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Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_ARTISTA_DA_MORTE.webp
PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
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PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_ARTISTA_DA_MORTE.webp
PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
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PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_ARTISTA_DA_MORTE.webp
PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
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PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_ARTISTA_DA_MORTE.webp
PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
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PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_ARTISTA_DA_MORTE.webp
PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.
CONTINUA
Gabriel Allon foi em tempos um importante agente dos serviços secretos israelitas, mas agora só pensa em fugir do passado para viver uma vida tranquila como restaurador de arte. É no entanto chamado de volta às perigosas missões.
A agente com quem terá de trabalhar esconde-se por detrás da sua própria máscara de sedutora modelo. O alvo de ambos: um astuto terrorista numa última onda de matança, um palestiniano fanático de nome Tariq, que desempenhou um papel negro no passado de Gabriel. Aquilo que começa por ser uma caça ao homem torna-se num duelo que atravessa o globo e é alimentado pela intriga política e por intensas paixões pessoais. Num mundo onde o sigilo e a duplicidade são absolutas, a vingança é um luxo sem preço, e a maior das obras de arte.
O Artista da Morte é uma obra de ficção e deve ser interpretada apenas como tal. Todas as personagens e todos os locais e incidentes retratados no romance são produtos da imaginação do autor ou foram utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência. No entanto, de modo a acrescentar verosimilhança à história e às personagens, parti de episódios verdadeiros na guerra secreta entre os serviços de espionagem israelitas e as guerrilhas palestinianas. Por exemplo, o assassinato, em 1988, de Abu Jihad, líder do comando da OLP, aconteceu em grande parte como é retratado, com modificações menores. Francesco Vecellio é um dos velhos mestres pintores italianos -- na realidade, era o irmão menos conhecido de Ticiano -, mas A Adoração dos Pastores retratada no romance é fictícia. Infelizmente, a galeria de arte londrina retratada em O Artista da Morte não existe, nem tampouco o seu dono.
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PRÓLOGO
VIENA: JANEIRO DE 1991
O restaurador ergueu a viseira de ampliação e desligou a série de luzes fluorescentes. Aguardou que os olhos se adaptassem à obscuridade do anoitecer na catedral; a seguir, inspeccionou uma porção minúscula do quadro, logo abaixo da ferida de flecha na perna de São Estêvão. Ao longo dos séculos, a tinta desgastara-se por completo até à tela. O restaurador tinha reparado o dano tão cuidadosamente que, sem o uso de equipamento especializado, era agora quase impossível diferenciar o seu trabalho do original, o que significava que tinha feito o seu trabalho realmente muito bem.
O restaurador agachou-se na plataforma de trabalho, limpou os pincéis e a paleta, e arrumou as tintas num estojo simples e rectangular de madeira encerada. O cair da noite escurecera as sublimes janelas de vitral da catedral; um manto de neve nova abafara o zumbido da hora de ponta do anoitecer vienense. A Stephansdom estava tão silenciosa que o restaurador dificilmente teria ficado surpreendido por ver um sacristão medieval a passar apressadamente pela nave, à luz de uma tocha.
Desceu do andaime alto com a agilidade de um gato doméstico e deixou-se cair silenciosamente no chão de pedra da capela. Um grupo de turistas tinha estado a observá-lo a trabalhar durante vários minutos. Em regra, o restaurador não gostava de espectadores
- na realidade, em certos dias cobria a plataforma com uma lona cinzenta. O grupo deste dia dispersou enquanto ele vestia um casaco assertoado e um gorro de lã azul. Suavemente, disse-lhes buona será, gravando instintivamente cada rosto na cabeça, de forma tão permanente como se estivessem representados a tinta de óleo numa tela.
Uma atraente rapariga alemã tentou encetar conversa com ele. Falou-lhe num italiano fraco. Num alemão rápido e com sotaque de Berlim - a mãe tinha vivido em Charlottenburg antes da guerra -, o restaurador respondeu que estava atrasado para um compromisso e que agora não podia conversar. As raparigas alemãs punham-no pouco à vontade. Por reflexo, os olhos dele percorreram-na de cima abaixo - os seios grandes e redondos, as pernas compridas. Ela confundiu a atenção dele com um namorisco, inclinou a cabeça, sorriu por entre uma madeixa de cabelos cor de linho, sugeriu um café no café do outro lado da praça. O restaurador pediu desculpa e respondeu que tinha de se ir embora.
- Para além do mais - disse, olhando para cima, para a nave sublime - isto é Stephansdom, Fraiilein. Não um bar de engate.
Um momento mais tarde, atravessou a entrada da catedral e disparou pela Stephansplatz. Era de estatura média, bem abaixo do metro e oitenta. O cabelo preto tinha riscas grisalhas nas têmporas. O nariz era bastante comprido e angular, com contornos duros na cana que davam a impressão de ter sido esculpido a partir de madeira. Lábios carnudos, queixo marcado, maçãs do rosto largas e robustas. Havia um traço das estepes russas nos olhos - em forma de amêndoa, de um verde não natural, muito rápidos. A sua visão era perfeita, apesar da natureza exigente do trabalho. Tinha um andar confiante, não um andar com ar de superioridade arrogante nem uma marcha, mas sim um passo largo, determinado, que o parecia impelir sem esforço ao longo da praça coberta de neve. A caixa que continha as tintas e os pincéis estava debaixo do braço esquerdo, apoiada no objecto de metal que utilizava habitualmente na anca esquerda.
Caminhou ao longo da Rotenturmstrasse, uma ampla alameda para peões, com filas de lojas e cafés resplandecentes, parando em frente das montras das lojas, olhando para canetas Mont Blanc e relógios Roex reluzentes, mesmo não tendo nenhuma necessidade dessas coisas. Parou junto a um quiosque de salsichas coberto de
neve, comprou uma kãsewurst e deitou-a para um caixote de lixo a uns cem metros à frente, sem lhe dar uma dentada. Entrou numa cabina telefónica, enfiou um xelim na ranhura das moedas, premiu uma série aleatória de números nas teclas, enquanto inspeccionava a rua e as fachadas de lojas em seu redor durante todo esse tempo. Uma gravação informou-o de que tinha cometido um erro terrível. O restaurador recolocou o auscultador, recolheu o xelim do tabuleiro das moedas e continuou a andar.
O seu destino era um pequeno restaurante italiano no Bairro Judeu. Antes dos nazis, tinha havido duzentos mil judeus a viver em Viena, e os judeus dominavam a vida cultural e comercial da cidade. Agora havia apenas uns quantos milhares, principalmente do Leste, e o chamado Bairro Judeu era uma faixa de lojas de roupa, restaurantes e clubes nocturnos, enclausurada à volta da Judenplatz. Entre os Vienenses, o bairro era conhecido como o Triângulo das Bermudas, o que o restaurador considerava vagamente ofensivo.
A mulher e o filho do restaurador estavam à sua espera - mesa dos fundos, virada para a porta, tal como ele lhes tinha ensinado. O rapaz estava sentado ao lado da mãe, a chupar fios de esparguete cozido com manteiga, por entre lábios rosados. Observou-a por um instante, apreciando-lhe a beleza do mesmo modo como poderia avaliar uma obra de arte: a técnica, a estrutura, a composição. Tinha uma pele pálida de tons de verde-azeitona, olhos castanhos ovais e cabelo castanho comprido, o qual estava puxado para trás e caído sobre a frente de um ombro.
Entrou no restaurante. Beijou o filho no cimo da cabeça, conversou em italiano com o homem por trás do bar e sentou-se. A mulher serviu-lhe vinho.
- Não muito. Tenho de trabalhar hoje à noite.
- A catedral?
Puxou os lábios para baixo e rodou ligeiramente a cabeça.
- Tens as malas feitas? - perguntou.
Ela acenou com a cabeça, depois olhou para a televisão por cima do bar. Sirenes de ataques aéreos em Telavive, outro míssil Scud iraquiano a aproximar-se a toda a velocidade de Israel. Os habitantes de Telavive a colocarem máscaras de gás e a abrigarem-se.
O plano mudou: uma língua de fogo, a descer do céu negro em direcção à cidade. A mulher do restaurador esticou-se sobre a mesa e tocou-lhe na mão.
- Quero ir para casa.
- Está quase - respondeu o restaurador e serviu-se de mais vinho.
Ela tinha deixado o carro na rua mesmo à porta do restaurante, um Mercedes sedan azul-escuro, matrícula de Viena, adquirido em leasing por uma pequena companhia farmacêutica em Berna. Colocou o rapaz no assento de trás, apertou-lhe o cinto de segurança e beijou a mulher.
- Se não estiver lá até às seis horas, alguma coisa correu mal. Lembras-te do que tens de fazer?
- Ir ao aeroporto, dar-lhes a palavra-passe e o número de autorização e cuidarão de nós.
- Seis horas - repetiu ele. - Se não atravessar a porta até às seis horas, vai direita ao aeroporto. Deixa o carro no parque de estacionamento e deita fora as chaves. Estás a perceber-me?
Ela acenou com a cabeça.
- Não te esqueças é de estar em casa até às seis.
O restaurador fechou a porta, acenou brevemente com a mão através do vidro e começou a afastar-se. À sua frente, a pairar sobre os telhados da cidade antiga, estava o topo da catedral, a resplandecer de luz. Mais uma noite, pensou. Depois para casa durante umas poucas semanas, até ao próximo trabalho.
Atrás de si, ouviu a ignição do Mercedes a ligar, a seguir a hesitar, como um disco a ser tocado à velocidade errada. O restaurador parou de andar e voltou-se.
- Não! - gritou, mas ela rodou outra vez a chave.
PARTE I
AQUISIÇÃO
PORT NAVÁS, CORNUALHA: O PRESENTE
Por coincidência, Timothy Peel chegou à aldeia na mesma semana de Julho em que o estranho. Ele e a mãe mudaram-se para um chalé em ruínas na parte de cima do ribeiro, com o último amante dela, um dramaturgo em dificuldades chamado Derek, que bebia demasiado vinho e detestava crianças. O estranho chegou dois dias mais tarde, instalando-se no chalé do velho capataz, logo acima do ribeiro, do lado do viveiro de ostras.
Peel tinha pouco para fazer nesse Verão - quando Derek e a sua mãe não estavam a fazer amor ruidosamente, davam inspiradoras caminhadas forçadas ao longo dos penhascos -, por isso resolveu descobrir quem era exactamente o estranho e o que estava a fazer na Cornualha. Peel decidiu que a melhor maneira de começar era observar. Uma vez que tinha onze anos e era o filho único de pais divorciados, Peel estava bem treinado na arte da observação e investigação humanas. Como qualquer bom artista de vigilância, necessitava de um posto fixo. Decidiu-se pela janela do quarto, que tinha uma vista desimpedida sobre o ribeiro. No barracão que servia de arrecadação encontrou um par de antigos binóculos Zeiss, e na loja da aldeia comprou um pequeno bloco de notas e uma caneta esferográfica para registar o seu relatório de vigilância.
A primeira coisa que Peel notou foi que o estranho gostava de objectos antigos. O carro era um descapotável MG clássico. Peel observava da janela, enquanto o homem se debruçava sobre o motor
durante horas a fio, as costas a espreitarem debaixo do capo. Um homem de grande concentração, concluiu Peel. Um homem de grande resistência mental.
Após um mês, o estranho desapareceu. Passaram uns quantos dias, depois uma semana, depois uma quinzena. Peel receou que o estranho o tivesse descoberto e partido. Aborrecido até à medula sem a rotina da vigilância, Peel arranjou sarilhos. Foi apanhado a arremessar um calhau à janela de uma loja de chás na aldeia. Derek sentenciou-o a uma semana de solitária no quarto.
Mas, naquela noite, Peel arranjou maneira de se escapulir com os binóculos. Caminhou ao longo do cais, passando pelo chalé escurecido do estranho e pelo viveiro de ostras, e parou no ponto em que o ribeiro desaguava no rio Helford, a observar os barcos à vela a chegarem com a maré. Avistou uma chalupa a vir para terra com o motor a trabalhar. Ergueu os binóculos até aos olhos e estudou a figura em frente ao leme.
O estranho tinha regressado a Port Navas.
A chalupa era antiga e bastante necessitada de restauro, e o estranho cuidava dela com a mesma devoção que demonstrara para com o seu volúvel MG. Trabalhava arduamente durante várias horas todos os dias: a lixar, a envernizar, a pintar, a polir latão, a mudar linhas e velas. Quando o tempo estava quente, despia-se até à cintura. Peel não podia deixar de comparar o corpo do estranho com o de Derek. Derek era mole e flácido; o estranho era compacto e muito rígido, o tipo de homem com quem alguém se arrependeria rapidamente de provocar uma luta. Por alturas do final de Agosto, o seu corpo tinha-se tornado praticamente tão escuro quanto o verniz que aplicava meticulosamente ao convés da chalupa.
Desaparecia a bordo do barco durante dias a fio. Peel não tinha maneira de o seguir. Podia apenas imaginar para onde o estranho estaria a ir. Pelo Helford abaixo, em direcção ao mar? À volta da península Lizard, em direcção ao monte de St. Michael ou a Penzance? Talvez à volta do cabo, até St. Ives.
A seguir, Peel lembrou-se de outra possibilidade. A Cornualha era famosa pelos seus piratas; na verdade, a região tinha ainda a sua
quota considerável de contrabandistas. Talvez o estranho estivesse a levar a chalupa para o alto mar para se encontrar com navios de carga e transportar contrabando até terra.
Da vez seguinte em que o estranho regressou de uma das suas viagens, Peel manteve uma vigilância apertada à janela, na esperança de o apanhar em pleno acto de retirada de contrabando do barco. Mas ao saltar da proa da chalupa para o cais, não tinha nada nas mãos a não ser uma mochila de lona e um saco de lixo de plástico.
O estranho velejava por prazer, não lucro.
Peel puxou do bloco de notas e passou uma linha sobre a palavra contrabandista.
A encomenda grande chegou na primeira semana de Setembro, um caixote de madeira lisa, quase tão grande como a porta de um celeiro. Chegou numa carrinha vinda de Londres, acompanhada por um homem agitado, vestido às riscas. Os dias do estranho assumiram imediatamente um ritmo inverso. À noite, o piso de cima do chalé brilhava com luz - não luz normal, observou Peel, mas uma luz branca muito clara. De manhã, quando Peel saía de casa para a escola, via o estranho a descer o ribeiro na chalupa, ou a trabalhar no seu MG, ou a pôr-se a caminho com o seu velho par de botas usadas, para calcorrear pesadamente os carreiros da Passagem de Helford. Peel supunha que ele dormisse durante as tardes, embora parecesse um homem que podia aguentar muito tempo sem descanso.
Peel interrogava-se sobre o que o estranho faria durante toda a noite. Uma noite, já tarde, decidiu ver mais de perto. Vestiu uma camisola e um casaco e escapuliu-se do chalé sem dizer à mãe. Parou no cais, a olhar para cima, em direcção ao chalé do estranho. As janelas estavam abertas; um odor forte pairava no ar, algo entre uma substância anti-séptica e gasolina. Também conseguia ouvir algum tipo de música - canto, talvez ópera.
Estava prestes a aproximar-se mais da casa quando sentiu uma mão pesada no ombro. Voltou-se e viu Derek parado, as mãos nas ancas, olhos enormes de raiva.
- Mas que raio estás a fazer aqui fora? - perguntou Derek.
- A tua mãe estava preocupadíssima!
- Se estava tão preocupada, porque é que te mandou a ti?
- Responde à minha pergunta, rapaz! Porque é que estás aqui fora?
- Não tens nada a ver com isso!
Na escuridão, Peel não viu a pancada a surgir: de mão aberta, contra o lado da cabeça, com força suficiente para lhe pôr o ouvido a zumbir e trazer instantaneamente água aos olhos.
- Não és meu pai! Não tens o direito!
- E tu não és meu filho, mas enquanto viveres na minha casa, fazes o que eu mandar.
Peel tentou fugir, mas Derek agarrou-o com dureza pela gola do casaco e levantou-o do chão.
- Larga-me!
- De uma maneira ou outra, vens para casa.
Derek deu uns passos, depois ficou imóvel. Peel torceu a cabeça para ver o que se passava. Foi então que viu o estranho, parado no meio do caminho, os braços cruzados à frente do peito, cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
- O que é que quer? - ladrou Derek.
- Ouvi barulho. Pensei que pudesse haver algum problema.
Peel apercebeu-se de que esta era a primeira vez que tinha ouvido o estranho falar. O inglês era perfeito, mas havia um traço de sotaque nele. A dicção era como o corpo: dura, compacta, concisa, sem gordura.
- Nenhum problema. Só um rapaz que está num sítio onde não devia estar.
- Talvez o devesse tratar como um rapaz e não um cão.
- E talvez se devesse meter na puta da sua vida.
Derek soltou Peel e olhou fixamente para o homem mais baixo. Por um instante, Peel receou que Derek fosse tentar bater no estranho. Lembrou-se dos músculos tensos e duros do homem, a impressão de que era um homem que sabia lutar. Derek pareceu senti-lo também, pois pegou simplesmente em Peel pelo cotovelo e levou-o de volta ao chalé. Ao longo do percurso, Peel olhou de
relance por cima do ombro e vislumbrou o estranho ainda parado no caminho, braços cruzados como uma sentinela silenciosa. Mas na altura em que Peel regressou ao quarto e espreitou pela janela, o estranho tinha desaparecido. Apenas a luz permanecia, clara e de um branco cortante.
Por alturas do final do Outono, Peel estava frustrado. Não descobrira os factos mais básicos sobre o estranho. Continuava a não ter nome - ah, ouvira um par de nomes possíveis cochichados pela aldeia, ambos vagamente latinos -, nem tinha descoberto a natureza do seu trabalho nocturno. Decidiu que estava na altura de uma operação de choque.
Na manhã seguinte, quando o estranho entrou no seu MG e acelerou em direcção ao centro da aldeia, Peel apressou-se ao longo do cais e enfiou-se no chalé por uma janela aberta para o jardim.
A primeira coisa em que reparou foi que o estranho estava a utilizar a sala de estar como quarto.
Subiu rapidamente as escadas. Um calafrio percorreu-o.
A maioria das paredes fora deitada abaixo para criar um amplo espaço aberto. No centro estava uma comprida mesa branca. Montado num dos lados estava um microscópio com um longo braço retractável. Noutra mesa estavam balões de vidro transparentes com químicos, que Peel calculou serem a fonte do peculiar odor, e duas estranhas viseiras com lupas poderosas acopladas. No cimo de uma bancada alta e ajustável estava uma série de luzes fluorescentes, a fonte do brilho peculiar do chalé.
Havia outros instrumentos que Peel não conseguia identificar, mas estas coisas não eram a fonte do seu alarme. Montados num par de pesados cavaletes de madeira estavam dois quadros. Um era grande, com aspecto antigo, uma cena religiosa qualquer. Havia partes que estavam descamadas. No segundo cavalete estava uma pintura de um homem velho, uma mulher jovem e uma criança. Peel examinou a assinatura no canto inferior direito: Rembrandt.
Voltou-se para se ir embora e deparou-se cara a cara com o estranho.
- O que é que estás a fazer?
- Peço d-d-esculpa - gaguejou Peel. - Pensei que estivesse cá.
- Não, não pensaste. Sabias que estava fora porque me estavas a vigiar da janela do teu quarto quando saí. Na verdade, tens estado a vigiar-me desde o Verão.
- Pensei que pudesse ser um contrabandista.
- O que é que te pode ter dado essa ideia?
- O barco - mentiu Peel.
O estranho sorriu brevemente.
- Agora sabes a verdade.
- Nem por isso - respondeu Peel.
- Sou restaurador de arte. As pinturas são objectos antigos. Às vezes precisam de uns pequenos retoques, como um chalé, por exemplo.
- Ou um barco - respondeu Peel.
- Exacto. Algumas pinturas, como estas, são muito valiosas.
- Mais do que um barco à vela?
- Muito mais. Mas agora que sabes aquilo que está cá dentro, temos um problema.
- Não vou contar a ninguém - suplicou Peel. - A sério.
O estranho passou a mão sobre o cabelo curto e quebradiço dele.
- Dava-me jeito um ajudante - disse suavemente. - Alguém para tomar conta do sítio enquanto estou fora. Gostavas de um trabalho assim?
- Sim.
- vou dar um passeio de barco. Gostavas de me acompanhar?
- Sim.
- Precisas de perguntar aos teus pais?
- Ele não é meu pai, e a minha mãe não se importa.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como é que te chamas?
- Chamo-me Peel. E o senhor?
Mas o estranho limitou-se a olhar ao redor da sala, para se certificar de que Peel não desarrumara nenhuma das suas coisas.
PARIS
A quarentena irrequieta do estranho na Cornualha poderia ter passado imperturbada se Emily Parker não tivesse conhecido um homem chamado René num jantar de embriaguez, que foi organizado por uma estudante jordana chamada Leila Khalifa, numa noite chuvosa em finais de Outubro. Tal como o estranho, Emily Parker vivia num exílio auto-imposto: mudara-se para Paris após a licenciatura, na esperança de que isso a ajudasse a consertar um coração partido. Não possuía nenhum dos atributos físicos dele. O modo de andar era desconjuntado e caótico. As pernas eram demasiado compridas, as ancas demasiado largas, os peitos demasiado pesados, de modo que, quando se mexia, cada parte da anatomia parecia em conflito com o resto. O guarda-roupa variava pouco: calças de ganga desbotadas, rasgadas nos joelhos como exigia a moda, um casaco acolchoado que a fazia parecer-se bastante com uma grande almofada decorativa. E depois havia a cara - a cara de uma camponesa polaca, a mãe sempre lhe dissera: bochechas arredondadas, uma boca grossa, uma queixada pesada, olhos mortiços, demasiado juntos. Tenho pena mas tens a cara do teu pai, dissera a mãe. A cara do teu pai e o coração frágil do teu pai.
Emily conheceu Leila em meados de Outubro no Musée de Montmartre. Ela era estudante na Sorbonne, uma mulher estonteantemente atraente, com lustrosos cabelos pretos e grandes olhos castanhos. Tinha sido criada em Ama, Roma e Londres e falava fluentemente uma meia dúzia de línguas. Era tudo aquilo que Emily
não era: linda, confiante, cosmopolita. Aos poucos, Emily descarregou todos os segredos em Leila: o modo como a mãe a tinha feito sentir-se tão terrivelmente feia; a dor que sentira por ter sido abandonada pelo noivo; o medo enraizado de que ninguém a voltaria a amar mais. Leila prometeu resolver tudo. Leila prometeu apresentar Emily a um homem que a faria esquecer tudo sobre o rapaz por quem se tinha tolamente apaixonado na faculdade.
Aconteceu no jantar de Leila. Ela tinha convidado vinte pessoas para o seu pequeno e apertado apartamento em Montparnasse. Comeram onde quer que arranjassem espaço: no sofá, no chão, na cama. Tudo muito boémio parisiense: galinha assada do restaurante de comida na brasa da esquina, uma pilha de salade verte, queijo e sem dúvida demasiado Bordeaux barato. Havia outros estudantes da Sorbonne: uma artista, uma jovem ensaísta alemã de renome, o filho de um conde italiano, um inglês bonito com cabelo loiro ondulante, chamado Lorde Reggie, e um músico de jazz que tocava guitarra como Al DiMeola. A sala soava como a Torre de Babel. A conversa passava de francês para inglês, a seguir de inglês para italiano, e a seguir de italiano para espanhol. Emily observou Leila a circular pelo apartamento, a beijar bochechas, a acender cigarros. Admirava-se com a facilidade com que Leila fazia amigos e os juntava.
- Ele está aqui, Emily, sabes - o homem por quem te vais apaixonar.
René. René, algures do Sul, de uma aldeia de que Emily nunca ouvira falar, algures nas colinas acima de Nice. René, que tinha um pouco de dinheiro de família e nunca tivera tempo, ou a predisposição, para trabalhar. René, que viajava. René, que lia muitos livros. René, que desprezava a política - A política é um exercício para os fracos de espírito, Emily. A política não tem nada a ver com a vida real. René, que tinha uma cara pela qual se poderia passar num grupo sem nunca a notar, mas que, se se olhasse com atenção, era bastante bem-parecido. René, cujos olhos eram iluminados por uma qualquer fonte de calor secreta, que Emily não conseguia sondar. René, que a levou para a cama na noite do jantar de Leila e a fez sentir coisas que ela nunca tinha julgado possíveis. René, que disse que queria permanecer em Paris durante algumas semanas - Seria
possível dormir em tua casa, Emily? A Leila não tem sítio para mim. Conheces a Leila. Demasiadas roupas, demasiadas coisas. Demasiados homens. René, que a fizera feliz outra vez. René, que iria acabar por quebrar o coração que curara.
Ele já se estava a afastar, conseguia senti-lo ficar ligeiramente mais distante a cada dia. Passava mais tempo sozinho, desaparecendo durante várias horas por dia, reaparecendo sem aviso. Quando lhe perguntava onde tinha estado, as respostas eram vagas. Receou que estivesse a ver outra mulher. Uma rapariga francesa magricela, imaginou. Uma rapariga à qual não fosse preciso ensinar a fazer amor.
Nessa tarde, Emily serpenteou pelas ruas estreitas de Montmartre, até à rue Norvins. Parou em frente ao toldo carmesim de um pequeno restaurante e espreitou pela janela. René estava sentado a uma mesa próxima da porta. Engraçado como insistia sempre em sentar-se próximo da entrada. Estava um homem com ele: cabelos escuros, uns anos mais novo. Quando Emily entrou no restaurante, o homem levantou-se e foi-se embora, rapidamente. Emily tirou o casaco e sentou-se. René serviu-lhe vinho.
- Quem era aquele homem? - perguntou.
- Uma pessoa que eu costumava conhecer. -- Como é que se chama?
- Jean - respondeu. - Queres...
- O teu amigo deixou a mochila.
- É minha - respondeu René, pousando-lhe a mão em cima.
- A sério? Nunca te vi com ela antes.
- Vai por mim, Emily. É minha. Tens fome? E estás a mudar de assunto outra vez.
Ela respondeu:
- Estou esfomeada, por acaso. Estive a tarde inteira a andar ao frio.
- Estiveste, foi? E porquê?
- Apenas para pensar um pouco. Nada de importante.
Ele tirou a mochila da cadeira e pousou-a no chão, junto aos seus pés.
- Em que é que estiveste a pensar?
- A sério, René, não foi nada de importante.
- Costumavas contar-me todos os teus segredos.
- Sim, mas nunca me chegaste a contar os teus.
- Ainda estás chateada por causa deste saco?
- Não estou chateada. Só curiosa, apenas isso.
- Muito bem, se tens mesmo de saber, é uma surpresa.
- Para quem?
- Para ti! Sorriu.
- Ia dar-te mais tarde.
- Compraste-me uma mochila? Mas que atencioso, René. Que romântico.
- A surpresa está dentro da mochila.
- Não gosto de surpresas.
- Porque não?
- Porque a minha experiência tem sido que a surpresa propriamente dita nunca consegue corresponder à expectativa da surpresa. Já fiquei desiludida demasiadas vezes. Não quero ficar desiludida
outra vez.
- Emily, nunca te vou desiludir. Amo-te demasiado.
- Oh, René, gostava que não tivesses dito isso.
- Acontece que é verdade. Vamos comer qualquer coisa, sim? A seguir, damos um passeio.
O embaixador Zev Eliyahu encontrava-se no grande átrio central do Musée d'Orsay, a utilizar todos os seus talentos diplomáticos para esconder o facto de estar aborrecido ao máximo. Elegante, atlético, profundamente bronzeado, apesar do Outono parisiense desolador, crepitava com uma energia vistosa. Funções destas aborreciam-no. Eliyahu não tinha nada contra a arte, simplesmente não tinha tempo para ela. Continuava a ter a ética de trabalho de um kibbutnik, e entre colocações como embaixador fizera milhões em investimento bancário.
Tinha sido convencido a comparecer na recepção nessa noite por uma razão: dar-lhe-ia uma oportunidade para ter um ou dois instantes não oficiais com o ministro dos Negócios Estrangeiros
francês. As relações entre a França e Israel estavam de momento frias. Os Franceses estavam zangados porque um par de funcionários dos serviços secretos israelitas tinha sido apanhado a tentar recrutar um funcionário do Ministério da Defesa. Os Israelitas estavam zangados porque os Franceses tinham decidido recentemente vender caças e tecnologia de reactor nuclear a um dos inimigos árabes de Israel. Mas quando Eliyahu se dirigiu ao ministro dos Negócios Estrangeiros francês para lhe dar uma palavra, o ministro ignorou-o praticamente e a seguir travou propositadamente uma conversa animada com o embaixador egípcio sobre o processo de paz no Médio Oriente.
Eliyahu estava zangado - zangado e aborrecido até à medula. Ia partir para Israel na noite seguinte. Aparentemente, era para uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também planeara passar alguns dias em Eilat, no mar Vermelho. Estava ansioso por fazer a viagem. Tinha saudades de Israel, da sua cacofonia, o atropelo, o perfume a pinho e poeira na estrada para Jerusalém, as chuvas de Inverno sobre a Galileia.
Um empregado com uma túnica branca ofereceu-lhe champanhe. Eliyahu abanou a cabeça.
- Traga-me café, por favor.
Olhou por cima das cabeças da multidão cintilante, à procura da mulher, Hannah, e descobriu-a ao lado do chargé d'affaires da embaixada, Moshe Savir. Savir era um diplomata profissional: altivo, arrogante, o temperamento perfeito para aquele cargo em Paris.
O empregado regressou, trazendo uma bandeja de prata com uma única chávena de café simples.
- Deixe estar - disse Eliyahu e cortou pelo meio da multidão.
Savir perguntou:
- Como correu com o ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Voltou-me as costas.
- Sacana.
O embaixador esticou a mão em direcção à mulher.
- Vamos. Já me chega desta parvoíce.
- Não se esqueça de amanhã de manhã - disse Savir. - Pequeno-almoço com o staff editorial do Lê Monde às oito.
- Preferia que me arrancassem um dente.
- É importante, Zev.
- Não se preocupe. Serei o meu eu encantador de sempre. Savir abanou a cabeça.
- Até depois, então.
A Ponte Alexandre in era o local favorito de Emily em Paris. Adorava ficar parada no centro do arco gracioso, à noite, e contemplar o Sena na direcção de Notre Dame, com a dourada Église du Dome à direita, a flutuar sobre Lês Invalides, e o Grand Palais à esquerda.
René levou Emily até à ponte depois do jantar, para a sua surpresa. Caminharam ao longo do parapeito, passando pelos candeeiros decorados, pelos querubins e pelas ninfas, até chegarem ao centro do arco. René retirou da mochila uma pequena caixa rectangular embrulhada e entregou-lha.
- Para mim?
- Claro que é para ti!
Emily rasgou o papel de embrulho como uma criança e abriu o estojo de couro. Lá dentro estava uma pulseira de pérolas, diamantes e esmeraldas. Devia ter-lhe custado uma pequena fortuna.
- René, meu Deus! É linda!
- Deixa-me ajudar-te a pô-la.
Esticou o braço e puxou a manga do casaco para cima. René enfiou-lhe a pulseira à volta do pulso e prendeu o fecho. Emily levantou-a à luz do candeeiro. A seguir virou-se, encostou as costas ao peito dele e contemplou o rio:
- Quero morrer exactamente assim.
Mas René já não estava a ouvir. A cara estava inexpressiva, olhos castanhos fixados no Musée d'Orsay.
O empregado com a travessa de tandoori de galinha tinha sido incumbido de vigiar o embaixador. Retirou o telemóvel do bolso da túnica e carregou num botão que ligou para um número reservado.
Dois toques, uma voz de homem, o zumbido do trânsito parisiense em fundo.
- Otti.
- Está a ir-se embora. dique.
O embaixador Eliyahu pegou em Hannah pela mão e conduziu-a através da multidão, parando de quando em vez, para desejar boa noite a um dos outros convidados. À entrada do museu, um par de guarda-costas juntou-se a eles. Tinham aspecto de meros rapazes, mas Eliyahu sentia-se reconfortado pelo facto de serem assassinos treinados que fariam qualquer coisa para proteger a sua vida.
Avançaram para o ar frio da noite. A limusina estava à espera, o motor a trabalhar. Um guarda-costas sentou-se à frente com o motorista, o segundo acompanhou o embaixador e a mulher atrás. O carro arrancou, virou na rue de Bellechasse, e a seguir acelerou ao longo da margem do Sena.
Eliyahu recostou-se e fechou os olhos.
- Acorda-me quando chegarmos a casa, Hannah.
- Quem era, René?
- Ninguém. Número errado.
Emily voltou a fechar os olhos, mas um instante mais tarde veio outro som: dois carros a chocarem na ponte. Uma carrinha pequena tinha batido por trás num Peugeot sedan, o asfalto coberto de vidros estilhaçados, o trânsito parado. Os condutores saltaram para fora dos carros e começaram a gritar um com o outro num francês rápido. Emily conseguiu perceber que não eram franceses - árabes, talvez do Norte de África. René pegou subitamente na mochila e caminhou para o meio da estrada, passando pelos carros parados.
- René! O que é que estás a fazer?
Mas ele agiu como se não a tivesse ouvido. Continuou a andar, não em direcção aos carros danificados, mas a uma limusina preta, comprida, presa no trânsito. A meio do caminho, abriu o fecho do saco e tirou algo para fora: uma pequena metralhadora.
Emily não podia acreditar no que estava a ver. René, o seu amante, o homem que se tinha introduzido na sua vida e roubado o seu coração, a caminhar ao longo da Ponte Alexandre com uma metralhadora na mão. A seguir, as peças começaram a encaixar-se. A arreliadora suspeita de que René lhe estava a esconder algo. As ausências longas e inexplicadas. O estranho de cabelos escuros no restaurante naquela tarde. Leila?
O resto viu-o como meias imagens em câmara lenta, como se se estivesse a desenrolar debaixo de águas turvas. René a correr pela ponte. René a atirar a mochila para baixo da limusina. Um clarão de luz ofuscante, uma rajada de ar ferozmente quente. Tiroteio, gritos. Alguém numa mota. Máscara de esqui preta, dois poços de negro a olhar fixa e friamente pelos buracos para os olhos, lábios húmidos a reluzir por detrás da fenda para a boca. Uma mão enluvada a acelerar nervosamente. Mas foram os olhos que capturaram a atenção de Emily. Eram os olhos mais lindos que alguma vez vira.
Finalmente, ao longe, conseguia ouvir a melodia de duas notas de uma sirene da polícia parisiense. Afastou o olhar do motociclista e viu René a avançar devagar na sua direcção, através da carnificina. Tirou da arma o carregador utilizado, inseriu outro com indiferença, puxou a culatra.
Emily recuou até ficar encostada ao parapeito. Virou-se e olhou para baixo, para o rio negro a deslizar vagarosamente por baixo de si.
- És um monstro! - gritou em inglês, pois, com o pânico, o francês abandonara-a. - És um cabrão de um monstro! Quem és tu, porra?
- Não tentes fugir de mim - respondeu na mesma língua. Só vai piorar as coisas.
A seguir ergueu a arma e disparou-lhe vários tiros no coração. A força das balas atirou-a por cima do parapeito. Sentiu-se a cair em direcção ao rio. As mãos esticaram-se e viu a pulseira no pulso. A pulseira que René, o amante, lhe tinha dado ainda há uns instantes. Uma pulseira tão linda. Um desperdício tão grande.
Chocou com o rio e afundou-se. Abriu a boca e os pulmões encheram-se de água glacial. Conseguia sentir o sabor do próprio sangue. Viu um clarão de um branco cintilante, ouviu a mãe a chamá-la. A seguir só havia escuridão. Uma vasta e silenciosa escuridão. E o frio.
TIBERÍADES, ISRAEL
Apesar dos acontecimentos em Paris, o estranho poderia ter conseguido permanecer em reclusão não fora a ressurreição do lendário mestre-espião Ari Shamron. Não foi necessário acordar Shamron nessa noite, pois há muito que tinha perdido a dádiva do sono. Na verdade, ficava tão agitado à noite que Rami, o jovem chefe do seu serviço de segurança, o baptizara de Fantasma de Tiberíades. De início, Shamron suspeitou que fosse da idade. Tinha feito sessenta e cinco anos recentemente e pela primeira vez contemplara a possibilidade de que um dia poderia, de facto, morrer. Durante um exame físico anual realizado de má vontade, o médico tivera a audácia de lhe sugerir - E isto é apenas uma sugestão, Ari, porque Deus sabe que nunca tentaria dar-lhe realmente uma ordem - que Shamron reduzisse o influxo diário de cafeína e tabaco: doze chávenas de café simples e sessenta cigarros turcos fortes. Shamron achara estas sugestões ligeiramente divertidas.
Fora apenas durante um período incaracterístico de introspecção, motivado pela reforma forçada do serviço, que Shamron havia determinado quais as causas para a sua insónia crónica. Tinha dito tantas mentiras, urdido tantos logros, que, por vezes, já não conseguia distinguir a realidade da ficção, a verdade da falsidade. E depois havia as mortes. Matara com as próprias mãos e tinha ordenado a outros homens, homens mais novos, a matarem por si. Uma vida de traição e violência tinha tido os seus custos. Alguns homens ficam loucos, outros deixam-se consumir. Ari Shamron fora condenado a permanecer para sempre acordado.
Shamron aceitara com desconforto a aflição, da maneira como algumas pessoas se acomodam à loucura ou a uma doença terminal. Tinha-se tornado um vagabundo nocturno, errando pela casa de campo cor de arenito com vista para o mar da Galileia, sentado na varanda quando as noites estavam boas e tranquilas, a olhar fixamente para o lago e para a amplitude, banhada pela luz da Lua, da Galileia Superior. Por vezes, esgueirava-se até ao estúdio e dava largas à grande paixão, consertar rádios antigos - a única actividade que lhe libertava completamente a mente dos pensamentos relacionados com o trabalho.
E, por vezes, vagueava até ao portão de segurança e passava umas quantas horas sentado no barracão com Rami e os outros rapazes, a contar histórias regadas a café e cigarros. Rami preferia a história da captura de Eichmann. De cada vez que um novo rapaz se juntava ao serviço, Rami insistia para que Shamron a contasse de novo, de modo a que o novo rapaz percebesse que lhe fora concedido um grande privilégio: o privilégio de proteger Shamron, o super-homem Sabra, o anjo vingador de Israel.
Rami fizera com que voltasse a contar a história nessa noite. Como de costume, isso tinha desenterrado muitas recordações, algumas não muito agradáveis. Shamron não tinha rádios antigos nos quais se perder e estava demasiado frio e chuvoso para estar sentado lá fora, por isso deitou-se na cama, de olhos bem abertos, a tratar de novas operações, a recordar-se de antigas, a dissecar oponentes à procura de fragilidades, a planear a sua destruição. Por isso, quando o telefone especial na mesa-de-cabeceira emitiu dois toques agudos, Shamron estendeu o braço com o ar aliviado de um velho agradecido pela companhia e encostou lentamente o auscultador ao ouvido.
Rami saiu da casa da guarda e observou o velho a descer pesadamente a entrada. Era careca e compacto, com óculos com aros de aço. A cara era seca e muito enrugada - como o Negev, pensou Rami. Como de costume, vestia calças cor de caqui e um antigo casaco de cabedal de bombardeiro com um rasgão no peito do lado
direito, logo abaixo do sovaco. No interior do serviço, havia duas teorias sobre o rasgão. Alguns acreditavam que o casaco fora furado por uma bala durante um ataque de represália à Jordânia, nos anos cinquenta. Outros defendiam que fora rasgado pelos dedos moribundos de um terrorista que Shamron tinha garroteado num beco, algures no Cairo. Shamron sempre insistira asperamente que a verdade era muito mais prosaica - o casaco tinha-se rasgado no canto da porta de um carro -, mas ninguém dentro do serviço o levava a sério.
Andava como se estivesse a prever um ataque pelas costas, cotovelos para fora, cabeça para baixo. O andar arrastado à Shamron, o andar que dizia: Ponham-se a andar da merda da minha frente ou como-vos os tomates ao pequeno-almoço.
Rami sentiu o pulso a acelerar ao ver o velho. Se Shamron lhe ordenasse para saltar de um penhasco, saltaria. Se o velho lhe ordenasse para parar a meio do salto, arranjaria maneira de o fazer.
À medida que Shamron se aproximava, Rami conseguiu ver-lhe a cara. As rugas em redor da boca estavam mais carregadas. Estava zangado - Rami conseguia vê-lo nos olhos -, mas parecia haver um traço de sorriso nos lábios áridos. Porque raio é que estará a sorrir? Os chefes não são incomodados depois da meia-noite, a não ser que seja urgente ou haja notícias muito más. Então Rami apercebeu-se da razão: o Fantasma de Tiberíades estava simplesmente aliviado por ter sido poupado a mais uma noite de insónias sem inimigos para enfrentar.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o Peugeot blindado de Shamron entrava furtivamente na garagem subterrânea de um triste conjunto de escritórios que se avultava sobre o Boulevard do Rei Saul, na parte norte de Telavive. Entrou num elevador privado e viajou até à sua suíte de escritórios no último andar. A rainha Esther, a sua paciente secretária-chefe, tinha deixado um maço de cigarros novo em cima da secretária, ao lado de um termo de café. Sharon acendeu de imediato um cigarro e sentou-se.
A primeira acção depois de voltar ao serviço tinha sido retirar os pomposos móveis escandinavos do antecessor e doá-los a um
fundo de caridade para emigrantes russos. Agora, o escritório parecia o quartel-general num campo de batalha de um general em guerra. Acentuava a mobilidade e a funcionalidade sobre o estilo e a elegância. Como secretária, Shamron utilizou uma mesa de biblioteca grande e marcada. Ao longo da parede, em frente à janela, estava uma fila de armários de arquivo de bronze duro. Na prateleira por trás da secretária, estava um rádio de ondas curtas com trinta anos, fabricado na Alemanha. Shamron não precisava dos sumários diários do departamento de supervisão de rádios da sede, pois falava fluentemente meia dúzia de línguas e percebia outra meia dúzia. Também era capaz de consertar sozinho o rádio quando este se avariava. Na verdade, era capaz de arranjar quase qualquer coisa electrónica. Uma vez, os funcionários superiores do seu serviço tinham chegado para uma reunião de planeamento semanal e encontrado Shamron a perscrutar as entranhas do leitor de vídeo da rainha Esther.
O único traço de modernidade no escritório era a fila de grandes televisores em frente à secretária. Utilizando os controlos remotos, ligou-os um por um. Tinha perdido a audição num ouvido, por isso aumentou bastante o volume, até soar como se três homens um francês, um inglês e um americano - estivessem a ter uma discussão violenta no escritório.
Lá fora, na sala entre o escritório de Esther e o seu, os funcionários superiores de Shamron tinham-se reunido como acólitos ansiosos, a aguardar uma audiência com o seu mestre. Havia Eli, do Planeamento, com aspecto de galgo, e o talmúdico Mordecai, o director executivo do serviço. Havia Yossi, o génio do Gabinete Europeu, que tinha estudado os Clássicos em Oxford, e Lev, o altamente inflamável chefe das Operações, que preenchia as preciosas horas livres a coleccionar insectos predatórios. Só Lev parecia não ter um medo físico de Shamron. De poucos em poucos minutos, enfiava a cabeça angular pela entrada e gritava:
- Por amor de Deus, Ari! Quando? Ainda esta noite, espero!
Mas Shamron não tinha pressa especial em vê-los, pois estava bastante certo de que sabia mais acerca dos acontecimentos terríveis daquela noite em Paris do que eles alguma vez saberiam.
Durante uma hora, Shamron permaneceu sentado na cadeira, cara fechada, a fumar um cigarro atrás de outro, a ver a CNN Internacional numa televisão, a BBC noutra, a televisão pública francesa na terceira. Não lhe interessava especialmente o que os correspondentes tinham a dizer - não sabiam praticamente nada, nesta altura, e Shamron sabia que lhes podia pôr palavras na boca com um telefonema de cinco minutos. Queria ouvir as testemunhas, as pessoas que tinham visto o assassinato com os próprios olhos. Dir-lhe-iam o que queria saber.
Uma rapariga alemã, entrevistada pela CNN, descreveu o acidente de viação que precedeu o ataque:
- Havia dois veículos, uma espécie de carrinha e um sedan. Talvez fosse um Peugeot, mas não consigo ter a certeza. O trânsito na ponte ficou completamente parado numa questão de segundos.
Shamron utilizou o controlo remoto para tirar o som à CNN e aumentar o volume da BBC. Um taxista da Costa do Marfim descreveu o assassino: cabelo escuro, bem vestido, bem parecido, com estilo. O assassino tinha estado com uma rapariga na ponte quando o acidente ocorrera:
- Uma rapariga loira, um pouco pesada, estrangeira, de certeza que não era francesa.
Mas o taxista não viu mais nada, pois refugiou-se debaixo do guarda-lama quando a bomba explodiu e não voltou a olhar para cima até o tiroteio parar.
Shamron tirou um bloco de notas revestido a cabedal e desgastado do bolso da camisa, pousou-o com cuidado em cima da secretária e abriu-o numa página em branco. Na sua letra pequena e precisa, escreveu uma única palavra.
RAPARIGA.
O olhar de Shamron regressou à televisão. Uma jovem inglesa atraente, chamada Beatrice, estava a relatar o ataque a um correspondente da BBC. Descreveu um acidente de viação, envolvendo uma carrinha e um carro, que levou o trânsito na ponte a parar, prendendo o carro do embaixador. Descreveu como o assassino se
afastou da namorada e sacou de uma arma de dentro do saco. Como a seguir atirou o saco para baixo da limusina e esperou que detonasse, antes de avançar calmamente e matar toda a gente lá dentro.
A seguir, Beatrice descreveu como o assassino caminhou devagar até à rapariga - a rapariga que segundos antes tinha estado a beijar apaixonadamente - e lhe disparou várias balas no peito.
Shamron lambeu a ponta do lápis e por baixo da palavra RAPARIGA escreveu um nome:
TAR1Q.
Shamron pegou no telefone com linha segura e marcou o número de Uzi Navot, o chefe da base de Paris.
- Eles tinham alguém naquela recepção. Alguém que alertou a equipa no exterior de que o embaixador se estava a ir embora. Sabiam o seu percurso. Planearam um acidente para empatar o trânsito e deixar o motorista sem maneira de escapar.
Navot concordou. Navot tinha por hábito concordar com Shamron.
- Há uma grande quantidade de obras de arte muito valiosas naquele edifício - continuou Shamron. - Suspeito que exista um sistema de videovigilância bastante sofisticado, não achas, Uzi?
- Claro, chefe.
- Diz aos nossos amigos no serviço francês que gostaríamos de enviar uma equipa para Paris imediatamente, para supervisionar a investigação e providenciar todo o apoio de que necessitem. E a seguir deita a mão àquelas cassetes de vídeo e envia-mas pela mala-correio.
- Feito.
- E em relação à ponte? Há câmaras de vigilância da polícia a cobrir aquela ponte? com alguma sorte, podemos ter uma gravação do ataque inteiro, e da sua preparação.
- vou investigar.
- Sobrou alguma coisa da limusina?
- Não muito. O depósito de gasolina explodiu e o fogo consumiu praticamente tudo, incluindo os corpos, receio.
- Como é que ele escapou?
- Saltou para cima de uma mota. Desapareceu numa questão de segundos.
- Algum sinal dele?
- Nada, chefe.
- Algumas pistas?
- Se as há, a polícia de Paris não as está a partilhar comigo.
- E em relação aos outros membros da equipa?
- Também desapareceram. Eram bons, chefe. Muito bons.
- Quem é a rapariga morta?
- Uma americana.
Shamron fechou os olhos e praguejou em voz baixa. A última coisa de que precisava agora era do envolvimento dos Americanos.
- Os Americanos já foram avisados?
- Metade do pessoal da embaixada está agora na ponte.
- Esta rapariga tem nome?
- Emily Parker.
- O que é que estava a fazer em Paris?
- Ao que parece, estava a tirar uns meses de férias depois da licenciatura.
- Que maravilha. Onde é que vivia?
- Montmartre. Uma equipa de polícias franceses está a investigar o bairro: a vasculhar, a fazer perguntas, a tentar apanhar tudo o que consigam.
- Descobriram alguma coisa interessante?
- Não ouvi mais nada, chefe.
- Vai até Montmartre de manhã. Dá uma vista de olhos. Faz umas perguntas. Discretamente, Uzi. Talvez alguém no prédio dela ou num café da zona tenha visto o Don Juan.
- Boa ideia, chefe.
- E faz-me outro favor. Leva contigo as fotografias de ficheiro do Tariq.
- Acha que ele esteve por trás disto?
- Prefiro manter as opções abertas nesta altura.
- Mesmo que o tenham visto, aquelas fotografias antigas não vão ser grande ajuda. Mudou de aparência umas cem vezes desde então.
- Faz-me a vontade.
Shamron deu um murro na luz verde a piscar do telefone e cortou a ligação.
Ainda era noite quando a limusina Peugeot de Shamron acelerou ao longo da planície costeira e atravessou as Montanhas Judias, em direcção a Jerusalém. Shamron tirou os óculos e esfregou a pele vermelha debaixo dos olhos. Tinham passado seis meses desde que fora chamado da reforma e recebido uma missão simples: trazer estabilidade a um serviço secreto seriamente prejudicado por uma série de erros operacionais e escândalos pessoais altamente publicitados. A sua tarefa era recuperar o moral. Restaurar o esprit de corps que caracterizara o Departamento nos velhos tempos.
Conseguira estancar a hemorragia - não tinha havido mais humilhações, como a tentativa falhada de assassinar um clérigo muçulmano violento em Ama, que fora orquestrada pelo seu antecessor -, mas também não tinha havido sucessos formidáveis. Shamron sabia melhor do que ninguém que o Departamento não ganhara a reputação temível por jogar pelo seguro. Nos velhos tempos, roubara MiGs, colocara espiões nos palácios dos amigos e inimigos, semeara o terror sobre os que ousavam causar terror no povo de Israel. Shamron não queria que o seu legado fosse um Departamento que já não cometesse erros. Queria deixar um Departamento que se podia estender e atacar à vontade. Um Departamento que pudesse fazer os outros serviços do mundo abanar a cabeça de espanto.
Sabia que não tinha muito tempo. Nem toda a gente no Boulevard do Rei Saul celebrara o seu regresso. Havia quem acreditasse que o tempo de Shamron já passara, que Shamron deveria ter sido deixado em Tiberíades, para lutar com os rádios e a consciência enquanto o testemunho era passado à geração seguinte. Por certo que um homem como Mordecai merecia ser chefe, depois de todos aqueles anos de labuta nas trincheiras das Operações, defenderam
os detractores de Shamron. Eli tinha o potencial para vir a ser um óptimo chefe, diziam. Precisava apenas de um pouco mais de experiência na suíte executiva e estaria preparado para o cargo principal. Até Lev, das Operações, era considerado matéria adequada, embora Lev deixasse, de facto, o temperamento apoderar-se de si, e Lev fizera a sua quota-parte de inimigos ao longo dos anos.
Shamron estava preso a eles. Por ser apenas um chefe temporário, não lhe tinha sido atribuído praticamente nenhum poder para fazer alterações no quadro dos funcionários superiores do Boulevard do Rei Saul. Por consequência, estava rodeado por uma matilha de predadores que atacaria ao primeiro sinal de fraqueza, e o vulcânico Lev era o mais ameaçador de todos, pois tinha-se consagrado a si mesmo como o Brutus pessoal de Shamron.
Shamron pensava: Pobrezinho do Lev. Nãofa ideia com quem se está a meter.
- O Zev Eliyahu era um amigo - disse o primeiro-ministro, enquanto Shamron se sentava. - Quem é que lhe fez isto?
Deitou café na chávena e fê-la deslizar pela secretária, os plácidos olhos castanhos fixados em Shamron. Como de costume, Shamron teve a sensação de que estava a ser contemplado por uma ovelha.
- Não posso dizer com toda a certeza, mas suspeito que possa ter sido o Tariq.
Só Tariq. Sem apelido. Não era necessário nenhum. O seu currículo estava gravado no cérebro de Shamron. Tariq al-Hourani, filho de um ancião de uma aldeia da Galileia Superior, nascido e criado num campo de refugiados à saída de Sídon, no Sul do Líbano, educado em Beirute e na Europa. O irmão mais velho tinha sido membro do Setembro Negro, assassinado por uma unidade especial comandada pelo próprio Shamron. Tariq dedicara a vida a vingar a morte do irmão. Juntou-se à OLP no Líbano, combateu na guerra civil, a seguir aceitou um posto cobiçado na Força 17, a unidade de segurança pessoal e operações secretas de Yasser Arafat. Durante os anos oitenta, treinara extensivamente atrás da Cortina de Ferro
- na Alemanha de Leste, na Roménia e em Moscovo - e fora
transferido da Força 17 para a Jihaz el-Razd, o aparelho de espionagem e segurança da OLP. Acabou por liderar uma unidade especial cuja missão era fazer guerra contra os serviços secretos e o pessoal diplomático de Israel. No início dos anos noventa, separou-se de Arafat, devido à sua decisão de entrar em negociações com Israel, e formou uma pequena e firmemente unida organização terrorista, dedicada a um fim: a destruição do processo de paz de Arafat.
Após ouvir o nome de Tariq, os olhos do primeiro-ministro faiscaram e a seguir regressaram à sua calma avaliação de Shamron.
- O que o leva a pensar que foi o Tariq quem fez isto?
- com base nas descrições preliminares, o ataque teve todas as marcas características de uma das suas operações. Foi meticulosamente planeado e executado.
Shamron acendeu um cigarro e afastou com o braço a nuvem de fumo.
- O assassino era calmo e completamente impiedoso. E havia uma rapariga. Cheira ao Tariq.
- Então está a dizer-me que tem um palpite de que foi o Tariq?
- É mais do que um palpite - respondeu Shamron, insistindo perante o cepticismo do primeiro-ministro. - Recebemos recentemente um relatório que sugeria que a organização do Tariq estava prestes a retomar as suas actividades. Talvez se lembre de que o informei pessoalmente, senhor primeiro-ministro.
O primeiro-ministro concordou com a cabeça.
- Também me lembro de que me desencorajou de dar uma circulação mais alargada ao relatório. O Zev Eliyahu talvez estivesse vivo esta manhã se tivéssemos avisado o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Shamron apagou o cigarro.
- Ofende-me a sugestão de que o Departamento é de algum modo culpado da morte do embaixador. O Zev Eliyahu também era meu amigo. E um colega. Trabalhou no Departamento durante quinze anos, e é por isso que suspeito que o Tariq o tenha escolhido como alvo. E desencorajei-o de dar uma circulação mais alargada
ao relatório por forma a proteger a fonte dessa informação. Por ve2es, isso é necessário quando se trata de informações secretas vitais, senhor primeiro-ministro.
- Não me dê lições, Ari. Consegue provar que foi o Tariq?
- Possivelmente.
- E se conseguir? O que acontece a seguir?
- Se conseguir provar que foi o Tariq, a seguir gostaria da sua autorização para o eliminar.
O primeiro-ministro sorriu.
- Eliminar o Tariq? Terá de o encontrar primeiro. Acha mesmo que o Departamento está preparado para algo assim? Não nos podemos dar ao luxo de uma outra situação como Ama, não agora, não com o processo de paz num estado tão ténue.
- A operação em Ama foi deficientemente planeada e desastrosamente executada, em parte devido à interferência e pressão sem precedentes do homem que estava sentado neste gabinete na altura. Se me der autoridade para ir atrás do Tariq, asseguro-lhe que será um tipo de operação muito diferente, com resultados muito diferentes.
- O que o leva a pensar que pode sequer encontrar o Tariq?
- Porque, agora mais do que nunca, estou em melhor posição para o encontrar.
- Por causa desta sua fonte?
- Sim.
- Fale-me deste contacto.
Shamron sorriu brevemente e limpou a unha do polegar da mão direita.
- Foi um caso que tratei pessoalmente antes de me terem dito que os meus serviços já não eram necessários no Boulevard do Rei Saul; um caso de infiltração a longo prazo, algo que demorou anos a desenrolar-se. Agora, o contacto está envolvido na parte de planeamento e logística da organização do Tariq.
- O contacto sabia de Paris com antecedência?
- Claro que não! Se o contacto me tivesse alertado sobre Paris, teria avisado toda a gente necessária, mesmo que isso implicasse retirar o contacto.
- Então, faça-o - disse o primeiro-ministro. - Elimine o Tariq. Faça-o pagar pelo Eliyahu e todos os outros que matou ao longo dos anos. Derrube-o com vigor e assegure-se de que nunca mais se volta a levantar.
- Está preparado para as repercussões de um assassinato nesta altura?
- Não haverá repercussões se for executado convenientemente.
- A Autoridade Palestiniana e os seus amigos em Washington e na Europa Ocidental não verão com bons olhos um assassinato, mesmo que o alvo seja o Tariq.
- Então certifique-se de que não deixa impressões digitais. Assegure-se de que os seus kidons não são apanhados, como aquele par de amadores desastrados que foi enviado para Ama. Assim que eu assinar as ordens, a operação está nas suas mãos. Livre-se dele de qualquer maneira que achar apropriada, livre-se dele simplesmente. O povo de Israel nunca me permitirá fazer a paz enquanto o Tariq, ou quem quer que seja, andar por aí a matar judeus.
- vou precisar da documentação apropriada para iniciar tudo.
- Tê-la-á até ao fim do dia.
- Obrigado, senhor primeiro-ministro.
- Então quem é que tem em mente para o trabalho?
- Julguei que não tivesse nenhuma intenção de interferir.
- Apenas quero saber a quem é que vai atribuir o caso. Não me parece que isso seja qualificado como interferência.
- Estava a pensar no Allon.
- O Gabriel Allon? Julguei que tivesse abandonado o Departamento depois de Viena.
Shamron encolheu os ombros; tais coisas não importavam quando se tratava de um homem como Gabriel Allon.
- Já há muito tempo que ninguém no Departamento lida com um caso assim. E têm-nos normalmente fodido. Mas há uma outra razão pela qual quero o Allon. O Tariq opera maioritariamente na Europa. O Allon tem muita experiência no Continente. Sabe como fazer as coisas sem provocar alarido.
- Onde está ele agora?
- A viver algures em Inglaterra, da última vez que soube.
O primeiro-ministro sorriu maliciosamente.
- Ser-lhe-á mais fácil encontrar o Tariq do que o Gabriel Allon.-
- vou encontrar o Allon, e o Allon vai encontrar o Tariq. Shamron franziu os lábios, numa expressão fatalista.
- E então estará feito.
SAMOS, GRÉCIA
O ferry vindo da Turquia chegou atrasado doze horas devido a mares agitados nos estreitos de Mycale. Tariq nunca gostara de barcos - detestava a sensação de estar rodeado por água, sem caminho de saída. Estava em pé na proa, gola levantada contra o vento da noite, a observar a aproximação a Samos. À luz da Lua, conseguia ver os picos das duas montanhas distintivas da ilha: o monte Ampelos em primeiro plano e o monte Kerkis à distância.
Nos cinco dias a seguir ao assassinato de Paris, foi atravessando a Europa, em direcção ao sudeste, mudando de identidade e passaporte, alterando subtilmente o seu aspecto. Trocou de automóvel seis vezes. O último, uma carrinha Volvo verde-escura, deixou-o perto do terminal em Kusadasi, no lado turco do estreito. Tinha sido recolhido por um agente da sua organização.
Seduzira três mulheres durante a sua odisseia: uma empregada de mesa em Munique, uma cabeleireira em Bucareste e uma recepcionista de hotel em Sofia. Contou a cada uma delas uma história diferente. Para a rapariga alemã, era um vendedor de tecidos italiano, a caminho de Paris. Para a rapariga romena, era um comerciante egípcio com esperanças de fazer negócio na Ucrânia. Para a recepcionista búlgara, era um francês com pais ricos, que viajava e lia livros sobre filosofia. Fez amor com todas de modo diferente. Deu palmadas na rapariga alemã e não se preocupou com a sua satisfação. Deu à romena vários orgasmos e uma pulseira de ouro. A búlgara era uma rapariga de cabelo escuro e pele morena. Lembrou-lhe
as raparigas da Palestina. Fizeram amor a noite inteira, até ser altura de ela voltar ao serviço. Ficou triste quando ela se foi embora.
O ferry deslizou a caminho da água abrigada do porto e atracou. Tariq desembarcou e andou até a uma taberna bem iluminada. Estacionada à porta, estava uma lambreta azul-escura com um espelho retrovisor estilhaçado, tal como lhe tinha sido prometido. Dentro do bolso do casaco estava a chave. Prendeu o saco de fim-de-semana com uma correia à parte de trás da mota e ligou o motor. Um instante depois, estava a acelerar por uma faixa estreita, em direcção às montanhas.
Não estava vestido para um passeio nocturno; as luvas finas de cabedal, os mocassins muito abertos e as calças de ganga pretas não eram adversários à altura do frio. Ainda assim, carregou a fundo no acelerador e puxou o máximo que podia pela pequena mota, por uma longa colina acima, na base do monte Kerkis. Abrandou devido a uma curva apertada, depois voltou a carregar a fundo e atravessou a toda a velocidade uma vinha que descia pelo lado da colina e ia dar a um pequeno vale. Por cima da vinha estendia-se um olival e por cima do olival uma fila de imponentes ciprestes, silhuetas recortando-se no fundo de um tapete de estrelas húmidas. O cheiro característico dos ciprestes sentia-se com intensidade no ar. Algures, estava a ser cozinhada carne numa fogueira. O aroma lembrou-lhe o Líbano. Que bom estar fora de Paris, pensou. A cinzenta e melancólica Paris dos finais de Outono. Que bom estar de volta ao Mediterrâneo oriental.
A estrada transformou-se num caminho com covas. Tariq soltou um pouco o acelerador. Era uma coisa estúpida de se fazer, guiar tão depressa numa estrada desconhecida, mas tinha-se habituado a fazer coisas desnecessariamente arriscadas nos últimos tempos. Pela primeira vez desde que deixara Paris, pensou na rapariga americana. Não sentiu remorso nem culpa. A sua morte, ainda que infeliz, fora completamente necessária.
Voltou a carregar a fundo no acelerador e desceu a toda a velocidade uma encosta suave que dava para um vale minúsculo. Pensou nesta sua necessidade, nesta compulsão de estar na companhia
de uma mulher durante uma operação. Calculou que viesse de ter crescido nos campos de Sídon. O pai morrera quando Tariq era novo, e o irmão mais velho, Mahmoud, tinha sido assassinado pelos judeus. Tariq fora criado pela mãe e pela irmã mais velha. Havia apenas um quarto na cabana deles no campo, por isso Tariq, a mãe e a irmã dormiam todos na mesma cama - Tariq no meio, a cabeça deitada contra o peito da mãe, o corpo ossudo da irmã encostado às suas costas. Por vezes, ficava acordado a ouvir os bombardeamentos e as pancadas compassadas dos helicópteros a pairar sobre o campo. Pensava no pai - como morrera de desgosto, com as chaves da casa da família na Galileia Superior ainda no bolso e pensava no pobre Mahmoud. Odiava os judeus com uma intensidade que lhe fazia doer o peito. Mas nunca sentia medo. Não quando estava na cama, protegido pelas suas mulheres.
A casa de campo caiada de branco ficava no cimo de um rochedo que emergia de uma vertente escarpada, entre as aldeias de Mesogion e Pirgos. Para chegar lá, Tariq teve de vencer um caminho íngreme que atravessava uma vinha antiga. O cheiro da última colheita permanecia no ar. Desligou o motor e o silêncio ecoou-lhe nos ouvidos. Pôs a mota no descanso, sacou da pistola Makarov e caminhou por um pequeno jardim até à entrada da casa de campo.
Enfiou a chave na fechadura, rodou-a devagar, testando o canhão, à procura de resistência forçada. A seguir abriu a porta e entrou, a Makarov em riste. Ao fechar a porta, uma luz acendeu-se na sala de estar, iluminando um rapaz elegante, com cabelo comprido, sentado num sofá rústico. Tariq quase disparou sobre ele antes de reparar que a arma do outro homem estava pousada na mesa em frente dele e as suas mãos levantadas em sinal de rendição.
Tariq apontou a Makarov à cara do rapaz.
- Quem és tu?
- O meu nome é Achmed. O Kemel enviou-me.
- Quase que te matava. E então nunca teria sabido porque é que o Kemel te enviou cá.
- Ficaste de chegar esta manhã. Não tinha mais nenhum sítio onde esperar.
- Oferry atrasou-se. Terias ficado a saber isso se te tivesses dado ao trabalho de pegar no telefone e fazer uma única chamada. O que é que ele quer?
- Quer um encontro. Diz que precisa de discutir uma coisa contigo e que é demasiado importante para o fazer pelos meios de comunicação habituais.
- O Kemel sabe que não gosto de encontros cara a cara.
- Tomou medidas especiais.
- Diz-me.
- Importavas-te de apontar essa arma para outro lado?
- Importava-me, por acaso. Como é que sei que foste mesmo enviado cá pelo Kemel? Se calhar o teu nome verdadeiro é Yitzhak ou Jonathan. Se calhar és um israelita. Se calhar trabalhas para a CIA. Se calhar o Kemel ficou queimado e vieste cá para me matar.
O rapaz suspirou fundo e começou a falar:
- O Kemel quer encontrar-se contigo daqui a três dias, num compartimento de primeira classe de um comboio de Zurique para Praga. Vais ter de te juntar a ele lá, em qualquer ponto na viagem que julgues seguro.
- Tens um bilhete?
- Sim.
- Dá-mo.
Achmed enfiou a mão no bolso do casaco. Tariq ergueu a Makarov.
- Devagar.
Achmed tirou o bilhete, levantou-o para que Tariq o visse e deixou-o cair em cima da mesa. Tariq olhou de relance para o bilhete e a seguir voltou a olhar fixamente para o rapaz sentado à sua frente.
- Há quanto tempo é que estás à espera aqui na casa de campo?
- A maior parte do dia.
- A maior parte do dia?
- Fui até à aldeia à tarde.
- Por que carga d'água?
- Estava com fome e queria dar uma vista de olhos.
- Falas grego?
- Um pouco.
Mas que perfeito, pensou Tariq de forma irónica. Um rapaz que fala algumas palavras de grego com um sotaque árabe tinha andado às voltas no porto durante a tarde toda. Tariq imaginou um quadro: um lojista grego metediço começa a suspeitar de um árabe a passear-se pela aldeia e chama a polícia. Chega um polícia para dar uma vista de olhos. Talvez tenha um amigo ou um primo que trabalha nos serviços de segurança gregos. Poça! Era um milagre não ter sido preso mal saiu do ferry. Perguntou:
- Onde estás a pensar passar a noite?
- Pensei que talvez pudesse ficar aqui.
- Fora de questão. Vai à Taverna Petrino. É perto do porto. Consegues lá arranjar um quarto a um preço razoável. De manhã, apanha o primeiro ferry para a Turquia.
- Muito bem.
Achmed inclinou-se para a frente para apanhar a arma. Tariq alvejou-o duas vezes no topo da cabeça.
O sangue espalhou-se pelo chão de pedra. Tariq olhou para o corpo e não sentiu mais do que uma vaga sensação de desilusão. Tinha estado a aguardar com ansiedade por alguns dias de recuperação na ilha antes da próxima operação. Estava cansado, os nervos estavam em franja e as dores de cabeça estavam a piorar. Agora iria ter de se pôr a mexer outra vez, tudo porque o raio do ferry tinha ficado retido devido às marés altas e Kemel enviara um idiota desastrado para entregar uma mensagem importante.
Enfiou a Makarov no cós das calças, pegou no bilhete de comboio e saiu.
TELAVIVE
Uzi Navot viajou para Telavive na manhã seguinte. Chegou ao gabinete de Shamron "preto", o que queria dizer que nem Lev nem nenhum outro membro dos quadros superiores testemunhara a sua chegada. Suspensa na ponta do seu braço de pedreiro estava uma pasta de metal de executivo, lustrosa, do tipo que os homens de negócios de todo o mundo levam, julgando que os seus papéis são demasiado valiosos para serem confiados a mero cabedal. Ao contrário dos outros passageiros do voo El Al de Paris naquela manhã, não tinha sido pedido a Navot que abrisse a mala para inspecção. Nem tinha sido forçado a suportar o interrogatório exasperantemente ritualista dos rapazes e raparigas bronzeados da segurança da ElAl. Uma vez seguro no interior do gabinete de Shamron, aplicou a combinação da mala e abriu-a pela primeira vez desde que deixara a embaixada em Paris. Enfiou a mão lá dentro e tirou um único artigo: uma cassete de vídeo.
Navot perdeu a conta do número de vezes que o velho viu a cassete. Vinte vezes, trinta, talvez até cinquenta. Fumou tantos dos seus cigarros turcos repulsivos que Navot mal conseguia ver o ecrã através da neblina. Shamron estava fascinado. Estava sentado na cadeira, os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, para poder espreitar pelos óculos de ler, de aros negros, empoleirados na ponta do nariz com aspecto de punhal. Navot proporcionava o pedaço ocasional de fundo narrativo, mas Shamron estava a ouvir as suas próprias vozes.
- De acordo com a segurança do museu, o Eliyahu e o seu grupo entraram no carro às dez e vinte e sete - disse Navot. Como pode ver pelo temporizador no ecrã, o árabe faz o telefonema às dez e vinte e seis em ponto.
Shamron não disse nada, apenas golpeou o controlo remoto, rebobinou a cassete e viu-a uma outra vez mais.
- Observe a mão dele - disse Navot, ansiosamente. - O número está arquivado no telemóvel. Ele limita-se a carregar no teclado um par de vezes com o polegar e começa a falar.
Se Shamron achou este pedaço de perspicácia interessante ou mesmo remotamente relevante, não deu qualquer indicação disso.
- Talvez pudéssemos arranjar os registos da companhia telefónica - disse Navot, insistindo. - Talvez pudéssemos descobrir o número que ele marcou. Aquele telefone pode conduzir-nos ao Tariq.
Shamron, caso tivesse escolhido falar, teria informado o jovem Navot de que havia provavelmente uma meia dúzia de operadores entre Tariq e a companhia telefónica do telemóvel francês. Uma investigação assim, ainda que admirável, conduziria sem dúvida a um beco sem saída.
- Diz-me uma coisa, Uzi - disse Shamron, por fim. - Que tipo de comida é que aquele rapaz tinha na travessa de prata?
- O quê, chefe?
- A comida, os aperitivos, na travessa. O que eram? -- Galinha, chefe.
- Que tipo de galinha, Uzi?
- Não sei, chefe. Galinha, simplesmente.
Shamron abanou a cabeça em sinal de desapontamento.
- Era galinha tandoori, Uzi. Galinha tandoori, da índia.
- Como queira, chefe.
- Galinha tandoori - repetiu Shamron. - É interessante. Devias saber isso, Uzi.
Navot requisitou um carro do Departamento e conduziu perigosamente depressa pela estrada costeira acima, a caminho de Cesareia.
Tinha acabado de concretizar um belíssimo feito - roubara uma cópia da cassete de vídeo do Musée d'Orsay -, mas a única coisa com que o velho se importava era com a galinha. Que diferença fazia se era galinha tandoori ou Kentucky Fried Chicken? Talvez Lev tivesse razão. Talvez Shamron já estivesse longe dos seus melhores tempos. Que se lixe o velho.
Havia uma máxima no interior do Departamento, nos tempos que corriam: quanto mais longe estamos do nosso último desastre, mais perto estamos do próximo. Shamron também iria pisar merda. E, nessa altura, iriam escorraçá-lo de novo, agora de vez.
Mas Navot apercebeu-se de que realmente se importava com o que o velho pensava acerca de si. Na verdade, importava-se demasiado. Tal como a maioria dos funcionários da sua idade, venerava o grande Shamron. Tinha feito uma série de trabalhos para o velho ao longo dos anos - trabalhos sujos que mais ninguém queria. Coisas que tinham de ser mantidas em segredo de Lev e dos outros. Faria quase tudo para voltar a cair nas suas boas graças.
Entrou em Cesareia e estacionou à porta de um prédio de apartamentos a alguns quarteirões do mar. Passou despercebido pela recepção dentro e viajou de elevador até ao quarto andar. Ainda tinha uma chave, mas preferiu bater à porta. Não telefonara a avisar que estava a caminho. Ela podia ter outro homem lá dentro. Bella tinha muitos homens.
Abriu a porta vestida com calças de ganga desbotadas e uma camisa rasgada. Tinha um corpo comprido e uma cara linda que parecia estar perpetuamente de luto. Observou Navot com um olhar de malícia levemente disfarçada, depois afastou-se e deixou-o entrar. O apartamento tinha o ar de uma livraria de segunda-mão e cheirava a incenso. Ela era escritora e historiadora, especialista em assuntos árabes, consultora ocasional do Departamento para as políticas sírias e iraquianas. Tinham sido amantes antes de o Departamento enviar Navot para a Europa, e ela desprezava-o um pouco por escolher o trabalho de campo em detrimento de si. Navot beijou-a e puxou-a gentilmente para o quarto. Ela resistiu, apenas por um instante.
A seguir, perguntou:
- Estás a pensar em quê?
- Shamron.
- O que foi agora?
Contou-lhe o máximo possível, sem detalhes, apenas o essencial.
- Sabes como o Shamron funciona - disse ela. - Deita-te abaixo quando quer alguma coisa. Tens uma de duas opções. Podes voltar para Paris e esquecer isso, ou podes guiar hoje à noite até Tiberíades e ver o que o sacana do velho tem em vista para ti agora.
- Talvez não queira saber.
- Tretas, Uzi. Claro que queres saber. Se te dissesse que nunca mais te queria ver, não pensarias nisso duas vezes. Mas se o velho olha para ti de soslaio, desmoronas-te todo.
- Estás enganada, Bella.
- Sobre que parte?
- A primeira. Se me dissesses que nunca mais me querias ver, deixava o Departamento e implorava-te que casasses comigo.
Ela beijou-lhe os lábios e disse: - Nunca mais te quero ver. Navot sorriu e fechou os olhos. Bella disse:
- Meu Deus, mas és um mentiroso horrível, Uzi Navot.
- Há algum restaurante indiano em Cesareia?
- Um muito bom, por acaso, não muito longe daqui.
- Servem galinha tandoorfi
- Isso é como perguntar se um restaurante italiano serve esparguete.
- Veste-te. Vamos até lá.
- Faço qualquer coisa para nós aqui. Não quero sair. Mas Navot já estava a vestir as calças.
- Veste-te. Preciso de galinha tandoori.
Durante as setenta e duas horas seguintes, Ari Shamron comportou-se como um homem a quem cheirava a fumo e que estava freneticamente à procura de fogo. O mero rumor da sua vinda era capaz de esvaziar uma sala tão seguramente como se uma granada
antipessoal tivesse sido lançada a rolar para o tapete. Rondou os corredores do Boulevard do Rei Saul, irrompendo sem anúncio por reuniões adentro, exortando os funcionários a olhar melhor, a escutar com mais atenção. Qual tinha sido a última aparição confirmada de Tariq? O que acontecera aos outros membros da equipa do ataque de Paris? Tinha havido algumas intercepções electrónicas interessantes? Andavam a falar uns com os outros? Andavam a planear atacar outra vez? Shamron estava com a febre, disse Lev a Morde cai, durante um jantar tardio na cantina. A febre de sangue. O melhor era mantê-lo isolado dos não-infectados. Enviá-lo para o deserto. Deixá-lo uivar à Lua até passar.
O segundo avanço no caso veio vinte e quatro horas depois de Navot entregar a cassete de vídeo. Foi o delicado Shimon do Departamento de Investigação que fez a descoberta. Correu até ao gabinete de Shamron, vestido com uma camisola e descalço, apertando um ficheiro nas pontas roídas dos dedos.
- E o Mohammed Azziz, chefe. Já foi membro da Frente Popular, mas quando a Frente se inscreveu no processo de paz, o Azziz juntou-se ao grupo do Tariq.
- Quem é o Mohammed Azziz? - perguntou Shamron, olhando de soslaio para Shimon, com curiosidade, no meio de uma nuvem de fumo.
- O rapaz do Musée d'Orsay. Disse aos técnicos do laboratório fotográfico para melhorar digitalmente a cassete de vídeo de vigilância. Depois passei-a pela base de dados. Não há qualquer dúvida. O empregado com o telemóvel era o Mohammed Azziz.
- Tens a certeza de que é o Azziz?
- Absoluta, chefe.
- E tens a certeza de que Azziz agora trabalha para o Tariq?
- Apostava a minha vida nisso.
- Escolhe as palavras com cuidado, Shimon.
Shimon deixou o ficheiro na secretária e saiu. Shamron tinha agora o que queria: provas de que as impressões digitais de Tariq estavam por todo o ataque de Paris. Mais tarde, nessa mesma noite, Yossi, com os olhos inflamados, apareceu à porta de Shamron.
- Acabei de ouvir uma coisa interessante, chefe.
- Diz, Yossi.
- Um amigo nosso do serviço grego acaba de passar uma mensagem à base de Atenas. Um palestiniano chamado Achmed Natour foi assassinado há um par de dias, na ilha de Samos, na Grécia. Alvejado duas vezes na cabeça e deixado numa casa de campo.
- Quem é Achmed Natour?
- Não temos a certeza. O Shimon está a dar uma vista de olhos.
- De quem é a casa de campo?
- Isso é o mais interessante, chefe. A casa de campo foi arrendada a um inglês chamado Patrick Reynolds. A polícia grega está a tentar encontrá-lo.
- E?
- Não há nenhum Patrick Reynolds na morada de Londres que está no contrato de arrendamento. Também não há nenhum Patrick Reynolds no número de telefone de Londres. Tanto quanto as autoridades britânicas e gregas conseguem perceber, Patrick Reynolds não existe.
O velho ia estar longe por algum tempo - Rami conseguia senti-lo.
A última noite de Shamron foi de agitação, mesmo pelos padrões grandiosos do Fantasma de Tiberíades. Passou muito tempo a andar para um lado e para o outro na varanda, depois queimou algumas horas às voltas com um rádio Philco que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos nesse dia. Não dormiu, não fez nenhum telefonema e só teve uma visita: um Uzi Navot com ar de penitência. Falou com o velho na varanda durante quinze minutos, depois partiu rapidamente. A caminho da saída, a sua cara fez Rami lembrar-se do ar que Shamron tinha adoptado na noite do ataque de Paris: parte determinação severa, parte sorriso afectado de satisfação consigo próprio.
Mas foi a maleta da roupa que confirmou os piores medos de Rami: manufactura italiana, cabedal preto, arrojadas molas e fivelas douradas. Era tudo o que o velho não era. O Fantasma era capaz
de transportar o material de viagem no bolso de trás e ainda ter espaço para a carteira. Depois havia o nome na etiqueta a baloiçar da maleta: Rudolf Heller, morada de Berna, número de telefone de Berna. Shamron ia infiltrar-se.
Rami estava distante ao pequeno-almoço, como a mãe que arranja uma discussão com o filho na manhã de uma separação. Ao invés de se sentar com ele à mesa, ficou em pé junto da bancada e folheou com violência a secção de desporto do Maa'riv.
- Rami, por favor - disse Shamron. - Estás a lê-lo ou a tentar arrancar-lhe uma confissão?
- Deixe-me ir consigo, chefe.
- Não vamos voltar a ter esta conversa. Sei que podes achar isto difícil de acreditar, mas sei funcionar no terreno. Fui um katsa muito antes dos teus pais acharem por bem trazer-te a este mundo.
- Já não é tão novo como era dantes, chefe.
Shamron baixou o jornal e espreitou para Rami por cima dos óculos de meia-lua.
- Quando achares que estás pronto, podes experimentar testar a minha forma física.
Rami apontou o dedo a Shamron como se fosse uma arma e respondeu:
- Bang, bang, está morto, chefe.
Mas Shamron limitou-se a sorrir e a acabar de ler o jornal. Dez minutos mais tarde, Rami acompanhou-o até ao portão e pôs a maleta no carro. Ficou parado a observar o carro a afastar-se, até tudo o que restava de Ari Shamron ser uma baforada de poeira cor-de-rosa da Galileia.
ZURIQUE
A Farmacêutica Schloss era a maior farmacêutica da Europa e uma das maiores do mundo. Os seus laboratórios de pesquisa, as fábricas de produção e centros de distribuição estavam espalhados à volta do globo, mas a sede empresarial ocupava um imponente edifício de pedra cinzenta na restrita Bahnhofstrasse de Zurique, não muito longe da margem do lago. Por ser quarta-feira, os chefes de divisão e os vice-presidentes mais antigos tinham-se juntado na sala de reuniões forrada a madeira, no nono andar, para a reunião semanal. Martin Schloss estava sentado à cabeceira, por baixo de um retrato do bisavô, Walther Schloss, o fundador da empresa. Uma figura elegante, fato escuro, cabelo grisalho bem cortado. Ao meio-dia e meia, olhou para o relógio e levantou-se, indicando que a reunião tinha terminado. Alguns dos executivos juntaram-se em seu redor, à espera de uma última troca de palavras com o chefe.
Kemel Azouri juntou as suas coisas e escapuliu-se. Era um homem alto, com uma figura esguia e aristocrática, feições estreitas e olhos verde-claros. Destacava-se no império Schloss não só pelo aspecto, mas pela história extraordinária. Nascido num campo de refugiados palestinianos no Líbano, estudara brevemente Medicina na Universidade de Beirute, antes de vir para a Europa à procura de trabalho. Foi contratado por Schloss e deram-lhe um emprego de pequena importância no departamento de vendas. Veio a mostrar-se tão bem-sucedido que, em cinco anos, foi colocado à frente da divisão de vendas do Médio Oriente da empresa. O emprego
mantinha-o constantemente na estrada, deixando-o sem tempo para uma família ou uma vida pessoal de qualquer espécie. Mas a Kemel não o perturbava o facto de nunca ter arranjado tempo para casar e ter filhos. Tinha sido recompensado de muitas outras maneiras. Há um ano atrás, fora promovido a chefe da divisão de vendas da empresa. Martin Schloss fizera dele um milionário. Vivia numa casa grandiosa com vista para o rio Limmat e percorria Zurique num Mercedes com motorista da empresa.
Entrou no seu gabinete: uma sala espaçosa, tecto alto, tapetes persas, mobília dinamarquesa clara, uma vista magnífica do Zúrichsee. Sentou-se à secretária e recapitulou as notas da reunião.
A secretária entrou na sala.
- bom dia, Herr Azouri. Espero que a reunião tenha corrido bem.
Falou-lhe em alemão e ele respondeu sem erros na mesma língua:
- Muito bem, Margarite. Alguma mensagem?
- Deixei-as em cima da secretária, Herr Azouri. Os bilhetes de comboio também lá estão, tal como as informações do hotel para Praga. Devia apressar-se, no entanto. O comboio parte daqui a meia hora.
Deu uma vista de olhos pela pilha de mensagens telefónicas. Não havia nada que não pudesse esperar. Puxou de um sobretudo, pôs um chapéu Fedora na cabeça e atou um lenço de seda à volta da garganta. Margarite entregou-lhe a pasta e uma maleta para o fim-de-semana.
Kemel disse:
- Gostava de utilizar o tempo no comboio para tratar de papelada em atraso.
- Não o vou incomodar, a não ser que haja uma crise. O motorista está lá fora à espera.
- Diga-lhe para tirar o resto da tarde. vou a pé até Hauptbahnhof. Faz-me falta o exercício.
A neve acumulava-se ao longo de Bahnhofstrasse, enquanto Kemel ia passando pelas lojas reluzentes. Entrou num banco e
levantou discretamente uma grande quantia de dinheiro de uma conta pessoal numerada. Cinco minutos mais tarde, estava de novo lá fora, o dinheiro guardado num compartimento escondido da pasta.
Entrou em Hauptbanhoff e atravessou o átrio principal, parando para verificar se era seguido. Depois caminhou até a um quiosque e comprou uma série de jornais para a viagem. Ao dar dinheiro ao empregado, passou os olhos em redor do terminal, para ver se alguém o estava a seguir. Nada.
Caminhou até ao cais. O comboio estava prestes a terminar o embarque. Kemel subiu para a carruagem e foi avançando pelo corredor, em direcção ao seu compartimento de primeira classe. Estava vazio. Pendurou o casaco e sentou-se, ao mesmo tempo que o comboio saía da estação. Enfiou o braço na pasta e tirou os jornais para fora. Começou pela edição europeia do Wall Street Journal, a seguir o Financial Times, o The Times, de Londres, e, por fim, o Lê Monde.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o empregado trouxe-lhe café. Kemel começou a analisar um conjunto de números de vendas trimestrais da divisão da América do Sul - apenas mais um executivo de sucesso, demasiado obcecado para relaxar nem que fosse por um instante. Kemel sorriu; isso estava tão longe da verdade.
Durante anos, vivera uma vida dupla, a trabalhar para a Farmacêutica Schloss, enquanto, ao mesmo tempo, era um agente ao serviço da OLP. O emprego e a fachada respeitável tinham-lhe fornecido um disfarce a toda a prova, permitindo-lhe viajar pelo Médio Oriente e pela Europa sem levantar as suspeitas dos serviços secretos e de segurança. O exemplo máximo do lobo em pele de cordeiro, movia-se por entre os círculos mais elitistas e cultos da Europa, trabalhava com os líderes empresariais mais poderosos do Continente, socializava com os ricos e famosos. E, no entanto, durante todo esse tempo, estava a trabalhar para a OLP - mantendo redes de contactos, recrutando agentes, planeando operações, transmitindo mensagens, recolhendo dinheiro de doadores ao longo do Médio Oriente. Utilizava os sistemas de envio e distribuição da Schloss para fazer chegar ao destino armamento e explosivos para operações.
Na realidade, dava-lhe sempre uma sensação de prazer bastante mórbida pensar que, entre medicamentos para salvar vidas, estavam instrumentos de assassínio e terror.
Agora, a sua situação era ainda mais complicada. Quando Yasser Arafat concordou em renunciar à violência e entrar em negociações com os sionistas, Kemel ficou enfurecido e uniu secretamente forças com o antigo camarada Tariq al-Hourani. Kemel servia de chefe de operações e planeamento à organização de Tariq. Tratava das finanças, geria as redes de comunicações, assegurava o armamento e os explosivos e lidava com o planeamento operacional tudo a partir do gabinete em Zurique. Formavam uma parceria bastante única: Tariq, o terrorista impiedoso e o assassino de sangue-frio; Kemel, o refinado e respeitável representante, que lhe fornecia os instrumentos de terror.
Kemel fechou os relatórios de vendas e olhou para cima. Poça! Onde é que ele está? Talvez tivesse corrido alguma coisa mal.
Foi então que a porta do compartimento se abriu e um homem entrou: cabelos loiros compridos, óculos de sol, boné dos Yankees, música rock a sair aos berros dos auscultadores. Kemel pensou: Céus!Quem é este idiota? Agora, Tariq nunca se irá atrever a aparecer.
Disse:
- Peço desculpa, mas está no compartimento errado. Estes lugares estão todos ocupados.
O homem levantou um dos auscultadores e respondeu:
- Não o consigo ouvir.
Falava inglês como um americano.
- Estes lugares estão ocupados - repetiu Kemel, impacientemente. - Saia, ou chamo o empregado.
Mas o homem sentou-se simplesmente e tirou os óculos.
- Que a paz esteja contigo, meu irmão - disse Tariq suavemente, em árabe.
Kemel não conseguiu deixar de sorrir.
- Tariq, meu sacana.
- Fiquei preocupado quando o Achmed não deu notícias depois de o ter enviado para a Grécia - disse Kemel. - Depois ouvi
dizer que um corpo tinha sido encontrado na casa de campo de Samos e percebi que os dois deviam ter falado.
Tariq fechou os olhos, inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.
- Foi desleixado. Devias escolher melhor os teus mensageiros.
- Mas precisavas mesmo de o matar?
- Vais descobrir outro, melhor, espero.
Kemel olhou cuidadosamente para ele durante um instante.
- Como é que te sentes, Tariq? Não...
- Óptimo - respondeu Tariq, interrompendo-o. - Como é que estão a andar as coisas em Amesterdão?
- Bastante bem, por acaso. A Leila já chegou. Encontrou-te uma mulher e um sítio para ficares.
Tariq respondeu:
- Fala-me dela.
- Trabalha num bar no bairro da luz vermelha. Vive sozinha numa casa flutuante no Amstel. É perfeito.
- Quando é que vou?
- Daqui a mais ou menos uma semana.
- Preciso de dinheiro.
Kemel enfiou o braço na pasta e entregou a Tariq o envelope do dinheiro. Tariq meteu-o no bolso do casaco. Depois, os olhos cinzento-claros fixaram-se em Kemel. Como sempre, Kemel teve a desconfortável sensação de que Tariq estava a decidir como melhor o matar se precisasse.
- com certeza que não me arrastaste este caminho todo até aqui para me criticares por ter morto o Achmed e perguntares pela minha saúde. O que mais tens?
- Umas notícias interessantes.
- Estou a ouvir.
- Os homens do Boulevard do Rei Saul estão convencidos de que estás por trás do ataque de Paris.
- Que brilhante da parte deles.
-- O Ari Shamron quer-te morto e o primeiro-ministro deu-lhe luz verde.
- O Ari Shamron quer-me morto há anos. Porque é que isto agora é tão importante? - Porque ele vai dar o trabalho a um velho amigo teu.
- Quem? . Kemel sorriu e inclinou-se para a frente.
ST. JAMES'S, LONDRES
A firma Isherwood Fine Arts, por vezes solvente, estava instalada num armazém vitoriano a desmoronar-se, numa zona tranquila e escondida de St. James's chamada Mason's Yard. Estava apertada entre os escritórios de uma pequena empresa de transportes e um bar que parecia estar sempre cheio de paquetes bonitas que conduziam motoretas. O letreiro formal na janela do primeiro andar afirmava que a galeria se especializava em trabalhos dos velhos mestres, que o dono, Julian Isherwood, era membro, com boa reputação, da Sociedade dos Negociantes de Artes de Londres, e que a sua colecção apenas podia ser vista por marcação. Galerias em Veneza e Nova Iorque eram também prometidas, apesar de terem fechado há muito tempo atrás - Isherwood, simplesmente, não tinha a coragem, ou o dinheiro a mais, para actualizar o letreiro, de modo a reflectir a prosperidade reduzida do seu império.
Shamron chegou às doze e trinta. O casaco de bombardeiro e as calças caqui tinham dado lugar a um fato de casaco assertoado, uma camisa de seda e gravata azul-escura a condizer, e um sobretudo cinzento de caxemira. Os óculos com aros de aço tinham sido substituídos por óculos de tartaruga à moda. No pulso estava um relógio Roex de ouro, no último dedo da mão direita, um anel de sinete. A ausência de uma aliança indicava disponibilidade sexual. Mexia-se num deambular descontraído e cosmopolita, em vez da sua habitual cavalgada mortal.
Shamron tocou à campainha rachada, junto à entrada do rés-do-
-chão. Um instante depois, a voz sensual de Heather, a mais recente na série de jovens e nada prestáveis assistentes pessoais de Isherwood, surgiu no intercomunicador.
- O meu nome é Rudolf Heller - disse Shamron num inglês com sotaque alemão. - Estou aqui para ver o senhor Isherwood.
- Tem uma reunião marcada?
- Receio que não, mas Julian e eu somos amigos de longa data.
- Um momento, por favor.
Um momento transformou-se em dois, depois três. Por fim, o fecho automático da porta abriu-se com um estalido. Shamron entrou e subiu um pequeno lance de escadas lamurientas. Havia uma nódoa castanha grande no tapete do patamar. Heather estava sentada na antessala, atrás de uma secretária vazia e de um telefone silencioso. As raparigas de Isherwood seguiam todas um padrão familiar: bonitas licenciadas de escolas de arte, seduzidas a estar ao seu serviço com promessas de aprendizagem e aventura. A maioria desistia após um mês ou dois, quando ficavam desesperadamente aborrecidas, ou quando Isherwood não parecia conseguir juntar o dinheiro para lhes pagar.
Heather estava a folhear um exemplar de Loof. Sorriu e apontou para dentro do gabinete de Isherwood com a ponta roída de um lápis cor-de-rosa. Isherwood passou de rajada pela porta aberta, todo ele tecido às riscas e seda, a falar um italiano rápido num telefone sem fios.
- Entre se se atrever - disse Heather, com uma pronúncia lenta e arrastada de Mayfair que pôs secretamente os dentes de Shamron a ranger. - Vai desligar daqui a um minuto. Posso arranjar-lhe algo para beber?
Shamron abanou a cabeça e entrou. Sentou-se e inspeccionou o quarto. Prateleiras pejadas de monografias sobre artistas, livros-razão encadernados a pano, catálogos antigos, um pedestal coberto de veludo preto para expor pinturas a potenciais compradores. Isherwood estava a andar de um lado para o outro em frente a uma janela com vista para Mason's Yard. Parou uma vez a olhar de forma irritada para Shamron, depois outra vez para conseguir com que
um fax guinchante começasse a funcionar. Isherwood estava em apuros - Shamron conseguia senti-lo. Mas a verdade é que estava sempre em apuros.
Julian Isherwood era muito selectivo com os quadros que comprava e ainda mais selectivo em relação a quem os vendia. Entrava num estado de melancolia sempre que via um dos quadros sair pela porta fora. Como consequência, era um negociante de arte que não vendia muita arte - quinze quadros num ano normal, vinte, num bom. Fizera uma fortuna nos anos oitenta, quando qualquer pessoa com alguns metros de espaço de galeria e meio cérebro fizera dinheiro, mas agora essa fortuna desaparecera.
Atirou o telefone para cima da secretária caótica.
- O que quer que seja que queiras, a resposta é não.
- Como estás, Julian?
- Vai para o inferno! Porque é que estás aqui?
- Livra-te da rapariga por uns minutos.
- A resposta vai continuar a ser não, esteja a rapariga cá ou não.
- Preciso do Gabriel - disse Shamron tranquilamente.
- bom, eu preciso mais dele e por isso não o podes ter.
- Diz-me só onde ele está. Preciso de falar com ele.
- Desaparece! - ripostou Isherwood. - Quem raio pensas que és, entrando por aqui dentro assim e a dar-me ordens? Agora, se estás interessado em adquirir um quadro, talvez te possa ajudar nalguma coisa. Se não é arte que te traz cá, então a Helen acompanhar-te-á até à porta.
- O nome dela é Heather.
- Oh, caramba!
Isherwood deixou-se cair com força na cadeira atrás da secretária.
- A Helen era a rapariga do mês passado. Já as confundo.
- As coisas não estão a correr bem, Julian?
- As coisas não têm corrido bem, mas tudo isso está prestes a mudar, e é por isso que preciso que te voltes a enfiar debaixo da tua pedra e me deixes, a mim e ao Gabriel, em paz.
- E que tal um almoço? - sugeriu Shamron. - Podes
contar-me os teus problemas e talvez consigamos chegar a uma solução benéfica para os dois.
- Nunca me pareceste uma pessoa muito interessada em meios-termos.
- Vai buscar o casaco.
Shamron tomara a precaução de reservar uma mesa tranquila, num canto, no restaurante Green's em Duke Street. Isherwood pediu a lagosta canadiana cozida, fria, e a garrafa mais cara de Sancerre na carta de vinhos. O maxilar de Shamron cerrou-se por um breve instante. Era conhecido por ser avarento quando se tratavam de fundos do Departamento, mas precisava da ajuda de Isherwood. Se isso exigia um almoço dispendioso no Green's, Shamron iria fazer cócegas ao relatório de despesas.
No léxico do Departamento, homens como Julian Isherwood eram conhecidos como os sayanim: os ajudantes. Eram os banqueiros que avisavam Shamron sempre que certos árabes faziam grandes transacções ou que podiam ser chamados a altas horas da noite quando um katsa estava em apuros e precisava de dinheiro. Eram os porteiros que abriam quartos de hotel quando Shamron queria dar uma vista de olhos lá dentro. Eram os empregados dos stands de aluguer de automóveis que proporcionavam a Shamron agentes de campo com meios de transporte limpos. Eram os funcionários agradáveis em serviços de segurança nada agradáveis. Eram os jornalistas que se deixavam utilizar como condutas para as mentiras de Shamron. Nenhum outro serviço secreto no mundo podia reivindicar uma tal legião de acólitos empenhados. Para Ari Shamron, eram o fruto secreto da Diáspora.
Julian Isherwood era um membro especial dos sayanim. Shamron recrutara-o para servir apenas um katsa muito importante, e era por isso que Shamron demonstrara sempre uma paciência incaracterística perante as voláteis mudanças de humor de Isherwood.
- Deixa-me contar-te porque é que não podes ter o Gabriel neste preciso momento - começou Isherwood. - No último mês de Agosto, um quadro muito sujo e muito danificado apareceu numa
sala de vendas em Hull; um retábulo de altar italiano do século dezasseis, artista desconhecido. Essa é a parte mais importante da história, artista desconhecido. Tenho a tua inteira atenção, Herr tieller?
Shamron acenou com a cabeça e Isherwood prosseguiu:
- Tinha um palpite acerca do quadro, por isso empilhei uma série de livros no meu carro e fui até Yorkshire para dar uma vista de olhos. com base numa breve inspecção visual da obra, fiquei satisfeito por o meu palpite estar correcto. Por isso, quando este mesmo quadro muito sujo e muito danificado, artista desconhecido, apareceu para venda na respeitável leiloeira da Christie's, pude consegui-lo por tuta-e-meia.
Isherwood lambeu os lábios e inclinou-se, de forma conspiratória, sobre a mesa.
- Levei a pintura ao Gabriel e ele fez-lhe vários testes para mim. Raios X, fotografia com infravermelhos, a quantidade do costume. A inspecção mais cuidadosa confirmou o meu palpite. A obra muito suja e muito danificada da sala de vendas em Hull é, na realidade, um retábulo de altar desaparecido da Igreja de San Salvatore em Veneza, pintado nada mais nada menos do que por Francesco Vecellio, irmão do grande Ticiano. É por isso que preciso do Gabriel, e é por isso que não te vou dizer onde ele está.
O sommelier apareceu. Shamron deu uns puxões num fio solto da toalha enquanto Isherwood se ocupava com um elaborado ritual de inspecção, fungadelas, goles e ponderação. Após um dramático momento de incerteza, declarou o vinho apropriado. Bebeu um copo muito depressa, depois serviu-se de outro.
Quando retomou a conversa, a voz tinha-se tornado melancólica, os olhos húmidos:
- Lembras-te dos velhos tempos, Ari? Tinha uma galeria em New Bond Strasse, mesmo ao lado de Richard Green. Hoje em dia, não tenho o dinheiro suficiente para New Bond Strasse. É tudo Gucci e Ralph Lauren, Tiffany e o raio da Mikimoto. E sabes quem é que ficou com o meu antigo espaço? O agoniante Giles Pittaway! Já tem duas galerias só em Bond Street e ainda tem planos para
abrir mais duas durante este ano. Caramba!, está a alastrar-se como o vírus Ebola, a alterar-se, a tornar-se mais forte, a matar tudo o que é decente pelo caminho.
Um negociante de arte rechonchudo com uma camisa cor-de-rosa e de braço dado com uma rapariga bonita passou pela mesa. Isherwood parou o tempo suficiente para dizer Oá, Oliver, e soprar-lhe um beijo.
- Este Vecellio é um verdadeiro golpe de mestre. Preciso de um golpe de mestre em cada par de anos. Os golpes de mestre são o que me mantém em actividade. Os golpes de mestre suportam todo o stock parado e todas as pequenas vendas que não me fazem ganhar praticamente nada.
Isherwood fez uma pausa e bebeu um longo gole de vinho.
- Todos precisamos de golpes destes de vez em quando, não é, Herr Heller? Suspeito que até alguém no teu ramo precise de um grande sucesso de vez em quando para compensar todos os falhanços. À nossa!
- À nossa! - respondeu Shamron, inclinando ligeiramente o copo.
- O Giles Pittaway podia ter comprado o Vecellio, mas não quis. Não quis, porque ele e os seus rapazes não fizeram o trabalho de casa. Não foram capazes de o autenticar. Eu era o único que sabia o que era porque fui o único a fazer o trabalho de casa. O Giles Pittaway não seria capaz de distinguir um Vecellio de um talharim. Vende trampa. Trampa de alto brilho. Já viste as coisas dele? completa trampa! Completa e absoluta trampa tipo cartão de parabéns!
Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, respondeu que já há algum tempo não visitava as galerias do infame Giles Pittaway.
Isherwood inclinou-se sobre a mesa, olhos bem abertos, lábios húmidos.
- Preciso deste Vecellio limpo e pronto para venda até à Primavera - disse em voz baixa. - Se não estiver pronto, perco o meu comprador. Os compradores não crescem nas árvores, hoje em dia, em especial para um retábulo de altar de Vecellio. Consigo contar o número de potenciais compradores para uma peça destas pelos dedos de uma mão. Se o meu comprador se amedrontar, pôsso
nunca encontrar outro. E se não conseguir encontrar outro, o meu Vecellio passa a ser apenas mais um pedaço de stock parado. Queimado, como se diz no ramo. Tu queimas agentes, nós queimamos os nossos quadros. Um quadro é arrebatado ou apodrece na arrecadação de um negociante de arte. E uma vez queimada, uma pintura fica sem valor, tal e qual como os teus agentes.
- Percebo o teu dilema, Julian.
- Percebes mesmo? Há talvez umas cinco pessoas no mundo capazes de restaurar aquele Vecellio convenientemente. Acontece que o Gabriel Allon é uma delas, e as outras quatro nunca baixariam os seus padrões para trabalhar com uma pessoa como eu.
- O Gabriel é um homem de talento. Infelizmente, também preciso dos talentos dele e é uma coisa um pouquinho mais importante do que uma pintura com quinhentos anos.
- Ai isso é que não! Os tubarões estão a rondar e o meu banco, volúvel, está a ameaçar abandonar-me. Não vou conseguir encontrar um financiador a tempo de salvar o barco. O Giles Pittaway tem financiadores! O Lloyd's Bank! Quando arte e altas finanças se começam a misturar, digo que é altura de nos pormos a caminho da Alta Escócia e construir o raio de uma arca.
Uma pausa.
- E, já agora, Herr Heller, poucas coisas nesta vida são mais importantes do que boas pinturas. E não me interessa quão antigas sejam.
- Devia ter escolhido as palavras com mais cuidado, Julian.
- Se tiver de fazer liquidações, fico sem camisa - disse Isherwood. - Teria sorte se conseguisse trinta cêntimos por libra em relação ao real valor da minha colecção.
Shamron não se comoveu com as súplicas.
- Onde é que ele está?
-- Porque é que te havia de dizer?
- Porque preciso dele, Julian. Precisamos dele.
- Oh, Deus! Não me venhas com essa merda, porque não vai funcionar uma segunda vez. Já ouvi as tuas histórias todas e sei como acabam. E, já agora, o Gabriel sente o mesmo. Também terminou com vocês todos.
- Então diz-me onde ele está. Que mal é que pode fazer?
- Porque te conheço demasiado bem para confiar em ti. Ninguém no seu perfeito juízo confiaria em ti.
- Podes dizer-me onde ele está ou podemos descobri-lo nós próprios. Pode demorar uns dias, mas vamos descobri-lo.
- Suponhamos que digo. O que é que estás preparado para me oferecer em troca?
- Talvez possa arranjar um financiador para te manter à tona até venderes o teu Vecellio.
- Financiadores de confiança são tão raros como um Vecellio de confiança.
- Conheço uma pessoa que tem andado a pensar em entrar no negócio da arte. Talvez consiga falar com ele em teu nome.
- Qual é o nome dele?
- Temo que insistisse no anonimato.
- Se o Gabriel suspeita que te disse...
- Não vai suspeitar de nada. Isherwood lambeu os lábios pálidos.
PORT NAVAS, CORNUALHA
O velho chegou quando o estranho estava fora, no barco. Peel avistou-o da janela do quarto, enquanto o homem tentava conduzir um Mercedes grande pelo caminho estreito com vista para o cais. Parou junto do chalé do capataz, tocou à campainha e bateu à porta. Peel conseguia ouvir os nós dos dedos do velho a bater na madeira desde o outro extremo do ribeiro: golpes secos e brutais. Vestiu uma camisola e um impermeável e correu para fora do chalé. Momentos depois, estava parado atrás do homem, a arfar, a cara vermelha do esforço.
O velho perguntou:
- Quem és tu?
Um sotaque, notou Peel - como o do estranho, mas mais carregado.
- Chamo-me Peel. Quem é o senhor? Mas o velho ignorou a pergunta:
- Estou à procura do homem que vive neste chalé.
- Agora não está cá.
- Sou um amigo. Sabes onde ele está?
Peel não disse nada, pois a noção de o estranho ter um amigo que apareceria sem aviso era ridícula. O velho olhou para o cais, depois o olhar fixo voltou a centrar-se em Peel.
- Está em viagem no barco, não está?
Peel acenou com a cabeça. Algo nos olhos do homem dava arrepios ao rapaz.
O velho olhou para o céu: nuvens de cor cinzento-azulada a exercerem pressão sobre o ribeiro, densas e carregadas com a chuva que aí vinha.
- Um tempo bastante desagradável para velejar.
- Ele é muito bom.
- Pois é. Quando é que regressa?
- Nunca diz. Digo-lhe que passou por cá.
- Por acaso, acho que prefiro esperar por ele.
Parecia um homem que era capaz de esperar muito tempo se se predispusesse a isso.
- Há algum sítio onde se arranje café por aqui?
Peel apontou para a aldeia.
Mas o velho não foi até à aldeia à procura de café. Na verdade, não foi a lado nenhum. Limitou-se a entrar no Mercedes e deixou-se ficar atrás do volante como uma estátua. Peel caminhou até ao pontão e montou um acampamento-base junto ao viveiro de ostras, a olhar fixamente para o rio, em direcção ao mar, à espera do estranho. A meio da tarde, o rio tinha ondas encrespadas e uma tempestade estava a caminho. Às quatro da tarde, estava completamente escuro. Peel estava encharcado, meio morto de frio. Estava prestes a desistir da vigília quando avistou um feixe de luzes de navegação azul-claras a flutuar rio acima, através da neblina. Um instante depois, ouviu o chocalhar rítmico de um motor: a bela chalupa de madeira do estranho, a dirigir-se para casa com o motor a trabalhar.
Peel acendeu a lanterna e fez sinal ao estranho. A chalupa fez um ligeiro desvio para estibordo, dirigiu-se na direcção do promontório, a cortar a água preta. Quando o barco estava a alguns metros da margem, o estranho gritou:
- O que se passa?
- Está um homem à sua espera.
- O que é que ele quer?
- Diz que é um amigo seu.
- Disse-te o nome?
- Não.
Peel escutou a sua voz a regressar-lhe desde o outro lado do ribeiro.
- Qual era o aspecto dele? .- Descontente.
- Tinha sotaque?
- Um pouco como o seu, mas mais carregado.
- Vai para casa.
Mas Peel não o queria deixar sozinho.
- Encontro-me consigo no cais e ajudo-o a atracar.
- Faz só como te digo - respondeu o estranho e desapareceu por baixo do convés.
Gabriel Allon entrou na cozinha do barco. No armário por cima do fogão a gás propano encontrou a arma, uma Glock de 9 mm semi-automática. Gabriel preferia o modelo de tamanho médio, que era ligeiramente menos preciso, devido ao cano mais curto, mas mais fácil de esconder. Puxou a culatra quadrada e pequena, colocando a primeira bala na câmara, e deixou cair a arma no bolso direito da frente do impermeável de oleado amarelado. A seguir apagou as luzes de navegação e voltou a escalar até ao convés.
Reduziu a velocidade à medida que a chalupa dava a volta ao promontório e penetrava na quietude do ribeiro. Avistou o Mercedes grande estacionado à porta do seu chalé, ouviu a porta a abrir-se e o aviso electrónico metálico a tocar. A luz interior tinha sido apagada. Um profissional. Enfiou a mão no bolso e colocou-a à volta da Glock, o dedo junto do gatilho.
O intruso atravessou o cais e desceu um lance curto de escadas de pedra em direcção ao nível da água. Gabriel tê-lo-ia reconhecido em qualquer lado: a cabeça em forma de bala, o maxilar curtido, o andar característico, como um pugilista a avançar para o centro do ringue. Por um momento, pensou em dar meia volta e regressar pelo rio abaixo, em direcção à tempestade, mas, em vez disso, largou a Glock e guiou o barco em direcção ao cais.
Shamron encetou uma visita ansiosa ao estúdio de Gabriel, parando em frente ao Vecellio.
- Então esta é a grande jogada do Isherwood, o retábulo de altar perdido de Vecellio. Imaginem, um rapaz judeu bem-comportado a trabalhar numa pintura destas. Não consigo perceber porque é que as pessoas desperdiçam tempo e dinheiro nestas coisas.
- Isso não me surpreende. O que é que fizeste ao pobre Julian para que ele me traísse?
- Paguei-lhe um almoço no Green's. O Julian nunca foi do tipo estóico.
- O que é que estás a fazer aqui?
Mas Shamron não estava preparado para mostrar as cartas.
- Saíste-te muito bem - disse. - Este chalé deve ter custado um bom dinheiro.
- Sou um dos restauradores de arte mais respeitados do mundo.
- Quanto é que o Julian te está apagar para arranjares esse Vecellio?
- Isso não é da tua conta.
- Podes ser tu a dizer-me, ou pode ser o Julian a dizer-me. Preferia ouvi-lo de ti. É capaz de ter alguma semelhança com a verdade.
- Cem mil libras.
-Já viste alguma coisa delas?
- Estamos a falar do Julian Isherwood. Sou pago quando ele vender o Vecellio, e mesmo assim vou ser provavelmente forçado a arrancar-lhas.
- E o Rembrandt?
- Um trabalho rápido para a Christie's. Não precisa de muito trabalho, uma camada lisa de verniz, talvez alguns retoques. Ainda não terminei a avaliação.
Shamron passou do Vecellio para o carrinho com os pigmentos e as tintas de óleo de Gabriel.
- Qual é a identidade que andas a utilizar hoje em dia?
- Nenhuma das tuas, se é isso que queres saber.
- Italiano?
- Sim. E tu és?
- Rudolf Heller.
- Ah, Herr Heller, um dos meus preferidos. Suponho que o negócio tenha corrido bem ultimamente para Herr Heller?
- Temos os nossos dias bons e os nossos dias maus. Gabriel ligou a série de luzes fluorescentes e apontou as luzes
a Shamron.
Shamron franziu os olhos.
- Gabriel, apaga essa coisa.
- Sei que preferes trabalhar no escuro, Herr Heller, mas quero ver a tua cara. O que queres?
- Vamos dar uma volta de carro.
Aceleraram por uma estrada estreita delimitada por sebes altas. Gabriel guiava com uma só mão e muito depressa. Quando Shamron lhe pediu para abrandar, Gabriel carregou ainda mais no acelerador. Shamron tentou castigá-lo com fumo, mas Gabriel baixou as janelas, enchendo o carro de ar gelado. Shamron assinalou a rendição atirando o cigarro para a escuridão.
- Sabes de Paris?
- Vi a televisão e li os jornais.
- Eram boas, as pessoas que fizeram Paris, melhores do que tudo o que temos visto desde há muito tempo. Eram boas da mesma maneira que o Setembro Negro era bom. Não eram tipos a atirar pedras nem rapazes que entram num mercado com sete quilos de Semtex amarrados ao corpo. Eram profissionais, Gabriel.
Gabriel concentrou-se na condução e não na cadência de rufar de tambor do discurso de Shamron. Não gostava da reacção que já lhe tinha provocado dentro de si. A pulsação acelerara e as palmas das mãos estavam húmidas.
- Tinham uma equipa grande, dez, talvez doze agentes. Tinham dinheiro, transporte, passaportes falsos. Planearam o ataque até ao último detalhe. A coisa toda terminou passados trinta segundos. Num minuto, todos os membros da equipa de assalto estavam fora da ponte. Conseguiram todos escapar. Os Franceses não conseguiram descobrir nada.
- O que é que isto tem a ver comigo?
Shamron fechou os olhos e recitou um versículo da Sagrada Escritura:
- "E o inimigo saberá que sou o Senhor quando puder abater a minha vingança sobre ele."
- Ezequiel - disse Gabriel.
- Acredito que, se uma pessoa matar alguém do meu povo, devo matá-la em retribuição. Acreditas nisso, Gabriel?
- Costumava acreditar.
- Melhor ainda, acredito que se um rapaz pegar numa pedra para a atirar a mim, devo dar-lhe um tiro antes mesmo dela lhe chegar a sair da mão.
O isqueiro de Shamron cintilava no escuro, criando-lhe sombras nas fissuras da cara.
- Talvez eu seja só uma relíquia. Lembro-me de me comprimir contra o peito da minha mãe enquanto os Árabes incendiavam e saqueavam a nossa povoação. Os Árabes mataram o meu pai durante a greve geral em trinta e sete. Alguma vez te contei isso?
Gabriel manteve os olhos amarrados à estrada sinuosa da Cornualha e não disse nada.
- Também mataram o teu pai. No Sinai. E a tua mãe, Gabriel? Quanto tempo mais viveu depois da morte do teu pai? Dois anos? Três?
Na verdade, tinha sido um pouco mais do que um ano, pensou Gabriel, recordando o dia em que colocaram o seu corpo dominado pelo cancro numa vertente com vista para o vale Jezreel.
- Onde é que queres chegar?
- Onde quero chegar é que a vingança é boa. A vingança é saudável. A vingança é purificadora.
- A vingança apenas leva a mais mortes e a mais vingança. Por cada terrorista que matamos, existe outro rapaz à espera de avançar e pegar na pedra ou na arma. São como os dentes dos tubarões: parte-se um e nasce outro no seu lugar.
- Então não devemos fazer nada? É isso que queres dizer, Gabriel? Devemos afastar-nos e torcer as mãos de desespero enquanto estes sacanas matam o nosso povo?
- Sabes que não é isso que estou a dizer.
Shamron calou-se, ao mesmo tempo que o Mercedes passava como um relâmpago por uma aldeia escurecida.
- Não é ideia minha, sabes. É do primeiro-ministro. Quer a paz com os Palestinianos, mas não pode fazer a paz se os extremistas estiverem a atirar tomates ao palco a partir do balcão.
- Desde quando é que te tornaste assim tão pacifista, Ari?
- As minhas opiniões são irrelevantes. Sou apenas um funcionário da secreta que faz o que lhe mandam.
- Tretas.
- Muito bem, se queres a minha opinião, acredito que não vamos ficar nem um pouco mais seguros depois de um acordo de paz do que antes dele. Se queres a minha opinião, acredito que o fogo no coração palestiniano nunca se extinguirá antes de os judeus serem empurrados para o mar. E digo-te uma outra coisa, Gabriel. Preferia muito mais combater um inimigo declarado do que um inimigo que encontra utilidade em passar-se por amigo.
Shamron esfregou o ponto na cana do nariz onde os elegantes óculos de tartaruga o estavam a apertar. Tinha envelhecido; Gabriel podia vê-lo nas extremidades dos seus olhos, quando tirou os pequenos óculos. Nem mesmo o grande Shamron era imune à acção devastadora do tempo.
- Sabes o que se passou em Ama? - perguntou Shamron.
- Li acerca disso nos jornais. Também sei o que aconteceu na Suíça.
- Ah, a Suíça - disse Shamron suavemente, como se a Suíça fosse um romance infeliz que preferisse esquecer. - Uma operação simples, certo? Pôr escutas no apartamento de um extremista islâmico de alto estatuto. Nada de especial. Nos velhos tempos, éramos capazes de fazer uma coisa destas com os olhos fechados. Coloca-se o aparelho e sai-se antes que alguém perceba que lá se esteve. Mas estes idiotas esquecem-se que os Suíços são as pessoas mais vigilantes do planeta. Uma velhota faz um telefonema e a equipa inteira fica nas mãos da polícia suíça.
- Que infelicidade.
- E eu estou no voo seguinte para Zurique a implorar aos nossos irmãos suíços para não o tornarem público.
- Gostava de ter visto isso.
Shamron emitiu uns quantos grunhidos de riso. Gabriel apercebeu-se de que, de um modo estranho, tinha sentido falta do velho. Há quanto tempo não se viam? Oito anos? Não, quase nove. Shamron tinha vindo a Viena a seguir ao atentado à bomba, para ajudar a limpar a trapalhada e assegurar-se de que a verdadeira razão para a presença de Gabriel na cidade permanecia secreta. Gabriel viu Shamron uma vez mais depois disso: quando regressou a Telavive para lhe dizer que queria sair.
- Não tenho a certeza onde é que correu mal - disse Shamron. - Toda a gente acha que agora, que a paz está próxima, já não há mais ameaças à nossa sobrevivência. Não percebem que a paz só vai tornar os fanáticos mais desesperados. Não percebem que vamos precisar de espiar os nossos amigos árabes tão de perto como quando estavam abertamente empenhados na nossa destruição.
- O trabalho de um espião nunca está feito.
- Mas, hoje em dia, todos os rapazes espertos fazem o serviço obrigatório nas Forças Armadas Israelitas e depois pisgam-se como doidos. Querem fazer dinheiro e falar ao telemóvel a partir dos cafés de Ben Yehuda Street. Costumávamos receber apenas os melhores. Como tu, Gabriel. Agora recebemos os que são demasiado estúpidos ou preguiçosos para triunfar no mundo real.
- Mudem as vossas tácticas de recruta.
- Já o fiz, mas agora preciso de alguém. Alguém que possa chefiar uma operação na Europa sem a permissão do governo em causa e sem que ela acabe na primeira página do The Sunday Times. Preciso de ti, Gabriel. Preciso de um príncipe. Preciso que faças para o Departamento o que estás a fazer naquele Vecellio. O nosso serviço foi danificado. Preciso que me ajudes a restaurá-lo.
- Quinhentos anos de porcaria e negligência consigo consertar. Dez anos de incompetência institucional é um assunto diferente. Encontra outra pessoa para descobrir os vossos terroristas e consertar o vosso Departamento. Já estou sob contrato.
Shamron tirou os óculos, respirou para cima das lentes, poliu-as com o cachecol.
- Foi o Tariq, já agora - disse, inspeccionando os óculos sob a luz fraca do painel de instrumentos. - Mencionei isso, Gabriel? Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris. Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel pisou o travão a fundo e os óculos de Shamron saltaram contra o pára-brisas.
Gabriel atravessou o Lizard, a seguir passou a toda a velocidade por uma planície desolada de erva varrida pelo vento, na direcção do mar. Parou num parque de estacionamento perto do farol e desligou o motor. O carro estremecia com o vento. Conduziu Shamron por um caminho escurecido em direcção à falésia. A rebentação das ondas preenchia o ar. Uma ave marinha gritou-lhes. Quando a sirene do farol grunhiu, Shamron voltou-se e retesou-se como se se estivesse a preparar para uma execução silenciosa.
As luzes brilhavam no pequeno café à beira da falésia. O pessoal estava a tentar fechar, mas, com charme, Gabriel conseguiu extrair-lhes umas omeletas e um bule de chá. Shamron, desempenhando o papel de Herr Heller, utilizou um lenço de papel húmido para tirar, esfregando, a poeira do caminho dos caros mocassins de camurça. A rapariga que os serviu usava tantos brincos e pulseiras que soava como um espanta-espíritos quando se mexia. Havia algo de Leah nela - Gabriel conseguia vê-lo, Shamron conseguia vê-lo também.
- Porque é que pensas que foi o Tariq?
- Ouviste falar da rapariga? A rapariga americana? A que ele utilizou para cobertura e que depois assassinou a sangue-frio? O Tariq sempre gostou de mulheres. É uma pena que todas tenham acabado da mesma maneira.
- É tudo o que tens? Uma rapariga americana morta? Shamron contou-lhe da cassete de vídeo, do empregado que fez
um telefonema misterioso um minuto antes de o embaixador e a mulher entrarem no carro.
- O nome dele é Mohammed Azziz. Disse à companhia de catering que era argelino. Não é um empregado e não é argelino. É membro da organização do Tariq desde há dez anos. Tem desempenhado um papel secundário em várias das operações do Tariq.
Shamron calou-se quando a rapariga das pulseiras se aproximou da mesa e juntou água quente ao bule de chá. Quando se afastou, ele perguntou:
- Tens uma miúda?
Não conhecia limites no que dizia respeito a perguntas pessoais. Nenhum recanto da vida de um homem, amigo ou inimigo, estava fora de alcance.
Gabriel abanou a cabeça e ocupou-se com o chá - leite no fundo, chá no cimo, ao estilo inglês. Shamron despejou três pacotes de açúcar na chávena, agitou com violência e insistiu com as perguntas.
- Nenhuns pequenos amores? Nenhumas mulheres promíscuas que atraias para o barco para um cruzeiro de prazer?
- Nenhuma mulher no barco. Só o Peel.
- Ah, sim, o Peel. O teu vigia.
- O meu vigia.
- Posso perguntar porque não?
- Não, não podes.
Shamron franziu as sobrancelhas. Estava acostumado a acesso desimpedido à vida pessoal de Gabriel.
- Então e esta miúda?
Shamron rodou a cabeça na direcção da empregada.
- Não consegue tirar os olhos de cima de ti. Não te interessa de maneira nenhuma?
- É uma criança - respondeu Gabriel.
- Tu és uma criança.
- Estou a chegar aos cinquenta.
- Pareces ter quarenta.
- Isso é porque já não trabalho para ti. Shamron sacudiu omeleta dos lábios.
- Talvez não arranjes uma outra mulher por teres medo que o Tariq a tente matar também.
Gabriel olhou para cima como se tivesse ouvido um tiro.
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena. Sei que te culpas, Gabriel. Se não fosse por Tunes, a Leah e o Dani nunca teriam estado em Viena.
- Cala-te...
- Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Gabriel levantou-se, atirou uma nota amarrotada de dez libras para cima da mesa e saiu. Shamron sorriu em sinal de desculpa para a rapariga e seguiu-o suavemente.
Na base da falésia, na pequena praia de areia cinzenta em Polpeor Cove, ficavam as ruínas de um posto de nadador salva-vidas. Uma Lua brilhante e húmida resplandecia através das nuvens despedaçadas e o mar retinha o reflexo da luz. Gabriel enfiou as mãos nos bolsos do casaco, pensando em Viena. A tarde antes do atentado. A última vez em que fizera amor com Leah. A última vez em que fizera amor com alguém... Leah insistira em deixar as persianas da janela do quarto abertas, apesar dela dar para o pátio do apartamento e Gabriel estar convencido de que os vizinhos os estavam a observar. Leah esperava que estivessem. Encontrava justiça perversa na ideia de judeus - até mesmo judeus secretos, a viver como um restaurador de arte italiano e a namorada suíça - à procura de prazer numa cidade onde tinham sofrido tanta perseguição. Gabriel recordou-se do calor húmido do corpo de Leah, o sabor a sal na sua pele. A seguir tinham dormido. Quando acordou, encontrou-a sentada na borda da cama, a observá-lo.
- Quero que este seja o teu último trabalho. Não consigo aguentar mais isto. Quero que deixes o Departamento e faças alguma coisa normal. Podemos ficar na Europa e podes trabalhar apenas como restaurador. Promete-me, Gabriel.
Shamron juntou-se-lhe na praia. Gabriel olhou para cima.
- Porque é que voltaste para o Departamento? Porque é que
não foste capaz de ficar em Tiberíades a viver a vida? Porque é que voltaste a correr quando te chamaram?
- Demasiados assuntos pendentes. Nunca conheci ninguém que deixasse o mundo da secreta com todos os seus assuntos em ordem. Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas. Também não conseguia mais aguentar ver o alsaciano e o Lev a destruir o meu serviço.
- Porque é que mantiveste o Lev?
- Porque fui forçado a manter o Lev. O Lev tornou claro ao primeiro-ministro que não sairia sem fazer barulho se eu o tentasse afastar. A última coisa que o primeiro-ministro queria era uma divisão das Operações paralisada. Teve medo e tornou o Lev intocável.
- É uma serpente.
- O primeiro-ministro?
- O Lev.
- Uma serpente venenosa que, no entanto, precisa de ser manuseada com cuidado. Quando o alsaciano se demitiu, o Lev julgou ser o próximo na linha de sucessão. O Lev já não é um homem novo. Consegue sentir as chaves da sala do trono a fugirem-lhe pelos dedos. Se eu chegar e partir depressa, o Lev talvez ainda possa ter a sua oportunidade. Se servir o meu mandato por completo, se resistir e demorar muito tempo a morrer, então talvez o primeiro-ministro escolha um príncipe mais novo como sucessor. Escusado será dizer que não incluo o Lev nos meus apoiantes do Boulevard do Rei Saul.
- Nunca gostou de mim.
- Isso é porque tinha inveja. Inveja dos teus feitos profissionais. Inveja do teu talento. Inveja do facto de ganhares três vezes mais com o teu emprego de fachada do que ele ganhava com o seu salário do Departamento. Meu Deus, até tinha inveja da Leah. És tudo o que o Lev queria ver nele próprio e odiava-te por isso.
- Queria fazer parte da equipa que ia eliminar o Setembro Negro.
- O Lev é brilhante, mas nunca teve estofo de campo. O Lev é um homem para a sede.
- Sabe que estás aqui?
- Não sabe nada - respondeu Shamron, friamente. - E se decidires regressar, também não saberá nada sobre isso. Lidarei contigo pessoalmente, tal e qual como nos velhos tempos.
- Matar o Tariq não vai trazer de volta o Dani. Ou a Leah. Não aprendeste nada? Enquanto estávamos ocupados a matar os membros do Setembro Negro, não reparámos que os Egípcios e os Sírios se estavam a preparar para nos empurrar para o mar. E por pouco não conseguiam. Matámos treze membros do Setembro Negro e isso não trouxe de volta nem um dos rapazes que massacraram em Munique.
- Sim, mas soube bem.
Gabriel fechou os olhos: um edifício de apartamentos na Piazza Annabaliano de Roma, um vão de escada escurecido, um tradutor palestiniano penosamente magro, chamado Wadal Abdel Zwaiter. O chefe de operações em Itália do Setembro Negro. Lembrou-se do som de um vizinho a praticar ao piano - uma peça bastante entediante que não reconheceu - e do baque repugnante das balas a rasgar tecidos e a partir ossos. Um dos tiros de Gabriel falhou o corpo de Zwaiter e estilhaçou uma garrafa de vinho de figo, escuro, roxo e castanho, a escorrer pelo chão de pedra, a misturar-se com o sangue do moribundo.
Abriu os olhos e Roma tinha desaparecido.
- Sabe bem durante um tempo - disse. - Mas depois começamos a pensar que somos tão maus como as pessoas que estamos
a matar.
- A guerra deixa sempre marcas nos soldados.
- Quando olhamos para os olhos de um homem enquanto lhe despejamos chumbo no corpo, sabe mais a assassinato do que a guerra.
- Não é assassinato, Gabriel. Nunca foi assassinato.
- O que te leva a crer que consegues descobrir o Tariq?
- Porque descobri alguém que trabalha para ele. Alguém que acredito que nos irá levar ao Tariq.
- Onde é que ele está?
- Aqui em Inglaterra.
- Onde?
- Londres, o que me apresenta um problema. Segundo o nosso acordo com os serviços secretos britânicos, estamos obrigados a informá-los quando actuamos no seu solo. Preferia não respeitar esse acordo, já que os Britânicos vão informar os amigos em Langley, e Langley vai pressionar-nos a parar com isso, para bem do processo de paz.
- Tens mesmo um problema.
- E é por isso que preciso de ti. Preciso de alguém que possa chefiar uma operação em Inglaterra sem levantar suspeitas entre as pessoas. Alguém que consiga executar uma simples operação de segurança sem a lixar.
- Vigio-o e ele leva-me até ao Tariq?
- Parece simples, não é?
- Nunca é assim tão simples, Ari. Especialmente quando estás envolvido.
Gabriel entrou com cuidado no chalé e atirou o casaco para cima do sofá-cama na sala de estar. De imediato, sentiu o Vecellio a puxá-lo. Era sempre assim. Nunca saía de casa sem passar primeiro mais um momento em frente ao trabalho, nunca regressava a casa sem ir directamente para o estúdio, para olhar fixamente para o quadro. Era a primeira coisa que via todas as tardes quando acordava, a última coisa que via todas as manhãs antes de ir dormir. Era como que uma obsessão, mas Gabriel acreditava que apenas um obcecado podia ser um bom restaurador. Ou um bom assassino, já agora,
Subiu as escadas para o estúdio, ligou a luz fluorescente, olhou fixamente para o quadro. Meu Deus, estava nisto há já quanto tempo? Seis meses? Sete? Vecellio provavelmente terminara o retábulo de altar numa questão de semanas. Gabriel iria demorar dez vezes o mesmo para o reparar.
Pensou em tudo o que tinha feito até agora. Duas semanas a estudar o próprio Vecellio. Vida, influências, técnicas. Um mês a analisar A Adoração dos Pastores, com vários objectos de equipamento de alta tecnologia: o microscópio Wild para examinar a superfície, luz
ultravioleta para expor retoques anteriores. Depois da avaliação, quatro meses a retirar o verniz sujo e amarelado. Não era como despir uma mesa de café; era trabalho entediante e moroso. Gabriel, primeiro, tinha de criar o solvente perfeito, um que dissolvesse o verniz mas deixasse a tinta intacta. Molhava um esfregão caseiro de algodão no solvente e a seguir torcia-o por cima da superfície do quadro até ficar manchado de verniz sujo. A seguir fazia outro esfregão e começava tudo de novo. Molhar... torcer... deitar fora. Molhar... torcer... torcer... deitar fora. Como esfregar o convés de um navio de batalha com uma escova de dentes. Num dia bom, conseguia retirar alguns centímetros quadrados de verniz sujo.
Agora tinha iniciado a fase final do trabalho: retocar aquelas porções do retábulo de altar danificadas ou destruídas ao longo dos séculos. Era trabalho complexo e meticuloso, que lhe exigia passar várias horas de cada noite com a cara encostada ao quadro, a lupa sobre os olhos. O objectivo era tornar o retoque invisível a olho nu. As pinceladas, cores e textura tinham todas de corresponder ao original. Se a tinta envolvente estava estalada, Gabriel pintava falhas falsas no retoque. Se o artista tinha criado uma tonalidade singular de azul lápis-lazúli, Gabriel era capaz de passar várias horas a misturar pigmentos na paleta, a tentar duplicá-la. A missão era chegar e partir sem ser notado. Deixar o quadro como o tinha encontrado, mas restaurado à glória original, limpo de impureza.
Precisava de dormir, mas precisava mais de tempo com o Vecellio. Shamron tinha despertado as suas emoções, aguçado os sentidos. Sabia que seria bom para o trabalho. Ligou a aparelhagem, aguardou que a música começasse, a seguir enfiou os Binomags na cabeça e pegou na paleta, ao mesmo tempo que as primeiras notas de La Bohème o inundavam. Colocou uma pequena quantidade de Mowolith 20 na paleta, acrescentou um pouco de pigmento seco, diluiu a mistura com diluente até a consistência parecer a ideal. Uma porção da bochecha da Virgem tinha-se lascado. Gabriel andava a esforçar-se para reparar o dano há mais de uma semana. Levou o pincel à tinta, baixou a viseira de ampliação nos Binomags
e tocou gentilmente com a ponta do pincel na superfície do quadro, imitando com cuidado as pinceladas de Vecellio. Rapidamente, ficou totalmente embrenhado no trabalho e em Puccini.
Após duas horas, Gabriel tinha retocado uma área com cerca de metade do tamanho do botão da camisa. Levantou a viseira nos Binomags e esfregou os olhos. Preparou mais tinta na paleta e recomeçou.
Após mais uma hora, Shamron intrometeu-se nos seus pensamentos.
Foi o Tariq que matou o embaixador e a mulher em Paris.
Se não fosse pelo velho, Gabriel nunca se teria tornado restaurador de arte. Shamron quisera um disfarce a toda a prova, algo que permitisse a Gabriel viver e viajar legitimamente na Europa. Gabriel tinha sido um pintor dotado - estudara arte num instituto de prestígio em Telavive e passara um ano a estudar em Paris -, por isso Shamron enviou-o para Veneza para estudar restauro. Quando terminou a aprendizagem, Shamron tinha recrutado Isherwood para lhe encontrar trabalho. Se Shamron precisava de enviar Gabriel para Genebra, Isherwood utilizava os seus contactos para encontrar um quadro para Gabriel restaurar. A maior parte do trabalho era para colecções privadas, mas por vezes trabalhava para museus pequenos e para outros negociantes. Gabriel era tão talentoso que depressa se transformou num dos restauradores de arte mais procurados do mundo.
Às 2 horas da manhã, a cara da Virgem enevoava-se diante dos olhos de Gabriel. O pescoço parecia estar a arder. Afastou a viseira, esfregou a tinta da paleta, guardou as suas coisas. A seguir, desceu e caiu na cama, ainda vestido, e tentou dormir. Não serviu de nada. Shamron estava-lhe outra vez na cabeça.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo.
Gabriel abriu os olhos. Lentamente, pedaço a pedaço, camada a camada, voltou tudo, como se estivesse retratado num qualquer fresco obsceno pintado no tecto do seu chalé: o dia em que Shamron o recrutou, o treino na Academia, a operação Setembro Negro, Tunes, Viena... Quase conseguia ouvir o léxico louco de origem hebraica do sítio: kidon, katsa, sayan, bodel, bat leveyha.
Todos deixamos para trás bocados de fios soltos. Operações antigas, inimigos antigos. Puxam-te, como recordações de amantes antigas.
Maldito sejas, Shamron, pensou Gabriel. Arranja outra pessoa.
Ao amanhecer, pôs os pés no chão, levantou-se da cama e colocou-se em frente à janela. O céu estava baixo e escuro e pejado de remoinhos de chuva. Para lá do cais, na água agitada à frente da popa da chalupa, um grupo de gaivotas discutia ruidosamente. Gabriel foi até à cozinha e fez café.
Shamron deixara atrás um dossiê: uma pasta de papel manilha vulgar, sem marca, uma nódoa de café, género teste Rorschach, na contracapa, junto a uma mancha de cinza de cigarro parecida com um cometa. Gabriel abriu-o devagar, como se receasse que explodisse, e levantou-o com suavidade até ao nariz - a sala dos ficheiros no Gabinete de Pesquisa, sim, era isso. Anexada ao interior da capa, estava uma lista com todos os funcionários que já tinham requisitado o dossiê. Eram todos pseudónimos do Departamento e não tinham qualquer significado para si - excepto o último nome: Rom, o nome de código interno para chefe do serviço. Virou a primeira página e olhou para o nome do sujeito, a seguir folheou uma série de fotos granulosas de vigilância.
Leu-o uma vez rapidamente, a seguir serviu-se de mais café e voltou a lê-lo, mais devagar. Tinha a estranha sensação de estar a atravessar os quartos da sua infância - tudo era familiar mas ligeiramente diferente, um pouco mais pequeno do que se recordava, talvez um pouco mais esfarrapado. Como sempre, ficou surpreendido com as semelhanças entre a arte de restauro e a arte de matar. A metodologia era precisamente a mesma: estudar o alvo, tornar-se como ele, fazer o trabalho, desaparecer sem deixar rasto. Podia ter estado a ler um texto erudito acerca de Francesco Vecellio em vez de um dossiê do Departamento sobre um terrorista chamado Yusef al-Tawfiki.
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas finalmente soltar-te da Leah e continuar com a tua vida.
Quando o terminou pela segunda vez, abriu o armário por baixo do lava-loiça e tirou um estojo de aço inoxidável. Lá dentro estava uma arma: uma Beretta de calibre .22 semiautomática, especialmente equipada com um cano de comprimento de competição. A arma preferida do Departamento para assassinatos - silenciosa, rápida, de confiança. Gabriel premiu a mola e, com o polegar, enfiou os oito cartuchos no carregador. As munições continham uma pequena carga de pólvora, o que tornava o disparo da Beretta extremamente silencioso. Quando Gabriel matou o agente do Setembro Negro em Roma, os vizinhos tomaram os disparos mortíferos por foguetes. Meteu o carregador na coronha e puxou a culatra, metendo na câmara o primeiro cartucho. Tinha afinado a mola do mecanismo de recuo para compensar a pouca pólvora dos cartuchos. Ergueu a arma e espreitou pela mira. Uma imagem surgiu à sua frente: pele verde-azeitona claro, olhos castanhos suaves, cabelo preto curto.
Foi o Tariq que fez o Sena correr vermelho com o sangue do meu povo. O Tariq, o teu velho amigo.
Gabriel baixou a arma, fechou o dossiê, carregou nos olhos com a parte de trás dos pulsos. Tinha feito uma promessa a si mesmo depois do desastre em Viena. Ia deixar o Departamento para sempre: nenhum trabalho ocasional, nenhuma viagem ao passado, nenhum contacto com a sede, ponto final parágrafo. Ia restaurar os seus quadros e medir forças com o mar e tentar esquecer que Viena tinha alguma vez acontecido. Tinha visto demasiados veteranos a serem puxados, sempre que o Departamento tinha um trabalho horrível e ninguém para o fazer - demasiados homens a nunca conseguirem deixar realmente para trás o mundo dos serviços secretos.
Mas e se fosse verdade? E se o rapaz pudesse de facto levá-lo até Tariq?
Talvez se me ajudares a apanhar o Tariq, consigas perdoar-te pelo que aconteceu em Viena.
Por instinto, deixou-se ir até ao andar de cima, ao estúdio, e ficou parado em frente ao Vecellio, a inspeccionar o trabalho daquela noite. Aprovou-o. Pelo menos alguma coisa boa tinha saído da visita de Shamron. Sentiu um remorso angustiante. Se fosse trabalhar para Shamron, teria de deixar o Vecellio para trás. Seria um estranho para o quadro quando regressasse. Seria como começar de
novo. E o Rembrandt? O Rembrandt iria devolver à Christie's, com as mais profundas desculpas profissionais. Mas o Vecellio não. Tinha investido demasiado tempo - colocado tanto de si mesmo nele para deixar que outra pessoa lhe tocasse agora. Era o seu quadro. Julian teria simplesmente de esperar.
Desceu, apagou o gás, guardou a Beretta, enfiou o dossiê de Shamron numa gaveta. Ao sair para o exterior, uma rajada de vento húmido deixou-o de joelhos. O ar estava opressivamente frio, a chuva na sua cara como grãos de chumbo. Sentiu-se como se estivesse a ser puxado de um sítio quente e seguro. As adriças batiam contra o mastro da chalupa. As gaivotas levantaram voo da superfície do rio, gritaram em uníssono, voltaram-se para o mar, asas brancas a bater de encontro ao cinzento das nuvens. Gabriel pôs o capuz por cima da cabeça e começou a andar.
À porta da loja da aldeia estava um telefone público. Gabriel marcou o número do Hotel Savoy e pediu para o ligarem ao quarto de Rudolf Heller. Imaginava sempre a figura de Shamron ao telefone: a cara fendida, as mãos de cabedal, a expressão angustiada, um pedaço de tela em branco sobre o sítio onde o coração poderia estar. Quando Shamron atendeu, os dois homens trocaram gentilezas em alemão durante um momento, depois passaram para inglês. Gabriel partia sempre do princípio de que as linhas telefónicas estavam a ser vigiadas, por isso, quando falava com Shamron da operação, utilizava um código rude:
- Um projecto destes vai necessitar de uma grande quantidade de capital. vou precisar de dinheiro para pessoal, espaço para escritório, arrendamento de apartamentos, um fundo de maneio para despesas inesperadas.
- Garanto-te, o capital não será um problema.
Gabriel levantou a questão de Lev e de como manter a operação no seu segredo:
- Mas, se a memória não me falha, o banco onde no passado obtiveste financiamento para estes empreendimentos, está agora sob o controlo dos teus concorrentes. Se abordares agora o banco
para financiamento, corres o risco de alertar a concorrência para as tuas intenções.
- Na verdade, tenho outra fonte de capital, que me vai permitir angariar o dinheiro para o projecto sem o conhecimento da concorrência.
- Se aceitar a tua proposta, exigiria autoridade completa para executar o empreendimento como achar apropriado. Manter o projecto no segredo da concorrência implicará a utilização de fornecedores independentes e demais pessoal por conta própria. Essas pessoas custam dinheiro. vou necessitar da autoridade independente para gastar dinheiro e utilizar recursos como considerar necessário.
- Tem-la, embora o controlo operacional do empreendimento na globalidade permaneça comigo em Genebra.
- De acordo. Depois há a questão da minha retribuição.
- Receio que estejas em posição de determinares o teu preço.
- Cento e cinquenta mil libras. Se o trabalho durar mais de seis meses, pagar-me-ão cem mil libras adicionais.
- Feito. Então, temos acordo?
- Informar-te-ei ao final do dia.
Mas foi Peel, não Shamron, quem recebeu a notícia primeiro.
Ao final dessa tarde, Peel ouviu barulhos no cais. Levantou a cabeça dos trabalhos da escola e espreitou para fora da janela. Ali, no crepúsculo moribundo, viu o estranho no convés da chalupa, vestido com um oleado amarelo e um gorro de lã preto puxado tão para baixo que Peel mal lhe conseguia ver os olhos. Estava a arrumar a chalupa: a descer as velas, a retirar as antenas, a fechar à chave as tampas das escotilhas. A cara tinha uma expressão de determinação resoluta que Peel nunca vira antes. Pensou em correr até lá abaixo para ver se havia alguma coisa errada, mas o comportamento do estranho dava a entender que não estava com disposição para visitas.
Após uma hora, o estranho desapareceu no interior do chalé. Peel regressou aos trabalhos da escola, apenas para ser novamente interrompido uns minutos mais tarde, desta vez pelo som do MG do estranho a começar a trabalhar. Peel correu até à janela, a tempo
de ver o carro a rodar lentamente pelo caminho acima, a chuva a flutuar através dos feixes dos faróis. Ergueu a mão, mais um gesto de rendição do que um aceno. Por um momento, pensou que o estranho não o tinha visto. A seguir, os faróis piscaram uma vez e o pequeno MG desapareceu.
Peel ficou à janela até o som do motor se desvanecer. Uma lágrima escorreu-lhe pela bochecha. Afastou-a com um soco. Os rapazes crescidos não choram, disse a si mesmo. O estranho nunca choraria por mim. Não vou chorar por ele. No andar de baixo, a mãe e Derek estavam outra vez a discutir. Peel deitou-se e colocou a almofada à volta das orelhas.
HOLBORN, LONDRES
A Looking Glass Comunications, um conglomerado internacional editorial de múltiplos biliões de dólares, tinha sede num moderno edifício de escritórios com vista para New Square. Era propriedade de um tirano com um metro e oitenta de altura, vinte centímetros de largura e cento e trinta e cinco quilos, chamado Benjamin Stone. A partir do apartamento topo de gama luxuriosamente mobilado, Stone dominava um império de empresas que se estendia do Médio Oriente aos Estados Unidos. Era dono de dúzias de jornais e revistas, tal como de uma participação maioritária na venerável editora de Nova Iorque, Horton & McLawson. Mas a jóia da coroa de Stone era o tablóide Daily Sentinel, o terceiro jornal nacional com maior tiragem da Grã-Bretanha. Entre os jornalistas de Fleet Street, o Daily Sentinel era conhecido como Daily Stone, pois não era invulgar o jornal publicar duas histórias num único dia sobre as actividades empresariais e filantrópicas de Stone.
O que os seus concorrentes não sabiam era que Stone, um judeu húngaro de nascimento, era também o sayan mais valioso de Ari Shamron. Quando Shamron precisava de inserir um katsa em território hostil em cima da hora, podia voltar-se para Stone e o Daily Sentinel para cobertura. Quando um antigo katsa descontente tentou vender um livro sensacionalista sobre o Departamento, Shamron voltou-se para Stone e a sua editora de Nova Iorque para o deitarem abaixo. Quando Shamron queria introduzir uma história na imprensa ocidental, tinha simplesmente de pegar num telefone e sussurrar ao ouvido de Benjamin Stone.
Mas a contribuição mais valiosa de Stone para o Departamento era o dinheiro. Entre os funcionários superiores no Boulevard do Rei Saul, os instintos caritativos valeram-lhe a alcunha de Hadassah. Na verdade, o dinheiro saqueado dos fundos de pensão das empresas de Stone era utilizado para financiar as operações do Departamento há anos. Sempre que Shamron necessitava de fundos, Stone fazia circular dinheiro por uma série de sociedades fantoches e empresas-veículo, até chegar a uma das contas para operações de Shamron em Genebra.
Stone cumprimentou Shamron naquela noite à entrada garrida do átrio.
- Foda-se, com os diabos! - bradou, no seu típico rugido de barítono. - Rudolf, meu amor! Não percebi que estavas por cá. Porque é que não me disseste que vinhas? Tinha arranjado alguma coisa apropriada. Um banquete. Um sacrifício humano.
Stone pôs a pata gigantesca no ombro de Shamron.
- Sacana traidor! Tens sorte em eu estar cá. Maravilhoso! Sensacional! Vem. Senta-te. Come. Bebe.
Stone puxou Shamron até à sala de estar. Tudo era tamanho gigante, para acomodar a massa de Stone: cadeiras e sofás fundos de cabedal trabalhado à mão, um tapete vermelho grosso, otomanas grandes e mesas largas e baixas cobertas de flores e de bugigangas caras, dadas por outros homens ricos. Stone forçou Shamron a sentar-se numa cadeira como se estivesse prestes a interrogá-lo. Andou a passos largos até à janela, carregou num botão e as cortinas pesadas abriram-se. Um lavador de janelas estava a trabalhar do outro lado do vidro. Stone bateu, com uma pancada seca, com o nó gordo dos dedos no vidro e fez um aceno ao lavador de janelas como se fosse um golpe de caraté.
- Sou dono e senhor de tudo o que vês, Herr Heller - anunciou Stone, a admirar a vista. - Este homem lava-me a janela todos os dias. Não suporto uma janela suja. Consegues? Se o mandasse saltar, fá-lo-ia e agradecer-me-ia mais tarde pela sugestão. Não o faria por lealdade. Ou respeito. Ou amor. Fá-lo-ia porque
teria medo de não o fazer. O medo é a única emoção que realmente interessa.
O lavador de janelas terminou depressa e desceu o edifício em jeito de rappel. Stone arrastou-se pesadamente pela sala e abriu o frigorífico por trás do bar. Tirou duas garrafas de champanhe nunca abria apenas uma - e voltou a fechar a porta com força, como se estivesse a dar uma joelhada nos tomates a um concorrente. Tentou abrir uma das garrafas, mas os dedos grossos não estavam feitos para a tarefa de descascar papel de alumínio e torcer pedaços de arame. Por fim, atirou a cabeça para trás e rugiu:
- Angelina!
Uma empregada portuguesa aterrorizada entrou na sala, os olhos ligeiramente desviados.
- Leva-as - ordenou Stone, segurando as garrafas pelo gargalo, como se estivesse a estrangulá-las. - Tira as rolhas, põe-nas em gelo. Traz comida, Angelina. Pilhas de comida. Caviar, salmão fumado e não te esqueças dos morangos. Morangos grandes como o caraças. Grandes como as mamas de uma adolescente.
Stone deixou-se cair no canto de um sofá e pôs os pés em cima de uma otomana. Tirou a gravata, enrolou-a numa bola e atirou-a por cima do ombro, para o chão. Tinha vestida uma camisa às riscas, feita à mão a partir de algodão egípcio, e suspensórios vermelho-escuros. Os botões de punho de ouro eram quase tão grandes como o mostrador do relógio de pulso em ouro maciço. Angelina regressou à sala, depositou a bandeja de comida e fugiu. Stone deitou champanhe em jlutes do tamanho de copos de cerveja. Agarrou num morango do tamanho de uma ameixa, molhou-o no vinho e devorou-o. Pareceu engoli-lo inteiro. Shamron sentiu-se de súbito como Alice. Tudo era demasiado grande: os copos, os morangos, as fatias grossas de salmão fumado, a televisão de ecrã gigante a passar em silêncio uma estação americana de notícias financeiras, Stone e a sua voz ridícula.
- Vamos deixar-nos de fingimentos, Herr Heller?
Shamron acenou com a cabeça. Um técnico da secção do Departamento de Londres já varrera o apartamento naquela noite e não encontrara aparelhos de escuta.
- Ari, meu amigo!
Stone mergulhou a ponta de uma torrada numa taça de caviar. Shamron ficou a ver trezentos dólares de beluga a desaparecerem pela goela de Stone abaixo. Durante vinte minutos, agraciou Shamron com histórias dos seus empreendimentos comerciais, das actividades caritativas, do recentíssimo encontro com o príncipe de Gales, da vida amorosa activa e diversa. Parou apenas uma vez, para gritar a Angelina para trazer outra tina de caviar. Shamron estava sentado com as pernas cruzadas, a ver as bolhas a subir no seu champanhe. De vez em quando, murmurava Que interessante ou Isso é fascinante.
- Como estão os teus filhos? - perguntou Stone abruptamente, mudando inesperadamente de direcção.
Shamron tinha um filho ao serviço das Forças Armadas Israelitas, na zona de segurança do Sul do Líbano, e uma filha que se tinha mudado para a Nova Zelândia, tornado nativa e nunca lhe respondia aos telefonemas.
- Óptimos - respondeu Shamron. - E tu? Como estão os rapazes?
- Tive de despedir o Christopher a semana passada.
- Ouvi dizer.
- Os meus concorrentes divertiram-se muito à minha custa, mas achei que isso demonstrou coragem. Todos os empregados da Looking Glass, por mais baixos que estejam na ordem das coisas, agora sabem que sou um sacana duro, mas justo.
- Foi um bocado severo por chegar a uma reunião cinco minutos atrasado.
- O princípio, Ari. O princípio. Devias utilizar algumas das minhas técnicas na tua loja.
- E o Jonathan?
- Foi trabalhar para a concorrência. Disse-lhe para esquecer a herança. Respondeu que a tinha esquecido há muito.
Shamron abanou a cabeça perante os estranhos comportamentos dos filhos.
- Então o que te traz à minha porta, Ari Shamron? Por certo,
comida, não. Não tocaste no caviar. Ou no champanhe. Não fiques apenas aí sentado. Fala, Ari.
- Preciso de dinheiro.
- Consigo ver isso, não consigo? Não sou propriamente um idiota chapado. Estás praticamente de boné na mão. É para quê? Partilha, Ari. Tenho direito a isso, depois de tudo o que tenho feito por ti.
- Tem a ver com o incidente em Paris - respondeu Shamron. - Receio que seja tudo o que posso dizer.
- Então, Ari. Consegues fazer melhor do que isso. Dá-me alguma coisa em que possa pendurar o casaco.
- Preciso dele para apanhar os terroristas que o causaram.
- Assim está melhor. Quanto desta vez?
- Meio milhão.
- De que sabor?
- Dólares.
- Pagamento a prestações ou pagamento a pronto?
- Na verdade, talvez precise de uma linha de crédito, dependendo de quanto tempo durar a busca por esses rapazes.
- Acho que consigo arranjar isso. Como queres que seja entregue?
- Há uma pequena empresa de transportes marítimos com sede em Nassau chamada Carlton Limited. O seu maior navio contentor está na doca seca, em reparações. Infelizmente, as reparações estão a demorar mais e a custar muito mais do que os donos da Carlton Limited estimaram. Precisam rapidamente de uma infusão de dinheiro, ou o navio pode ir ao fundo e levar a Carlton consigo.
- Estou a ver.
Shamron disparou o número de uma conta nas Baamas, que Stone anotou num bloco com uma caneta de ouro.
- Consigo ter meio milhão na conta amanhã de manhã.
- Obrigado.
- Que mais?
- Preciso que faças outro investimento.
- Outra empresa de transportes marítimos?
- Na verdade, é um negócio de arte aqui em Londres.
- Arte! Não, obrigado, Ari.
- Estou a pedir-to como um favor. Stone deixou soltar um longo suspiro. Shamron conseguia cheirar o caviar e o champanhe no hálito.
- Estou a ouvir.
- Preciso que faças um empréstimo temporário a uma firma chamada Isherwood Fine Arts.
- Isherwood!
Shamron acenou com a cabeça.
- O Julian Isherwood? O Julie Isherwood? Já tenho a minha conta de investimentos questionáveis, Ari, mas emprestar dinheiro ao Julie Isherwood é o equivalente a deitar-lhe fogo. Não o vou fazer. Desculpa, não posso ajudar.
- Estou a pedir-to como um favor pessoal.
- E eu estou a dizer-te que não o vou fazer. O Julie pode afundar-se ou manter-se à tona por sua conta.
Stone fez outra das suas bruscas mudanças de direcção:
- Não sabia que o Julie fazia parte da irmandade.
- Não disse que fazia.
- Não interessa, já que não lhe vou dar nenhum do meu dinheiro. Tomei a minha decisão. Fim da discussão.
- Isso é decepcionante.
- Não me ameaces, Ari Shamron. Como é que te atreves, depois de tudo o que tenho feito por ti? O Departamento não teria onde cair morto se não fosse eu. Perdi a conta a quantos milhões te dei.
- Tens sido generoso, Benjamin.
- Generoso! Caramba! Sozinho, mantive-vos à tona. Mas para o caso de não teres reparado, as coisas não andam bem na Looking Glass ultimamente. Tenho credores à espreita em cada orifício. Tenho bancos a exigirem o seu dinheiro antes de me darem mais algum. A Looking Glass está a meter água, amor. E se a Looking Glass for ao fundo, perdes o teu fornecimento ilimitado de dinheiro.
- Estou ciente das tuas dificuldades actuais - respondeu Shamron. - Mas também sei que a Looking Glass vai sair desta crise mais forte do que nunca.
- Sabes? Sabes mesmo? Merda! E o que te dá essa ideia?
- A minha total confiança em ti.
- Não me intrujes, Ari. Tenho dado de livre vontade durante muitos anos sem pedir nada em troca. Mas agora preciso da tua ajuda. Preciso que pressiones os teus amigos na City, para abrirem mão do seu dinheiro. Preciso que convenças os meus investidores israelitas de que é capaz de ser melhor para todos os envolvidos se me perdoarem uma parte substancial da dívida.
- vou ver o que posso fazer.
- E há uma outra coisa. Publico a tua propaganda negra sempre que pedes. Porque é que não me atiras uma história verdadeira de vez em quando? Alguma coisa com um pouco de sumo. Alguma coisa que vá vender jornais. Mostra aos rapazes do dinheiro que a Looking Glass ainda é uma força a ter em conta.
- vou tentar arranjar alguma coisa.
- Vais arranjar alguma coisa.
Stone empurrou outra mão cheia de caviar para dentro da boca.
- Juntos conseguimos mover montanhas, Ari. Mas se a Looking Glass for ao fundo, as coisas são mesmo capazes de ficar desagradáveis.
Na manhã seguinte, Shamron e Gabriel encontraram-se em Hampstead Heath. Andaram ao longo de um caminho para peões, delimitado por duas filas de faias a pingar. Shamron esperou que um par de corredores passasse para falar:
- Tens o teu dinheiro. Quinhentos mil em dólares americanos. A conta habitual em Genebra.
- E se precisar de mais?
- Nesse caso arranjo-te mais. Mas o poço não é sem fundo. Sempre foste cuidadoso com o dinheiro. Espero que não vá mudar nada, agora que não tens nenhuma razão para temer os contabilistas do Boulevard do Rei Saul.
- Só vou gastar aquilo que precisar.
Shamron mudou o assunto para a comunicação. Como Lev controlava a secção de Londres, o pessoal e as instalações desta eram estritamente inacessíveis para Gabriel. Havia três bodelim londrinos que eram leais a Shamron e com os quais se podia contar para fazer favores a Gabriel sem contar ao chefe da secção. Shamron recitou uma série de números de telefone. Gabriel memorizou-os. Era como se estivessem de volta à Academia, a jogar jogos de memória e exercícios de atenção tolos, tal como contar os degraus num lance de escadas, ou registar o conteúdo do armário de um homem, ou os números de registo de uma dúzia de carros estacionados, com uma breve olhadela.
Shamron prosseguiu. O cabo telegráfico seguro da secção de Londres não podia ser utilizado para comunicação electrónica porque todas as transmissões teriam de ser autorizadas pelo chefe da secção. A mala da secção de Londres também não podia ser utilizada pela mesma razão. Num aperto, Gabriel podia introduzir um relatório de campo na mala diplomática endereçada a Amos Argov. Um amigo no Ministério dos Negócios Estrangeiros passá-la-ia a Shamron, no Boulevard do Rei Saul. Mas não devia abusar da regalia. Gabriel também estava proibido de utilizar os apartamentos seguros de Londres, pois a secção de Londres geria-os e Lev mantinha vigilância apertada sobre o seu uso.
Shamron disparou um número de telefone em Oslo que era redireccionado para a sua casa em Tiberíades. Gabriel devia tratar a linha como se não fosse segura.
- Se for necessário um encontro cara a cara, Paris será o local
- disse Shamron. - Utilizaremos os sítios da operação Setembro Negro, em homenagem aos velhos tempos. A mesma sequência, as mesmas retiradas, a mesma linguagem corporal. Lembras-te dos sítios de Paris?
- Teremos sempre Paris.
- Alguma pergunta? Gabriel sacudiu a cabeça.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por ti?
- Podes abandonar o Reino Unido o mais depressa possível
- respondeu Gabriel.
A seguir, voltou-se e afastou-se rapidamente.
ST. JAMES'S, LONDRES
- Escuta, Julie - disse Oliver Dimbleby, inclinando a cabeça grande sobre a mesa e baixando a voz. - Sei que estás em apuros. Toda a rua sabe que estás em apuros. Por aqui não há segredos, pétala.
Oliver Dimbleby era um homem rosado com uma camisa cor-de-rosa, que parecia sempre excessivamente satisfeito consigo próprio. O cabelo era aos caracóis e ruivo-aloirado, com chifres minúsculos sobre as orelhas. Isherwood e Dimbleby eram tão chegados quanto dois concorrentes podiam ser no negócio da arte londrino, o que significava que Isherwood o desprezava apenas um pouco.
- Perdeste o teu financiamento - disse Dimbleby. - Não és capaz de te desfazeres de um quadro. Até perdeste a rapariga deste mês, duas semanas antes do previsto. Oh, que diabos, como é que esta se chamava?
- Heather.
- Ah, sim, Heather. Uma pena perder uma como essa, não foi? Teria gostado de conhecer um pouco melhor a Heather. Veio ter comigo antes de ter ido ter com Giles Pittaway. Uma rapariga adorável, mas disse-lhe que não ia caçar furtivamente na floresta de um amigo. Mandei-a embora. Infelizmente, foi até New Bond Street e direita aos braços do diabo.
- Então estou em apuros - disse Isherwood, a tentar mudar de assunto. - Onde é que queres chegar?
- E o Pittaway, não é? A matar-nos a todos, não é?
A dicção de Dimbleby tinha um leve sotaque londrino que se acentuara com as duas garrafas de Borgonha que tinham consumido durante o almoço no Wilton's.
- Permite-me revelar-te um pequeno segredo, velho amor. Estamos todos no mesmo barco. Não há compradores, nem bons quadros para vender mesmo que os houvesse. É tudo moderno e os Impressionistas, e ninguém se pode dar ao luxo de negociar Van Goghs e Monets excepto os grandalhões. Apareceu-me uma estrela pop na galeria no outro dia. Queria alguma coisa para o quarto, para fazer combinar a capa do edredão e a carpete Santa Fé. Mandei-o para o Selfridges. Ele não percebeu a piada, o sacana tapado. O meu pai avisou-me para não me meter neste negócio. Às vezes penso, quem me dera ter ouvido o raio do velho. O Giles Pittaway sugou o ar todo do mercado. E com cada trampa. Jesus! Mas é trampa, não é, Julie?
- Mais do que trampa, Oliver - concordou Isherwood, e serviu-se de um pouco mais de vinho.
- Passei por uma das suas galerias na semana passada. Espreitei pela montra. Havia um pedaço de merda muito lustroso, muito brilhante, daquele pintor de flores francês de Colmar. Oh, merda, qual é o nome dele, Julie?
- Estás a referir-te ao Jean-Georges Hirn?
- Ah, sim, é isso! Jean-Georges Hirn. Um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores. Chamo-lhe caixa de chocolates. Percebes o que quero dizer, Julie?
Isherwood acenou com a cabeça devagar e bebericou o vinho. Dimbleby respirou fundo e continuou:
- Nessa mesma noite, o Roddy e eu jantámos no Mirabelle. Sabes como podem ser os jantares com o Roddy. Escusado será dizer que, quando saímos do restaurante à meia-noite, estávamos bem aviados. A sentir absolutamente nenhuma dor. Dormentes. O Roddy e eu vagueámos pelas ruas durante um bocado. Vai divorciar-se, o Roddy. A mulher fartou-se, finalmente, das suas palhaçadas. Em todo o caso, em pouco tempo, demos por nós à frente da mesmíssima galeria de que o venerável Giles Pittaway é dono,
à frente do mesmíssimo pedaço de merda da autoria do Jean-Georges Hirn, um ramo de rosas, narcisos, jacintos, nastúrcios, campainhas e outras flores.
- Não tenho a certeza de querer ouvir o resto - queixou-se Isherwood.
- Oh, mas queres, pétala.
Dimbleby inclinou-se para ainda mais perto e molhou os lábios finos com a linguazinha ágil.
- O Roddy ficou louco. Fez um dos seus discursos. Falou tão alto que, provavelmente, o ouviram em St. John's Wood. Disse que o Pittaway era o diabo. Disse que a sua ascendência era um sinal de que o Apocalipse estava próximo. Coisas maravilhosas, a sério. Limitei-me a ficar parado no passeio, a aplaudir e a lançar um apoiado, apoiado! de vez em quando, para ajudar à festa.
Dimbleby aproximou-se ainda mais e baixou a voz para um sussurro excitado:
- Quando termina o sermão, começa a bater com a pasta contra o vidro. Conheces aquela hedionda criatura de metal que ele insiste em transportar. Depois de um par de lançamentos, a montra estilhaça-se e o alarme começa a tocar.
- Oliver! Diz-me que isto é só mais uma das tuas histórias! Meu Deus!
- É a verdade, Julie. A verdade pura e simples. Não estou a contar histórias da carochinha. Agarrei no Roddy pelo colarinho e começámos a correr como uns perdidos. O Roddy estava tão bêbado que não se consegue lembrar de nada.
Isherwood estava a ficar com uma dor de cabeça devido ao vinho.
- Queres chegar a algum lado com esta história desgraçada, Oliver?
- Onde quero chegar é que não estás sozinho. Estamos todos a sofrer. O Giles Pittaway tem-nos a todos agarrados pelos tomates e está a apertar com mais força do que nunca. Os meus estão a ficar azuis, pelo amor de Deus.
- Estás a sobreviver, Oliver. E estás a ficar mais anafado. Vais precisar de uma galeria maior daqui a nada.
- Oh, estou a safar-me bastante bem, muito obrigado. Mas podia estar a safar-me melhor. E tu também, Julie. Não é para criticar, mas eras capaz de fazer girar mais uns quantos quadros do que estás a fazer.
- As coisas vão dar a volta. Só preciso de me aguentar nas canetas durante mais umas semanas e a seguir vou ficar óptimo. Do que preciso é de uma nova rapariga.
- Posso arranjar-te uma rapariga.
- Não esse tipo de rapariga. Preciso de uma rapariga que consiga atender o telefone, uma rapariga que saiba alguma coisa de arte.
- A rapariga em que estava a pensar é óptima ao telefone e é uma verdadeira obra de arte. E não estás a basear as tuas esperanças naquela peça que compraste na Christie's no Verão passado?
- Oliver, como é que...
- Como te disse, pétala. Não há segredos por aqui.
- Oliver, se queres chegar a algum lado com esta conversa, por favor, chega depressa.
- Onde quero chegar é que precisamos de nos juntar. Precisamos de formar uma aliança se queremos sobreviver. Nunca iremos derrotar o temível Giles Pittaway, mas se criarmos um pacto de defesa mútua talvez possamos viver lado a lado em paz.
- Estás a dizer disparates, Oliver. Experimenta falar a sério por uma vez na vida, por amor de Deus. Não sou uma das tuas namoradas.
- Muito bem, conversa a sério. Estou a pensar numa parceria.
- Uma parceria? Que tipo de parceria?
- Queres sem rodeios?
- Sim, claro.
- O tipo de parceria em que compro a tua posição.
- Oliver!
- Tens uma bela galeria.
- Oliver!
- Tens umas belas pinturas lá em baixo no teu cofre. no
- Oliver!
- Até conseguiste manter uma certa reputação. Gostava de inspeccionar o teu inventário e chegar a um preço justo. O dinheiro
suficiente para te libertares da tua dívida. A seguir, gostava de queimar todo o teu stock parado, conseguir alguma coisa por ele, e começar de novo. Podes trabalhar para mim. Pago-te um salário generoso, mais comissão. Podes safar-te bastante bem, Julie.
- Trabalhar para ti? Estás completamente louco? Oliver, como te atreves?
- Não te irrites. Não te deixes levar pelo orgulho. São negócios, não é pessoal. Estás a afogar-te, Julian. Estou-te a atirar uma corda. Não sejas parvo. Agarra o raio da coisa.
Mas Isherwood estava a levantar-se e a vasculhar nos bolsos à procura de dinheiro.
- Julian, por favor. Guarda o dinheiro. A festa é minha. Não ajas assim.
- Vai-te lixar!
Isherwood atirou um par de notas de vinte libras à cara rosada de Dimbleby.
- Como te atreves, Oliver! Francamente!
Saiu furioso do restaurante e voltou a pé para a galeria. com que então, os chacais de St. James's estavam a rondar, e o anafado Oliver Dimbleby queria o pedaço maior da carcaça para si mesmo. Comprar-me aposição, o Oliver! Vejam-me só o atrevimento! Vejam-me só a trabalhar para aquele misoginoinho barrigudo! Estava quase decidido a telefonar a Giles Pittaway para lhe contar a história da montra partida.
Enquanto Isherwood caminhava por Mason's Yard, jurou não se render sem luta. Mas, para poder lutar, precisava de um Vecellio imaculado, e para isso precisava de Gabriel. Tinha de o encontrar antes que fosse enfeitiçado por Shamron e desaparecesse para sempre. Subiu as escadas e entrou na galeria. Era terrivelmente deprimente estar sozinho. Estava acostumado a ver uma rapariga bonita atrás da secretária quando voltava para o trabalho a seguir ao almoço. Sentou-se à secretária, descobriu o número de telefone de Gabriel na agenda, marcou o número, deixou-o tocar uma dúzia de vezes e desligou com violência o auscultador. Talvez tenha ido só até à aldeia. Ou talvez tenha saído no raio do barco dele.
Ou talvez o Shamron já tenha chegado a ele.
- Merda! - disse suavemente.
Saiu da galeria, fez sinal para parar a um táxi em Picadilly, viajou até Great Russell Street. Pagou o táxi a uns quarteirões de distância do Museu Britânico e avançou pela entrada da loja de equipamento de arte L. Cornellissen & Son. Sentiu-se estranhamente calmo, parado no chão de madeira desgastado, rodeado pelas prateleiras envernizadas repletas de tintas, paletas, papel, telas, pincéis e lápis de carvão.
Um anjo da cor do linho chamado Penelope sorriu-lhe do outro lado do balcão.
- Olá, Pen.
- Julian, super- arfou ela. - Como estás? Meu Deus, estás muito chique.
- Almoço com o Oliver Dimbleby.
Não era necessária mais nenhuma explicação.
- Escuta, queria saber se viste o nosso amigo. Não atende o telefone e começo a pensar se não terá deambulado por um penhasco abaixo lá pela Cornualha.
- Infelizmente, não tenho a sorte de pôr os olhos nesse homem adorável há já algum tempo.
- Mais alguém na loja teve notícias dele?
- Espera. vou confirmar.
Penelope perguntou a Margaret, e Margaret perguntou a Sherman, e Sherman perguntou a Tricia e assim continuou, até uma voz profunda sem corpo, vinda dos fundos da loja - a secção das tintas e lápis de acrílico, a julgar pelo som -, anunciar solenemente:
- Falei com ele ainda esta manhã.
- Importa-se de me dizer o que queria? - perguntou Isherwood para o tecto.
- Cancelar o envio mensal de equipamento.
- Quantos envios mensais ao certo?
- Todos os envios mensais até aviso em contrário.
- Disse porquê?
- Alguma vez diz, querido?
Na manhã seguinte, Isherwood cancelou os compromissos para o resto da semana e alugou um carro. Durante cinco horas, acelerou
pelas auto-estradas. Em direcção a oeste, até Bristol. Em direcção a sul, ao longo do canal. A seguir, o longo percurso através de Devon e da Cornualha. Tempo tão volátil quanto a disposição de Isherwood, rajadas de chuva num instante, sol de Inverno branco e fraco no outro. O vento era constante, no entanto. Tanto vento que Isherwood se via aflito para manter o pequeno Ford Escort colado à estrada. Almoçou enquanto conduzia e parou apenas três vezes - uma para gasolina, outra para urinar e uma terceira em Dartmoor, quando o carro atingiu uma ave marinha. Pegou no cadáver, utilizando um saco vazio de plástico para sanduíche para proteger os dedos, e recitou uma curta oração judia pelos mortos antes de atirar de forma cerimoniosa o pássaro para a urze.
Chegou ao chalé de Gabriel pouco antes das três da tarde. O barco de Gabriel estava tapado com um oleado. Atravessou o caminho e tocou à campainha. Tocou uma segunda vez, depois bateu à porta com força, a seguir tentou o trinco. Fechado à chave.
Espreitou pela vidraça para o interior de uma cozinha imaculada. Gabriel nunca fora muito de comer - se lhe atirassem um pedaço de pão e uns quantos grãos de arroz, era capaz de andar mais uns oitenta quilómetros - mas, mesmo pelos padrões de Gabriel, a cozinha estava excepcionalmente limpa e livre de mantimentos. Tinha partido, concluiu Isherwood. Partido por um longo período de tempo.
Entrou no jardim das traseiras e contornou o chalé, a experimentar todas as janelas, na hipótese improvável de Gabriel se ter esquecido de fechar uma. Nada o estilo de Gabriel.
Voltou pelo mesmo caminho e ficou de novo parado no cais. Nuvens pretas surgiam rio acima, vindas do mar. Uma gorda gota de chuva atingiu-o no centro da testa e rolou-lhe pela cana do nariz, por baixo dos óculos. Tirou-os e a paisagem do rio enevoou-se. Tirou um lenço do bolso, limpou a cara e tornou a pôr os óculos.
Quando o ambiente à sua volta voltou a estar focado, descobriu um rapazinho parado a poucos metros de distância. Parecia ter caído do céu, como um gato a caçar a presa. Isherwood nunca tivera filhos e era terrível a calcular idades. Calculou que o rapazote de rosto atormentado teria onze ou doze anos.
O rapaz perguntou:
- Porque é que está a rondar esse chalé?
- Não estou a rondar, e quem raio és tu? -
- Sou o Peel. Quem é o senhor?
- Sou um amigo do homem que vive ali. O meu nome é Julian. Isherwood estendeu a mão, mas o rapaz deixou-se simplesmente estar ali parado, o corpo rígido e retraído.
- Ele nunca mencionou ter um amigo chamado Julian.
- Não menciona uma série de coisas.
- O que quer?
- Falar com ele.
- Está fora.
- Consigo ver isso. Sabes onde está?
- Não disse.
- Sabes quando volta?
- Não disse.
A chuva começou a cair com mais força. O rapaz permaneceu parado. Isherwood pôs a mão sobre a cabeça e voltou-se para olhar para o chalé.
- Sabes do que é que ele vive? - perguntou Isherwood. Peel assentiu com a cabeça.
- Mais alguém sabe na aldeia? Peel abanou a cabeça.
- Ele trabalha para mim - disse Isherwood, como se estivesse a confessar algum delito. - Sou dono do quadro que está a restaurar.
- Do Rembrandt ou do Vecellio? Isherwood sorriu e respondeu:
- Do Vecellio, meu caro amigo.
- É lindo.
- Realmente, é.
Ficaram lado a lado por um instante, esquecidos da chuva. Isherwood viu algo de si próprio na sentinela-miniatura de Gabriel. Mais um refugiado de Gabriel, mais um pedaço de destroço à deriva na esteira de Gabriel. Mais uma alma danificada a precisar de restauro pelas mãos talentosas de Gabriel.
- Quem é que o levou? - perguntou Isherwood, por fim.
- O senhor careca que andava como um soldado. Conhece-o?
- Infelizmente, sim. Isherwood sorriu para Peel.
- Tens fome?
Peel acenou com a cabeça.
- Há algum sítio bom na aldeia para chá e doces?
- E um folhado - respondeu Peel. - Gosta de folhados de salsicha?
- Não posso dizer que alguma vez tenha experimentado um, mas não há melhor altura do que o presente. Achas que devias pedir autorização aos teus pais, primeiro?
Peel abanou a cabeça.
- Ele não é meu pai e a minha mãe não se importa.
Ari Shamron chegou ao Aeroporto Lod, em Telavive, ao fim da tarde do dia seguinte. Rami estava à espera na porta de desembarque. Conduziu Shamron através da área das chegadas até a uma sala segura, reservada ao pessoal do Departamento e a convidados especiais. Shamron despiu o fato de negócios europeu e vestiu as calças cor de caqui e o casaco de bombardeiro.
- O primeiro-ministro quer vê-lo hoje à noite, chefe.
Shamron pensou: Lá se vai o não meter o nariz na operação.
Foram de carro até às colinas na direcção de Jerusalém. Shamron passou o tempo a folhear uma pilha de papelada que se tinha acumulado na sua curta ausência.
Como de costume, havia uma crise na coligação variada do primeiro-ministro. Para chegar ao gabinete deste, Shamron teve de ultrapassar primeiro um corredor cheio de fumo repleto de políticos em disputa.
O primeiro-ministro escutou absorto, enquanto Shamron o punha ao corrente da situação. Era por natureza um maquinador. Começara a carreira no ambiente implacável do mundo académico, a seguir passara para o ninho de vespas do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na altura em que entrara na arena política, já era bem
versado nas artes negras da traição burocrática. A ascensão meteórica pelas fileiras do partido era atribuída ao poderoso intelecto e à prontidão em recorrer ao subterfúgio, ao engano e à chantagem pura e simples para conseguir o que queria. Em Shamron, via uma alma gémea - um homem que não pararia perante nada se acreditasse que a sua causa estava certa.
- Só há um problema - disse Shamron.
O primeiro-ministro olhou de relance para o tecto, de modo impaciente. Gostava de dizer: Tragam-me soluções, não problemas. Shamron tinha uma desconfiança inata de homens que viviam por máximas ardilosas.
- Benjamin Stone.
- O que é agora?
- O negócio dele está em péssimo estado. Está a roubar a Pedro para pagar a Paulo, e os amigos de Pedro estão a ficar zangados com isso.
- Vai afectar-nos?
- Se for ao fundo em silêncio, só vamos sentir a falta do dinheiro dele. Mas se for ao fundo com alarido, pode tornar-nos as coisas desconfortáveis. Receio que saiba demasiado.
- Benjamin Stone nunca faz nada em silêncio.
- Ponto assente.
- Então, e aqueles adoráveis filmes caseiros que fizeste dele o ano passado em King David?
- Parecia uma boa ideia na altura, mas o Stone desenvolveu um limiar bastante elevado para a humilhação pública. Não sei ao certo se ficará terrivelmente chateado se o mundo o vir a utilizar os serviços de uma prostituta israelita.
- Os políticos à minha porta são um problema meu - respondeu o primeiro-ministro. - Mas receio que o Benjamin Stone seja teu. Trata dele como achares mais adequado.