe abrasado pelo vinho ao Filipe nas suas horas de sobriedade, não escolhia um juiz tão diferente como se chamasse Filipe jovem ao Filipe na sua velhice. Não posso deixar de me sentir comovido por estes sentimentos tão bem expressos num pequeno poema que ouvi recitar:
Sinto meus olhos cheios de lágrimas infantis; Sinto também meu coração loucamente, agitado; O mesmo som que escutava outrora Chega-me aos ouvidos, agora, no meio das colina".
Esta lisonjeira ilusão
Ainda perdura na velhice;
E no entanto a fria razão
Lamenta menos, em sua sabedoria, O que o tempo derruba na sua ceifa Do que o que deixa depois de passar.
"Pois bem, diz-se, cura todas as feridas, e embora a cicatriz fique e ainda por vezes possa ser dolorosa, já vai longe a primeira angústia que elas causaram.
Depois de assim falar, apertou cordialmente a mão de Lovel, desejou-lhe boa noite e deixou-o.
Lovel pôde contar cada passo do anfitrião, enquanto este se retirava ao longo das diversas passagens, e ouviu cada porta bater atrás dele com um ruído mais distante e mais surdo. Quando todo o rumor cessou e se encontrou por assim dizer separado dos vivos, pegou na luz e começou a examinar o aposento.
Um lume claro ardia na chaminé; Miss Grizel cuidara de que lhe deixassem madeira para o caso de ele querer alimentá-lo. Se o quarto não tinha um ar alegre, pelo menos nada faltava para que nele se estivesse à vontade. As paredes achavam-se cobertas por uma espécie de tapeçaria de Arras, do século XVI, e que o sábio tipógrafo de quem tantas vezes se falara, trouxera com ele como amostra das artes do continente. O assunto era uma partida de caça; e como as ramagens tufadas das árvores de uma floresta se estendiam pela tapeçaria e constituíam a sua cor dominante, dera-se àquele aposento o nome de quarto verde. Figuras gesticulantes, em velhos trajos flamengos, de gibões debruados de fitas, com mantos curtos e botas altas, ocupavam-se em suster os lebreus pela trela ou em incitá-los contra os animais que caçavam. Outros, com picos, espadas e espingardas de forma antiga, atacavam javalis e veados que tinham cercado. Os ramos das árvores estavam cobertos de aves de diversas espécies, cada uma representada com a plumagem que lhe era própria. Parecia que o artista flamengo fora animado daquela imaginação fecunda, daquela riqueza de invenção que distingue o nosso velho Chaucer. Assim, Oldbuck mandara bordar em letras góticas, numa espécie de debrum acrescentado à tapeçaria, os seguintes versos daquele antigo mas excelente poeta:
Aí descobrir os grandes robles, Tão direitos como freixos jovens, Ensombrando uma relva ridente. Cada árvore prospera e ergue-se, Separada da sua companheira, Rica de nova seiva, E bela de uma folhagem tenra, Dourada pelo sol nascente.
A outro canto estavam gravados ainda estes versos do mesmo autor:
Brinca em minha volta o veado ou o gamo, Escoltado pela cabra ou pelo bode selvagem; E o esquilo, empoleirado na árvore de verdes ramos, Trinca avelãs e ri-se da tempestade.
O leito era de um verde sombrio e seco, feito para dizer com a tapeçaria, mas trabalhado por mão mais moderna e menos hábil. As pesadas e enormes cadeiras estofadas, de espaldar de ébano, eram bordadas segundo o mesmo modelo, e um largo espelho, por cima da antiga chaminé, estava emoldurado como o do antigo toilette, ao qual correspondia.
- Diz-se - pronunciou Lovel a meia voz, ao examinar o quarto e o seu mobiliário - que os fantasmas escolhiam sempre o melhor aposento da casa onde se instalavam, e devo confessar que o espírito do impressor da Confissão de Augsburgo não tinha pior gosto do que os outros.
Contudo, agitado pelos seus próprios desgostos, não lhe foi possível concentrar a atenção nas histórias que acabava de ouvir acerca de um aposento para o qual elas pareciam tão bem feitas que ele quase lamentava a ausência dessas agitações, excitadas em parte pelo medo, em parte pela curiosidade, que suscitam estes velhos contos em que o assustador se mistura com o sobrenatural, mas cujas inquietações demasiado reais, ligadas a uma paixão infeliz, o tornavam nesse momento incapaz. Essas comoções eram todas semelhantes às que se encontram expressas nestes versos:
Ai, quanto, cruel donzela,
Tua presença mudou meu coração!
Ele foi seduzido pela tua doçura;
E agora que te chamo,
Do teu sofro o rigor.
Ele procurou em vão dar ao seu espírito uma disposição análoga à situação em que se encontrava; seu coração, porém, não podia prestar-se às conveniências da sua imaginação. A imagem de Miss Wardour, resolvida a não o reconhecer quando não pôde evitar o seu convívio, e mostrando desejo de lhe fugir, bastaria para o ocupar exclusivamente. Mas recordações que, por serem menos penosas, não o perturbavam menos vivamente, juntavam-se ainda para o agitar. A maneira milagrosa como Miss Wardour escapara à morte, o serviço que ele tivera a felicidade de lhe prestar e que ela tão mal lhe pagara "(pois não abandonara ela o rochedo num momento em que ainda era incerto que o seu salvador conservasse a vida, que por ela não receara expor? seguramente tudo isto pedia, ao menos, que revelasse algum interesse pela sua sorte... Mas era bem ela que se mostrava egoísta e injusta? Não, tais defeitos não pertenciam à sua alma. Sem dúvida, queria ela por este meio aniquilar-lhe toda a esperança e, por piedade por ele, extinguir uma paixão que ela nunca poderia partilhar.
Estes raciocínios, porém, dignos de um amante, não eram nada apropriados para o reconciliar com a sua sorte, visto que, quanto mais lhe apresentavam Miss Wardour pela feição estimável, menos sentia poder conformar-se com a perda das suas esperanças. Ele sabia que em certos pontos tinha maneira de dissipar os preconceitos que ela alimentava a seu respeito; mas neste mesmo extremo, e antes de se arriscar a parecer-lhe importuno com tais esclarecimentos, resolveu primeiro certificar-se, segundo o seu primitivo pro"jecto, de que ela própria os desejaria. No entanto, examinando as coisas por todos os lados, não podia decidir-se a abandonar toda a esperança; porque, através da surpresa e da gravidade de Isabel quando lhe foi apresentado por Oldbuck, ele notara um leve cambiante de embaraço, e, pensando bem nisso, podia ser que fosse para lho ocultar que ela dera ao seu olhar aquela expressão severa. Não podia resolver-se a renunciar a um amor que já lhe causara tanto desgosto; e projectos tão romanescos como ia cabeça que os concebera sucederam-se uns aos outros no seu espírito, e, por muito tempo depois de se ter deitado, impediram-no de desfrutar do repouso de que tinha tanta necessidade.
Por fim, cansado pela incerteza e pelos obstáculos que envolviam cada um dos seus planos, decidiu-se ao penoso esforço de vencer a sua paixão, expulsar o amor da sua alma, como; o leão que sacode as gotas do orvalho caídas na sua juba, no dizer de Shakspeare e retomar os estudos e a carreira que aquele amor tão mal correspondido o obrigara a abandonar, havia tanto tempo, e procurou firmar-se nesta última resolução por todos os motivos que o orgulho, bem como a razão, lhe oferecia.
- Ela não suporá - disse ele - que, valendo-me de um serviço acidental prestado a ela e a seu pai, quero tentar atrair sobre mim uma atenção à qual não me julga com qualquer direito. Não a verei mais, regresso àquele país onde, se não existe mulher que a ultrapasse em beleza, haverá talvez quem a iguale e, pelo menos, de orgulho menos intransigente. Amanhã quero dizer adeus a este frio clima e àquela que encontrei ainda mais fria e mais severa.
Depois de ter pensado por algum tempo nesta heróica resolução, cedeu por fim ao esgotamento e à fadiga, e, em despeito da sua cólera, das suas dúvidas e das suas inquietações, acabou por adormecer.
É raro que o sono que se segue a agitações tão violentas seja profundo e reparador. O de Lovel foi perturbado por mil visões confusas e estranhas. Tão depressa ele era uma ave, tão depressa um peixe, ou pelo menos ele voava como uma e nadava como outro faculdades que lhe teriam sido muito úteis algumas horas antes. Depois, Miss Wardour era uma sereia ou "ma ave do paraíso; seu pai era um tritão ou uma gaivota, e Oldbuck alternadamente um golfinho ou um corvo marinho. Estas agradáveis imagens eram acompanhadas de todas as características inerentes aos Sonhos que se experimentam durante a febre; o ar recusava-se a suportá-lo... a água escaldava... as rochas contra as quais era arremessado pareciam-lhe almofadas de penas... tudo o que ele empreendia se malograva de qualquer maneira inesperada e estranha, e tudo o que lhe atraía a atenção, quando queria examiná-lo mais de perto, sofria alguma metamorfose assustadora ou esquisita, enquanto o seu espírito conservava sempre uma espécie de instinto da ilusão de que em vão se esforçava por livrar-se pelo despertar... todos os sintomas de febre, que todos os que são atreitos a pesadelos (a que os sábios chamam Efialtes) conhecem tão bem. Por fim, porém, esta fantasmagoria desconexa e inconsequente tomou uma forma mais regular, se acaso a imaginação de Lovel (pois não era a faculdade que menos lhe faltava) não arranjou ao seu despertar, insensivelmente, sem intenção e mesmo sem se aperceber, uma cena da qual o seu sono não lhe apresentava senão um esboço mais confuso; ou talvez ainda a agitação da febre o ajudasse a formar essa visão.
Mas, deixando aos sábios esta questão, diremos que, após uma sequência de imagens extravagantes tais como as que descrevemos, o nosso herói (pois é preciso confessar que é o nosso herói) retomou suficiente conhecimento dos locais para se lembrar onde estava, e a mobília do quarto apresentou-se de novo aos seus olhos cheios de sono. Que me seja permitido aqui protestar mais uma vez que, se nesta geração perspicaz e céptica ainda existem pessoas que conservaram intacta a boa fé dos antigos tempos para acreditar que o que se segue foi uma visão mais do que um sonho, não serei eu quem atacará a sua crença.
Lovel estava, pois, ou imaginava estar de olhos completamente abertos no quarto verde, e fixando-os na chama passageira e cintilante que lançavam de vez em quando os restos das achas ainda não queimadas, à medida que caíam uma após outra sobre o bocado de brasa vermelha que a madeira que acabava de ser sumida formara, apagando-se. Insensivelmente, a lenda de Aldobrand Oldenbuck e suas misteriosas visitas ocuparam de novo o seu espírito, e excitaram, como sucede muitas vezes nos sonhos, uma expectativa inquieta e dolorosa que raramente deixa de apresentar à imaginação o objecto que causa receios. Faúlhas mais vivas escaparam-se da chaminé e lançaram uma luz tão brilhante que o quarto se iluminou, a tapeçaria agitou-se estranhamente na parede, até que as figuras sombrias que a cobriam começaram a animar-se. Os caçadores sopraram a trompa, o veado desatou a fugir, o javali a defender-se e os cães a assaltar um e a perseguir o outro. Os gritos do gamo esfacelado pelos cães furiosos, os brados dos homens e o tropel dos cavalos pareciam envolvê-lo todo ao mesmo tempo, enquanto cada grupo prosseguia com todo o ardor da caça a ocupação em que o artista os representara.
Lovel contemplava aquela estranha cena sem espanto (raramente o experimentamos nos sonhos), mas com uma inquieta sensação de terror. Por fim, uma só figura entre todas as dos caçadores, no momento em que os olhava com mais atenção, pareceu destacar-se da tapeçaria e aproximar-se do seu leito. Ao vê-lo mais de perto, o seu rosto pareceu mudar; a trompa que tinha na mão transformou-se num livro fechado por fivelas de cobre; o seu boné de caça tomou a forma das gorras guarnecidas de peles com que Rembrandt cobriu a cabeça dos seus burgomestres. O seu trajo flamengo não se modificou, mas as suas feições, deixando de ser agitadas pelo furor da caça, tomaram aquela expressão severa e imponente que parecia dever convir aos primeiros proprietários de Monkbarns, segundo o retrato que deles traçaram os seus descendentes durante o serão anterior.
Consoante esta metamorfose se operava, o ruído e o movimento cessaram entre as outras personagens da tapeçaria na imaginação do sonhador, então exclusivamente ocupado com o vulto que se aproximara. Lovel tentou interrogar esse terrível personagem por meio de um exorcismo adequado à circunstância, mas sua língua, como é de uso nos sonhos aterradores, recusou-lhe esse serviço e permaneceu imóvel, pregada ao céu da boca. Aldobrand levantou o dedo no ar, como que para impor silêncio ao hóspede presunçoso que viera apossar-se do seu quarto, e começou a abrir com lentidão as fivelas que fechavam o venerável volume. Quando o livro ficou aberto, passou vivamente as folhas durante algum tempo, depois, endireitando-se a toda a altura do seu vulto e conservando o livro aberto na mão esquerda, apontou o passo de uma página. Apesar do idioma ser ignorado do nosso sonhador, seus olhos e sua atenção foram fortemente atraídos para a linha que o vulto parecia querer fazer notar, e cujos caracteres, brilhantes como uma luz sobrenatural, ficaram profundamente gravados na sua memória, No momento em que a aparição fechou o volume, os sons de uma música deliciosa encheram o aposento. Lovel estremeceu, e acordou completamente. A música, porém, continuou a fazer-se ouvir, e não tardou que ele não reconhecesse distintamente a cadência de uma velha ária escocesa.
Sentou-se na cama e tentou expulsar da cabeça os fantasmas que o tinham perturbado durante toda aquela noite fatigante. Os raios de um sol matinal mostravam-se através dos batentes de madeira da janela meio fechados do seu quarto, e difundiam claridade suficiente. Ele relanceou um olhar pela tapeçaria; mas os diversos grupos de caçadores que ali estavam tecidos em seda, ali ficaram tão imóveis quanto os puderam fixar os pregos que prendiam o tapete, ligeiramente agitado pelo vento matinal que, penetrando por uma fenda da janela gradeada, vinha roçar pela sua superfície.
Lovel saltou para fora do leito e envolveu-se num roupão que tiveram a previdência de colocar junto dele; aproximou-se da janela que dava para o mar, cujas vagas ruidosas anunciavam que ainda estava agitado pela tempestade da noite anterior, embora a manhã fosse calma e serena. A janela de uma torrinha que avançava saliente de uma esquina da parede, e que se encontrava assim muito perto do quarto de Lovel, achava-se meio aberta, e de lá ainda vinha a mesma música que provavelmente interrompera o seu sono. Ao deixar de pertencer à sua visão, ela perdera muito dos seus encantos, e agora não passava de uma ária bastante aceitàvelmente executada ao piano. Porque assim é o capricho da imaginação relativamente à influência das Belas-Artes. Uma voz de mulher cantava com gosto e simplicidade as estâncias seguintes, cujo efeito tinha tanto de hino como de canção:
Para que ficar sobre as ruínas Deste monumento antigo, Velho cuja cabeça embranquecida Ostenta suas dores pungentes? Recordas o teu esplendor? Ou ainda pensas na tua dor?
Bem devias reconhecer-me,
Respondeu sua voz austera,
A mim que em tudo reino como senhor,
A mim que teu orgulho mil vezes
Acusa antes de desaparecer.
Ante o meu sopro destruidor,
Tal como a palha incendiada,
O homem de honrarias insaciável
Some-se como o fumo.
Sou árbitro dos humanos;
E os tronos, frutos de minhas mãos,
Caem sob a minha vara irada.
Aproveita, pois, os teus instantes Enquanto minha ampulheta dura; E lembra-te de que teus tormentos Ou tua alegria e seus doces pendores, Acabam com o decorrer do Tempo, Para quem tudo morre e se consome.
Enquanto se cantavam estes versos, Lovel regressara ao seu leito; despertaram nele uma série de pensamentos romanescos e agradáveis, tais como o espírito se comprazia em criar, e, adiando para o resto do dia a escolha ainda incerta da resolução que ia tomar, abandonou-se à doce languidez causada pela música, e não foi acordado senão muito tarde pelo velho Caxon, que deslizava no seu aposento para lhe oferecer seus serviços na qualidade de criado de quarto.
- Senhor, escovei o seu fato - disse o velho, ao ver que Lovel estava acordado -O rapaz trouxe-o esta manhã de Fairport, porque aquele que tinha ontem mal secara, embora ficasse toda a noite junto do lume da cozinha, e limpei os seus sapatos. Suponho que o senhor não precisa de que eu ate os seus cabelos, porque todos os jovens gentlemen os usam curtos agora - ajuntou ele com um meio suspiro - Mas trouxe aqui o ferro de frisar para os virar um pouco sobre a testa, se quiser, antes de aparecer diante daquelas damas.
Lovel, que entretanto se levantara, recusou os serviços do bom homem no que se referia ao seu ofício, mas acompanhou a sua recusa de uma gratificação que muito suavizou o desgosto de Caxon.
- É pena que ele não queira frisar e empoar o cabelo - disse o antigo cabeleireiro, quando se encontrou de novo na cozinha, na qual, sob qualquer pretexto, ele passava três quartos do tempo em que não tinha nada que fazer -É pena, porque é um bonito rapaz.
- Quer calar-se, velho cuco? - disse Jenny Rintherout - Quer ir engraxar os seus belos cabelos castanhos com o seu óleo vil e depois empoá-los como a peruca do velho pastor? Olhe, pense antes em almoçar, não se deve zangar com isso, ia apostar; eis uma boa tijela de parritch (1) para si, e o senhor faria melhor se a comesse com leite coalhado do que ocupar-se do penteado de Mr. Lovel. com certeza que o senhor seria capaz de estragar a melhor cabeleira do condado e da cidade de Fairport.
O pobre barbeiro suspirou, ao pensar no menosprezo em que a sua arte caíra; mas Jenny era uma pessoa demasiado importante para que uma pessoa se arriscasse a ofendê-la, contradizendo-a. Sentou-se, pois, sossegadamente na cozinha, engolindo ao mesmo tempo a sua mortificação e o conteúdo de uma tijela cheia de uma espessa cozedura de farinha de aveia que ela acabava de lhe entregar.
Por vezes, julga que é o Céu quem lhe envia aquela visão, assim como todas as que sucessivamenfe vêm surpreender o seu olhar; por vezes, toma-as por caprichos da imaginação em delírio, por recordações confusas e sem nexo das imagens que o preocuparam duranfe o dia.
Anonimo
Devemos pedir agora ao leitor que passe ao locutório onde se servira o pequeno almoço de Mr. Oldbuck, que, desprezando o chá e o café, preferia a essas beberagens modernas uma alimentação mais sólida, e se regalava com fatias frias de vaca assada, acompanhadas de uma espécie de licor chamado mum, fabricado com cevada e ervas amargas, e que se assemelhava muito a ale forte. Esta bebida é inteiramente desconhecida
(1) Prato escocês composto de farinha de aveia com leite. N. do T.
da actual geração, e apenas se pode encontrar o seu nome nas actas dos rendimentos do Parlamento, entre os de cidra e perry (1) e outros licores sujeitos a imposto. Lovel, que foi convidado a provar teve dificuldade em conter-se que não a declarasse detestável; mas, no entanto, conseguiu-o, porque viu que ofenderia gravemente seu hóspede, o qual mandava preparar este licor todos os anos com um cuidado muito especial, segundo uma receita que provinha daquele Aldobrand Oldenbuck de quem já se falou tantas vezes. Graças aos cuidados hospitaleiros das damas, Lovel teve um almoço mais adequado aos gostos actuais, e enquanto tomava a sua parte, foi assaltado por perguntas indirectas sobre a maneira como passara a noite.
- Não podemos cumprimentar Mr. Lovel esta manhã pelo seu bom parecer, meu irmão - proferiu Miss Oldbuck - E embora ele não queira confessar que alguma coisa o perturbou esta noite, o certo, porém, é que está muito pálido, ao passo que, quando chegou, achava-se fresco como uma rosa.
- Mas pense, minha irmã, que essa rosa de que fala foi batida por ventos e tempestades, sem mais respeito do que por um molho de espinhos; como diabo quer que ele tenha conservado as suas cores?
- É certo - disse Lovel - que ainda estou um pouco fatigado, apesar do excelente acolhimento que me fez a vossa hospitalidade.
- Ah! - observou Miss Oldbuck, olhando-o com um sorriso significativo ou que, pelo menos, procurava torná-lo como tal - Por delicadeza, o senhor não quer confessar que foi molestado.
- A verdade, minha senhora, é que não sofri qualquer incômodo; pois não posso chamar assim à música com que uma fada benfazeja me brindou.
- Eu bem suspeitava de que Maria o acordava com as suas canções. Ela não sabia que eu deixara uma abertura na sua vidraça; porque, além do fantasma, ainda há fumo no quarto verde por ocasião dos grandes ventos. Mas presumo que esta noite o senhor ouviu mais alguma coisa do que as árias de Maria.
(1) Bebida feita de sumo de pera. - N. do T.
Em verdade, é preciso que os homens sejam bem corajosos para suportar tudo isso. Quanto a mim, se tivesse de sofrer provas dessa natureza, isto é, fora das leis da Natureza, teria começado por gritar de maneira a fazer acordar toda a casa, quaisquer que fossem as conseqüências; e apostaria em como o pastor faria outro tanto, como já lhe disse. Eu não conheço senão meu irmão Monkbarns que possa resistir a coisas semelhantes, a não ser o senhor, Mr. Lovel.
- Minha senhora, um homem tão sábio como Mr. Oldbuck - respondeu o jovem - não está exposto aos mesmos inconvenientes do procurador de que me falou ontem à noite.
- Ah! Ah! O senhor compreende agora onde reside a dificuldade? Está em perceber a sua linguagem, não é verdade? Mas, quanto a meu irmão, ele tem maneiras de falar e de proceder que afugentariam todos os espectros do condado; e no entanto não gosta de ser indelicado, mesmo com um fantasma. Mas se alguém ainda tiver de dormir naquele quarto, estou decidida, meu irmão, a aplicar aquela receita que me mostrou um dia no seu livro, embora realmente eu pense que, por caridade cristã, fosse melhor mandar atapetar o quarto. É um pouco húmido e pouco claro; mas nós raramente precisamos de um leito de hóspedes!
- Não, não, minha irmã, receio mais a humidade e a falta de luz do que os próprios espectros. Os
outros são espíritos de luz; prefiro que a senhora recorra ao encantamento.
-Fá-lo-ia da melhor vontade, Monkbarns, se tivesse os ingredientes, palavra de que se serve o meu livro de cozinha. Havia a verbena e o endro, isso recordo-me; Davie Diblle deve conhecer isso, embora talvez lhe dê nomes latinos; e depois pimentão. Têmo-lo em quantidade.
- Hipericão, e não pimentão, sua louca! - exclamou Oldbuck, encolerizado - Julga que se trata de um molho picante, ou imagina que um espírito, lá porque é feito de ar, possa ser repelido por uma receita contra os ventos? Minha muito sábia irmã lembra-se, com uma exactidão de que Mr. Lovel vai ser testemunha, de um encantamento de que lhe falei uma vez, e que, tendo impressionado a sua cabeça supersticiosa, nela ficou melhor gravado do que qualquer outra coisa com um fim mais útil que lhe tivesse repetido durante dez anos. Mas mais de uma velha como ela...
- Velha, Monkbarns! - exclamou, interrompendo-o Miss Oldbuck, saindo um pouco fora dos limites da sua submissão habitual - Francamente, o senhor não é nada delicado comigo.
- Não sou senão justo, Grizel; no entanto, eu incluo na mesma classe mais de um nome bem sonoro, desde Jâmblico até Aubrey, tudo pessoas que perderam o seu tempo a imaginar remédios contra os males quiméricos. Mas espero, meu jovem amigo, que, sob encantamento ou não, protegido pelo poder do hipericão,
Da verbena e do endro
Que afrontam todo o poder oculto ou exposto de novo sem defesa às excursões do mundo invisível, o senhor desafie pela segunda vez os terrores do aposento encantado, e conceda outra noite aos seus amigos fieis e leais.
- Desejá-lo-ia de todo o meu coração; mas...
- Vamos, nada dos seus mas, eu resolvi que o senhor ficasse.
- Fico-lhe extremamente agradecido, meu caro senhor; mas...
- Quê? Ei-lo outra vez com o seu mas! Saiba que detesto essa palavra; não conheço forma de expressão, sob a qual ele me possa parecer suportável; mas é para mim uma combinação de letras mais odiosa do que o próprio não. Não assemelha-se a um franco e honesto rapaz um pouco brusco, que diz o que pensa sem consideração por ninguém, e caminha direito ao objectivo sem se deter; mas é uma espécie de conjunção artificiosa, um pretexto, uma desfeita delicada que nos vem arrebatar o copo no momento em que o levamos aos lábios:
Basta de mas! essa palavra envenena
Todo o bem que a -precedeu;
É, para quem quer que deduza,
Como um carcereiro decidido,
Que nos anuncia em pessoa
O criminoso que ele conduza.
- pois bem, então - disse Lovel, ainda hesitante sobre o que devia fazer -o senhor não associará a uma partícula tão insociável a recordação do meu nome. Receio ser em breve obrigado a abandonar Fairport; e visto o senhor ser tão bom que o deseja, aproveito esta ocasião para passar outro dia consigo.
- E será recompensado, meu rapaz. Primeiro, verá o túmulo de John Girnel; depois, iremos sossegadamente ao longo da praia (depois de primeiramente nos termos informado do estado da maré; porque estamos fartos de aventuras desse género) até o castelo de Knockwinnock, para saber notícias de sir Arthur e da minha bela inimiga; é uma atenção que lhes devemos, e depois...
- Peço perdão, meu caro senhor; mas talvez fizesse melhor em retardar a sua visita até amanhã; não passo de um estrangeiro, e...
- Por esse mesmo motivo deve ser mais delicado, em minha opinião. Mas peço desculpa se me sirvo de uma palavra que talvez não convenha a um amador de antigüidades. Sou da velha guarda, eu,
Desse bom tempo em que, plenos de entusiasmo,
Os jovens, em sua ternura,
Voavam de condado em condado
Para obter com singeleza
um só olhar dessas beldades
A quem, no baile, sua nobre destreza
Guiava os passos precipitados;
E certificar-se, apesar da neblina,
Que depois de então essas deidades
Não apanharam uma constipação.
- Bem! Se o senhor acha que é uma coisa aceitável Creio que o melhor é ficar.
- Vamos, vamos, meu bom amigo, tão-pouco estou no caso de insistir numa coisa que lhe pode ser desagradável. Para que eu renuncie a isso, basta-me descobrir alguma remora, algum motivo de repugnância, algum obstáculo de que eu não tenho o direito de me informar. Talvez o senhor ainda esteja fatigado? Nesse caso, prometo-lhe que encontrarei maneira de ocupar o seu espírito sem cansar as suas pernas. Eu próprio não sou partidário de um exercício violento; um passeio no jardim uma vez por dia, é tudo quanto basta a todo o ser pensante; só um néscio ou um caçador pede mais. Vejamos, por onde vamos começar? pelo meu Ensaio sobre a arte dos acampamentos? Não, reservo isso para a nossa tarde cordial: mostrar-lhes-ei antes a controvérsia entre mim e Mac-Cribb sobre os poemas de Ossian. Eu sou pelo penetrante adversário Orcadian, ele pelos partidários da autenticidade. A discussão começou em termos polidos e brandos; mas consoante avançávamos, a vivacidade e a acrimónia foram-se misturando; ela já pouco tem do estilo do velho Scaliger. Temo que o meu adversário venha a descobrir essa história de Ochiltree; mas, em todo o caso, tenho a minha réplica pronta a respeito daquela desaparição de Antígona. Vou mostrar-lhe a sua última epístola e a minuta da minha resposta; verá que é um homem que nada entre duas águas.
Ao dizer estas palavras, o Antiquário abriu uma gaveta e começou a folhear uma mistura considerável de papéis antigos e modernos. O nosso sábio tinha a infelicidade, como tantos outros sábios e não sábios, de se encontrar, em tais circunstâncias, no embaraço, das suas riquezas; em outros tempos, a abundância da sua colecção impedia-o muitas vezes de encontrar o objecto que procurava.
- Malditos sejam os papéis! - praguejou Oldbuck, misturando-os ainda mais - Creio que arranjam asas para voarem aos bandos como gafanhotos. Mas, olhe, entretanto, veja este pequeno tesouro.
Assim falando, depôs nas mãos de Lovel uma caixa de carvalho, ornada nos quatro cantos de placas de prata cinzelada.
- Carregue nesse botão - acrescentou ele, ao notar que o jovem procurava a mola.
Ele obedeceu, a tampa levantou-se, e revelou-lhe um magro in-quarto curiosamente encadernado em marroquim preto.
- Mr. Lovel, eis a obra de que lhe falei ontem à noite; é o raro in-quarto da Confissão de Augsburgo; o alicerce e a muralha da reforma, erguidos pelo venerável Melanchton, defendidos pelo eleitor de Saxe e os outros valentes guerreiros que se reuniram para sustentar a sua fé, mesmo contra um imperador póderoso e triunfante; foi esse escrito impresso pelo não menos venerável e recomendável Aldobrand Oldenbuck, meu feliz trisavô, durante as campanhas tirânicas de Filipe II para algemar ao mesmo tempo a liberdade civil e a liberdade religiosa. Sim, senhor, foi por ter imprimido esta obra que esse homem superior foi expulso da sua pátria ingrata e forçado a estabelecer, os seus deuses penates em Monkbarns, mesmo no meio das ruínas da superstição e do domínio papal. Veja essas veneráveis efígies, Mr. Lovel, e respeite a honrada ocupação em que ele está representado a trabalhar pessoalmente na prensa para a divulgação da instrução cristã e política; veja aqui a sua divisa favorita e que exprime tão bem a sua independência, e aquela confiança nos seus próprios meios, que desdenhava dever à protecção o que não fora concedido ao mérito, e que não exprime menos aquela firmeza de espírito e aquela tenacidade de intenção recomendadas por Horácio. Era em realidade um homem que não se podia abalar, mesmo que toda a sua tipografia as suas impressoras, as suas formas, os seus grandes e pequenos caracteres se despedaçassem em sua volta. Leia, por favor, a sua divisa; porque cada impressor tinha a sua, quando esta arte ilustre nasceu. A do meu antepassado exprimia-se, como vê, por esta frase teutónica: Kunst Macht Gunst, isto é, que a habilidade e a prudência de nos servirmos das nossas vantagens e dos nossos talentos naturais acabassem por conquistar a aprovação e o favor que os preconceitos ou a ignorância nos tinham primeiro arrebatado.
- E é isso - disse Lovel, após um momento de silêncio pensativo - é isso o que significam estes caracteres germânicos?
- Sem dúvida alguma. O senhor compreende a sua justa aplicação a um sentimento de mérito interior, e de excelência de uma arte útil e estimável. Todos os impressores desse tempo tinham a sua divisa impressa, se assim lhe posso chamar, tal como cada brioso cavaleiro do mesmo século que frequentava as justas e os torneios. O meu antepassado orgulhava-se tanto disso como se a desfraldasse no campo de batalha conquistado ao inimigo, embora fosse o emblema da difusão das ciências e não da efusão de sangue. E no entanto nós temos uma tradição de família que atribui a escolha que ele fez a uma circunstância bastante romanesca.
- E qual foi essa circunstância, meu caro senhor?
- perguntou o jovem.
- Devo confessar-lhe que é uma história que altera um pouco a reputação de prudência e de sensatez do meu respeitável avoengo; sed semel insanivimus omnes; mas não há homem que não fosse louco uma vez na sua vida. Diz-se que esse meu avô, quando estava em aprendizagem em casa de um descendente daquele velho Fust, que a tradição popular mandou para o diabo sob o nome de Fausto, se enamorou de um rostozinho simpático de rapariga: era a filha do seu mestre, que se chamava Berta. Fizeram juramentos recíprocos, trocaram aneis, enfim, não esqueceram nenhuma das frivolidades vulgares em semelhantes circunstâncias. Em breve, depois de Aldobrand partir para percorrer a Alemanha, como convinha a um honrado artífice; porque era o costume de então todos os que tinham um ofício irem exercê-lo por algum tempo em cada uma das maiores cidades do império antes de abrir um estabelecimento para a sua vida. Era um costume muito atilado, porque esses artífices viajantes eram recebidos por toda a parte como irmãos pelos do seu próprio ofício, e não podiam deixar de adquirir mais saber ou de comunicá-lo aos outros. No seu regresso de Nuremberga, diz-se que meu avô soube da morte recente do seu mestre e encontrou vários jovens galantes, daqueles rebentos arruinados, de velhas famílias sem dúvida, que cortejavam, em concorrência uns com os outros, a jovem cujo pai lhe deixava, segundo se dizia, uma fortuna que podia bem equivaler a dezasseis quartos de nobreza. Entretanto, Berta, que não era a pior amostra do seu sexo, jurava não desposar senão aquele que pudesse fazer funcionar a imprensa de seu pai tão habilmente como este. Como a habilidade e o saber eram muito raros nesses tempos, este expediente desembaraçou-a da maior parte dos pretendentes, que eram tão capazes de manejar uma varinha mágica como o componedor. Alguns tipógrafos vulgares também prestaram a sua prova; nenhum teve, porém, artes de sair vitorioso. Mas estou a aborrecê-lo, talvez?
- Absolutamente nada; continue, peço-lhe, Mr. Oldbuck; escuto-o com o maior interesse.
- Ah! No entanto, tudo isto não passa de uma loucura. Aldobrando apresentou-se com o trajo habitual de um operário impressor; era o mesmo com o qual atravessara a Alemanha e conversara com Lutero, Melanchton, Erasmo e outros sábios que não desprezaram os seus conhecimentos e a arte que possuía de os propagar, embora oculto sob um vestuário tão grosseiro. Mas ninguém se admirara de que o que parecera respeitável aos olhos da sabedoria, da religião, da ciência e da filosofia, parecesse baixo e repugnante aos de uma mulher vaidosa e frívola. Berta recusou-se então a reconhecer o seu antigo namorado sob a veste rasgada, o gorro de pele, o avental de couro e os sapatos ferrados de artista viajante. No entanto, ele reclamou o privilégio de ser admitido à prova, e, depois de todos os outros pretendentes se terem recusado a tentá-la ou terem feito uma bodega que nem o próprio demónio poderia ler, todos os olhos se volveram para o estranho. Aldobrand avançou então graciosamente, alinhou os caracteres sem omissão de uma simples letra, de uma vírgula ou de um ponto, colocou-os na prensa sem desalinhar um só espaço, e tirou a primeira folha tão nítida e tão isenta de erros como se fosse uma quarta prova. Todos aplaudiram o sucessor do imortal Fust. A jovem corou, e reconheceu que se enganara ao fiar-se mais no julgamento dos seus olhos do que no do seu bom-senso. Foi então que o feliz noivo escolheu para sua divisa estas palavras adequadas à situação: a habilidade conduz ao êxito. Mas, que tem o senhor? Ei-lo numa sombria meditação. Vamos, eu bem lhe disse que era uma conversa muito fútil para seres pensantes. Encontrei agora a minha polêmica ossiânica.
- Peço-lhe desculpa - disse Lovel - vou sem dúvida parecer-lhe extravagante e caprichoso, Mr. Oldbuck; mas se é verdade, como o senhor disse ainda agora, que a delicadeza exige que faça uma visita a sir Arthur...
- Ora, ora! Eu posso desculpá-lo; e depois, se o senhor pensa em breve abandonar-nos, que lhe importa estar tanto nas suas boas graças? Aliás, eu adverti-o de que o meu Ensaio sobre a arte dos acampamentos é um pouco prolixo, e ocupará tempo que nos restar depois do jantar; o senhor arrisca-se a perder a polêmica ossiânica, se não lhe consagrarmos toda a manhã.
Vamo-nos instalar lá em baixo, à sombra do meu berço favorito, sob uma árvore sagrada, e lemos isso fronde super viriã.
Cantemos o azevinho e sua verdura Porque a amizade, como o amor, Não brilha muitas vezes num só dia, E nada neste Mundo, nada dura.
Mas, que diabo! - continuou o velho gentleman, interrompendo a sua canção - Observando-o de mais perto, começo a julgar que o senhor é de outra opinião. Se é -assim, amem de todo o meu coração; não me prendo com as manias de cada um, contanto que elas não embatam nas minhas, de contrário, cuidado com os seus olhos! Mas, vejamos, que diz o senhor? Em linguagem do Mundo e dos seus vis habitantes, se puder descer a uma esfera tão humilde, vamos ou não?
- Pois bem, na linguagem do egoísmo, que também é a do Mundo, vamos, se isso não o incomoda.
- Amen! Amen! como diz o oficial da coroa - respondeu Oldbuck, trocando as pantufas por um par de fortes sapatos reforçados por polainas de pano negro.
Não interrompeu o passeio senão com um leve desvio que os conduziu ao túmulo de John Girnel, tido como o último bailio da abadia que morreu em Monkbarns. Sobre uma pequena colina cujo pendor aprazível se estendia brandamente para o Sul, e de onde a vista, depois de se ter detido em dois ou três lugares, podia abarcar uma extensão distante do mar e do Musselcrag, sob as frondes de um velho roble, achava-se uma pedra coberta de musgo, colocada em memória do falecido bailio. Tinha uma inscrição, na qual, segundo Mr. Oldbuck (embora muita gente o duvidasse), os caracteres apagados apresentavam este sentido:
Aqui jaz o douto John Girnel, O galo, em baixo, o proclama ao céu. Aos sessenta anos ainda era querido Das crianças e das mulheres.
Dividia os seus potes de cerveja
Em cinco partes: quatro para a Igreja,
Dizia ele, ou antes para o episcopado,
E a quinta ou última
Para a carinha mais gentil.
- Veja - disse o Antiquário - até que ponto o autor deste epitáfio era modesto; limita-se a dizer-nos que John dividia em cinco partes, em vez de quatro, a medida da cerveja; que dava a quinta às "mulheres ou à carinha mais gentil da paróquia, e dava conta das outras quatro ao abade e ao cabido; que no seu tempo as galinhas punham sempre, e que o diabo podia agradecer-lhes se elas comessem um quinto das rendas da abadia; que nunca faltavam ao bom homem crianças em torno da sua lareira, coisa tão espantosa como esta série de milagres. Mas deixemos aí John de Girnel e avancemos para a beira do areal, onde o mar, qual inimigo em repouso, abandona agora o terreno onde nos deu batalha ontem à noite.
Assim falando, encaminhava-se para o lado das areias. Havia sobre as dunas que eles marginavam quatro ou cinco choças habitadas por pescadores cujos barcos estavam varados na praia. Sob a influência dos raios de um sol escaldante, um vapor de alcatrão misturava o seu cheiro com o que exalavam os restos de peixe e outras imundícies geralmente acumuladas em volta das cabanas escocesas. No meio desta atmosfera infecta, da qual parecia não se aperceber, uma mulher de meia idade, cujo rosto dir-se-ia ter desafiado mil tempestades, remendava uma rede à porta de uma dessas cabanas. Trazia um lenço enrolado na cabeça; e um fato, que outrora pertencera a um homem, dava-lhe um ar másculo que mais aumentava a sua força, a sua alta estatura e a dureza da sua voz.
- De que precisa hoje Vossa Honra? - perguntou ela, ou antes, bradou ela a Oldbuck -Quer bacalhau ou pescadinhas, solhos ou patrúcias?
- A como são os solhos e as patrúcias? -indagou o Antiquário.
- Quatro belos xelins e meio - respondeu a náiade.
- Quatro diabos que a levem! - exclamou o Antiquário - Julga que eu sou doido, Maggie?
- E o senhor julga - retorquiu o virago, de punhos
cerrados nas ancas - que o meu homem e Os meus rapazes podem ir ao mar, com um tempo como o de ontem e de hoje, com um mar como o que ainda está agora, e dar o seu peixe por nada e ainda por cima ouvir razões? Não é o peixe o que o senhor compra, Monkbarns, é a vida dos homens.
- Olhe, Maggie, eu ofereço-lhe um preço razoável; dou-lhe um xelim por cada dois peixes, ou seis penes por cada um separadamente; e se todo o seu peixe for assim bem pago, o seu homem e os seus rapazes não terão feito má viagem.
- Antes o diabo espatifasse o barco contra o Bell Rock, e das duas -ainda seria a melhor viagem. Pode-se oferecer um xelim por estes dois belos peixes?
- Vamos, vamos, velha louca, leve, se quiser, o seu peixe a Monkbarns, e veja o que minha irmã lhe dá.
- Não, não, isso não, Monkbarns, gosto mais de ter negócios consigo; porque, embora o senhor seja bastante avaro, Miss Grizel tem a mão ainda mais fechada. Olhe - acrescentou ela, num tom mais suave
- dou-lhos por três xelins e meio.
- Um xelim e meio, ou nada!
- Xelim e meio! - exclamou ela, elevando a voz num ar de surpresa, e baixando-a num tom choroso, ao ver que o seu freguês lhe voltava as costas - O senhor quer então o peixe - E mais alto, à medida que ele se afastava - Eu dou-lho, com meia dúzia de caranguejos para fazer o molho, em troca de três xelins e uma pinga de aguardente.
- Meia coroa e a pinga, Maggie.
- Vamos, temos sempre de passar por onde o senhor quer; mas o copo de aguardente vale dinheiro, agora que as destiladas estão fechadas.
- Sim, e espero não as ver reabertas tão depressa - disse Oldbuck.
- Decerto que é fácil a Vossa Honra e às pessoas da sua categoria falarem assim; aos senhores não falta nada, estão bem alojados, bem alimentados, bem vestidos, e sentam-se muito à vontade junto da lareira bem quente. Mas se lhes faltassem o lume, a alimentação e as roupas enxutas; se se sentissem molhados e a morrer de frio, e, o que é pior ainda, com o coração cheio de tristeza, e não tivessem senão dois pence no bolso, bem gostaria de comprar com isso um cordial que lhes desse alegria e coragem, e substituísse as roupas, a ceia, até à manhã seguinte.
- Isso que diz não é senão uma grande verdade, Maggie; mas, diga-me, seu marido foi para o mar depois das fadigas de ontem?
- Meu Deus, foi, sim, Monkbarns. Saiu esta manhã, pelas quatro horas, quando o mar ainda estava todo inchado como fermento pelo vento de ontem à noite. Era ver o nosso pequeno barco dançar sobre as ondas como uma rolha de cortiça.
- Vamos, seu marido é um homem diligente. Leve o peixe a Monkbarns.
- Vou já; ou antes, vou lá mandar a pequena Jenny; corre mais depressa do que eu. Mas irei pessoalmente pedir o copinho de aguardente a Miss Grizel, e digo-lhe que foi o senhor quem me enviou.
Uma espécie de animalzinho que chafurdava num charco, no meio das rochas, e que quase se poderia tomar por uma sereia, foi chamado para terra pela voz aguda de sua mãe. Esta última, depois de a arranjar decentemente, em sua opinião, o que ela fez juntando uma capa vermelha a uma saia que compunha primeiro o seu único vestuário e que apenas descia até os joelhos, mandou a filha com um cabaz que continha o peixe, e um recado de Monkbarns para que lhe dessem o dinheiro.
- Há-de correr muito tempo -disse Oldbuck com satisfação - antes de que as minhas fêmeas façam um negócio semelhante com esta velha harpia, embora muitas vezes as oiça discutir durante uma hora debaixo da janela do meu gabinete de trabalho, como três gaivotas a guinchar em ocasião de temporal. Mas, continuemos o nosso caminho para Knockwinnock.
Um mendigo, dizeis vós? Eu sou o único homem livre do país, mais independente do que nenhum Escocês livre. Não obedecemos a outras leis, a outra autoridade, a outra religião senão às que nos deram os nossos antigos costumes, ou que nos impusemos a nós próprios; e no entanto não somos rebeldes.
BROME
Com licença do leitor, ultrapassaremos o passo firme mas um pouco lento do Antiquário, que se voltava a cada instante para o seu companheiro, a fim de lhe chamar a atenção para alguma coisa no campo, ou para apoiar algum tema favorito com mais ênfase do que lhe permitia o movimento da sua marcha; e fez pausas tão frequentes que o seu percurso se atrasou consideravelmente.
Apesar dos perigos e das fadigas da noite antecedente, Miss Wardour achava-se em estado de se lervantar à hora normal e de retomar as suas ocupações habituais, depois de ter apaziguado a sua inquietação (acerca da saúde de seu pai. Sir Arthur não sentia outra indisposição senão a que era consequência de uma grande agitação e de um exercício forçado, mas no entanto suficiente para o fazer guardar o leito.
Era penosa para Isabel a recordação dos acontecimentos da véspera. Devia a vida de seu pai e a sua à pessoa do mundo a quem ela mais temia dever obrigações, porque lhe era difícil dedicar-lhe a expressão de um reconhecimento natural, sem encorajar esperanças que podiam vir a ser funestas para ambos. "Porque estou eu destinada a receber semelhantes serviços, pensava ela, serviços prestados com perigo da sua própria vida, de uma pessoa a quem me esforcei obstinadamente por desencorajar a paixão romanesca? Porque havia a sorte de lhe dar essa vantagem sobre min? Oh! E porque motivo um sentimento mal abafado no meu fraco coração, em despeito de toda a minha razão, me inspira uma secreta alegria porque ele a obtivesse? "
Quando Miss Wardour censurava assim a incoerência dos seus sentimentos, viu avançar pela avenida, não o jovem salvador que ela tanto temia, mas o velho mendigo que desempenhara um papel tão notável no drama da noite anterior.
Ela chamou o criado e ordenou-lhe que mandasse subir o velho.
O criado voltou um minuto depois.
- Recusa-se absolutamente a subir, minha senhora; diz que os seus sapatos ferrados nunca pisaram um tapete em sua vida, e, se Deus quiser, nunca o pisarão. Mando-o entrar para o vestíbulo?
- Não; espera: preciso de lhe falar. Onde está ele? Perdera-o de vista quando ele se aproximara da casa.
- Está sentado ao sol, no pátio, no banco de pedra que fica encostado à janela do locutório térreo.
- Dize-lhe que fique aí; vou descer ao locutório e falo-lhe da janela.
Ela desceu, com efeito, e encontrou o mendigo meio estendido no banco de pedra junto da janela. Edie Olchitree, apesar de velho e mendigo, tinha aparentemente algum sentido interior da impressão faforável causada pela sua alta estatura, pelas suas fei-" ções imponentes, pela sua barba e pelos seus cabelos brancos. Notava-se que todas as suas atitudes punham em relevo, quase sempre com vantagem, os seus dons naturais. Nesse momento, estava ele meio deitado, rosto enrugado, mas animado e ainda fresco, e olhos cinzentos e penetrantes, erguidos para o céu: o bastão e o alforge achavam-se a seu lado. A expressão de sagacidade natural e de causticidade ironica que animava o seu rosto, enquanto relanceava alternadamente olhares em volta do pátio ou os erguia ao céu, teria oferecido um modelo ao artista que quisesse representar um velho filósofo da seita dos cínicos a meditar sobre a frivolidade das ocupações dos homens, sobre a pouca solidez dos bens que eles possuem neste mundo, e levantando os olhos para a única fonte de onde pode vir uma felicidade sólida.
O porte elegante e leve da jovem, quando se aproximou da janela aberta, mas separada do pátio pela grade que, segundo o uso de velhos tempos, guarnecia as janelas baixas do castelo, deu a esta cena um interesse de género diferente. Uma imaginação romanesca poderia então representar nestas duas pessoas uma donzela cativa a fazer a descrição da sua angústia a um peregrino, para que ele apelasse para a valentia de todos os cavaleiros que encontrasse nas suas andanças, a fim de virem em socorro da bela oprimida.
Depois de Miss Wardour expressar ao mendigo, nos termos melhor concebidos para lhe serem agradáveis, os agradecimentos que, disse ele, iam muito além do que merecia, ela começou a falar de uma maneira que julgou mais apropriada para lhe demonstrar o seu reconhecimento. Ainda não sabia, dizia ela, quais eram as intenções positivas de seu pai relativamente ao seu salvador; mas certamente seriam de molde a assegurar-lhe bem-estar por toda a sua vida: no caso de ele gostar de residir no castelo, daria ordens
O velho sorriu, meneou a cabeça e interrompeu:
- Eu seria ao mesmo tempo um fardo para os seus elegantes criados, e um objecto que os faria corar, minha boa menina, e que eu não saiba em minha vida o que é estar a cargo de alguém.
- A esse respeito sir Arthur dará as ordens mais severas.
- A menina é muito bondosa, não o duvido; mas há coisas que um amo pode ordenar e outras sobre as quais nada pode. Acredito que ele os proibiria de me porem a mão, e, palavra, penso que ninguém se atreveria a isso; mandá-los-ia dar-me a minha sopa e o meu pedaço de carne; mas, julga que as ordens de sir Arthur poderiam impedir que se exercesse a malícia da sua língua, ou reprimir os olhares desdenhosos? Que pudessem obrigá-los a dar-me o quinhão de alimento com aquele ar de benevolência que torna a digestão tão fácil, ou que pudessem colocar-me ao abrigo daqueles sarcasmos e daquelas atitudes insultuosas que fazem, mais mal do que as palavras mais duras? Depois, eu sou o ente mais preguiçoso que alguma vez existiu: não sei sujeitar-me a horas regulares para comer e para dormir; e, para dizer honestamente a verdade, seria um muito mau exemplo numa casa bem ordenada.
- Pois bem, então, Edie, que pensa de uma pequena choupana muito limpa, com um belo jardim, um torrão aprazível, sem outra coisa que fazer senão cavar o seu jardim quando lhe apetecer?
- E quantas vezes isso sucederá, minha boa lady? Talvez uma só, entre a festa das candeias e o São João. E mesmo que eu não tivesse de me ocupar de coisa alguma, mesmo que fosse como o próprio sir Arthur, não suportaria permanecer sempre no mesmo sítio, ver todos os dias e todas as noites os mesmos vigamentos, as mesmas traves por cima da minha cabeça. Depois, tenho o meu espírito, que pode convir muito bem a um mendigo vagabundo, palavras com as quais ninguém se preocupa: mas a menina sabe que sir Arthur tem as suas esquisitices, e se me sucedesse troçá-las ou rir-me delas, com certeza que se zangariam comigo, e então seriam capazes de me enforcar.
- Oh! O senhor é um homem privilegiado! - disse Isabel - Dar-lhe-íamos toda a liberdade razoável. Faria então bem em deixar-se guiar por mim, e em pensar na sua idade.
- Mas eu ainda não sou assim tão velho - replicou o mendigo - e ontem, à noite, depois de ter exercitado por uns momentos os meus membros, fiquei tão ágil como uma enguia. E que faria toda a região circunvizinha se perdesse o velho Edie Ochiltree? Pense que é ele quem leva todas as novidades e histórias de granja em granja; quem dá os pães de mel às raparigas, ajuda os rapazes a consertar os seus violões, as donas de casa a remendar as suas caçarolas; que faz as espadas de junco e os bonés de granadeiro, aos seus filhos; que percebe de curar vacas e cavalos; que sabe mais canções e contos sozinho do que toda a baronia junta, e que leva com ele a alegria a toda a parte onde vai. Não, palavra de honra, minha boa lady, não posso abandonar a minha vocação; seria uma calamidade pública.
- Bem, Edie, se atribui à sua importância uma ideia tão forte que não possa sequer ser abalada pela perspectiva da independência...
- Não, minha bondosa menina, é que eu sinto-me mais independente como estou. Eu não peço em cada casa mais carne do que a necessária para uma refeição, por vezes mesmo para uma dentada: se mo recusam num sítio, tenho a certeza de o obter em outro. Não se pode, pois, dizer que dependa de alguém em particular, mas somente do país em geral.
- Então, prometa-me ao menos que, ao avançar em idade, e tornando-se menos capaz de dar as suas voltas habituais, se experimentar o desejo de instalar-se de uma maneira segura, será a mim que o dará a conhecer; e, entretanto, tome lá isto.
- Não, não, minha boa laãy; eu não aceito tanto dinheiro de uma só vez, contra a nossa regra; e depois consta, embora talvez não me fique bem repeti-lo, que o dinheiro vai tornar-se raro em casa de sir Arthur, e que ele se deixou arruinar por todas essas pesquisas que se mandaram fazer além, para encontrar minas de cobre e de chumbo.
Havia uns tempos que Isabel experimentava secretas inquietações do mesmo género; mas ficou assustada por ver que se falava tão publicamente nos embaraços em que seu pai se encontrava; como se à maledicência, que estima sobretudo alimentar-se dos erros do homem de bem, da queda do homem poderoso, ou da ruína do rico, pudesse escapar um tema que lhe era tão agradável. Miss Wardour soltou um profundo suspiro.
- Não importa, Edie - disse ela - apesar de tudo o que se possa dizer, ainda nos resta o bastante para pagar as nossas dívidas, e a que contraímos para consigo é uma das mais sagradas; aceite, pois, esta quantia da minha mão.
- Quê! Para me encontrarem uma noite roubado e assassinado na estrada de uma cidade para outra? Ou, o que seria ainda pior, para que eu viva no receio constante de que isso me aconteça? Não, não e ajuntou, baixando a voz e lançando um olhar penetrante em sua volta - E depois eu não sou por completo um desprevenido; e mesmo que venha a morrer à beira de um fosso, encontrar-me-ão na dobra deste velho roupão azul com que sepultar-me decentemente como um cristão, e dar aos rapazes e raparigas com que façam a velada dos meus funerais. O velho mendigo preveniu-se para o seu enterro; de que mais precisa? Se alguma vez vissem um pobre diabo como eu trocar um guinéu, quem seria bastante doido para ainda lhe dispensar caridade? A notícia propagar-se-ia pelo país como incêndio de guerra; dir-se-ia que Edie praticara tal ou tal má acção, e se eu mendigasse, ninguém me daria nem um mísero osso ou um bodle (1).
- Não haverá então nada que possa fazer por si?
- Oh, sim! Continuarei a vir buscar a minha esmola como de costume, e por vezes terei muito gosto em servir-me de uma pitada de rapé; depois, é preciso que se fale aos oficiais de polícia, para que não façam caso de mim. Talvez a menina também tenha a bondade de dizer duas palavras ao moleiro Sanndie Netherstanes, para que prenda o seu grande cão. Eu não desejaria, porém, que ele maltratasse o pobre animal, que não faz senão o seu dever ao ladrar a um mendigo como eu. Ainda teria outra coisa a pedir-lhe, mas talvez ache que é demasiado atrevimento um homem como eu falar-lhe disso.
- De que se trata, Edie? Se for coisa que me diga respeito e que esteja ao meu alcance, prometo-lhe que se fará.
- Só diz respeito a si; está ao seu alcance, e não fique zangada, mas tenho de lha dizer: a menina é muito bela, e sobretudo muito bondosa, demasiado bondosa para não ser sensível. Escute, não continue, pois, a repelir o jovem Lovel como o fez, há tempo, na Avenida Brierybank, onde os vi e ouvi a ambos, embora não se tivessem apercebido. Seja menos severa com esse jovem, porque ele ama-a muito; e é só a ele, e não ao que eu pude fazer, que sir Arthur e a menina ficaram devendo a vida ontem à noite.
Pronunciou estas palavras em voz baixa mas distintamente, e, sem esperar resposta, avançou para uma porta baixa que conduzia aos compartimentos dos criados, e entrou assim na casa.
Miss Wardour quedou-se um momento ou dois na mesma posição em que escutara as últimas e estranhas palavras do velho; encostada aos varões da janela, incapaz de se decidir a responder com uma só palavra a um assunto tão delicado, até que o mendigo
(1) Pequena moeda talvez equivalente a meio tostão dos nossos dias. - N. do T.
desapareceu. Sentiu-se dolorosamente impressionada ao pensar que o segredo da entrevista e da conversa que tivera com o jovem estrangeiro estava em poder de uma pessoa que pertencia à última classe em que uma donzela devia escolher um confidente, de alguém, enfim, que fazia, por assim dizer, no país, profissão de bisbilhotice. Em verdade, ela não tinha razão alguma para acreditar que o velho pudesse revelar alguma coisa voluntariamente para a ferir; mas só a liberdade com que ele lhe falara naquele assunto denunciava bastante a ausência daquela delicadeza que de facto não se podia esperar encontrar nele. Por isso, ela tinha razão para recear que um tão ardente partidário da liberdade não tivesse grandes escrúpulos em dizer ou fazer a primeira coisa que lhe passasse pela cabeça. Esta ideia assustou-a e atormentou-a de tal modo que ela quase desejava, quaisquer que fossem as consequências, não ter recebido o socorro e os serviços de Lovel e de Olchitree na noite anterior.
Quando ela se entregava a esta agitação de espírito, viu de repente entrarem no pátio Oldbuck e Lovel. Imediatamente se afastou da janela, o bastante para não ser vista e poder observar o Antiquário, que se detivera diante do edifício e que, ocupado em mostrar as diversas armas dos antigos proprietários, parecia fornecer a Lovel muitas informações, sem dúvida curiosas e de erudição, que, pelo olhar distraído do seu ouvinte, Isabel adivinhou facilmente estarem a perder-se.
A necessidade de tomar uma decisão tornava-se premente. Chamou, pois, um criado e ordenou-lhe que mandasse entrar os dois visitantes para o salão, enquanto, por outra escada, ela alcançava o seu quarto para reflectir, antes de aparecer, na atitude que iria adoptar. Segundo a ordem que ela dera, os visitantes foram introduzidos no salão onde geralmente se recebiam as pessoas de qualidade.
Houve tempo em que eu te odiava e presentemente ainda te não amo. No entanto, suportei a tua presença, que outrora me era odiosa, - mas não espero outra recompensa.
SHAKSPEARE - Como vos Aprover
A tez de Miss Isabel Wardour estava extremamente animada quando, após a demora necessária à arrumação das suas ideias, se apresentou no salão.
- Sinto muito prazer em que tenha vindo, minha bela inimiga - declarou o Antiquário ao cumprimentá-la com um ar cheio de afeição - porque tinha aqui no meu jovem amigo um dos ouvintes mais refractários ou menos atentos, quando tentava dar-lhe a conhecer a história do castelo de Knockwinnock. Creio que os perigos da última noite perturbaram a cabeça do pobre rapaz. Mas, quanto a si, Miss Isabel, dirá quem a vir que esteve no seu elemento natural. A sua tez está mesmo melhor do que ontem, quando honrou o meu hospitiwn. E Sir Arthur? Como vai o meu bom e velho amigo?
- Muito devagar, Mr. Oldbuck, e não bastante bem, receio eu, para receber as suas felicitações e apresentar a Mr. Lovel os agradecimentos que lhe são devidos pelos seus inacreditáveis esforços.
- Assim o creio; ele necessita de uma boa almofada de penas para repousar a cabeça depois de tão rudemente se ter deitado no maldito Avental de Bessy.
- Eu não tinha a intenção - disse Lovel (olhos fixos no chão, enquanto falava hesitante e com uma comoção mal contida) -não tinha a intenção de importunar sir Arthur ou Miss Wardour com a minha presença, que, bem o sinto, não pode senão ser-lhe desagradável; quero dizer, que lhes desperta aborrecidas recordações.
- Não julgue que meu pai seja tão ingrato e tão injusto - replicou Miss Wardour - Não duvido - continuou ela, partilhando do embaraço de Lovel -de que ele se sinta feliz em testemunhar-lhe o seu reconhecimento por todos os meios possíveis, isto é, por todos os meios que Mr. Lovel achar conveniente indicar-lhe
- Co'os diabos! -exclamou Oldbuck, interrompendo-a-Que espécie de reticência é essa? Palavra que me lembra o nosso ministro que, como um velho presumido e cerimonioso que é, querendo beber um dia pela realização dos desejos de minha irmã, julgou necessário ajuntar esta cláusula restritiva: contanto, minha senhora, que eles sejam virtuosos. Vamos, deixamo-nos de todos esses cumprimentos. Estou em crer que um destes dias sir Arthur nos receberá em pessoa; entretanto, que novidades temos nós dos reinos das trevas subterrâneas e das esperanças fugitivas? Que oráculo revelou o espírito tenebroso das minas? Sir Arthur teve alguma notícia das últimas pesquisas no Glen-Withershins
Miss Wardour meneou a cabeça.
- Bastante más, creio, Mr. Oldbuck, mas eis algumas amostras que nos enviaram.
- Ah, meu pobre cento de libras que sir Arthur me persuadiu a trocar por uma acção desta sedutora empresa! Chegaria para comprar com elas a carga de um homem em amostras minerológicas!
Assim falando, sentou-se, no recanto do salão, diante de uma mesa onde as produções minerais estavam colocadas, e começou a examiná-las, murmurando e soltando exclamações de desdém todas as vezes que pegava numa e a repunha no seu lugar.
Durante este tempo, Lovel, a quem esta ocupação de Oldbuck deixava numa espécie de conciliábulo com Miss Wardour, aproveitou essa ocasião para lhe dirigir estas palavras em voz baixa e entrecortada:
- Espero, Miss Wardour, que desejará atribuir a circunstâncias quase irresistíveis a presença de uma pessoa cuja visita há razão para supor tão pouco agradável aqui.
- Mr. Lovel - respondeu Miss Wardour, no mesmo tom cauteloso - espero que não abusará... julgo-o mesmo incapaz de abusar das vantagens que lhe dão os serviços que nos acaba de prestar, serviços que, no que se referem a meu pai, nunca podem ser bastante reconhecidos, bastante pagos... Se Mr. Lovel pudesse ver-me sem que o repouso da sua vida fosse perturbado, se me pudesse olhar como uma amiga, como Uma irmã, ninguém seria e, segundo tudo o que ouvi dizer de Mr. Lovel, teria o direito de ser recebido com mais prazer aqui. Mas...
Lovel repetiu intimamente os anátemas de Oldbuck contra a maldita conjunção mas.
- Perdoe-me, se a interrompo, Miss Wardour; não deve recear que eu a importune de novo falando-lhe de um assunto sobre o qual já fui severamente repelido; mas contente-se em rejeitar os meus sentimentos sem querer acrescentar a tanto rigor a exigência de que eu os negue...
- Embaraça-me cruelmente, Mr. Lovel, com a sua... como direi? Não queria empregar uma palavra que o ferisse... com a sua tenacidade romanesca e sem esperança... É por si próprio que eu luto neste momento, para que, reflectindo que o seu país reclama os seus serviços e o seu talento, deixe de abandonar a sua imaginação às ilusões perigosas de um afecto mal dirigido, e de perder um tempo que, doravante melhor aproveitado, deve conduzi-lo à promoção e às próximas distinções. Permita-me ajuntar que tomaria uma digna resolução...
- Basta, Miss Wardour; estou a ouvir-lhe de mais.
- Mr. Lovel, o senhor sente-se ferido... e creia que eu sofro com o desgosto que lhe causo. Mas poderei eu, por mim, por si, proceder de outra maneira? Sem o consentimento de meu pai, nunca hei-de encorajar esperanças a ninguém, e o senhor próprio compreende até que ponto é impossível que ele aprove os sentimentos com que o senhor me honra, e mesmo...
- Não, Miss Wardour - disse Lovel, interrompendo-a num tom suplicante e apaixonado - não diga mais; não lhe basta aniquilar toda a esperança na nossa actual posição? Não leve mais longe a crueldade; para que serve dizer-me qual seria a sua atitude, se os obstáculos fossem retirados do lado de sir Arthur?
- É realmente inútil - disse Miss Wardour - visto que é impossível que alguma vez o sejam; devo somente, como sua amiga e como pessoa que lhe deve a vida e a de seu pai, suplicar-lhe que vença essa desditosa afeição, que deixe um país que não oferece espaço bastante vasto para os seus talentos e que retome a carreira honrosa que o senhor parece ter abandonado.
- Bem, Miss Wardour, os seus pedidos serão executados. Tenha paciência ainda só por um mês, e se durante este curto espaço não conseguir fazê-la aprovar os motivos da prorrogação da minha permanência em Fairport, direi adeus a este país, bem como a todas as minhas esperanças de felicidade.
- Não, Mr. Lovel, não será assim. Está-lhe reservado, espero eu, um grande número de anos de uma ventura merecida e fundada em bases mais razoáveis do que aquelas em que repousam agora os seus votos. Mas esta conversa já durou de mais. Não posso impedir a entrada na casa de meu pai a quem salvou a sua vida e a minha. No entanto, quanto mais Mr. Lovel puder resignar-se rapidamente à perda das esperanças tão precipitadamente formadas, mais ganhará na minha estima. Entretanto, e no seu interesse como no meu, não me quererá mal que eu lhe proíba doravante um assunto de conversa tão doloroso.
Um criado veio então anunciar que sir Arthur desejava falar a Mr. Oldbuck no seu quarto.
- Permita-me que o conduza - propôs Miss Wardour, que parecia recear a continuação do diálogo a sós com Lovel.
E acompanhou o Antiquário ao quarto de seu pai. Sir Arthur achava-se estendido num canapé, com as pernas embrulhadas em flanela.
- bom dia, Mr. Oldbuck - disse ele -Espero que se tenha safado melhor do que eu daquele terrível tempo de ontem à noite.
- Mas, sir Arthur, também eu não estive tão exposto. Fiquei em terra firme, ao passo que o senhor esteve entregue ao ar húmido e frio da noite da maneira mais completa. Mas tais aventuras assentam melhor num bravo cavaleiro como o senhor do que num humilde escudeiro como eu. Elevar-se nas regiões do ar! Penetrar nas entranhas da terra! E a propósito, que novas esperanças subterrâneas da terra incógnita de Withershins?
- Ainda nada de bom - respondeu o barão, voltando-se bruscamente, como se sentisse o aguilhão de uma dor de gota - Mas Dousterswivel não desespera.
- Ele não desespera? - disse Oldbuck - Pois bem, eu, sob os seus bons auspícios, desespero. Saiba que o doutor H... me disse, quando estive em Edimburgo, que, pelas amostras que lhe apresentei, nunca encontraremos bastante cobre para um par de brincos de seis pence; e não creio que haja grande diferença na qualidade daquelas que vi lá dentro em cima da
mesa.
- O sábio doutor não é talvez infalível.
- Não, mas é um dos nossos primeiros químicos, e tenho a impressão de que o seu filósofo, esse Dousterswivel, é um dos mais hábeis aventureiros de quem Kircher diz: Artem habent sine arte, partem sine parte; quorum -médium est mentiri, vita corum mendicatum ire )1); isto é, Miss Wardour...
- É inútil traduzir essas palavras - proferiu Miss Wardour - compreendo perfeitamente o que o senhor quer dizer; mas espero que Mr. Dousterswivel se mostre menos indigno da nossa confiança.
- Duvido muito - disse o Antiquário - e vamos por mau caminho, se ele não descobrir finalmente esse infernal filão que nos predisse há dois anos.
- O senhor não tem senão um pequeno interesse neste negócio, Mr. Oldbuck - disse o baronnet.
- É já de mais, sir Arthur. No entanto, por amor da bela inimiga que aqui está, consentiria de boa vontade em perder tudo, desde que o senhor não tivesse um mais considerável.
Houve um momento de doloroso silêncio, porque sir Arthur tinha demasiado amor-próprio para confessar que via dissiparem-se os seus sonhos dourados, embora não lhe fosse mais possível ocultar a ele próprio que tal devia ser o desfecho da aventura.
- Eu soube - disse ele, por fim - que o jovem a cuja coragem e presença de espírito nós ficámos ontem à noite tão devedores, me honrou com a sua visita. Lamento não estar em estado de receber neste momento outra pessoa que não seja um velho amigo como Mr. Oldbuck.
Um movimento da hirta espinha dorsal do Antiquário serviu de agradecimento a esta marca de distinção.
(1) Têm arte sem arte, uma parte sem parte: o seu recurso é a mentira, a sua sorte é a de mendigar. - N. do T.
- O senhor travou certamente conhecimento com este jovem em Edimburgo?
Oldbuck contou de que maneira se encontraram
- Então - disse o baronnet - minha filha conhece Mr. Lovel há mais tempo do que o senhor.
- Sim? Não sabia isso - respondeu o Antiquário um pouco surpreendido.
- Encontrei Mr. Lovel - disse Isabel, corando levemente - em casa de minha tia, senhora Wilmot, onde passei uns dias na Primavera passada.
- No condado de York? E qual era a sua reputação? Que profissão era a sua? -indagou Oldbuck Como foi que o não reconheceu quando lho apresentei?
Isabel limitou-se ao que havia de menos embaraçoso naquelas perguntas.
- Tinha uma posição no exército, e servia, creio eu, com distinção; era geralmente estimado como jovem bem-educado e que dava as melhores esperanças.
- E sendo isso - prosseguiu o Antiquário, que não estava disposto a contentar-se com uma só resposta para as suas duas perguntas diferentes - diga-me, por favor, porque não lhe falou quando o encontrou em minha casa? Em verdade, Miss Wardour, eu supunha-a acima desse miserável orgulho feminino.
- Minha filha tinha uma razão para isso - declarou sir Arthur com dignidade - O senhor conhece as opiniões, no seu critério talvez preconceitos, da nossa casa sobre a pureza do nascimento; o jovem é, ao que parece, filho ilegítimo de um homem rico, e a minha filha não julgou conveniente renovar o conhecimento com ele, antes de saber se eu aprovaria tais relações.
- Se fosse por causa de sua mãe - disse Oldbuck, com a liberdade cáustica que lhe era peculiar -eu poderia achar excelentes os seus motivos. Ah! pobre rapaz! Aí está a razão por que ele tinha um ar tão distraído e tão perturbado, quando eu lhe explicava a causa da barra de bastardia que se encontra no escudo de uma das torrinhas do castelo.
- É verdade - disse o baronnet, complacente - É o escudo de Malcome, cognominado o Usurpador. A torre que ele construiu, chamou-se, como ele, torre de Malcome, e mais frequentemente torre de Misticot, que não deve ser senão a corrupção de Misbegot (1). Na genealogia latina da nossa família há a denominação de Milcolumbus Nothus; e a invasão temporária dos nossos domínios, assim como as suas injustas tentativas para estabelecer o seu ramo ilegítimo nas terras de Knockwinnock, causaram tantas divisões e desgraças na família que daí sem dúvida nasceram esta antipatia e este horror que sempre tivemos pela ilegitimidade e os matrimónios desiguais, sentimentos que me foram transmitidos pelos meus antepassados.
- Conheço essa história - declarou Oldbuck - e cõnteia-a a Lovel, não há muitos instantes, ajuntando-lhe a influência que ela teve nas opiniões da sua família, e as prudentes máximas que daí resultaram. Pobre rapaz, deve ter ficado bem ferido! E eu que tomara o seu ar distraído por uma falta de atenção, que me irritara um pouco, ao passo que se tratava de uma prova de muita sensibilidade! Espero, no entanto, que o senhor não atribua menos valor à vida, por ter sido ele quem lha conservou.
- Não creia; que o meu salvador seja menos bem visto por mim! Terá doravante entrada na minha casa e a liberdade de se sentar à minha mesa como se descendesse da mais pura linhagem.
- Vamos, estou bem contente: ele saberá, pois, onde encontrar de jantar quando disso tiver necessidade. Mas quais serão os seus propósitos nestas vizinhanças? Tenho de interpelá-lo a esse respeito; e se ele precisar dos meus conselhos, ou mesmo que não precise, não lhos pouparei.
Depois de fazer esta promessa liberal, o Antiquário despediu-se de Miss Wardour e de seu pai, impaciente por começar as suas operações sobre Lovel. Comunicou-lhe resumidamente que Miss Wardour lhe apresentava os seus cumprimentos, e ficava junto de seu pai, e, tomando-o pelo braço, levou-o para fora do castelo.
Knockwinnock ainda conservava em grande parte os atributos exteriores de uma residência senhorial. Tinha as suas pontes levadiças, embora nunca estivessem levantadas, e os seus fossos, secos é certo,
(1) Que significa mal nascido. - N. do T.
mas cujas margens se encontravam plantadas de arbustos sempre verdes; acima deles erguia-se o velho edifício, alicerçado em parte na rocha granítica cuja vertente se estendia até à beira-mar, e em parte sobre um montículo relvado que servia de rebordo aos fossos. Além das árvores da avenida de que já falámos, havia-as em grande número em volta do castelo, cuja beleza e vigor pareciam refutar o preconceito que a vizinhança do Oceano prejudica a força da vegetação.
Os nossos passeantes detiveram-se e voltaram-se para ver o castelo, quando chegaram ao cimo de uma elevação atravessada pelo caminho que devia conduzi-los a Monkbarns; pois não se suporá facilmente que eles se aventurassem a correr o risco da maré, regressando pela praia. O edifício projectava a sua sombra majestosa sobre a folhagem tufada dos arbustos que o cercavam, enquanto as vidraças cintilavam aos raios de sol que incidiam na fachada. Cada um deles contemplava aquele espectáculo com impressões muito diferentes. Lovel, com o ardor ávido de uma paixão que se alimenta de ninharia, tal como o camaleão vive, segundo se diz, do ar ou dos insectos invisíveis que este contém; Lovel esforçava-se por adivinhar qual daquelas numerosas janelas pertencia ao quarto que a presença de Miss Wardour embelezava. As meditações do Antiquário tinham uma cor mais sombria, e foram em parte sugeridas pela exclamação de cito peritura (1) que soltou ao voltar-se. Lovel, saindo do seu devaneio, fitou-o como que para lhe pedir explicação daquelas palavras sinistras.
- Sim, meu jovem amigo - disse ele - suponho, e o meu coração sangra com esse pensamento, que esta velha família está muito perto da sua ruína.
- Deveras! - exclamou Lovel - O senhor surpreende-me enormemente!
- É em vão que nos tentamos endurecer - disse o Antiquário, continuando o curso dos seus pensamentos e das suas sensações - para contemplar com indiferença aqueles que merecem as vicissitudes deste mundo,
(1) Quem deve perecer em breve. - N. do T.
onde tudo é precário e Instável. Procuramos em vão chegar àquele estado de invulnerabilidade de um ser que se basta a ele próprio, de teres atque rotundus (1) do poeta: mas essa indiferença estóica, com a qual a filosofia pretende ensinar-nos a suportar os desgostos e os reveses da vida, é tão imaginária como esse estado de quietismo místico e de perfeição moral ao qual aspiraram extravagantes entusiastas.
- Que o céu nos livre de semelhante estado! exclamou Lovel, com calor - Que nos salve dessa fria filosofia cujo efeito seria secar e endurecer os nossos corações até o ponto de nos tornar insensíveis a tudo que não toque directamente os nossos interesses pessoais. Eu não posso desejar mais o triste estoicismo que transformaria o meu coração num bocado de mármore do que desejar ver paralisar-se a minha mão a fim de evitar o golpe que pode vir a feri-la.
O Antiquário olhou o seu jovem companheiro com um misto de compaixão e de interesse e, encolhendo os ombros, respondeu:
- Escute, jovem, quando a sua barca estiver batida durante sessenta anos pelas tempestades que agitam a vida humana, saberá então dirigir as suas velas e fazê-las obedecer pelo leme, ou, para falar a linguagem do mundo, terá bastantes vicissitudes e desgostos para orientar a sua sensibilidade sem se meter no destino dos outros mais do que o estritamente necessário.
- Bem, Mr. Oldbuck, isso é possível; mas até ao presente eu pareço-me consigo ainda mais na prática do que na teoria, porque não posso deixar de tomar o mais vivo interesse pela sorte da família que acabamos de deixar.
- E ela tem direito a isso neste momento - respondeu Oldbuck - porque os embaraços de sir Arthur se tornaram tão numerosos e tão prementes que me admira de que não tivesse ouvido falar neles. E depois, aquelas operações absurdas e ruinosas que dirige esse aventureiro alemão, o tal Dousterswivel!...
- Creio ter visto esse personagem, quando uma vez
(1) Concentrado nele próprio, expressão de Homero. - N. do T.
Por acaso me sucedeu entrar no "café" de Fairport: é um homem alto, pesadamente construído, com as sobrancelhas espessas e unidas, que se pôs a tagarelar sobre assuntos científicos com mais segurança do que saber, pelo menos, segundo o que eu, ignorante, pude julgar; pareceu-me apresentar a sua opinião de uma maneira cortante e absoluta e misturar os termos de ciência com um calão bizarro e místico. Um jovem que lá estava, teve a simplicidade de me dizer que ele era um iluminado, e que mantinha relações com o mundo invisível.
- Ah! É bem ele, é ele mesmo: tem bastantes conhecimentos práticos para falar desenvolta e judiciosamente àqueles cuja penetração ele teme; e, para dizer a verdade, essa faculdade junta à sua extrema imprudência enganou-me também, por algum tempo, a seu respeito quando comecei a conhecê-lo. Mas ouvi dizer depois, que, quando está no meio de ignorantes " de mulheres, se mostra um verdadeiro charlatão, fala do magisterium, das simpatias e antipatias, da cabala, da vara divinatória, enfim de todas as necessidades com a ajuda das quais os rosa-cruz ludibriaram séculos menos esclarecidos, e que, para nossa eterna vergonha, reconquistaram algum favor no nosso. O meu amigo Heavysterne conheceu esse homem no continente; e sem o querer, pois é preciso que o senhor saiba que ele próprio é uma espécie de crente, ajudou-me a adivinhar uma grande parte deste carácter. Ah, se eu fosse califa durante um só dia, como o desejava o honesto Abu-Hassan, mandaria expulsar do reino esse malabarista à chicotada! Seduzem o espírito das pessoas ignorantes e crédulas com o seu palavriado místico, tão poderosamente como se lhes tivessem toldado o cérebro com genebra, e aproveitam a sua cegueira para as despojar com a mesma facilidade. E é assim que esse charlatão vagabundo acaba de dar o último empurrão para a ruína a uma antiga e nobre família.
- Mas como pôde ele ludibriar sir Arthur por tanto tempo até o conduzir à ruína?
- Que sei eu? Sir Arthur é um honesto e respeitável gentleman; mas, como o senhor pôde avaliar pelas suas ideias desconexas a respeito da linguagem dos Pictes, não é muito forte em faculdades intelectuais. Os seus bens estão em regime de substituição ou morgadio inalienável, e tem andado sempre com os seus negócios muito embaraçados. Aquele intrigante prometeu-lhe montes de ouro, e encontrou uma companhia inglesa que adiantou grandes quantias em dinheiro, e, receio eu, com a garantia de sir Arthur; alguns particulares, e eu fui tão parvo que me incluí no número, tomaram pequenos interesses neste negócio; o próprio sir Arthur fez grandes despesas. Fomos arrastados pelas aparências plausíveis, por mentiras ainda mais plausíveis, e agora abrimos os olhos e, como John Bunyan, julgamos que não passa de um sonho.
- Estou surpreendido por o senhor, Mr. Oldbuck, ter encorajado sir Arthur com o seu exemplo.
- Que quer o senhor? - replicou Oldbuck, baixando as suas largas sobrancelhas grisalhas e tufadas - Também me vê surpreendido e quase envergonhado de mim próprio. Certamente não era a avidez do ganho, porque embora homem ponderado, ninguém dá mais valor ao dinheiro do que eu: mas julgava poder arriscar essa pequena quantia. O mundo espera, embora em verdade eu não saiba a razão, que eu dê alguma coisa àquele que queira desembaraçar-me daquela pequena, a Maria Mac Intyre, minha sobrinha. Talvez se julgue também que deva fazer alguma coisa pela promoção pelo mau sujeito do irmão que está no exército; e se eu pudesse triplicar a quantia que arriscava, isso ter-me-ia ajudado nessas duas circunstâncias. Aliás, eu tinha a impressão de que os fenícios tinham outrora explorado uma mina de cobre neste mesmo local. O hábil patife do Dousterswivel - que o céu o confunda! - descobriu o meu lado fraco, e soube fabricar tão estranhas histórias de restos de flechas encontradas e de vestígios de pesquisas feitas de uma maneira muito diferente da dos tempos modernos, que... enfim, fiz uma asneira; eis o facto. Da minha perda nem vale a pena falar, mas os compromissos de sir Arthur são, segundo se diz, muito consideráveis, e eu sinto a alma realmente pesarosa por ele, e sobretudo pela interessante jovem que deve partilhar da sua desventura.
Se me atrever e acreditar nas lisonjeiras imagens do sono, os meus sonhos pressagiem a aproximação de uma alegre notícia. O meu coração repousa mais ligeiramente no meu seio, - e rodo o dia, animado pelos transportes de uma alegria pouco vulgar, eu pulo de contentamento e mal toco no chão ao andar.
SHAKSPEARE - Romeu e Julieta
A narrativa da infeliz empresa de sir Arthur desviara um pouco Oldbuck de interrogar Lovel sobre os motivos da sua permanência em Fairport, Estava, decidido a não deixar escapar a ocasião.
- Miss Wardour acaba de me dizer que o senhor já a conhecia, Mr. Lovel.
Lovel respondeu "que tivera o prazer de a ver em casa da senhora Wilmot, no condado de York".
- Até o momento em que o senhor me apresentou
- disse Lovel, muito atrapalhado - ignorava que fosse a mesma pessoa, e o meu dever, nesse caso, era esperar que ela me reconhecesse primeiro.
- Compreendo a sua delicadeza. O gentleman é um velho louco preconceituoso; mas asseguro-lhe que a filha está acima de todos esses ridículos preconceitos. E agora que o senhor encontrou aqui novos amigos, posso perguntar-lhe se tenciona deixar Fairport tão depressa como se propunha?
- Que diria se eu respondesse à sua pergunta com outra - replicou Lovel - e se lhe perguntasse qual é a sua opinião acerca de sonhos?
- Os sonhos, jovem louco! Que quer o senhor que eu pense senão que são desvios da imaginação, quando a razão lhe solta as rédeas? Não conheço outra diferença entre eles e as aberrações da loucura. Nos dois casos, os cavalos, entregues a eles próprios, arrastam a carruagem, a fugir, somente num caso o cocheiro está embriagado, ao passo que no outro não faz senão dormitar. Si insanorum visis fides non est habenda, cur curcredatur samnientium visis quae multo etiam perturbatiora sumt, non intelligo (1).
- Sim, senhor; mas Cícero diz-nos também que aquele que passa todo o dia a arremessar dardos deve por vezes atingir o seu alvo, de maneira que no meio da névoa dos sonhos nocturnos pode apresentar-se um que se relacione com os acontecimentos futuros.
- O que significa que, em sua sagaz opinião, o senhor deve atingir o alvo. Meu Deus, meu Deus, que loucura vai por este mundo! Não importa, alguma vez hei-de reconhecer a ciência onirocrítica; acreditarei na explicação dos sonhos e direi que apareceu um outro Daniel para os interpretar, se o senhor me puder provar que esse sonho que teve lhe indica um procedimento sensato e prudente.
- Diga-me, pois - prosseguiu Lovel -por que motivo, no momento em que hesitava em se devia ou não abandonar uma empresa começada, me sucedeu sonhar a noite passada que via o seu antepassado indicar-me com o dedo uma divisa que me encorajava a seguir avante? Como sonharia eu essas palavras, que não me lembro de ter ouvido antes, que estão numa língua que me é desconhecida, e cuja tradução encerra no entanto uma lição tão aplicável à circunstância em que me encontro?
O Antiquário desatou a rir.
- Desculpe, meu jovem amigo, mas é assim que nós, pobres mortais, gostamos de nos ludibriar, procurando fora motivos que têm sua origem na nossa vontade interior. Creio que o posso ajudar a encontrar a fonte dessa visão. O senhor estava tão mergulhado nas suas meditações, ontem depois de jantar, que não se preocupou com a conversa que se estabeleceu entre mim e sir Arthur senão no momento em que ela degenerou numa discussão sobre os Pictes, que terminou tão bruscamente. Mas recordo-me de que mostrei a sir Arthur um livro impresso pelo meu avoengo, e que o fiz reparar na divisa. O seu espírito estava algures, mas o seu ouvido, maquinalmente
(1) Se não se acredita nas visões dos loucos, para que acreditar nas das pessoas adormecidas, e que ainda são mais ininteligíveis? Eis o que eu não compreendo. - N. do T.
atingido pelas minhas palavras, reteve-as, e a sua activa imaginação, fermentando com a lenda de Grizel, introduziu no seu sonho essa divisa alemã. Quanto a essa sagacidade que, no seu sonho, o fez aproveitar uma circunstância tão frívola como desculpa para persistir numa atitude que o senhor não pode justificar com uma razão melhor, é precisamente um dos ardis que o mais esclarecido dentre nós se permite por vezes para satisfazer a sua inclinação em prejuízo da sua razão.
- Concordo-declarou Lovel, corando muito-Creio, Mr. Oldbuck, que o senhor tem razão, e sinto que devo perder na sua estima por ter atribuído um momento de importância a um tal absurdo. Mas eu flutuava entre desejos e resoluções contraditórios, e o senhor sabe que a corda mais leve pode dirigir uma barca quando está entregue às ondas, ao passo que o rijo cabo mal a abana quando ela está em seco, na praia.
- É verdade, é verdade - disse o Antiquário - mas para que fala em perder na minha opinião? Não é nada disso: eu não o estimo senão cada vez mais, meu rapaz. Agora, temos cada um de nós a nossa história, e eu envergonhar-me-ei menos de recordar a daquele maldito pretorium, embora não esteja menos convencido de que o acampamento de Agrícola deve ter sido algures nestas vizinhanças. E agora, Lovel, meu bom amigo, seja franco comigo: que é que o retém afastado de Wittenberg? Porque deixou o seu país e os deveres da sua profissão, por uma residência ociosa num local como Fairport? Gosta de correr Mundo, receio eu?
- Talvez - respondeu Lovel, submetendo-se com paciência a um interrogatório que não podia evitar Aliás, estou tão isolado no Mundo, existem nele tão poucos seres que me interessem ou que se interessem por mim, que este mesmo estado de abandono constitui a minha independência. Aquele cujo bom ou mau destino não toca senão a ele próprio deve ter o direito de dispor da sua pessoa como lhe apeteça.
- Perdoe-me, jovem - disse Oldbuck, pousando-lhe afectuosamente a mão no ombro, e detendo-se completamente - Sufflamina (1), um pouco de paciência, por
(1 ) Retardar. - N. do T.
favor. Quero admitir que o senhor não tenha amigos para partilhar dos seus êxitos no mundo e regozijarem-se com eles; que não possa lançar um olhar à retaguarda para aqueles a quem o senhor deve reconhecimento, e para aqueles que teriam o direito de vir em seu apoio: é o senhor menos obrigado a marchar a passo firme pela senda do dever?... Porque não é somente para com a sociedade que o senhor é devedor do exercício activo das suas faculdades, mas também o é por gratidão para com o Ente supremo, que o tornou membro dela e que o dotou de meios de ser útil a si e aos outros.
- Mas eu não tenho a consciência de possuir tais faculdades - declarou Lovel, com um pouco de impaciência- Não peço à sociedade senão licença de continuar sossegadamente o meu caminho na vida sem atropelar os outros e sem eu próprio me deixar atropelar. Disponho de meios para viver numa independência completa, e os meus desejos são tão moderados neste país que mesmo esses meios, apesar de limitados, ainda são ultrapassados.
- Então - disse Oldbuck, deixando cair a mão e retomando a marcha - se o senhor é assaz filósofo para se considerar suficientemente rico, não há nada a dizer. Não me sinto com o direito de o aconselhar; está no pináculo, no auge da perfeição. E como se compreende que Fairport fosse escolhida para asilo de um filósofo tão austero? Como se um sectário da verdadeira religião tivesse instalado o seu acampamento no meio das hordas idolatras da terra do Egipto. Não há um homem em Fairport que não seja devotado adorador do bezerro de ouro, do Marnmon de iniquidade, e eu próprio, meu rapaz, contagiado pela epidemia dessa maldita vizinhança, sinto-me por vezes inclinado a actos de idolatria.
- A literatura constitui a minha principal distracção - declarou Lovel - e como certas circunstâncias, no relato das quais não posso entrar, me decidiram a abandonar, pelo menos durante algum tempo, o serviço militar, escolhi Fairport como local onde pudesse entregar-me às minhas ocupações predilectas, sem ser
desviado por nenhuma dessas tentações que um círí culo mais elegante de sociedade poderia oferecer-me. -Ah! Ah! - respondeu Oldbuck com finura - Começo a compreender a aplicação da divisa do meu antepassado; o senhor é um candidato ao favor público, embora de uma maneira diferente do que eu primeiro supusera; aspira a brilhar na carreira literária, e espera chegar ao triunfo pelo trabalho e pela perseverança.
Lovel, que se encontrava cercado de perto pelas perguntas do velho gentleman, concluiu que mais valia deixá-lo no erro em que acabava de cair.
- Sempre fui bastante louco - disse ele - para me entregar a pensamentos desse género.
- Ah, pobre rapaz, nada pode ser mais triste do que isso; a não ser, porém, o que sucede por vezes aos jovens, que o senhor estivesse enamorado de alguma fêmea útil o que verdadeiramente, como tão bem o disse Shakspeare, é servir-se ao mesmo tempo do chicote e da espora para correr mais depressa para a sua perdição.
Em seguida, continuou a fazer perguntas às quais tinha por vezes a complacência de ele próprio responder; porque o bom velho gentleman, em consequência das suas pesquisas em antigüidades, contraira o gosto de construir conjecturas sobre bases que muitas vezes estavam longe de oferecer a superfície necessária; e sendo, como o leitor já pôde notar, razoavelmente teimoso, não suportava facilmente ser encaminhado, quer sobre os factos, que sobre o juízo que sobre eles formava, mesmo por aqueles que estavam mais interessados nos temas das suas reflexões. Prosseguiu, pois, esboçando ele próprio a carreira literária de Lovel.
- E por onde tenciona começar os seus ensaios de homem de letras? Eu adivinho: pela poesia... a poesia... essa amável sedutora da mocidade. Sim, na modesta confusão do seu olhar e da sua atitude há qualquer coisa que me anuncia que acertei. E qual é o género das suas inspirações? Está disposto a desferir o seu vôo para as altas regiões do Parnaso ou a voltejar somente a base da montanha sagrada?
- Ainda não tentei senão alguns trechos líricos disse Lovel.
- Como lhe disse a propósito: roçando as moitas num vôo modesto. Mas lisonjeia-me que o senhor erga um vôo mais ousado. Note, porém, que não sou eu que desejo encorajá-lo a seguir uma ocupação tão pouco lucrativa; mas não me disse que era inteiramente independente dos caprichos do público?
- Inteiramente - respondeu Lovel.
- E que está resolvido a não adoptar um género de vida mais activo?
- Tal é neste momento a minha decisão - respondeu o jovem.
- Então, nada mais me resta senão dar-lhe os melhores conselhos, e toda a assistência que puder sobre o género ao qual deverá entregar-se. Eu publiquei dois ensaios no Repositório de Antigüidades; sou, pois. autor por experiência. Um, contendo as minhas anotações "sobre a edição de Hearne, de Robert de Gloucester, era assinado Escrutinador, e o outro, assinado Indicador, dissertava sobre um passo de Tácito. Poderia falar também de um artigo inserto no Gentleman's Magazine, que produziu ao tempo uma grande sensação, sobre a inscrição CElia Lelia, e que eu assinei Édipo. Como vê, não sou um noviço na profissão de autor, e devo por conseguinte conhecer o gosto e o espírito do nosso tempo. E agora, mais uma vez, por onde quer o senhor começar?
- Não tenho nenhum projecto de publicação de momento.
- Ah, não é isso que é preciso! O senhor deve ter, em todos os seus empreendimentos, bem presente a seus olhos o receio do público. Ponderemos um pouco: Uma recolha de poesias fugitivas... mas não, haveria a recear que elas ficassem em casa do livreiro. É preciso, ao mesmo tempo, alguma coisa de sólido e de atraente; nada dos vossos romances ou novidades anticlássicas. É necessário escolher imediatamente um campo vasto. Vejamos, que pensa de um poema épico? O verdadeiro, o antigo poema histórico que englobe doze ou vinte e quatro cantos? É isso; eu dar-lhe-ei um tema. A batalha entre os Caledónios e os Romanos; dar-lhe-á o título de A Caledónia ou a Invasão Repelida. Agradará ao gosto actual e o senhor poderá fazer uma alusão ao nosso século.
- Mas a invasão de Agrícola não foi repelida.
- Não; mas o senhor é poeta; e, como tal, livre no seu vôo, e tão pouco escravo da verdade e do provável como o próprio Virgílio; o senhor pode vencer os Romanos, em despeito de Tácito.
- E colocar o acampamento de Agrícola no Kaim de... como lhe chama o senhor? - disse Lovel - Em despeito mesmo de Edie Olchitree.
- Poupe-me nesse ponto... E no entanto é possível que, nestas duas circunstâncias, o senhor esteja mais perto da verdade do que pensa, em despeito da toga do historiador e do roupão azul do mendigo.
- O senhor dá-me bons conselhos; farei todo o possível por aproveitá-los, mas será preciso que a sua complacência venha em meu socorro para as informações sobre as localidades.
- Quê, meu amigo? Mas a minha intenção é escrever as notas históricas e críticas no seguimento de cada canto, e eu próprio lhe traçar todo o plano. Também tenho as minhas pretensões ao gênio poético, Mr. Lovel; simplesmente, nunca pude fazer versos.
- É uma pena que lhe falte uma faculdade que é bastante essencial nessa arte!
- Essencial, não: é a parte puramente mecânica. Um homem pode ser poeta sem conhecer, como os antigos, a métrica e o dáctilo, ou fazer rimar no fim das linhas, como os modernos; assim como se pode ser arquitecto, embora incapaz de trabalhar como pedreiro. Pensa que Vitrúvio e Paládio alguma vez carregaram o coche da cal?
- Nesse caso, será então preciso que haja dois autores para fazer um poema: um para a invenção e plano e outro para o executar.
- Isso não estaria mal; em todo o caso, faremos a experiência. Não é porque me preocupe mostrar o meu nome ao público; mas num prefácio, após todas as belas coisas que o senhor julgar lá meter, poderá o senhor reconhecer que um sábio amigo o ajudou nos seus trabalhos; contudo, repito-o, sou inteiramente alheio à vaidade de autor.
Lovel divertiu-se muito interiormente com esta profissão de fé, que se harmonizava mal com a pressa que o seu velho amigo mostrava em aproveitar todas as ocasiões para se apresentar ao público, embora de maneira a lembrar mais aquele que sobe para as traseiras de uma carruagem do que quem vai dentro. O Antiquário achava-se nesse instante no cúmulo do contentamento; porque, semelhante a outros indivíduos que passam a sua vida em ocupações literárias obscuras e ignoradas, sentia a secreta ambição de se ver impresso; ambição que acessos de desconfiança reprimiam de vez em quando, o receio da crítica, e velhos hábitos de indolência que o levaram sempre a tudo guardar para o dia seguinte. "Mas, pensava ele então, eu posso, como um segundo Teucer, disparar os meus dardos da sombra do escudo do meu aliado; e, supondo que ele não seja um poeta de primeira ordem, não sou de maneira alguma responsável pela fraqueza dos seus versos; e boas anotações podem vir em reforço de um texto bastante medíocre. Contudo, este rapaz deve dar um bom poeta; nota-se nele toda a distracção comum aos filhos do Parnaso; raramente responde a uma pergunta que não se lhe tenha repetido duas vezes, engole o chá a escaldar, e come sem saber o que tem na boca. É bem o AEstus, o awen do bardo galés, o divinus afflatus (1), que transporta o poeta para além dos limites das coisas sublunares; as suas visões também apresentam todos os sintomas do delírio poético. Preciso de não me esquecer de mandar esta noite Caxon ver se ele apaga o castiçal; os poetas e os visionários estão sujeitos a negligenciar estas coisas". Depois, volvendo-se para o seu companheiro, continuou a falar-lhe assim, mas em voz alta:
- Sim, meu caro Lovel, o senhor não deixará de ter anotações, e creio até que podemos introduzir no apêndice o meu ensaio sobre a arte dos antigos acampamentos. Isso dará muito valor à obra. Faremos, pois, reviver essas antigas e respeitáveis formas tão vergonhosamente abandonadas nos nossos tempos. O senhor invocará a Musa, e certamente ela deve ser propícia a um autor que, num século de apostasia, fica afeiçoado, com a fé de Abdiel, às antigas cerimonias do culto. Em seguida, precisamos de uma visão em que o gênio da Caledónia apareça a Galgacus e faça passar diante dele toda a posteridade dos verdadeiros monarcas escoceses; e nas notas eu disparo uma frecha contra Boécio. Mas não, não se deve tocar
(1) Sopro divino. - N. do T.
nesse assunto, agora que o pobre sir Arthur está ameaçado por tantos tormentos e desgostos; mas esmagarei Ossian, Macpherson e Mac Cribb.
- Mas é preciso reflectir a quanto subirão as despesas de impressão - disse Lovel, querendo experimentar se esta frase não esfriaria um pouco o calor do zelo que animava o seu futuro colaborador.
- As despesas! -exclamou Mr. Oldbuck, detendo-se e metendo maquinalmente a mão ao bolso - É verdade Eu faria qualquer coisa... mas a sua intenção não seria publicar por assinatura?
- Não, certamente!
- Não, não - acrescentou o Antiquário - Não é honroso. Mas, eu lhe digo, conheço um livreiro que faz algum caso da minha opinião, e que não receará arriscar a sua impressão e o seu papel; e eu promoverei a venda de tantos exemplares quantos me seja possível.
- Ah! Eu não sou um autor mercenário - respondeu Lovel -Desejo somente não me arriscar a perder.
- Bem, bem! Veremos isso; é preciso que os editores corram todos os riscos. Estou impaciente por vê-lo começar os seus trabalhos; o senhor escolhe sem dúvida o verso branco; é o mais nobre, o mais majestoso para um tema histórico, e por interesse por si, meu amigo, creio que é também o mais fácil.
Esta conversa levou-os até Monkbarns, onde o Antiquário teve de suportar um sermão de sua irmã, que, embora não fosse filósofa, o esperava sob o pórtico para lhe arengar.
- Santo Deus, Monkbarns! Não basta já ser tudo bastante caro, e ainda o senhor aumenta o preço do peixe dando a essa descarada Maggie tudo o que ela lhe pede.
- Como assim, Grizel! - replicou o sábio, um pouco desconcertado por aquele ataque imprevisto - Eu julgava ter feito uma boa compra.
- Boa compra, quando lhe deu mais de metade do que ela pedia! Se o senhor quiser fazer de dona de casa e comprar o peixe, não deve oferecer mais de um quarto. E depois a descarada não teve vergonha de vir pedir-me o copinho de aguardente. Mas asseguro-Lhe que Jenny e eu a arranjámos bem!...
- Realmente - disse Oldbuck, lançando um olhar de soslaio ao seu companheiro - creio que devemos abençoar a sorte propícia que nos fez escapar ao in-" conveniente de ouvir essa discussão. Vamos, Grizel, procedi mal uma vez na minha vida: Ultra crepidam (1) concordo francamente; mas ponhamos de parte a despesa. As precauções matariam um rato; comeremos peixe, qualquer que seja o seu preço. E, além disso, Lovel, fique sabendo que lhe pedi para ficar hoje, porque temos comida um pouco melhor que da costume, por ter sido ontem jantar de gala. Prefiro à própria festa o dia seguinte à festa. Gosto dos sobejos, das miscelâneas, se assim lhes posso chamar, do jantar da véspera que se tornam a servir nestas ocasiões. Vamos, vê, Jenny já está a tocar a sineta.
Que esta carta seja entregue a toda a pressa, com toda a pressa de que o correio for capaz. Corre, galopa, patife, como se disso dependesse a vida, a tua vida, sim, a tua vida.
Antiga recomendação das cartas de importância
Deixamos Mr. Oldbuck e o seu amigo diante do peixe adquirido tão caro e permitimo-nos transportar, com o leitor, às traseiras da loja do chefe do correio de Fairport, onde sua mulher (por ele se encontrar ausente) se ocupava em classificar as cartas chegadas pelo correio de Edimburgo, pela ordem em que deviam ser entregues. É aquela hora do dia pela qual é por vezes agradável às comadres de uma pequena cidade entrarem em casa do homem ou da mulher das cartas, a fim de poderem, pelos sobrescritos, e, se não estiverem bem fechadas, por vezes também pelo conteúdo das epístolas, divertirem-se a colher informações ou a formar conjecturas sobre a correspondência
(1) Neê sutor ultra crepidam, "que o sapateiro só trate de sapatos", que se exprime pelo rifão português: "Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão". - N. do T.
e os negócios dos seus vizinhos. No momento em que falamos, estavam duas mulheres a ajudar, ou antes, a atrasar a senhora Mailsetter no seu dever oficial.
- Deus nos acuda! - exclamou a mulher do magarefe - Eis dez, onze, doze cartas para a casa & Cª Aquela gente faz mais negócios do que todo o resto da cidade.
- Ah! Sim... mas veja, minha filha - respondeu a mulher do padeiro - há duas que são sobrescritos bem fechados e lacrados nos dois extremos. Desconfio que contêm letras protestadas.
- Chegaram cartas para Jenny Caxon? - perguntou a mulher das miudezas de carneiro - Há três semanas que o tenente partiu.
- Faz terça-feira oito dias que chegou uma - disse a mulher das cartas.
- Vinha por barco? -perguntou a Fornarina.
- Sim, garanto-lhe.
- Então era do tenente - replicou a mulher dos pãezinhos, um pouco desapontada - Nunca acreditei que ele pensasse nela depois de partir.
- Irra, cá está outra! - exclamou a senhora Mailsetter - Uma carta de barco, carimbada de Sunderland.
As outras duas mulheres levantaram-se para se apoderarem dela.
- Não, não, minhas senhoras - disse a senhora Mailsetter, opondo-se - estou farta disso. Não sabem que Mr. Mailsetter foi muito belamente admoestado pelo secretário em Edimburgo, por causa de uma queixa que se fez a respeito daquela carta de Aily Bisset, que a senhora abriu, senhora Shortcake?
- Que eu abri! - exclamou a esposa do principal padeiro de Fairport - A senhora sabe que ela se abriu sozinha nas minhas mãos. Que podia eu fazer? As pessoas que escrevem deviam servir-se de melhor lacre...
- Está bem, devo confessar que tem razão - declarou a senhora Mailsetter, que tinha uma loja de mercadorias várias -e nós temos um lacre que podemos recomendar em consciência, se a senhora conhecer alguém que precise dele. Mas a verdade é que perdemos o lugar, se continuarem queixas deste género.
- Ora, minha filha, o preboste teria o cuidado de o impedir.
- Não, não, não me fio nem no preboste, nem no bailio - disse a mulher do correio - No entanto, não peço mais do que ser amável com os meus vizinhos, e tão-pouco os impeço de ver uma carta por fora. Vejam... Há uma âncora no sobrescrito desta: o autor serviu-se de um "dos seus botões, ia apostar.
- Vejamos, vejamos! - exclamaram, ao mesmo tempo as mulheres dos principais cortador e padeiro da cidade; e lançaram-se sobre a suposta carta de amor, como as três bruxas de Macbeth sobre o polegar do piloto, com uma curiosidade tão ávida e quase tão maldosa.
A senhora Heukbane era uma mulher alta, tinha a preciosa epístola muito perto dos olhos e da janela. A senhora Shortecake, que era baixa e atarracada-, erguia-se, e mantinha-se nos bicos dos pés para obter a sua parte no exame.
- Realmente, é dele, não há dúvida -disse a esposa do padeiro - Posso ler a sua assinatura, Richard Taffril, ao canto, e o papel está cheio de uma ponta a outra.
- Ponha-a mais baixo! - exclamou a senhora Shortcake, cochichando um pouco mais alto do que o não desejaria a prudência exigida pela sua ocupação - Ponha-a mais baixo; julga que mais ninguém senão a senhora sabe ler?
- Chiu! Chiu! Por amor de Deus, minhas senhoras - disse a mulher do correio - está gente na loja...
- depois, em voz alta -Baby, atende os clientes.
Baby respondeu em voz aguda:
- É só Jenny Caxon, minha senhora, que vem ver se há correspondência para ela.
- Dize-lhe - replicou a íntegra mulher do correio, fazendo sinais às suas comadres - que venha amanhã de manhã, às dez horas, para eu lhe responder; ainda não tivemos tempo de reconhecer e distribuir as cartas. Ela tem sempre tanta pressa como se as suas cartas fossem mais importantes que as do primeiro negociante da cidade.
A pobre Jenny, jovem de uma beleza e de uma modéstia notáveis, puxou a sua capa para o peito; decerto com o fim de ocultar o suspiro de desgosto que soltou, e encaminhou-se vagarosamente para sua casa, a fim de aí padecer durante toda uma noite aquela tristeza e aquele desânimo que se apoderam de um coração cuja esperança acaba de ser iludida.
- Há alguma coisa a respeito de uma agulha e de um pólo (1) - disse a senhora Shortcake, a quem a sua rival em bisbilhotice, de estatura mais alta, permitira finalmente lançar um olhar ao objecto da sua curiosidade.
- com certeza; é uma autêntica vergonha - disse a senhora Heukbane - fazer pouco daquela pobre parva depois de a namorar durante tanto tempo. e de obter tudo o que quis, sem dúvida.
- Não se pode duvidar - concordou a senhora Shortcake - Ir censurá-la por o pai não ser mais do que um barbeiro e por ter um poste à sua porta, e que ela própria não passava de uma costureira: apre, já não há vergonha!
- Nenhuma! - exclamou a senhora Mailsetter - A senhora não percebe. Trata-se de uma coisa que foi tirada de uma dessas canções de marinheiro em que se fala de ser fiel como a agulha de marear o, é ao pólo; lembro-me de lha ouvir cantar.
- Bem, bem, faço votos por que assim seja, mas a senhora concorda que não é bonito uma menina como ela estar em correspondência com um oficial ao serviço do rei.
- Não digo o contrário - respondeu a senhora Mailsetter-mas tem de convir que as cartas de amor constituem uma boa receita para a administração do correio. Olhem, aqui estão cinco ou seis cartas para sir Arthur Wardour, a maior parte fechadas com obreias e não com lacre. Creiam-me, há-de haver em breve modificações naquela casa.
- São decerto cartas de negócios, e não dos seus amigos grandes senhores, que lacram sempre com os seus brasões, como eles lhes chamam - disse a senhora Heukbane - Aquilo vem a acabar mal; o orgulho daquela gente há-de abaixar-se. Há vn ano que
(1) fale significa simultaneamente pólo ou estaca ou vara, o que se presta em inglês a uma expressão de duplo sentido - N. do T.
não faz contas com o meu marido, tenho a impressão de que está naufragado.
- Nem connosco há seis meses - ajuntou a senhora Shortcake - É um cesto roto.
- Eis uma carta - prosseguiu a mulher do correio - que vem do seu filho capitão, suponho eu; o lacre tem as mesmas armas que estão na carruagem dos Knockwinnock: vai certamente regressar para ver o que pode salvar do incêndio.
Depois de acabarem de se ocupar do baronnet, as fêmeas passaram ao escudeiro.
- Duas cartas para Monkbarns; vêm sem dúvida de alguns sábios seus amigos: vejam como a letra é apertada, vai até o lacre, e isto para evitar porte duplo. É bem como o próprio Monkbarns; quando estampilha uma carta, tem o cuidado de que ela pese uma onça tão exacta que um grão de alcaravia faria pender a balança. Ah! Ver-me-ia obrigada a abrir falência se pesasse com tanta exactidão às pessoas que vêm comprar-me pimenta ou enxofre, e outras especiarias.
- O laird de Monkbarns não passa de um sovina
- disse a senhora Heukbane - Não quer pagar um quarto de carneiro mais caro em Agosto do que se fosse um traço de vaca. E se nós tomássemos mais uma pinga desse licor, senhora Mailsetter? Ah, minhas amigas, se conhecessem como eu o seu irmão! Quantas vezes ele deslizou para a minha casa, com um par de patos bravos na bolsa, quando o meu pri meiro marido estava na feira de Falkirk!... Ah, meu Deus, para que serve falar disso agora?
- Eu não digo mal de Monkbarns - declarou a senhora Shortcake - O seu irmão nunca me trouxe patos bravos, mas este é um homem honesto e digno. Somos nós que fornecemos pão à família, e ele paga-nos todas as semanas. Apenas se encolerizou quando lhe enviámos um livro das talhas, que, dizia ele, era o verdadeiro e antigo costume de fazer contas entre os padeiros e os seus fregueses, e não deixava de ter razão nisso.
- Mas vejam isto, minhas senhoras - disse a mulher do correio -eis uma coisa que vale a pena. Que não dariam para saber o que contém esta carta? Eis alguma coisa de novo; nunca vi coisa semelhante:
Para William Lovel, Esquire, em casa da senhora Hadoway, High-Street, Fairport, por Edimburgo. N. B. É justamente a segunda carta que ele recebe desde que aqui está.
- Por amor de Deus, vejamos, minha querida; vejamos um pouco, por favor: é aquele de quem toda a cidade nada sabe, e, além disso, é um belo rapaz. Deixe-nos ver! Deixe-nos ver! - exclamaram aquelas duas dignas filhas da nossa mãe Eva.
- Não, não, minhas senhoras - respondeu a senhora Mailsetter - não toquem aí, peço-lhes. Não se trata de uma daquelas cartas de quatro pence, cujo valor nós poderíamos repor no correio, se sucedesse algum percalço. O porte desta é de vinte xelins, e há uma ordem do secretário para a enviar ao jovem por um expresso, no caso de ele não se encontrar em casa. Não lhe ponham pois as mãos, por favor; não se deve tocar-lhe.
- Mas deixe-nos ver somente o sobrescrito.
O sobrescrito não podia fornecer nenhuma informação, nada a não ser as diversas características que os filósofos atribuem aos objectos materiais: comprimento, largura, espessura e peso. O volume era composto de um papel muito espesso; impenetrável aos olhos curiosos das comadres, embora elas os fixassem de modo a fazê-los sair das suas órbitas; o lacre trazia uma marca nítida e profunda de armas, e pela sua solidez parecia desafiar todas as artimanhas da curiosidade.
- Meu Deus, minha querida - suspirou a padeira, sopesando a carta na sua mão, enquanto desejaria que o lacre, aí, demasiado sólido, pudesse derreter-se ou dissolver-se - como eu gostaria de saber o que está lá dentro! Porque este Lovel constitui o tormento de toda a cidade de Fairport: ninguém sabe verdadeiramente o que pensar dele.
- Bem, minhas senhoras - disse a mulher do correio - sentemo-nos para conversar um pouco. Baby, traze-nos a água para o chá. Estou-lhe muito agradecida pelos seus bolos, senhora Shortcake. Vamos fechar a loja e jogar uma partida de cartas até que o meu marido volte, e depois saborearemos o arroz de carne que a senhora Heukbane teve a bondade de mandar.
- Mas não vai remeter a carta a Mr. Lovel? lembrou a mulher do cortador.
- Não sei quem lá mandar até que meu marido regresse, porque o velho Caxon disse-me que Mr. Lovel passava todo o dia em Monkbarns. Apanhou uma boa febre, ao retirar do mar o laird e sir Arthur.
- E que necessidade tinham essas duas velhas cabeças - disse a padeira - de ir banhar-se numa noite como a de ontem.
- Constou-me - disse a senhora Heukbane - que foi o velho Edie quem os salvou; que ele os tirara a todos três do velho tanque onde Monkbarns os levara para verem as obras antigas dos monges.
- Ora, ora, isso são fábulas! - respondeu a mulher do correio - Vou contar-lhes tudo como Caxon mo contou. Saiba que sir Arthur e Miss Wardour e Mr. Lovel jantaram em Monkbarns.
- Mas, senhora Mailsetter- disse ainda a mulher do cortador; interrompendo-a - não vai mandar um expresso com essa carta? O nosso cavalo e o nosso rapaz estão prontos, e já serviram de expresso ao correio; o cavalo ainda hoje não percorreu trinta milhas; Jack levava-o para a cocheira, quando eu saía.
- Quanto a isso, senhora Heukbane - respondeu a mulher das cartas, beliscando os lábios - como sabe, meu marido gosta ele próprio de encarregar-se das mensagens. É preciso pensar nos nossos interesses antes de pensar nos dos estranhos, e todas as vezes que ele monta no seu jumento, ganha um bom meio guinéu. Tenho a certeza de que não tardará em voltar, e depois virá a dar na mesma que o jovem venha a receber a sua carta esta tarde ou amanhã de manhã.
- A não ser que Mr. Lovel talvez já tenha voltado à cidade antes da partida do expresso - disse a senhora Heukbane - E depois? Mas, ao menos, já sabe o que tem a fazer.
- Bem, senhora Heukbane - replicou a senhora Mailsetter, com um pouco de espírito e mesmo um pouco de confusão - a senhora bem sabe que sou boa vizinha e que gosto de viver e deixar viver toda a gente, como é costume dizer-se; e visto que fiz a asneira de lhe mostrar a ordem do correio, não há dúvida de que devo executá-la; mas agradeço-lhe o seu rapaz, não precisarei dele, mando o pequeno, David no seu cavalo, e serão cinco xelins e dois pence para cada uma, como sabe.
- O David? Deus a ajude! O pequeno ainda não tem dez anos e, para lhe falar francamente, o nosso cavalo é um pouco manhoso, pode escoucear no caminho, e ninguém o sabe conduzir senão Jack.
- Tenho pena - disse a mulher do correio, em ar grave - Nesse caso, teremos de esperar o regresso de meu marido, porque não quero ficar com a responsabilidade de ter confiado uma carta ao seu filho Jack. O nosso David de certo modo pertence à estação do correio.
- Bem. bem, senhora Mailsetter, vejo onde quer chegar; mas se a senhora arrisca o seu filho, eu consinto em arriscar o meu animal.
Deram ordens em conformidade. O cavalo, que não consultaram, foi retirado da cocheira onde repousava sobre palha, e arreado para a partida. David, com o saco de couro oficial suspenso do ombro, foi içado à sela, lágrima no olho e verdasca na mão. Jack teve a complacência de conduzir o animal fora da cidade, e, pelos estalidos do chicote e os incitamentos de uma voz muito conhecida, obrigou-o a tomar o caminho de Monkbarns.
Entretanto, as comadres, como as sibilas depois de terem consultado os oráculos, compuseram e combinaram as novidades da noite, que se difundiram no dia seguinte de manhã no mundo de Fairport por mil fontes diferentes, e com mil variações. Notícias e conjecturas estranhas foram as consequências daqueles boatos. Uns diziam que a casa Tennant & C. a estava em falência, e que todas as suas letras voltavam protestadas; outros que ela fizera contrato com o governo para uma compra considerável, e que recebia cartas dos principais negociantes de Glásgua que desejavam comprar acções dessa empresa. Por um lado, corria o boato de que o tenente Taffril reconhecera definitivamente o seu casamento secreto com Jenny Caxon; por outro, que escrevera uma carta em que censurava a baixeza do seu nascimento e da sua educação, e lhe dizia um eterno adeus. Dizia-se por toda a cidade que os negócios de sir Arthur Wardour estavam irremediavelmente perdidos; e as pessoas prudentes não duvidavam destes relatos porque partiam da loja da senhora Mailsetter, fonte mais célebre pela circulação de notícias do que pela sua exactidão. Mas toda a gente era unânime em dizer que viera um volume do ministério dirigido a Mr. Lovel, trazido por um dragão de ordenança que tinham despachado do quartel-general de Edimburgo, e que atravessara Fairport a galope sem se deter, a não ser para perguntar o caminho de Monkbarns. Os motivos de uma mensagem tão extraordinária para um indivíduo tão sossegado e tão recolhido como Mr. Lovel eram explicados de diversas maneiras. Uns diziam que Lovel era um nobre emigrado, nomeado para ir comandar uma insurreição que acabava de eclodir na Vendeia, outros que era um espião, outros ainda que era um oficial-general em secreta visita à costa; e, finalmente, havia pessoas que queriam que fosse um príncipe de sangue a viajar incógnito.
Entretanto, o volume que dava ensejo a tantas reflexões experimentara mais de um perigo e de um atraso no caminho de Monkbarns. O portador, David Mailsetter, que tão pouca semelhança possível tinha com um dragão de ordenança, foi levado em frente pelo caminho direito enquanto o cavalo teve presente na memóri'a o estalado do seu instrumento habitual de correcção e a voz do rapaz do cortador. Mas quando se apercebeu de como David, cujas pequenas pernas lhe não permitiam conservar o equilíbrio, balouçava no seu lombo, resolveu não obedecer mais às ordens que recebera. Começou, então, por não ir mais do que a passo. Isto não seria motivo de conflito entre ele e o seu cavaleiro, que fora muito perturbado pela rapidez dos seus primeiros movimentos e que se apressou a aproveitar o momento em que ele afrouxava o passo para roer um bocado de pão de gengibre que sua mãe lhe metera na mão, a fim de bem dispor o jovem empregado do correio a cumprir o seu dever. Mas, gradualmente, a maliciosa cavalgadura aproveitou este relaxamento de disciplina para se desembaraçar da brida, retirando-a pouco a pouco da mão de David, e começou a tosar a erva à beira do caminho.
Apavorado por estes sintomas de rebelião obstinada, e sentindo-se tão assustado em ficar sentado como em apear-se, o pobre David ergueu a voz a chorar com força. O cavalo, ouvindo todo este barulho por cima da sua cabeça, começou aparentemente a pensar que o melhor partido a tomar para ele e o seu companheiro era voltar para de onde vieram; por isso, fez um movimento de retrocesso para Fairport. Mas assim como todas as retiradas estão sujeitas a acabar em completa derrota, assim o animal, alarmado pelos gritos da criança, lançou-se em tal velocidade que, supondo que David se mantivesse na sela, coisa que parecia bastante duvidosa, não tardaria em depô-lo diante da cocheira do cortador, se não surgisse um auxiliar muito a propósito sob a forma do velho Edie Ochiltree, que se apoderou das rédeas e o obrigou a deter-se na sua corrida, bradando:
- Quem és tu, rapaz? Por que motivo vais a galopar assim?
- A culpa não é minha - respondeu o expresso, a soluçar - Eu sou o pequeno David.
- E onde ias tu?
- Vou a Monkbarns levar uma carta.
- Mas, menino, tu não estás no caminho de Monkbarns.
David não pôde responder a isto senão por meio de soluços e lágrimas.
O velho Edie era muito sujeito à compaixão, quando se tratava de uma criança. "Eu não ia para lá, pensou ele, mas o que há de bom no meu género de vida é que nunca estou fora do meu caminho. Dar-me-ão abrigo em Monkbarns com tão boa vontade como noutro sítio qualquer; encaminho-me, pois, para lá com o pequeno, porque se ele não tiver ninguém para lhe guiar o cavalo, o pobre rapaz parte a cabeça".
- Dizes então que tens uma carta, meu rapaz? Queres mostrar-ma?
- Eu não devo mostrar a carta a ninguém - disse o pequeno, sempre a soluçar - antes de a entregar a a Mr. Lovel; porque eu sou um fiel servidor do correio; o resto é tudo culpa do cavalo.
- Está muito bem, meu homenzinho - disse Olchitree, voltando a cabeça ao cavalo, apesar da repugnância do pobre animal, para o lado de Monkbarns - Mas por muito teimoso que ele seja, havemos de levá-lo nós dois.
Na própria eminência de Kinprunes, onde Oldbuck atraira Lovel depois de jantar, o Antiquário, reconciliado com os campos outrora degradados, entregava-se com complacência às inspirações que o lugar lhe oferecia para a descrição do acampamento de Agrícola, ao romper do dia, quando de repente o seu olhar se deteve no mendigo e seu protegido.
- Co'os diabos! Eis o velho Edie, creio eu, com saco e bagagem!
O mendigo explicou o objectivo daquela viagem, e David, que tinha de cumprir literalmente a sua missão indo até Monkbarns, teve dificuldade em deixar-se persuadir a entregar a mensagem ao seu proprietário, porque o encontrava uma milha mais perto do que o local onde se dirigia.
- Mas a mamã disse que era preciso não deixar de levar vinte e cinco xelins pelo porte da carta e dez xelins e meio pelo expresso. Eis o papel.
- Vejamos, vejamos - disse Oldbuck, pondo os óculos e examinando a folha garatujada dos regulamentos que David chamava em seu apoio - Por um expresso, homem e cavalo não serão pagos por dia mais de dez xelins e meio. Por um dia! Não houve mais de uma hora. Um homem e um cavalo, diz-se! com a breca, não vemos aqui senão um macaco e um gato magro.
- Meu pai teria vindo no jumento ruço, se o senhor pudesse esperar até amanhã de manhã. - Vinte e quatro horas depois da data regular da
entrega da carta! - exclamou o Antiquário - Pinto mal saído da casca, ovo de basilisco, cedo aprendeste a enganar os outros?
- Vamos, Monkbarns, não se zangue com o pequeno - disse o velho pedinte - Pense que o cortador arriscou a sua cavalgadura, e a boa mulher o seu filho, e que dez xelins e meio não são muito por tudo isso. O senhor não foi tão rigoroso com John Howie quando...
Lovel que, sentado no pretenso Praetorium, passara o olhar pelo conteúdo do pacote, pôs fim à altercação pagando a David o que ele pedia. Depois, voltando-se para Oldbuck num ar muito agitado, desculpou-se de não poder voltar com ele para Monkbarns.
- Preciso de ir sem demora a Fairport, que posso ser obrigado a abandonar de um momento para o outro.
Nunca esquecerei, Mr. Oldbuck, as gentilezas que teve para comigo.
- Espero que não tenha recebido más notícias disse o Antiquário.
- São muito misturadas. Adeus. Na boa e na má sorte guardarei sempre a recordação do interesse que me testemunhou
- Mas mas espere então um momento e fazendo um esforço sobre ele próprio - Se tem algum embaraço pecuniário, eu tenho cinquenta. mesmo cem guinéus à sua disposição, até Pentecostes, ou em verdade por todo o tempo que o senhor quiser.
- Estou-lhe muito grato, Mr. Oldbuck; mas, nesse capítulo, estou amplamente provido - disse o seu misterioso amigo - Queira desculpar; não me encontro realmente em estado de manter uma longa conversa; escrever-lhe-ei ou vê-lo-ei antes de deixar Fairport, no caso de me ver forçado a isso.
Ao terminar estas palavras, apertou afectuosamente a mão do Antiquário e, sem escutar mais perguntas, meteu-se rapidamente a caminho da cidade.
- Tudo isto é muito extraordinário - disse Oldbuck
- Mas há neste rapaz alguma coisa que eu não pude devassar, e no entanto é-me impossível fazer má opinião a seu respeito. Tenho de regressar e apagar o lume do quarto verde - ajuntou ele - porque tenho a certeza de que nenhuma das fêmeas se atreveria a lá entrar depois do crepúsculo.
- E como vou eu voltar para casa? - perguntou, a chorar, o rapaz do correio.
- A noite está bela - disse o mendigo, olhando para o céu - é para mim o mesmo voltar à cidade para tomar conta desta criança.
- Faz bem, Edie - e remexendo no vasto bolso do seu casaco até encontrar o que procurava - Tome ajuntou o Antiquário - aí tem seis pence para comprar rapé.
O patife embruxou-me com a sua companhia. Eu seja enforcado se o velhaco não me deu drogas para que eu o estimasse tanto. Não pode ser de oufra maneira. Devo ter tomado drogas.
SHAKSPEARE - Henrique I
Durante uns quinze dias, Oldbuck informou-se regularmente junto do veterano Caxon acerca do que ouvira dizer de Lovel, e as respostas de Caxon também foram regularmente as mesmas. A cidade, dizia ele, nada sabia a seu respeito, a não ser que recebera uma ou duas grandes cartas do Sul e que nunca mais o viram sair.
- E de que maneira vive ele, Caxon?
- A senhora Hadoway prepara-lhe um bife ou uma costeleta de carneiro, ou um fricassé de frango, enfim, o que ela própria julga conveniente, e ele come no pequeno locutório vermelho, ao lado do seu quarto. Não consegue que ele prefira uma coisa a outra; faz-Lhe chá todas as manhãs, e ele paga-lhe honradamente todas as semanas.
- Mas nunca sai?
- Abandonou por completo os seus passeios, e fica todo o dia no quarto, a ler e a escrever. Escreveu várias cartas; mas não quis metê-las no correio da cidade, apesar da senhora Hadoway se ter oferecido para ela própria as levar. Preferiu enviá-las num sobrescrito ao sherife, e, na opinião da senhora Mailsetter, este mandou-as meter, pelo seu criado, no correio em Tannonburgh. Tenho a impressão da que suspeita de que vêem as cartas no posto da Fairport, e nisso não se engana, porque a minha pobre filha Jenny...
- Alto, Caxon! Vais aborrecer-me com as tuas histórias de mulheres? Mas falemos desse pobre rapaz: não escreveu senão cartas?
- Oh, não, senhor! A senhora Hadoway disse que ele enche folhas inteiras com outras coisas. Bem desejaria ela poder convencê-lo a passear um pouco; acha-lhe agora muito mau aspecto, e notou que ele perdeu completamente o apetite. Mas nem quer ouvir falar em ultrapassar as umbreiras da porta, ele que estava habituado a fazer tanto exercício.
- Faz mal. Calculo de que ele se ocupa; mas também é preciso que não trabalhe de mais. Vou hoje mesmo visitá-lo. Não há dúvida de que mergulhou na Caledónia.
Tomando esta enérgica resolução, Oldbruck equipou-se para a sua excursão; calçou os seus fortes sapatos de viagem e empunhou a sua bengala de castão de ouro, repetindo ao mesmo tempo as palavras de Falstaff que pusemos à cabeça deste capítulo; pois Antiquário admirava-se do grau de afeição que não podia deixar de experimentar por aquele jovem estrangeiro. Não era, porém, muito difícil explicar a causa: Lovel, além das suas atraentes qualidades, conquistara o coração do nosso Antiquário por se mostrar geralmente muito atento em escutá-lo.
Um passeio a Fairport tinha-se tornado um verdadeiro acontecimento na vida de Oldbuck, que não se preocupava em empreendê-lo muitas vezes. Detestava os cumprimentos que tinha de receber na praça do mercado; depois, as ruas estavam geralmente cheias de ociosos que não deixavam de o perseguir com as novidades do dia, ou a propósito de pequenos interesses públicos. Nessa ocasião, mal ele se mostrou nas ruas de Fairport, foi assaltado por um "bom dia, Mr. Oldbuck! Em verdade, o senhor torna-se bem raro! Que pensa das notícias que o jornal de hoje publica? Diz-se que a grande empresa começa decididamente dentro de quinze dias".
- Desejaria que começasse e acabasse, para nunca mais ouvir falar dela.
- Monkbarns - disse um jardineiro florista - espero que Vossa Honra ficasse satisfeito com as plantas, e se o senhor precisa de belas sementes de flores recentemente chegadas da Holanda - baixando a voz e de uma ou duas caixas de água de Colonia, um dos nossos navios entrou ontem no porto.
- Obrigado, obrigado, de momento não preciso de nada, Mr. Crabtree - disse o Antiquário, continuando sempre a avançar corajosamente.
- Mr. Oldbuck - disse o notário da cidade, personagem mais importante que veio apresentar-se diante do velho gentleman, aventurando-se a detê-lo - o preboste, que acaba de saber que o senhor está na cidade, pede-lhe instantemente que não pense em deixá-la sem o ver. Quer falar-lhe a respeito da fonte de Fairwell, porque talvez seja preciso que ela atravesse uma parte das suas terras.
- Que diabo, não há outras terras senão as minhas, para fazer todo esse desgaste? Diga-lhe que não consinto.
- E o preboste - ajuntou o notário, sem dar atenção a esta recusa - o preboste, assim como o conselho, consentem que o senhor mande retirar as pedras antigas da capela de São Donagild que o senhor parece desejar.
- Como, que diz? Ah, isso e outro negócio! Pois bem, eu passo por casa do preboste, e depois falamos.
- Mas é preciso que o senhor diga imediatamente, Monkbarns, se deseja as pedras, porque o diácono Harlewalls pensa que essas estátuas, todas mutiladas como estão, fariam bom efeito no frontão da nossa nova sala do conselho. Colocar-se-iam as duas figuras de pernas cruzadas, a que chamam vulgarmente Robbin e Bobbin, a cada lado da porta, e a terceira, que se chama Ailie Dailie, por cima. O diácono diz que seria de bom gosto e precisamente no estilo gótico moderno.
- Deus me livre dessa geração gótica! - exclamou o Antiquário - A estátua de um cavaleiro templário a cada lado de um pórtico grego e uma Madona por cima! O crimini. Pois bem, diga ao preboste que desejo essas pedras, que não haverá oposição "no caso da fonte. Foi uma felicidade o acaso trazer-me hoje aqui.
Separaram-se mutuamente satisfeitos; mas o manhoso notário tinha razão para se felicitar pela sua habilidade, porque a proposta de uma troca entre os monumentos (que o conselho resolvera mandar retirar como um entrave na via pública em cerca de três pés) e o privilégio de fazer chegar a água à cidade através do domínio "de Monkbarns, fora uma ideia que a circunstância subitamente lhe inspirou.
Através destes diversos obstáculos, Monkbarns, para usar a frase pela qual ele era conhecido na região, acabou por chegar a casa da senhora Hadoway. Esta boa mulher, viúva da um eclesiástico de Fairport, pela morte do marido, caira no estado de embaraçosas dificuldades a que as viúvas dos membros do clero escocês ficam muitas vezes reduzidas. O mobiliário que conservara permitia-lhe alugar uma parte da sua casa mobilada, e como encontrara em Lovel um inquilino sossegado e afável, cuja estada em sua casa lhe fora vantajosa no aspecto pecuniário, e agradável pela brandura e delicadeza que ele sempre imprimira a todas as suas relações, afeiçoara-se-lhe sinceramente, e tinha com ele todos os pequenos cuidados e todas as atenções pessoais que as circunstâncias lhe permitiam. Era um prazer para ela preparar um prato de uma maneira um pouco mais requintada para o jantar do pobre jovem gentleman, ou aproveitar-se da boa vontad daqueles que estavam dispostos a servi-la por respeito pela memória de seu marido, ou por deferência por ela, a fim de obter algum legume raro, ou algum acepipe, que julgava, na sua simplicidade, dever oferecer ao gosto do seu locatário; mas quanto mais se comprazia em cercá-lo de cuidados, tanto mais procurava ocultá-los do conhecimento daquele que deles era objecto.
No entanto, se guardava o segredo destas benévolas atenções, não era para evitar o sorriso trocista daqueles que poderiam supor que um rosto oval e agradável, embelezado por dois grandes olhos negros e uma tez morena clara e animada, embora pertencente a uma mulher de quarenta e cinco anos e mostrando-se sob a humilde e modesta touca de viúva, ainda pudesse aspirar a fazer conquistas; porque, para falar francamente, como nunca uma ideia tão ridícula entrara na sua cabeça, ser-lhe-ia difícil emprestá-la à dos outros. Mas ocultava simplesmente os cuidados que tinha, por um motivo de delicadeza em relação ao seu locatário, cujos meios de acudir àquele pequeno acréscimo de despesa suspeitava não estarem em relação com o desejo que ele teria, e a quem queria evitar o desgosto de ter contraído, obrigações que lhe fosse impossível saldar.
Ela abriu a porta a Oldbuck, e a surpresa e a alegria que experimentou ao vê-lo foram tais que as lágrimas lhe vieram involuntariamente aos olhos.
- Tenho muito prazer, verdadeiramente muito prazer em vê-lo - disse - Receio que o meu pobre jovem esteja doente. Quer crer, Mr. Oldbuck, que ele não quer ver nem o médico, nem o pastor, nem o notário? E pense um pouco no que sucederia, se, como dizia o falecido Mr. Hadoway, morresse sem a ajuda das três faculdades sábias!
- Achar-se-ia muito melhor - resmungou o cínico Antiquário - Só lhe digo, senhora Hadoway, que o clero vive dos nossos pecados, o médico das nossas doenças e os homens de leis das nossas desgraças.
- Oh, Monkbarns! Como pode ouvir-se uma coisa dessas de um homem como o senhor? Mas suba e veja o nosso jovem. Ah, senhor, um rapaz tão novo e tão bonito e vê-lo comer todos os dias um pouco menos de tal forma que presentemente mal toca em alguma coisa, só se serve de um bocado no seu prato por pró forma; as pobres faces tornam-se dia a dia mais pálidas e mais magras, de maneira que neste momento tem ar tão envelhecido como eu, que poderia ser sua "mãe; não absolutamente, mas não falta muito.
- E porque não faz ele exercício? -indagou Oldbuck.
- Creio que conseguimos finalmente persuadi-Lo, porque comprou um cavalo de Gibbie Golightly, o alquilador; e Gibbie disse à nossa criada que ele era conhecedor de cavalos, pois lhe apresentara primeiro um que julgava dever convir bastante a um homem de gabinete; mas Mr. Lovel nem sequer quis olhá-lo segunda vez e comprou outro que poderia servir a um mestre de equitação. Tratam-no nas cocheiras das Armas de Grseme, aí defronte na rua, e ontem e hoje foi passear a cavalo antes do almoço. Mas não quer subir ao quarto dele?
- Vou já, Vou já. Diga-me, ninguém o veio "procurar.
- Oh, meu Deus, Mr. Oldbuck, ninguém! Se ele não queria visitas quando estava alegre e bem disposto, imagine, se se apresentasse alguém de Fairport, se ele o receberia agora.
A boa dona da casa conduziu Oldbuck por uma escadinha estreita, advertindo-o a cada volta e sempre a lamentar ser obrigada a fazê-lo subir tão alto. Por fim, bateu brandamente à porta do locutório do seu inquilino. "Entre", disse Lovel; e a senhora Hadoway introduziu o laird de Monkbarns.
O pequeno aposento era de um asseio notável, decentemente mobilado, e ornamentado por alguns trabalhos de agulha que a senhora Hadoway conservara da sua primeira juventude; mas era baixo e abafado, e Oldbuck receou que não fosse saudável para um jovem de saúde delicada, observação que o confirmou num projecto que já se apresentara ao seu espírito em favor de Lovel. Estava este sentado num canapé, em roupão e pantufas; uma secretária cheia de papéis e de livros achava-se diante dele. O Antiquário assustou-se com a mudança que se verificara na sua pessoa. Uma palidez mortal cobria a sua fronte e as suas faces, à excepção das maçãs do rosto, de um vermelho vivo, semelhante ao que geralmente indica a tísica, e tão diferente das frescas cores da saúde, animadas por um ligeiro tom crestado, que tão pouco tempo antes era a tez habitual do seu rosto. Oldbuck notou pelo seu vestuário, e por um casaco preto colocado numa cadeira a seu lado, que o jovem estava de luto carregado. Quando o Antiquário entrara, Lovel levantara-se para ir ao seu encontro.
- Eis quem é muito amável - disse ele, apertando-lhe a mão e agradecendo-lhe cordialmente a vinda -E o senhor adianta-se a uma visita que tencionava fazer-lhe. Saiba que fiz há pouco a aquisição de um cavalo.
- Foi o que me disse a senhora Hadoway. Espero apenas, meu caro amigo, que a sua escolha tenha recaído sobre um cavalo manso. A mim sucedeu-me comprar um imprudentemente, uma vez, a esse mesmo Gibbie Golightly. Ora, o dito animal desatou a correr comigo no lombo, pelo espaço de duas milhas, atrás de uma matilha de cães, com a qual eu tinha tanto que ver como com a neve do ano passado, e depois de ter proporcionado um divertimento inexcedível a um grupo de caçadores, teve a bondade de me depor num fosso seco. Espero que o seu seja mais pacífico.
- Espero, pelo menos, que nos entendamos melhor sobre a escolha das nossas excursões.
- Isso significa que o senhor se julga bom cavaleiro.
- Não admito facilmente que seja mau.
- É isso: os senhores, os jovens pensam todos que se podem qualificar-se a eles próprios, como os alfaiates. Mas tem tido experiência? Porque, credo experto (1), um cavalo furioso não é brincadeira.
- Certamente, não tenho a ambição de passar por um excelente calção; mas quando servia na qualidade de ajudante-de-campo de sir... numa acção de cavalaria, o ano passado, vi desmontar melhores cavaleiros do que eu.
- Ah! O senhor já contemplou de frente o terrível deus dos combates? Conheceu os furores de Marte? Não lhe faltava senão isso para acabar de se tornar digno da epopeia. Lembre-se, entretanto, de que os bretões combatiam nos seus carros; covínarii é a frase de Tácito. O senhor recorda-se da bela des crição da maneira como eles se lançavam sobre a infantaria romana, embora o historiador nos diga quanto a superfície montanhosa do país era pouco adequada a um combate equestre; e realmente eu sempre perguntei com espanto que espécie de carros se podiam arrastar na Escócia, fora das grandes estradas. Pois bem, vejamos, as Musas visitaram-no? Tem alguma coisa para me mostrar?
- O meu tempo - disse Lovel, lançando um olhar às suas roupas pretas - foi menos agradàvelmente consumido.
- Perdeu algum amigo? -indagou o Antiquário.
- Sim, Mr. Oldbuck, quase o único amigo que me ufanava de ter encontrado.
- Sim? -disse então o velho gentleman num tom sério muito diferente da sua gravidade habitual A morte, levando-lhe um amigo, quando a vossa mutua afeição ainda estava em toda a sua força, em todo o seu calor e que nenhuma recordação de frieza, de desconfiança ou de traição vem misturar-se com o amargor das lágrimas que verte pela sua perda, evita-lhe talvez uma provação ainda mais cruel. Olhe em sua volta: são bem poucas as ligações formadas na primeira idade da existência que o senhor vê envelhecer. A fonte em que haurimos em comum
(1) Crede no experiente. - N. do T.
os nossos prazeres vai secando à medida que avançamos na viagem, e procuramos outras, das quais os primeiros companheiros de caminhada são muitas vezes excluídos; o ciúme, a inveja, as rivalidades, vêm sucessivamente afastar de nós aqueles que julgamos nossos melhores amigos. Ficamos sós com aqueles que o hábito mais do que a inclinação nos conserva, e que não se ligando a nós por outro elo senão o do sangue, ficam junto do velho durante a sua vida para não serem esquecidos na sua morte.
Hoec data poena diu viventibus (1).
"Ah, Mr. Lovel! a sua sorte é atingir essa sombria e melancólica época da existência, lembre-se dos desgostos da sua mocidade como de leves nuvens que interceptaram por um momento os raios do sol nascente. Mas estou a cansar os seus ouvidos com palavras que não trazem nenhuma convicção ao seu espírito.
- Sou sensível ao seu benévolo interesse - disse o jovem -mas uma ferida tão recente deve sangrar dolorosamente; e no meu desgosto actual, perdoe-me falar-lhe assim, seria uma ideia pouco consoladora essa que me apresentaria o futuro a reservar-me uma série de desgostos ainda mais crueis. Permita-me acrescentar, Mr. Oldbuck, que o senhor tem menos razão do que qualquer outro para encarar a vida sob um aspecto tão triste. O senhor é abastado, goza da estima pública, pode, segundo as suas próprias expressões, vacare Musis, entregar-se a ocupações para que se sente inclinado; tem a faculdade de escolher a sociedade no exterior, e encontra no interior os cuidados afectuosos e assíduos dos mais próximos parentes.
- Sim, as fêmeas! As minhas fêmeas, devido à maneira como as eduquei, são muito corteses e muito tratáveis. Têm o cuidado de não me perturbar nos meus estudos da manhã, e de atravessar brandamente o quarto com o passo leve de um gato, quando, depois do jantar ou do chá, me sucede fazer um sono no meu
(1 É o castigo reservado aos que vivem muito tempo. - N. do T.
cadeirão... Tudo isso está muito bem, mas preciso de qualquer coisa mais, alguém com quem possa trocar ideias, enfim, com quem possa falar.
- Então, porque não chama para junto de si o seu sobrinho, o capitão Mac Intyre, de quem toda a gente fala como de um jovem cheio de vivacidade e de ardor?
- Quem? - exclamou Monkbarns - O meu sobrinho Heitor? O Hotspur (1) do Norte? Deus me livre! Preferia lançar um tição aceso no meu celeiro de feno. É um cérebro exaltado, um ferrabraz, com uma genealogia escocesa tão comprida como a grande rua de Fairport "e uma espada ainda mais comprida do que a sua genealogia, e que a desembainhou para o doutor, a última vez que esteve aqui. Estou à espera dele por estes dias, mas vou mantê-lo em respeito, asseguro-lhe. Ele tornar-se-á membro da minha família, para pôr tudo em desordem na minha casa e até fazer tremer as mesas e as cadeiras! Não, não; não quero o Heitor Mac Intyre. Mas escute, Lovel; o senhor é um rapaz cortês e sossegado, não faria melhor vir instalar-se em Monkbarns durante um mês ou dois, visto eu ver que não está decidido a deixar imediatamente o país? Mando abrir uma porta no seu quarto para o jardim; isso custa uma ninharia. Houve uma outrora que muralharam há muito tempo. Desta maneira, o senhor pode entrar e sair no quarto verde sem incomodar o velho anfitrião e sem ser incomodado. Quanto à forma de viver, a senhora Hadoway disse que o senhor é muito sóbrio na alimentação, segundo a sua expressão; assim, deve contentar-se com a nossa modesta mesa. Para o tratamento da roupa...
- Permita-me que o interrompa, meu caro Mr. Oldbuck - disse Lovel, sem poder reprimir um sorriso - e antes que a sua penhorante hospitalidade acabe projectos e arranjos que me seriam tão agradáveis, deixe-me agradecer sinceramente essa amistosa oferta. Não me é possível aceitá-la neste momento; mas antes das minhas despedidas à Escócia, espero ter maneira de ir passar uns dias consigo.
A fronte de Oldbuck anuviou-se.
(1) Esporão quente, em tradução literal. - N. do T.
- Quê? Quando eu julgava ter concebido um plano que melhor poderia convir a ambos! E quem sabe o que poderia seguir-se com o tempo, e nunca mais nos deixássemos? Sou senhor dos meus bens, meu caro amigo; é a vantagem de descender de um homem que tinha mais bom-senso do que orgulho. Não me podem obrigar a transmitir as minhas propriedades mobiliárias e imobiliárias e a minha herança senão à minha vontade. Os meus caprichos ou as minhas predilecções não serão perturbados pelo vôo de herdeiros substitutos, tão inúteis como os bocados de papel enfiados na cauda de um papagaio de papel. Mas vejo que o senhor não se quer deixar tentar presentemente. A Caledónia está, porém, em marcha, espero eu.
- Oh! Certamente - disse Lovel - Não posso abandonar um plano de tão belas esperanças.
- É, realmente - disse o Antiquário, erguendo gravemente os olhos ao céu (porque, com toda a sua penetração e bom-senso para apreciar os diferentes planos formados pelos outros, tinha sempre naturalmente uma opinião muito exagerada acerca da importância dos que ele próprio concebia) - é, realmente, um daqueles empreendimentos que, realizados com o mesmo espírito que os ditou, pode vingar a literatura actual da acusação de frivolidade que lhe fazem.
Foi interrompido por uma pancada que se ouviu na porta; era a senhora Hadoway que trazia uma carta para Mr. Lovel, e dizendo que um criado esperava a resposta.
- O senhor é interessado neste assunto, Mr. Oldbuck - disse Lovel, depois "de ter percorrido com o olhar o bilhete que mostrou ao Antiquário.
Era uma missiva de sir Arthur Wardour, escrita em termos extremamente delicados. Lamentava que um acesso de gota o tivesse impedido até então de testemunhar a Mr. Lovel, de qualquer maneira, a gratidão que sentia pela sua corajosa acção; desculpava-se de não vir pessoalmente apresentar-lhe os seus cumprimentos, mas esperava que Mr. Lovel quisesse pôr de parte toda a cerimónia e se juntasse à sua sociedade para ir visitar as ruínas da abadia de Santa Ruth e vir em seguida jantar e passar a tarde no castelo de Knockwinnock. Sir Arthur terminava, dizendo que enviara à família de Monkbarns um convite para se lhes juntar no projectado divertimento. O lugar do encontro estava marcado na barreira colocada a igual distância dos diferentes pontos de partida dos convidados.
- Que fazemos? - indagou Lovel, olhando o Antiquário, mas já resolvido no partido a tomar.
- Vamos, com certeza. Ora, vejamos: custará uma cadeira de posta inteirinha, onde caberemos muito à vontade, o senhor e eu, com Maria Mac Intyre; a minha outra fêmea pode ir visitar a irmã do pastor, e a cadeira ainda o pode trazer a Monkbarns, visto que a alugaremos ao dia.
- Mas parece-me que eu faria melhor indo a cavalo.
- É verdade, já me esquecia do seu Bucéfalo. E a propósito, o senhor foi um louco em comprar esse animal; teria feito melhor em alugar um cavalo, se gosta mais de se fiar em outras pernas do que nas suas.
- Sim, como os cavalos têm a vantagem de marchar muito mais depressa, e têm dois pares de pernas em vez de um, confesso que prefiro...
- Basta, basta; faça como quiser. Então levo Grizel ou o pastor, porque quando alugo cavalos de posta gosto de aproveitar bem o meu dinheiro. Assim, encontrar-nos-emos sexta-feira, ao meio-dia em ponto, na barreira de Terlingen.
Isto combinado, os dois amigos separaram-se.
Outrora, nestes lugares, padres cercados de sombrios archotes dirigiam ao céu as suas preces ferventes ou entoavam o hino nocturno. Ali se refugiava a desdita; ali viram expirar vingança e o ódio, - o remorso, abrandado pela piedade, ali sentia dissipar metade dos seus terrores, e o orgulho vergado ali derramava as lágrimas da penitência.
CRABBE - O Burgo
A manhã de sexta-feira estava tão bela, tão calma, como se não houvesse projectos de distracções, circunstância quase igualmente rara na vida real e nos romances. Lovel, reanimado pela influência propícia do tempo e pelo pensamento de se encontrar ainda uma vez com Miss Wardour, dirigiu-se a cavalo para o local do encontro, menos triste e melhor disposto do que não o estivera há muito tempo. Sob vários aspectos, o futuro parecia esclarecer-se a seus olhos, e a esperança, embora comparável aos raios do sol matinal que se mostravam entre brumas e nuvens, parecia querer brilhar sobre a estrada que ele percorria. Nesta disposição de espírito, era muito natural que fosse o primeiro a chegar ao lugar do encontro, e mais natural ainda que os seus olhares se fixassem tão atentamente na estrada de Knockwinnock que não se apercebesse da chegada de Monkbarns à barreira, antes de que o chicote do postilhão e o pesado rodar da cadeira de posta que o seguia o tivessem advertido. "
Naquela pesada máquina achavam-se encerradas, primeiro, a majestosa figura de Oldbuck, depois a não menos corpulenta pessoa do reverendo Blattergowl, sacerdote de Trotcossy, paróquia em que estavam situados Knockwinnock e Monkbarns. Este reverendo personagem vinha embiocado numa peruca crespa, no alto da qual se via um retorcido chapéu de três bicos. Era a sua o modelo que impunha das três últimas perucas que restavam na paróquia e que diferiam entre elas, segundo a expressão de Monkbarns, como os três graus de comparação; sendo a peruca chata de sir Arthur o positivo, a sua, de um feitio em pouco mais antigo, o comparativo, e a incomparável peruca grisalha do digno eclesiástico, o superlativo.
O superintendente destes antigos ornamentos, julgando ou fingindo julgar que não podia estar ausente numa circunstância que reunia todos três, sentara-se na prancha suspensa atrás da carruagem, a fim de ali estar se aqueles senhores tivessem necessidade de lhes dar uns retoques antes de jantar. Entre as duas pesadas pessoas do Antiquário e do pastor, achava-se a delgada e delicada forma de Maria Mac Intyre, pois sua tia preferira um dia passado no presbitério a conversar com a sua amiga Miss Beckie Blattergowl, ao exame das ruínas da abadia de Santa Ruth.
Quando Lovel cumprimentava a família de Monkbarns, avistou-se a carruagem do baronnet que chegava ao local do encontro. Era uma caleça descoberta que, pelos seus cavalos escumosos, seus elegantes postilhões, seus paineis brasonados, e pelos dois criados a cavalo que a precediam, formava um contraste assás flagrante com o máqluina desengonçada e as duas pilecas que tinham trazido o Antiquário e a sua companhia. Os lugares de honra da carruagem vinham ocupados por sir Arthur e sua filha. Ao primeiro olhar que trocaram Miss Wardour e Lovel, a tez da jovem tingiu-se de um vivo rubor; mas ela parecia ter formado o plano de o tratar como um amigo, porque correspondeu com tanto à-vontade como graça ao cumprimento que ele lhe dirigiu e que traía bastante a sua agitação. Sir Arthur deteve a caleça para apertar cordialmente a mão do seu jovem salvador e exprimir-lhe o prazer que experimentava em aproveitar aquela ocasião para lhe apresentar os seus agradecimentos pessoais. Depois, num tom bastante ligeiro e como se não ligasse importância ao caso, disse:
- Mr. Lovel, apresento-lhe Mr. Dousterswivel.
Lovel lançou um olhar ao alemão, que ocupava na caleça o banco da frente, geralmente concedido aos subalternos e aos inferiores. O sorriso afectado e o cumprimento obsequioso com que o estrangeiro se apressou a corresponder à leve inclinação de cabeça de Lovel aumentaram a espécie de aversão que este já experimentava interiormente por ele, e era evidente, pelo franzir do espesso sobrolho do Antiquário, que ele também via com descontentamento, aquele indivíduo fazer parte do rancho. O resto da companhia cumprimentou-se de longe por sinais, e as carruagens recomeçaram a rodar durante cerca de três milhas a contar do local onde se encontraram. Por fim, detiveram-se diante uma pequena estalagem à beira do caminho, com a tabuleta de Quatro Ferraduras do Cavalo, onde Caxon abriu humildemente a portinhola e baixou o estribo da cadeira de posta, enquanto os elegantes criados da caleça ajudavam sir Arthur e sua filha a sair.
Aqui, recomeçaram os cumprimentos. As jovens deram a mão uma à outra e Oldbuck, que se encontrava no seu elemento, principiou a marchar à frente, para servir de guia e de cicerone ao rancho, que avançava para o local que se propusera ver. O Antiquário teve o cuidado de reter Lovel perto dele, como o melhor ouvinte do grupo, e uma vez por outra dirigia uma palavra de explicação e de instrução a Miss Wardour e a Maria Mac Intyre, que o seguiam imediatamente. Ele evitava o baronnet e o pastor, porque sabia que estes dois personagens pretendiam perceber tão bem ou melhor do que ele do assunto de que se ia tratar; e quanto a Dousterswivel, além de o considerar um charlatão, a sua vista lembrava-lhe de tal modo a perda que receava sofrer na companhia das minas que não podia suportar a sua presença. O homem de igreja e o químico eram, pois, dois satélites que acompanhavam o planeta de sir Arthur, do qual, aliás, eles se aproximavam mais como personagem mais importante da sociedade.
Sucede muitas vezes na Escócia que os pontos de vista mais belos se ocultam no fundo de algum vale solitário, e que atravessamos o país em todos os sentidos sem suspeitar de que estamos perto de um lugar digno de atrair o nosso interesse, a não ser que um acidente ou a nossa intuição lá nos conduza. Isto aplica-se principalmente à região que circunda Fairport, e que é em geral nua e descoberta. Mas aqui e acolá o curso de um regato ou de um pequeno ribeiro vai lançar-se num vale, sobre as margens rochosas e altas onde se refugiaram árvores e arbustos de toda a espécie, que crescem com uma profusão tanto mais agradável que forma um contraste inesperado com a superfície geral do país. Encontravam-se sítios deste género à aproximação das ruínas de Santa Ruth, por um pequeno caminho que se estendia ao longo de uma montanha "escarpada e estéril, e que de início não parecia ser mais do que um sendeiro percorrido pelos animais. Mas gradualmente e consoante ia descendo e mergulhava nas voltas da montanha, começava-se a ver surgir árvores, primeiro afastadas umas das outras, definhadas e desfolhadas, e cujos troncos, em alguns pontos cheios de flocos de lã, ofereciam cavidades no interior onde os carneiros tanto gostavam de repousar: espectáculo mais agradável aos olhos de um admirador do género pitoresco do que aos de um cultivador ou proprietário de florestas.
Pouco a pouco, as árvores formaram-se em pequenos grupos rodeados de espinhos e de moitas, e por fim estes grupos aglomeraram-se de tal modo que, apesar de se abrirem aqui e acolá para criarem uma clareira, sombreada de ramagens, e de se encontrar de onde em onde um pequeno espaço nu, de charco ou de charneca estéril que recusava alimentar os rebentosque as árvores lançavam em sua volta, o aspecto neste local, no seu conjunto, era decididamente o de uma floresta. As vertentes do vale principiaram a aproximar-se, ouvia-se em baixo o rumor de um regato, e através das aberturas do bosque podia-se ver por intervalos as suas claras águas precipitarem o seu curso rápido sob o dossel de verdura que as cobria.
Oldbuck arrogou-se então toda a autoridade de um verdadeiro cicerone e recomendou seriamente aos companheiros que não se afastassem nem um passo do caminho que ele lhes indicava, se queriam desfrutar em toda a sua perfeição do espectáculo que vinham contemplar.
- Tem a felicidade de me ter por guia, Miss Wardour - disse o velho sábio, erguendo a mão e marcando, com o movimento da cabeça, a cadência destes versos que recitou com ênfase:
No meu curso tributário Percorri os recantos ridentes E todas as sendas verdejantes Deste bosque solitário; Conheci cada sarca densa E cada sombra tutelar, Quando minha mocidade alegre Folgava sobre a relva espessa.
"Oh! Demónios o levem... Este ram'o do espinheiro estragou inteiramente todo o trabalho de Gaxon, e por pouco não me atirou a peruca ao regato. Ora, aí está o que é recitar ou declamar fora de propósito".
- Console-se, meu caro senhor - disse Miss Wardour - tem muito perto o seu fiel cabeleireiro para reparar semelhantes desastres; e quando ele restituir à sua peruca o seu primitivo esplendor, poderei por meu turno fazer uma citação.
Assim o astro resplandecente Ao deitar-se e descer Ao leito do Oceano imenso, A espaços, em silêncio, Ergue sua pálida fronte, Colorindo-se num derradeiro raio, E ainda assoma ao horizonte, Fazendo brilhar um jogo moribundo. "
- Oh, basta, basta! - respondeu Oldbuck - Eu devia saber o que é dar-lhe vantagens contra mim. Mas eis o que deterá a sua veia satírica, porque eu sei que é uma admiradora da natureza.
com efeito, depois de terem passado através da brecha de um muro arruinado, uma perspectiva tão inesperada como interessante surpreendeu os espectadores.
Achavam-se colocados a uma altura bastante considerável à beira do vale, que de repente se alargara de maneira a formar uma espécie de anfiteatro que continha no seu recinto o lago límpido e profundo, cuja área de vários acres estava rodeada de um terreno liso e nivelado. Suas margens eram cercadas de alturas muito escarpadas, onde a rocha se mostrava nua em alguns sítios, ao passo que noutros se cobria de um souto, que de uma maneira irregular atapetava ligeiramente a superfície, e contrastava por suas cores variadas com a verdura uniforme da relva que revestia o terreno. Em baixo, o lago despejava-se num ribeiro rápido e rumoroso que acompanhava o seu trajecto desde que eles entraram no vale, e, muito perto do lugar onde se separava da fonte que alimentava o seu curso, encontravam-se as ruínas, objecto da sua curiosidade.
Não eram de grande extensão, mas a beleza singular, tanto como o carácter solitário e selvagem dos lugares que as circundavam, dava-lhes uma importância e sobretudo um interesse muito superior àquele que podem inspirar restos de uma arquitectura muito mais consideráveis, mas colocados no meio de casas vulgares e privados de acessórios tão românticos. A janela da igreja que contemplava a aurora permanecia inteira, com todos os seus ornamentos, e esta parte do edifício era amparada por ligeiros arcobotantes, que, destacados da parede contra a qual estavam colocados e ornados de esculturas e de ameias elegantes, davam ao edifício, pelo seu suporte, por assim dizer aéreo, uma leveza cheia de graça. O tecto e a parte central da igreja estavam completamente arruinados. No entanto, ela parecia ter ocupado a ala de um quadrilátero cujas ruínas do convento formavam outros dois lados, e o jardim um quarto.
Os edifícios arruinados deste convento que dominava o regato foram em parte assentes sobre uma rocha escarpada ou íngreme; este local servira mais de uma vez de posto militar e não foi sem muito sangue que o tomaram nas guerras de Montrose. O terreno que o jardim outrora ocupara ainda estava indicado por algumas árvores de fruto. Um pouco mais longe do edifício viam-se os carvalhos, os ulmeiros e castanheiros isolados que atingiram uma grossura notável. O resto do espaço que separava as ruínas da vertente da montanha achava-se coberto de uma erva fina e curta que a visita diária de rebanhos mantinha em melhor estado do que se a foice por lá passasse.
Toda esta cena respirava uma calma majestosa e impressionante sem ser monótona. A larga e profunda bacia onde o lago depositava as suas águas azuis e límpidas, nas quais se reflectiam os lírios aquáticos que cresciam na margem; as árvores que aqui e ali estendiam sobre o lago os seus ramos vigorosos, ofereciam um belo contraste com a impetuosidade e o ruído do regato, que se lançava fora da abertura como se saísse do cativeiro e se precipitava através do vale, contornando a base da rocha que obstruía a sua passagem. A verde pastagem que rodeava as ruínas, as grandes árvores que por ali estavam dispersas, ofereciam o mesmo contraste com os rebordos escarpados que a circundavam, e, ora cobertos de uma leve vegetação, ora de um mato avermelhado, apresentavam, por vezes bruscamente, saliências rochosas e acinzentadas, onde se agarrava o líquen e aquelas outras plantas robustas que criam raízes nas fendas mais áridas dos rochedos.
- Aqui foi o retiro das ciências nos tempos do obscurantismo, Mr. Lovel - disse Oldbuck, em volta do qual os excursionistas se agrupavam e admiravam a amplitude inesperada de um espectáculo tão romântico
- Aqui repousaram os sábios fatigados do Mundo, consagrando-se àquele que há-de vir, ou ao serviço da geração que devia segui-los. Vou já mostrar-lhes a biblioteca. Vejam esta extensão de parede com suas janelas em ogiva. Aqui se recolheram cinco mil volumes, como o afirma um velho manuscrito que eu possuo, e eu andaria bem em continuar aqui as lamentações do sábio Leland que, lastimando a destruição das bibliotecas dos conventos, exclama, como Raquel chorando seus filhos, que se as leis papais, os decretos, as decretais, as clementinas e outras drogas desse género, sem exceptuar os Sofismas de Heytesburg, a Lógica de Aristóteles, a Teologia de Dunse, com outros frutos do inferno, saltassem destas bibliotecas para a loja do merceeiro, ainda nos poderíamos consolar; mas fazer servir as nossas antigas cronicas, as nossas nobres histórias, os nossos sábios comentários, os nossos monumentos nacionais para um uso tão vil, tão degradante, eis o que nos desonra aos olhos da posteridade até os tempos mais distantes, ó descuido demasiado fatal ao nosso país!
- ó John Knox - exclamou o baronnet - sob a influência e os auspícios do qual a nossa missão patriótica foi cumprida!
O Antiquário, cuja situação se assemelhava um pouco à da galinhola presa na sua armadilha, voltou-se a tossir para ocultar um leve rubor, enquanto meditava a resposta.
- Quanto ao apóstolo da reforma...
Mas Miss Wardour interrompeu uma conversa que ela julgava ser perigosa.
- Por favor, Mr. Oldbuck, qual era o autor que o senhor citava?
- O sábio Leland, Miss Wardour, que perdeu a cabeça ao ver a destruição das bibliotecas dos conventos em Inglaterra.
- É possível - replicou a jovem - que essa desgraça tenha conservado a razão a muitos antiquários modernos, que certamente teriam engolido um vasto mar de ciência, se a propósito ela não tivesse sido diminuída.
- Pois bem, graças a Deus, não há perigo presentemente, pelo pequeno espaço que nos resta.
Assim falando. Oldbuck conduziu-os por uma senda escarpada que em breve os levou ao lugar onde se situavam as ruínas.
- Foi aqui que eles viveram - continuou o Antiquário - consagrando inteiramente o seu tempo a esclarecer pontos de uma alta antigüidade, copiando manuscritos e compondo novas obras para a instrução da posteridade.
- E - ajuntou o baronnet - a exercer ritos da devoção com uma pompa e cerimonias dos ministros dos altares.
- E se sua excelência me dá licença - disse o alemão, inclinando-se humildemente - os frrades tampem faziam experriências muito curriosas nos seus laporatórrios, querr em química, querr em magia naturral.
- Parece-me - disse o pastor - que eles já tinham bastante que fazer com a cobrança de dízimos e foros de três boas paróquias.
- É verdade - interveio Miss Wardour, lançando um olhar malicioso ao Antiquário - que eles não eram importunados pelo sexo feminino?
- Tem razão, minha bela inimiga; era um paraíso onde nenhuma Eva se admitia; o que deve redobrar o nosso espanto por nossos bons pais o poderem perder. A fazer reflexões deste género sobre as ocupações dos antigos possuidores daquelas ruínas, deambularam algum tempo de uma pedra musgosa a outra, guiados por Oldbuck, que lhes pormenorizava com bastante verosimilhança o primeiro plano do edifício, lendo-Lhes e explicando-lhes velhas inscrições de que se encontravam ainda vestígios sobre os túmulos dos mortos ou por cima dos nichos nos quais estiveram colocadas outrora as imagens santas.
- Por que razão - perguntou, por fim, Miss Wardour - a tradição nos conservou tão pouca coisa sobre os antigos habitantes destes majestosos edifícios erguidos com tanta despesa e cuidados, e cujos proprietários foram no seu tempo personagens tão temidas por seu poder e sua importância? A mais pequena torrinha de um barão ou de um escudeiro salteadores, que vivia da sua lança ou da sua espada, é consagrada pela recordação de alguma lenda, e o insignificante pegureiro dir-nos-á com exactidão o nome e os feitos dos seus antigos possuidores; mas pergunte a um camponês informações sobre estes vastos e magníficos despojos, sobre estes campanários, sobre estes arcobotantes, estas janelas em ogiva, erguidos com tanto dispêndio, e responder-nos-á com três palavras: "Os monges construíram isto em tempos".
A pergunta era um pouco embaraçosa. Sir Arthur levantou os olhos ao céu na esperança de lá encontrar uma inspiração que lhe permitisse responder; Oldbuck reajustou a sua peruca; o ministro era de opinião de que os seus paroquianos estavam demasiado profundamente compenetrados da verdadeira doutrina presbiteriana para guardarem alguma lembrança dos padres papistas que tinham enxameado o país, e que não passavam de rebentos de uma grande árvore de iniquidade que tem suas raízes nas entranhas de sete colinas de abominação. Lovel pensava que se poderia resolver melhor a questão examinando quais eram os acontecimentos que deixavam impressões mais profundas no espírito do povo.
- Não são - ajuntou ele -os que se assemelham aos progressos graduais de um rio, cujas águas espalham a fertilidade e a abundância, mas antes os que se podem comparar ao curso furioso de uma torrente devastadora que tudo derruba na sua passagem. As épocas pelas quais o vulgo dividiu o tempo tiveram sempre relação com o aparecimento de um flagelo, e data a sua era de um dilúvio, de um tremor de terra ou de uma guerra civil. Tais factos são os que ficam por mais tempo gravados na memória do povo, poder-nos-emos admirar de que ele se recorde do guerreiro sanguinário enquanto os pacíficos abades caem no olvido?
- com licença, gemtlemen e senhorras, e com perdão de sir Arthur, de Miss Wardour e do digno eclesiástico, do meu bom amigo e compatriota Mr. Oltenpuck e do bom Mr. Dofel, creio que tudo isso provém da mão de glórria.
- Da mão de quê? - exclamou Oldbuck.
- Da mão de glórria, meu bom MeisterOltenpuck; é um grande e terrível segredo com a ajuda do qual os monges ocultarram seus tesourros quando forram expulsos de seus claustros por aquilo que os senhorres chamam reforma.
- Diabo! -disse Oldbuck - Explique-nos isso, porque são segredos que vale a pena conhecer.
- Ah, meu bom msinherr Oltenpuck! O senhor está a trroçar de mim. Mas a mão de glórria é bem conhecida nos países que os seus antepassados habitaram outrorra; é uma mão que se deve corrtar a um morto que tenha sido enforrcado por assassínio, e que se seca ao fumo do zimbro, e se o senhor lhe juntar um pouco de madeirra de azevinho, a coisa não irrá melhor, querro dizer não irrá senão melhor; depois o senhor obtém um pouco de gordurra de urso, de texugo, de javali, e de criança de mama que não tenha sido baptizada (porque é coisa muito essencial) e faz uma vela, mete na mão de glórria; e a uma certa horra e com certas cerrimónias; e aquele que procurrar os seus tesourros pode ter a certeza de nunca os encontrar.
- Sobre isso, posso jurar pela minha cabeça disse o Antiquário - E era costume na Vestefália, Mr. Dousterswivel, servirem-se desse elegante candelabro?
- Sempre, MeisterOltenpuck, quando não se querria que alguém descobrisse o que se fazia. E os monges serviam-se sempre disso, quando escondiam a prrata da igreja, os seus grandes cálices, as suas gemas preciosas e as suas jóias.
- O que não impede sem dúvida que os senhores, cavaleiros rosa-cruz, tenham achado meio de quebrar o encanto, e de encontrar o que os pobres monges tiveram tanto trabalho em ocultar.
- Ah, bom meinhrr Oltenpuck - replicou o alemão, meneando misteriosamente a cabeça - o senhor é bem incrédulo! Mas se tivesse visto grandes objectos de prrata tão maciços, sir Arthur, e bem trravalhados, iMiss Warrdour, e a cruz de prrata que nós encontrámos, Shrrepfer e eu, para o barrão Blunderhaus, então terria de acrreditar.
- Acredita-se no que se vê. Mas que arte, que mistério utiliza, Mr. Dousterswivel?
- Ah! Ah! meinhsrr Oltenpuck, esse é o meu pequeno segrredo. E o senhor perdoa-me se eu não Lho disser. Mas ainda há outros meios. Se, por exemplo, o senhor tiver o mesmo sonho trrês vezes seguidas, é um bom sinal.
- Tenho muito gosto em saber isso - replicou Oldbuck, lançando a Lovel um olhar de soslaio - Tenho um amigo que é muitas vezes favorecido pelos sonhos.
- Sim, há simpatias e antipatias, e proprriedades singulares, e virtudes naturrais e sobrenaturrais de certas ervas e a varra divinatórria...
- Eu achava mais curioso ver esses milagres do que ouvir falar neles - declarou Miss Wardour.
- Ah, minha estimável donzela, é que aqui não há lugar nem ocasião de descobrir os tesouros e a prratarria da Igreja! Mas para lhe agradar a si, e a sir Arthur meu patrrão, ao reverrendo eclesiástico, e ao bom Mr. Oltenpuck, e ao jovem Mr. Lofel, que também é um digno gentleman, vou mostrar que é possível, e muito possível encontrarr uma nascente de água ou uma pequena fonte escondida debaixo da terra, sem o auxílio da enxada ou da pá.
- Diabo! - disse o Antiquário - Já ouvi falar deste sortilégio; mas não será uma arte muito produtiva no nosso país. O senhor faria melhor em ir explorar esse segredo em Espanha ou em Portugal.
- Ah, meu bom Mr. Oltenpuck, é que lá existem a Inquisição e os autos-de-fé. Eu, simples filósofo, serria queimado como brruxo.
- Só perderiam a lenha das fogueiras - disse baixinho Oldbuck a Lovel - Mas se o açoitassem publicamente como o velhaco mais descarado que alguma vez existiu, não teria senão o castigo que merece. Vejamos, creio que nos vai mostrar algumas das habilidades.
com efeito, o alemão avançara para um pequeno souto, a certa distância das ruínas, onde afectava estar muito ocupado em procurar uma vara que pudesse convir à sua misteriosa operação. Depois de ter cortado, examinado e rejeitado várias, deteve-se por fim num pequeno ramo de aveleira cortado em forquilha, e que ele declarou possuir a virtude necessária para a prova que ia tentar. Mantendo as duas extremidades em forma de forquilha da vara entre os dedos e o polegar, e erguendo-a assim a direito, começou a percorrer as alas arruinadas do claustro, seguido do resto do rancho, que formava atrás dele uma procissão atenta.
- Mim julgarr não haver água aqui - disse o alemão, depois de dar volta ao recinto sem notar nenhuma das indicações que fingia procurar - Temos de acrreditar que estes frrades escoceses achavam a água demasiado frria para o clima, e que se limitavam a beber o bom e reconfortante vinho do Reno. Mas, ah, vejam! - Logo toda a gente fixou os olhos na vara, que pareceu girar na sua mão, embora ele pretendesse mantê-la fortemente apertada - Haver água aqui, tenho a certeza - acrescentou ele; e voltando para um lado e para outro, conforme parecia aumentar ou diminuir a agitação da vara divinatória, chegou enfim ao meio de um lugar vago e descoberto, que outrora fora a cozinha da abadia, onde a vara se vergou de maneira a indicar quase directamente o sítio que estava em baixo
- É aqui - disse o alemão - e se os senhores não encontrarrem uma nascente no meio, consinto em que me chamem descarado velhaco.
- É uma liberdade que eu tomarei em todo o caso
- disse em voz baixa o Antiquário a Lovel.
Um criado que seguira o grupo com um cabaz cheio de carnes frias, foi então enviado à cabana de um lenhador vizinho, para trazer uma enxada e uma pá.
Retirados os escombros e as pedras do local indicado pelo alemão, depressa se encontraram os rebordos de um poço regularmente construído; e o lenhador, auxiliado por seus filhos, desobstruindo-o das pedras de alvenaria que o enchiam à profundidade de vários pés, a água começou a jorrar para grande satisfação do filósofo, para surpresa das damas, de sir Arthur, do pastor e mesmo um pouco de Lovel, e para confusão do incrédulo Antiquário, que não deixou no entanto de protestar ao ouvido de Lovel contra aquele milagre.
- Isto não passa de um ardil - disse ele - O maroto, por um meio qualquer, teve a habilidade de certificar-se da existência deste velho poço antes de nos cegar com esta charlatanice. Mas repare no que vai seguir-se agora. Enganar-me-ei muito se não se trata do prelúdio para uma fraude mais séria. Veja o ar importante que o patife se dá! Como ele triunfa com o êxito da sua experiência, e como o pobre sir Arthur escuta o dilúvio de asneiras que ele lhe debita, e que ele o faz tomar por princípios de ciências ocultas!
- O senhor vê, meu bom patrrão, vêem as boas meninas, vê o digno MeisterBladdergowl, e Mr. Oltenpuck e Mr. Lofel também poder ver se quiserem, qe a arte não tem outro inimigo senão a ignorância. Vejam esta pequena varra de nogueira, não parrece boa senão para castigar as crrianças pequenas
- ("Era de um bom vergalho que precisavas", resmungou baixinho o Antiquário) - Pois bem, metam-na na mão de um filósofo e, pronto! Serve-se dela para grrandes descobertas. Mas tudo isto não é nada, sir Arthur, absolutamente nada, tigno Mr. Bladdergowl, menos que nada, minhas jovens damas, uma misérria, Mr. Oltenpuck e Mr. Lofel, em comparração com o que a arte ainda pode fazer. Ah, se eu encontrasse um homem de corração e de corragem, mostrar-lhe-ia outra coisa bem diferrente da água num poço. Mostrrava-lhe...
- E algum dinheiro seria decerto previamente necessário, não é verdade? - disse Oldbuck.
- Ora, uma ninharria! Poderia ser necessárria uma pequena quantia de que nem vale a pena falar.
- É o que eu julgo - disse secamente Oldbuck E eu, entretanto, sem o auxílio da vara mágica, mostrar-lhe-ei um excelente pastelão de caça com uma garrafa de um certo Madeira igual a tudo o que a arte de Mr. Dousterswivel nos pode fazer ver.
A refeição foi servida fronde super viridi (1), como disse Oldbuck, debaixo de uma velha árvore de uma dimensão enorme chamada o Castanheiro do Prior, e o rancho, sentando-se em volta, começou a fazer as honras ao conteúdo do cabaz.
Tal como o grifo que de um amplo vôo atravessa o deserto, passa as montanhas, os vales e as torrentes em perseguição do Arimáspio que roubou o rufo de ouro confiado à sua guarda vigilante; com o mesmo ardor do demónio
MILTON - Paraíso Perdido
Quando a colação terminou, sir Arthur retomou o assunto dos mistérios da vara divinatória de que falara antes com Dousterswivel.
- O meu amigo Mr. Oldbuck - disse o baronnet estará agora disposto, Mr. Dousterswivel, a escutar com mais atenção a história que o senhor trouxe das descobertas feitas ultimamente na Alemanha pelos membros da sua associação.
- Ah, sir Arthur, não é coisa para se falar diante destes gentlemen; porque é a falta de credulidade, a que o senhor chama fé, que estraga as belas empresas.
- Pelo menos, minha filha lera a narrativa que a história de Martin Waldeck lhe proporcionou.
- Ah! É uma história muito verdadeirra. Mas Miss Wardour tem tanto espírrito e malícia que lhe deu todo o ar de romance. Não, palavrra de homem honrrado, Wisland e Goethe não terriam feito melhor.
- Para falar francamente, Mr. Dousterswivel - respondeu a jovem - o maravilhoso desta lenda sobrepassa tanto o provável que era impossível a uma
(1) Debaixo das verdes frondes. - N. do T.
admiradora do reino das fadas, como eu, não lhe ajuntar alguns traços para a tornar mais perfeita no género. Mas ei-la; e se não estão dispostos a abandonar esta sombra enquanto o calor do dia não abrandar um pouco, e se prometerem a vossa indulgência pela má composição, talvez sir Arthur ou Mr. Oldbuck queira encarregar-se de a ler.
- Eu, não - declarou sir Arthur - Nunca gostei de ler de alto.
- Nem eu tão-pouco - disse Oldbuck - porque me esqueci dos meus óculos; mas está aqui Lovel, que tem bons olhos e bons pulmões, pois sei que Mr. Blattergowl nunca lê nada, com receio de que suponham que lê também os seus sermões.
A tarefa de leitor foi, pois, imposta a Lovel, que recebeu, com um pouco de nervosismo das mãos de Míss Wardour o manuscrito que ela própria lhe entregou com certo embaraço, e que estava traçado por aquela mão cuja posse ele desejava como o bem mais precioso que o mundo lhe poderia oferecer; mas forçado a conter a sua comoção, ele passou por um momento o olhar pelo caderno, como que para se familiarizar com os caracteres, recolheu-se, e leu aos circunstantes o seguinte conto: "
AS AVENTURAS DE MARTIN WALDECK (1)
É na solidão da floresta de Harz, na Alemanha, sobretudo nas montanhas chamadas Blockberg, ou antes, Brockenberg, que geralmente se situa a cena das aparições, dos contos de feiticeiros e de demónios. As ocupações dos habitantes, na maior parte operários mineiros ou rachadores de lenha, são de um género que parece torná-los mais acessíveis à superstição, e dos fenômenos da Natureza de que eles por vezes são testemunhas no exercício da sua profissão solitária ou subterrânea, são muitas vezes atribuídos por eles à intervenção dos espíritos ou ao poder da
(1) O fundo desta história foi tirado do alemão, conquanto o autor não possa recordar-se neste momento em qual das diversas colecções de lendas populares nesta língua se encontra o original.
magia. Entre os diversos contos divulgados nesta região selvagem, há um ao qual é particularmente atribuído, e que supõe que Harz tem o seu demónio tutelar, que se mostra sob a forma de um homem de estatura gigantesca, a cabeça, bem como a cintura, cercada de folhas de carvalho, e trazendo na mão um pinheiro arrancado pela raiz.
A verdade é que muitas pessoas afirmam ter visto uma figura, que corresponde a esta descrição, atravessar a grandes passos, e numa linha paralela à do próprio caminho, o topo oposto da montanha de que se encontravam separadas pelo estreito vale; e o facto desta aparição é tão geralmente admitido que a incredulidade moderna não encontrou outro recurso senão atribuí-la a uma ilusão de óptica.
Em tempos mais antigos, o demónio mantinha com os habitantes relações mais frequentes; e, segundo as tradições de Harz, tinha por costume imiscuir-se nos assuntos dos mortais, com o capricho atribuído a estes demónios da terra, umas vezes para seu bem outras vezes para seu mal. Mas tinha-se notado que mesmo as suas dádivas se tornavam, com o tempo, funestas para aqueles que as receberam. E era coisa vulgar que os pastores, no zelo da sua solicitude pelos seus rebanhos, compusessem longos sermões cujo refrão tendia sempre a adverti-los de se absterem de toda a relação directa ou indirecta com o demónio de Harz. As aventuras de Martin Waldeck foram muitas vezes citadas pelos velhos à mocidade imprevidente, quando a ouviam troçar de um perigo que lhe parecia imaginário.
Um capuchinho viajante apoderara-se do púlpito da humilde igreja coberta de colmo de uma pequena aldeia chamada Morgenbrodt, situada no distrito de Harz. Aí, declamava contra a perversidade dos habitantes, suas ligações com os demónios, os feiticeiros e as fadas, e sobretudo com espírito da floresta de Harz. A doutrina de Lutero já começava a divulgar-se entre os camponeses, pois este acontecimento situa-se no reinado de Carlos V, e eles troçavam do zelo com que o venerando monge insistia neste assunto. Gradualmente, aumentou a sua violência, ao ver a sua obstinação. Os habitantes não gostavam de ouvir comparar um demónio familiar e pacífico que frequentava Brockenberg havia tantos séculos, a Belphegor, Astaroth ao próprio Belzebu, e a vê-lo condenado sem apelo à eternidade do inferno. O receio de que o espírito tentasse vingar-se neles por terem escutado semelhantes discursos veio juntar-se ainda ao interesse nacional que o inspirava. Um monge errante, diziam eles, que hoje está aqui e já cá não estará amanhã, pode dizer o que lhe aprouver; mas somos nós, habitantes antigos e sedentários da região, que ficamos expostos à vontade do demónio ofendido e que devemos pagar por todos. Na irritação que estas reflexões ocasionaram, os camponeses, depois das injúrias, passaram às pedradas; e depois de quase delapidarem o pobre padre, expulsaram-no da paróquia, para que ele fosse pregar noutra parte contra os demónios.
Três jovens que estavam presentes nessa ocasião, e que mesmo tinham tomado parte no motim, regressaram à sua cabana, onde se entregavam à trabalhosa e vil ocupação de fazer carvão para o serviço das forjas. Durante o caminho, a conversa recaiu naturalmente sobre o demónio de Harz e os sermões do capuchinho. Max e George Waldeck, os dois irmãos mais velhos, embora concordando que as palavras do monge tinham sido indiscretas e dignas de censura, por fazerem um juízo temerário da natureza do demónio e o local que ele habitava, admitiam no entanto que era perigoso aceitar as suas dádivas ou manter qualquer relação com ele. Era poderoso, é certo, mas excêntrico e caprichoso, e os que mantiveram relações com ele raramente tiveram bom fim. Fora ele quem dera ao bravo cavaleiro Ecbert de Rabenwald aquele famoso cavalo negro que o tornou vencedor de todos os campeões no torneio de Bremen; mas este mesmo corcel não se precipitara com seu cavaleiro num abismo tão terrível e tão profundo que nem o homem nem o cavalo nunca mais apareceram? Se a dama Gertrude Trodden obtivera um maravilhoso segredo para fazer manteiga, não acabara por ser queimada como feiticeira, pelo grande juiz criminal do eleitorado, por se servir desse dom? A estes exemplos juntaram ainda outros das desgraças e das fatalidades que acabaram por seguir-se aos benefícios aparentes do demónio de Harz. Mas nada disto impressionava o espírito de Martin Waldeck, o irmão mais novo.
Martin era jovem, impetuoso e temerário; salientava-se em todos os exercícios que distinguiam um montanhês, e os perigos que os acompanhavam tinham-no tornado bravo e intrépido. Ria-se da timidez de seus irmãos.
- Não me digam semelhantes asneiras - opunha ele - o demónio é um bom demónio; vive entre nós como se fosse um dos nossos camponeses; frequenta os rochedos solitários e as cavernas das montanhas, como um pastor e como um caçador; e aquele que se deleita na floresta de Harz e no meio dos seus lugares selvagens não pode ser indiferente à sorte dos robustos filhos da terra. Mas se o demónio fosse tão malicioso como dizem, como obteria ele o poder sobre os mortais que se limitam a aceitar as suas dádivas sem se comprometerem a submeter-se às suas vontades? Quando levam o vosso carvão ao forno, o dinheiro que vos paga o blasfemo Blaize, esse velho réprobo do intendente, não é tão bom como se o recebessem das mãos do próprio pastor? Não são os presentes do demónio que podem tornar-se perigosos, mas o uso que façam deles. E se ele acabasse de me aparecer neste momento e me indicasse uma mina de ouro ou de prata, eu começaria por procurá-la, mesmo antes de que ele me voltasse as costas, e considerar-me-ia sempre como sob a protecção de um ser bem maior do que ele, desde que fizesse bom uso das riquezas que ele me levasse a descobrir.
A isto o irmão mais velho respondeu que "um bem mal adquirido é quase sempre mal gasto"; enquanto o presunçoso Martin não receava afirmar "que todos os tesouros de Harz não trariam a mais pequena mudança aos seus hábitos, aos seus costumes e ao seu caracter".
O irmão de Martin pediu-lhe que não falasse tão ousadamente daquele assunto, e conseguiu não sem custo distraí-lo, chamando a sua atenção para a próxima caçada ao javali. Esta conversa levou-os até junto da sua cabana, que não passava de uma mísera choça situada à beira de um vale estreito, pitoresco e selvagem, nas gargantas do Brockenberg. Aliviaram sua irmã da penosa operação de carbonizar madeira, que requer uma atenção constante, e dividiram entre eles o cuidado de vigiá-la durante a noite, ficando dois a dormir enquanto o outro permaneceria levantado, como era seu costume.
Max Waldeck, o mais velho, velou durante as duas primeiras horas, e ficou muito alarmado ao notar, no rebordo oposto do vale, uma grande fogueira cercada de várias figuras que parecia girarem com gestos aterradores. Max teve primeiro vontade de chamar os dois irmãos; mas pensando no carácter ousado do mais novo, e vendo que era impossível chamar o outro sem despertar Martin; imaginando também que o que via podia ser uma ilusão do demónio e consequência das expressões atrevidas usadas por Martin na tarde anterior, julgou que mais valia acolher-se à protecção das preces que o medo lhe permitiu murmurar, e continuou a observar com um terror curioso aquela estranha e aterradora aparição Depois de terem brilhado algum tempo, os lumes extinguiram-se, e o resto do tempo que Max passou a velar não foi perturbado senão pela lembrança do seu pavor.
George tomou em seguida o lugar de Max, que se foi deitar, e a aparição da grande fogueira flamejante no lado oposto do vale apresentou-se igualmente a seus olhos. Tal como antes, estava cercada de vultos cujas formas opacas se desenhavam aos olhares dos espectadores sobre a chama avermelhada do lume, movendo-se e gesticulando em volta, como se se ocupassem de alguma cerimónia mística. George, embora tão prudente como seu irmão, era de um carácter um pouco mais ousado. Resolveu examinar mais de perto o objecto do seu assombro, e tendo por isso atravessado o pequeno regato que separava as duas encostas do vale, trepou a vertente oposta e aproximou-se, a distância de um vôo de frecha, do fogo que ardia com tanta vivacidade como quando' ele o vira primeiro.
Os que o Acercavam pareciam-se com aqueles fantasmas que se nos apresentam num pesadelo, e persuadiu-se da ideia que de início concebera de que não eram seres pertencentes à espécie humana. No meio daquelas formas sobrenaturais e bizarras, George Waldeck notou a de um gigante todo coberto de pelos, tendo na mão um pinheiro desenraizado com o qual parecia de vez em quando atiçar o lume flamejante, e não trazendo outro vestuário senão uma grinalda de folhas de carvalho em torno da cintura e da cabeça. George sentiu oprimir-se-lhe o coração ao reconhecer nele a aparição bem conhecida do demónio de Harz. tal como muitas vezes o ouvira descrever pelo velho padre e pelos caçadores que tinham visto a sua forma gigantesca cruzar a montanha. Fez um movimento para fugir, mas, reflectindo "e censurando-se de cobardia, recitou intimamente o versículo do salmo Que todos os bons anjos louvem o Senhor! que naquela região é tido como um poderoso exorcismo; depois, voltou-se ainda uma vez para o lugar onde vira o lume, mas tudo havia desaparecido.
Só a pálida lua iluminava então a beira do vale, e quando George, a passo trêmulo, fronte coberta de suor e cabelos eriçados sob o gorro de carvoeiro com que se cobria, chegou ao lugar onde o fogo momentos antes fora tão visível, e que se distinguia por um roble derrubado, não pôde encontrar vestígio algum do espectáculo que acabara de lhe aparecer. O musgo e as flores silvestres achavam-(se em toda a sua frescura e os ramos da árvore que um momento antes lhe pareceram envoltos em chamas e fumo estavam húmidos do orvalho da noite.
George voltou para a sua cabana, a tremer de medo, e, tal como seu irmão mais velho, resolvido a nada dizer do que vira, com receio de excitar em Martin aquela curiosidade temerária, que ele considerava flagrante impiedade.
Foi em seguida a vez de Martin velar. O galo da família já dera o primeiro sinal e a noite estava quase decorrida. Ao examinar o estado do forno, onde depusera a madeira para ser carbonizada, ficou surpreendido ao ver que o lume não fora bem mantido, porque, na sua excursão e na agitação que se lha seguira, George esquecera o principal objectivo da velada. O primeiro pensamento de Martin foi chamar os seus dois irmãos adormecidos, mas notando que seu sono era mais forte e mais profundo que de costume, respeitou-lhes o repouso, e começou a carregar o forno sem mais ajuda. A madeira que ele acumulava estava aparentemente húmida, pois o fogo pareceu mais extinguir-se do que reanimar-se. Martin foi em seguida buscar algumas achas a uma pilha de madeira que fora cuidadosamente cortada e seca para esse uso; mas, ao regressar, encontrou o lume completamente apagado. Era um percalço sério, e que os levava à perda de mais de um dia de trabalho. Inquieto e atormentado, o pobre rapaz quis usar a pederneira para reacender o lume, mas a isca estava molhada, e todos os seus esforços se malograram. Ia decidir-se então a chamar seus irmãos, pois as circunstâncias tornavam-se prementes, quando através das janelas e das fendas da sua mísera cabana avistou jactos de luz, e foi surpreendido pela mesma aparição que sucessivamente alarmara seus dois irmãos durante a sua vigilância nocturna.
A sua primeira ideia foi que os Muhllerhaussers, com quem estavam em rivalidade de ofício e com os quais já haviam tido várias questões, tivessem vindo de noite invadir os seus limites, a fim de lhes roubarem as madeiras. Resolveu então acordar os irmãos e vingar-se da sua audácia. Mas um momento de reflexão, o exame que fez dos gestos e atitudes dos que pareciam assim trabalhar no meio do fogo, depressa lhe dissiparam esse pensamento, e, embora bastante incrédulo em tais assuntos, concluiu que o que via era um fenômeno fora das leis da Natureza. "Quer sejam homens, quer demónios - pensou o intrépido rachador que vejo entregarem-se além àquelas cerimonias e àqueles gestos excêntricos, vou-lhes pedir lume para acender a minha fornalha". Ao mesmo tempo abandonou o projecto de acordar os irmãos, porque geralmente se julgava que era preciso estar só para empreender aventuras do género daquelas que ele estava prestes a tentar. Também receava que a timidez escrupulosa de seus irmãos se opusesse à realização do exame que resolvera fazer; assim, pois, desprendendo o seu pico da parede, o intrépido Martin Waldeck partiu sozinho para aquela empresa.
com a mesma facilidade de seu irmão George, mas animado de uma coragem muito superior, Martin atravessou a torrente, galgou a montanha e aproximou-se bastante da assembleia dos espíritos para poder reconhecer na figura principal os atributos do demónio de Harz. Pela primeira vez na sua vida um arrepio lhe percorreu as veias, mas ao lembrar-se de que desafiara, e mesmo desejara de longe a circunstância que se lhe apresentava agora, sentiu fortalecer-se-lhe a coragem, e, o orgulho substituindo a firmeza que podia faltar-lhe, avançou para o fogo com bastante decisão; as figuras que o cercavam pareciam-lhe cada vez mais selvagens, esquisitas e sobrenaturais, conforme se aproximava delas. Foi acolhido por gargalhadas roucas e bizarras que se afiguraram mais assustadoras aos seus ouvidos aturdidos do que a reunião dos sons mais funestos e mais lúgubres que se pode imaginar.
- Quem és tu? -perguntou o gigante, esforçando-se por emprestar às suas feições ferozes e desproporcionadas uma espécie de gravidade, ao mesmo tempo que eram agitadas pelas caretas de um riso que em vão procurava reprimir.
- Martin Waldech, o lenhador - respondeu o intrépido moço-E vós quem sois?
- O rei da floresta e da mina - replicou o espectro - E quem te deu audácia para vires perturbar os meus mistérios?
- Vim procurar lume para acender o meu forno
- respondeu Martin, ousadamente; e depois, sem se intimidar, perguntou por seu turno - Que mistérios são esses que celebrais aqui?
- Celebramos - respondeu o demónio, complacente
- as núpcias de Hermes com o dragão negro. Mas toma o lume que vieste buscar e retira-te: nenhum mortal nos pode ver por muito tempo e viver.
O camponês mergulhou a ponta do seu pico no meio de uma larga acha ardente, que levantou com certo custo, e com a qual retomou o seu caminho para a cabana. As gargalhadas recomeçaram atrás dele com triplicada violência, e ecoaram muito longe no estreito vale. Por muito assombrado que estivesse do que acabava de ver, o primeiro cuidado de Martin, ao chegar, foi ajeitar no meio da madeira o lume que trazia, de forma a reacender o seu forno o mais rapidamente possível; mas após inúmeros esforços, o tição que trouxera do lume do demónio apagou-se totalmente sem se ter pegado ao resto. Voltou-se e viu as chamas continuarem a brilhar na montanha, embora os vultos que gesticularam em torno tivessem desaparecido.
Como pensou que o espectro troçara dele, abandonou-se à temeridade natural do seu carácter e resolveu levar a aventura até ao fim; retomou o caminho para o sítio onde estava o fogo, do qual, sem a menor oposição por parte do demónio, trouxe da mesma maneira um bocado de lenha ardente, mas que não conseguiu, tal como o anterior, reacender o seu lume. Como a impunidade incitara ao cúmulo a sua audácia, resolveu-se a fazer uma terceira tentativa, e a aproximar-se do fogo como das outras vezes. Mas quando ele se voltava, depois de ter retirado um novo bocado de brasa, ouviu a voz rouca e bizarra que primeiro o interrogara pronunciar estas palavras: "Livra-te de aqui voltares quarta vez".
Não conseguindo desta vez mais do que das outras reacender o seu lume, Martin renunciou àquela inútil empresa, e atirou-se para o leito de folhas, resolvido a guardar para a manhã seguinte a narrativa daquela aventura a seus irmãos. Foi arrancado ao pesado sono em que o tinham mergulhado a fadiga do corpo e a agitação de espírito que experimentara, por violentas exclamações de surpresa e de alegria. Ao levantar-se, seus irmãos, admirados de encontrar o lume apagado, começaram a dispor a lenha de maneira a renová-lo, e encontraram nas cinzas três grossas maças de metal que o seu saber naquele género (porque os camponeses de Harz são quase todos mineiros práticos) os fizera reconhecer como ouro puro.
A sua alegria foi um pouco empanada, ao saberem por Martin de que maneira lhes viera aquele tesouro, tanto mais que a sua própria experiência da noite lhes não permitia conceber a menor dúvida sobre a sua narrativa; mas não tiveram forças para resistir à tentação de partilhar das riquezas de seu irmão. Colocando-se então à testa da casa, Martin Waldeck comprou terras e bosques, construiu um castelo, obteve títulos de nobreza e, para indignação da antiga aristocracia da região, foi investido de todos os privilégios de um nascimento ilustre. A sua coragem nas guerras públicas, bem como nas questões particulares, e o número de dependentes que mantinha de soldada, sustentaram-no algum tempo contra o ressentimento e o ódio que a sua súbita ascensão e a arrogância das suas maneiras tinham suscitado.
O exemplo de Martin Waldeck veio então juntar-se a muitos outros para provar que não existe homem que possa prever o efeito que uma prosperidade inesperada terá sobre o seu carácter. As suas más inclinações naturais, que a pobreza contivera e reprimira, desenvolveram-se sob a influência fatal da tentação, e os meios de se lhes abandonar produziram os mais tristes resultados. O demónio da avareza evocou o do orgulho, e esse orgulho não podia manter-se senão pela opressão e pela crueldade. O carácter de Waldeck, sempre ousado e empreendedor, mas tornado arrogante e cruel pela prosperidade, depressa o fez odioso não somente aos nobres, mas também às classes inferiores, que viram com duplo ressentimento os direitos opressores da nobreza do Império exercidos de uma forma tão absoluta por um homem saído da massa do povo. A sua aventura, embora cuidadosamente oculta, começou também a divulgar-se, e o clero não foi lento a apontar e a cobrir de vergonha, como bruxo e cúmplice dos demónios, aquele que, depois de ter adquirido de tal maneira tão imenso tesouro, não procurara santificar a aquisição consagrando uma parte considerável às necessidades da Igreja. Cercado de inimigos públicos e particulares, rodeado de mil ódios e ameaçado de excomunhão pela Igreja, Martin Waldeck, ou antes, como então se chamava, o barão Von Waldeck, lamentou mais de uma vez com amargura os trabalhos e os desalentos da sua obscura pobreza. No entanto, no meio de tantos escolhos, a sua coragem não o abandonou, e pareceu antes aumentar na proporção em que estes perigos se acumulavam em sua volta. Mas um acidente veio acelerar a sua ruína.
Uma proclamação do duque de Brunswick, então reinante, convidara para um torneio solene todos os nobres alemães de nascimento honroso e sem mancha, e Martin Waldeck, armado com magnificência e acompanhado de seus dois irmãos e de um séquito numeroso e brilhante, teve a insolência de aparecer entre os cavaleiros da província e de pedir licença para entrar na liça. Isto foi olhado como o cúmulo da sua audácia. Mil vozes bradaram ao mesmo tempo: "Não queremos carvoeiros nos nossos jogos de cavalaria! " Irritado até ao desvario, Martin puxou da sua espada e abateu o arauto que, obedecendo ao clamor geral, se opusera à sua entrada. Um milhar de espadas saiu da bainha para vingar um crime que, nesses tempos, não podia ser ultrapassado senão pelo sacrilégio ou o regicídio. Waldeck, depois de se ter defendido como um leão, foi preso e condenado imediatamente, pelos juizes da liça, ao castigo decretado contra aquele que violou a paz do seu soberano e atentou contra a pessoa sagrada de um arauto de armas, isto é, a ter a mão direita cortada, a ser vergonhosamente privado das honrarias da nobreza, das quais se mostrava indigno, e expulso da cidade. Depois de ser despojado das suas armas e de ter sofrido a mutilação imposta pela rigorosa sentença, esta infeliz vítima da ambição foi entregue à populaça, que, acusando-o alternadamente de tirano e de mágico, o seguiu com gritos e ameaças que acabaram em actos de violência. Seus irmãos (porque seu séquito se dispersara em fuga) não conseguiram arrancá-lo às mãos daquela multidão furiosa senão quando, saciada de crueldade, o deixou meio morto em consequência da perda de sangue e dos golpes recebidos. Mas a engenhosa barbaridade dos seus inimigos não lhes permitiu servirem-se de outro meio de transporte senão de uma carroça de carvão, semelhante àquela de que ele se servira outrora, e na qual seus irmãos o depuseram sobre um molho de palha, esperando apenas chegar com ela a um lugar de refúgio, antes de que a morte viesse pôr termo aos seus sofrimentos.
Quando os Waldeck, que seguiram o seu caminho desta maneira deplorável, se encontraram perto dos limites da região natal, avistaram, na senda cavada entre duas montanhas, um vulto que avançava para eles, e que à primeira vista lhes pareceu um homem de idade. Mas à medida que se aproximavam, seus membros e sua estatura aumentaram, o seu bastão de peregrino transformou-se num pinheiro desenraizado, e a figura gigantesca do demónio de Harz apareceu-Lhes, com todos os seus terrores. Quando ele se encontrou diante da carroça na qual jazia o mísero Waldeck, suas feições monstruosas distenderam-se e deixaram escapar um riso infernal, exprimindo ao mesmo tempo desprezo e inexprimível malignidade, dirigindo simultaneamente esta pergunta ao paciente: "Como achas o fogo que os meus tições acenderam? " A faculdade de se mover, suspensa pelo terror que gelava seus irmãos, pareceu reanimar-se em Martin com a energia da sua coragem. Soergueu-se na carroça e, ameaçando o espectro com seu punho fechado com violência, lançou-lhe um olhar cheio de ódio, que parecia desafiá-lo ainda. O demónio desapareceu como de costume, fazendo ouvir as suas gargalhadas terríveis, e deixou Waldeck exausto no último esforço da natureza moribunda.
Aterrorizados, seus irmãos dirigiram a carroça para as torres de um convento que se erguia no meio de um pinhal, perto do caminho. Foram caridosamente acolhidos por um capuchinho descalço e de longa barba. E Martin não sobreviveu senão o tempo necessário para acabar a primeira confissão que fez desde a época da sua repentina ascensão, e para receber a absolvição daquele mesmo padre que três anos antes ele ajudara a escorraçar da aldeia de Morgenbrodt. Supõe-se que esses três anos de uma prosperidade precária tinham uma relação misteriosa com o número de visitas que ele fizera ao fogo do espectro na montanha.
O corpo de Martin Waldeck foi sepultado no convento onde expirou e no seio do qual seus irmãos, tomando o hábito da ordem, viveram e morreram no cumprimento de actos de devoção e de caridade. Suas terras, sobre as quais ninguém reclamou direito algum, ficaram incultas até que voltaram à posse do imperador; e as ruínas do castelo, ao qual Waldeck dera o seu nome, ainda são evitadas pelos mineiros e pelos lenhadores, como retiro de espíritos malignos. Assim, as aventuras de Martin Waldeck se destinam a fornecer um novo exemplo das desgraças que acompanham sempre o mau emprego dos bens demasiado rapidamente adquiridos.
Houve uma altercação tão perigosa entre meu primo capitão e aquele militar, não sei a propósito de quê! Foi verdadeiramente por um nada. Tratava-se de rivalidades, de patentes e distinções militares.
A Amável Discussão
Depois de ter escutado atentamente o conto que se acaba de ler, o auditório dirigiu à sua amável autora todos os cumprimentos requeridos pela delicadeza. Só Oldbuck beliscou o lábio e notou que se podia comparar o talento de Miss Wardour ao dos alquimistas, visto que achou maneira de extrair uma sã e sólida moral de um conto frívolo e ridículo.
- Ouvi dizer - ajuntou ele - que é moda admirar estas composições extravagantes; quanto a mim,
Possuo um coração inglês, pouco atreito ao pavor Que um fantasma ou ossos quebrados geram.
- Com sua licença, meu bom Mr. Oltenpuck, Miss Wartour fez desta histórria, como de tudo em que ela toca, uma coisa muito bonita, em verdade: mas quanto à aparição do demónio de Harz e da sua corrida por meio das montanhas desertas, com um grrande pinheirro a servir de bengala, e uma grrinalda de folhas em volta da cabeça e da cinturra, tudo isso é tão verdade como eu ser um homem honesto.
- Não há forma de negar uma coisa cuja verdade é tão garantida - replicou o Antiquário secamente.
Mas neste momento aproximou-se um estranho que veio interromper a conversa.
O recém-chegado era um belo cavaleiro de cerca de vinte e cinco anos, fardado de oficial, e cujo ar e tom tinham um carácter militar que talvez ultrapassasse um pouco o à-vontade de um homem bem-educado, cujas maneiras não devem geralmente deixar supor a profissão. A maior parte dos circunstantes apressou-se a cumprimentá-lo.
- Meu querido Heitor! - exclamou Miss Mac Intyre, correndo a apertar-lhe a mão.
- Heitor, filho de Priam, de onde vens tu? perguntou o Antiquário.
- Do condado de Fife, senhor - respondeu o jovem militar.
E depois de cumprimentar os presentes e, de uma maneira particular sir Arthur e a filha, continuou:
- Quando vinha a caminho de Monkbarns, onde tencionava ir apresentar-lhe os meus respeitos, soube, por um criado que encontrei, que estavam todos aqui e aproveitei pressurosamente esta ocasião para vir prestar as minhas homenagens a vários dos meus amigos ao mesmo tempo.
- E arranjar mais um, meu bravo Trajano - disse Oldbuck - Mr. Lovel, apresento-lhe o meu sobrinho, o capitão Mac Intyre. Heitor, terei muito prazer em ver-te cultivar a amizade de Mr. Lovel.
O jovem militar lançou a Lovel um olhar penetrante e cumprimentou-o com mais frieza do que cordialidade; e como o nosso herói julgou encontrar nesta reserva alguma coisa de desdenhoso, correspondeu ao cumprimento com a mesma altivez. Assim, desde o primeiro instante do seu conhecimento uma secreta prevenção pareceu erguer-se entre eles.
As observações de Lovel durante o resto do dia não foram de molde a fazê-lo olhar mais favoravelmente o recém-chegado. O capitão Mac Intyre, com a galantaria peculiar da sua idade e da sua profissão, tornou-se assíduo junto de Miss Wardour, apressando-se a prestar-lhe todos os pequenos cuidados que Lovel, retido pelo receio de lhe desagradar, daria tudo no mundo para ousar oferecer-lhe. Era com uma sensação, ora de irritação, ora de sombrio abatimento que ele via aquele jovem oficial arrogar-se junto dela todos os privilégios de um chichisbéu. Ele apresentava as luvas a Miss Wardour, ele ajudava-a a pôr o xaile, caminhava ao lado dela durante o passeio" pronto a afastar todos os obstáculos que pudessem deter seus passos e a oferecer-lhe o braço, para a suster, quando o caminho se tornava áspero e difícil. Era a ela que dirigia mais vezes a palavra e, quando as circunstâncias o permitiam, falava-lhe exclusivamente.
Lovel sabia perfeitamente que tudo isto podia muito bem não ser senão aquela espécie de galantaria nascida do amor-próprio, que leva tantos jovens dos nossos dias a dar-se ares de ocuparem a atenção toda inteira da mais bonita mulher de uma sociedade, como se os outros fossem indignos das suas atenções. Mas ele julgava ver nas maneiras do capitão Mac Intyre uma marcada expressão de ternura, feita para despertar todos os ciúmes de um amante. Miss Wardour também aceitava os seus cuidados; e embora fosse obrigado a confessar que eram de um género de não poderem ser repelidos sem alguma afectação, no entanto, o vê-la aceitá-los enchia-lhe o coração de uma inexprimível amargura.
As angústias que estas reflexões lhe ocasionaram, dispuseram-no bastante mal para ouvir as ávidas discussões com que Oldbuck, que continuava a exigir a sua atenção exclusiva, não cessava de persegui-lo; e suportou, com acessos de impaciência que se tornavam quase em desespero, um curso de lições sobre arquitectura monástica, nos seus diferentes estilos; desde o pesado saxãp até o elegante gótico, e daí ainda ao género misto e composto de James I, onde, segundo Oldbuck, todas as ordens se confundiram, e das colunas de diversas se erguiam ao lado ou por cima umas das outras, como se a simetria fosse esquecida, e os principais elementos da arte tivessem caído no caos.
- Que espectáculo pode ser mais pungente - exclamou Oldbuck num transporte de veemência - que o dos males de que somos forçados a ser testemunhas, e os quais não temos maneira de remediar! - Lovel respondeu por um gemido involuntário - Vejo, meu jovem amigo, que os nossos espíritos se entendem; e que estas monstruosidades o chocam tanto como a mim. O senhor nunca se aproximou de tais infâmias, sem experimentar o desejo de as desfigurar, de as mutilar, de as aniquilar?
- Infâmias! - repetiu Lovel - Sob que aspecto?
- Quero dizer pela vergonha que recai sobre as artes.
- Mas onde?... Como?...
- Pelo pórtico das escolas de Oxford, por exemplo, onde, com despesas imensas, um arquitecto ignorante, excêntrico e bárbaro, quis que a fachada do edifício representasse ao mesmo tempo cinco ordens arquitectónicas.
com ataques deste género, Oldbuck, longe de suspeitar que torturava Lovel, obrigava-o a conceder-Lhe uma parte da sua atenção, tal como um hábil pescador, por meio da sua linha, conserva a sua influência nas convulsivas contorções da sua desditosa presa.
Regressaram então ao lugar onde as carruagens os esperavam; e, durante este curto passeio, Lovel, cansado das contínuas narrativas e declamações do seu companheiro, mandara mais de uma vez para o diabo, ou para quem quer que o libertasse delas, as ordens ou as desordens da arquitectura, inventadas ou combinadas desde a construção do templo de Salomão até os nossos dias. Um ligeiro incidente, porém, forneceu ocasião ao nosso Antiquário de moderar os seus acessos de impaciência.
Miss Wardour e o seu cavaleiro precediam um pouco os outros na estreita senda, quando a jovem, desejando sem dúvida cortar a conversa com o oficial, parou de súbito até que Mr. Oldbuck se lhes juntasse, e dirigiu-se a este:
- Eu desejava, Mr. Oldbuck, fazer-lhe uma pergunta sobre a data destas interessantes ruínas.
Não seria prestar justiça à habilidade de Miss Wardour supor que ela não previsse a extensão pouco vulgar da resposta que provocava. O Antiquário, endireitando-se como um cavalo de batalha ao som de uma trombeta, mergulhou todo inteiro nos diversos argumentos pró ou contra a data de 1273, que fora atribuída à abadia de Santa Ruth, por uma publicação nova sobre as antigüidades da arquitectura escocesa. Estadeou os nomes de todos os abades que governaram esta instituição, de todos os nobres que lhe fizeram doações de terras, e de todos os monarcas de que esta vasta igreja fora derradeiro lugar de repouso. Assim como um rastilho de pólvora que se incendeia não pode deixar de incendiar a que se encontra na sua vizinhança, assim o baromnet, agarrando-se ao nome de um dos seus antepassados que figurava na dissertação de Oldbuck, se lançou na narração das suas guerras, dos seus altos feitos e dos seus troféus. E o digno doutor Blattergowl, ouvindo falar de uma doação de terras, cum ãecimis inclusis tom vicariis quam garbalibus et numquam antea separatis (1), entrou numa longa explanação relativa à interpretação que o tribunal dos dízimos dera a uma cláusula deste género, que se apresentara num processo que ele tivera ultimamente para anexar à sua paróquia um aumento de receita. Os oradores, como três cavalos de raça, precipitaram-se separadamente para a meta, sem se preocuparem com entravarem ou deterem a corrida dos seus rivais. Oldbuck arengava, o baronnet declamava, Blattergowl esplanava e citava a lei, e todos três faziam uma mistura implacável das fórmulas latinas das doações feudais, dos termos técnicos do brasão e do calão ainda mais bárbaro do tribunal dos dízimos da Escócia.
- Ele era - exclamou Oldbuck, que falava do abade Adhemar- era com efeito um prelado exemplar, e pela severidade dos seus costumes, pelo estrito cumprimento da penitência, bem como pela caridade natural da sua alma, e pelas enfermidades provocadas pela sua grande idade e pelos seus hábitos ascéticos...
Aqui, teve a infelicidade de tossir, e sir Arthur replicou, ou antes, continuou:
- Chamaram-lhe popularmente Inferno Ajaezado. Trazia um escudo forrado de zebelina, que depois deixámos de usar, e pereceu na batalha de Vemeuil, em França, depois de ter morto seis ingleses pela sua própria...
- Mandado de certificação - continuou o pastor naquele tom uniforme e lento, que, primeiro abafado pela veemência dos adversários, ameaçava entretanto vir ao de cima, e manter-se muito mais tempo naquela luta de frases - Um mandado de certificação foi produzido e as partes, dando-se por convencidas, julgou-se que se ia concluir a prova, quando o advogado fez uma moção para que a causa fosse exposta de novo, havendo testemunhas a produzir como era hábito transportar as ovelhas prestes a ter crias na terra franca
(1) com os dízimos tanto em servos como em moios de trigo, e que antes não estavam separados. - N. do T.
de dízimos, o que não passava de um meio evasivo para...
Nesta altura, como o baronnet e Oldbuck haviam retomado o fôlego e continuado as respectivas arengas, os três fios da conversa reataram-se e entrelaçaram-se de novo numa inextricável confusão.
No entanto, por muito insípida que fosse esta tripla algaraviada, era evidente que Miss Wardour a preferia a dar ao capitão Mac Intyre ensejo de retomar a sua conversa. Assim, depois de ter esperado alguns momentos com um desagrado que seu rosto altivo mal disfarçava, ele abandonou-a ao seu mau gosto; e, tomando o braço de sua irmã, reteve-a um pouco à retaguarda do resto do grupo.
- Vejo, Maria, que, durante a minha ausência, o vosso círculo de relações nem se tornou mais alegre nem mais sábio.
- Falta-nos a tua paciência e a tua sensatez, Heitor.
- Obrigado, querida irmã! Mas, à falta de sensatez, o teu círculo foi acrescido de um componente que ofusca o teu indigno irmão, se acaso é tão absolutamente alegre como ele. Quem é, por favor, este Mr. Lovel, que tão bem conquistou as boas graças do nosso velho tio? Geralmente, este não é tão acessível aos estranhos.
- Meu irmão, Mr. Lovel é um jovem muito bem educado.
- Sim, isso quer dizer que cumprimenta ao entrar num aposento e não traz o casaco roto nos cotovelos.
- Não, meu irmão, isto significa que as suas maneiras e a sua linguagem denunciam os seus sentimentos e uma educação da melhor classe.
- Mas eu desejaria saber qual é o seu nascimento e o seu lugar na sociedade, e que título tem ele para ser admitido no círculo onde o encontro tão familiarmente recebido.
- Se queres saber como foi admitido em Monkbarns, podes perguntar a meu tio, que sem dúvida responderá que recebe em sua casa as pessoas que lhe apraz; se também queres pedir contas a sir Arthur, saberás que Mr. Lovel lhe prestou, bem como a Miss Wardour, um serviço da mais alta importância.
- Como, essa história romanesca é então verdadeira?
E esse valente cavaleiro aspira, como se costuma ver em semelhantes casos, à mão da dama que arrancou do perigo? É a regra nos romances, eu sei; e pareceu-me achar-lhe um tom muito seco para comigo, sempre que passeámos juntos. Ela tinha mesmo o ar de temer, de vez em quando, ofender o seu galante cavaleiro.
- Meu caro Heitor - disse-lhe a irmã - se realmente alimentas ainda alguma afeição por Miss Wardour...
- Se, Maria? Porque é esse se?
- Confesso que vejo a tua insistência com pouca esperança.
- E porquê sem esperança, minha querida irmã? Miss Wardour, no estado em que se encontram os negócios de seu pai, não pode pretender a uma grande fortuna; e, quanto a família, creio que os Mac Intyre não são inferiores
- Mas, Heitor - continuou sua irmã - sir Arthur vê-nos como sendo membros da família Monkbarns.
- Sim, Arthur pode ver-nos como quiser - respondeu o jovem escocês em tom altivo-mas todos os que têm senso comum sabem que a mulher toma a classe do seu marido, e que meu pai, descendendo de quinze avoengos sem mancha, podia bem enobrecer minha mãe, apesar da tinta do impressor Aldobrand que lhe corria nas veias.
- Por amor de Deus, Heitor - replicou sua irmã, com inquietação - toma cuidado com as tuas palavras; uma só expressão desse género, repetida a meu tio por qualquer ouvinte oficioso, indiscreto, ou interessado em prejudicar-te, far-te-ia perder para sempre a sua amizade e toda a esperança à sucessão dos seus bens.
- Seja assim! - respondeu o jovem, impaciente Pertenço a uma profissão sem a qual o mundo nunca pôde passar, e da qual terá mais necessidade do que nunca daqui a meio século; e meu tio pode, se quiser Maria, dar-lhe os seus domínios e o seu nome plebeu como presente de núpcias; e a minha irmã também pode, se quiser, desposar o seu favorito, e viver em paz com ele, se aprouver ao céu: quanto a mim o meu partido está tomado; não irei mendigar, pela lisonja, uma herança que me pertence por direito de nascimento.
Miss Mac Intyre, pousando a mão no braço do irmão, suplicou-lhe que reprimisse aquela exaltação,
- Quem te faz mal ou procura fazer-to - disse ela - senão a tua própria impetuosidade? Irritas-te com perigos que não existem senão na tua própria imaginação. O nosso tio, até o presente, não cessou de nos testemunhar uma bondade toda paternal, e porque supões que ele se vá mostrar de futuro tão diferente do que tem sido para nós desde que somos órfãos?
- Confesso que é um excelente homem - respondeu Mac Intyre - e fico furioso contra mim próprio quando me sucede ofendê-lo; mas, verdadeiramente, ás suas eternas arengas sobre um bico de alfinete, e que não valem a faúlha de uma pedreneira; as suas pesquisas sobre velhos potes e velhas marmitas, fazem-me perder a paciência. Tenho alguma coisa de Hotspur, minha irmã, concordo.
- Alguma coisa de mais, meu muito querido irmão. Ai, a quantos perigos, dos quais a maior parte, perdoa-me dizer-to, nada tinha üe respeitável, esse carácter violento e exclusivo te tem arrastado! Não deixes que o tempo que vais passar entre nós seja perturbado por arrebatamentos desse género. Que o nosso velho benfeitor tenha a satisfação de ver seu sobrinho tal como é: franco, vivo e generoso; mas sem mistura de brusquidão, de obstinação e de violência.
- Bem - respondeu o capitão Mac Intyre - eis-me catequizado. Deus queira que eu aproveite. E, para principiar, vou mostrar-me delicado com o teu novo amigo. Preciso de entabular conversa com esse Mr. Lovel.
Nesta resolução, que era de momento muito sincera, juntou-se ao rancho que marchava à frente. A tríplice dissertação terminara, enfim, e sir Arthur falava de novidades estrangeiras e da situação política e militar do país, assunto sobre o qual não há homem que não se julgue capaz de dar a sua opinião. Como a conversa recaira sobre uma acção que se verificara no ano anterior, Lovel, que interviera por acaso, referiu a esse respeito uma circunstância de cuja exactidão o capitão Mac Intyre não pareceu inteiramente convencido, embora as suas dúvidas fossem delicadamente expressas.
- Deves confessar que te enganas nesse caso, Heitor - disse seu tio - embora ninguém esteja menos disposto do que tu a fazer tal confissão; mas tu estavas em Inglaterra nessa época, e Mr. Lovel estava, provavelmente, presente no caso.
- Falo então com um militar? - indagou Mac Intyre - Posso perguntar-lhe a que regimento pertence, Mr. Lovel? - Lovel deu-lhe o número do seu regimento-É estranho que não nos tenhamos encontrado antes, Mr. Lovel; conheço perfeitamente, e servi com ele por diversas vezes.
Um leve rubor animou o rosto de Lovel.
- Há muito tempo que não sigo o meu regimento
- disse ele - servi na última campanha, sob as ordens do general sir X...
- Realmente, isto torna-se ainda mais estranho; porque, embora não tenha servido com o general sir X... tive no entanto ocasião de conhecer os oficiais que o rodeavam, e não me lembro de que existisse um com o nome de Lovel.
A esta observação, o rubor de Lovel tornou-se tão vivo que atraiu a atenção de todo o rancho, enquanto um sorriso desdenhoso denunciava em Mac Intyre uma espécie de triunfo. "Há nisto alguma coisa de extraordinário, disse Oldbuck com seus botões, mas não posso resolver-me a julgar tão levianamente a fénix dos companheiros de viagem; as suas acções, o seu procedimento e a sua linguagem pertencem a um verdadeiro gentleman".
Entretanto, Lovel tirara da sua carteira uma carta, cujo sobrescrito rasgou, e apresentou-a a Mac Intyre.
- Provavelmente, o senhor conhece a letra do general? Talvez eu não devesse mostrar estas expressões exageradas de estima e de interesse que contêm.
Aquela carta continha cumprimentos muito lisonjeiros da parte daquele oficial, relativamente a uma ocasião em que o nosso jovem se distinguira militarmente. Mac Intyre, ao primeiro olhar que lhe lançou, não pôde negar que reconhecia a letra do general, mas observou secamente que não havia endereço.
- O endereço, capitão Mac Intyre - respondeu Lovel no mesmo tom -estará à sua disposição quando o senhor se quiser informar.
- É o que não deixarei de fazer - replicou o jovem oficial
- Vamos! Vamos! - exclamou Oldbuck - Que quer tudo isso dizer? Trazes-nos a discórdia? Não queremos aqui fanfarrão e jovem louco. Vens do teatro da guerra para provocar questões domésticas nos nossos lares pacíficos? És então como os cães novos que, quando o touro está fora da arena, procuram lutar entre eles, dilacerando-se e mordendo as pernas das pessoas que estão em sua volta?
Sir Arthur disse que esperava que eles não se esquecessem até o ponto de se irritarem por uma coisa tão insignificante como o reverso de uma carta.
Os dois contendores protestaram contra qualquer intenção desse género e, faces inflamadas e olhos cintilantes, juraram que nunca estiveram tão calmos em sua vida. No entanto, um embaraço evidente pareceu tolher todo o rancho; cada um estava demasiado preocupado com as suas próprias reflexões para tentar ser amável, e Lovel, julgando-se objecto dos olhares frios e suspicazes do resto da sociedade pensando também que as suas respostas indirectas poderiam ter dado lugar a estranhas opiniões a seu respeito, tomou a corajosa resolução de sacrificar o prazer que se lhe prometia de passar o resto do dia em Knockwinnock.
Fingiu então queixar-se de uma violenta dor de cabeça ocasionada pelo calor do dia, ao qual ele não se expusera desde a sua doença, e apresentou desculpas muito delicadas a sir Arthur, que, já escutando mais uma suspeita recente do que o reconhecimento devido a serviços passados, não insistiu para que ele ficasse, além do que absolutamente exigia a mais estrita urbanidade.
Quando Lovel se aproximou para despedir-se das damas, notou nas maneiras de Miss Wardour uma espécie de interesse que ainda não lhe tinha encontrado. Ela exprimiu por um rápido olhar lançado ao capitão Mac Intyre, e do qual só Lovel pôde aperceber-se, a natureza do seu alarme, e disse, numa voz menos segura que a habitual, que esperava que não fosse um compromisso mais grave que os privava da companhia de Mr. Lovel. Ele assegurou-lhe que nenhum compromisso se verificava, que se tratava somente do reaparecimento de um mal a que era atreito havia bastante tempo.
- O melhor remédio em semelhante caso é a prudência e espero... e todos os amigos de Mr. Lovel esperam que não deixará de a usar.
Lovel inclinou-se profundamente, corando muito, e Miss Wardour, como se receasse ter falado de mais, voltou-se e subiu para a carruagem. Lovel ainda tinha de despedir-se de Oldbuck, que, durante este intervalo, com a ajuda de Caxon, reparara a desordem da sua peruca, e escovara o fato, que se ressentia em alguns sítios da sua passagem pelas sendas difíceis que tinha percorrido.
- Quê, jovem! Espero que não nos vá deixar por causa da indiscreta curiosidade e da veemência do louco do Heitor! É um rapaz incoerente, um menino mimado desde o tempo em que andava ao colo da ama. Um dia, atirou-me com a sua roca e o seu guiso à cabeça por eu lhe ter recusado um bocado de açúcar; mas o senhor tem bastante bom-senso para não prestar atenção às palavras desse desmiolado; aequam servare mentem, é a divisa do nosso amigo Horácio (1). Já dou uma descompostura ao Heitor, e arranjo tudo isso.
Mas Lovel persistiu em voltar para Fairport. O Antiquário afectou então um tom mais grave.
- Tome cuidado, jovem, com os sentimentos que o agitam neste instante. A vida foi-lhe concedida para um objectivo nobre e útil, e o senhor deve conservá-la para ilustrar a literatura do seu país, quando não for chamado a expô-la para sua defesa, ou para servir de apoio à inocência. Os combates particulares
- continuou ele - desconhecidos na civilização antiga, são, de todos os absurdos introduzidos pelas tribos góticas, o mais ímpio e o mais bárbaro. Não quero mais ouvir falar desses conflitos absurdos, e hei-de mostrar-lhe o tratado sobre o duelo que eu compus, quando o notário da cidade e o preboste Mucklewhame quiseram dar-se ares de gentlemen desafiando-se para o duelo. Eu tencionava mandar imprimir o meu ensaio; mas a coisa tornou-se inútil, porque o conselho da cidade arrumou o assunto.
- Mas asseguro-lhe, meu caro senhor, que entre
(1) Conserva uma alma igual (liv. II, ode in). - N. do T.
mim e o capitão Mac Intyre não há coisa alguma que possa necessitar de uma intervenção tão respeitável
- Assim seja! Porque de contrário eu serviria de padrinho às duas partes.
Em seguida, o velho gentleman entrou na cadeira de posta, junto da qual Miss Mac Intyre retivera até ali seu irmão, pelo mesmo motivo talvez que faz com que o dono de um cão bulhento o mantenha a seu lado para o impedir de ir atacar outro. Mas Heitor conseguiu iludir a sua precaução, porque, estando a cavalo, seguiu por algum tempo as carruagens até que elas tiveram de voltar a esquina da avenida de Knockr winnok; depois, voltando a cabeça ao seu cavalo, cravou-lhe as esporas e galopou em sentido oposto.
Poucos minutos bastaram para alcançar Lovel, que, adivinhando sem dúvida a sua intenção, pusera o seu cavalo a passo, quando um galope precipitado lhe anunciara o capitão Mac Intyre. Este jovem militar, cuja veemência ainda fora aumentada pela rapidez da corrida, deteve subitamente a montada ao lado da de Lovel e, tocando levemente o chapéu, perguntou no mais altivo tom:
- Que quis o senhor dar-me a entender, ao dizer-me que o seu endereço estava à minha disposição?
- Simplesmente, senhor, que o meu nome é Lovel, e que a minha residência é neste momento em Fairport, como pode ver por esta carta.
- E eis todas as informações que o senhor está disposto a dar-me?
- Que eu saiba, o senhor não tem o direito de pedir-me outras.
- Encontrei-o no círculo de minha irmã e tenho o direito de procurar conhecer aqueles que aí vejo admitidos.
- Tomarei a liberdade de contestar esse direito respondeu Lovel, num tom tão altivo como o do jovem militar - O senhor encontrou-me numa sociedade que se contentou com o grau de confiança que eu julguei a propósito conceder-lhe sobre os meus assuntos, e o senhor, que me é estranho, não tem o direito de ir mais além.
- Mr. Lovel, se o senhor serviu, como diz...
- Se? - interrompeu Lovel-Se eu servi, como o digo?
- Sim, senhor, essa é a minha expressão. Se serviu, como diz, tem a obrigação de saber que me deve uma explicação qualquer.
- Se essa é a sua opinião, ficarei encantado em dar-lha, capitão Mac Intyre, da maneira que geralmente a entendem as pessoas bem-educadas.
- Muito bem, senhor - respondeu Heitor e, voltando o seu cavalo, partiu a galope para ir juntar-se ao rancho.
A sua ausência já fora notada, e sua irmã, mandando parar o veículo, estendia a cabeça para fora da portinhola, a fim de ver onde ele estava.
- Que mais há ainda? - indagou o Antiquário Que andas tu a correr assim, para trás e para diante, como se a tua cabeça estivesse em jogo? Porque não te manténs ao lado da carruagem?
- Fui buscar a minha luva que deixara cair.
- Buscar a tua luva! Presumo que queres dizer que foste atirá-la; mas eu terei cuidado contigo, meu rapaz; terás a bondade de vir esta noite comigo para Monkbarns.
E ao acabar estas palavras, ordenou ao posttilhão que continuasse.
Se em tal ocasião falares à honra, terás de renunciar para sempre a servir, terás de dizer adeus ao nobre mister das armas, e ser-te-á arrancado o nome glorioso de soldado, como a coroa de louros mutilada pelo raio cai da fronte que foi indigna de a usar.
A Amável Discussão
Cedo, no dia seguinte, apresentou-se um gentlemon em casa de Mr. Lovel, que estava levantado e pronto a recebê-lo. Era um oficial, amigo do capitão Mac Intyre, então em Fairport em serviço de recrutamento. Lovel e ele conheciam-se superficialmente.
- Presumo, senhor -disse Mr. Lesley (era o nome deste oficial) - que deve adivinhar o motivo por que venho incomodá-lo tão cedo.
- Vem sem dúvida da parte do capitão Mac Intyre?
- Precisamente: ele sente-se ofendido pela maneira como o senhor ontem se recusou a responder a certas perguntas que se julgava no direito de fazer a um gentleman que se encontrava tão intimamente ligado à sua família.
- Ousarei perguntar-lhe, Mr. Lesley, se o senhor estaria disposto a satisfazer pedidos feitos de maneira tão brusca e tão altiva?
- Talvez não; e é porque conheço o ardor do meu amigo Mac Intyre em tais ocasiões que desejo vivamente servir aqui de conciliador... Pelas maneiras nobres e distintas de Mr. Lovel, deve cada um ardentemente desejar vê-lo repelir todas as suspeitas que a malquerença possa fazer pairar sobre uma situação que está envolta em mistério; se quiser permitir-me, por meio de um acordo amistoso, comunicar ao capitão Mac Intyre o seu verdadeiro nome, pois, temos razão para concluir que o de Lovel é suposto
- Peço-lhe perdão, senhor; mas não posso admitir essa conclusão.
- Ou, pelo menos - prosseguiu Lesley - que não é o que Mr. Lovel sempre usou. Se Mr. Lovel quiser explicar essa circunstância, o que, em minha opinião, devia fazer por respeito a si próprio, eu respondo por uma solução amistosa deste desagradável incidente.
- Isto é, Mr. Lesley, se eu quiser responder às perguntas que ninguém tem o direito de fazer-me, e que me são agora dirigidas, sob pena de incorrer no ressentimento do capitão Mac Intyre recusando-me a responder, o capitão Mac Intyre condescenderá em dar-se por satisfeito. Mr. Lesley, não tenho senão uma palavra a dizer a esse respeito: não tenho dúvida alguma de que o meu segredo, admitindo que eu teria algum, não pudesse estar em toda a segurança confiado à sua honra, mas não me julgo obrigado a ceder à curiosidade de ninguém. O capitão Mac Intyre encontrou-me numa sociedade que era por ela própria uma garantia bastante para toda a gente, e que sobretudo devia sê-lo para ele, que era um gentleman. Em minha opinião, ele não tem direito de ir mais longe, ou de inquirir do nascimento, da categoria e dos negócios de um estranho que, sem procurar uma ligação particular com ele ou com os seus, se encontra a jantar por acaso com seu tio ou a passear com o mesmo círculo de relações de sua irmã.
- Nesse caso, o capitão Mac Intyre encarrega-me de o informar de que deve renunciar de futuro a fazer visitas a Monkbarns, e a abandonar toda a relação com Miss Mac Intyre, como lhe sendo desagradável.
- Com toda a certeza - respondeu Lovel - eu irei visitar Mr. Oldbuck quando me convier, sem nenhum respeito pelas ameaças de seu sobrinho ou pelo seu descontentamento. Quanto à jovem, tenho demasiado respeito por ela, embora nada possa ser mais superficial do que o nosso conhecimento, para querer misrturar o seu nome numa questão deste género.
- Visto ser essa a sua resolução, senhor - replicou Lesley -o capitão Mac Intyre espera Mr. Lovel, a não ser que queira expor-se a passar por um homem de carácter muito equívoco, para lhe conceder o favor de uma entrevista, esta tarde às sete horas, na moita de espinhos, no pequeno vale que fica perto das ruínas de Santa Ruth.
- Pode assegurar-lhe que lá estarei. Não há senão uma dificuldade: preciso de encontrar um amigo que me acompanhe; e onde encontrar um num prazo tão curto, eu, que não conheço ninguém em Fairport? No entanto, estarei no local; o capitão Mac Intyre pode ter a certeza disso.
Lesley pegara no chapéu e avançara até à porta do aposento, quando de súbito, e como que comovido pela situação particular de Lovel, se voltou e disse:
- Mr. Lovel, há qualquer coisa de tão singular em tudo isto que não posso deixar de tornar ao assunto: o senhor próprio deve sentir, neste momento, o inconveniente de guardar semelhante incógnito. Embora eu esteja bem convencido de que o senhor não tem, para isso senão motivos cuja causa não pode ser desonrosa; no entanto este mistério, numa situação"! tão delicada, cria obstáculos a que o senhor obtenha! facilmente a assistência de um amigo. Permita-me mesmo acrescentar que certas pessoas verão no procedimento de Mac Intyre uma espécie de dom-quixotísmo em medir-se com um homem cujo carácter e situação ficam envoltos em tal obscuridade.
- Compreendo-o, senhor - respondeu Lovel - e embora haja nas suas palavras coisas íeitas para parecerem duras, não me ofendo com elas, porque creio que as suas intenções são boas; mas, em minha opinião, aquele a quem a sociedade em que vive não pode censurar de nenhuma acção pouco honrosa, e que sempre se conduziu como um gentleman, tem o direito de reclamar privilégios. Quanto a um padrinho, ufano-me de encontrar alguém que me queira servir; e se ele tiver neste género menos experiência do que eu poderia desejar-lhe, tenho a certeza de que não sofrerá com isso, visto ser o senhor quem serve de testemunha ao meu adversário.
- A sua opinião não será errada; mas eu próprio desejo partilhar o peso de semelhante responsabilidade com alguém que seja capaz de me secundar. O brigue do tenente Taffril entrou ontem no porto; ele próprio está neste momento na cidade, onde mora com o velho Caxon. Ele é, creio eu, tão seu conhecido como meu; e pela razão que eu não hesitaria em prestar-Lhe semelhante serviço, se não estivesse comprometido pelo outro lado, estou convencido de que o senhor o encontrará disposto ao primeiro pedido...
- Assim, pois, na moita dos espinhos, Mr. Lesley, às sete horas da tarde. Quais são as armas? A pistola, suponho eu.
- Exactamente; Mac Intyre escolheu a hora em que lhe será mais fácil escapar-se de Monkbarns: esteve esta manhã em minha casa às cinco horas, a fim de poder estar de volta antes de seu tio se levantar. bom dia, Mr. Lovel.
E Lesley abandonou o aposento.
Lovel era tão valente quanto um homem o pode ser; mas não há nenhum que possa encarar uma catástrofe semelhante à que se aproximava sem se sentir agitado por uma sensação de terror e de dúvida. Dentro de algumas horas, ele poderia ter de responder, em outro mundo, por uma acção que o seu raciocínio mais calmo lhe dizia ser injustificável aos olhos da religião; ou talvez, errante como Caim, o sangue de um irmão recaísse sobre a sua cabeça? Tudo isto podia ser evitado por uma só palavra! Mas o orgulho dizia-lhe que pronunciar essa palavra agora seria atribuído a um motivo que o feriria ainda mais do que os motivos mais injuriosos que pudessem emprestar ao seu silêncio. Toda a gente, incluindo Míss "Wardour, o olharia então como um cobarde e um homem sem coração, ao qual o medo de se medir com o capitão Mac Intyre arrancara uma explicação que ele recusara às instâncias calmas e delicadas de Mr. Lesley. Aliás, a atitude insolente de Mac Intyre a seu respeito, as pretensões que ele parecia ter sobre Miss Wardour, e a arrogância, a indelicadeza e a extrema injustiça das suas perguntas a um estranho, pareciam autorizá-lo a repelir inteiramente um interrogatório tão rude. Em suma, tomou a resolução que se podia esperar de um homem tão novo, isto é, abafar a voz da fria razão para não escutar senão a do orgulho ofendido. E foi com este desígnio que se dirigiu a casa do tenente Taffril.
O tenente recebeu-o com a delicadeza de um homem de sociedade e a franqueza de um marinheiro, e não escutou sem surpresa os pormenores de que ele precedeu o seu pedido de servir de testemunha no seu encontro com o capitão Mac Intyre. Quando ele terminou, Taffril levantou-se e, dando duas ou três voltas ao aposento, disse:
- Eis um caso bem singular, realmente.
- Eu sinto, Mr. Taffril, o pouco direito que tenho ao serviço que lhe peço; mas a urgência da minha posição não me permite escolher.
- Dê-me licença de que lhe faça uma só pergunta
- disse o marinheiro - Não há nada que o faça corar nas circunstâncias que se recusou a revelar?
- Não, pela minha honra, não há nada que eu não possa, dentro de muito pouco tempo", publicar à face do mundo.
- Espero que esse mistério não provenha de alguma má vergonha sobre a obscuridade de seus pais, ou talvez de suas ligações?
- Não, sob minha palavra.
- Pouca pena terei dessa fraqueza, e não me podem realmente atribuir muita, a mim, que me veria atrapalhado para lhe descobrir a origem, a não ser a de que sou descendente do mastro grande e que penso em breve constituir uma ligação que o mundo não deixará de verberar pela baixeza. Vou casar com uma jovem muito interessante, à qual me afeiçoei desde a mais tenra mocidade, quando morávamos porta com porta e eu estava longe de prever com que honra progrediria no serviço do mar.
- Asseguro-lhe, Mr. Taffril, que, qualquer que fosse a categoria dos meus pais, nunca pensaria em ocultá-la por um sentimento tão mesquinho. Mas a minha situação é tal neste momento que deveres de compromisso me não permitem explicar-me a respeito da minha família.
- É quanto basta - respondeu o honesto marinheiro - Dê-me a sua mão, servi-lo-ei da melhor vontade neste caso, embora ele seja bastante desagradável; mas que importa? Depois da pátria, devemos tudo à honra. O senhor é um rapaz de coração, e confesso que Mr. Heitor Mac Intyre, com a sua longa genealogia e os seus ares altivos, me parece ter todo o ar de um impertinente. Seu pai era um soldado prático como eu sou um oficial de marinha. Ele próprio que mais é? Tem toda a benevolência de seu tio: a única diferença que existe entre nós é que um procura a fortuna por terra, e outro pelo mar, o que, julgo eu, vem a dar mais ou menos o mesmo.
- Absolutamente - respondeu Lovel.
- Bem, então - disse o seu novo aliado - jantaremos juntos e faremos todas as nossas combinações. Espero que conheça o manejo da arma?
- Não precisamente - replicou Lovel.
- Lamento, porque se diz que Mac Intyre é bom atirador.
- Também lamento, por ele e por mim. É preciso que eu então trate, para minha própria defesa, de visar o melhor possível.
- E eu vou avisar o nosso ajudante cirurgião para se dirigir ao local indicado; é bom rapaz e hábil em reparar o dano causado por uma bala. Também prevenirei Lesley de que ele lá estará pronto, à disposição das duas partes em caso de acidente. Há alguma coisa que eu possa fazer por si?
- Pouco tenho a pedir-lhe - disse Lovel - Este pequeno embrulho contém a chave da minha secretária, que encerra os meus papéis secretos. Há uma carta na secretária -a voz traía-lhe o coração oprimido –que lhe peço-por favor que seja entregue por sua própria mão.
- Compreendo-o - disse o marinheiro - Não, meu amigo, não core por causa disso: uma lágrima vertida em recordação de um terno afecto, mesmo no momento de uma acção, não desonra um homem sensível. Creia-me, quaisquer que sejam as suas recomendações, Daniel Taffril respeitá-las-á como últimas vontades de um irmão moribundo. Mas, que estupidez! Vamos, precisa de se preparar para o combate; janta comigo e com o meu pequeno cirurgião nas Armas de Greme, no outro lado da rua; às quatro horas-, a pequena estalagem que o senhor conhece.
- De acordo -disse Lovel.
- Está combinado - confirmou Taffril; e separaram-se.
Era uma bela tarde de Estio, e a sombra de uma solitária moita de espinhos estendia-se suavemente, pela verde relva do estreito vale debruado pelos bosques que cercavam a abadia de Santa Ruth.
Lovel e o tenente Taffril, acompanhados do cirurgião, dirigiram-se ao prado com intenções bem opostas ao carácter calmo, tocante e aprazível que o lugar e a hora respiravam. As ovelhas que, durante o calor escaldante do dia, se tinham recolhido nas cavidades que lhes ofereciam as rochas onde se encontram as raízes das velhas árvores desfolhadas, espalharam-se pela superfície da montanha para tomarem o repasto da tarde, chamando-se umas às outras por balidos dolentes que animam a paisagem e ao mesmo tempo difundem um quê de solidão. Taffril e Lovel chegaram embrenhados numa conversa séria. com receio de que os cavalos os fizessem descobrir, tinham-nos reenviado para a cidade pelo criado do tenente. Os seus antagonistas ainda não tinham chegado; mas ao aproximarem-se do terreno, viram, sentado nas raízes de um velho espinheiro, um vulto tão vigoroso no seu declínio como os ramos nodosos e cobertos de musgo que protegiam de sombra a sua cabeça. Era o velho Ochiltree.
- Isto é embaraçoso - disse Lovel - Como nos havemos de livrar deste velhote?
- Venha cá, tio Edie - gritou-lhe Taffril, que conhecia o mendigo havia muito tempo - Aqui tem meia coroa; preciso de que vá à Quatro Ferraduras do Caualo, a pequena estalagem que o senhor conhece lá em baixo. Pergunta se um criado de libré azul e amarela já chegou; se lá não estiver ainda, espere-o, e diga-lhe que nos reuniremos ao seu amo dentro de pouco mais de uma hora. Em qualquer caso, fique na estalagem até nós regressarmos. Vamos, siga, levante ferro.
- Agradeço a sua esmola - disse Ochiltree, metendo o dinheiro no bolso -mas peço-lhe desculpa, Mr. Taffril; não posso fazer o seu recado neste momento.
- E porque não, homenzinho? Que é que o impede?
- Tenho uma palavra a dizer ao jovem Mr. Lovel.
- A mim? - perguntou Lovel - Que quer dizer-me? Vejamos, fale, seja breve.
O mendigo, afastando-se com ele uns passos, disse:
- O senhor deve alguma coisa ao laird de Monkbarns?
- Se eu devo? Não, realmente. Porquê? Que foi que o levou a supor isso?
- Fique sabendo que estive hoje em casa do sheriff, porque, graças a Deus, deambulo por todos os lados como uma alma penada; e quem eu vi lá chegar todo azafamado em cadeira de posta não foi outro senão o próprio Monkbarns; e sabe-se que não é por dá cá aquela palha que Sua Honra aluga uma cadeira de posta dois dias seguidos.
- Bem, e que tenho eu com isso?
- Oh! O senhor vai ouvir. Pois bem, Monkbarns fechou-se com o sheriff, enquanto as outras pobres pessoas ficavam à porta. O senhor não duvida disto; estes gentlemen são sempre tão delicados uns com os outros!
- Por amor de Deus, meu velho amigo...
- Porque não me manda já para o diabo, Mr. Lovel? Mais valia do que pronunciar o nome de Deus com tal impaciência.
- Mas tenho aqui um negócio urgente com o tenente Taffril.
- Bem, bem! Não há tempo perdido - disse o mendigo- Eu posso tomar certas liberdades com Mr. Daniel Taffril; trabalhei mais de uma vez para ele; porque eu exerci o ofício de marceneiro tão bem como o de caldeireiro.
- Está louco, Edie, ou quer que eu endoideça?
- Nem uma coisa nem outra - replicou Edie, trocando bruscamente o tom arrastado de mendigo por um tom mais breve e decidido - O sheriff mandou chamar o seu escriturário, que é um rapaz com a língua demasiado comprida, e eu descobri que ele mandava passar um mandado de prisão contra o senhor. Julguei que era uma detenção por dívidas, porque toda a gente sabe que o laird não gosta de que lhe mexam na algibeira. Mas tenho de me calar. Já vejo além o jovem Mac Intyre e Mr. Lesley, e adivinho agora que a intenção de Monkbarns era melhor do que a que os traz aqui neste momento.
Os antagonistas então aproximaram-se e cumprimentaram-se com a fria delicadeza adequada àquela circunstância.
- Que faz aqui, velho mendigo? -indagou Mac Intyre.
- Sou um velho mendigo - respondeu Edie - e sou também um velho soldado de seu pai, e servi com ele no 42.º.
- Servisse onde lhe aprouvesse, isso não o autoriza a vir aqui perturbar-nos - disse Mac Intyre - Deixe-nos, senão...
E levantou a bengala para assustar o velho, embora sem intenção de lhe bater. Mas a coragem de Ochiltree excitou-se com este insulto.
- Baixe a bengala, capitão Mac Intyre. Eu sou um velho soldado, como já lhe disse, e tenho suportado muito do filho de seu pai, mas não me deixarei tocar enquanto o meu pau ferrado me defender.
- Vamos, vamos, procedi mal, concordo; tome lá esta coroa e siga o seu caminho. Então, que mais quer ainda?
O velho endireitou-se de forma a destacar a sua' estatura; e apesar do seu vestuário, que, no entanto, mais se parecia com o de peregrino do que com o de um vulgar mendigo, pela sua corpulência pouco normal, pela energia da sua voz e dos seus gestos, todos o tomariam por um viajante dos lugares santos, ou por um eremita pregador, dando conselhos espirituais aos jovens que o cercavam, mais do que um alvo da sua caridade. As suas palavras eram em verdade tão simples como a sua vestimenta, mas tão ousadas, tão enérgicas como a sua atitude desassombrada e imponente.
- Que vindes aqui fazer, jovens? - disse ele, dirigindo-se aos seus ouvintes surpreendidos - Vindes ao meio das belas obras de Deus para faltar às suas leis? Deixastes as obras dos homens, as suas cidades e as suas casas, que tal como eles não passam de lama e poeira, para vir a estas montanhas sossegadas, ao lado destas águas tranquilas que durarão enquanto o mundo for mundo, e isso para vos destruirdes um ao outro e arrancardes uma vida cujo termo já é curto segundo as leis da natureza, e da qual tereis de dar longas e terríveis contas? ó meus filhos! Não tendes pais, irmãos, irmãs que vos cuidaram, mães que tanto sofreram para vos trazer ao mundo, e amigos que vos consideram1 uma parte da sua carne e dos seus ossos? E quereis assim privá-los dos seus filhos, dos seus irmãos e dos seus amigos? Ai, triste combate esse em que o vencedor é o mais infeliz! Pensai nisso, meus amigos. Não passo de um pobre homem; mas também sou um velho; e os meus cabelos grisalhos, e sobretudo a sincera convicção que dita as minhas palavras, devem, creio eu, dar-lhes vinte vezes mais força que o peso da minha pobreza não lhes pode retirar. Qualquer dia, os franceses vêm atacar-nos (1); então, não vos faltam combates, e talvez o velho Edie se arraste atrás de vós, se puder encontrar uma trincheira para aí pousar a sua espingarda, e ele ainda poderá viver bastante tempo para vos dizer qual dos dois sabe bater-se melhor, quando se tratar de uma boa causa.
Havia no tom intrépido e independente do velho, na energia dos seus sentimentos e na sua máscula e rude eloquência alguma coisa que produziu o seu efeito no jovens, sobretudo nas testemunhas, cujo orgulho não estava interessado em que o conflito tivesse um desfecho sangrento, e que, pelo contrário, espreitavam o momento de propor uma reconciliação.
(1) Esperava-se por essa época a invasão da Inglaterra por Napoleão. - N. do T.
- Palavra de honra, Mr. Lesley, o velho Edie falou como um oráculo - disse Taffril -Os nossos amigos aqui presentes estavam ontem muito irritados e por conseguinte muito desarrazoados. Creio que, tanto de um lado como do outro, a palavra de ordem deveria ser esquecimento e perdão; que todos devemos apertar a mão, deitar fora essas malditas armas, e irmos cear juntos à Armas de Grazme.
- Sou sinceramente da sua opinião - declarou Lesley - pois, no meio de muito calor e de irritação de parte a parte, confesso que não sou capaz de descobrir nenhum motivo razoável para se baterem.
- Meus senhores - disse Mac Intyre friamente era antes que deviam ter pesado tudo isso. Em minha opinião, pessoas que, depois de terem levado uma questão tão longe, se separassem em seguida sem a ter terminado, poderiam ir cear muito alegremente à Armas de Grazme, mas levantar-se-iam amanhã com uma reputação tão esfarrapada como a vestimenta do nosso amigo orador, que veio mostrar-nos uma eloquência sem a qual teríamos passado muito bem. Falo-lhes assim por mim, vejo-me constrangido a pedir-lhes que acabem sem demora.
- E como eu também nunca desejei nenhuma disse Lovel - peço a estes senhores que queiram regular os preliminares tão rapidamente quanto possível.
- Crianças! Crianças! - bradou o velho Ochiltree; mas vendo que já não o escutavam - Loucos! deveria eu dizer: que o sangue recaia sobre vossas cabeças!
O velho retirou-se então do terreno, que foi medido pelas testemunhas, enquanto ele continuava a falar com ele próprio e a murmurar com sombria indignação, mesclada, porém, de um vivo sentimento de inquietação e de uma dolorosa curiosidade. Sem se preocuparem mais com a sua presença ou com a sua reprimenda, Lesley e o tenente fizeram os preparativos necessários para o duelo, e ficou convencionado que as duas partes disparariam ao mesmo tempo que Lesley deixasse cair o seu lenço.
Foi dada a indicação fatal, e os dois tiros soaram quase ao mesmo tempo. A bala do capitão Mac Intyre roçou pelo seu adversário, mas não lhe provocou sangue; a de Lovel foi mais fiel ao alvo. Mac Intyre cambaleou e caiu; mas, soerguendo-se sobre um braço, a sua primeira exclamação foi: "Não é nada, não é nada; dêem-nos as outras pistolas". No entanto, ajuntou um momento depois, numa voz mais fraca: "Creio que tenho a minha conta; e, o que é pior, julgo não ter senão o que mereço. Mr. Lovel, ou qualquer que seja o seu nome, fuja, salve-se... São todos testemunhas de que fui eu quem provocou esta questão". Depois, soerguendo-se ainda no braço, ajuntou: "Lovel, dê-me a sua mão; estou convencido de que o senhor é um gentleman: perdoe a minha impertinência como eu lhe perdôo a minha morte... Minha pobre irmã!... " O cirurgião chegou para desempenhar o seu papel naquela tragédia; Lovel permanecia imóvel a contemplar o mal de que era a causa activa, embora involuntária, de olhos desvairados. Foi arrancado ao seu torpor pelo mendigo.
- Para que fica aí a ver a sua obra? O que é ordenado deve-se cumprir; o que está feito já não se pode emendar. Fuja, se quer salvar a sua juvenil cabeça de uma morte vergonhosa. Vejo vir lá em baixo os homens que chegam demasiado tarde, mas, ai! ainda bastante e demasiado cedo para o levar à cadeia.
- Ele tem razão. Tem razão! - exclamou Taffril Não se deve expor a seguir pela estrada; embrenhe-se nos bosques até à noite; o meu brigue estará preparado, e às três da madrugada, se a maré for boa, mando um barco esperá-lo a Mussel Crag. Mas fuja, fuja, por amor de Deus.
- Ah! Sim, sim, fuja! - repetiu o ferido, cuja voz era entrecortada por movimentos convulsivos.
- Venha comigo - disse o pedinte, arrastando-o quase à força - O conselho do tenente é o melhor. Vou conduzi-lo a um lugar onde poderá ficar escondido, mesmo que eles lançassem cães de caça em sua perseguição.
- Vá, vá - apoiou o tenente - ficar aqui é uma verdadeira loucura.
- Foi muito maior ter vindo - replicou Lovel, apertando-lhe a mão - Mas adeus.
E seguiu Ochiltree para as profundezas do bosque.
O senhor abade tinha uma alma de fogo e que reunia também todas as propriedades, ardente, subtil e penetrante. Descia por escadas magníficas a profundidades subterrâneas semelhantes ao inferno, como se o ouro estivesse confiado á guarda dos demónios pois é certo que ele o trazia de lá. Esse ouro estava oculto em "caves" que não são conhecidas senão por mim.
A Maravilha de um Reino
Lovel seguia quase maquinalmente o velho, que o conduzia num passo firme e rápido através dos soutos e das moitas, evitando a senda calcada e voltando-se muitas vezes, a fim de verificar se alguém os perseguia. Umas vezes, desciam mesmo ao leito da torrente, outras seguiam uma vereda estreita e pouco segura, que as ovelhas - que deviam à negligência que se nota geralmente na Escócia em propriedades deste género, a liberdade de pastar nos bosques - tinham traçado na sua orla. De vez em quando, Lovel podia avistar a senda que percorrera na véspera, na companhia de sir Arthur, do Antiquário e das jovens. Abatido, desorientado, agitado por mil inquietações como se encontrava então, quanto não teria ele dado para reencontrar aquele sentimento interior de inocência que, só ele, pode contrabalançar tanto mal! "E se como eu estava então - pensava ele involuntariamente, na sua turbação - isento de censuras e estimado pelos que me cercavam, achava ainda de que me queixar, que direi eu agora que minhas mãos estão tintas do sangue daquele jovem? Agora, que o sentimento de orgulho que me levou a este acto me abandona, como o próprio demónio abandona, diz-se, o mortal que acaba de arrastar ao crime", Tudo, até a sua afeição por Miss Wardour, foi por um momento esquecido perante as primeiras angústias do remorso. E ele pensava que consentiria com alegria em suportar os tormentos de um amor desdenhado, para poder reencontrar-se como estava de manhã, com uma consciência pura e aliviada do peso esmagador de ter vertido sangue de outrem.
Estas dolorosas reflexões não foram interrompidas pela conversa do seu guia, que, precedendo-o através do souto, ora afastava os ramos para lhe tornar a passagem mais fácil, ora o exortava a apressar-seg e murmurava entre dentes, segundo o costume de uma velhice muitas vezes solitária e descuidosa, palavras que teriam escapado ao ouvido de Lovel, mesmo que ele estivesse mais atento, e que, ainda que as ouvisse, eram demasiado soltas e desconexas para formarem um sentido bem ligado. Este hábito de falar só se observa por vezes nas pessoas de idade e da profissão do mendigo.
Por fim, Lovel, enfraquecido pela sua recente indisposição, pelas angustiosas sensações que o agitavam e pelos esforços que tivera de fazer para seguir o seu guia por um caminho tão escarpado, começava a afrou xar e a ficar para trás, quando dois ou três passos perigosos o levaram de repente à beira de um precipício quase inteiramente coberto de sarças. Aí, uma caverna, cuja entrada era tão estreita como uma toca de raposa, estava indicada por uma pequena fenda na rocha, coberta pelos ramos de um velho carvalho, que, segurando-se sòlidamente à parte superior da rocha por raízes grossas e tortuosas, lançava para diante as suas longas ramagens, bastante pendentes para ocultarem perfeitamente a entrada do subterrâneo. Até podia escapar à atenção dos que se encontrassem muito perto, de tal modo a fenda pela qual o mendigo deslizou parecia inacessível; mas o interior da caverna era mais alto e mais espaçoso do que se poderia imaginar. Dois ramos opostos, que se juntavam no meio, formavam o emblema da cruz e indicavam que aquele lugar servira outrora de retiro a algum anacoreta. Há muitas grutas desta espécie em diversas partes da Escócia. Não citarei senão a de Gorton, perto de Rosslyn, sítio bem conhecido dos admiradores de uma natureza pitoresca.
A claridade que recebia não passava de um crepúsculo incerto, que cessava totalmente quando se mergulhava nas profundezas.
- Poucas pessoas conhecem este luga - disse o velho -Tanto quanto me recordo, agora não existem mais que duas pessoas, sem contar comigo, que são Jingling Jock e Lang Linker... Já pensei mais de uma vez que, quando me sentir demasiado velho, abandonado, incapaz de gozar por mais tempo os bens do ar, arrastar-me-ei até aqui, com uma pequena provisão de farinha de aveia, e, veja, há ali uma nascente que corre sempre, Verão e Inverno, e nada de melhor terei a fazer senão instalar-me aqui à espera do meu fim, como um cão velho que arrasta, para o canto de uma moita ou para dentro de algum fosso" a sua feia e mutilada carcaça, para poupar a vista aos vivos quando morrer; e depois, quando os cães ladrarem à porta da granja isolada, a dona da casa bradará: "Silêncio! Silêncio! É o velho Edie! " E os pequenitos virão em seu passinho incerto até a porta para a abrir ao velho do roupão azul que lhes conserta os brinquedos. Mas então já não haverá mais Edie.
Conduziu Lovel, que o seguia sem resistência, a uma das cavidades interiores da caverna.
- Aqui - disse ele - há uma pequena escada de caracol que comunica com a velha igreja. Há pessoas que dizem que este lugar foi perfurado pelos monges, há muito tempo, para nele ocultarem os seus tesouros; outros ajuntam que eles tinham por costume introduzir durante a noite, na abadia, coisas que não se preocupavam em trazer abertamente e em pleno dia; e há quem conte também que um deles se tornou santo (ou talvez o quisesse fazer acreditar), e que se instalou na cela de Santa Ruth (era assim que o povo outrora chamava a este local) e que foi ele quem construiu esta escada a fim de poder subir à igreja quando se celebrava o ofício divino. O laird de Monkbarns teria de que falar sobre este assunto (como o faz por vezes sobre coisas de somenos) se acaso conhecesse este lugar. Mas quem pode decidir se ele foi feito para servir aos desígnios do homem ou ao serviço de Deus? Vi acontecer muita coisa no meu tempo, e eu próprio tomei parte em muitas outras, sim, nesta mesma caverna sombria. Mais de uma dona de casa se admirava de não ouvir cantar de manhã o galo caseiro, quando nós o tínhamos assado neste escuro buraco, pobre bicho!... Ai, eu desejaria nunca ter feito pior do que isso! Que barulho nós fazíamos aqui, mesmo no meio das entranhas da terra, e que terrores causámos a Sanders Aikwood, que era guarda florestal nesse tempo, e que é o pai de Rigan, que vive ainda, quando ele ia à noite, batendo os bosques e vigiando a caça do laird, e avistava o clarão dos archotes que passava pela abertura da caverna, e projectava aqui e além o seu brilho sobre as nogueiras que estão defronte! Era ouvir depois Sanders contar as suas histórias de espíritos e feiticeiros que povoavam o bosque de noite, e de fogos que ele vira, e de gritos que lhe chegavam aos ouvidos, quando não havia outros olhos abertos senão os dele! E era a mim e aos meus companheiros a quem vinha repetir as suas histórias de aparições, e era ver como eu lhe pagava na mesma moeda e tinha sempre à mão um conto para cada um dos seus, embora no fundo soubesse um pouco melhor do que ele a que ater-me! Sim, sim, pregámos mais de uma boa partida. Mas, ai, tudo isso não passava de vaidade e loucura, e é justo que quem levou uma vida de dissipação e futilidade, e que abusou dos seus meios durante a juventude, lhes sinta a falta, agora que está velho.
Enquanto Ochiltree contava assim os ardis e as façanhas dos seus primeiros anos, num tom em que a facécia e o arrependimento dominavam cada um por sua vez, o seu triste companheiro sentara-se no banco do eremita, cavado na rocha, e abandonava-se àquela lassidão de espírito e de corpo que geralmente se segue às agitações que ambos experimentaram. A enfermidade recente, que muito debilitara a sua constituição, contribuía bastante para aquele abatimento letárgico. "Pobre rapaz - pensou o velho Edie - se ele passar a noite neste subterrâneo húmido, talvez nunca mais acorde ou talvez apanhe alguma doença perigosa. Ele não é como nós, que podemos dormir em toda a parte, quando temos o estômago cheio".
- Levante-se, Mr. Lovel, meu rapaz. No fim de contas, apostaria em como o jovem capitão se safa desta, e, depois, o senhor não é o primeiro a quem sucede semelhante desgraça. Já vi matar mais de um homem, e eu próprio ajudei a matar mais de um, embora não houvesse questões entre nós; e se não é crime matar pessoas com quem não estamos em conflito, mas somente porque trazem outro distintivo no chapéu, não vejo porque não haja desculpa para aquele que mata o seu inimigo mortal, que veio a terreno, armado contra a sua vida. Não digo que isso esteja bem, Deus me livre! E que não seja um grande pecado tirar a um homem o sopro que Deus lhe deu e que ninguém lhe pode restituir; mas digo que é um pecado que o arrependimento deve fazer perdoar. Nós todos não somos senão pecadores; mas, se o senhor quiser escutar uma velha cabeça grisalha que reconheceu os seus antigos erros, há nas promessas do Velho Testamento com que salvar o mais perverso de entre nós, contanto somente que ele queira e creia.
Foi com semelhantes encorajamentos e fragmentos de devoção que sua memória lhe pôde fornecer que o mendigo se esforçou por atrair e forçar a atenção de Lovel, até que a noite sucedeu ao crepúsculo.
- Agora - disse Ochiltree - vou levá-lo a um lugar mais cômodo, onde eu próprio me detive mais de uma vez a ouvir o grito da coruja entre a era tufada e a ver o nascer da lua das velhas janelas destas ruínas. Ninguém vem aqui a esta hora da noite, e esses velhacos dos agentes do sherifj e dos oficiais de polícia devem ter cessado as suas pesquisas. Garanto-lhe que, apesar dos seus mandados e das suas chaves do rei (1), são tão grandes poltrões quanto possa haver. Cheguei-lhes algumas vezes, no meu tempo, quando não estavam muito longe de mim; mas, graças a Deus, agora não têm outro direito sobre mim senão como sobre um velho e um mendigo, e a minha placa é uma boa protecção; e, depois, Miss Isabel Wardour ainda é para a minha pessoa um apoio mais sólido, sabe? - Lovel suspirou - bom, bom, não se deixe abater A partida ainda não está perdida... dê-lhe tempo para saber o que ela quer. É a flor do país pela beleza, e é também para mim uma boa amiga e uma protectora. Eu passo presentemente ao lado da casa de correcção, com tanta segurança como junto da
(1) Chaves então usadas para forçar fechaduras e arrombar portas, por mandado do rei, ou em nome da lei. - N. do T.
igreja em dia de domingo. Diabos me levem se algum deles ousaria tocar num cabelo da cabeça do velho Edie, agora! Sigo pelo passeio, quando vou à cidade, e roço pela manga do próprio bailio, com tanta tranquilidade como se passasse junto de uma panela velha.
Assim falando, o mendigo, a um canto da caverna, tratava de retirar umas pedras que caíam quase por si, e que obstruíam a entrada da escada de que já falara; feito isto, subiu à frente e Lovel seguiu-o num silêncio passivo.
- O ar circula bastante bem aqui - disse o velho - os monges tiveram cuidado nisso, porque era uma geração que não tinha o fôlego longo; eles fizeram pequenas aberturas que dão acesso ao ar livre e mantêm a escada tão fresca como um pé de couve.
Lovel achou realmente a escada bem arejada; embora pouco larga, nem estava arruinada nem era comprida, e conduziu-os rapidamente a uma galeria estreita que, pelo interior, seguia ao longo da parede que cercava a igreja, e recebia o ar por meia de pequenas aberturas engenhosamente dissimuladas nos ricos ornamentos da arquitectura gótica.
- Esta passagem secreta circula em volta de uma grande parte do edifício - disse o mendigo - e ao longo da parede do local a que Monkbarns chama o refratório (queria provavelmente dizer refeitório) e estende-se em seguida até à cela do abade. É provável que se servisse disto para escutar o que os frades diziam durante o repasto; depois do que podia voltar para aqui e certificar-se de que eles estavam ocupados em cantar os Salmos. Depois, quando tinha a certeza de que tudo estava em ordem, podia descer para aqui, e fazer entrar uma bonita rapariga pelo subterrâneo, porque eram uns bons pândegos esses monges! A menos que tenham dito deles muitas mentiras. Mas, depois, os que tiveram conhecimento destes lugares têm tido muito trabalho em murar esta passagem em alguns sítios e em abatê-la noutros, com receio de que algum importuno aqui se introduzisse e descobrisse as partidas que vinham aqui pregar. Em verdade, seria para nós um mau negócio. com certeza, alguns dos nossos pescoços ressentir-se-iam disso.
Chegaram em seguida a um sítio onde a galeria se alargava e formava um pequeno círculo suficiente para conter um banco de pedra. Um nicho, construído precisamente em frente, avançava em saliência pela igreja, e como os seus ornamentos rendilhados, que lhe cobriam os lados, formavam uma espécie de encaniçado, dali se descobria facilmente tudo o que se passava no interior da nave. Este local, como dizia Edie, fora verosimilmente imaginado como uma espécie de posto secreto de onde o superior da ordem podia vigiar o procedimento dos seus monges e certificar-se, por inspecção pessoal, de que eles eram rigorosos no cumprimento daqueles ritos de devoção de que a sua categoria o dispensava de tomar parte.
Como este nicho pertencia a uma série de nichos semelhantes que se estendiam ao longo da parede da igreja, e nem de qualquer modo diferia deles pelo exterior, dissimulado como estava pela estátua de São Miguel e do dragão e pelos ornamentos rendiLhados que o cercavam, era impossível notar-lhe a existência. A galeria secreta, retomando a sua primitiva largura, estendera-se, na origem, para além deste banco; mas as inquietas precauções dos vagabundos que anteriormente tinham frequentado a caverna de Santa Ruth, inspiraram-lhes murar cuidadosamente esse lugar com pedras de talha que tiraram das ruínas.
- Estamos melhor aqui - disse Edie, sentando-se no banco de pedra, estendendo por baixo uma parte do seu roupão azul e fazendo sinal a Lovel para se sentar ali. - Estamos melhor aqui do que lá em baixo, o ar é mais vivo e mais leve, e o perfume dos goiveiros e de outras plantas que crescem na parede arruinada é bem mais saudável do que as exalações húmidas que se respiram lá em baixo. Cheiram muito melhor de noite, estas flores, e encontramo-las quase sempre no meio de edifícios arruinados; o senhor, que é um sábio, Mr. Lovel, não poderia dar-me uma explicação disto?
Lovel respondeu negativamente.
- Elas fazem-me pensar nas boas qualidades de certas pessoas - prosseguiu o mendigo - que são mais flagrantes na adversidade; talvez também seja uma parábola para nos ensinar a não desprezar os que mergulharam nas trevas do pecado ou que estão carregados de tribulações, mostrando-nos que Deus envia perfumes para refrescar os lugares mais sombrios, e que faz crescer as flores e as plantas odoríferas nos velhos edifícios arrumados. Eu gostaria de que um sábio me pudesse dizer se o céu vê com mais prazer o espectáculo que temos agora perante os nossos olhos, deste belo luar que espalha tão pacificamente os seus grandes raios pelo pavimento desta velha igreja, e cujo reflexo também chega ao meio das colunas e dos suportes destas janelas góticas esculpidas, enquanto a cada sopro, o vento agita além a era sombria, lança sobre ela uma trêmula claridade; gostaria de saber, disse eu, se este espectáculo não é mais agradável aos olhos de Deus do que quando a igreja era iluminada por círios, lâmpadas e archotes, e nela sem dúvida se queimava o incenso e a mirra de que fala a Escritura; quando sem dúvida nela ecoava a voz dos cantores e das cantoras, o som do órgão, dos tímpanos e de outros instrumentos. Eu pergunto se ele teria prazer com essa vista, ou se não era como nas cerimonias da idolatria, de que a Escritura diz: Elas são abominação. Mas eu penso, Mr. Lovel, que se as preces de dois pobres pecadores, como o senhor e como eu, podem obter a graça perante...
- Chiu! - sussurrou Lovel, pousando vivamente a mão no braço do mendigo - Chiu! Ouvi alguém falar.
- Tenho o ouvido um pouco duro - respondeu Edie, em voz baixa - Mas devemos estar aqui em segurança De onde vem o som?
Lovel apontou a porta da nave situada no lado oeste do edifício. Esta porta, coberta de ornamentos de arquitectura, era encimada por uma janela em ogiva de uma escultura não menos notável, e que recebia nesse momento ondas de luz argêntea.
- Aliás, não pode ser nenhum dos meus homens disse Edie no mesmo tom de precaução - Não há senão duas pessoas que conhecem este lugar, e elas encontram-se a mais de uma milha daqui, se acaso não acabaram já a sua triste peregrinação. Eu nunca acreditaria que pudessem ser os oficiais a esta hora da noite, e não creio nos contos de fantasmas que narram as pobres mulheres, embora isto aqui seja um lugar apropriado. Mas, quer eles venham deste mundo ou do outro, ei-los! São dois homens com uma lanterna.
Efectivamente, enquanto o mendigo falava, a sombra de dois vultos humanos desenhou-se à entrada da nave, da qual abriram a porta que dava para o prado, iluminada em cheio pela lua. E a pequena lanterna, que um deles trazia, lançava uma claridade tão fraca junto dos intensos raios daquele astro, como a estrela da tarde, quando ela se mostra entre os derradeiros palores do dia. A primeira ideia e a mais natural era que, em despeito das afirmações de Edie, as pessoas que se aproximassem das ruínas a uma hora tão extraordinária, devessem ser oficiais de justiça em perseguição de Lovel. No entanto, nada na atitude delas justificava essa opinião. Um sinal do velho pedinte e umas palavras pronunciadas ao ouvido advertiram então o jovem de que o melhor partido que tinha a tomar, era ficar quieto e vigiar-lhes os movimentos do lugar onde se ocultavam. Se sobreviesse algum incidente que tornasse necessária a sua retirada, tinham atrás deles a pequena escada secreta que os conduziria à caverna, pela qual podiam fugir para os bosques, muito tempo antes de correrem o- risco de serem perseguidos de perto. Mantiveram-se, pois, tão quietos quanto possível, observando com ávida curiosidade todos os movimentos daqueles passeantes nocturnos.
Depois de terem conversado uns momentos -em voz baixa, os dois vultos avançaram até o meio da nave, e uma voz, que Lovel reconheceu logo pelo som e pela pronúncia como a de Dousterswivel, disse, num tom um pouco mais alto, embora receoso ainda:
- Em verdade, meu bom senhorr, não pode haver horra e ocasião mais propícia para este grande desígnio. Já vai ver que Mr. Oldenpuck disparata, e não conhece do assunto mais do que uma crriança. Palavra, ele esperrava tornar-se tão rico como um judeu pela míserra quantia de cem libras esterlinas, com as quais eu me preocupo tanto, sob minha palavrra de homem honrrado, como com cem míserros dinheirros. Mas é a si, meu muito generroso e respeitável patrrão, que eu querro mostrar todos os segredos que a arte pode desenvolver, sim, mesmo o segredo do grande Pymander.
- O outro - disse Edie, baixinho - não pode ser senão sir Arthur Wardour; não conheço ninguém senão ele que possa vir aqui a esta hora com este velhaco do alemão. Dir-se-ia que o embruxou; verdadeiramente, fá-lo-ia tomar giz por queijo... Vejamos o que eles vão fazer.
Esta interrupção fez perder a Lovel a resposta de sir Arthur, tanto mais que este falava em voz baixa; não entendeu senão estas duas palavras em que o baronnet se apoiou: "muita despesa"; ao que Dousterswivel respondeu prontamente:
- Despesa... certamente... isso requer grandes despesas... o senhor não pode esperar colher antes de ter semeado... a semente é a despesa... As riquezas e os metais que as grandes minas oferecem, e também as grandes e pesadas caixas repletas de prataria, são a colheita, palavrra de honrra... Ora, os dez guinéus que o senhor semeou esta noite, sir Arthur, são uma pequena pitada de semente, pouco mais ou menos, como uma pitada de rapé; e se o senhor não colher já uma abundante searra, isto é, abundante relativamente à semente, pois, como sabe tudo deve ser em proporção, Herman Dousterswivel nunca poderá chamar-se un homem honrrado. O senhor vê agorra, meu bom patrrão este pequeno quadrante de prata... O senhor sabe que a Lua percorre todo o zodíaco, e no espaço de vinte e quatro dias... não há crriança que não saiba isto; pois bem, eu pego neste quadrante de prrata quando ela está na sua décima quinta estação e gravo de um lado as palavras schedharschemoth schartachan; é o emblema da inteligência da Lua... depois traço a sua figura sob a forma de uma serpente voadora com uma cabeça de peru; bem... depois, do outro lado faço uma mesa da lua, que é um quadrado de nove que se multiplica por oitenta números de cada lado, e nove em diâmetro; ora, isto servir-me-á em cada mudança de quarto de lua, a fim de poder encontrar o produto da despesa que farei em fumigação, e que deve ser o que nove é em nove multiplicado por ele próprio... Mas esta noite talvez não encontre mais de duas ou três vezes nove, porque há nos astros uma influência contrárria.
- Mas, Dousterswivel - disse o ingênuo baronnet isso não se parece com a magia? Eu sou um servo fiel, embora indigno, da igreja episcopal, e não quero relacionar-me com o espírito imundo.
- Orra, orra, não há a menorr magia nisto; tudo se baseia na influência planetárria, na simpatia e na força dos números... Eu lho demonstrarrei... Não digo, porém, que as fumigações não evoquem um espírrito, mas se o senhor tiver medo, ele ficarrá invisível.
- Não tenho nenhuma vontade de o ver - disse o baronnet, cuja pronúncia acusava uma certa tremura que parecia anunciar que a sua coragem sofrera um acesso de febre.
- Tenho muita pena - disse Dousterswivel - porque gostaria de lhe mostrar o espírito que se assemelha a um cão ferroz, para guarda deste tesourro. Mas eu conheço maneira de o demosticar. Não tem empenho em vê-lo?
- Absolutamente nenhum - disse o baronnet, afectando um ar de indiferença - Aliás, julgo que não temos tempo a perder.
- Desculpe, meu patrrão, ainda não é meia-noite, e meia-noite em ponto é a nossa horra planetárria. Eu poderia, pois, mostrrar-lhe muito bem o espírrito, entretanto, só para o distrrair. Olhe, eu traçava um pentágono no interrior de um círculo, o que é muito fácil, e aí nós estaríamos como num castelo forte, e o senhor empunharria a espada, enquanto eu recitasse as palavrras necessárrias. Então, o senhor verria a parrede sólida abrrir-se de repente como a porta de uma cidade e... depois vejamos. Ah, sim! O senhor verria primeiro um veado perseguido por trrês cães de caça prretos que o abaterriam como se ele fosse a caça do grrande eleitor... e depois um patife de um negrinho surgirria e arrebatava-lhes o viado e... pf... tudo se sumirria... Depois, o senhor ouvirria trompas de caça soar de maneira a fazer ecoar as ruínas... Palavra que eles tocarriam árrias de caça tão belas como as de Fischer no seu oboé. Em seguida, virria um arauto com sua trompa; depois surgirria o grrande Peolphan, chamado o grande caçador do Norte, montado no cavalo prreto. Mas o senhor não se preocupa em ver tudo isso.
- Bem vê que eu não tenho medo - respondeu o baronnet - se... isto é... não podem suceder grandes desgraças em semelhantes ocasiões?
- Ora, desgraças, nenhumas. Por vezes, porém, se o círculo não estiver completamente justo, ou se aquele que o olha for um poltrrão que se deixa aterrorizar e não tiver a espada firme e dirreita diante dele, então o grrande caçador aprroveita para o atrrair fora do círculo e estrangulá-lo. Isso já se viu algumas vezes.
- Bem, Dousterswivel, com toda a espécie de confiança na sua habilidade e na sua coragem, deixaremos esta noite de lado a aparição, e ocupar-nos-emos do assunto que aqui nos trouxe.
- De todo o meu corração, isso para mim é absolutamente a mesma coisa; eis chegada a horra, segurre a espada enquanto eu acendo um bocado de madeirra.
Douterswivel lançou em seguida fogo a bocadinhos de madeira preparados com uma substância betuminosa que os fez arder muito depressa, e quando a chama atingiu o seu maior brilho, cobrindo as ruínas com a sua claridade fugaz, o alemão lançou-lhe um punhado de perfumes que espalharam um aroma forte e penetrante. O exorcista e o seu discípulo foram ao ponto de tossirem e espirrarem violentamente, e como o vapor se elevou em volta das colunas do edifício e penetrou através das aberturas, produziu o mesmo efeito em Lovel e no mendigo.
- Isto é o eco? - perguntou o baronnet, admirado do espirro que acabava de soar por cima dele; e aproximando-se do alemão -Ou será o espírito de que falou a troçar dos nossos esforços para descobrir os seus tesouros ocultos?
- Não, não - balbuciou o outro, que começava a partilhar dos terrores do seu discípulo.
Nesta altura, uma violenta explosão de espirro que o mendigo não conseguiu reter, e que de forma alguma podia passar pelo som atenuado de um eco, acompanhado de um ruído abafado semelhante a tosse longamente contida, veio consternar os dois pesquisadores de tesouros.
- O Senhor tenha piedade de nós! - pronunciou o baronnet.
- Alie guten Geistern loben den Herrn(1)! - exclamou
(1) Todos os bons espíritos amem o Senhor. - N. do T.
o químico, aterrado - Começo a pensar - ajuntou ele - que isto se arria melhor em pleno dia... e que, por agorra, ser mais segurro retirrar.
- Impostor miserável! - bradou o baronnet, em quem estas palavras despertaram de repente uma suspeita, que, ligando-se ao sentimento de desespero que lhe causava a perspectiva da sua ruína próxima, se sobrepôs a todo o seu terror - Vil charlatão, são ainda as tuas habilidades para te eximires à execução das tuas promessas, como já tem acontecido muitas vezes; mas, por Deus, esta noite saberei a quem me confiei quando me deixava conduzir cegamente por ti à minha ruína. Continua, quero eu; demónio ou mágico, hás-de mostrar-me esse tesouro, ou tomar-teei por um velhaco e um impostor, e, pela minha fé de homem perdido e reduzido ao desespero, enviar-te-ei para o lugar onde encontrarás bastantes espíritos.
O pesquisador de tesouros, tremendo do duplo terror que lhe causavam os espíritos sobrenaturais de que se julgava rodeado e do furor de um homem em desespero, à mercê do qual a sua vida se encontrava nesse momento, não pôde senão balbuciar:
- Meu bom patrrão, isso não é a maneirra... considerre, meu muito estimável senhor, que os espírritos...
Nesta altura, Edie, que começava a divertir-se com a cena, soltou um gemido extraordinário, espécie de lamento prolongado, de tom arrastado e queixoso com o qual geralmente suplicava a caridade. Dousterswivel caiu de joelhos.
- Meu carro Mr. Arthur, partamos, ou deixe-me partir.
- Não, vil intrujão - disse o cavaleiro, desembainhando a espada que trouxera para efeitos do exorcismo - essa nova habilidade não resultará. Há muito tempo que Monkbarns me advertira de que eras um intrujão miserável. Quero ver esse tesouro antes de deixar este lugar, ou, pelo Céu, confessas que és umimpostor; de contrário, atravesso-te o corpo com esta espada, mesmo que as sombras de todos os mortos nos venham cercar.
- Por amor de Deus, tenha paciência, meu estimável patrrão, e o senhor terá o tesourro em questão. Mas não fale assim de espírritos, para não os irritar.
Edie Ochiltree já se preparava para fazer ouvir outro gemido, mas foi impedido por Lovel, que começava a tomar um vivo interesse por aquela cena, ao notar o ar resoluto e quase desesperado de sir Arthur. Dousterawivel, que tinha ao mesmo tempo diante dos olhos o medo do espírito maligno e o da violência de sir Arthur, desempenhou muito mal o seu papel de mágico, não ousando tomar o grau de segurança próprio para ludibriar o baronnet, com receio de ofender o invisível autor dos seus alarmes. No entanto, depois de ter rolado os olhos e murmurado umas fórmulas de exorcismo em alemão, acompanhadas de gestos e contorsões que eram mais o efeito do terror de que estava possuído que o resultado de uma fraude premeditada, avançou finalmente para um canto do edifício, onde uma pedra lisa pousada no chão representava, esculpida em relevo, a efígie de um guerreiro armado numa posição inclinada.
- É aqui, bom patrrão - balbuciou ele - Deus tenha piedade de nós todos!
Sir Arthur, que, depois de ter dominado o primeiro movimento dos seus receios supersticiosos, parecia reunir então toda a firmeza de que sua alma era capaz para levar até ao fim aquela aventura, prestou auxílio ao químico para remover a pedra por meio de uma alavanca de que o alemão se munira, e com a qual, reunindo as suas forças, realizaram a custo essa operação. Nenhuma luz sobrenatural jorrou de baixo para indicar a existência do tesouro subterrâneo, nenhuma aparição houve de espíritos terrestres ou infernais. Mas, depois de Dousterswivel ter dado, a tremer muito, algumas enxadadas e, com igual precipitação, levantado duas ou três pás de terra (porque tinham trazido com eles os instrumentos necessários), ouviu-se soar alguma coisa que parecia o som de um objecto de metal, e Dousterswivel, apoderando-se à pressa do que o produzira, e que sua pá fizera cair com a terra, exclamou:
- Palavra de honra, meu patrrão, eis tudo... sim, realmente tudo... quero dizer tudo o que podemos fazer esta noite...
E relanceou olhares inquietos e receosos, como que procurando de que canto da igreja iria surgir o vingador da sua impostura.
- Vejamos - disse sir Arthur, e repetiu num tom ainda mais severo - Quero desta vez julgar por meus próprios olhos.
Então, aproximou da luz da lanterna o objecto encontrado. Era uma pequena caixa ou cofre (porque Lovel estava muito afastado para lhe distinguir a forma) mas que, pelo que pôde concluir pela exclamação do baronnet, estava cheia de peças de metal.
- Até que enfim - disse o baronnet - eis um acontecimento feliz; e se ele for presságio de outro na proporção de um adiantamento mais considerável, esse adiantamento realizar-se-á. Aquelas últimas seiscentas libras, juntas com outras reclamações prementes, ter-me-iam levado infalivelmente à ruína; mas se o senhor julga que podemos triunfar repetindo esta experiência, por exemplo, na próxima mudança de lua, arriscarei os adiantamentos necessários, não importando como poderei obtê-los.
- Oh, meu bom patrrão, não me fale agora disso!
- suplicou Dousterswivel - Ajude-me somente a repor as pedras, e retomemos o nosso caminho.
Efectivamente, logo que as pedras foram repostas, ele arrastou sir Arthur, que se abandonou de novo ao seu guia, para fora de um local onde a má consciência deste último e os seus terrores supersticiosos pressentiam um espírito ou um demónio oculto atrás de cada coluna, pronto a castigar a sua impostura.
- Alguma vez se viu coisa semelhante? - disse Edie, depois de eles terem desaparecido como sombras pela porta por onde tinham entrado - Alguma pessoa viva viu coisa parecida?... Mas que podemos nós fazer por este pobre diabo de cavaleiro baronnet?... Irra, que ele mostrou muito mais coragem do que eu nunca lhe suporia; acreditei verdadeiramente que ele ia trespassar aquele miserável com a sua espada... Sir Arthur não teve sequer metade da temeridade, naquela noite, no Avental de Bessy; mas aqui o sangue subiu-lhe à cabeça, e mostrou-se muito diferente. Já vi muitos homens capazes de matar outros quando estavam encolerizados, e que teriam feito uma triste figura na ponta de Crummie nesse dia... Mas que há a fazer?
- Creio - disse Lovel - que o patife não tenha reconquistado inteiramente a sua confiança com esta descoberta, que sem dúvida estava preparada de antemão.
- Quê? A prata... sim, sim; lembre-se disto: ninguém sabe melhor encontrar do que aquele que esconde. Ele não quer senão apanhar-lhe o último guinéu, e depois foge para o seu país, patife como ele é!... Gostaria de me ter colocado atrás dele e de lhe dar uma cacetada com o meu pau ferrado; tomá-la-ia por uma bênção de algum dos velhos que aí estão sepultados... Mas vale mais ser prudente; a manha aqui vale mais do que a força; hei-de pagar-Lhe isto qualquer dia.
- Se o senhor informar Mr. Oldbuck - disse Lovel.
- Oh, não sei! Monkbarns e sir Arthur ora são amigos, ora não o são... Há momentos em que Monkbarns tem influência sobre sir Arthur e outras em que sir Arthur não se preocupa mais com ele do que comigo. Monkkbarns, em certos assuntos, nem sempre é muito prudente. Dar-nos-á um óbolo por uma medalha romana e tomará um fosso por um acampamento, se alguém se der ao trabalho de lho fazer acreditar. Eu fi-lo engolir mais de uma história, eu, que Deus me perdoe... Mas tudo isto não impede que tenha muito pouca caridade pelos outros e que se mostre impiedoso pelas suas fraquezas, como se não tivesse as suas. Escutá-lo-á todo um dia, se o senhor quiser contar-lhe histórias sobre Wallace, Henrique o cego e Davie Lindsay; mas não se lhe deve falar de fadas, de espectros, de espíritos ou de aparições semelhantes. Esteve quase a atirar o velho Caxon pela janela, e teria também deitado fora a sua bela peruca, só por lhe ter dito que vira um fantasma em Humlock Knowe. Ora, se ele soubesse deste caso, mortificaria o orgulho do baronnet, e resultaria mais mal do que bem; isso já sucedeu duas ou três vezes a propósito daquelas obras das minas, e dir-se-ia que à medida que Monkbarns advertia sir Arthur, este tinha prazer em afundar-se cada vez mais.
- Então - disse Lovel - que pensa se informasse Miss Wardour desta circunstância?
- Oh, pobre criança! Como poderia ela impedir o pai de fazer a sua vontade? E, aliás, para que serviria isso? Há um processo por causa dessas seiscentas libras esterlinas, e um procurador de Edimburgo persegue sir Arthur com todos os rigores da lei, e mete-o entre a espada e a parede para o fazer pagar, de tal maneira que, se ele não puder, terá de ir para a prisão ou fugir do país. É um homem em desespero e que se agarra à derradeira probabilidade que julga ter de escapar à ruína total. Assim, para que atormentar a pobre criança com uma desgraça sem remédio? E, aliás, para lhe dizer a verdade, não me convém divulgar o segredo deste lugar. É um esconderijo bastante cômodo, como o senhor vê, e apesar de eu não estar no caso de precisar dele agora, e espere, pelo poder da graça, nunca fazer alguma coisa que mo possa tornar necessário, no entanto, não sabemos a que tentações podemos estar expostos; e, em suma, não poderia suportar a ideia de que outra pessoa, a não ser eu, conhecesse este lugar. É costume dizer-se: guarda uma coisa durante sete anos e encontrarás meio de te servires dela; e poderia suceder que eu precisasse da caverna, se não para mim: talvez para outro.
Este argumento, no qual o velho Edie Ochiltree, em despeito das suas máximas divinas e morais, parecia, talvez por antigo hábito, pessoalmente interessado, não podia ser convenientemente combatido por Lovel, no momento em que ele próprio colhia as vantagens de que o ancião parecia tão cioso.
A cena que acabava de ver-se prestara um serviço a Lovel, distraindo o seu espírito do infeliz acontecimento da tarde, e reanimando a energia que a primeira sensação da sua desgraça, por assim dizer, paralisara. Reflectiu que uma ferida podia ser perigosa sem ser necessariamente mortal; que mesmo nesse aspecto ele ainda estava na incerteza, pois fora arrastado para fora do terreno antes de o cirurgião exprimir a sua opinião sobre o estado do capitão Mac Intyre; e admitindo que as coisas degenerassem no pior, pensou que havia no mundo deveres a cumprir que, se não pudessem devolver-lhe a paz da alma e o primeiro sentimento da sua inocência, fá-lo-iam pelo menos suportar a vida e consagrá-la de futuro activamente a obras inspiradas pelo amor da humanidade.
Tais eram os pensamentos de Lovel quando, segundo o cálculo de Edie, que, por qualquer processo seu, como por exemplo a observação dos corpos celestes, sabia passar sem relógio, soou a hora de deixar o seu asilo secreto e dirigir-se à costa marítima para aí esperar o barco que o tenente Taffril devia lá mandar, segundo o combinado.
Retiraram-se pela mesma passagem que os conduzira ao banco secreto do abade, e quando saíram da gruta, os pássaros que começavam a pipilar, e mesmo a cantar, anunciaram-lhes a aproximação do dia. Disso se convenceram absolutamente, quando, ao saírem do souto, puderam descobrir o horizonte e o viram cheio de leves nuvens douradas que se elevavam acima do mar. Quando se diz que a manhã é propícia às musas, é sem dúvida por causa do efeito que ela produz sobre a imaginação e as faculdades do homem. Mesmo para aquele que, como Lovel, passara uma noite em branco e cheia de inquietações, a brisa do crepúsculo refresca o espírito e o corpo e devolve-lhe a vivacidade e a força. Foi, pois, com um renovamento de saúde e de vigor que Lovel, guiado pelo fiel mendigo, pisou o orvalho ao atravessar as dunas que separavam do mar a solidão de Santa Ruth, nome que se dava aos bosques que circundavam as ruínas.
O primeiro raio de sol nascente, no momento em que o seu disco rebrilhante começou a sair do seio do Oceano, veio incidir sobre o pequeno brigue que estava ancorado na baía. A chalupa já esperava perto da margem, e o próprio Taffril, envolto na sua capa de marinheiro, achava-se sentado à popa. Saltou em terra quando avistou o mendigo e Lovel e, apertando cordialmente a mão deste último, exortou-o a não se deixar abater. O ferimento de Mac Intyre, disse ele, era bastante grave, mas não desesperado. O tenente tivera a atenção de mandar transportar a bagagem de Lovel para bordo do brigue, e ajuntou que, se Lovel quisesse ficar no navio, ele não duvidava de que a única consequência desagradável desse caso seria a de ver-se condenado a um curto cruzeiro. Quanto a ele, era suficientemente livre no seu tempo e nos seus movimentos, exceptuando a obrigação necessária de ficar naquela estação.
- Falaremos dos nossos movimentos ulteriores disse Lovel - quando estivermos a bordo do seu navio.
Depois, volvendo-se para Edie, tentou meter-lhe dinheiro na mão.
- Creio - disse Edie, devolvendo-lho - que esta gente enlouqueceu ou fez voto de arruinar a minha profissão, como se diz que demasiada água afoga o moleiro. Já me ofereceram mais ouro, há duas ou três semanas, do que eu vi em toda a minha vida. Guarde o seu dinheiro, meu rapaz; o senhor terá necessidade dele, garanto-lhe, quanto a mim não saberia o que fazer-lhe. O meu vestuário não é grande coisa, e recebo todos os anos um roupão azul, novo, com tantos xelins quantos anos conta o rei (Deus o proteja). O senhor e eu, como sabe, capitão Taffril, servimos o mesmo amo. Eis-me, pois, provido de vestuário; e quanto à comida e à bebida, obtenho-a, pedindo-a nas minhas digressões, ou sucede-me por vezes passar um dia sem isso; porque eu estabeleci a regra de nunca pagar uma refeição a mim próprio. De maneira que todo o dinheiro de que necessito é para comprar rapé e por vezes um copo de aguardente, num dia frio, porque, para mendigo, não sou grande bebedor. Retome, pois, o seu ouro e dê-me somente um belo xelim bem brilhante.
Como não havia nem eloquência nem preces que pudessem demover Edie destas excentricidades, que ele considerava como que inerentes à honra da sua profissão, e como neste assunto era inabalável como uma rocha, Lovel viu-se obrigado a retomar o dinheiro que lhe destinava e, despedindo-se amistosamente do mendigo, apertando-lhe a mão com cordialidade, assegurou-lhe que estava sinceramente reconhecido pelos serviços essenciais que recebera dele e recomendava-lhe ao mesmo tempo segredo sobre as circunstâncias de que foram testemunhas durante a noite.
- Não tenha receio - disse Edie - eu nunca conto história alguma dessa caverna, embora lá tenha visto coisas curiosas na minha vida.
A chalupa afastou-se. O velho ficou a contemplá-la enquanto, com a ajuda dos vigorosos esforços de seis remadores, ela se aproximava rapidamente do brigue, e Lovel viu-o agitar ainda uma vez o seu boné azul em sinal de adeus, antes de mudar de atitude, após o que começou a andar lentamente ao longo da praia, retomando o seu trajecto quotidiano, segundo o hábito da sua vida errante.
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