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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ARTISTA DA MORTE
O ARTISTA DA MORTE

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

PARTE II
AVALIAÇÃO
Antes da guerra, Maurice Halévy era um dos mais proeminentes advogados de Marselha. Ele e a mulher, Rachel, tinham vivido numa imponente casa antiga na rue Sjlvabelle em Beaux Quartiers, onde a maioria dos judeus assimilados com sucesso da cidade se estabelecera. Tinham orgulho em ser franceses; consideravam-se primeiro franceses e depois judeus. Na verdade, Maurice Halévy estava tão assimilado que raramente se dava ao trabalho de ir à sinagoga. Mas quando os Alemães invadiram, a vida idílica dos Halévy em Marselha chegou a um fim abrupto. Em Outubro de 1940, o governo colaboracionista de Vichy divulgou o statut dês Juifs, os decretos antijudeus que reduziram os judeus a cidadãos de segunda classe na França de Vichy. Foi retirado a Maurice Halévy o direito de exercer advocacia. Exigiram-lhe que se registasse na polícia e, mais tarde, ele e a mulher foram forçados a utilizar a Estrela de David nas roupas.
A situação piorou em 1942, quando o exército alemão se instalou na França de Vichy, após a invasão do Norte de África pelos Aliados. As forças da Resistência Francesa levaram a cabo uma série de ataques mortíferos às forças alemãs. A polícia de segurança alemã, com a ajuda das autoridades francesas de Vichy, respondeu com assassinatos brutais. Maurice Halévy não podia mais ignorar a ameaça. Rachel ficara grávida. A ideia de tentar cuidar de um recém-nascido no caos de Marselha era demasiado para suportar. Decidiu deixar a cidade e partir para o campo. Utilizou as poupanças diminutas para arrendar um chalé nas colinas à saída de Aix-en-Provence. Em janeiro, Rachel deu à luz um filho, Isaac.
Uma semana mais tarde, os Alemães e a polícia francesa começaram a reunir os judeus. Demoraram um mês para descobrir Maurice e Rachel Halévy. Um par de oficiais alemães das S S apareceu no chalé num final de tarde de
Fevereiro, acompanhado por um gendarme local. Deram aos Halévy vinte minutos para fazer uma mala que não pesasse mais do que vinte e sete quilos. Enquanto os alemães e o gendarme esperavam na sala de jantar, a mulher do chalé do lado apareceu aporta.
- O meu nome é Anne-Marie Delacroix - disse. - Os Halévy estavam a tomar conta do meu filho enquanto fui ao mercado.
O gendarme estudou os seus documentos. De acordo com estes, apenas dois judeus viviam no chalé. Chamou os Halévy e disse:
- Esta mulher diz que o rapaz é dela. É verdade?
- É claro que é - respondeu Maurice Halévy, apertando o braço de Rachel antes de ela poder emitir um som. - Estávamos só a tomar conta do rapaz durante a tarde.
O gendarme olhou para Maurice Halévy incredulamente, depois consultou os documentos de registo uma segunda vez.
- Pegue na criança e vá-se embora - disparou para a mulher. - Apetecia-me bastante levá-la sob custódia eu mesmo, por entregar uma criança francesa ao cuidado destes judeus nojentos.
Dois meses mais tarde, Maurice e Rachel Halévy foram assassinados em Sobibor.
Anne-Marie Delacroix levou Isaac a uma sinagoga e contou ao rabi o que acontecera naquela noite em Aix-en-Provence. O rabi deu-lhe a escolher entre entregar a criança para adopção por uma família judia ou criá-la ela própria. Eevou o rapaz de volta a Aix e criou-o como judeu, ao lado dos seus próprios filhos católicos. Em 1965, Isaac Halévy casou com uma rapariga de Nimes, chamada Deborah, e instalou-se em Marselha, na antiga casa do pai, na rue Sylvabelle. Três anos mais tarde, tiveram o primeiro e único filho: uma rapariga a quem chamaram Sarah.
PARIS
Michel Duval era o fotógrafo da moda mais em voga em Paris. Os estilistas e os editores de revistas adoravam-no, pois as suas fotografias irradiavam uma aura muito forte de sexualidade perigosa. Jacqueline Delacroix achava que ele era um porco. Sabia que conseguia o seu olhar singular abusando das modelos. Não estava com grande vontade de trabalhar com ele.
Saiu de um táxi e entrou num edifício de apartamentos na rue St-Jacques, onde Michel tinha o estúdio. Lá em cima, uma pequena multidão aguardava: artista de maquilhagem, cabeleireiro, estilista, um representante da Givenchy. Michel estava em cima de um escadote, a ajustar luzes: bem-parecido, cabelos loiros pelos ombros, feições felinas. Vestia calças de cabedal pretas, descaídas nas ancas estreitas, e um pulôver largo. Piscou o olho a Jacqueline quando ela entrou. Ela sorriu e disse:
- Prazer em ver-te, Michel.
- Vamos ter uma boa sessão hoje, não é? Consigo senti-lo.
- Espero que sim.
Entrou num quarto para mudar de roupa, despiu-se e estudou o aspecto ao espelho com impassibilidade profissional. Fisicamente, era uma mulher estonteante: alta, braços e pernas graciosos, cintura elegante, pele cor de azeitona clara. Os seios eram esteticamente perfeitos: firmes, arredondados, nem demasiado pequenos nem anormalmente grandes. Os fotógrafos adoravam sempre os seus seios. A maior parte das modelos detestava o trabalho com Ungem, mas isso nunca incomodara Jacqueline. Tivera sempre mais ofertas de trabalho do que aquelas que podia encaixar na agenda.
O seu olhar passou do corpo para a cara. Tinha cabelo encaracolado, preto como um corvo, que lhe chegava aos ombros, olhos escuros, um nariz comprido e fino. As maçãs do rosto eram largas e uniformes, a linha do maxilar angulosa, os lábios carnudos. Orgulhava-se do facto de a cara nunca ter sido alterada pelo bisturi de um cirurgião. Inclinou-se para a frente, apalpou a pele à volta dos olhos. Não gostou do que viu. Não era uma linha, na realidade algo mais subtil e insidioso. O sinal intangível do envelhecer. Já não tinha os olhos de uma criança. Tinha os olhos de uma mulher com trinta e três anos.
Continuas linda, mas aceita os factos, Jacqueline. Estás a ficar velha.
Vestiu um robe branco, foi até ao quarto do lado e sentou-se. O artista de maquilhagem começou a aplicar-lhe uma base na bochecha. Jacqueline observou no espelho enquanto a sua cara era transformada lentamente na de alguém que não reconhecia bem. Interrogou-se sobre o que o avô acharia se pudesse ver isto.
Provavelmente, ficaria envergonhado...
Quando o artista de maquilhagem e o estilista para o cabelo terminaram, Jacqueline olhou-se ao espelho. Se não tivesse sido pela coragem daquelas três pessoas notáveis - os avós e Anne-Marie Delacroix -, não estaria hoje aqui.
E vê no que te tornaste - um requintado cabide para roupas.
Levantou-se, regressou ao quarto para mudar de roupa. O vestido, um traje de cerimónia preto e sem alças, aguardava-a. Tirou o robe, vestiu o traje e puxou-o sobre os seios nus. A seguir, mirou-se ao espelho. Devastadora.
Uma batida na porta.
- O Michel está pronto para si, menina Delacroix.
- Diga ao Michel que saio já. Menina Delacroix...
Mesmo passados todos estes anos, ainda não se habituara a isso: Jacqueline Delacroix. O agente, Mareei Lambert, tinha sido quem lhe alterara o nome - Sarah Halév soa demasiado... bom... sabes o que quero dizer, mon chou. Não me faças dizê-lo em voz alta. Tão vulgar, mas é assim o mundo. Por vezes, o som do seu nome francês fazia a pele arrepiar-se-lhe. Quando soube o que acontecera aos avós na guerra, ardera de ódio e suspeita em relação a todos os franceses. Sempre que via um velho, interrogava-se sobre o que teria feito durante a guerra. Teria sido um guarda em Gurs ou Lês Milles ou num dos outros campos de detenção? Teria sido um gendarme que ajudara os Alemães a reunir a sua família? Teria sido um burocrata que carimbava e processava a papelada da morte? Ou teria simplesmente permanecido em silêncio, sem fazer nada? Secretamente, dava-lhe intenso prazer estar a enganar o mundo da moda. Imagine-se a reacção deles se descobrissem que a beldade alta e magra e de cabelos pretos de Marselha era de facto uma judia da Provença, cujos avós tinham sido mortos na câmara de gás em Sobibor. De certa maneira, ser uma modelo, a imagem por excelência da beleza francesa, era a sua vingança.
Olhou uma última vez para si própria, baixando o queixo para o peito, afastando os lábios ligeiramente, trazendo fogo aos olhos pretos cor de carvão.
Agora estava pronta.
Trabalharam durante trinta minutos sem parar. Jacqueline adoptou diversas poses. Estendeu-se ao longo de uma simples cadeira de madeira. Sentou-se no chão, encostando-se para trás apoiada nas mãos, com a cabeça inclinada para cima e os olhos fechados. Pôs-se em pé com as mãos nas ancas e os olhos a perfurar a lente da máquina fotográfica de Michel. Michel parecia gostar do que estava a ver. Estavam em sintonia. De poucos em poucos minutos, parava por uns segundos para mudar de rolo, depois retomava a sessão rapidamente. Jacqueline estava na profissão há tempo suficiente para saber quando uma sessão fotográfica estava a funcionar.
Por isso, ficou surpreendida quando ele saiu de repente detrás da objectiva e passou a mão pelo cabelo. Tinha um olhar carrancudo.
- Saiam do estúdio, por favor. Preciso de privacidade. Jacqueline pensou: Oh, céus. Aqui vamos nós.
Michel perguntou:
- Mas o que raio se passa contigo?
- Não se passa nada comigo!
- Nada? Estás apática, Jacqueline. As fotos estão apáticas. Bem podia estar a tirar fotografias a um manequim com o vestido posto. Não me posso dar ao luxo de entregar à Givenchy um conjunto de fotografias apáticas. E pelo que ouço na rua, também não podes.
- O que é que isso quer dizer supostamente?
- Quer dizer que estás a ficar velha, querida. Quer dizer que ninguém tem bem a certeza de que ainda tenhas o que é preciso.
- Vai mas é para trás da máquina e mostro-te que ainda tenho o que é preciso.
- Já vi o suficiente. Simplesmente não está aí hoje.
- Tretas!
- Queres que te vá buscar uma bebida? Talvez um copo de vinho te ajude a descontrair.
- Não preciso de uma bebida.
- E que tal um pouco de coca?
- Sabes que já não snifo.
- Pois eu, sim.
- Há coisas que nunca mudam.
Michel tirou um pequeno saco de cocaína do bolso da camisa. Jacqueline sentou-se na cadeira que servia de adereço enquanto ele preparava duas linhas numa mesa com tampo de vidro. Snifou uma e a seguir ofereceu-lhe a nota de cem francos enrolada.
- Apetece-te ser uma rapariga mazinha hoje?
- É toda tua, Michel. Não estou interessada.
Ele inclinou-se e snifou a segunda linha. A seguir, limpou o vidro com o dedo e espalhou o resto pelas gengivas.
- Se não vais tomar uma bebida nem snifar uma linha, talvez tenhamos de pensar numa outra maneira de acender uma chama dentro de ti.
- Como o quê? - perguntou, mas sabia no que Michel estava a pensar.
Pôs-se atrás dela, colocou-lhe as mãos ao de leve nos ombros nus.
- Talvez precises de pensar em seres fodida.
As mãos deixaram-lhe os ombros e acariciaram-lhe a pele logo acima dos seios.
- Talvez possamos fazer alguma coisa para tornar a ideia um pouco mais realista na tua imaginação.
Pressionou-lhe a pélvis contra as costas para que ela lhe pudesse sentir a erecção por baixo das calças de cabedal. Ela afastou-se.
- Estou só a tentar ajudar, Jacqueline. Quero certificar-me de que estas fotografias saem bem. Não quero ver a tua carreira a ir pelo cano abaixo. Os meus motivos são puramente altruístas.
- Nunca soube que eras tão filantropo, Michel. Ele riu-se.
- Vem comigo. Quero mostrar-te uma coisa.
Pegou-lhe na mão e puxou-a para fora do plateau. Atravessaram um corredor e entraram num quarto que tinha apenas como mobília uma cama grande. Michel tirou a camisa e começou a desabotoar as calças.
Jacqueline perguntou:
- O que é que pensas que estás a fazer?
- Tu queres fotografias boas, eu quero fotografias boas. Vamo-nos pôr em sintonia. Tira o vestido para não ficar estragado.
- Vai-te foder, Michel. Vou-me embora.
- Vá lá, Jacqueline. Deixa-te de parvoíces e mete-te na cama.
- Não!
- Mas qual é o problema? Dormiste com o Robert Leboucher, para que ele te desse aquela sessão fotográfica de fatos de banho, em Mustique.
- Como é que soubeste?
- Porque ele me disse.
- És um sacana, e ele também! Não sou nenhuma miúda de dezassete anos que vai abrir as pernas para ti porque quer boas fotografias tiradas pelo grande Michel Duval.
- Se sais daqui para fora, a tua carreira está acabada.
- Estou-me bem a lixar. Ele apontou para a erecção.
- O que é que é suposto eu fazer acerca disto?
Mareei Lambert vivia a uma curta distância dali, na rue de Tournon, no Quartier Luxembourg. Jacqueline precisava de tempo para si própria, por isso foi a pé, demorando-se pelas ruas laterais e estreitas do Quartier Latin. A escuridão a cair, as luzes a acenderem-se nos pequenos restaurantes e nos cafés, o cheiro de cigarros e alho a fritar no ar fresco.
Atravessou para o Quartier Luxembourg. Como tinha chegado tão depressa a isto, pensou - Michel Duval, a tentar ameaçá-la para uma rapidinha entre disparos. Há uns poucos anos atrás, ele não teria pensado nisso. Mas não agora. Agora, ela estava vulnerável e Mareei tinha resolvido testá-la.
Por vezes, arrependia-se de ter entrado nesta profissão. Projectara ser bailarina - e tinha estudado na academia mais reputada de Marselha -, mas aos dezasseis anos foi descoberta por um caçador de talentos de uma agência de modelos de Paris, que deu o nome dela a Mareei Lambert. Mareei marcou uma sessão fotográfica de
teste, deixou-a mudar-se para o seu apartamento, ensinou-a a mover-se e a agir como modelo e não como bailarina. As fotos da sessão de teste foram estonteantes. Tinha dominado a objectiva, irradiado uma sexualidade brincalhona. Mareei colocou discretamente as fotografias a circular por Paris: nenhum nome, nada acerca da rapariga, apenas as fotografias e o cartão dele. A reacção foi instantânea. O telefone não parou de tocar durante uma semana. Os fotógrafos exigiam trabalhar com ela. Os estilistas queriam contratá-la para as suas apresentações de Outono. O boca a boca dos fotógrafos passou de Paris para Milão e de Milão para Nova Iorque. O mundo da moda inteiro queria saber o nome desta misteriosa beldade francesa de cabelos pretos como um corvo.
Jacqueline Delacroix.
Como as coisas eram diferentes agora. O trabalho de qualidade começara a abrandar quando fez vinte e seis anos, mas agora, que tinha trinta e três, os bons trabalhos tinham secado. Ainda recebia algum trabalho nas passarelas em Paris e Milão, no Outono, mas apenas com estilistas de segundo plano. Ainda conseguia o ocasional anúncio de lingerie - Não há nada de errado com as tuas mamas, gostava de dizer Mareei -, mas fora forçado a alugá-la para diferentes tipos de sessões fotográficas. Tinha acabado de fazer uma sessão para uma cervejaria alemã, na qual se fazia passar pela atraente mulher de um homem de meia-idade bem-sucedido.
Mareei avisara que iria acontecer assim. Dissera-lhe para poupar o dinheiro, para se preparar para uma vida depois das passagens de modelos. Jacqueline nunca se dera a esse trabalho - Tinha partido do princípio de que o dinheiro continuaria a jorrar para sempre. Às vezes, tentava lembrar-se para onde fora todo. As roupas. As casas para dormir em Paris e Nova Iorque. As férias extravagantes com as outras raparigas nas Caraíbas ou no Sul do Pacífico. A tonelada de cocaína que havia sugado pelo nariz antes de se endireitar.
Michel Duval tivera razão numa coisa: ela tinha dormido com um homem para conseguir um trabalho, um editor da Vogue francesa chamado Robert Leboucher. Era um trabalho que atraía atenção e publicidade, e do qual precisava desesperadamente - uma sessão
para fatos de banho e roupa de Verão, em Mustique. Podia mudar tudo para si - dar-lhe o dinheiro suficiente para voltar a ter estabilidade financeira, mostrar a toda a gente na indústria que ainda tinha o que era preciso para os trabalhos mais apetecíveis. Pelo menos, por mais um ano, dois, no máximo. E a seguir?
Entrou no prédio de Mareei, enfiou-se no elevador, subiu até ao apartamento dele. Quando bateu à porta, esta escancarou-se. Mareei estava ali parado, olhos esbugalhados, boca aberta.
- Jacqueline, minha ternura! Por favor, diz-me que não é verdade. Diz-me que não pontapeaste o Michel Duval nos tomates! Diz-me que ele inventou a história toda!
- Na verdade, Mareei, dei-lhe um pontapé na pila. Ele lançou a cabeça para trás e riu ruidosamente.
- Tenho a certeza de que foste a primeira mulher que alguma vez fez isso. É para o sacana aprender. Quase destruiu a Claudette. Lembras-te do que ele lhe fez? Coitadinha. Tão linda, tanto talento.
Puxou os lábios para baixo, soltou um resfolego gaulês de desaprovação, pegou-lhe na mão e puxou-a para dentro. Um instante depois, estavam a beber vinho no sofá da sua sala de estar, o zumbido do trânsito do fim de tarde a correr por entre as janelas abertas. Mareei acendeu-lhe o cigarro e apagou com destreza o fósforo, agitando-o. Vestia calças de ganga azuis justas e desbotadas, mocassins pretos e uma camisola de gola alta cinzenta. O cabelo cinzento, que estava a enfraquecer, estava cortado muito curto. Tinha feito um novo liftíng recentemente; os olhos azuis pareciam estranhamente grandes e salientes, como se estivesse constantemente surpreendido. Ela pensou naqueles dias tão longínquos, quando Mareei a trouxera para este apartamento e a preparara para a vida à sua frente. Sempre se sentira segura neste sítio.
- Então com que tipo de parvoíce é que o Michel se saiu agora?
Jacqueline descreveu a sessão, não omitindo nada. Havia poucos segredos entre eles. Quando terminou, Mareei disse:
- Provavelmente, não lhe devias ter dado um pontapé. Está
a ameaçar com um processo.
- Que tente. Todas as raparigas que coagiu a ter sexo irão testemunhar no julgamento dele. Vai destruí-lo.
- O Robert Leboucher ligou-me há uns minutos, antes de chegares. Está a tentar desistir de Mustique. Diz que não consegue trabalhar com uma mulher que dá pontapés nos fotógrafos.
- As notícias correm depressa neste negócio.
- Sempre correram. Acho que consigo convencer o Robert a ter bom senso. Mareei hesitou, depois acrescentou:
- Isto é, se quiseres que o faça.
- Claro que quero que o faças.
- Tens a certeza, Jacqueline? Tens a certeza de que ainda tens o que é preciso para este tipo de trabalho?
Deu um gole grande no vinho, encostou a cabeça ao ombro de Mareei.
- Na verdade, não tenho bem a certeza de que o tenha.
- Faz-me um favor, querida. Vai para tua casa, no Sul, por uns dias. Ou faz uma daquelas viagens longas como costumavas fazer. Tu sabes - aquelas sobre as quais eras tão misteriosa. Descansa um bocado. Desanuvia a cabeça. Pensa a sério. vou tentar convencer o Robert a ter bom senso. Mas tens de decidir se isto é mesmo
o que queres ou não.
Fechou os olhos. Talvez fosse altura de sair enquanto ainda tinha uma réstia de dignidade.
- Tens razão - disse. - Faziam-me bem uns dias no campo. Mas quero que ligues àquele cabrão do Robert Leboucher, agora mesmo, e lhe digas que esperas que cumpra a palavra em relação à sessão em Mustique.
- E se não o conseguir fazer mudar de ideias?
- Diz-lhe que lhe dou um pontapé na pila também. Mareei sorriu.
- Jacqueline, querida, sempre gostei do teu estilo.
BAYSWATER, LONDRES
Fiona Barrows parecia-se muito com o prédio de apartamentos que geria em Sussex Gardens: ampla e atarracada, com uma camada brilhante de tinta que não conseguia esconder o facto de estar a envelhecer e não de uma forma muito graciosa. A curta caminhada do elevador até à entrada do apartamento vago deixou-a ligeiramente sem fôlego. Empurrou a chave para dentro da fechadura com a mão roliça, abriu a porta com um empurrão e um pequeno grunhido.
- Cá estamos nós - cantarolou.
Guiou-o numa curta visita: uma sala de estar mobilada com sofás e cadeiras bastante gastos, dois quartos idênticos com camas de casal e mesinhas-de-cabeceira iguais, uma pequena sala de jantar com uma mesa moderna de vidro colorido de cinzento, uma exígua cozinha de navio com um fogão de dois bicos e um microondas.
Ele regressou à sala de estar, parou em frente da janela, abriu as persianas. Do outro lado da rua estava outro prédio de apartamentos.
- Se quer a minha opinião, não podia pedir uma melhor localização em Londres por este preço - disse Fiona Barrows. - Oxford Street é muito perto e, claro, o Hyde Park fica logo ao virar da esquina. Tem filhos?
- Não, não tenho - respondeu Gabriel, distraído, ainda a olhar para o prédio de apartamentos do outro lado da rua.
- Que tipo de trabalho faz, se não me leva a mal perguntar?
- Sou restaurador de arte.
- Quer dizer que arranja quadros antigos?
- Qualquer coisa do género.
- Também trata das molduras? Tenho uma moldura antiga no meu apartamento que precisa de uns remendos.
- Receio que só as pinturas.
Ela olhou para ele parado à janela, a contemplar o espaço. Um homem atraente, pensou. Mãos bonitas. Mãos boas eram sexy num homem. Imagine-se, um restaurador de arte aqui mesmo no prédio. Seria bom ter por aqui um toque de classe para variar. Oh, se ainda fosse solteira - solteira, vinte anos mais nova e nove quilos mais leve. Era um fulano cuidadoso; conseguia ver isso. Um homem que nunca dava um passo sem pensar nele por todos os ângulos. Provavelmente, iria querer ver mais uma dúzia de apartamentos antes de se decidir.
- Então, o que acha?
- É perfeito --respondeu ele para a janela.
- Para quando é que o quer? Gabriel fechou a persiana.
- Imediatamente.
Durante dois dias, Gabriel observou-o.
No primeiro dia, só o viu uma vez - quando se levantou pouco depois do meio-dia e apareceu brevemente à janela, apenas com umas cuecas pretas vestidas. Tinha cabelos escuros e encaracolados, maçãs do rosto angulosas e lábios carnudos. O corpo era magro e levemente musculado. Gabriel abriu o ficheiro de Shamron e comparou a cara à janela com a fotografia presa por um clipe à capa de papel manilha.
O mesmo homem.
Gabriel podia sentir uma frieza operacional a apoderar-se de si, à medida que estudava a figura à janela. De repente, tudo parecia mais claro e nítido por contraste. Os ruídos pareciam mais altos e mais distintos - a porta de um carro a fechar-se, amantes a discutir no apartamento ao lado, um telefone a tocar sem ser atendido,
a sua chaleira para o chá a apitar com força na cozinha. Uma por urna, desligou estas intrusões e concentrou toda a atenção no homem à janela, do outro lado da rua.
Yusef al-Tawfiki, poeta nacionalista palestiniano em part-time, estudante no University College London em part-time, empregado de um restaurante libanês chamado Kebab Factory, em Edgware Road, em part-time, agente do exército secreto de Tariq a tempo inteiro.
Uma mão apareceu no abdómen de Yusef: pele clara, luminosa em contraste com a sua tez escura. Uma mão de mulher. Gabriel viu de relance um cabelo loiro curto. A seguir, Yusef desapareceu por trás das cortinas.
A rapariga saiu uma hora mais tarde. Antes de entrar no táxi, olhou para cima, na direcção do apartamento, para ver se o amante a estava a observar. A janela estava vazia e as cortinas corridas. Fechou a porta, com um pouco mais de força do que o necessário, e o táxi partiu.
Gabriel fez a primeira avaliação operacional: Yusef não tratava as suas mulheres bem.
No dia seguinte, Gabriel decidiu montar uma vigilância física pouco apertada.
Yusef saiu do apartamento ao meio-dia. Vestia uma camisa branca, calças pretas e um casaco de cabedal preto. Ao pisar o passeio, parou para acender um cigarro e sondar os carros estacionados, à procura de qualquer sinal de vigilância. Apagou o fósforo, agitando-o, e começou a andar na direcção de Edgware Road. Cerca de noventa metros depois, parou de repente, voltou-se e regressou à entrada do prédio de apartamentos.
Uma manobra típica de contravigilância, pensou Gabriel. E um profissional.
Cinco minutos depois, Yusef estava de volta à rua e a andar na direcção de Edgware Road. Gabriel foi à casa de banho, passou gel pelo cabelo curto e pôs uns óculos coloridos de vermelho. A seguir, vestiu o casaco e saiu.
Do outro lado da rua, em frente ao Kebab Factory, ficava um restaurante italiano. Gabriel entrou e sentou-se a uma mesa junto
à janela. Recordou-se das palestras na Academia. Se estivermos a vigiar um alvo a partir de um café, não devemos fazer coisas que nos façam parecer estar a vigiar um alvo a partir de um café, tais como ficarmos sentados sozinhos durante horas, a fingir estarmos a ler um jornal. Demasiado óbvio.
Gabriel transformou-se. Tornou-se Cedric, escritor para uma revista cultural de Paris. Falou inglês com um sotaque francês quase impenetrável. Afirmou estar a trabalhar numa história sobre o porquê de Londres ser tão excitante hoje em dia e Paris tão monótona. Fumou cigarros Gitane e bebeu uma grande quantidade de vinho. Manteve uma conversa entediante com um par de raparigas suecas na mesa ao lado. Convidou uma delas a ir até ao seu quarto de hotel. Quando ela recusou, convidou a outra. Quando ela recusou, convidou as duas. Entornou um copo de Chianti. O gerente, Signor Andriotti, veio até à mesa e avisou Cedric para estar sossegado ou teria de se ir embora.
E, no entanto, durante todo esse tempo, Gabriel estava a vigiar Yusef do outro lado da rua. Vigiou-o enquanto ele lidava com perícia com a multidão do almoço. Vigiou-o quando saiu por momentos do restaurante e subiu a rua até a uma tabacaria que vendia jornais de língua árabe. Vigiou-o enquanto uma rapariga morena, bonita, anotou o número de telefone nas costas de um guardanapo e o enfiou no bolso da camisa dele para não se perder. Vigiou-o enquanto mantinha uma longa conversa com um árabe de ar vigilante. Na verdade, no momento em que Gabriel despejava o Chianti, estava a memorizar a marca e a matrícula do Nissan do árabe. E enquanto afastava o exasperado Signor Andriotti, estava a vigiar Yusef a falar ao telefone. com quem estava a falar? Uma mulher? Um primo em Ramallah? O seu controleiro?
Passada uma hora, Gabriel decidiu que já não era sensato permanecer no café. Pagou a conta, deixou uma gorjeta generosa e pediu desculpas pelo comportamento grosseiro. Signor Andriotti guiou-o até à porta e fê-lo sair gentilmente.
Nessa noite, Gabriel estava sentado na cadeira junto à janela, à espera de que Yusef regressasse a casa. A rua brilhou com o
combóio da noite. Uma mota passou em alta velocidade, um rapaz a conduzir, uma rapariga à pendura, a implorar-lhe para abrandar. Provavelmente nada, mas tomou nota disso no livro de registos, juntamente com as horas: onze e um quarto.
Estava com dores de cabeça devido ao vinho. O apartamento já o começava a deprimir. Quantas noites tinha passado assim? Sentado num estéril apartamento seguro do Departamento ou num manhoso quarto arrendado, a vigiar, a aguardar. Ansiava por algo lindo, por isso enfiou um disco compacto de La Bohème na aparelhagem portátil aos seus pés e reduziu o volume até a um sussurro. Trabalho de espionagem é paciência, Shamron sempre o dissera. Trabalho de espionagem é tédio.
Levantou-se, foi até à cozinha, tomou aspirina para a dor de cabeça. Na porta ao lado, uma mãe e uma filha começaram a discutir num árabe com sotaque libanês. Um copo partiu-se, depois outro, uma porta bateu com força, uma correria lá fora no corredor.
Gabriel voltou a sentar-se e fechou os olhos, e um momento depois estava de volta ao Norte de África, há doze anos atrás.
Os botes de borracha chegaram à costa com a rebentação suave em E.ouad. Gabriel saltou para a água quente e a dar pelas canelas e puxou o bote para a areia. O grupo de comandos Sayaret seguiram-no ao longo da praia, as armas ao seu lado. Algures, um cão ladrava. O aroma a fumo de madeira e carne grelhada pairava no ar. A rapariga estava à espera ao volante de um miniautocarro Volkswagen. Quatro dos comandos entraram no Volkswagen com Gabriel. O resto enfiou-se num par de carrinhas Peugeot estacionadas por trás do miniautocarro. Uns segundos mais tarde, os motores começaram a trabalhar em uníssono e partiram velozmente pela noite fresca de Abril.
Gabriel usava um microfone de lábios ligado a um pequeno transmissor no bolso do casaco. O rádio emitia, através de uma onda segura, para um Boeing
707 especialmente equipado e a voar mesmo ao lado da costa tunisina, num corredor aéreo civil, fazendo-se passar por um El Al charter. Se algo corresse mal, podiam abortar a missão em segundos.
- A Mãe chegou bem - murmurou Gabriel.
Soltou o botão para falar e ouviu as palavras:
- Continuem até à casa da Mãe.
Gabriel segurou a Beretta entre os joelhos durante o percurso e fumou devido aos nervos. A rapariga manteve as duas mãos no volante, os olhos fixos nas ruas escurecidas. Era alta, mais alta do que Leah, com olhos pretos e uma juba de cabelo escuro segura por um simples gancho prateado na nuca. Sabia o caminho tão bem quanto Gabriel. Quando Shamron enviou Gabriel para Tunes para estudar o alvo, a rapariga tinha ido consigo efeito passar-se por sua mulher. Gabriel esticou-se e apertou-lhe o ombro gentilmente enquanto conduzia. Os músculos estavam rígidos.
- Relaxa - disse suavemente, e ela sorriu por um breve instante e soltou um longo suspiro. - Estás a ir muito bem.
Entraram em Sidi Boussaid, um subúrbio abastado de Tunes não muito longe do mar, e estacionaram à entrada da vivenda. Os Peugeots pararam atrás deles. A rapariga desligou o motor. Doze e quinze. Exactamente na hora prevista.
Gabriel conhecia a casa de férias tão bem quanto a sua casa. Estudara-a e fotografara-a de todas as posições privilegiadas possíveis e imagináveis, durante a operação de vigilância. Tinham construído uma réplica perfeita no Negev, onde ele e o resto da equipa ensaiaram o ataque inúmeras vezes. Durante a sessão final, conseguiram levar a cabo a missão em vinte e dois segundos.
- Chegámos à casa da Mãe - Gabriel murmurou ao rádio.
- Façam uma visita à mãe. Gabriel voltou-se e disse:
- Vamos.
Abriu aporta do miniautocarro e atravessou a rua, a andar velozmente, não a correr. Conseguia escutar os passos silenciosos do grupo Sayaret atrás de si. Gabriel inspirou várias vezes para tentar baixar o ritmo cardíaco. A casa de férias pertencia a Khalil el-Wair, mais conhecido por Abu ]ihad, chefe de operações da OLP e o tenente de maior confiança de Yasser Arafat.
Logo aporta da casa de férias, o motorista de Abu ihad estava a dormir atrás do volante de um Mercedes, um presente de Arafat. Gabriel enfiou aponta da Beretta com silenciador no ouvido do motorista, puxou o gatilho, continuou a andar.
A entrada para a casa de férias, Gabriel afastou-se enquanto um par de comandos Sayaret prendiam um plástico silencioso especial à porta pesada.
O explosivo detonou, emitindo menos som do que um bater de palmas, e a porta explodiu. Gabriel liderou o grupo pelo hall de entrada adentro, a Beretta nas mãos estendidas.
Um segurança tunisino apareceu. Enquanto procurava sacar da arma, Gabriel alvejou-o por diversas vezes no peito.
Gabriel debruçou-se sobre o moribundo e disse.
- Diz-me onde ele está e não te dou um tiro no olho.
Mas o segurança limitou-se a soltar um esgar de dor e não respondeu nada.
Gabriel deu-lhe dois tiros na cara.
Subiu as escadas, enfiando um carregador novo na Beretta enquanto andava, e dirigiu-se até ao estúdio onde Abu Jihad passava a maior parte das noites a trabalhar. Irrompeu pela porta e encontrou o palestiniano sentado à frente de uma televisão, a ver notícias da intifada, que estava a ajudar a dirigir a partir de Tunes. Abu jihad tentou chegar a uma pistola. Gabriel avançou enquanto disparava, tal como Shamron o treinara para fazer. Dois dos disparos atingiram Abu Jihad no peito. Gabriel debruçou-se sobre ele, empurrou-lhe a arma contra a têmpora e disparou mais duas vezes. O corpo agitou-se num espasmo de morte.
Gabriel precipitou-se para fora da sala. No corredor, estava a mulher de Abu Jihad, a apertar o filho pequeno nos braços, e a sua filha adolescente. Fechou os olhos e agarrou o rapaz com mais força, à espera que Gabriel a matasse.
- Volte para o seu quarto! - gritou ele em árabe. Depois voltou-se para afilha:
- Vai e cuida da tua mãe.
Gabriel escapuliu-se da casa, seguido pelo grupo Sayaret inteiro. Amontoaram-se no miniautocarro e nos Peugeots e partiram a toda a velocidade. Atravessaram Sidi Boussaid, de volta até Rouad, onde abandonaram os veículos na praia e subiram para os botes. Um instante depois, estavam a acelerar pela superfície negra do Mediterrâneo, em direcção às luzes de um barco-patrulha israelita que aguardava.
- Treze segundos, Gabriel! Fizeste-o em treze segundos!
Era a rapariga. Esticou-se para o tocar, mas ele recuou. Viu as luzes do barco a aproximarem-se. Olhou para o céu preto, à procura do avião de comando, mas viu apenas uma Lua fina e uma chuva de estrelas. A seguir, viu os
rostos da mulher e dos filhos de Abu Jihad, a olhar fixamente para si, com ódio a arder-lhes nos olhos,
Atirou a Beretta para o mar e começou a tremer.
A discussão na porta ao lado tinha acalmado. Gabriel queria pensar em algo sem ser Tunes, por isso imaginou estar a velejar na sua chalupa por Helford Passage, a caminho do mar. Depois pensou no Vecellio, despido de verniz sujo, os estragos de séculos à mostra. Pensou em Peel e, pela primeira vez nesse dia, pensou em Dani. Lembrou-se de estar a puxar o que restava do seu corpo dos destroços flamejantes do carro em Viena, de verificar se, de algum modo, teria sobrevivido, de agradecer a Deus por ter morrido depressa e não ter sobrevivido com um braço e uma perna e metade da cara.
Levantou-se e andou pelo quarto, a tentar fazer com que a imagem desaparecesse, e, por alguma razão, deu por si a pensar na mãe de Peel. Várias vezes, durante a estadia em Port Navas, tinha dado por si a fantasiar com ela. Começava sempre do mesmo modo. Davam de caras um com o outro na aldeia e ela anunciava de forma espontânea que Derek tinha saído para uma longa caminhada pelo Lizard, para tentar emendar o segundo acto.
- Vai demorar horas - dizia. - Quer ir lá a casa tomar um chá?
Respondia que sim, mas em vez de servir chá, ela levava-o até lá acima, para a cama de Derek, e deixava-o descarregar nove anos de abstinência auto-imposta no seu corpo flexível. A seguir, ficava deitada com a cabeça no estômago dele, o cabelo húmido espalhado ao longo do peito dele.
- Não és mesmo um restaurador de arte, pois não? - perguntava na fantasia.
E Gabriel contava-lhe a verdade:
- Mato pessoas para o governo de Israel. Matei Abu Jihad à frente da mulher e dos filhos. Matei três pessoas em treze segundos nessa noite. O primeiro-ministro deu-me uma medalha por isso. Já tive uma mulher e um filho, mas um terrorista pôs uma bomba por baixo do carro deles porque tive um caso com a minha bat leveyha em Tunes.
E a mãe de Peel corria para fora do chalé a gritar, o corpo enrolado num lençol de cama branco, o lençol manchado com o sangue de Leah.
Regressou à cadeira e esperou por Yusef. O rosto da mãe de Peel tinha sido substituído pelo rosto da Virgem Maria de Vecellio. Para ajudar a preencher as horas livres, Gabriel mergulhou um pincel imaginário num pigmento imaginário e curou com ternura a sua bochecha ferida.
Yusef chegou a casa às 3 horas da manhã. Estava uma rapariga consigo, a rapariga que lhe tinha dado o número de telefone naquela tarde no restaurante. Gabriel observou-os a desaparecer pela entrada da frente. Lá em cima, no apartamento, as luzes acenderam-se por breves momentos, antes de Yusef fazer a aparição nocturna à janela. Gabriel desejou-lhe uma boa noite enquanto ele desaparecia por trás da cortina. A seguir, deixou-se cair no sofá e fechou os olhos. Hoje tinha observado. Amanhã começaria a escutar.

AMESTERDÃO

Três horas mais tarde, uma jovem esbelta chamada Inge van der Hoff saiu de um bar no bairro da luz vermelha e caminhou depressa por uma viela estreita. Saia preta de cabedal, meias pretas, casaco preto de cabedal, botas a causar um estardalhaço nos tijolos da viela. As ruas da parte velha ainda estavam escuras, uma neblina leve a cair. Levantou a cara em direcção ao céu. A neblina sabia a sal, cheirava ao mar do Norte. Passou por dois homens, um bêbado e um vendedor de haxixe, baixou a cabeça, continuou a andar. O patrão não gostava que voltasse a pé para casa de manhã, mas após uma longa noite a servir bebidas e a repelir os avanços de clientes embriagados, sabia sempre bem ficar sozinha por uns minutos.
De repente, sentiu-se muito cansada. Precisava de dormir. Pensou: Do que eu preciso mesmo é de uma dose. Espero que a Leila se tenha orientado esta noite.
Leila... Adorava o som do nome dela. Adorava tudo acerca dela. Tinham-se conhecido duas semanas antes no bar. Leila tinha vindo por três noites consecutivas, sempre sozinha. Ficava durante uma hora, bebia um shot de. jenever1, uma Grolscti1, umas passas de haxixe, ouvia a música. De cada vez que Inge ia até à mesa dela, conseguia sentir os olhos da rapariga postos em si. Inge tinha de admitir que
1 licor alcoólico tradicional holandês e da Flandres, de sabor a zimbro. (N. da T.)
2 Marca de cerveja holandesa. (N. da T.)
admitir que gostava. Era uma mulher estonteantemente atraente, com cabelo preto lustroso e grandes olhos castanhos. Por fim, na terceira noite, Inge apresentou-se e começaram a conversar. Leila disse que o pai era um homem de negócios e que ela tinha vivido por todo o mundo. Disse que estava a tirar um ano de descanso dos estudos em Paris, apenas a viajar e a viver a vida. Disse que Amesterdão a encantava. Os canais pitorescos. As casas com empenas, os museus e os parques. Queria ficar por uns meses, ficar a conhecer o sítio.
- Onde é que estás a morar? - perguntara Inge.
- Numa pousada da juventude no Sul de Amesterdão. É horrível. Onde é que moras?
- Numa casa flutuante no Amstel.
- Uma casa flutuante! Que maravilha.
- É do meu irmão, mas ele está em Roterdão durante uns meses a trabalhar num grande projecto de construção.
- Estás a oferecer-te para me deixares dormir na tua casa flutuante durante uns dias?
- Estou a oferecer-me para te deixar ficar o tempo que quiseres. Não gosto de chegar a casa e encontrar um sítio vazio.
A alvorada estava a nascer no rio, as primeiras luzes a brilhar nas casas flutuantes alinhadas no dique. Inge andou uma pequena distância ao longo do cais, depois pisou o convés da sua casa. As cortinas estavam corridas sobre as janelas. Atravessou o convés e entrou na cabina. Esperava encontrar Leila a dormir na cama, mas, em vez disso, estava ao fogão a fazer café. No chão, ao seu lado, estava uma mala. Inge fechou a porta, a tentar esconder o desapontamento.
- Telefonei ao meu irmão em Paris a noite passada, enquanto estavas no trabalho - disse Leila. - O meu pai está muito doente. Tenho de ir já para casa, para estar com a minha mãe. Desculpa, Inge.
- Vais estar fora quanto tempo?
- Uma semana, duas, no máximo.
- Vais voltar?
- Claro que vou voltar!
Beijou a bochecha de Inge e passou-lhe uma chávena de café.
- O meu voo parte daqui a duas horas. Senta-te. Preciso de falar contigo sobre uma coisa.
Sentaram-se na cabina. Leila disse:
- Um amigo meu chega a Amesterdão amanhã. Chama-se Paul. É francês. Estava a pensar se podia cá ficar por alguns dias até arranjar um sítio para ele.
- Leila, não...
- É um bom homem, Inge. Não vai tentar nada contigo, se é com isso que estás preocupada.
- Sei tomar conta de mim.
- Então vais deixar o Paul cá ficar por alguns dias?
- Quantos dias são alguns dias?
- Uma semana, talvez.
- E o que é que recebo em troca?
Leila enfiou a mão no bolso, tirou um pequeno saco de pó branco e segurou-o à frente de si, entre o polegar e o indicador. Inge esticou-se e sacou-o.
- Leila, és um anjo!
- Eu sei.
Inge foi para o quarto e abriu a gaveta de cima da cómoda. Lá dentro, estava o seu kit caixa de seringas, vela, colher, tubo de borracha para atar à volta do braço. Preparou a droga enquanto Leila arrumava as últimas coisas. Introduziu a droga na seringa e enfiou com cuidado a agulha numa veia no braço esquerdo.
Um momento depois, o corpo foi invadido por uma sensação intensamente agradável de dormência. E a última coisa de que se lembrou, antes de ficar inconsciente, foi da visão de Leila, a sua amante linda, a sair pela porta fora e a pairar pelo cais da casa flutuante.
BAYSWATER, LONDRES
Randall Karp, anteriormente do Departamento de Serviços Técnicos, em Langley, Virgínia, nos últimos tempos da dubiamente apelidada Clarendon International Security, em Mayfair, Londres, chegou ao apartamento de Gabriel em Sussex Gardens nos momentos tranquilos que antecedem a alvorada. Vestia um pulôver de lã para se proteger do frio matinal, calças de ganga azul-claras e sandálias de camurça a combinar com as meias grossas de lã de um amante do ar livre. Nas extremidades de cada um dos braços, parecidos com os de uma aranha, estava um saco de lona, um com o seu kit, o outro com as ferramentas do ofício. Pousou os sacos na sala de estar com um ar de contentamento discreto e apreciou o ambiente.
- Gosto do que fizeste com o sítio, Gabe.
Falava com o sotaque monótono do Sul da Califórnia e, desde que Gabriel o vira pela última vez, deixara crescer um rabo-de-cavalo para compensar a calvície que alastrava rapidamente.
- Até tem o cheiro certo. O que é? Caril? Cigarros? Um pouco de leite estragado? Acho que vou gostar de estar cá.
- Estou muito satisfeito. Karp dirigiu-se para a janela.
- Então, onde é que está o nosso rapaz?
- Terceiro andar, directamente por cima da entrada. Cortinas brancas.
- Quem é ele?
- É um palestiniano que deseja fazer mal ao meu país.
- Era capaz de chegar até aí sozinho. Podes desenvolver? Hamas? Hezbollah? Jihad Islâmica?
Mas Gabriel não disse nada e Karp percebeu que não devia insistir. Karp era um consumado técnico de som, e os técnicos estavam acostumados a trabalhar apenas com metade da informação. Tinha atingido um estatuto lendário dentro da comunidade dos serviços secretos ocidental por ter monitorizado, com sucesso, um encontro entre um russo e um agente em Praga, ao prender um microfone na coleira do cão do russo. Gabriel conhecera-o em Chipre, durante uma operação de vigilância conjunta entre americanos e israelitas a um agente líbio. A seguir à operação, por sugestão de Shamron, Gabriel alugou um iate e levou Karp a velejar à volta da ilha. A destreza náutica de Karp era tão boa quanto o trabalho de vigilância e, durante os três dias de cruzeiro, construíram uma ligação profissional e pessoal.
- Porquê eu, Gabe? - perguntou Karp. - Os vossos rapazes têm os melhores brinquedos do ramo. Coisas lindas. Porque é que precisas de um forasteiro como eu para fazer um trabalho simples como este?
- Porque os nossos rapazes ultimamente não têm sido capazes de fazer um trabalho como este sem se queimarem.
- Pois, li que não. Preferia não acabar na cadeia, Gabe, se me estás a entender.
- Ninguém vai para a cadeia, Randy. Karp voltou-se e contemplou a janela.
- Então e o rapaz do outro lado da rua? Vai para a cadeia ou tens outros planos para ele?
- O que é que estás a perguntar?
- Estou a perguntar se este vai acabar numa viela, cheio de buracos de balas de calibre vinte e dois. As pessoas têm o hábito esquisito de acabarem mortas sempre que apareces.
- É um trabalho de vigilância puro e simples. Quero saber com quem está a falar, o que está a dizer. O habitual.
Karp dobrou os braços e estudou os ângulos.
- É um profissional?
- Parece ser bom. Muito disciplinado na rua.
- Podia tentar apontar para o vidro da janela, mas se é um profissional, vai tomar medidas reactivas e fazer-nos a vida num inferno. Para além disso, o laser não é muito discriminativo. Lê as vibrações do vidro e converte-as em som. O trânsito faz o vidro vibrar, o vento, os vizinhos, o leitor de CD dele. Não é a melhor maneira de o fazer.
- O que é que queres fazer?
- Podia apanhar o telefone dele desde a caixa de interface dos assinantes.
- Interface dos assinantes?
Karp levantou a mão e apontou em direcção ao prédio de apartamentos.
- Aquela caixa de metal na parede logo ali à esquerda da entrada. É aí que as linhas da British Telecom entram no edifício. A partir daí, as linhas estendem-se para os assinantes individuais. Podia pôr uma simples escuta rf na linha dele ali mesmo. Transmitiria um sinal analógico e conseguiríamos ouvir as conversas telefónicas a partir daqui, com um rádio FM normal.
- Também preciso de cobertura das salas.
- Se queres uma boa cobertura das salas, vais ter de entrar no apartamento.
- Então entramos no apartamento. !
- É assim que as pessoas vão parar à cadeia, Gabe.
- Ninguém vai para a cadeia.
- O nosso rapaz tem um computador?
- Presumo que sim. É estudante em part-time.
- Podia enfiar-lhe com uma Tempestade.
- Desculpa, Randy, mas estive fora do jogo por alguns anos.
- É um sistema que foi desenvolvido por um cientista holandês chamado Van Eyck. O computador comunica com o monitor transmitindo sinais pelo cabo. Esses sinais têm frequência e podem ser captados por um receptor devidamente sintonizado. Se estiver a fazer negócios ao computador, podemos vigiá-lo a partir daqui. Será como estar por cima do ombro dele enquanto trabalha.
- Faz isso - disse Gabriel. - Também quero o telefone de trabalho.
- Onde é que ele trabalha?
- Num restaurante em Edgware Road.
- Uma escuta rf nunca será capaz de transmitir de Edgware Road até aqui. A perda durante o caminho é demasiado grande. vou precisar de instalar um repetidor, um ponto para um interruptor electromagnético entre o restaurante e aqui, para aumentar o sinal.
- Do que é que precisas? - De um veículo qualquer. ?;
- Um carro serve?
- Um carro será óptimo.
- Arranjo-te um hoje.
- Limpo?
- Limpo.
- Vais arranjá-lo de um dos teus ajudantezinhos?
- Não te preocupes com a forma como o vou arranjar.
- Mas, por favor, não o roubes. Não quero estar a guiar um carro procurado.
Nesse momento, Yusef apareceu à janela e iniciou a inspecção matinal à rua em baixo.
- Então aquele é o nosso rapaz? - perguntou Karp.
- É ele.
- Diz-me uma coisa, Gabe. Exactamente como é que estás a planear entrar no apartamento?
Gabriel olhou para Karp e sorriu.
- Ele gosta de raparigas.
Às duas horas da manhã seguinte, Gabriel e Karp entraram furtivamente na viela por trás do Kebab Factory. Para chegar à caixa de interface dos assinantes, Karp teve de se equilibrar em cima de um caixote de lixo grande, ondulado e cheio de lixo a apodrecer. Forçou a fechadura, abriu a portinha e, durante dois minutos, trabalhou em silêncio, sob o feixe fraco da luz de uma caneta segura entre os dentes da frente.
Gabriel ficou de guarda em baixo, com a atenção concentrada na entrada da viela.
- Falta muito? - murmurou.
- Um minuto, se te calares. Dois, se insistires em falar comigo. Gabriel voltou a olhar para baixo e avistou dois homens com
casacos de cabedal a andar na sua direcção. Um pegou numa garrafa e partiu-a contra uma parede. O amigo quase caiu de riso.
Gabriel afastou-se uns centímetros de Karp, encostou-se a uma parede e fingiu estar doente. Os dois homens acercaram-se. O maior agarrou-lhe o ombro. Tinha uma cicatriz branca em relevo ao longo da bochecha direita e tresandava a cerveja e a uísque. O outro sorriu de forma estúpida, a mostrar os dentes. Era magro e tinha rapado a cabeça. A pele clara brilhava na luz fraca da viela.
- Por favor, não quero problemas - disse Gabriel, num inglês com sotaque francês. - Só estou doente. Bebi demasiado, sabem?
- O raio de um franciú - cantarolou o careca. - E tem ar de maricas, também.
- Por favor, não quero problemas - repetiu Gabriel. Levou a mão ao bolso, tirou várias notas amarrotadas de vinte
libras e estendeu-as.
- Pronto, levem-me o dinheiro. Mas deixem-me em paz.
Mas o grande com a cicatriz arrancou o dinheiro da mão de Gabriel com uma chapada. A seguir, recuou o punho e lançou um soco violento em arco na direcção da cabeça de Gabriel.
Dez minutos mais tarde, estavam de volta ao apartamento. Karp estava sentado em frente ao equipamento na mesa da sala de jantar. Pegou num telemóvel e ligou para o restaurante. Enquanto a chamada estava a tocar, pousou o telefone e aumentou o volume do receptor. Conseguia ouvir uma mensagem gravada a dizer que o Kebab Factory estava fechado e não voltaria a abrir até às onze e trinta do dia seguinte. Marcou o número outra vez e mais uma vez conseguiu ouvir a mensagem pelo receptor. A escuta e o repetidor estavam a funcionar na perfeição.
Enquanto guardava as ferramentas, pensou na contribuição de Gabriel para o trabalho daquela noite. Durara precisamente três segundos, pelos cálculos de Karp. Não viu nada - a sua atenção tinha permanecido fixada no trabalho -, mas ouvira tudo. Tinha havido quatro golpes duros. O último foi o mais cruel. Karp ouvira sem sombra de dúvida ossos a partirem-se. Tinha olhado para baixo apenas depois de terminar a instalação e fechar a caixa. Nunca mais iria esquecer a visão: Gabriel Allon, a debruçar-se sobre cada uma das vítimas, a verificar-lhes a garganta com suavidade, à procura de pulso, certificando-se que não os tinha matado.
Na manhã seguinte, Gabriel saiu para comprar o jornal. Percorreu a caminho até Edgware Road sob um chuvisco fraco e comprou um exemplar do The Times numa banca. Aconchegou o jornal dentro do casaco e caminhou pela rua até a um pequeno mercado. Lá, comprou cola, tesouras e um segundo exemplar do The Times.
Karp ainda estava a dormir quando Gabriel regressou ao apartamento. Sentou-se à mesa com duas folhas de papel simples à frente. No cimo de uma página, escreveu a autorização de segurança - top secret - e o destinatário - Rom, o nome de código para o chefe.
Durante quinze minutos, Gabriel escreveu, a mão direita a rabiscar ritmicamente ao longo da página, a esquerda encostada à têmpora. A prosa era concisa e económica, como Shamron gostava.
Quando terminou, pegou num exemplar do The Times, abriu na página oito e recortou com cuidado um anúncio grande a uma cadeia de lojas de roupa para homens. Deitou fora o resto do jornal, depois pegou no segundo exemplar e abriu-o na mesma página. Colocou o relatório por cima do anúncio, depois colou o recorte por cima do relatório. Dobrou o jornal e enfiou-o no bolso lateral de um pequeno saco de viagem preto. Depois vestiu um casaco, pôs a mala ao ombro e saiu.
Andou até Marble Arch e entrou no metro. Comprou um bilhete na máquina automática e antes de passar pelos torniquetes fez
um telefonema curto. Quinze minutos mais tarde, chegou a Waterloo.
O bodel de Shamron estava à espera num café no terminal de bilhetes Eurostar, a segurar um saco de compras de plástico com o nome de um cigarro americano. Gabriel sentou-se na mesa ao lado, a beber chá e a ler o jornal. Quando terminou o chá, levantou-se e foi-se embora, deixando o jornal para trás. O bodel enfiou-o no saco de compras e partiu na direcção oposta.
Gabriel aguardou no terminal que o seu comboio fosse chamado. Dez minutos mais tarde, embarcou no Eurostar para Paris.

 

AMESTERDÃO
A elegante casa no canal ficava no Herengracht, na Curva Dourada do Anel Central do Canal de Amesterdão. Era alta e ampla, com grandes janelas com vista para o canal e uma empena elevada. O proprietário, David Morgenthau, era o multimilionário presidente da Optique, um dos maiores fabricantes do mundo de óculos de designer. Era também um sionísta fervoroso. Ao longo dos anos, tinha dado milhões de dólares a obras de caridade israelitas e investido ainda mais milhões em negócios israelitas. Americano de origem judia-holandesa, Morgenthau estivera nas direcções de várias organizações judaicas nova-iorquinas e era visto como um falcão no que dizia respeito a assuntos da segurança israelita. Ele e a mulher, Cynthia, uma designer de interiores nova-iorquina de renome, visitavam a sua casa em Amesterdão com regularidade e precisão, duas vezes por ano - uma vez no Verão, a caminho da vivenda à saída de Cannes, e uma vez mais no Inverno, para as férias.
Tariq estava sentado num café do outro lado do canal, a beber chá doce quente. Sabia outras coisas acerca de David Morgenthau
- coisas que não apareciam nas páginas de sociedade ou nas revistas de negócios do mundo. Sabia que Morgenthau era amigo íntimo do primeiro-ministro israelita, que tinha feito certos favores a Ari Shamron e que em tempos servira de elo de ligação secreto entre o governo israelita e a OLP. Por todas essas razões, Tariq ia matá-lo.
Leila preparara um relatório de vigilância pormenorizado
durante a estada em Amesterdão. David e Cynthia Morgenthau saíam todas as manhãs de casa para visitar museus ou ir patinar no gelo para o campo. Durante o dia, a única pessoa que ficava em casa era a empregada, uma rapariga holandesa.
Isto vai ser muito fácil.
Um Mercedes com motorista travou a fundo à porta da casa. Tariq olhou para o relógio: quatro horas da tarde, mesmo na hora. Um homem alto e de cabelo grisalho saiu do carro. Vestia uma camisola grossa e pesadas calças de tecido canelado e carregava dois pares de patins no gelo. Um momento depois, saiu uma mulher atraente, vestida com umas calças justas de lã preta e um pulôver. Ao entrarem na casa, o Mercedes arrancou.
Tariq deixou uns quantos florins em cima da mesa e saiu.
A neve caía sobre o Herengracht, enquanto se deslocava lentamente em direcção à casa flutuante no Amstel. Um par de ciclistas passaram a deslizar de forma silenciosa, deixando faixas de preto na neve recente. O anoitecer numa cidade estrangeira fazia-o sempre ficar melancólico. Luzes a acenderem-se, escritórios a esvaziarem-se, bares e cafés a encherem lentamente. Através das janelas amplas das casas do canal, conseguia ver pais a regressar a casa e aos filhos, maridos a regressar a casa e às mulheres, amantes a reunirem-se, luzes calorosas a trabalhar. Vida, pensou. A vida de outra pessoa, a terra natal de outra pessoa.
Pensou no que Kemel lhe tinha contado durante o encontro no comboio. A antiga némesis de Tariq, Gabriel Allon, fora trazida de volta para ajudar Ari Shamron a encontrá-lo. A notícia não o preocupou. Na realidade, recebeu-a com prazer. Ia tornar as próximas semanas ainda mais doces. Imagine-se, destruir o suposto processo de paz e acertar contas com Gabriel Allon, tudo ao mesmo tempo...
Matar Allon não seria fácil, mas enquanto vagueava ao longo das margens do Herengracht, percebeu que já tinha uma vantagem clara sobre o seu oponente. O simples facto de saber que Allon estava algures por aí à sua procura dava vantagem a Tariq. O caçador
tem de vir até à presa para desferir o golpe mortal. Se Tariq jogasse bem o jogo, podia atrair Allon a uma armadilha. E depois mato-o, como ele matou o Mahmoud.
Os serviços secretos têm duas formas essenciais de tentar apanhar um terrorista. Podem utilizar a sua tecnologia superior para interceptar as comunicações do terrorista, ou podem penetrar na organização deste, introduzindo um espião ou convencendo um agente activo a trocar de lado. Tariq e Kemel tinham cuidado com o modo como comunicavam. Evitavam os telefones e a Internet sempre que possível e utilizavam em vez disso correios. Como o idiota que o Kemel enviou para Samos! Não, não seriam capazes de o localizar interceptando-lhe as comunicações, por isso teriam de tentar penetrar no seu grupo. Era difícil para uma agência de espionagem penetrar em qualquer grupo terrorista, mas ia ser ainda mais difícil entrar na de Tariq. A organização era pequena, muito unida e bastante móvel. Eram dedicados à luta, muito bem treinados e intensamente leais. Nenhum dos seus agentes o ia alguma vez atraiçoar aos judeus.
Tariq podia utilizar isto como vantagem. Tinha dado instruções a Kemel para contactar todos os agentes e lhes dar uma simples instrução. Se algum reparasse em algo fora do normal - tal como vigilância ou uma abordagem de um estranho -, devia-o comunicar de imediato. Se Tariq conseguisse estabelecer que os serviços secretos israelitas estavam envolvidos, seria de imediato transformado de presa em caçador.
Pensou numa operação que havia conduzido enquanto ainda estava com a Jihaz el-Razd, o braço de espionagem da OLP. Tinha identificado um agente do Departamento a trabalhar com cobertura diplomática a partir da Embaixada israelita em Madrid. O funcionário conseguira recrutar diversos espiões no interior da OLP e Tariq decidira que era altura de se vingar. Enviou um palestiniano para Madrid, fazendo-o passar por desertor. O palestiniano encontrou-se com o funcionário israelita dentro da embaixada e prometeu entregar informação sensível sobre os líderes da OLP e os seus hábitos. De início, o israelita recusou. Tariq tinha-o previsto, por isso dera ao agente vários pedaços de informação verdadeira e relativamente
inofensiva - tudo coisas que os israelitas já sabiam. O israelita acreditou que estava a lidar com um verdadeiro desertor e concordou em encontrar-se com o palestiniano uma segunda vez, num café, uma semana mais tarde. Mas desta vez Tariq viajou para Madrid. Entrou no café à hora combinada, disparou dois tiros na cara do funcionário e saiu calmamente.
Chegou ao rio e andou uma pequena distância ao longo do dique, até chegar à casa flutuante da rapariga. Era um sítio deprimente - sujo, cheio de acessórios para drogas e sexo - mas um lugar perfeito para se esconder enquanto planeava o ataque. Atravessou o convés coberto pela neve recente, e entrou na cabina muito fria. Tariq ligou um candeeiro e a seguir ligou o pequeno aquecedor eléctrico. Conseguia ouvir a rapariga a mexer-se no quarto, por baixo dos cobertores. Era um farrapo patético, nada como a rapariga com quem tinha ficado em Paris. Ninguém iria sentir falta desta quando desaparecesse.
Virou-se e olhou para ele através das madeixas do cabelo loiro fino e seco.
- Onde é que estiveste? Estava preocupada contigo.
- Fui só andar um pouco. Adoro andar nesta cidade, especialmente quando está a nevar.
- Que horas são?
- Quatro e meia. Não devias estar a sair da cama?
- Só tenho de sair daqui a uma hora.
Tariq preparou-lhe uma caneca de Nescafé e levou-a até ao quarto. Inge virou-se e apoiou-se no cotovelo. O cobertor caiu-lhe pelo corpo abaixo, expondo-lhe os seios. Tariq entregou-lhe o café e desviou o olhar. A rapariga bebeu o café, os olhos a olhar para ele por cima da asa da caneca. Perguntou:
- Alguma coisa errada?
- Não, nada.
- Porque é que desviaste o olhar?
Sentou-se e afastou os cobertores. Ele queria dizer que não, mas temeu que ela pudesse ficar com suspeitas de um francês que resistisse aos avanços de uma rapariga atraente. Por isso, ficou parado
à borda da cama e deixou-a despi-lo. Uns momentos mais tarde, enquanto explodia dentro dela, não pensava na rapariga mas sim em como iria finalmente matar Gabriel Allon.
Deixou-se ficar na cama muito tempo depois de ela ter saído, a ouvir os sons dos barcos a moverem-se pelo rio. A dor de cabeça veio uma hora mais tarde. Agora vinham com mais frequência três, às vezes quatro por semana. O médico avisara-o de que se iria passar assim. A dor foi-se intensificando devagar e quase perdeu os sentidos com ela. Colocou uma toalha fresca e húmida na cara. Analgésicos, não. Entorpeciam-lhe os sentidos, faziam-no dormir um sono demasiado pesado e provocavam-lhe a sensação de estar a cair vertiginosamente para trás, por um abismo abaixo. Por isso, deixou-se ficar sozinho na cama da rapariga holandesa, numa casa flutuante no rio Amstel, a sentir-se como se alguém lhe estivesse a despejar chumbo fundido no crânio através das órbitas.
VALBONNE, PRÓVENÇA
A manhã estava límpida e fria, a luz do Sol a inundar as colinas. Jacqueline vestiu umas calças de ciclista de camurça e uma camisola de lã e enfiou o cabelo comprido debaixo de um capacete azul-escuro. Pôs uns óculos de sol de ciclista e estudou a aparência ao espelho. Parecia um homem muito bonito, o que era a sua intenção. Fez alongamentos no chão do quarto, depois desceu até ao átrio de entrada, onde a sua bicicleta de corrida Bianchi estava encostada a uma parede. Empurrou a bicicleta pela porta da frente e guiou-a pelo caminho de gravilha. Um instante mais tarde, estava a deslizar através das sombras frias, pela colina comprida e suave abaixo, na direcção da aldeia.
Deslizou por Valbonne e fez a subida comprida e contínua em direcção a Ópio, o ar frio a queimar-lhe as bochechas. Pedalou devagar e a um ritmo regular durante os primeiros quilómetros, enquanto os músculos aqueciam. A seguir pôs uma mudança acima e aumentou a cadência do pedalar. Pouco depois, estava a voar pela estrada estreita, a cabeça para baixo, as pernas a bombear como pistões. O cheiro a alfazema pairava no ar. Ao seu lado, uma plantação de oliveiras descia por uma encosta em socalcos. Saiu debaixo das sombras das oliveiras e chegou a uma planície com a luz do Sol quente. Um momento depois, pôde sentir o primeiro suor por baixo da camisola.
A meio do caminho, verificou o tempo: só trinta segundos a mais do que o seu melhor. Nada mau para uma manhã fria de
Dezembro. Contornou uma rotunda, pôs uma mudança abaixo e começou a subir uma colina longa e íngreme. Uns momentos mais tarde, a respiração estava ruidosa e ofegante e as pernas a arder - demasiados cigarros de um raio! - mas forçou-se a continuar sentada e a avançar pesadamente pela longa colina. Pensou em Michel Duval: Porco! A uns noventa metros do cume, levantou-se do selim, pressionando os pés com fúria nas correias, gritando consigo mesma para continuar e não ceder à dor. Foi recompensada com uma longa descida. Podia ter-se deixado ir, mas em vez disso bebeu um gole rápido e fez um sprint pela colina abaixo. Ao entrar novamente em Valbonne, olhou para o relógio. Um novo recorde pessoal por uma diferença de quinze segundos. Obrigada, Michel Duval.
Saiu de cima da bicicleta e empurrou-a pelas ruas silenciosas da povoação antiga. Na praça central, apoiou a bicicleta contra um pilar, comprou um jornal e ofereceu a si mesma um croissant aquecido e uma chávena cheia de café com leite a escaldar. Quando terminou, foi buscar a bicicleta e empurrou-a ao longo de uma rua com sombras.
No final de uma fila de chalés, com vista para o parque de estacionamento da povoação, ficava um edifício comercial. Um letreiro estava pendurado na janela: todo o piso zero estava disponível. Estava livre há meses. Jacqueline pôs as mãos em concha à volta dos olhos e espreitou através do vidro sujo: um espaço aberto e grande, chão de madeira, tecto alto. Perfeito para um estúdio de dança. Tinha uma fantasia. Ia abandonar a carreira de modelo e abrir uma escola de bailei em Valbonne. Ia servir as raparigas locais durante a maior parte do ano, mas em Agosto, quando os turistas inundassem Valbonne para as férias de Verão, abriria a escola aos visitantes. Ia ensinar durante umas horas por dia, andar de bicicleta pelas colinas, beber café e ler no café da praça. Mudar de nome e de imagem. Tornar-se Sarah Halévy outra vez - Sarah Halévy, a rapariga judia de Marselha. Mas para abrir a escola precisava de dinheiro e para conseguir dinheiro tinha de prosseguir a carreira de modelo. Tinha de voltar a Paris e aturar homens como Michel Duval durante um pouco mais de tempo. Depois ficaria livre.
Montou a bicicleta e pedalou devagar de regresso a casa. Era uma vivenda bastante pequena, da cor do arenito e com um
telhado de telhas vermelhas, escondida por uma fila de imponentes ciprestes. No jardim grande e em socalcos, com vista para o vale, alecrim e alfazema cresciam de modo selvagem entre as oliveiras e as pimenteiras murchas. No princípio do jardim, estava uma piscina rectangular.
Jacqueline abriu a porta e entrou, encostou a bicicleta no átrio de entrada e foi até à cozinha. A luz vermelha do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no botão de reprodução e fez café enquanto ouvia as mensagens.
Yvonne tinha ligado a convidá-la para uma festa na casa de um jogador de ténis espanhol milionário em Monte Carlo. Michel Duval ligara para pedir desculpas pelo comportamento na sessão fotográfica do outro dia. A nódoa negra estava a sarar bem. Mareei tinha ligado para dizer que falara com Robert. A sessão em Mustique estava outra vez de pé.
- Partes daqui a três semanas, meu anjo, por isso deixa-te do queijo e da pasta e põe o teu rabo lindo em forma.
Pensou no percurso de bicicleta e sorriu. A cara podia parecer ter trinta e três anos, mas o corpo nunca estivera melhor.
- Ah, já agora, um tipo chamado Jean-Claude passou pelo escritório. Disse que queria falar contigo em pessoa acerca de um trabalho.
Jacqueline pousou a cafeteira e olhou para a máquina.
- Disse-lhe que estavas no Sul. Disse que estava a caminho de lá e que te iria procurar quando chegasse. Não te zangues comigo, meu anjo. Pareceu ser um tipo decente. Jeitoso, também. Fiquei louco de ciúmes. Adoro-te. Ciao.
Carregou no botão para rebobinar e voltou a escutar a mensagem, para ter a certeza de que a tinha ouvido bem.
- Ah, já agora, um tipo chamado Jean-Claude passou pelo escritório. Disse que queria falar contigo em pessoa acerca de um trabalho.
Carregou no botão para apagar, a mão a tremer, o coração a bater contra as costelas.
Jacqueline estava sentada lá fora, no terraço banhado pela luz do Sol, a pensar na noite em que fora recrutada por Ari Shamron. Tinha utilizado algum do dinheiro ganho como modelo para comprar um presente de reforma aos pais: um pequeno apartamento em Herzliya virado para o mar. Visitava-os em Israel sempre que conseguia escapar-se por uns dias. Sentia-se completamente apaixonada pelo país. Era o único lugar onde se sentia verdadeiramente livre e segura. Mais do que tudo o resto, adorava o facto de não ter de esconder que era judia.
Uma noite, num café dejag em Telavive, um homem mais velho apareceu-lhe à mesa. Careca, bastante feio, um casaco de bombardeiro com um rasgão no lado direito.
- Olá, Sarah - disse, sorrindo com confiança. - Posso fazer-lhe companhia?
Olhou para cima, assustada.
- Como é que sabe que o meu nome é Sarah?
- Na verdade, sei bastante sobre si. Sou um grande fã.
- Quem é o senhor?
- Chamo-me Ari. Trabalho para uma organização vagamente ligada ao Ministério da Defesa chamada Instituto para a Coordenação. Chamamos-lhe apenas o Departamento.
- bom, estou realmente contente por termos esclarecido isso. Ele lançou a cabeça para trás e riu-se.
- Gostaríamos de falar consigo sobre um trabalho. Importa-se que a trate por Sarah? Tenho dificuldade em pensar em si como Jacqueline.
- Os meus pais são os únicos que ainda me chamam Sarah.
- Não há velhos amigos?
- Só tenho novos amigos - respondeu, a voz tingida de tristeza. - Pelo menos, pessoas que afirmam ser minhas amigas. Todos os meus amigos de Marselha foram caindo depois de me ter tornado modelo. Acharam que tinha mudado por causa do meu trabalho.
- Mas mudou, não mudou, Sarah?
- Sim, suponho que sim.
A seguir pensou: Porque é que estou a dizer isto a um homem que ainda agora conheci? Será que ele dá a volta a toda a gente assim tão depressa?
- E não é só um trabalho, pois não, Sarah? É um modo de vida. Dá-se com os designers da moda e os fotógrafos famosos. Vai a festas espampanantes e a restaurantes exclusivos com actores e estrelas de rock eplayboys milionários. Como aquele conde italiano com quem teve um caso em Milão, aquele que chegou aos jornais. com certeza que não é a mesma rapariguinha de Marselha. A rapariguinha judia cujos avós foram assassinados pelos nazis em Sobibor.
- Sabe mesmo muito sobre mim.
Olhou com atenção para ele. Estava habituada a estar rodeada de pessoas atraentes e sofisticadas, mas agora aqui estava ela na companhia deste homem bastante feio, com óculos de aros de aço e um rasgão no casaco. Havia algo de primitivo nele - o Sabra rude de que sempre ouvira falar. Era o tipo de homem que não sabia fazer um laço e não se importava. Achava-o completamente encantador. Mas, acima de tudo, intrigava-a.
- Sendo uma judia de Marselha, sabe que o nosso povo tem muitos inimigos. Muitas pessoas gostariam de nos destruir, deitar abaixo tudo o que construímos nesta terra.
Enquanto falava, as mãos cortavam o ar.
- Ao longo dos anos, Israel tem travado muitas guerras com os seus inimigos. Neste momento, não há combate, mas Israel continua envolvido numa outra guerra, uma guerra secreta. Esta guerra é incessante. Nunca irá terminar. Por causa do seu passaporte e, em boa verdade, do seu aspecto, poderia ser uma grande ajuda para nós.
- Está a pedir-me para me tornar uma espia? Ele riu-se. -
- Receio que não seja nada assim tão dramático.
- O que quer que eu faça?
- Quero que se torne uma bat leveyha.
- Peço desculpa, mas não falo hebreu.
- Bat leveyha é o termo que utilizamos para um agente assistente feminino. Como bat leveyha, poderá ser chamada a desempenhar
uma série de funções para o Departamento. Às vezes, poderá ser-lhe pedido para se fazer passar pela mulher ou namorada de um dos nossos funcionários. Às vezes, poderá ser-lhe pedido para obter um pedaço vital de informação, que uma mulher do seu tipo poderá conseguir mais prontamente do que um funcionário.
Parou de falar por um momento e demorou o seu tempo a acender o cigarro seguinte.
- E, às vezes, poderemos pedir-lhe para desempenhar um outro tipo de missão. Uma missão que algumas mulheres consideram demasiado desagradável para pensarem sequer nela.
- Por exemplo?
- Poderemos pedir-lhe para seduzir um homem, um dos nossos inimigos, por exemplo, de maneira a colocá-lo numa situação comprometedora.
- Há imensas mulheres lindas em Israel. Por que carga d'água é que haviam de precisar de mim?
- Porque não é israelita. Porque tem um passaporte francês legal e um emprego legal.
- Esse emprego legal, como lhe chama, paga-me bastante bem. Não estou preparada para abrir mão dele.
- Se decidir trabalhar para nós, farei com que as suas missões sejam curtas e que seja compensada pelos salários perdidos.
Sorriu afectuosamente.
- Apesar de achar que não consigo suportar os seus honorários habituais de três mil dólares à hora.
- Cinco mil - respondeu ela, sorrindo.
- Os meus parabéns.
- Tenho de pensar nisso.
- Compreendo, mas enquanto considera a minha oferta, lembre-se de uma coisa. Se tivesse havido Israel durante a Segunda Guerra Mundial, o Maurice e a Rachel Halévy poderiam ainda estar vivos. O meu dever é assegurar a sobrevivência do Estado, para que da próxima vez que algum louco resolva transformar o nosso povo em sabão, ele tenha um lugar onde se refugiar. Espero que me ajude.
Deu-lhe um cartão com um número de telefone e disse para lhe
telefonar com uma decisão na manhã seguinte. A seguir, apertou-lhe a mão e afastou-se. Era a mão mais dura que ela alguma vez sentira.
Nunca tinha havido na cabeça dela nenhuma dúvida sobre qual seria a resposta. Por qualquer padrão objectivo, vivia uma vida excitante e sedutora, mas parecia enfadonha e sem significado comparada com aquilo que Ari Shamron estava a oferecer. As sessões entediantes, os agentes aos apalpões, os fotógrafos lamurientos - de repente, tudo parecia ainda mais plástico e pretensioso.
Regressou à Europa para a temporada da moda de Outono tinha compromissos em Paris, Milão e Roma - e em Novembro, quando as coisas acalmaram, disse a Mareei Lambert que estava exausta e que precisava de um descanso. Mareei desbloqueou-lhe o calendário, beijou-lhe a bochecha e disse-lhe para se afastar o máximo possível de Paris. Nessa noite, foi até ao balcão da El Al no Aeroporto Charles de Gaulle, levantou o bilhete em primeira classe que Shamron lhe tinha deixado e embarcou num voo para Telavive.
Estava à sua espera quando chegou ao Aeroporto Ben-Gurion. Acompanhou-a até a uma sala de espera especial no interior do terminal. Tudo estava concebido para lhe fazer transmitir que agora fazia parte da elite. Que estava a atravessar uma porta secreta e que a sua vida nunca mais voltaria a ser a mesma. Do aeroporto, levou-a rapidamente pelas ruas de Telavive, até a um luxuoso apartamento seguro no Opera Tower, com uma grande varanda com vista para a marginal e para a Praia Ge'ula.
- Esta será a tua casa durante as próximas semanas. Espero que seja do teu agrado.
- É absolutamente linda.
- Hoje, descansas. Amanhã, começa o trabalho a sério.
Na manhã seguinte, dirigiu-se à Academia e suportou um curso intensivo sobre as artes do ofício e a doutrina do Departamento. Ele deu-lhe palestras acerca dos princípios fundamentais da comunicação impessoal. Treinou-a a utilizar uma Bereta e a fazer cortes estratégicos na roupa, para poder agarrá-la depressa. Ensinou-a a abrir fechaduras e a fazer moldes de chaves, utilizando um aparelho
especial. Ensinou-a a detectar e a despistar vigilância. Todas as tardes, passava duas horas com um homem chamado Oded, que lhe ensinava árabe rudimentar.
Mas a maior parte do tempo na Academia era passado a desenvolver a memória e a consciência. Ele colocava-a sozinha numa sala e projectava dúzias de nomes num ecrã, obrigando-a a memorizar o máximo possível. Levava-a para um pequeno apartamento, deixava-a olhar para a sala por não mais do que uns segundos, a seguir puxava-a para fora e fazia-a descrevê-la em pormenor. Levou-a a almoçar à cantina e pediu-lhe para descrever a empregada que tinha acabado de os servir. Jacqueline confessou que não fazia ideia.
- Tens de estar consciente do que te rodeia a toda a hora disse ele. - Deves partir do princípio de que a empregada é um potencial inimigo. Tens de estar a sondar, a observar e a examinar constantemente. E, no entanto, tens de parecer não estar a fazer nada disso.
O treino não terminava ao pôr do Sol. Todas as noites, Shamron aparecia no Opera Tower e levava-a para o interior das ruas de Telavive para mais. Levou-a ao escritório de um advogado, mandou-a arrombá-lo e roubar um conjunto de ficheiros específico. Levou-a a uma rua cheia de boutiques chiques e mandou-a roubar algo.
- Estás a brincar.
- E se estás em fuga num país estrangeiro? E se não tens dinheiro nem maneira de nos contactar? A polícia anda à tua procura e precisas de mudar de roupa depressa.
- Não sou propriamente feita para andar a roubar lojas.
- Faz-te passar despercebida.
Entrou numa boutique e passou dez minutos a experimentar roupas. Quando regressou à entrada, não tinha comprado nada, mas dentro da mala estava um sexy vestido preto de festa.
Shamron disse:
- Agora quero que descubras um sítio para te mudares e livrares das outras roupas. A seguir, vem ter comigo lá fora, junto à barraca dos gelados na marginal.
Estava um fim de tarde quente para o início de Novembro
e havia muitas pessoas a passear e a apanhar ar. Caminharam de braço dado ao longo do cais, como um velho rico e a amante, Jacqueline a lamber maliciosamente um cone de gelado.
- Estás a ser seguida por três pessoas - disse Shamron. Vai ter comigo ao bar daquele restaurante daqui a meia hora e diz-me quem são. E não te esqueças que vou enviar um kidon para as matar, por isso não te enganes.
Jacqueline iniciou um procedimento típico de contravigilância, tal como Shamron lhe tinha ensinado. A seguir, foi até ao bar e encontrou-o sentado sozinho a uma mesa no canto.
- Casaco de cabedal preto, calças de ganga azuis com uma camisola de Yale, rapariga loira com uma rosa tatuada na omoplata.
- Errado, errado, errado. Acabaste de condenar à morte três turistas inocentes. Vamos experimentar outra vez.
Apanharam um táxi para andar uma pequena distância, até Rothschild Boulevard, uma marginal larga revestida por árvores, bancos, quiosques e cafés chiques.
- Mais uma vez, estão três pessoas a seguir-te. Vai ter comigo ao Café Tamar daqui a trinta minutos.
- Onde é o Café Tamar?
Mas Shamron virou-se e desapareceu na corrente de peões. Meia hora mais tarde, tendo localizado o chique Café Tamar em Sheinkin Street, voltou a juntar-se a ele.
- A rapariga com o cão, o rapaz com os auscultadores e a T-shirt do Springsteen, o miúdo do kibbut com a Uzi.
Shamron sorriu.
- Muito bem. Só mais um teste esta noite. Vês aquele sentado ali sozinho?
Jacqueline acenou com a cabeça.
- Mete conversa com ele, descobre tudo o que puderes e a seguir atrai-o para o teu apartamento. Quando chegares ao átrio, arranja uma maneira de te desenvencilhares da situação sem fazer
uma cena.
Shamron levantou-se e afastou-se. Jacqueline olhou, olhos nos olhos, para o homem e, alguns minutos mais tarde, ele veio ter consigo. Disse que se chamava Mark, que era de Boston e que
trabalhava para uma empresa de informática com negócios em Israel. Conversaram durante uma hora e começaram a namoriscar. Mas quando o convidou para ir até ao seu apartamento, confessou que era casado.
- É pena respondeu ela. - Podíamos ter passado uns belos momentos.
Ele mudou de ideias rapidamente. Jacqueline pediu licença para ir à casa de banho e em vez disso dirigiu-se a um telefone público. Marcou o número da recepção do Opera Tower e deixou uma mensagem a si mesma. Depois voltou para a mesa e disse:
- Vamos.
Foram a pé até ao apartamento. Antes de subirem, foi à recepção verificar se havia mensagens.
- A sua irmã ligou de Herzliya - respondeu o recepcionista;
- Tentou o apartamento, mas ninguém atendeu, por isso ligou para aqui e deixou uma mensagem.
- Qual é?
- O seu pai teve um ataque de coração.
- Oh, meu Deus!
- Levaram-no para o hospital. Ela diz que vai ficar bom, mas quer que vá assim que puder.
Jacqueline voltou-se para o americano.
- Tenho muita pena, mas tenho de ir.
O americano beijou-lhe a bochecha e afastou-se, cabisbaixo. Shamron, que estava a observar toda a cena do outro lado do átrio, avançou, de sorriso aberto como um rapazinho.
- Isso foi pura poesia. Sarah Halévy, és um talento natural.
A primeira missão não a obrigou a sair de Paris. O Departamento estava a tentar recrutar um cientista iraquiano de armas nucleares que vivia em Paris e trabalhava com os fornecedores franceses do Iraque. Shamron resolveu preparar uma "armadilha de mel" e deu o trabalho a Jacqueline. Conheceu o iraquiano num bar, seduziu-o e começou a passar a noite no apartamento dele. Ele apaixonou-se perdidamente por ela. Jacqueline disse ao amante que, se a queria continuar a ver, teria de se encontrar com um amigo dela,
que tinha uma proposta de negócio. O amigo acabou por ser Ari Shamron, a proposta, simples: trabalha para nós ou vamos contar à tua mulher e aos gorilas da segurança de Saddam que tens andado a foder uma agente israelita. O iraquiano concordou em trabalhar para Shamron.
Jacqueline tivera a primeira experiência de trabalho de espionagem. Achou-o excitante. Tinha desempenhado um pequeno papel numa operação que desferira um golpe nas ambições nucleares do Iraque. Ajudara a proteger o Estado de Israel de um inimigo que tudo faria para o destruir. E, de uma maneira pequena, tinha vingado as mortes dos avós.
Teve de esperar mais um ano para a missão seguinte: seduzir e chantagear um funcionário de espionagem sírio em Londres. Foi outro sucesso estonteante. Nove meses mais tarde, foi enviada para Chipre para seduzir um executivo de uma empresa química alemã que estava a vender os seus artigos à Líbia. Desta vez havia uma diferença. Shamron queria que drogasse o alemão e fotografasse os documentos da sua pasta enquanto estava inconsciente. Uma vez mais, cumpriu o trabalho sem dificuldades.
A seguir à operação, Shamron fê-la voar até Telavive, entregou-lhe uma menção secreta e disse-lhe que tinha terminado. Não demorava muito para as coisas circularem pelo submundo da espionagem. O próximo alvo poderia suspeitar que a bonita modelo francesa era mais do que parecia. E poderia muito bem acabar morta.
Implorou-lhe por mais um trabalho. Shamron concordou com relutância.
Três meses mais tarde, enviou-a para Tunes.
Jacqueline achara estranho Shamron ter-lhe dado instruções para se encontrar com Gabriel Allon numa igreja em Turim. Encontrou-o em cima de uma plataforma, a restaurar um fresco que representava a Ascensão. Trabalhava com homens bonitos todos os dias na sua vida pública, mas havia algo em Gabriel que a deixou sem fôlego. Era a concentração intensa nos seus olhos. Jacqueline
queria que olhasse para ela como estava a olhar para o fresco. Decidiu que iria fazer amor com este homem antes da operação terminar.
Viajaram para Tunes na manhã seguinte e deram entrada num hotel na praia. Durante os primeiros dias, deixou-a sozinha enquanto trabalhava. Regressava ao hotel todas as noites. Jantavam, passeavam pelo mercado ou pela estrada ao longo da praia, depois voltavam para o quarto. Falavam como se fossem amantes, para o caso de o quarto estar sob escuta. Dormia vestido, ficava inflexivelmente do seu lado da cama, uma parede de Plexiglas a separá-los.
Ao quarto dia, levou-a consigo enquanto trabalhava. Mostrou-lhe a praia onde os comandos desembarcariam e a vivenda que era propriedade do alvo. A paixão por ele tornou-se mais profunda. Aqui estava um homem que tinha devotado a vida a defender Israel dos inimigos. Sentia-se insignificante e frívola em comparação. Também descobriu que não conseguia tirar os olhos de cima dele. Queria passar-lhe as mãos pelo cabelo curto, tocar-lhe na cara e no corpo. Enquanto estavam deitados na cama juntos nessa noite, rebolou para cima dele sem aviso e beijou-lhe os lábios, mas ele afastou-a e fez uma cama de campanha beduína para si no chão.
Jacqueline pensou: Meu Deus, fiz uma completa figura de parva.
Passados cinco minutos, voltou para a cama e sentou-se ao seu lado. Depois inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Também quero fazer amor contigo, mas não posso. Sou casado.
- Não me importa.
- Quando a operação terminar, nunca mais me vais ver.
- Eu sei.
Ele era exactamente como ela imaginava: habilidoso e engenhoso, meticuloso e gentil. Nas mãos dele, sentia-se como um dos seus quadros. Quase que conseguia sentir os olhos a tocar-lhe. Sentiu um orgulho estúpido por ter sido capaz de penetrar as suas barreiras de autocontrolo e seduzi-lo. Queria que a operação continuasse para sempre. Não podia, é claro, e a noite em que deixaram Tunes foi a mais triste da sua vida.
Depois de Tunes, lançou-se a fundo na carreira de modelo. Disse a Mareei para aceitar todas as ofertas que aparecessem. Trabalhou sem parar durante seis meses, levando-se até a um ponto de exaustão. Até tentou sair com outros homens. Nada resultou. Pensava em Gabriel e Tunes constantemente. Pela primeira vez na vida, sentia obsessão e, no entanto, era completamente impotente para fazer algo em relação a isso. Em desespero, foi ter com Shamron e pediu-lhe para a pôr em contacto com Gabriel. Ele recusou. Começou a ter uma fantasia terrível acerca da morte da mulher de Gabriel. E quando Shamron lhe contou o que acontecera em Viena, sentiu uma culpa insuportável.
Não tinha visto nem falado com Gabriel desde essa noite em Tunes. Não conseguia imaginar porque haveria ele de a querer ver agora. Mas, uma hora mais tarde, enquanto observava o carro dele a parar à entrada, sentiu um sorriso a espalhar-se pela cara. Pensou: Graças a Deus que estás aqui, Gabriel, porque também estou a precisar de um pouco de restauro.
TELAVIVE
O director executivo da CIA, Adrian Cárter, era um homem facilmente subestimado. Era uma característica que utilizara com bons resultados durante a longa carreira. Era pequeno e magro como um maratonista. O cabelo escasso e os óculos sem aros davam-lhe um ar ligeiramente clínico, as calças e o casaco tinham aspecto de terem sido usados a dormir. Parecia deslocado na sala de conferências fria e moderna no Boulevard do Rei Saul, como se tivesse entrado no edifício por engano. Mas Ari Shamron tinha trabalhado com Cárter quando estava à frente do Centro de Contraterrorismo da CIA. Sabia que Cárter era um agente experimentado - um homem que falava seis línguas fluentemente e podia desaparecer nas vielas traseiras de Varsóvia ou Beirute com igual facilidade. Também sabia que os seus talentos em campo eram apenas igualados pela perícia nas trincheiras burocráticas. Um adversário de respeito, sem dúvida.
- Alguns avanços na investigação de Paris? - perguntou Cárter.
Shamron abanou a cabeça devagar.
- Receio que não.
- Nada de nada, Ari? Acho difícil acreditar nisso.
- Assim que soubermos alguma coisa, serás o primeiro a saber. Então e tu? Alguma intercepção interessante que te apeteça partilhar? Algum funcionário árabe amistoso te contou alguma coisa que estaria relutante em partilhar com a entidade sionista?
Cárter tinha acabado de completar uma digressão regional de duas semanas, conferenciando com chefes dos serviços secretos desde o golfo Pérsico até ao Norte de África. O Boulevard do Rei Saul foi a última paragem.
- Nada, receio - respondeu. - Mas temos ouvido uns quantos sussurros de algumas das nossas outras fontes.
Shamron franziu o sobrolho.
- Ai sim?
- Dizem-nos que o que se ouve na rua é que o Tariq esteve por trás do ataque em Paris.
- O Tariq tem estado calmo há já algum tempo. Porque é que se iria sair agora com uma coisa do género de Paris?
- Porque está desesperado - respondeu Cárter. - Porque os dois lados estão a aproximar-se de um acordo e o Tariq não quereria outra coisa que não fosse estragar-lhes a festa. E porque o Tariq se vê a si próprio como um homem da História, e a História está prestes a deixá-lo para trás.
- É uma teoria interessante, mas não vimos provas que sugerissem que o Tariq estivesse envolvido.
- Se recebessem tais provas, iam partilhá-las connosco, claro.
- Claro.
- Não preciso de te lembrar que uma cidadã americana foi assassinada juntamente com o vosso embaixador. O presidente fez uma promessa ao povo americano de que o seu assassino seria levado à justiça. Conto ajudá-lo a cumprir essa promessa.
- Podes contar com o apoio deste serviço - respondeu Shamron, piedosamente.
- Se foi o Tariq, gostaríamos de o encontrar e trazer para os Estados Unidos, para ir a julgamento. Mas não poderemos fazer isso se ele aparecer morto algures, cheio de buracos de balas de calibre vinte e dois.
- Adrian, o que é que estás a tentar dizer-me?
- O que estou a dizer é que o homem na grande casa branca da Pennsylvania Avenue quer a situação tratada de uma maneira civilizada. Se se acabar por descobrir que foi o Tariq quem matou
a Emily Parker em Paris, quer vê-lo julgado num tribunal americano. Nada de tretas de olho por olho nisto, Ari, nada de execuções em ruelas.
- É óbvio que temos uma diferença de opinião sobre como lidar melhor com um homem como o Tariq.
- O presidente também acha que nesta altura uma morte em represália poderá não ser no melhor interesse do processo de paz. Acha que se fores responder com um assassinato, estarias a lançar-te nas mãos daqueles que queres derrubar.
- E o que queria o presidente que fizéssemos quando os terroristas matam os nossos diplomatas a sangue-frio?
- Mostrem algum comedimento, porra! Na nossa humilde opinião, talvez fosse mais sensato encostarem-se às cordas durante um par de assaltos e aguentar uns quantos golpes no corpo se tiver de ser. Dêem aos negociadores espaço para manobrar. Se os radicais atacarem depois de terem um acordo alinhavado, então não deixem de ripostar. Mas não piorem agora as coisas procurando vingança.
Shamron inclinou-se para a frente e esfregou as mãos.
- Posso assegurar-te, Adrian, de que nem o Departamento nem nenhum outro braço dos serviços de segurança israelitas estão a planear qualquer operação contra qualquer membro de qualquer grupo terrorista árabe, incluindo o Tariq.
- Admiro a vossa prudência e coragem. E o presidente também o fará.
- E eu admiro-vos pela vossa franqueza.
- Gostaria de te dar um pequeno conselho de amigo, se puder.
- Se fazes favor - respondeu Shamron.
- Israel celebrou acordos com vários serviços de informação do Ocidente, comprometendo-se a não realizar operações no solo desses países sem notificar primeiro o serviço de informação respectivo. Posso assegurar-te de que a Agência e os seus amigos reagirão com dureza se esses acordos forem violados.
- Isso soa mais a um aviso do que a um conselho entre amigos.
Cárter sorriu e deu um gole no café.
O primeiro-ministro estava embrenhado numa pilha de documentos na secretária quando Shamron entrou na sala. Shamron sentou-se e informou-o rapidamente acerca do encontro com o homem da CIA.
- Conheço o Adrian Cárter demasiado bem - disse Shamron.
- É um bom jogador de póquer. Sabe mais do que aquilo que está a dizer. Está a dizer-me para recuar ou vai haver sarilho.
- Ou então suspeita de qualquer coisa mas não tem o suficiente para o dizer às claras - respondeu o primeiro-ministro. - Tens de decidir qual é o caso.
- Preciso de saber se ainda quer que leve a operação a cabo nestas novas circunstâncias.
O primeiro-ministro levantou por fim os olhos da papelada.
- E eu preciso de saber se consegues levar a operação a cabo sem a CIA descobrir.
- Consigo.
- Então avança e não faças merda.
VALBONNE, PROVENÇA
A tarde tinha ficado mais fria. Jacqueline preparou umas sanduíches enquanto Gabriel empilhava madeira de oliveira na lareira e a acendia com jornais. Estava de cócoras, a observar as chamas fracas a lamber a madeira. De segundos em segundos, esticava-se até ao fogo e fazia um ou outro pequeno ajustamento na disposição dos g ravetos ou na posição de um dos pedaços de madeira maiores. Parecia ser capaz de segurar a madeira a escaldar durante muito tempo, sem desconforto. Por fim, levantou-se e bateu com as mãos uma na outra para retirar os restos do pó da madeira e da fuligem. Move-se com tanta delicadeza, pensou Jacqueline - um bailarino a erguer-se após ter levado o joelho ao chão. Parecia de certa forma mais novo. Menos grisalho no cabelo, os olhos mais claros e luminosos.
Colocou a comida numa travessa e levou-a até à sala de estar. Durante anos, imaginara uma cena assim. Num certo sentido, tinha feito esta sala para Gabriel, tinha-a decorado de uma maneira que imaginara que ele pudesse gostar - o chão de pedra, os tapetes rústicos, as mobílias confortáveis.
Colocou a travessa em cima de uma mesa de café e sentou-se
no sofá. Gabriel sentou-se ao seu lado e foi deitando colheres de
açúcar no café. Sim, isto seria o que teria acontecido se tivéssemos terminado
juntos. Uma refeição simples, uma viagem de carro pelas montanhas,
uma passeata por uma vila antiga na colina. Talvez pela costa
abaixo, para deambular pelo Velho Porto de Cannes ou ver um filme no cinema. Depois para casa, para fazer amor à luz da lareira. Pára com isso, Jacqueline. Gabriel disse:
- Estou outra vez a trabalhar para o Departamento e preciso da tua ajuda.
Então, afinal de contas eram só negócios. Gabriel tinha sido agarrado outra vez e precisava dela para um trabalho. Ele ia fazer de conta que o passado nunca acontecera. Talvez fosse mais fácil desse modo.
- O Ari contou-me que tinhas deixado o Departamento.
- Pediu-me para regressar por um trabalho. Sabes como o Shamron consegue ser quando quer qualquer coisa.
- Lembro-me - respondeu Jacqueline. - Ouve, Gabriel, não sei muito bem como dizer isto, por isso vou simplesmente dizê-lo. Lamento muito aquilo que aconteceu em Viena.
Ele afastou o olhar, os olhos frios e sem expressão. Claramente, Leah era algo em que não se podia tocar. Jacqueline tinha visto uma fotografia sua uma vez. A mulher de Gabriel era exactamente como imaginara - uma Sabra de cabelos escuros, a transbordar do tipo de fogo e confiança que Jacqueline ansiara por possuir quando era uma judia a crescer em França. O facto de ele ter escolhido uma mulher como Leah apenas fizera Jacqueline amar mais Gabriel.
Mudou abruptamente de assunto:
- Suponho que tenhas ouvido falar do ataque ao nosso embaixador em Paris?
- Claro. Foi terrível.
- O Shamron está convencido de que o Tariq esteve por trás do ataque.
- E quer descobri-lo? Gabriel acenou com a cabeça.
- Porquê tu, Gabriel? Estás afastado do jogo há tanto tempo. Porque não utilizar um dos outros katsas dele?
- Para o caso de não teres reparado, o Departamento tem tido mais desastres do que sucessos ultimamente.
- O Tariq tem conseguido manter-se um passo à frente do Departamento durante anos. Como é que, supostamente, o vais descobrir agora?
- O Shamron identificou um dos seus agentes em Londres. Coloquei-lhe uma escuta no telefone do trabalho, mas também preciso de lhe pôr o apartamento sob escuta para conseguir descobrir com quem está a falar e o que está a dizer. Se tivermos sorte, talvez consigamos saber onde é que o Tariq está a planear atacar a seguir.
- Porque é que precisas de mim?
- Preciso de ti para me ajudares a entrar no apartamento.
- Porque é que precisas da minha ajuda? Sabes abrir uma fechadura e colocar uma escuta.
- É exactamente por isso. Não quero ter de lhe abrir a fechadura. Os arrombamentos são arriscados. Se perceber que esteve alguém no apartamento, então perdemos a vantagem. Quero que entres no apartamento por mim, faças uma cópia das chaves e verifiques que tipo de telefone é que tem para poder arranjar um duplicado.
- E como é que, supostamente, vou entrar no apartamento? Sabia a resposta, claro. Apenas queria ouvi-lo a dizê-lo. Gabriel levantou-se e juntou mais um bocado de madeira ao fogo.
- O Yusef gosta de mulheres. Gosta da vida nocturna londrina. Quero que vás ter com ele num bar ou numa discoteca e faças amizade. Quero que o encorajes a convidar-te para o apartamento.
- Desculpa, Gabriel. Não estou interessada. O Ari que te dê uma das suas raparigas novas.
Ele voltou-se e olhou para ela.
Pensou: Está surpreendido por eu lhe ter dito que não. Não estava à espera disso.
- Estou a oferecer-te uma oportunidade de me ajudares a descobrir o Tariq al-Hourani antes que mate mais judeus e prejudique ainda mais o processo de paz.
- E eu estou a dizer-te que já fiz a minha parte. Que uma outra rapariga tenha a sua vez.
Ele voltou a sentar-se.
- Percebo porque é que o Shamron havia de querer ter-te de
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volta - disse Jacqueline. - És o melhor no que fazes. Mas não percebo porque é que precisas de mim.
- Porque também és boa - respondeu. Depois acrescentou:
- E porque posso confiar em ti. Pensou: O que é que me estás a tentar dizer, Gabriel Allon? Respondeu:
- Tenho de ir às Caraíbas para uma sessão fotográfica daqui a três semanas.
- Só vou precisar de ti por uns dias.
- Não vou fazer isto de borla.
- Quero-te a ti e não me vou contentar com qualquer outra
- respondeu Gabriel. - Portanto, estás em posição de fixar o teu preço.
Olhou para o tecto, a calcular de quanto iria precisar. Renda, renovações, publicidade...
- Cinquenta mil.
- Francos?
- Não sejas ridículo, Gabriel. Dólares.
Fez uma cara carrancuda. Jacqueline cruzou os braços em sinal de desafio.
- Cinquenta mil ou podes ligar ao Shamron e pedir-lhe uma rapariga nova.
- Cinquenta mil - respondeu. Jacqueline sorriu.
Jacqueline telefonou a Mareei Lambert em Paris e disse-lhe para cancelar todas as sessões para as duas semanas seguintes.
- Jacqueline, perdeste o juízo? Não podes estar a falar a sério. Uma mulher na tua posição débil não anda por aí a tornar as coisas piores a cancelar sessões. É assim que se ganha uma reputação nesta profissão.
- Mareei, estou nesta profissão há dezassete anos e nunca tive a reputação de deixar cair sessões. Surgiu uma coisa e preciso de me ausentar por uns dias.
- É isso que esperas que diga às pessoas que tiveram a bondade de te contratar? Surgiu uma coisa. Vá lá, querida. Vais ter de fazer muito melhor do que isso.
- Diz-lhes que apanhei qualquer coisa.
- Alguma sugestão?
- Lepra - respondeu.
- Oh, sim, maravilhoso.
A sua voz ficou séria de repente.
- Diz-me uma coisa, Jacqueline. Não estás metida em algum tipo de sarilho, pois não? Sabes que podes confiar em mim. Tenho estado lá desde o início, lembra-te. Conheço todos os teus segredos.
- E eu não me esqueço que conheço todos os teus, Mareei Lambert. E não, não estou metida em nenhum tipo de sarilho. Há simplesmente uma coisa de que preciso de tratar e não pode esperar.
- Não estás doente, pois não, Jacqueline?
- Estou de perfeita saúde.
- Não é a coca outra vez, pois não? - sussurrou Mareei.
- Mareei!
- Operação? Um retoque aos olhos?
- Vai-te foder.
- Um homem. É um homem? Alguém conseguiu amolgar finalmente esse teu coração de ferro?
- vou desligar agora, Mareei. Ligo-te daqui a uns dias.
- Então tenho razão! É um homem!
- És o único homem para mim, Mareei.
- Quem me dera que fosse assim.
- A. tout à l'heure.
- Ciao.
Partiram ao final da tarde e seguiram para norte na auto-estrada sinuosa, em direcção às montanhas. Nuvens que já se estavam a dissipar pairavam sobre as ravinas. À medida que subiam para as colinas, bolas gordas de chuva esmurravam o pára-brisas do Peugeot alugado de Gabriel. Jacqueline reclinou o banco e observou
afluentes de água da chuva a correr pela capota em forma de lua, mas a cabeça já estava concentrada em Londres e no alvo. Acendeu um cigarro e disse:
- Fala-me dele.
- Não - respondeu. - Não quero nada na tua cabeça que te possa colocar numa situação comprometedora.
- Vieste buscar-me porque sei o que estou a fazer, Gabriel. Diz-me qualquer coisa acerca dele.
- Chama-se Yusef. Cresceu em Beirute.
- Onde em Beirute?
- Shatila.
- Jesus - disse, fechando os olhos.
- Os pais eram refugiados em quarenta e oito. Antes viviam na aldeia árabe de Lydda, mas durante a guerra fugiram e atravessaram a fronteira para o Líbano. Ficaram algum tempo pelo Sul, depois mudaram-se para Beirute à procura de emprego e instalaram-se no campo de Shatila.
- Como é que acabou por ir parar a Londres?
- Um tio trouxe-o para Inglaterra. Certificou-se de que Yusef fosse ensinado e aprendesse a falar um inglês e um francês perfeitos. Tornou-se um radical político. Achou que o Arafat e a OLP se tinham rendido. Apoiou os líderes palestinianos que queriam continuar a guerra até Israel ser apagada do mapa. Chegou à atenção da organização do Tariq. Tem sido um membro activo desde há vários anos.
- Parece um encanto.
- E por acaso até é.
- Alguns passatempos?
- Gosta de poesia palestiniana e de mulheres europeias. E ajuda o Tariq a matar israelitas.
Gabriel saiu da auto-estrada e seguiu por uma pequena estrada em direcção a este, a caminho das montanhas. Passaram por uma aldeia adormecida e viraram para um trilho de lama cheio de sulcos e ladeado por plátanos desfolhados e a pingar. Seguiu o trilho até descobrir um portão de madeira partido, que dava para uma área pequena de terra desbravada. Parou o carro, saiu e abriu o portão
o suficiente para deixar passar o Peugeot. Guiou até à clareira e desligou o motor, deixando os faróis acesos. Enfiou a mão na mala de Jacqueline e tirou a Beretta dela e o carregador sobressalente. Depois agarrou numa das revistas de moda lustrosas dela e arrancou a capa e a contracapa.
- Sai.
- Está a chover.
- Paciência.
Gabriel saiu e andou alguns metros pela terra encharcada, em direcção a uma árvore onde os restos esfarrapados de uma tabuleta que dizia "Entrada Proibida" estavam pendurados num prego dobrado e ferrugento. Enfiou a capa da revista na cabeça do prego e regressou até junto do carro. Jacqueline tinha a silhueta reflectida nos faróis amarelos, o capuz para cima para se proteger da chuva, os braços cruzados. Estava tudo em silêncio, tirando o tiquetaque do radiador do Peugeot e o ladrar longínquo do cão de uma quinta. Gabriel tirou o carregador da Beretta, verificou para ter a certeza de que a câmara estava vazia e a seguir entregou a arma e as munições a Jacqueline.
- Quero saber se ainda te consegues safar com uma destas.
- Mas eu conheço a rapariga naquela capa.
- Dá-lhe um tiro na cara.
Jacqueline enfiou o carregador com força na coronha da Beretta, bateu ao de leve na base do punho com a parte de trás da palma da mão, para ter a certeza de que estava bem seguro. Avançou, levantou a arma, dobrou os joelhos ligeiramente e rodou o corpo uns quantos graus para reduzir o seu perfil enquanto alvo em relação ao inimigo imaginário. Disparou sem hesitação, rítmica e firmemente, até o carregador ficar vazio.
Gabriel, ouvindo os disparos da pequena pistola, estava de súbito de volta ao vão das escadas do apartamento em Roma. Jacqueline baixou a Beretta, retirou o carregador e inspeccionou a câmara para se assegurar de que estava vazia. Atirou a arma a Gabriel e disse:
- Vamos lá ver-te a experimentar agora.
Mas Gabriel limitou-se a enfiar a Beretta no bolso do casaco e caminhou até à árvore para examinar os resultados. Só um tiro
não tinha acertado; os tiros estavam bastante perto uns dos outros na parte superior direita. Arrancou do prego a capa, pendurou a contracapa no seu lugar e voltou a dar a Beretta a Jacqueline.
- Repete isso, mas, desta vez, avança enquanto disparas.
Enfiou o segundo carregador com força na Beretta, puxou a culatra e avançou sobre o alvo, a disparar à medida que se ia aproximando. O último tiro foi quase à queima-roupa. Tirou o alvo, voltou-se e ergueu-o para os faróis brilharem através dos buracos de balas no papel. Cada tiro tinha acertado no alvo. Regressou até junto de Gabriel e deu-lhe a Beretta e a capa da revista.
Ele disse:
- Apanha os teus cartuchos
Enquanto Jacqueline recolhia os cartuchos gastos, desmontou rapidamente a Beretta. Tirou o macaco da bagageira e triturou as peças da arma até ficarem inoperantes. Voltaram para dentro do Peugeot e Gabriel saiu pelo caminho por onde viera. A dada altura, lançou a capa e contracapa da revista e os pedaços partidos da Beretta para a escuridão. Depois de terem passado pela aldeia, abriu a janela uma vez mais e espalhou os cartuchos.
Jacqueline acendeu outro cigarro.
- Como é que me saí?
- Passaste.
AMESTERDÃO
Tariq passou a tarde a tratar de recados. Andou desde a casa flutuante até à Centraalstation, onde comprou um bilhete em primeira classe para o comboio da noite para Antuérpia. Da estação de comboios andou até ao bairro da luz vermelha, passeando-se pelo labirinto de vielas estreitas, passando pelas sex shops, os bordéis e os bares soturnos, até um traficante de droga o puxar para o lado e lhe oferecer heroína. Tariq regateou o preço, depois pediu o suficiente para três pessoas se passarem. Tariq deu-lhe o dinheiro, enfiou as drogas no bolso e afastou-se.
Em Dam Square, pulou para um eléctrico e viajou pela cidade, seguindo para sul, até Bloemenmarkt, um mercado de flores flutuante no canal Singel. Foi até à banca maior e pediu ao florista um ramo elaborado de flores tradicionais holandesas. Quando o florista lhe perguntou quanto estava disposto a gastar, Tariq assegurou-lhe que o dinheiro não era um problema. O florista sorriu e disse-lhe para voltar dali a vinte minutos.
Tariq passeou-se pelo mercado, passando por túlipas e irises, lírios e girassóis a explodir de cor, até se cruzar com um homem a pintar. Cabelo preto cortado curto, pele clara e olhos azul-claros. O trabalho era uma representação do Bloemenmarkt, enquadrado pelo canal e por uma fila de casas com empenas. Tinha uma qualidade onírica, uma erupção de cor e luz líquidas.
Tariq parou por um momento e observou-o a trabalhar.
- Fala francês?
- Oui - respondeu o pintor, sem tirar os olhos do quadro.
- Admiro o seu trabalho. O pintor sorriu e respondeu:
- E eu admiro o seu.
Tariq acenou com a cabeça e afastou-se, interrogando-se sobre que raio estaria o maluco do pintor a falar.
Foi buscar as flores e regressou à casa flutuante. A rapariga estava a dormir. Tariq ajoelhou-se ao lado da cama e abanou-lhe o ombro gentilmente. Ela abriu os olhos e olhou para ele como se fosse louco. Fechou os olhos.
- Que horas são?
- Horas de ir trabalhar.
- Vem para a cama.
- Por acaso, sou capaz de ter uma coisa de que vais gostar mais.
Abriu os olhos e viu as flores. Sorriu.
- Para mim? Qual é o motivo?
- É só a minha maneira de te agradecer por seres uma anfitriã tão atenciosa.
- Gosto mais de ti do que de flores. Tira a roupa e vem para
a cama.
- Tenho mais outra coisa.
Segurou os sacos de pó branco no ar.
Inge vestiu rapidamente umas roupas enquanto Tariq se dirigiu para a cozinha do barco. Sacou uma colher da gaveta e acendeu uma vela. Aqueceu a droga por cima da chama, mas em vez de diluir um saco de heroína na mistura, utilizou logo os três. Quando terminou, puxou o líquido para dentro de uma seringa e levou-a para a cabina da frente.
Inge estava sentada à beira da cama. Tinha atado a extensão de borracha por cima do cotovelo e estava a examinar as nódoas negras ao longo da parte de dentro do antebraço, à procura de uma veia adequada.
- Aquela tem ar de servir - disse Tariq, passando-lhe a seringa.
Ela segurou-a na palma da mão e inseriu calmamente a agulha no braço. Tariq desviou o olhar enquanto ela puxava o êmbolo com a ponta do polegar e a heroína líquida se escurecia com o seu sangue. Depois carregou no êmbolo e desapertou o elástico, fazendo com que a droga disparasse para dentro do corpo.
Olhou para cima de repente, os olhos esbugalhados.
- Eh, Paul, meu... o que é que se está a...
Caiu de costas na cama, o corpo a estremecer com convulsões violentas, a agulha vazia a balouçar no braço. Tariq andou calmamente até à cozinha e fez café enquanto esperava que a rapariga acabasse de morrer.
Cinco minutos mais tarde, quando estava a arrumar as suas coisas numa pequena mala de viagem, sentiu o barco subitamente a balançar. Olhou para cima, espantado. Estava alguém no convés! Numa questão de segundos, a porta abriu-se e um homem grande e de constituição forte entrou na cabina. Tinha cabelo loiro e brincos pequenos e redondos nas orelhas. Tariq achou que tinha uma vaga parecença com Inge. Por instinto, procurou a pistola Makarov, que estava enfiada nas calças, no fundo das costas.
O homem olhou para Tariq.
- Quem és tu?
- Sou um amigo da Inge. Tenho estado a viver aqui há uns dias.
Falou de forma calma, a tentar reunir os pensamentos. A aparição repentina do homem apanhara-o completamente desprevenido. Há cinco minutos atrás tinha-se livrado calmamente da rapariga. Agora estava confrontado com alguém que podia dar cabo de tudo. Depois pensou: Se sou na verdade amigo da Inge, não tenho nada a temer. Obrigou-se a sorrir e esticou a mão.
- Chamo-me Paul.
O intruso ignorou a mão de Tariq.
- Sou o Maarten, o irmão da Inge. Onde é que ela está? Tariq fez um gesto na direcção do quarto.
- Sabes como a Inge pode ser. Ainda a dormir. Apercebeu-se de que tinha deixado a porta aberta.
- Deixa-me fechar-lhe a porta para não a acordarmos. Acabei de fazer café. Queres uma chávena?
Mas Maarten passou por si e entrou no quarto de Inge. Tariq pensou, Porra! Estava surpreendido com a velocidade a que as coisas tinham ficado fora de controlo. Apercebeu-se de que tinha cerca de cinco segundos para decidir como o ia matar.
A coisa mais fácil de se fazer, evidentemente, era dar-lhe um tiro. Mas isso teria consequências. Assassinato com pistola era quase inédito na Holanda. Uma rapariga morta com uma seringa espetada no braço era uma coisa. Mas dois corpos - um deles cheio de cartuchos de 9mm - era bem outra. Haveria uma grande investigação. A polícia iria interrogar os habitantes das casas flutuantes à volta. Alguém se podia recordar da sua cara. Dariam uma descrição à polícia, a polícia daria uma descrição à Interpol, a Interpol daria uma descrição aos judeus. Todos os polícias e funcionários de segurança da Europa Ocidental andariam à procura de si. Disparar sobre Maarten seria rápido, mas custar-lhe-ia a longo prazo.
Olhou por cima do ombro para a cozinha. Lembrou-se de que na gaveta ao lado do fogão a gás propano estava uma faca grande. Se matasse o irmão de Inge com uma faca talvez se parecesse com um crime passional ou com um crime de rua comum. Mas Tariq considerava a ideia de matar alguém com uma faca totalmente repulsiva. E havia outro problema, mais sério. Havia uma grande hipótese de não o matar ao primeiro golpe. A doença já começara a fazer sentir em si os seus efeitos. Tinha perdido força e resistência. A última coisa que queria fazer era envolver-se numa luta de vida ou de morte com um adversário maior e mais forte. Viu os sonhos - de destruir o processo de paz e de finalmente ajustar contas com Gabriel Allon - a evaporarem-se, tudo porque o irmão mais velho de Inge tinha chegado a casa num momento inoportuno. Leila devia ter escolhido com mais cuidado.
Tariq ouviu Maarten a gritar. Decidiu dar-lhe um tiro.
Sacou a Makarov da cintura. Apercebeu-se de que a arma não tinha o silenciador atarraxado. Onde é que ele está? No bolso do casaco, e o casaco estava em cima da cadeira na cabine. Merda! Como é que posso ter ficado tão complacente?
Maarten saiu a correr do quarto, a cara pálida.
- Está morta!
- Do que é que estás a falar? - perguntou Tariq, a fazer os possíveis para empatar.
- Está morta! É disso que estou a falar! Teve uma overdose!
- Drogas?
Tariq aproximou-se uns centímetros do casaco. Se conseguisse tirar o silenciador do bolso e atarraxá-lo ao cano, então pelo menos podia matá-lo sem barulho...
- Tem uma agulha pendurada no braço. O corpo ainda está quente. Provavelmente, acabou de se injectar ainda há uns minutos. Deste-lhe a porra das drogas, pá?
- Não sei nada sobre drogas.
Tariq apercebeu-se de que soava demasiado calmo para a situação. Tinha tentado não parecer perturbado pela chegada de Maarten, e agora parecia demasiado descontraído em relação à morte da sua irmãzinha. Maarten claramente não acreditava nele. Gritou com raiva e precipitou-se pela cabina, os braços erguidos, os punhos cerrados.
Tariq desistiu de tentar apanhar o silenciador. Agarrou na Makarov, puxou a culatra, fez pontaria à cara de Maarten e deu-lhe um tiro no olho.
Tariq trabalhava depressa. Tinha conseguido matar Maarten com um único tiro, mas teve de partir do princípio de que alguém numa das casas flutuantes das redondezas ou ao longo do dique ouvira o tiro. A polícia podia estar agora mesmo a caminho. Voltou a enfiar a Makarov na cintura, a seguir agarrou na mala, nas flores e no cartucho gasto e saiu da cabina para o convés da popa. Tinha anoitecido; a neve amontoava-se sobre o Amstel. A escuridão iria ajudá-lo. Olhou para baixo e reparou que estava a deixar pegadas no convés. Arrastou os pés enquanto andava, escondendo as marcas, e saltou para o cais.
Caminhou rápida mas calmamente. Num local escurecido no meio do cais, largou a mala no rio. O chape foi quase inaudível. Mesmo que a polícia descobrisse a mala, não havia nada nela que
pudesse conduzir a si. Iria comprar uma muda de roupa e uma mala nova quando chegasse a Antuérpia: Depois pensou: Se chegar a Antuérpia.
Seguiu pelo Herengracht em direcção a oeste, atravessando a cidade. Por um momento, pensou em abortar o ataque, ir directamente para a Centraalstation e fugir do país. Os Morgenthau eram alvos ligeiros e de valor político mínimo. Kemel escolhera-os porque matá-los seria fácil e porque permitiria a Tariq manter a pressão sobre o processo de paz. Mas agora o risco de captura tinha aumentado dramaticamente devido ao fiasco no barco. Talvez fosse melhor esquecer tudo.
À sua frente, um par de aves marinhas elevaram-se da superfície do canal e começaram a voar, os gritos a ecoar nas fachadas das casas no canal, e, por um momento, Tariq foi outra vez um rapaz de oito anos, a correr descalço pelo campo em Sídon.
A carta chegou ao final da tarde. Vinha dirigida aos pais de Tariq. Dizia que Mahmoud al-Hourani tinha sido morto em Colónia porque era um terrorista - que se Tariq, o filho mais novo da família al-Hourani, se tornasse um terrorista, também seria morto. O pai de Tariq disse-lhe para ir a correr até ao escritório da OLP e perguntar se a carta dizia a verdade. Tariq encontrou um funcionário da OLP e mostrou-lha. O homem da OLP leu-a uma vez, devolveu-a a Tariq e deu-lhe ordem para ir para casa e dizer ao pai que era verdade. Tariq correu pelo campo esquálido em direcção a casa, as lágrimas a toldarem-lhe a visão. Venerava Mahmoud. Não conseguia imaginar viver sem ele.
Quando chegou a casa, já a notícia da carta se tinha espalhado pelo campo - outras famílias tinham recebido cartas semelhantes ao longo dos anos. As mulheres reuniram-se à porta da casa de Tariq. O som dos seus lamentos e a agitação das línguas erguiam-se pelo campo com o fumo das fogueiras nocturnas. Tariq achava que soavam como pássaros dos pântanos. Encontrou o pai e disse-lhe que a carta era verdadeira - Mahmoud estava morto. O pai atirou a carta para a fogueira. Tariq nunca iria esquecer a dor no rosto do pai, a vergonha indizível de ter sido informado da morte do filho mais velho pelos próprios homens que o haviam morto.
Não, pensava agora Tariq enquanto caminhava ao longo do Herengracht. Não ia anular o ataque e fugir por ter medo de ser preso. Tinha chegado demasiado longe. Restava-lhe demasiado pouco tempo.
Tariq chegou à casa. Subiu os degraus da frente, esticou-se e tocou à campainha. Um momento depois, a porta foi aberta por uma rapariga num uniforme de empregada.
Estendeu o arranjo de flores e disse em holandês:
- Um presente para os Morgenthau.
- Oh, que adorável.
- E bastante pesado. Quer que o leve para dentro?
-
A rapariga afastou-se para Tariq poder passar. Fechou a porta para não deixar entrar o frio e esperou, com uma mão no trinco, que Tariq colocasse a caixa em cima de uma mesa no átrio de entrada e se fosse embora. Poisou a embalagem e sacou da Makarov enquanto se virava. Desta vez, o silenciador estava atarraxado no sítio.
A rapariga abriu a boca para gritar. Tariq disparou-lhe dois tiros na garganta.
Arrastou o corpo para fora do átrio de entrada e utilizou uma toalha da casa de banho para limpar o rasto de sangue. A seguir, sentou-se na sala de jantar escurecida e esperou que David e Cynthia Morgenthau chegassem a casa.
PARIS
Shamron chamou Gabriel aos jardins de Tuileries na manhã seguinte, para uma reunião rápida. Gabriel encontrou-o sentado num banco perto de um caminho de cascalho, rodeado por um bando de pombos. Tinha um cachecol de seda cinzento-ardósia à volta do pescoço, com as pontas bem aconchegadas por baixo das lapelas do sobretudo preto, de modo que a careca parecia estar colocada no topo de um pedestal. Levantou-se, tirou a luva preta de cabedal da mão direita e esticou-a como uma faca de trinchar. Gabriel achou-lhe a palma da mão invulgarmente quente e húmida. Shamron soprou para dentro do canhão da luva e voltou a colocá-la. Não estava acostumado a climas frios, e Paris no Inverno deprimia-o.
Caminharam rapidamente, não como dois homens a conversar num parque, mas como dois homens a ir com pressa para algum lado - ao longo dos caminhos de Tuileries, através da muito ventosa Place de la Concorde. Folhas mortas estalavam sob os seus pés, à medida que marchavam ao longo do passeio revestido de árvores junto aos Champs-Élysées.
- Recebemos um relatório esta manhã de um sayan nos serviços de segurança holandeses - disse Shamron. - Foi o Tariq que matou o David Morgenthau e a mulher em Amesterdão.
- Como é que podem ter tanta certeza?
- Eles não têm a certeza, mas eu sim. A polícia de Amesterdão
descobriu uma rapariga morta numa casa flutuante no Amstel. Tinha tido uma overdose de heroína. O irmão também estava morto.
- Heroína?
- Uma única bala pelo olho dentro.
- O que é que aconteceu?
- Segundo os vizinhos da rapariga, uma mulher árabe mudou-se para a casa flutuante há um par de semanas atrás. Saiu há um par de dias e um homem tomou o seu lugar. Um francês que dava pelo nome de Paul.
- Então o Tariq enviou antecipadamente uma agente para Amesterdão, para assegurar um alojamento seguro e uma rapariga para cobertura.
- E quando já não precisava mais dela, deu-lhe heroína suficiente para matar um camelo. A polícia diz que a rapariga tinha antecedentes longos de uso de drogas e prostituição. Obviamente, achou que conseguia fazê-lo passar por uma overdose acidental.
- Como é que o irmão acabou morto?
- A casa flutuante está registada em nome dele. Segundo a polícia, tem estado a trabalhar em Roterdão num projecto de construção. Talvez tenha aparecido sem aviso no local, enquanto o Tariq estava a matar a irmã.
- Faz sentido.
- Na verdade, há provas que suportam essa teoria. Uns vizinhos ouviram o disparo. Se Tariq tivesse estado a planear matar o irmão, teria utilizado um método de execução mais silencioso. Talvez tivesse sido surpreendido.
- Já compararam a bala do irmão com as balas tiradas dos Morgenthau e da empregada?
- Há uma correspondência perfeita. A mesma arma matou as quatro pessoas todas.
Um casal de jovens suecos estava a posar para uma fotografia. Gabriel e Shamron viraram-se bruscamente e caminharam no sentido contrário.
Gabriel perguntou:
- Alguma outra novidade?
Quero que tenhas cuidado em Londres. Um homem de
Langley fez-me uma visita de cortesia na semana passada. Os Americanos foram informados pelas suas fontes de que o Tariq esteve envolvido em Paris. Querem-no preso e julgado nos Estados Unidos.
- A última coisa de que precisamos agora é de estar a tropeçar
na CIA.
- Receio que ainda seja pior. O homem de Langley deixou cair um aviso não muito subtil sobre os perigos de fazer operações em certos países sem permissão.
- Sabem de alguma coisa?
- Duvido, mas não o excluiria por completo.
- Estava à espera que o meu regresso ao Departamento não me fosse enfiar numa cadeia inglesa.
- E não vai, desde que mantenhas a disciplina.
- Obrigado pelo voto de confiança.
- Descobriste-a? - perguntou Shamron, mudando de assunto. Gabriel acenou com a cabeça.
- E está disposta a fazê-lo?
- Demorei algum tempo a convencê-la, mas concordou.
- Porque é que os meus filhos estão todos tão relutantes em voltar para casa? Fui um pai assim tão mau?
- Só demasiado exigente. Gabriel parou em frente de um café nos Champs-Élysées. Jacqueline estava junto à janela, com uns grandes óculos de sol, a ler uma revista. Olhou para cima de relance enquanto se aproximavam, depois voltou a fixar o olhar na revista. Shamron disse:
- É bom ver-vos aos dois a trabalhar juntos outra vez. Mas não lhe partas o coração desta vez. É boa rapariga.
- Eu sei.
- Vais precisar de lhe arranjar um trabalho de disfarce em Londres. Conheço uma pessoa que está à procura de uma secretária.
- Estou um passo à tua frente.
Shamron sorriu e afastou-se. Desapareceu nas multidões ao longo dos Champs-Élysées e, um momento depois, sumira-se.
Julian Isherwood abriu caminho pelos ladrilhos molhados de Mason's Yard. Eram três e trinta e estava a voltar à galeria a seguir ao almoço. Estava bêbado. Não tinha reparado que estava bêbado até sair do Green's e inspirar fundo um pouco do ar húmido e gelado. O oxigénio ressuscitara-lhe o cérebro, e o cérebro alertara o corpo de que, uma vez mais, tinha despejado demasiado vinho dentro dele. O companheiro de almoço fora o barrigudo Oliver Dimbleby e, uma vez mais, o tema da conversa tinha sido a proposta de compra da Isherwood Fine Arts por parte de Oliver. Desta vez, Isherwood conseguira manter a compostura e discutido a situação de uma forma razoavelmente racional - mas não sem a ajuda de duas garrafas de um soberbo Sancerre. Quando estamos a discutir o desmembramento do nosso negócio - da nossa própria alma, pensou -, é-nos permitido entorpecer a dor com um bom vinho francês.
Puxou o casaco para tapar os ouvidos. Uma rajada de vento húmido varreu a Duke Street. Isherwood viu-se apanhado num remoinho de folhas mortas e lixo molhado. Avançou alguns passos aos trambolhões, as mãos a proteger a cara, até o remoinho se extinguir. Pelo amor de Deus! Clima horroroso. Autenticamente siberiano. Pôs a hipótese de se escapulir para dentro do pub, para aquecer os ossos, mas pensou melhor. Já tinha feito suficientes estragos para uma tarde.
Utilizou a chave para abrir a porta no rés-do-chão, subiu as escadas devagar, a pensar que devia mesmo tratar do tapete. No patamar, estava a entrada para uma pequena agência de viagens. As paredes estavam forradas com cartazes de amazonas ferozmente bronzeadas, seminuas, a brincar ao sol. Talvez isto seja a melhor coisa para mim, pensou, a olhar fixamente para uma rapariga em topless, deitada de barriga para baixo na areia imaculadamente branca. Talvez deva abandonar enquanto ainda tenho alguns anos decentes dentro de mim. Fugir de Londres, ir para um sítio quente, lamber as minhas feridas.
Enfiou a chave com força na fechadura, empurrou a porta para
trás, despiu o casaco e pendurou-o no cabide na sala de espera. A seguir, entrou no escritório e deu um toque no interruptor.
- Olá, Julian. Isherwood virou-se e deu de caras com Gabriel Allon.
- Tu! Como diabo é que entraste aqui?
- Queres mesmo saber?
- Suponho que não -- respondeu Isherwood. - Em nome de Deus, o que é que estás aqui a fazer? E onde é que tens estado?
- Preciso de um favor.
- Tu precisas de um favor! Tu precisas de um favor, meu! Abandonaste-me a meio de um trabalho. Deixaste o meu Vecellio num chalé na Cornualha sem segurança nenhuma.
- Às vezes, o melhor sítio para esconder um Vecellio de valor inestimável é o último sítio onde alguém se lembraria de o procurar. Se me quisesse aproveitar à vontade do conteúdo do teu cofre lá em baixo, podia tê-lo feito com bastante facilidade.
- Isso é porque és uma aberração da natureza!
- Não é preciso tornares as coisas pessoais, Julian.
- A sério? E que tal isto para pessoal? " Pegou numa chávena de café da secretária e atirou-a direita
à cabeça de Gabriel.
Gabriel conseguiu ver que Isherwood tinha estado a beber, por isso puxou-o lá para fora para o pôr sóbrio. Andaram aos círculos pelos caminhos do Green Park, até Isherwood se cansar e recostar num banco. Gabriel sentou-se ao lado e esperou que um casal passasse antes de recomeçar a falar.
- Ela sabe escrever à máquina? - perguntou Isherwood. Sabe atender o telefone? Tomar nota de um recado?
- Não me parece que tenha feito um verdadeiro dia de trabalho em toda a vida.
- Oh, mas que perfeito. Absolutamente estupendo.
- É uma rapariga esperta. Tenho a certeza de que vai ser capaz de ajudar no escritório.
- Isso é reconfortante. É-me permitido perguntar porque é que devo contratar esta mulher?
- Julian, por favor.
- Julian, por favor, Julian, mete-te na tua vida. Julian, cala-te e faz o que te dizemos. É sempre o mesmo convosco. E enquanto tudo isto se passa, o meu negócio está a ir para o buraco. O Oliver fez-me uma proposta. vou aceitá-la.
- O Oliver não parece o teu tipo.
- A cavalo dado não se olha o dente. Não estaria nesta posição se não me tivesses abandonado.
- Não te abandonei.
- E chamas-lhe o quê, Gabriel?
- É só uma coisa que preciso de fazer. É tal e qual como nos velhos tempos.
- Nos velhos tempos, isso fazia parte do acordo logo à partida. Mas estes não são os velhos tempos. Isto é negócio, a porra de um negócio e ponto final, Gabriel, e tu passaste-me bem a perna. O que é que é suposto eu fazer acerca do Vecellio enquanto fazes jogos com o Ari?
- Espera por mim - respondeu Gabriel. - Isto vai terminar em breve e vou trabalhar nisso dia e noite, até estar acabado.
- Não quero um trabalho às três pancadas. Dei-to porque sabia que ias demorar o teu tempo e fazê-lo como deve ser. Se quisesse um trabalho às três pancadas, podia ter contratado um tipo sem talento para o fazer por um terço do que te estou a pagar.
- Dá-me um tempo. Mantém o teu comprador à distância e, faças o que fizeres, não vendas a tua posição ao Oliver Dimbleby. Nunca te irás perdoar.
Isherwood olhou para o relógio e levantou-se.
- Tenho um encontro. Alguém que quer mesmo comprar um quadro.
Virou-se e começou a afastar-se; depois parou e disse:
- Já agora, deixaste para trás um rapazinho desgostoso na Cornualha.
- O Peel - disse Gabriel de longe.
- Tem piada, Gabriel, mas nunca tinha imaginado que fosses do tipo de magoar uma criança. Diz à tua rapariga para estar na galeria amanhã às nove da manhã. E diz-lhe para não se atrasar.
- Vai lá estar.
- O que é que devo chamar a esta secretária que me estás a enviar?
- Podes chamar-lhe Dominique.
- Gira? - perguntou Isherwood, recuperando um pouco do seu velho humor.
- Não é má.
MAIDA VALE, LONDRES
Gabriel carregou as malas para dentro, enquanto Jacqueline examinava a sua nova casa, um apartamento acanhado de uma divisão, com uma única janela com vista para um pátio interior. Um sofá desdobrável, uma cadeira de couro estalado, uma secretária pequena. Ao lado da janela, estava um radiador lascado e, ao lado do radiador, uma porta que dava para uma cozinha pouco maior do que a da chalupa de Gabriel. Jacqueline entrou na cozinha e começou a abrir e a fechar armários, tristemente, como se cada um fosse mais repulsivo do que o último.
- Disse ao bodel para fazer umas compras para ti.
- Não podias ter arranjado uma coisa um bocadinho mais agradável?
- A Dominique Bonard é uma rapariga de Paris que veio para Londres à procura de trabalho. Não achei que um duplex de três quartos em Mayfair fosse apropriado.
- É aí que estás?
- Não exactamente.
- Fica uns minutos. Acho a ideia de estar sozinha aqui deprimente.
- Poucos.
Encheu a chaleira de água, colocou-a no fogão e ligou o bico. Gabriel descobriu saquinhos de chá e uma embalagem de leite de longa duração. Ela preparou duas chávenas grandes de chá e levou-as
para a sala de estar. Gabriel estava sentado no sofá. Jacqueline tirou os sapatos e sentou-se à frente dele, os joelhos por baixo do queixo.
- Quando é que começamos?
- Amanhã à noite. Se isso não funcionar, tentamos a noite a seguir.
Acendeu um cigarro, encostou a cabeça para trás e atirou o fumo para o tecto. Depois olhou para Gabriel e franziu os olhos.
- Lembras-te daquela noite em Tunes?
- Qual noite?
- A noite da operação.
- É claro que me lembro.
- Lembro-me como se tivesse sido ontem. Fechou os olhos.
- Lembro-me especialmente da viagem pela água, do regresso ao barco. Estava tão excitada que não conseguia sentir o corpo. Estava a voar. Tínhamos mesmo conseguido. Tínhamos ido direitos à casa daquele sacana, no meio de um recinto da OLP, e eliminado o tipo. Apetecia-me gritar de alegria. Mas nunca vou esquecer a tua expressão. Estavas atormentado. Era como se os homens mortos estivessem sentados ao teu lado no barco.
- Muito poucas pessoas compreendem o que é matar um homem à queima-roupa. E ainda menos sabem o que é encostar-lhe uma arma à cabeça e puxar o gatilho. Matar no campo de batalha dos serviços secretos é diferente do que matar um homem no Golan ou Sinai, mesmo quando se trata de um sacana assassino como o Abu Jihad.
- Agora compreendo isso. Senti-me tão idiota quando regressámos a Telavive. Comportei-me como se tivesses acabado de marcar o golo da vitória, e durante todo esse tempo estavas a morrer por dentro. Espero que me possas perdoar.
- Não precisas de pedir desculpa.
- Mas o que não compreendo é como o Shamron te atraiu de volta, depois destes anos todos.
- Não tem nada a ver com o Shamron. Tem a ver com o Tariq.
- O que tem o Tariq?
Gabriel deixou-se ficar sentado em silêncio por um momento, depois levantou-se e foi até à janela. No pátio, um trio de rapazes dava pontapés numa bola sob a luz âmbar de um candeeiro, jornais velhos a pairar sobre eles como cinzas no vento húmido.
- O irmão mais velho do Tariq, o Mahmoud, era membro do Setembro Negro. O Ari Shamron seguiu-lhe o rasto até Colónia e enviou-me para acabar com ele. Enfiei-me no apartamento dele enquanto estava a dormir e apontei-lhe uma arma à cara. Depois acordei-o, para que não tivesse uma morte tranquila. Dei-lhe dois tiros nos olhos. Dezassete anos mais tarde, o Tariq teve a sua vingança ao rebentar com a minha mulher e o meu filho diante dos meus olhos.
Jacqueline tapou a boca com as mãos. Gabriel continuava a olhar fixamente pela janela, mas conseguia perceber que era Viena que via agora e não os rapazes a brincar no pátio.
- Durante muito tempo, pensei que o Tariq se tivesse enganado - disse Gabriel. - Mas ele nunca se engana assim. É cuidadoso, faz tudo com um propósito. É o predador perfeito. Foi atrás da minha família por uma razão. Foi atrás deles para me castigar por lhe ter matado o irmão. Sabia que seria pior do que a morte.
Voltou-se para a olhar de frente.
- De um profissional para outro, foi um trabalho perfeito.
- E agora vais matá-lo em retribuição? Afastou o olhar e não respondeu nada.
- Sempre me culpei pelo que aconteceu em Viena - disse Jacqueline. - Se não tivéssemos...
- Não tiveste culpa - disse Gabriel, interrompendo-a. A culpa foi minha, não tua. Devia ter calculado. Comportei-me de uma forma estúpida. Mas agora acabou.
A frieza da sua voz foi como uma faca no peito dela. Demorou muito tempo a apagar o cigarro e depois olhou para cima, na direcção dele.
- Porque é que contaste à Leah sobre nós?
Ficou parado à janela por um momento, sem dizer nada. Jacqueline receou que tivesse ido longe de mais. Tentou pensar em algum modo de desbloquear a situação e mudar de assunto, mas queria
desesperadamente saber a resposta. Se Gabriel não tivesse confessado o caso, Leah e Dani nunca teriam estado com ele na missão em Viena.
- Contei-lhe porque não lhe queria mentir. A minha vida inteira era uma mentira. O Shamron tinha-me convencido de que eu era perfeito, mas não era perfeito. Pela primeira vez na vida, tinha-me comportado com um pouco de fragilidade e fraqueza humanas. Suponho que precisasse de o partilhar com ela. Suponho que precisasse de alguém para me perdoar.
Pegou no casaco. O rosto estava contorcido. Estava zangado, não com ela mas consigo próprio.
- Tens um dia longo à tua frente amanhã. A voz era agora toda ela negócios.
- Instala-te e tenta descansar um bocado. O Julian está a contar que apareças às nove horas.
E depois saiu.
Durante uns minutos, distraiu-se com o ritual do desfazer das malas. Depois, a dor tomou-a de surpresa, como o ardor atrasado de uma bofetada. Deixou-se cair no sofá e começou a chorar. Acendeu outro cigarro e olhou em redor do apartamentozinho horroroso. Mas que diabo estou eu aqui afazer? Tinha concordado em regressar por uma razão - porque julgava que podia fazer Gabriel amá-la -, mas ele tinha reduzido o caso em Tunes a um momento de fraqueza. Ainda assim, porque tinha ele voltado, após todos estes anos, para matar Tariq? Era simplesmente por vingança? Um olho por olho? Não, pensou, os motivos de Gabriel eram muito mais profundos e mais complexos do que a simples vingança. Talvez precisasse de matar Tariq para se perdoar pelo que tinha acontecido a Leah e avançar, por fim, com a vida. Mas será capa de alguma ve me perdoar? Talvez a única forma de lhe ganhar a confiança fosse ajudá-lo a matar Tariq. E a única forma de o poder ajudar a matar Tariq éfaer um outro homem apaixonar-se por mim e levá-lo para a cama. Fechou os olhos e pensou em Yusef al-Tawfiki.
Gabriel deixara o carro em Ashworth Road. Fez questão de mostrar que tinha deixado cair as chaves no passeio e que estava
a apalpar na escuridão como se estivesse a tentar encontrá-las. Na realidade, estava a inspeccionar a parte de baixo do carro, à procura de algo que não devesse estar lá - uma massa, um cabo grande. O carro parecia limpo, por isso entrou, ligou o motor e guiou em círculos durante meia hora por Maida Vale e Notting Hill, assegurando-se de que não estava a ser seguido.
Estava aborrecido consigo mesmo. Tinham-lhe ensinado primeiro o pai e depois Ari Shamron - que os homens que não conseguiam guardar segredos eram fracos e inferiores. O pai sobrevivera a Auschwitz, mas recusou-se sempre a falar disso. Bateu em Gabriel uma vez apenas - quando Gabriel exigiu que o pai lhe contasse o que tinha acontecido no campo de concentração. Se não tivesse sido pelos números tatuados no antebraço direito, Gabriel poderia nunca ter sabido que o pai sofrera.
Na verdade, Israel era um local pejado de gente traumatizada
- mães que enterraram filhos mortos em guerras, crianças que enterraram irmãos mortos por terroristas. Após Viena, Gabriel apoiou-se nas lições do pai: "Às vezes, as pessoas morrem demasiado cedo. Chora-as em privado. Não tenhas o sofrimento à flor da pele como os Árabes. E quando tiveres acabado de fazer o luto, põe-te de pé e continua com a vida."
Tinha sido a última parte - continuar com a vida - que dera mais trabalho a Gabriel. Culpava-se pelo que tinha acontecido em Viena, não só pelo caso com Jacqueline, mas também pelo modo como tinha matado o irmão de Tariq. Quisera ter a satisfação de saber que Mahmoud estava ciente da sua morte - que tinha ficado aterrorizado no momento em que a Beretta de Gabriel lhe enviou silenciosamente a primeira bala ardente para o cérebro. Shamron dissera-lhe para aterrorizar os terroristas - para pensar como eles e comportar-se como eles. Gabriel acreditava que tinha sido castigado por se ter deixado tornar igual ao inimigo.
Como resultado, tinha-se castigado a si próprio. Uma por uma, fechara as portas e obstruíra as janelas que em tempos lhe tinham dado acesso aos prazeres da vida. Vagueou pelo tempo e pelo espaço como imaginava que um espírito maldito pudesse visitar o lugar
onde vivera: capaz de ver os entes queridos e os pertences mas incapaz de comunicar ou saborear ou tocar ou sentir. Senda a beleza apenas na arte e apenas ao reparar os danos infligidos por proprietários negligentes ou pela passagem corrosiva do tempo. Shamron tinha feito de si o destruidor. Gabriel voltara a tornar-se o curador. Infelizmente, não era capaz de se curar a si próprio.
Então porquê contar segredos ajacqueline? Porquê responder-lhe às malditas questões? A resposta simples era porque o queria fazer. Tinha-o sentido no momento em que entrara na sua vivenda em Valbonne, uma necessidade prosaica de partilhar segredos e revelar dor e desapontamento passados. Mas havia algo mais importante: não tinha de se explicar a ela. Pensou na fantasia tola acerca da mãe de Peel, como tinha terminado quando lhe contara a verdade sobre si mesmo. A cena reflectia um dos medos profundos de Gabriel - o temor de dizer a uma outra mulher que era um assassino profissional. Jacqueline já conhecia os seus segredos.
Talvez Jacqueline tivesse tido razão numa coisa, pensou - talvez devesse ter pedido outra rapariga a Shamron. Jacqueline era a sua bat leveyha, e amanhã ia enviá-la para a cama de outro homem.
Estacionou à esquina do apartamento e caminhou depressa pelo passeio, em direcção à entrada do prédio. Olhou para cima, para a sua janela, e murmurou:
- Boa noite, Senhor Karp.
E imaginou Karp, a espreitar pela mira do seu microfone parabólico, a dizer:
- Bem-vindo a casa, Gabriel. Há muito tempo que não te ouvia.


CONTINUA

PARTE II
AVALIAÇÃO
Antes da guerra, Maurice Halévy era um dos mais proeminentes advogados de Marselha. Ele e a mulher, Rachel, tinham vivido numa imponente casa antiga na rue Sjlvabelle em Beaux Quartiers, onde a maioria dos judeus assimilados com sucesso da cidade se estabelecera. Tinham orgulho em ser franceses; consideravam-se primeiro franceses e depois judeus. Na verdade, Maurice Halévy estava tão assimilado que raramente se dava ao trabalho de ir à sinagoga. Mas quando os Alemães invadiram, a vida idílica dos Halévy em Marselha chegou a um fim abrupto. Em Outubro de 1940, o governo colaboracionista de Vichy divulgou o statut dês Juifs, os decretos antijudeus que reduziram os judeus a cidadãos de segunda classe na França de Vichy. Foi retirado a Maurice Halévy o direito de exercer advocacia. Exigiram-lhe que se registasse na polícia e, mais tarde, ele e a mulher foram forçados a utilizar a Estrela de David nas roupas.
A situação piorou em 1942, quando o exército alemão se instalou na França de Vichy, após a invasão do Norte de África pelos Aliados. As forças da Resistência Francesa levaram a cabo uma série de ataques mortíferos às forças alemãs. A polícia de segurança alemã, com a ajuda das autoridades francesas de Vichy, respondeu com assassinatos brutais. Maurice Halévy não podia mais ignorar a ameaça. Rachel ficara grávida. A ideia de tentar cuidar de um recém-nascido no caos de Marselha era demasiado para suportar. Decidiu deixar a cidade e partir para o campo. Utilizou as poupanças diminutas para arrendar um chalé nas colinas à saída de Aix-en-Provence. Em janeiro, Rachel deu à luz um filho, Isaac.
Uma semana mais tarde, os Alemães e a polícia francesa começaram a reunir os judeus. Demoraram um mês para descobrir Maurice e Rachel Halévy. Um par de oficiais alemães das S S apareceu no chalé num final de tarde de
Fevereiro, acompanhado por um gendarme local. Deram aos Halévy vinte minutos para fazer uma mala que não pesasse mais do que vinte e sete quilos. Enquanto os alemães e o gendarme esperavam na sala de jantar, a mulher do chalé do lado apareceu aporta.
- O meu nome é Anne-Marie Delacroix - disse. - Os Halévy estavam a tomar conta do meu filho enquanto fui ao mercado.
O gendarme estudou os seus documentos. De acordo com estes, apenas dois judeus viviam no chalé. Chamou os Halévy e disse:
- Esta mulher diz que o rapaz é dela. É verdade?
- É claro que é - respondeu Maurice Halévy, apertando o braço de Rachel antes de ela poder emitir um som. - Estávamos só a tomar conta do rapaz durante a tarde.
O gendarme olhou para Maurice Halévy incredulamente, depois consultou os documentos de registo uma segunda vez.
- Pegue na criança e vá-se embora - disparou para a mulher. - Apetecia-me bastante levá-la sob custódia eu mesmo, por entregar uma criança francesa ao cuidado destes judeus nojentos.
Dois meses mais tarde, Maurice e Rachel Halévy foram assassinados em Sobibor.
Anne-Marie Delacroix levou Isaac a uma sinagoga e contou ao rabi o que acontecera naquela noite em Aix-en-Provence. O rabi deu-lhe a escolher entre entregar a criança para adopção por uma família judia ou criá-la ela própria. Eevou o rapaz de volta a Aix e criou-o como judeu, ao lado dos seus próprios filhos católicos. Em 1965, Isaac Halévy casou com uma rapariga de Nimes, chamada Deborah, e instalou-se em Marselha, na antiga casa do pai, na rue Sylvabelle. Três anos mais tarde, tiveram o primeiro e único filho: uma rapariga a quem chamaram Sarah.
PARIS
Michel Duval era o fotógrafo da moda mais em voga em Paris. Os estilistas e os editores de revistas adoravam-no, pois as suas fotografias irradiavam uma aura muito forte de sexualidade perigosa. Jacqueline Delacroix achava que ele era um porco. Sabia que conseguia o seu olhar singular abusando das modelos. Não estava com grande vontade de trabalhar com ele.
Saiu de um táxi e entrou num edifício de apartamentos na rue St-Jacques, onde Michel tinha o estúdio. Lá em cima, uma pequena multidão aguardava: artista de maquilhagem, cabeleireiro, estilista, um representante da Givenchy. Michel estava em cima de um escadote, a ajustar luzes: bem-parecido, cabelos loiros pelos ombros, feições felinas. Vestia calças de cabedal pretas, descaídas nas ancas estreitas, e um pulôver largo. Piscou o olho a Jacqueline quando ela entrou. Ela sorriu e disse:
- Prazer em ver-te, Michel.
- Vamos ter uma boa sessão hoje, não é? Consigo senti-lo.
- Espero que sim.
Entrou num quarto para mudar de roupa, despiu-se e estudou o aspecto ao espelho com impassibilidade profissional. Fisicamente, era uma mulher estonteante: alta, braços e pernas graciosos, cintura elegante, pele cor de azeitona clara. Os seios eram esteticamente perfeitos: firmes, arredondados, nem demasiado pequenos nem anormalmente grandes. Os fotógrafos adoravam sempre os seus seios. A maior parte das modelos detestava o trabalho com Ungem, mas isso nunca incomodara Jacqueline. Tivera sempre mais ofertas de trabalho do que aquelas que podia encaixar na agenda.
O seu olhar passou do corpo para a cara. Tinha cabelo encaracolado, preto como um corvo, que lhe chegava aos ombros, olhos escuros, um nariz comprido e fino. As maçãs do rosto eram largas e uniformes, a linha do maxilar angulosa, os lábios carnudos. Orgulhava-se do facto de a cara nunca ter sido alterada pelo bisturi de um cirurgião. Inclinou-se para a frente, apalpou a pele à volta dos olhos. Não gostou do que viu. Não era uma linha, na realidade algo mais subtil e insidioso. O sinal intangível do envelhecer. Já não tinha os olhos de uma criança. Tinha os olhos de uma mulher com trinta e três anos.
Continuas linda, mas aceita os factos, Jacqueline. Estás a ficar velha.
Vestiu um robe branco, foi até ao quarto do lado e sentou-se. O artista de maquilhagem começou a aplicar-lhe uma base na bochecha. Jacqueline observou no espelho enquanto a sua cara era transformada lentamente na de alguém que não reconhecia bem. Interrogou-se sobre o que o avô acharia se pudesse ver isto.
Provavelmente, ficaria envergonhado...
Quando o artista de maquilhagem e o estilista para o cabelo terminaram, Jacqueline olhou-se ao espelho. Se não tivesse sido pela coragem daquelas três pessoas notáveis - os avós e Anne-Marie Delacroix -, não estaria hoje aqui.
E vê no que te tornaste - um requintado cabide para roupas.
Levantou-se, regressou ao quarto para mudar de roupa. O vestido, um traje de cerimónia preto e sem alças, aguardava-a. Tirou o robe, vestiu o traje e puxou-o sobre os seios nus. A seguir, mirou-se ao espelho. Devastadora.
Uma batida na porta.
- O Michel está pronto para si, menina Delacroix.
- Diga ao Michel que saio já. Menina Delacroix...
Mesmo passados todos estes anos, ainda não se habituara a isso: Jacqueline Delacroix. O agente, Mareei Lambert, tinha sido quem lhe alterara o nome - Sarah Halév soa demasiado... bom... sabes o que quero dizer, mon chou. Não me faças dizê-lo em voz alta. Tão vulgar, mas é assim o mundo. Por vezes, o som do seu nome francês fazia a pele arrepiar-se-lhe. Quando soube o que acontecera aos avós na guerra, ardera de ódio e suspeita em relação a todos os franceses. Sempre que via um velho, interrogava-se sobre o que teria feito durante a guerra. Teria sido um guarda em Gurs ou Lês Milles ou num dos outros campos de detenção? Teria sido um gendarme que ajudara os Alemães a reunir a sua família? Teria sido um burocrata que carimbava e processava a papelada da morte? Ou teria simplesmente permanecido em silêncio, sem fazer nada? Secretamente, dava-lhe intenso prazer estar a enganar o mundo da moda. Imagine-se a reacção deles se descobrissem que a beldade alta e magra e de cabelos pretos de Marselha era de facto uma judia da Provença, cujos avós tinham sido mortos na câmara de gás em Sobibor. De certa maneira, ser uma modelo, a imagem por excelência da beleza francesa, era a sua vingança.
Olhou uma última vez para si própria, baixando o queixo para o peito, afastando os lábios ligeiramente, trazendo fogo aos olhos pretos cor de carvão.
Agora estava pronta.
Trabalharam durante trinta minutos sem parar. Jacqueline adoptou diversas poses. Estendeu-se ao longo de uma simples cadeira de madeira. Sentou-se no chão, encostando-se para trás apoiada nas mãos, com a cabeça inclinada para cima e os olhos fechados. Pôs-se em pé com as mãos nas ancas e os olhos a perfurar a lente da máquina fotográfica de Michel. Michel parecia gostar do que estava a ver. Estavam em sintonia. De poucos em poucos minutos, parava por uns segundos para mudar de rolo, depois retomava a sessão rapidamente. Jacqueline estava na profissão há tempo suficiente para saber quando uma sessão fotográfica estava a funcionar.
Por isso, ficou surpreendida quando ele saiu de repente detrás da objectiva e passou a mão pelo cabelo. Tinha um olhar carrancudo.
- Saiam do estúdio, por favor. Preciso de privacidade. Jacqueline pensou: Oh, céus. Aqui vamos nós.
Michel perguntou:
- Mas o que raio se passa contigo?
- Não se passa nada comigo!
- Nada? Estás apática, Jacqueline. As fotos estão apáticas. Bem podia estar a tirar fotografias a um manequim com o vestido posto. Não me posso dar ao luxo de entregar à Givenchy um conjunto de fotografias apáticas. E pelo que ouço na rua, também não podes.
- O que é que isso quer dizer supostamente?
- Quer dizer que estás a ficar velha, querida. Quer dizer que ninguém tem bem a certeza de que ainda tenhas o que é preciso.
- Vai mas é para trás da máquina e mostro-te que ainda tenho o que é preciso.
- Já vi o suficiente. Simplesmente não está aí hoje.
- Tretas!
- Queres que te vá buscar uma bebida? Talvez um copo de vinho te ajude a descontrair.
- Não preciso de uma bebida.
- E que tal um pouco de coca?
- Sabes que já não snifo.
- Pois eu, sim.
- Há coisas que nunca mudam.
Michel tirou um pequeno saco de cocaína do bolso da camisa. Jacqueline sentou-se na cadeira que servia de adereço enquanto ele preparava duas linhas numa mesa com tampo de vidro. Snifou uma e a seguir ofereceu-lhe a nota de cem francos enrolada.
- Apetece-te ser uma rapariga mazinha hoje?
- É toda tua, Michel. Não estou interessada.
Ele inclinou-se e snifou a segunda linha. A seguir, limpou o vidro com o dedo e espalhou o resto pelas gengivas.
- Se não vais tomar uma bebida nem snifar uma linha, talvez tenhamos de pensar numa outra maneira de acender uma chama dentro de ti.
- Como o quê? - perguntou, mas sabia no que Michel estava a pensar.
Pôs-se atrás dela, colocou-lhe as mãos ao de leve nos ombros nus.
- Talvez precises de pensar em seres fodida.
As mãos deixaram-lhe os ombros e acariciaram-lhe a pele logo acima dos seios.
- Talvez possamos fazer alguma coisa para tornar a ideia um pouco mais realista na tua imaginação.
Pressionou-lhe a pélvis contra as costas para que ela lhe pudesse sentir a erecção por baixo das calças de cabedal. Ela afastou-se.
- Estou só a tentar ajudar, Jacqueline. Quero certificar-me de que estas fotografias saem bem. Não quero ver a tua carreira a ir pelo cano abaixo. Os meus motivos são puramente altruístas.
- Nunca soube que eras tão filantropo, Michel. Ele riu-se.
- Vem comigo. Quero mostrar-te uma coisa.
Pegou-lhe na mão e puxou-a para fora do plateau. Atravessaram um corredor e entraram num quarto que tinha apenas como mobília uma cama grande. Michel tirou a camisa e começou a desabotoar as calças.
Jacqueline perguntou:
- O que é que pensas que estás a fazer?
- Tu queres fotografias boas, eu quero fotografias boas. Vamo-nos pôr em sintonia. Tira o vestido para não ficar estragado.
- Vai-te foder, Michel. Vou-me embora.
- Vá lá, Jacqueline. Deixa-te de parvoíces e mete-te na cama.
- Não!
- Mas qual é o problema? Dormiste com o Robert Leboucher, para que ele te desse aquela sessão fotográfica de fatos de banho, em Mustique.
- Como é que soubeste?
- Porque ele me disse.
- És um sacana, e ele também! Não sou nenhuma miúda de dezassete anos que vai abrir as pernas para ti porque quer boas fotografias tiradas pelo grande Michel Duval.
- Se sais daqui para fora, a tua carreira está acabada.
- Estou-me bem a lixar. Ele apontou para a erecção.
- O que é que é suposto eu fazer acerca disto?
Mareei Lambert vivia a uma curta distância dali, na rue de Tournon, no Quartier Luxembourg. Jacqueline precisava de tempo para si própria, por isso foi a pé, demorando-se pelas ruas laterais e estreitas do Quartier Latin. A escuridão a cair, as luzes a acenderem-se nos pequenos restaurantes e nos cafés, o cheiro de cigarros e alho a fritar no ar fresco.
Atravessou para o Quartier Luxembourg. Como tinha chegado tão depressa a isto, pensou - Michel Duval, a tentar ameaçá-la para uma rapidinha entre disparos. Há uns poucos anos atrás, ele não teria pensado nisso. Mas não agora. Agora, ela estava vulnerável e Mareei tinha resolvido testá-la.
Por vezes, arrependia-se de ter entrado nesta profissão. Projectara ser bailarina - e tinha estudado na academia mais reputada de Marselha -, mas aos dezasseis anos foi descoberta por um caçador de talentos de uma agência de modelos de Paris, que deu o nome dela a Mareei Lambert. Mareei marcou uma sessão fotográfica de
teste, deixou-a mudar-se para o seu apartamento, ensinou-a a mover-se e a agir como modelo e não como bailarina. As fotos da sessão de teste foram estonteantes. Tinha dominado a objectiva, irradiado uma sexualidade brincalhona. Mareei colocou discretamente as fotografias a circular por Paris: nenhum nome, nada acerca da rapariga, apenas as fotografias e o cartão dele. A reacção foi instantânea. O telefone não parou de tocar durante uma semana. Os fotógrafos exigiam trabalhar com ela. Os estilistas queriam contratá-la para as suas apresentações de Outono. O boca a boca dos fotógrafos passou de Paris para Milão e de Milão para Nova Iorque. O mundo da moda inteiro queria saber o nome desta misteriosa beldade francesa de cabelos pretos como um corvo.
Jacqueline Delacroix.
Como as coisas eram diferentes agora. O trabalho de qualidade começara a abrandar quando fez vinte e seis anos, mas agora, que tinha trinta e três, os bons trabalhos tinham secado. Ainda recebia algum trabalho nas passarelas em Paris e Milão, no Outono, mas apenas com estilistas de segundo plano. Ainda conseguia o ocasional anúncio de lingerie - Não há nada de errado com as tuas mamas, gostava de dizer Mareei -, mas fora forçado a alugá-la para diferentes tipos de sessões fotográficas. Tinha acabado de fazer uma sessão para uma cervejaria alemã, na qual se fazia passar pela atraente mulher de um homem de meia-idade bem-sucedido.
Mareei avisara que iria acontecer assim. Dissera-lhe para poupar o dinheiro, para se preparar para uma vida depois das passagens de modelos. Jacqueline nunca se dera a esse trabalho - Tinha partido do princípio de que o dinheiro continuaria a jorrar para sempre. Às vezes, tentava lembrar-se para onde fora todo. As roupas. As casas para dormir em Paris e Nova Iorque. As férias extravagantes com as outras raparigas nas Caraíbas ou no Sul do Pacífico. A tonelada de cocaína que havia sugado pelo nariz antes de se endireitar.
Michel Duval tivera razão numa coisa: ela tinha dormido com um homem para conseguir um trabalho, um editor da Vogue francesa chamado Robert Leboucher. Era um trabalho que atraía atenção e publicidade, e do qual precisava desesperadamente - uma sessão
para fatos de banho e roupa de Verão, em Mustique. Podia mudar tudo para si - dar-lhe o dinheiro suficiente para voltar a ter estabilidade financeira, mostrar a toda a gente na indústria que ainda tinha o que era preciso para os trabalhos mais apetecíveis. Pelo menos, por mais um ano, dois, no máximo. E a seguir?
Entrou no prédio de Mareei, enfiou-se no elevador, subiu até ao apartamento dele. Quando bateu à porta, esta escancarou-se. Mareei estava ali parado, olhos esbugalhados, boca aberta.
- Jacqueline, minha ternura! Por favor, diz-me que não é verdade. Diz-me que não pontapeaste o Michel Duval nos tomates! Diz-me que ele inventou a história toda!
- Na verdade, Mareei, dei-lhe um pontapé na pila. Ele lançou a cabeça para trás e riu ruidosamente.
- Tenho a certeza de que foste a primeira mulher que alguma vez fez isso. É para o sacana aprender. Quase destruiu a Claudette. Lembras-te do que ele lhe fez? Coitadinha. Tão linda, tanto talento.
Puxou os lábios para baixo, soltou um resfolego gaulês de desaprovação, pegou-lhe na mão e puxou-a para dentro. Um instante depois, estavam a beber vinho no sofá da sua sala de estar, o zumbido do trânsito do fim de tarde a correr por entre as janelas abertas. Mareei acendeu-lhe o cigarro e apagou com destreza o fósforo, agitando-o. Vestia calças de ganga azuis justas e desbotadas, mocassins pretos e uma camisola de gola alta cinzenta. O cabelo cinzento, que estava a enfraquecer, estava cortado muito curto. Tinha feito um novo liftíng recentemente; os olhos azuis pareciam estranhamente grandes e salientes, como se estivesse constantemente surpreendido. Ela pensou naqueles dias tão longínquos, quando Mareei a trouxera para este apartamento e a preparara para a vida à sua frente. Sempre se sentira segura neste sítio.
- Então com que tipo de parvoíce é que o Michel se saiu agora?
Jacqueline descreveu a sessão, não omitindo nada. Havia poucos segredos entre eles. Quando terminou, Mareei disse:
- Provavelmente, não lhe devias ter dado um pontapé. Está
a ameaçar com um processo.
- Que tente. Todas as raparigas que coagiu a ter sexo irão testemunhar no julgamento dele. Vai destruí-lo.
- O Robert Leboucher ligou-me há uns minutos, antes de chegares. Está a tentar desistir de Mustique. Diz que não consegue trabalhar com uma mulher que dá pontapés nos fotógrafos.
- As notícias correm depressa neste negócio.
- Sempre correram. Acho que consigo convencer o Robert a ter bom senso. Mareei hesitou, depois acrescentou:
- Isto é, se quiseres que o faça.
- Claro que quero que o faças.
- Tens a certeza, Jacqueline? Tens a certeza de que ainda tens o que é preciso para este tipo de trabalho?
Deu um gole grande no vinho, encostou a cabeça ao ombro de Mareei.
- Na verdade, não tenho bem a certeza de que o tenha.
- Faz-me um favor, querida. Vai para tua casa, no Sul, por uns dias. Ou faz uma daquelas viagens longas como costumavas fazer. Tu sabes - aquelas sobre as quais eras tão misteriosa. Descansa um bocado. Desanuvia a cabeça. Pensa a sério. vou tentar convencer o Robert a ter bom senso. Mas tens de decidir se isto é mesmo
o que queres ou não.
Fechou os olhos. Talvez fosse altura de sair enquanto ainda tinha uma réstia de dignidade.
- Tens razão - disse. - Faziam-me bem uns dias no campo. Mas quero que ligues àquele cabrão do Robert Leboucher, agora mesmo, e lhe digas que esperas que cumpra a palavra em relação à sessão em Mustique.
- E se não o conseguir fazer mudar de ideias?
- Diz-lhe que lhe dou um pontapé na pila também. Mareei sorriu.
- Jacqueline, querida, sempre gostei do teu estilo.
BAYSWATER, LONDRES
Fiona Barrows parecia-se muito com o prédio de apartamentos que geria em Sussex Gardens: ampla e atarracada, com uma camada brilhante de tinta que não conseguia esconder o facto de estar a envelhecer e não de uma forma muito graciosa. A curta caminhada do elevador até à entrada do apartamento vago deixou-a ligeiramente sem fôlego. Empurrou a chave para dentro da fechadura com a mão roliça, abriu a porta com um empurrão e um pequeno grunhido.
- Cá estamos nós - cantarolou.
Guiou-o numa curta visita: uma sala de estar mobilada com sofás e cadeiras bastante gastos, dois quartos idênticos com camas de casal e mesinhas-de-cabeceira iguais, uma pequena sala de jantar com uma mesa moderna de vidro colorido de cinzento, uma exígua cozinha de navio com um fogão de dois bicos e um microondas.
Ele regressou à sala de estar, parou em frente da janela, abriu as persianas. Do outro lado da rua estava outro prédio de apartamentos.
- Se quer a minha opinião, não podia pedir uma melhor localização em Londres por este preço - disse Fiona Barrows. - Oxford Street é muito perto e, claro, o Hyde Park fica logo ao virar da esquina. Tem filhos?
- Não, não tenho - respondeu Gabriel, distraído, ainda a olhar para o prédio de apartamentos do outro lado da rua.
- Que tipo de trabalho faz, se não me leva a mal perguntar?
- Sou restaurador de arte.
- Quer dizer que arranja quadros antigos?
- Qualquer coisa do género.
- Também trata das molduras? Tenho uma moldura antiga no meu apartamento que precisa de uns remendos.
- Receio que só as pinturas.
Ela olhou para ele parado à janela, a contemplar o espaço. Um homem atraente, pensou. Mãos bonitas. Mãos boas eram sexy num homem. Imagine-se, um restaurador de arte aqui mesmo no prédio. Seria bom ter por aqui um toque de classe para variar. Oh, se ainda fosse solteira - solteira, vinte anos mais nova e nove quilos mais leve. Era um fulano cuidadoso; conseguia ver isso. Um homem que nunca dava um passo sem pensar nele por todos os ângulos. Provavelmente, iria querer ver mais uma dúzia de apartamentos antes de se decidir.
- Então, o que acha?
- É perfeito --respondeu ele para a janela.
- Para quando é que o quer? Gabriel fechou a persiana.
- Imediatamente.
Durante dois dias, Gabriel observou-o.
No primeiro dia, só o viu uma vez - quando se levantou pouco depois do meio-dia e apareceu brevemente à janela, apenas com umas cuecas pretas vestidas. Tinha cabelos escuros e encaracolados, maçãs do rosto angulosas e lábios carnudos. O corpo era magro e levemente musculado. Gabriel abriu o ficheiro de Shamron e comparou a cara à janela com a fotografia presa por um clipe à capa de papel manilha.
O mesmo homem.
Gabriel podia sentir uma frieza operacional a apoderar-se de si, à medida que estudava a figura à janela. De repente, tudo parecia mais claro e nítido por contraste. Os ruídos pareciam mais altos e mais distintos - a porta de um carro a fechar-se, amantes a discutir no apartamento ao lado, um telefone a tocar sem ser atendido,
a sua chaleira para o chá a apitar com força na cozinha. Uma por urna, desligou estas intrusões e concentrou toda a atenção no homem à janela, do outro lado da rua.
Yusef al-Tawfiki, poeta nacionalista palestiniano em part-time, estudante no University College London em part-time, empregado de um restaurante libanês chamado Kebab Factory, em Edgware Road, em part-time, agente do exército secreto de Tariq a tempo inteiro.
Uma mão apareceu no abdómen de Yusef: pele clara, luminosa em contraste com a sua tez escura. Uma mão de mulher. Gabriel viu de relance um cabelo loiro curto. A seguir, Yusef desapareceu por trás das cortinas.
A rapariga saiu uma hora mais tarde. Antes de entrar no táxi, olhou para cima, na direcção do apartamento, para ver se o amante a estava a observar. A janela estava vazia e as cortinas corridas. Fechou a porta, com um pouco mais de força do que o necessário, e o táxi partiu.
Gabriel fez a primeira avaliação operacional: Yusef não tratava as suas mulheres bem.
No dia seguinte, Gabriel decidiu montar uma vigilância física pouco apertada.
Yusef saiu do apartamento ao meio-dia. Vestia uma camisa branca, calças pretas e um casaco de cabedal preto. Ao pisar o passeio, parou para acender um cigarro e sondar os carros estacionados, à procura de qualquer sinal de vigilância. Apagou o fósforo, agitando-o, e começou a andar na direcção de Edgware Road. Cerca de noventa metros depois, parou de repente, voltou-se e regressou à entrada do prédio de apartamentos.
Uma manobra típica de contravigilância, pensou Gabriel. E um profissional.
Cinco minutos depois, Yusef estava de volta à rua e a andar na direcção de Edgware Road. Gabriel foi à casa de banho, passou gel pelo cabelo curto e pôs uns óculos coloridos de vermelho. A seguir, vestiu o casaco e saiu.
Do outro lado da rua, em frente ao Kebab Factory, ficava um restaurante italiano. Gabriel entrou e sentou-se a uma mesa junto
à janela. Recordou-se das palestras na Academia. Se estivermos a vigiar um alvo a partir de um café, não devemos fazer coisas que nos façam parecer estar a vigiar um alvo a partir de um café, tais como ficarmos sentados sozinhos durante horas, a fingir estarmos a ler um jornal. Demasiado óbvio.
Gabriel transformou-se. Tornou-se Cedric, escritor para uma revista cultural de Paris. Falou inglês com um sotaque francês quase impenetrável. Afirmou estar a trabalhar numa história sobre o porquê de Londres ser tão excitante hoje em dia e Paris tão monótona. Fumou cigarros Gitane e bebeu uma grande quantidade de vinho. Manteve uma conversa entediante com um par de raparigas suecas na mesa ao lado. Convidou uma delas a ir até ao seu quarto de hotel. Quando ela recusou, convidou a outra. Quando ela recusou, convidou as duas. Entornou um copo de Chianti. O gerente, Signor Andriotti, veio até à mesa e avisou Cedric para estar sossegado ou teria de se ir embora.
E, no entanto, durante todo esse tempo, Gabriel estava a vigiar Yusef do outro lado da rua. Vigiou-o enquanto ele lidava com perícia com a multidão do almoço. Vigiou-o quando saiu por momentos do restaurante e subiu a rua até a uma tabacaria que vendia jornais de língua árabe. Vigiou-o enquanto uma rapariga morena, bonita, anotou o número de telefone nas costas de um guardanapo e o enfiou no bolso da camisa dele para não se perder. Vigiou-o enquanto mantinha uma longa conversa com um árabe de ar vigilante. Na verdade, no momento em que Gabriel despejava o Chianti, estava a memorizar a marca e a matrícula do Nissan do árabe. E enquanto afastava o exasperado Signor Andriotti, estava a vigiar Yusef a falar ao telefone. com quem estava a falar? Uma mulher? Um primo em Ramallah? O seu controleiro?
Passada uma hora, Gabriel decidiu que já não era sensato permanecer no café. Pagou a conta, deixou uma gorjeta generosa e pediu desculpas pelo comportamento grosseiro. Signor Andriotti guiou-o até à porta e fê-lo sair gentilmente.
Nessa noite, Gabriel estava sentado na cadeira junto à janela, à espera de que Yusef regressasse a casa. A rua brilhou com o
combóio da noite. Uma mota passou em alta velocidade, um rapaz a conduzir, uma rapariga à pendura, a implorar-lhe para abrandar. Provavelmente nada, mas tomou nota disso no livro de registos, juntamente com as horas: onze e um quarto.
Estava com dores de cabeça devido ao vinho. O apartamento já o começava a deprimir. Quantas noites tinha passado assim? Sentado num estéril apartamento seguro do Departamento ou num manhoso quarto arrendado, a vigiar, a aguardar. Ansiava por algo lindo, por isso enfiou um disco compacto de La Bohème na aparelhagem portátil aos seus pés e reduziu o volume até a um sussurro. Trabalho de espionagem é paciência, Shamron sempre o dissera. Trabalho de espionagem é tédio.
Levantou-se, foi até à cozinha, tomou aspirina para a dor de cabeça. Na porta ao lado, uma mãe e uma filha começaram a discutir num árabe com sotaque libanês. Um copo partiu-se, depois outro, uma porta bateu com força, uma correria lá fora no corredor.
Gabriel voltou a sentar-se e fechou os olhos, e um momento depois estava de volta ao Norte de África, há doze anos atrás.
Os botes de borracha chegaram à costa com a rebentação suave em E.ouad. Gabriel saltou para a água quente e a dar pelas canelas e puxou o bote para a areia. O grupo de comandos Sayaret seguiram-no ao longo da praia, as armas ao seu lado. Algures, um cão ladrava. O aroma a fumo de madeira e carne grelhada pairava no ar. A rapariga estava à espera ao volante de um miniautocarro Volkswagen. Quatro dos comandos entraram no Volkswagen com Gabriel. O resto enfiou-se num par de carrinhas Peugeot estacionadas por trás do miniautocarro. Uns segundos mais tarde, os motores começaram a trabalhar em uníssono e partiram velozmente pela noite fresca de Abril.
Gabriel usava um microfone de lábios ligado a um pequeno transmissor no bolso do casaco. O rádio emitia, através de uma onda segura, para um Boeing
707 especialmente equipado e a voar mesmo ao lado da costa tunisina, num corredor aéreo civil, fazendo-se passar por um El Al charter. Se algo corresse mal, podiam abortar a missão em segundos.
- A Mãe chegou bem - murmurou Gabriel.
Soltou o botão para falar e ouviu as palavras:
- Continuem até à casa da Mãe.
Gabriel segurou a Beretta entre os joelhos durante o percurso e fumou devido aos nervos. A rapariga manteve as duas mãos no volante, os olhos fixos nas ruas escurecidas. Era alta, mais alta do que Leah, com olhos pretos e uma juba de cabelo escuro segura por um simples gancho prateado na nuca. Sabia o caminho tão bem quanto Gabriel. Quando Shamron enviou Gabriel para Tunes para estudar o alvo, a rapariga tinha ido consigo efeito passar-se por sua mulher. Gabriel esticou-se e apertou-lhe o ombro gentilmente enquanto conduzia. Os músculos estavam rígidos.
- Relaxa - disse suavemente, e ela sorriu por um breve instante e soltou um longo suspiro. - Estás a ir muito bem.
Entraram em Sidi Boussaid, um subúrbio abastado de Tunes não muito longe do mar, e estacionaram à entrada da vivenda. Os Peugeots pararam atrás deles. A rapariga desligou o motor. Doze e quinze. Exactamente na hora prevista.
Gabriel conhecia a casa de férias tão bem quanto a sua casa. Estudara-a e fotografara-a de todas as posições privilegiadas possíveis e imagináveis, durante a operação de vigilância. Tinham construído uma réplica perfeita no Negev, onde ele e o resto da equipa ensaiaram o ataque inúmeras vezes. Durante a sessão final, conseguiram levar a cabo a missão em vinte e dois segundos.
- Chegámos à casa da Mãe - Gabriel murmurou ao rádio.
- Façam uma visita à mãe. Gabriel voltou-se e disse:
- Vamos.
Abriu aporta do miniautocarro e atravessou a rua, a andar velozmente, não a correr. Conseguia escutar os passos silenciosos do grupo Sayaret atrás de si. Gabriel inspirou várias vezes para tentar baixar o ritmo cardíaco. A casa de férias pertencia a Khalil el-Wair, mais conhecido por Abu ]ihad, chefe de operações da OLP e o tenente de maior confiança de Yasser Arafat.
Logo aporta da casa de férias, o motorista de Abu ihad estava a dormir atrás do volante de um Mercedes, um presente de Arafat. Gabriel enfiou aponta da Beretta com silenciador no ouvido do motorista, puxou o gatilho, continuou a andar.
A entrada para a casa de férias, Gabriel afastou-se enquanto um par de comandos Sayaret prendiam um plástico silencioso especial à porta pesada.
O explosivo detonou, emitindo menos som do que um bater de palmas, e a porta explodiu. Gabriel liderou o grupo pelo hall de entrada adentro, a Beretta nas mãos estendidas.
Um segurança tunisino apareceu. Enquanto procurava sacar da arma, Gabriel alvejou-o por diversas vezes no peito.
Gabriel debruçou-se sobre o moribundo e disse.
- Diz-me onde ele está e não te dou um tiro no olho.
Mas o segurança limitou-se a soltar um esgar de dor e não respondeu nada.
Gabriel deu-lhe dois tiros na cara.
Subiu as escadas, enfiando um carregador novo na Beretta enquanto andava, e dirigiu-se até ao estúdio onde Abu Jihad passava a maior parte das noites a trabalhar. Irrompeu pela porta e encontrou o palestiniano sentado à frente de uma televisão, a ver notícias da intifada, que estava a ajudar a dirigir a partir de Tunes. Abu jihad tentou chegar a uma pistola. Gabriel avançou enquanto disparava, tal como Shamron o treinara para fazer. Dois dos disparos atingiram Abu Jihad no peito. Gabriel debruçou-se sobre ele, empurrou-lhe a arma contra a têmpora e disparou mais duas vezes. O corpo agitou-se num espasmo de morte.
Gabriel precipitou-se para fora da sala. No corredor, estava a mulher de Abu Jihad, a apertar o filho pequeno nos braços, e a sua filha adolescente. Fechou os olhos e agarrou o rapaz com mais força, à espera que Gabriel a matasse.
- Volte para o seu quarto! - gritou ele em árabe. Depois voltou-se para afilha:
- Vai e cuida da tua mãe.
Gabriel escapuliu-se da casa, seguido pelo grupo Sayaret inteiro. Amontoaram-se no miniautocarro e nos Peugeots e partiram a toda a velocidade. Atravessaram Sidi Boussaid, de volta até Rouad, onde abandonaram os veículos na praia e subiram para os botes. Um instante depois, estavam a acelerar pela superfície negra do Mediterrâneo, em direcção às luzes de um barco-patrulha israelita que aguardava.
- Treze segundos, Gabriel! Fizeste-o em treze segundos!
Era a rapariga. Esticou-se para o tocar, mas ele recuou. Viu as luzes do barco a aproximarem-se. Olhou para o céu preto, à procura do avião de comando, mas viu apenas uma Lua fina e uma chuva de estrelas. A seguir, viu os
rostos da mulher e dos filhos de Abu Jihad, a olhar fixamente para si, com ódio a arder-lhes nos olhos,
Atirou a Beretta para o mar e começou a tremer.
A discussão na porta ao lado tinha acalmado. Gabriel queria pensar em algo sem ser Tunes, por isso imaginou estar a velejar na sua chalupa por Helford Passage, a caminho do mar. Depois pensou no Vecellio, despido de verniz sujo, os estragos de séculos à mostra. Pensou em Peel e, pela primeira vez nesse dia, pensou em Dani. Lembrou-se de estar a puxar o que restava do seu corpo dos destroços flamejantes do carro em Viena, de verificar se, de algum modo, teria sobrevivido, de agradecer a Deus por ter morrido depressa e não ter sobrevivido com um braço e uma perna e metade da cara.
Levantou-se e andou pelo quarto, a tentar fazer com que a imagem desaparecesse, e, por alguma razão, deu por si a pensar na mãe de Peel. Várias vezes, durante a estadia em Port Navas, tinha dado por si a fantasiar com ela. Começava sempre do mesmo modo. Davam de caras um com o outro na aldeia e ela anunciava de forma espontânea que Derek tinha saído para uma longa caminhada pelo Lizard, para tentar emendar o segundo acto.
- Vai demorar horas - dizia. - Quer ir lá a casa tomar um chá?
Respondia que sim, mas em vez de servir chá, ela levava-o até lá acima, para a cama de Derek, e deixava-o descarregar nove anos de abstinência auto-imposta no seu corpo flexível. A seguir, ficava deitada com a cabeça no estômago dele, o cabelo húmido espalhado ao longo do peito dele.
- Não és mesmo um restaurador de arte, pois não? - perguntava na fantasia.
E Gabriel contava-lhe a verdade:
- Mato pessoas para o governo de Israel. Matei Abu Jihad à frente da mulher e dos filhos. Matei três pessoas em treze segundos nessa noite. O primeiro-ministro deu-me uma medalha por isso. Já tive uma mulher e um filho, mas um terrorista pôs uma bomba por baixo do carro deles porque tive um caso com a minha bat leveyha em Tunes.
E a mãe de Peel corria para fora do chalé a gritar, o corpo enrolado num lençol de cama branco, o lençol manchado com o sangue de Leah.
Regressou à cadeira e esperou por Yusef. O rosto da mãe de Peel tinha sido substituído pelo rosto da Virgem Maria de Vecellio. Para ajudar a preencher as horas livres, Gabriel mergulhou um pincel imaginário num pigmento imaginário e curou com ternura a sua bochecha ferida.
Yusef chegou a casa às 3 horas da manhã. Estava uma rapariga consigo, a rapariga que lhe tinha dado o número de telefone naquela tarde no restaurante. Gabriel observou-os a desaparecer pela entrada da frente. Lá em cima, no apartamento, as luzes acenderam-se por breves momentos, antes de Yusef fazer a aparição nocturna à janela. Gabriel desejou-lhe uma boa noite enquanto ele desaparecia por trás da cortina. A seguir, deixou-se cair no sofá e fechou os olhos. Hoje tinha observado. Amanhã começaria a escutar.

AMESTERDÃO

Três horas mais tarde, uma jovem esbelta chamada Inge van der Hoff saiu de um bar no bairro da luz vermelha e caminhou depressa por uma viela estreita. Saia preta de cabedal, meias pretas, casaco preto de cabedal, botas a causar um estardalhaço nos tijolos da viela. As ruas da parte velha ainda estavam escuras, uma neblina leve a cair. Levantou a cara em direcção ao céu. A neblina sabia a sal, cheirava ao mar do Norte. Passou por dois homens, um bêbado e um vendedor de haxixe, baixou a cabeça, continuou a andar. O patrão não gostava que voltasse a pé para casa de manhã, mas após uma longa noite a servir bebidas e a repelir os avanços de clientes embriagados, sabia sempre bem ficar sozinha por uns minutos.
De repente, sentiu-se muito cansada. Precisava de dormir. Pensou: Do que eu preciso mesmo é de uma dose. Espero que a Leila se tenha orientado esta noite.
Leila... Adorava o som do nome dela. Adorava tudo acerca dela. Tinham-se conhecido duas semanas antes no bar. Leila tinha vindo por três noites consecutivas, sempre sozinha. Ficava durante uma hora, bebia um shot de. jenever1, uma Grolscti1, umas passas de haxixe, ouvia a música. De cada vez que Inge ia até à mesa dela, conseguia sentir os olhos da rapariga postos em si. Inge tinha de admitir que
1 licor alcoólico tradicional holandês e da Flandres, de sabor a zimbro. (N. da T.)
2 Marca de cerveja holandesa. (N. da T.)
admitir que gostava. Era uma mulher estonteantemente atraente, com cabelo preto lustroso e grandes olhos castanhos. Por fim, na terceira noite, Inge apresentou-se e começaram a conversar. Leila disse que o pai era um homem de negócios e que ela tinha vivido por todo o mundo. Disse que estava a tirar um ano de descanso dos estudos em Paris, apenas a viajar e a viver a vida. Disse que Amesterdão a encantava. Os canais pitorescos. As casas com empenas, os museus e os parques. Queria ficar por uns meses, ficar a conhecer o sítio.
- Onde é que estás a morar? - perguntara Inge.
- Numa pousada da juventude no Sul de Amesterdão. É horrível. Onde é que moras?
- Numa casa flutuante no Amstel.
- Uma casa flutuante! Que maravilha.
- É do meu irmão, mas ele está em Roterdão durante uns meses a trabalhar num grande projecto de construção.
- Estás a oferecer-te para me deixares dormir na tua casa flutuante durante uns dias?
- Estou a oferecer-me para te deixar ficar o tempo que quiseres. Não gosto de chegar a casa e encontrar um sítio vazio.
A alvorada estava a nascer no rio, as primeiras luzes a brilhar nas casas flutuantes alinhadas no dique. Inge andou uma pequena distância ao longo do cais, depois pisou o convés da sua casa. As cortinas estavam corridas sobre as janelas. Atravessou o convés e entrou na cabina. Esperava encontrar Leila a dormir na cama, mas, em vez disso, estava ao fogão a fazer café. No chão, ao seu lado, estava uma mala. Inge fechou a porta, a tentar esconder o desapontamento.
- Telefonei ao meu irmão em Paris a noite passada, enquanto estavas no trabalho - disse Leila. - O meu pai está muito doente. Tenho de ir já para casa, para estar com a minha mãe. Desculpa, Inge.
- Vais estar fora quanto tempo?
- Uma semana, duas, no máximo.
- Vais voltar?
- Claro que vou voltar!
Beijou a bochecha de Inge e passou-lhe uma chávena de café.
- O meu voo parte daqui a duas horas. Senta-te. Preciso de falar contigo sobre uma coisa.
Sentaram-se na cabina. Leila disse:
- Um amigo meu chega a Amesterdão amanhã. Chama-se Paul. É francês. Estava a pensar se podia cá ficar por alguns dias até arranjar um sítio para ele.
- Leila, não...
- É um bom homem, Inge. Não vai tentar nada contigo, se é com isso que estás preocupada.
- Sei tomar conta de mim.
- Então vais deixar o Paul cá ficar por alguns dias?
- Quantos dias são alguns dias?
- Uma semana, talvez.
- E o que é que recebo em troca?
Leila enfiou a mão no bolso, tirou um pequeno saco de pó branco e segurou-o à frente de si, entre o polegar e o indicador. Inge esticou-se e sacou-o.
- Leila, és um anjo!
- Eu sei.
Inge foi para o quarto e abriu a gaveta de cima da cómoda. Lá dentro, estava o seu kit caixa de seringas, vela, colher, tubo de borracha para atar à volta do braço. Preparou a droga enquanto Leila arrumava as últimas coisas. Introduziu a droga na seringa e enfiou com cuidado a agulha numa veia no braço esquerdo.
Um momento depois, o corpo foi invadido por uma sensação intensamente agradável de dormência. E a última coisa de que se lembrou, antes de ficar inconsciente, foi da visão de Leila, a sua amante linda, a sair pela porta fora e a pairar pelo cais da casa flutuante.
BAYSWATER, LONDRES
Randall Karp, anteriormente do Departamento de Serviços Técnicos, em Langley, Virgínia, nos últimos tempos da dubiamente apelidada Clarendon International Security, em Mayfair, Londres, chegou ao apartamento de Gabriel em Sussex Gardens nos momentos tranquilos que antecedem a alvorada. Vestia um pulôver de lã para se proteger do frio matinal, calças de ganga azul-claras e sandálias de camurça a combinar com as meias grossas de lã de um amante do ar livre. Nas extremidades de cada um dos braços, parecidos com os de uma aranha, estava um saco de lona, um com o seu kit, o outro com as ferramentas do ofício. Pousou os sacos na sala de estar com um ar de contentamento discreto e apreciou o ambiente.
- Gosto do que fizeste com o sítio, Gabe.
Falava com o sotaque monótono do Sul da Califórnia e, desde que Gabriel o vira pela última vez, deixara crescer um rabo-de-cavalo para compensar a calvície que alastrava rapidamente.
- Até tem o cheiro certo. O que é? Caril? Cigarros? Um pouco de leite estragado? Acho que vou gostar de estar cá.
- Estou muito satisfeito. Karp dirigiu-se para a janela.
- Então, onde é que está o nosso rapaz?
- Terceiro andar, directamente por cima da entrada. Cortinas brancas.
- Quem é ele?
- É um palestiniano que deseja fazer mal ao meu país.
- Era capaz de chegar até aí sozinho. Podes desenvolver? Hamas? Hezbollah? Jihad Islâmica?
Mas Gabriel não disse nada e Karp percebeu que não devia insistir. Karp era um consumado técnico de som, e os técnicos estavam acostumados a trabalhar apenas com metade da informação. Tinha atingido um estatuto lendário dentro da comunidade dos serviços secretos ocidental por ter monitorizado, com sucesso, um encontro entre um russo e um agente em Praga, ao prender um microfone na coleira do cão do russo. Gabriel conhecera-o em Chipre, durante uma operação de vigilância conjunta entre americanos e israelitas a um agente líbio. A seguir à operação, por sugestão de Shamron, Gabriel alugou um iate e levou Karp a velejar à volta da ilha. A destreza náutica de Karp era tão boa quanto o trabalho de vigilância e, durante os três dias de cruzeiro, construíram uma ligação profissional e pessoal.
- Porquê eu, Gabe? - perguntou Karp. - Os vossos rapazes têm os melhores brinquedos do ramo. Coisas lindas. Porque é que precisas de um forasteiro como eu para fazer um trabalho simples como este?
- Porque os nossos rapazes ultimamente não têm sido capazes de fazer um trabalho como este sem se queimarem.
- Pois, li que não. Preferia não acabar na cadeia, Gabe, se me estás a entender.
- Ninguém vai para a cadeia, Randy. Karp voltou-se e contemplou a janela.
- Então e o rapaz do outro lado da rua? Vai para a cadeia ou tens outros planos para ele?
- O que é que estás a perguntar?
- Estou a perguntar se este vai acabar numa viela, cheio de buracos de balas de calibre vinte e dois. As pessoas têm o hábito esquisito de acabarem mortas sempre que apareces.
- É um trabalho de vigilância puro e simples. Quero saber com quem está a falar, o que está a dizer. O habitual.
Karp dobrou os braços e estudou os ângulos.
- É um profissional?
- Parece ser bom. Muito disciplinado na rua.
- Podia tentar apontar para o vidro da janela, mas se é um profissional, vai tomar medidas reactivas e fazer-nos a vida num inferno. Para além disso, o laser não é muito discriminativo. Lê as vibrações do vidro e converte-as em som. O trânsito faz o vidro vibrar, o vento, os vizinhos, o leitor de CD dele. Não é a melhor maneira de o fazer.
- O que é que queres fazer?
- Podia apanhar o telefone dele desde a caixa de interface dos assinantes.
- Interface dos assinantes?
Karp levantou a mão e apontou em direcção ao prédio de apartamentos.
- Aquela caixa de metal na parede logo ali à esquerda da entrada. É aí que as linhas da British Telecom entram no edifício. A partir daí, as linhas estendem-se para os assinantes individuais. Podia pôr uma simples escuta rf na linha dele ali mesmo. Transmitiria um sinal analógico e conseguiríamos ouvir as conversas telefónicas a partir daqui, com um rádio FM normal.
- Também preciso de cobertura das salas.
- Se queres uma boa cobertura das salas, vais ter de entrar no apartamento.
- Então entramos no apartamento. !
- É assim que as pessoas vão parar à cadeia, Gabe.
- Ninguém vai para a cadeia.
- O nosso rapaz tem um computador?
- Presumo que sim. É estudante em part-time.
- Podia enfiar-lhe com uma Tempestade.
- Desculpa, Randy, mas estive fora do jogo por alguns anos.
- É um sistema que foi desenvolvido por um cientista holandês chamado Van Eyck. O computador comunica com o monitor transmitindo sinais pelo cabo. Esses sinais têm frequência e podem ser captados por um receptor devidamente sintonizado. Se estiver a fazer negócios ao computador, podemos vigiá-lo a partir daqui. Será como estar por cima do ombro dele enquanto trabalha.
- Faz isso - disse Gabriel. - Também quero o telefone de trabalho.
- Onde é que ele trabalha?
- Num restaurante em Edgware Road.
- Uma escuta rf nunca será capaz de transmitir de Edgware Road até aqui. A perda durante o caminho é demasiado grande. vou precisar de instalar um repetidor, um ponto para um interruptor electromagnético entre o restaurante e aqui, para aumentar o sinal.
- Do que é que precisas? - De um veículo qualquer. ?;
- Um carro serve?
- Um carro será óptimo.
- Arranjo-te um hoje.
- Limpo?
- Limpo.
- Vais arranjá-lo de um dos teus ajudantezinhos?
- Não te preocupes com a forma como o vou arranjar.
- Mas, por favor, não o roubes. Não quero estar a guiar um carro procurado.
Nesse momento, Yusef apareceu à janela e iniciou a inspecção matinal à rua em baixo.
- Então aquele é o nosso rapaz? - perguntou Karp.
- É ele.
- Diz-me uma coisa, Gabe. Exactamente como é que estás a planear entrar no apartamento?
Gabriel olhou para Karp e sorriu.
- Ele gosta de raparigas.
Às duas horas da manhã seguinte, Gabriel e Karp entraram furtivamente na viela por trás do Kebab Factory. Para chegar à caixa de interface dos assinantes, Karp teve de se equilibrar em cima de um caixote de lixo grande, ondulado e cheio de lixo a apodrecer. Forçou a fechadura, abriu a portinha e, durante dois minutos, trabalhou em silêncio, sob o feixe fraco da luz de uma caneta segura entre os dentes da frente.
Gabriel ficou de guarda em baixo, com a atenção concentrada na entrada da viela.
- Falta muito? - murmurou.
- Um minuto, se te calares. Dois, se insistires em falar comigo. Gabriel voltou a olhar para baixo e avistou dois homens com
casacos de cabedal a andar na sua direcção. Um pegou numa garrafa e partiu-a contra uma parede. O amigo quase caiu de riso.
Gabriel afastou-se uns centímetros de Karp, encostou-se a uma parede e fingiu estar doente. Os dois homens acercaram-se. O maior agarrou-lhe o ombro. Tinha uma cicatriz branca em relevo ao longo da bochecha direita e tresandava a cerveja e a uísque. O outro sorriu de forma estúpida, a mostrar os dentes. Era magro e tinha rapado a cabeça. A pele clara brilhava na luz fraca da viela.
- Por favor, não quero problemas - disse Gabriel, num inglês com sotaque francês. - Só estou doente. Bebi demasiado, sabem?
- O raio de um franciú - cantarolou o careca. - E tem ar de maricas, também.
- Por favor, não quero problemas - repetiu Gabriel. Levou a mão ao bolso, tirou várias notas amarrotadas de vinte
libras e estendeu-as.
- Pronto, levem-me o dinheiro. Mas deixem-me em paz.
Mas o grande com a cicatriz arrancou o dinheiro da mão de Gabriel com uma chapada. A seguir, recuou o punho e lançou um soco violento em arco na direcção da cabeça de Gabriel.
Dez minutos mais tarde, estavam de volta ao apartamento. Karp estava sentado em frente ao equipamento na mesa da sala de jantar. Pegou num telemóvel e ligou para o restaurante. Enquanto a chamada estava a tocar, pousou o telefone e aumentou o volume do receptor. Conseguia ouvir uma mensagem gravada a dizer que o Kebab Factory estava fechado e não voltaria a abrir até às onze e trinta do dia seguinte. Marcou o número outra vez e mais uma vez conseguiu ouvir a mensagem pelo receptor. A escuta e o repetidor estavam a funcionar na perfeição.
Enquanto guardava as ferramentas, pensou na contribuição de Gabriel para o trabalho daquela noite. Durara precisamente três segundos, pelos cálculos de Karp. Não viu nada - a sua atenção tinha permanecido fixada no trabalho -, mas ouvira tudo. Tinha havido quatro golpes duros. O último foi o mais cruel. Karp ouvira sem sombra de dúvida ossos a partirem-se. Tinha olhado para baixo apenas depois de terminar a instalação e fechar a caixa. Nunca mais iria esquecer a visão: Gabriel Allon, a debruçar-se sobre cada uma das vítimas, a verificar-lhes a garganta com suavidade, à procura de pulso, certificando-se que não os tinha matado.
Na manhã seguinte, Gabriel saiu para comprar o jornal. Percorreu a caminho até Edgware Road sob um chuvisco fraco e comprou um exemplar do The Times numa banca. Aconchegou o jornal dentro do casaco e caminhou pela rua até a um pequeno mercado. Lá, comprou cola, tesouras e um segundo exemplar do The Times.
Karp ainda estava a dormir quando Gabriel regressou ao apartamento. Sentou-se à mesa com duas folhas de papel simples à frente. No cimo de uma página, escreveu a autorização de segurança - top secret - e o destinatário - Rom, o nome de código para o chefe.
Durante quinze minutos, Gabriel escreveu, a mão direita a rabiscar ritmicamente ao longo da página, a esquerda encostada à têmpora. A prosa era concisa e económica, como Shamron gostava.
Quando terminou, pegou num exemplar do The Times, abriu na página oito e recortou com cuidado um anúncio grande a uma cadeia de lojas de roupa para homens. Deitou fora o resto do jornal, depois pegou no segundo exemplar e abriu-o na mesma página. Colocou o relatório por cima do anúncio, depois colou o recorte por cima do relatório. Dobrou o jornal e enfiou-o no bolso lateral de um pequeno saco de viagem preto. Depois vestiu um casaco, pôs a mala ao ombro e saiu.
Andou até Marble Arch e entrou no metro. Comprou um bilhete na máquina automática e antes de passar pelos torniquetes fez
um telefonema curto. Quinze minutos mais tarde, chegou a Waterloo.
O bodel de Shamron estava à espera num café no terminal de bilhetes Eurostar, a segurar um saco de compras de plástico com o nome de um cigarro americano. Gabriel sentou-se na mesa ao lado, a beber chá e a ler o jornal. Quando terminou o chá, levantou-se e foi-se embora, deixando o jornal para trás. O bodel enfiou-o no saco de compras e partiu na direcção oposta.
Gabriel aguardou no terminal que o seu comboio fosse chamado. Dez minutos mais tarde, embarcou no Eurostar para Paris.

 

AMESTERDÃO
A elegante casa no canal ficava no Herengracht, na Curva Dourada do Anel Central do Canal de Amesterdão. Era alta e ampla, com grandes janelas com vista para o canal e uma empena elevada. O proprietário, David Morgenthau, era o multimilionário presidente da Optique, um dos maiores fabricantes do mundo de óculos de designer. Era também um sionísta fervoroso. Ao longo dos anos, tinha dado milhões de dólares a obras de caridade israelitas e investido ainda mais milhões em negócios israelitas. Americano de origem judia-holandesa, Morgenthau estivera nas direcções de várias organizações judaicas nova-iorquinas e era visto como um falcão no que dizia respeito a assuntos da segurança israelita. Ele e a mulher, Cynthia, uma designer de interiores nova-iorquina de renome, visitavam a sua casa em Amesterdão com regularidade e precisão, duas vezes por ano - uma vez no Verão, a caminho da vivenda à saída de Cannes, e uma vez mais no Inverno, para as férias.
Tariq estava sentado num café do outro lado do canal, a beber chá doce quente. Sabia outras coisas acerca de David Morgenthau
- coisas que não apareciam nas páginas de sociedade ou nas revistas de negócios do mundo. Sabia que Morgenthau era amigo íntimo do primeiro-ministro israelita, que tinha feito certos favores a Ari Shamron e que em tempos servira de elo de ligação secreto entre o governo israelita e a OLP. Por todas essas razões, Tariq ia matá-lo.
Leila preparara um relatório de vigilância pormenorizado
durante a estada em Amesterdão. David e Cynthia Morgenthau saíam todas as manhãs de casa para visitar museus ou ir patinar no gelo para o campo. Durante o dia, a única pessoa que ficava em casa era a empregada, uma rapariga holandesa.
Isto vai ser muito fácil.
Um Mercedes com motorista travou a fundo à porta da casa. Tariq olhou para o relógio: quatro horas da tarde, mesmo na hora. Um homem alto e de cabelo grisalho saiu do carro. Vestia uma camisola grossa e pesadas calças de tecido canelado e carregava dois pares de patins no gelo. Um momento depois, saiu uma mulher atraente, vestida com umas calças justas de lã preta e um pulôver. Ao entrarem na casa, o Mercedes arrancou.
Tariq deixou uns quantos florins em cima da mesa e saiu.
A neve caía sobre o Herengracht, enquanto se deslocava lentamente em direcção à casa flutuante no Amstel. Um par de ciclistas passaram a deslizar de forma silenciosa, deixando faixas de preto na neve recente. O anoitecer numa cidade estrangeira fazia-o sempre ficar melancólico. Luzes a acenderem-se, escritórios a esvaziarem-se, bares e cafés a encherem lentamente. Através das janelas amplas das casas do canal, conseguia ver pais a regressar a casa e aos filhos, maridos a regressar a casa e às mulheres, amantes a reunirem-se, luzes calorosas a trabalhar. Vida, pensou. A vida de outra pessoa, a terra natal de outra pessoa.
Pensou no que Kemel lhe tinha contado durante o encontro no comboio. A antiga némesis de Tariq, Gabriel Allon, fora trazida de volta para ajudar Ari Shamron a encontrá-lo. A notícia não o preocupou. Na realidade, recebeu-a com prazer. Ia tornar as próximas semanas ainda mais doces. Imagine-se, destruir o suposto processo de paz e acertar contas com Gabriel Allon, tudo ao mesmo tempo...
Matar Allon não seria fácil, mas enquanto vagueava ao longo das margens do Herengracht, percebeu que já tinha uma vantagem clara sobre o seu oponente. O simples facto de saber que Allon estava algures por aí à sua procura dava vantagem a Tariq. O caçador
tem de vir até à presa para desferir o golpe mortal. Se Tariq jogasse bem o jogo, podia atrair Allon a uma armadilha. E depois mato-o, como ele matou o Mahmoud.
Os serviços secretos têm duas formas essenciais de tentar apanhar um terrorista. Podem utilizar a sua tecnologia superior para interceptar as comunicações do terrorista, ou podem penetrar na organização deste, introduzindo um espião ou convencendo um agente activo a trocar de lado. Tariq e Kemel tinham cuidado com o modo como comunicavam. Evitavam os telefones e a Internet sempre que possível e utilizavam em vez disso correios. Como o idiota que o Kemel enviou para Samos! Não, não seriam capazes de o localizar interceptando-lhe as comunicações, por isso teriam de tentar penetrar no seu grupo. Era difícil para uma agência de espionagem penetrar em qualquer grupo terrorista, mas ia ser ainda mais difícil entrar na de Tariq. A organização era pequena, muito unida e bastante móvel. Eram dedicados à luta, muito bem treinados e intensamente leais. Nenhum dos seus agentes o ia alguma vez atraiçoar aos judeus.
Tariq podia utilizar isto como vantagem. Tinha dado instruções a Kemel para contactar todos os agentes e lhes dar uma simples instrução. Se algum reparasse em algo fora do normal - tal como vigilância ou uma abordagem de um estranho -, devia-o comunicar de imediato. Se Tariq conseguisse estabelecer que os serviços secretos israelitas estavam envolvidos, seria de imediato transformado de presa em caçador.
Pensou numa operação que havia conduzido enquanto ainda estava com a Jihaz el-Razd, o braço de espionagem da OLP. Tinha identificado um agente do Departamento a trabalhar com cobertura diplomática a partir da Embaixada israelita em Madrid. O funcionário conseguira recrutar diversos espiões no interior da OLP e Tariq decidira que era altura de se vingar. Enviou um palestiniano para Madrid, fazendo-o passar por desertor. O palestiniano encontrou-se com o funcionário israelita dentro da embaixada e prometeu entregar informação sensível sobre os líderes da OLP e os seus hábitos. De início, o israelita recusou. Tariq tinha-o previsto, por isso dera ao agente vários pedaços de informação verdadeira e relativamente
inofensiva - tudo coisas que os israelitas já sabiam. O israelita acreditou que estava a lidar com um verdadeiro desertor e concordou em encontrar-se com o palestiniano uma segunda vez, num café, uma semana mais tarde. Mas desta vez Tariq viajou para Madrid. Entrou no café à hora combinada, disparou dois tiros na cara do funcionário e saiu calmamente.
Chegou ao rio e andou uma pequena distância ao longo do dique, até chegar à casa flutuante da rapariga. Era um sítio deprimente - sujo, cheio de acessórios para drogas e sexo - mas um lugar perfeito para se esconder enquanto planeava o ataque. Atravessou o convés coberto pela neve recente, e entrou na cabina muito fria. Tariq ligou um candeeiro e a seguir ligou o pequeno aquecedor eléctrico. Conseguia ouvir a rapariga a mexer-se no quarto, por baixo dos cobertores. Era um farrapo patético, nada como a rapariga com quem tinha ficado em Paris. Ninguém iria sentir falta desta quando desaparecesse.
Virou-se e olhou para ele através das madeixas do cabelo loiro fino e seco.
- Onde é que estiveste? Estava preocupada contigo.
- Fui só andar um pouco. Adoro andar nesta cidade, especialmente quando está a nevar.
- Que horas são?
- Quatro e meia. Não devias estar a sair da cama?
- Só tenho de sair daqui a uma hora.
Tariq preparou-lhe uma caneca de Nescafé e levou-a até ao quarto. Inge virou-se e apoiou-se no cotovelo. O cobertor caiu-lhe pelo corpo abaixo, expondo-lhe os seios. Tariq entregou-lhe o café e desviou o olhar. A rapariga bebeu o café, os olhos a olhar para ele por cima da asa da caneca. Perguntou:
- Alguma coisa errada?
- Não, nada.
- Porque é que desviaste o olhar?
Sentou-se e afastou os cobertores. Ele queria dizer que não, mas temeu que ela pudesse ficar com suspeitas de um francês que resistisse aos avanços de uma rapariga atraente. Por isso, ficou parado
à borda da cama e deixou-a despi-lo. Uns momentos mais tarde, enquanto explodia dentro dela, não pensava na rapariga mas sim em como iria finalmente matar Gabriel Allon.
Deixou-se ficar na cama muito tempo depois de ela ter saído, a ouvir os sons dos barcos a moverem-se pelo rio. A dor de cabeça veio uma hora mais tarde. Agora vinham com mais frequência três, às vezes quatro por semana. O médico avisara-o de que se iria passar assim. A dor foi-se intensificando devagar e quase perdeu os sentidos com ela. Colocou uma toalha fresca e húmida na cara. Analgésicos, não. Entorpeciam-lhe os sentidos, faziam-no dormir um sono demasiado pesado e provocavam-lhe a sensação de estar a cair vertiginosamente para trás, por um abismo abaixo. Por isso, deixou-se ficar sozinho na cama da rapariga holandesa, numa casa flutuante no rio Amstel, a sentir-se como se alguém lhe estivesse a despejar chumbo fundido no crânio através das órbitas.
VALBONNE, PRÓVENÇA
A manhã estava límpida e fria, a luz do Sol a inundar as colinas. Jacqueline vestiu umas calças de ciclista de camurça e uma camisola de lã e enfiou o cabelo comprido debaixo de um capacete azul-escuro. Pôs uns óculos de sol de ciclista e estudou a aparência ao espelho. Parecia um homem muito bonito, o que era a sua intenção. Fez alongamentos no chão do quarto, depois desceu até ao átrio de entrada, onde a sua bicicleta de corrida Bianchi estava encostada a uma parede. Empurrou a bicicleta pela porta da frente e guiou-a pelo caminho de gravilha. Um instante mais tarde, estava a deslizar através das sombras frias, pela colina comprida e suave abaixo, na direcção da aldeia.
Deslizou por Valbonne e fez a subida comprida e contínua em direcção a Ópio, o ar frio a queimar-lhe as bochechas. Pedalou devagar e a um ritmo regular durante os primeiros quilómetros, enquanto os músculos aqueciam. A seguir pôs uma mudança acima e aumentou a cadência do pedalar. Pouco depois, estava a voar pela estrada estreita, a cabeça para baixo, as pernas a bombear como pistões. O cheiro a alfazema pairava no ar. Ao seu lado, uma plantação de oliveiras descia por uma encosta em socalcos. Saiu debaixo das sombras das oliveiras e chegou a uma planície com a luz do Sol quente. Um momento depois, pôde sentir o primeiro suor por baixo da camisola.
A meio do caminho, verificou o tempo: só trinta segundos a mais do que o seu melhor. Nada mau para uma manhã fria de
Dezembro. Contornou uma rotunda, pôs uma mudança abaixo e começou a subir uma colina longa e íngreme. Uns momentos mais tarde, a respiração estava ruidosa e ofegante e as pernas a arder - demasiados cigarros de um raio! - mas forçou-se a continuar sentada e a avançar pesadamente pela longa colina. Pensou em Michel Duval: Porco! A uns noventa metros do cume, levantou-se do selim, pressionando os pés com fúria nas correias, gritando consigo mesma para continuar e não ceder à dor. Foi recompensada com uma longa descida. Podia ter-se deixado ir, mas em vez disso bebeu um gole rápido e fez um sprint pela colina abaixo. Ao entrar novamente em Valbonne, olhou para o relógio. Um novo recorde pessoal por uma diferença de quinze segundos. Obrigada, Michel Duval.
Saiu de cima da bicicleta e empurrou-a pelas ruas silenciosas da povoação antiga. Na praça central, apoiou a bicicleta contra um pilar, comprou um jornal e ofereceu a si mesma um croissant aquecido e uma chávena cheia de café com leite a escaldar. Quando terminou, foi buscar a bicicleta e empurrou-a ao longo de uma rua com sombras.
No final de uma fila de chalés, com vista para o parque de estacionamento da povoação, ficava um edifício comercial. Um letreiro estava pendurado na janela: todo o piso zero estava disponível. Estava livre há meses. Jacqueline pôs as mãos em concha à volta dos olhos e espreitou através do vidro sujo: um espaço aberto e grande, chão de madeira, tecto alto. Perfeito para um estúdio de dança. Tinha uma fantasia. Ia abandonar a carreira de modelo e abrir uma escola de bailei em Valbonne. Ia servir as raparigas locais durante a maior parte do ano, mas em Agosto, quando os turistas inundassem Valbonne para as férias de Verão, abriria a escola aos visitantes. Ia ensinar durante umas horas por dia, andar de bicicleta pelas colinas, beber café e ler no café da praça. Mudar de nome e de imagem. Tornar-se Sarah Halévy outra vez - Sarah Halévy, a rapariga judia de Marselha. Mas para abrir a escola precisava de dinheiro e para conseguir dinheiro tinha de prosseguir a carreira de modelo. Tinha de voltar a Paris e aturar homens como Michel Duval durante um pouco mais de tempo. Depois ficaria livre.
Montou a bicicleta e pedalou devagar de regresso a casa. Era uma vivenda bastante pequena, da cor do arenito e com um
telhado de telhas vermelhas, escondida por uma fila de imponentes ciprestes. No jardim grande e em socalcos, com vista para o vale, alecrim e alfazema cresciam de modo selvagem entre as oliveiras e as pimenteiras murchas. No princípio do jardim, estava uma piscina rectangular.
Jacqueline abriu a porta e entrou, encostou a bicicleta no átrio de entrada e foi até à cozinha. A luz vermelha do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no botão de reprodução e fez café enquanto ouvia as mensagens.
Yvonne tinha ligado a convidá-la para uma festa na casa de um jogador de ténis espanhol milionário em Monte Carlo. Michel Duval ligara para pedir desculpas pelo comportamento na sessão fotográfica do outro dia. A nódoa negra estava a sarar bem. Mareei tinha ligado para dizer que falara com Robert. A sessão em Mustique estava outra vez de pé.
- Partes daqui a três semanas, meu anjo, por isso deixa-te do queijo e da pasta e põe o teu rabo lindo em forma.
Pensou no percurso de bicicleta e sorriu. A cara podia parecer ter trinta e três anos, mas o corpo nunca estivera melhor.
- Ah, já agora, um tipo chamado Jean-Claude passou pelo escritório. Disse que queria falar contigo em pessoa acerca de um trabalho.
Jacqueline pousou a cafeteira e olhou para a máquina.
- Disse-lhe que estavas no Sul. Disse que estava a caminho de lá e que te iria procurar quando chegasse. Não te zangues comigo, meu anjo. Pareceu ser um tipo decente. Jeitoso, também. Fiquei louco de ciúmes. Adoro-te. Ciao.
Carregou no botão para rebobinar e voltou a escutar a mensagem, para ter a certeza de que a tinha ouvido bem.
- Ah, já agora, um tipo chamado Jean-Claude passou pelo escritório. Disse que queria falar contigo em pessoa acerca de um trabalho.
Carregou no botão para apagar, a mão a tremer, o coração a bater contra as costelas.
Jacqueline estava sentada lá fora, no terraço banhado pela luz do Sol, a pensar na noite em que fora recrutada por Ari Shamron. Tinha utilizado algum do dinheiro ganho como modelo para comprar um presente de reforma aos pais: um pequeno apartamento em Herzliya virado para o mar. Visitava-os em Israel sempre que conseguia escapar-se por uns dias. Sentia-se completamente apaixonada pelo país. Era o único lugar onde se sentia verdadeiramente livre e segura. Mais do que tudo o resto, adorava o facto de não ter de esconder que era judia.
Uma noite, num café dejag em Telavive, um homem mais velho apareceu-lhe à mesa. Careca, bastante feio, um casaco de bombardeiro com um rasgão no lado direito.
- Olá, Sarah - disse, sorrindo com confiança. - Posso fazer-lhe companhia?
Olhou para cima, assustada.
- Como é que sabe que o meu nome é Sarah?
- Na verdade, sei bastante sobre si. Sou um grande fã.
- Quem é o senhor?
- Chamo-me Ari. Trabalho para uma organização vagamente ligada ao Ministério da Defesa chamada Instituto para a Coordenação. Chamamos-lhe apenas o Departamento.
- bom, estou realmente contente por termos esclarecido isso. Ele lançou a cabeça para trás e riu-se.
- Gostaríamos de falar consigo sobre um trabalho. Importa-se que a trate por Sarah? Tenho dificuldade em pensar em si como Jacqueline.
- Os meus pais são os únicos que ainda me chamam Sarah.
- Não há velhos amigos?
- Só tenho novos amigos - respondeu, a voz tingida de tristeza. - Pelo menos, pessoas que afirmam ser minhas amigas. Todos os meus amigos de Marselha foram caindo depois de me ter tornado modelo. Acharam que tinha mudado por causa do meu trabalho.
- Mas mudou, não mudou, Sarah?
- Sim, suponho que sim.
A seguir pensou: Porque é que estou a dizer isto a um homem que ainda agora conheci? Será que ele dá a volta a toda a gente assim tão depressa?
- E não é só um trabalho, pois não, Sarah? É um modo de vida. Dá-se com os designers da moda e os fotógrafos famosos. Vai a festas espampanantes e a restaurantes exclusivos com actores e estrelas de rock eplayboys milionários. Como aquele conde italiano com quem teve um caso em Milão, aquele que chegou aos jornais. com certeza que não é a mesma rapariguinha de Marselha. A rapariguinha judia cujos avós foram assassinados pelos nazis em Sobibor.
- Sabe mesmo muito sobre mim.
Olhou com atenção para ele. Estava habituada a estar rodeada de pessoas atraentes e sofisticadas, mas agora aqui estava ela na companhia deste homem bastante feio, com óculos de aros de aço e um rasgão no casaco. Havia algo de primitivo nele - o Sabra rude de que sempre ouvira falar. Era o tipo de homem que não sabia fazer um laço e não se importava. Achava-o completamente encantador. Mas, acima de tudo, intrigava-a.
- Sendo uma judia de Marselha, sabe que o nosso povo tem muitos inimigos. Muitas pessoas gostariam de nos destruir, deitar abaixo tudo o que construímos nesta terra.
Enquanto falava, as mãos cortavam o ar.
- Ao longo dos anos, Israel tem travado muitas guerras com os seus inimigos. Neste momento, não há combate, mas Israel continua envolvido numa outra guerra, uma guerra secreta. Esta guerra é incessante. Nunca irá terminar. Por causa do seu passaporte e, em boa verdade, do seu aspecto, poderia ser uma grande ajuda para nós.
- Está a pedir-me para me tornar uma espia? Ele riu-se. -
- Receio que não seja nada assim tão dramático.
- O que quer que eu faça?
- Quero que se torne uma bat leveyha.
- Peço desculpa, mas não falo hebreu.
- Bat leveyha é o termo que utilizamos para um agente assistente feminino. Como bat leveyha, poderá ser chamada a desempenhar
uma série de funções para o Departamento. Às vezes, poderá ser-lhe pedido para se fazer passar pela mulher ou namorada de um dos nossos funcionários. Às vezes, poderá ser-lhe pedido para obter um pedaço vital de informação, que uma mulher do seu tipo poderá conseguir mais prontamente do que um funcionário.
Parou de falar por um momento e demorou o seu tempo a acender o cigarro seguinte.
- E, às vezes, poderemos pedir-lhe para desempenhar um outro tipo de missão. Uma missão que algumas mulheres consideram demasiado desagradável para pensarem sequer nela.
- Por exemplo?
- Poderemos pedir-lhe para seduzir um homem, um dos nossos inimigos, por exemplo, de maneira a colocá-lo numa situação comprometedora.
- Há imensas mulheres lindas em Israel. Por que carga d'água é que haviam de precisar de mim?
- Porque não é israelita. Porque tem um passaporte francês legal e um emprego legal.
- Esse emprego legal, como lhe chama, paga-me bastante bem. Não estou preparada para abrir mão dele.
- Se decidir trabalhar para nós, farei com que as suas missões sejam curtas e que seja compensada pelos salários perdidos.
Sorriu afectuosamente.
- Apesar de achar que não consigo suportar os seus honorários habituais de três mil dólares à hora.
- Cinco mil - respondeu ela, sorrindo.
- Os meus parabéns.
- Tenho de pensar nisso.
- Compreendo, mas enquanto considera a minha oferta, lembre-se de uma coisa. Se tivesse havido Israel durante a Segunda Guerra Mundial, o Maurice e a Rachel Halévy poderiam ainda estar vivos. O meu dever é assegurar a sobrevivência do Estado, para que da próxima vez que algum louco resolva transformar o nosso povo em sabão, ele tenha um lugar onde se refugiar. Espero que me ajude.
Deu-lhe um cartão com um número de telefone e disse para lhe
telefonar com uma decisão na manhã seguinte. A seguir, apertou-lhe a mão e afastou-se. Era a mão mais dura que ela alguma vez sentira.
Nunca tinha havido na cabeça dela nenhuma dúvida sobre qual seria a resposta. Por qualquer padrão objectivo, vivia uma vida excitante e sedutora, mas parecia enfadonha e sem significado comparada com aquilo que Ari Shamron estava a oferecer. As sessões entediantes, os agentes aos apalpões, os fotógrafos lamurientos - de repente, tudo parecia ainda mais plástico e pretensioso.
Regressou à Europa para a temporada da moda de Outono tinha compromissos em Paris, Milão e Roma - e em Novembro, quando as coisas acalmaram, disse a Mareei Lambert que estava exausta e que precisava de um descanso. Mareei desbloqueou-lhe o calendário, beijou-lhe a bochecha e disse-lhe para se afastar o máximo possível de Paris. Nessa noite, foi até ao balcão da El Al no Aeroporto Charles de Gaulle, levantou o bilhete em primeira classe que Shamron lhe tinha deixado e embarcou num voo para Telavive.
Estava à sua espera quando chegou ao Aeroporto Ben-Gurion. Acompanhou-a até a uma sala de espera especial no interior do terminal. Tudo estava concebido para lhe fazer transmitir que agora fazia parte da elite. Que estava a atravessar uma porta secreta e que a sua vida nunca mais voltaria a ser a mesma. Do aeroporto, levou-a rapidamente pelas ruas de Telavive, até a um luxuoso apartamento seguro no Opera Tower, com uma grande varanda com vista para a marginal e para a Praia Ge'ula.
- Esta será a tua casa durante as próximas semanas. Espero que seja do teu agrado.
- É absolutamente linda.
- Hoje, descansas. Amanhã, começa o trabalho a sério.
Na manhã seguinte, dirigiu-se à Academia e suportou um curso intensivo sobre as artes do ofício e a doutrina do Departamento. Ele deu-lhe palestras acerca dos princípios fundamentais da comunicação impessoal. Treinou-a a utilizar uma Bereta e a fazer cortes estratégicos na roupa, para poder agarrá-la depressa. Ensinou-a a abrir fechaduras e a fazer moldes de chaves, utilizando um aparelho
especial. Ensinou-a a detectar e a despistar vigilância. Todas as tardes, passava duas horas com um homem chamado Oded, que lhe ensinava árabe rudimentar.
Mas a maior parte do tempo na Academia era passado a desenvolver a memória e a consciência. Ele colocava-a sozinha numa sala e projectava dúzias de nomes num ecrã, obrigando-a a memorizar o máximo possível. Levava-a para um pequeno apartamento, deixava-a olhar para a sala por não mais do que uns segundos, a seguir puxava-a para fora e fazia-a descrevê-la em pormenor. Levou-a a almoçar à cantina e pediu-lhe para descrever a empregada que tinha acabado de os servir. Jacqueline confessou que não fazia ideia.
- Tens de estar consciente do que te rodeia a toda a hora disse ele. - Deves partir do princípio de que a empregada é um potencial inimigo. Tens de estar a sondar, a observar e a examinar constantemente. E, no entanto, tens de parecer não estar a fazer nada disso.
O treino não terminava ao pôr do Sol. Todas as noites, Shamron aparecia no Opera Tower e levava-a para o interior das ruas de Telavive para mais. Levou-a ao escritório de um advogado, mandou-a arrombá-lo e roubar um conjunto de ficheiros específico. Levou-a a uma rua cheia de boutiques chiques e mandou-a roubar algo.
- Estás a brincar.
- E se estás em fuga num país estrangeiro? E se não tens dinheiro nem maneira de nos contactar? A polícia anda à tua procura e precisas de mudar de roupa depressa.
- Não sou propriamente feita para andar a roubar lojas.
- Faz-te passar despercebida.
Entrou numa boutique e passou dez minutos a experimentar roupas. Quando regressou à entrada, não tinha comprado nada, mas dentro da mala estava um sexy vestido preto de festa.
Shamron disse:
- Agora quero que descubras um sítio para te mudares e livrares das outras roupas. A seguir, vem ter comigo lá fora, junto à barraca dos gelados na marginal.
Estava um fim de tarde quente para o início de Novembro
e havia muitas pessoas a passear e a apanhar ar. Caminharam de braço dado ao longo do cais, como um velho rico e a amante, Jacqueline a lamber maliciosamente um cone de gelado.
- Estás a ser seguida por três pessoas - disse Shamron. Vai ter comigo ao bar daquele restaurante daqui a meia hora e diz-me quem são. E não te esqueças que vou enviar um kidon para as matar, por isso não te enganes.
Jacqueline iniciou um procedimento típico de contravigilância, tal como Shamron lhe tinha ensinado. A seguir, foi até ao bar e encontrou-o sentado sozinho a uma mesa no canto.
- Casaco de cabedal preto, calças de ganga azuis com uma camisola de Yale, rapariga loira com uma rosa tatuada na omoplata.
- Errado, errado, errado. Acabaste de condenar à morte três turistas inocentes. Vamos experimentar outra vez.
Apanharam um táxi para andar uma pequena distância, até Rothschild Boulevard, uma marginal larga revestida por árvores, bancos, quiosques e cafés chiques.
- Mais uma vez, estão três pessoas a seguir-te. Vai ter comigo ao Café Tamar daqui a trinta minutos.
- Onde é o Café Tamar?
Mas Shamron virou-se e desapareceu na corrente de peões. Meia hora mais tarde, tendo localizado o chique Café Tamar em Sheinkin Street, voltou a juntar-se a ele.
- A rapariga com o cão, o rapaz com os auscultadores e a T-shirt do Springsteen, o miúdo do kibbut com a Uzi.
Shamron sorriu.
- Muito bem. Só mais um teste esta noite. Vês aquele sentado ali sozinho?
Jacqueline acenou com a cabeça.
- Mete conversa com ele, descobre tudo o que puderes e a seguir atrai-o para o teu apartamento. Quando chegares ao átrio, arranja uma maneira de te desenvencilhares da situação sem fazer
uma cena.
Shamron levantou-se e afastou-se. Jacqueline olhou, olhos nos olhos, para o homem e, alguns minutos mais tarde, ele veio ter consigo. Disse que se chamava Mark, que era de Boston e que
trabalhava para uma empresa de informática com negócios em Israel. Conversaram durante uma hora e começaram a namoriscar. Mas quando o convidou para ir até ao seu apartamento, confessou que era casado.
- É pena respondeu ela. - Podíamos ter passado uns belos momentos.
Ele mudou de ideias rapidamente. Jacqueline pediu licença para ir à casa de banho e em vez disso dirigiu-se a um telefone público. Marcou o número da recepção do Opera Tower e deixou uma mensagem a si mesma. Depois voltou para a mesa e disse:
- Vamos.
Foram a pé até ao apartamento. Antes de subirem, foi à recepção verificar se havia mensagens.
- A sua irmã ligou de Herzliya - respondeu o recepcionista;
- Tentou o apartamento, mas ninguém atendeu, por isso ligou para aqui e deixou uma mensagem.
- Qual é?
- O seu pai teve um ataque de coração.
- Oh, meu Deus!
- Levaram-no para o hospital. Ela diz que vai ficar bom, mas quer que vá assim que puder.
Jacqueline voltou-se para o americano.
- Tenho muita pena, mas tenho de ir.
O americano beijou-lhe a bochecha e afastou-se, cabisbaixo. Shamron, que estava a observar toda a cena do outro lado do átrio, avançou, de sorriso aberto como um rapazinho.
- Isso foi pura poesia. Sarah Halévy, és um talento natural.
A primeira missão não a obrigou a sair de Paris. O Departamento estava a tentar recrutar um cientista iraquiano de armas nucleares que vivia em Paris e trabalhava com os fornecedores franceses do Iraque. Shamron resolveu preparar uma "armadilha de mel" e deu o trabalho a Jacqueline. Conheceu o iraquiano num bar, seduziu-o e começou a passar a noite no apartamento dele. Ele apaixonou-se perdidamente por ela. Jacqueline disse ao amante que, se a queria continuar a ver, teria de se encontrar com um amigo dela,
que tinha uma proposta de negócio. O amigo acabou por ser Ari Shamron, a proposta, simples: trabalha para nós ou vamos contar à tua mulher e aos gorilas da segurança de Saddam que tens andado a foder uma agente israelita. O iraquiano concordou em trabalhar para Shamron.
Jacqueline tivera a primeira experiência de trabalho de espionagem. Achou-o excitante. Tinha desempenhado um pequeno papel numa operação que desferira um golpe nas ambições nucleares do Iraque. Ajudara a proteger o Estado de Israel de um inimigo que tudo faria para o destruir. E, de uma maneira pequena, tinha vingado as mortes dos avós.
Teve de esperar mais um ano para a missão seguinte: seduzir e chantagear um funcionário de espionagem sírio em Londres. Foi outro sucesso estonteante. Nove meses mais tarde, foi enviada para Chipre para seduzir um executivo de uma empresa química alemã que estava a vender os seus artigos à Líbia. Desta vez havia uma diferença. Shamron queria que drogasse o alemão e fotografasse os documentos da sua pasta enquanto estava inconsciente. Uma vez mais, cumpriu o trabalho sem dificuldades.
A seguir à operação, Shamron fê-la voar até Telavive, entregou-lhe uma menção secreta e disse-lhe que tinha terminado. Não demorava muito para as coisas circularem pelo submundo da espionagem. O próximo alvo poderia suspeitar que a bonita modelo francesa era mais do que parecia. E poderia muito bem acabar morta.
Implorou-lhe por mais um trabalho. Shamron concordou com relutância.
Três meses mais tarde, enviou-a para Tunes.
Jacqueline achara estranho Shamron ter-lhe dado instruções para se encontrar com Gabriel Allon numa igreja em Turim. Encontrou-o em cima de uma plataforma, a restaurar um fresco que representava a Ascensão. Trabalhava com homens bonitos todos os dias na sua vida pública, mas havia algo em Gabriel que a deixou sem fôlego. Era a concentração intensa nos seus olhos. Jacqueline
queria que olhasse para ela como estava a olhar para o fresco. Decidiu que iria fazer amor com este homem antes da operação terminar.
Viajaram para Tunes na manhã seguinte e deram entrada num hotel na praia. Durante os primeiros dias, deixou-a sozinha enquanto trabalhava. Regressava ao hotel todas as noites. Jantavam, passeavam pelo mercado ou pela estrada ao longo da praia, depois voltavam para o quarto. Falavam como se fossem amantes, para o caso de o quarto estar sob escuta. Dormia vestido, ficava inflexivelmente do seu lado da cama, uma parede de Plexiglas a separá-los.
Ao quarto dia, levou-a consigo enquanto trabalhava. Mostrou-lhe a praia onde os comandos desembarcariam e a vivenda que era propriedade do alvo. A paixão por ele tornou-se mais profunda. Aqui estava um homem que tinha devotado a vida a defender Israel dos inimigos. Sentia-se insignificante e frívola em comparação. Também descobriu que não conseguia tirar os olhos de cima dele. Queria passar-lhe as mãos pelo cabelo curto, tocar-lhe na cara e no corpo. Enquanto estavam deitados na cama juntos nessa noite, rebolou para cima dele sem aviso e beijou-lhe os lábios, mas ele afastou-a e fez uma cama de campanha beduína para si no chão.
Jacqueline pensou: Meu Deus, fiz uma completa figura de parva.
Passados cinco minutos, voltou para a cama e sentou-se ao seu lado. Depois inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Também quero fazer amor contigo, mas não posso. Sou casado.
- Não me importa.
- Quando a operação terminar, nunca mais me vais ver.
- Eu sei.
Ele era exactamente como ela imaginava: habilidoso e engenhoso, meticuloso e gentil. Nas mãos dele, sentia-se como um dos seus quadros. Quase que conseguia sentir os olhos a tocar-lhe. Sentiu um orgulho estúpido por ter sido capaz de penetrar as suas barreiras de autocontrolo e seduzi-lo. Queria que a operação continuasse para sempre. Não podia, é claro, e a noite em que deixaram Tunes foi a mais triste da sua vida.
Depois de Tunes, lançou-se a fundo na carreira de modelo. Disse a Mareei para aceitar todas as ofertas que aparecessem. Trabalhou sem parar durante seis meses, levando-se até a um ponto de exaustão. Até tentou sair com outros homens. Nada resultou. Pensava em Gabriel e Tunes constantemente. Pela primeira vez na vida, sentia obsessão e, no entanto, era completamente impotente para fazer algo em relação a isso. Em desespero, foi ter com Shamron e pediu-lhe para a pôr em contacto com Gabriel. Ele recusou. Começou a ter uma fantasia terrível acerca da morte da mulher de Gabriel. E quando Shamron lhe contou o que acontecera em Viena, sentiu uma culpa insuportável.
Não tinha visto nem falado com Gabriel desde essa noite em Tunes. Não conseguia imaginar porque haveria ele de a querer ver agora. Mas, uma hora mais tarde, enquanto observava o carro dele a parar à entrada, sentiu um sorriso a espalhar-se pela cara. Pensou: Graças a Deus que estás aqui, Gabriel, porque também estou a precisar de um pouco de restauro.
TELAVIVE
O director executivo da CIA, Adrian Cárter, era um homem facilmente subestimado. Era uma característica que utilizara com bons resultados durante a longa carreira. Era pequeno e magro como um maratonista. O cabelo escasso e os óculos sem aros davam-lhe um ar ligeiramente clínico, as calças e o casaco tinham aspecto de terem sido usados a dormir. Parecia deslocado na sala de conferências fria e moderna no Boulevard do Rei Saul, como se tivesse entrado no edifício por engano. Mas Ari Shamron tinha trabalhado com Cárter quando estava à frente do Centro de Contraterrorismo da CIA. Sabia que Cárter era um agente experimentado - um homem que falava seis línguas fluentemente e podia desaparecer nas vielas traseiras de Varsóvia ou Beirute com igual facilidade. Também sabia que os seus talentos em campo eram apenas igualados pela perícia nas trincheiras burocráticas. Um adversário de respeito, sem dúvida.
- Alguns avanços na investigação de Paris? - perguntou Cárter.
Shamron abanou a cabeça devagar.
- Receio que não.
- Nada de nada, Ari? Acho difícil acreditar nisso.
- Assim que soubermos alguma coisa, serás o primeiro a saber. Então e tu? Alguma intercepção interessante que te apeteça partilhar? Algum funcionário árabe amistoso te contou alguma coisa que estaria relutante em partilhar com a entidade sionista?
Cárter tinha acabado de completar uma digressão regional de duas semanas, conferenciando com chefes dos serviços secretos desde o golfo Pérsico até ao Norte de África. O Boulevard do Rei Saul foi a última paragem.
- Nada, receio - respondeu. - Mas temos ouvido uns quantos sussurros de algumas das nossas outras fontes.
Shamron franziu o sobrolho.
- Ai sim?
- Dizem-nos que o que se ouve na rua é que o Tariq esteve por trás do ataque em Paris.
- O Tariq tem estado calmo há já algum tempo. Porque é que se iria sair agora com uma coisa do género de Paris?
- Porque está desesperado - respondeu Cárter. - Porque os dois lados estão a aproximar-se de um acordo e o Tariq não quereria outra coisa que não fosse estragar-lhes a festa. E porque o Tariq se vê a si próprio como um homem da História, e a História está prestes a deixá-lo para trás.
- É uma teoria interessante, mas não vimos provas que sugerissem que o Tariq estivesse envolvido.
- Se recebessem tais provas, iam partilhá-las connosco, claro.
- Claro.
- Não preciso de te lembrar que uma cidadã americana foi assassinada juntamente com o vosso embaixador. O presidente fez uma promessa ao povo americano de que o seu assassino seria levado à justiça. Conto ajudá-lo a cumprir essa promessa.
- Podes contar com o apoio deste serviço - respondeu Shamron, piedosamente.
- Se foi o Tariq, gostaríamos de o encontrar e trazer para os Estados Unidos, para ir a julgamento. Mas não poderemos fazer isso se ele aparecer morto algures, cheio de buracos de balas de calibre vinte e dois.
- Adrian, o que é que estás a tentar dizer-me?
- O que estou a dizer é que o homem na grande casa branca da Pennsylvania Avenue quer a situação tratada de uma maneira civilizada. Se se acabar por descobrir que foi o Tariq quem matou
a Emily Parker em Paris, quer vê-lo julgado num tribunal americano. Nada de tretas de olho por olho nisto, Ari, nada de execuções em ruelas.
- É óbvio que temos uma diferença de opinião sobre como lidar melhor com um homem como o Tariq.
- O presidente também acha que nesta altura uma morte em represália poderá não ser no melhor interesse do processo de paz. Acha que se fores responder com um assassinato, estarias a lançar-te nas mãos daqueles que queres derrubar.
- E o que queria o presidente que fizéssemos quando os terroristas matam os nossos diplomatas a sangue-frio?
- Mostrem algum comedimento, porra! Na nossa humilde opinião, talvez fosse mais sensato encostarem-se às cordas durante um par de assaltos e aguentar uns quantos golpes no corpo se tiver de ser. Dêem aos negociadores espaço para manobrar. Se os radicais atacarem depois de terem um acordo alinhavado, então não deixem de ripostar. Mas não piorem agora as coisas procurando vingança.
Shamron inclinou-se para a frente e esfregou as mãos.
- Posso assegurar-te, Adrian, de que nem o Departamento nem nenhum outro braço dos serviços de segurança israelitas estão a planear qualquer operação contra qualquer membro de qualquer grupo terrorista árabe, incluindo o Tariq.
- Admiro a vossa prudência e coragem. E o presidente também o fará.
- E eu admiro-vos pela vossa franqueza.
- Gostaria de te dar um pequeno conselho de amigo, se puder.
- Se fazes favor - respondeu Shamron.
- Israel celebrou acordos com vários serviços de informação do Ocidente, comprometendo-se a não realizar operações no solo desses países sem notificar primeiro o serviço de informação respectivo. Posso assegurar-te de que a Agência e os seus amigos reagirão com dureza se esses acordos forem violados.
- Isso soa mais a um aviso do que a um conselho entre amigos.
Cárter sorriu e deu um gole no café.
O primeiro-ministro estava embrenhado numa pilha de documentos na secretária quando Shamron entrou na sala. Shamron sentou-se e informou-o rapidamente acerca do encontro com o homem da CIA.
- Conheço o Adrian Cárter demasiado bem - disse Shamron.
- É um bom jogador de póquer. Sabe mais do que aquilo que está a dizer. Está a dizer-me para recuar ou vai haver sarilho.
- Ou então suspeita de qualquer coisa mas não tem o suficiente para o dizer às claras - respondeu o primeiro-ministro. - Tens de decidir qual é o caso.
- Preciso de saber se ainda quer que leve a operação a cabo nestas novas circunstâncias.
O primeiro-ministro levantou por fim os olhos da papelada.
- E eu preciso de saber se consegues levar a operação a cabo sem a CIA descobrir.
- Consigo.
- Então avança e não faças merda.
VALBONNE, PROVENÇA
A tarde tinha ficado mais fria. Jacqueline preparou umas sanduíches enquanto Gabriel empilhava madeira de oliveira na lareira e a acendia com jornais. Estava de cócoras, a observar as chamas fracas a lamber a madeira. De segundos em segundos, esticava-se até ao fogo e fazia um ou outro pequeno ajustamento na disposição dos g ravetos ou na posição de um dos pedaços de madeira maiores. Parecia ser capaz de segurar a madeira a escaldar durante muito tempo, sem desconforto. Por fim, levantou-se e bateu com as mãos uma na outra para retirar os restos do pó da madeira e da fuligem. Move-se com tanta delicadeza, pensou Jacqueline - um bailarino a erguer-se após ter levado o joelho ao chão. Parecia de certa forma mais novo. Menos grisalho no cabelo, os olhos mais claros e luminosos.
Colocou a comida numa travessa e levou-a até à sala de estar. Durante anos, imaginara uma cena assim. Num certo sentido, tinha feito esta sala para Gabriel, tinha-a decorado de uma maneira que imaginara que ele pudesse gostar - o chão de pedra, os tapetes rústicos, as mobílias confortáveis.
Colocou a travessa em cima de uma mesa de café e sentou-se
no sofá. Gabriel sentou-se ao seu lado e foi deitando colheres de
açúcar no café. Sim, isto seria o que teria acontecido se tivéssemos terminado
juntos. Uma refeição simples, uma viagem de carro pelas montanhas,
uma passeata por uma vila antiga na colina. Talvez pela costa
abaixo, para deambular pelo Velho Porto de Cannes ou ver um filme no cinema. Depois para casa, para fazer amor à luz da lareira. Pára com isso, Jacqueline. Gabriel disse:
- Estou outra vez a trabalhar para o Departamento e preciso da tua ajuda.
Então, afinal de contas eram só negócios. Gabriel tinha sido agarrado outra vez e precisava dela para um trabalho. Ele ia fazer de conta que o passado nunca acontecera. Talvez fosse mais fácil desse modo.
- O Ari contou-me que tinhas deixado o Departamento.
- Pediu-me para regressar por um trabalho. Sabes como o Shamron consegue ser quando quer qualquer coisa.
- Lembro-me - respondeu Jacqueline. - Ouve, Gabriel, não sei muito bem como dizer isto, por isso vou simplesmente dizê-lo. Lamento muito aquilo que aconteceu em Viena.
Ele afastou o olhar, os olhos frios e sem expressão. Claramente, Leah era algo em que não se podia tocar. Jacqueline tinha visto uma fotografia sua uma vez. A mulher de Gabriel era exactamente como imaginara - uma Sabra de cabelos escuros, a transbordar do tipo de fogo e confiança que Jacqueline ansiara por possuir quando era uma judia a crescer em França. O facto de ele ter escolhido uma mulher como Leah apenas fizera Jacqueline amar mais Gabriel.
Mudou abruptamente de assunto:
- Suponho que tenhas ouvido falar do ataque ao nosso embaixador em Paris?
- Claro. Foi terrível.
- O Shamron está convencido de que o Tariq esteve por trás do ataque.
- E quer descobri-lo? Gabriel acenou com a cabeça.
- Porquê tu, Gabriel? Estás afastado do jogo há tanto tempo. Porque não utilizar um dos outros katsas dele?
- Para o caso de não teres reparado, o Departamento tem tido mais desastres do que sucessos ultimamente.
- O Tariq tem conseguido manter-se um passo à frente do Departamento durante anos. Como é que, supostamente, o vais descobrir agora?
- O Shamron identificou um dos seus agentes em Londres. Coloquei-lhe uma escuta no telefone do trabalho, mas também preciso de lhe pôr o apartamento sob escuta para conseguir descobrir com quem está a falar e o que está a dizer. Se tivermos sorte, talvez consigamos saber onde é que o Tariq está a planear atacar a seguir.
- Porque é que precisas de mim?
- Preciso de ti para me ajudares a entrar no apartamento.
- Porque é que precisas da minha ajuda? Sabes abrir uma fechadura e colocar uma escuta.
- É exactamente por isso. Não quero ter de lhe abrir a fechadura. Os arrombamentos são arriscados. Se perceber que esteve alguém no apartamento, então perdemos a vantagem. Quero que entres no apartamento por mim, faças uma cópia das chaves e verifiques que tipo de telefone é que tem para poder arranjar um duplicado.
- E como é que, supostamente, vou entrar no apartamento? Sabia a resposta, claro. Apenas queria ouvi-lo a dizê-lo. Gabriel levantou-se e juntou mais um bocado de madeira ao fogo.
- O Yusef gosta de mulheres. Gosta da vida nocturna londrina. Quero que vás ter com ele num bar ou numa discoteca e faças amizade. Quero que o encorajes a convidar-te para o apartamento.
- Desculpa, Gabriel. Não estou interessada. O Ari que te dê uma das suas raparigas novas.
Ele voltou-se e olhou para ela.
Pensou: Está surpreendido por eu lhe ter dito que não. Não estava à espera disso.
- Estou a oferecer-te uma oportunidade de me ajudares a descobrir o Tariq al-Hourani antes que mate mais judeus e prejudique ainda mais o processo de paz.
- E eu estou a dizer-te que já fiz a minha parte. Que uma outra rapariga tenha a sua vez.
Ele voltou a sentar-se.
- Percebo porque é que o Shamron havia de querer ter-te de
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volta - disse Jacqueline. - És o melhor no que fazes. Mas não percebo porque é que precisas de mim.
- Porque também és boa - respondeu. Depois acrescentou:
- E porque posso confiar em ti. Pensou: O que é que me estás a tentar dizer, Gabriel Allon? Respondeu:
- Tenho de ir às Caraíbas para uma sessão fotográfica daqui a três semanas.
- Só vou precisar de ti por uns dias.
- Não vou fazer isto de borla.
- Quero-te a ti e não me vou contentar com qualquer outra
- respondeu Gabriel. - Portanto, estás em posição de fixar o teu preço.
Olhou para o tecto, a calcular de quanto iria precisar. Renda, renovações, publicidade...
- Cinquenta mil.
- Francos?
- Não sejas ridículo, Gabriel. Dólares.
Fez uma cara carrancuda. Jacqueline cruzou os braços em sinal de desafio.
- Cinquenta mil ou podes ligar ao Shamron e pedir-lhe uma rapariga nova.
- Cinquenta mil - respondeu. Jacqueline sorriu.
Jacqueline telefonou a Mareei Lambert em Paris e disse-lhe para cancelar todas as sessões para as duas semanas seguintes.
- Jacqueline, perdeste o juízo? Não podes estar a falar a sério. Uma mulher na tua posição débil não anda por aí a tornar as coisas piores a cancelar sessões. É assim que se ganha uma reputação nesta profissão.
- Mareei, estou nesta profissão há dezassete anos e nunca tive a reputação de deixar cair sessões. Surgiu uma coisa e preciso de me ausentar por uns dias.
- É isso que esperas que diga às pessoas que tiveram a bondade de te contratar? Surgiu uma coisa. Vá lá, querida. Vais ter de fazer muito melhor do que isso.
- Diz-lhes que apanhei qualquer coisa.
- Alguma sugestão?
- Lepra - respondeu.
- Oh, sim, maravilhoso.
A sua voz ficou séria de repente.
- Diz-me uma coisa, Jacqueline. Não estás metida em algum tipo de sarilho, pois não? Sabes que podes confiar em mim. Tenho estado lá desde o início, lembra-te. Conheço todos os teus segredos.
- E eu não me esqueço que conheço todos os teus, Mareei Lambert. E não, não estou metida em nenhum tipo de sarilho. Há simplesmente uma coisa de que preciso de tratar e não pode esperar.
- Não estás doente, pois não, Jacqueline?
- Estou de perfeita saúde.
- Não é a coca outra vez, pois não? - sussurrou Mareei.
- Mareei!
- Operação? Um retoque aos olhos?
- Vai-te foder.
- Um homem. É um homem? Alguém conseguiu amolgar finalmente esse teu coração de ferro?
- vou desligar agora, Mareei. Ligo-te daqui a uns dias.
- Então tenho razão! É um homem!
- És o único homem para mim, Mareei.
- Quem me dera que fosse assim.
- A. tout à l'heure.
- Ciao.
Partiram ao final da tarde e seguiram para norte na auto-estrada sinuosa, em direcção às montanhas. Nuvens que já se estavam a dissipar pairavam sobre as ravinas. À medida que subiam para as colinas, bolas gordas de chuva esmurravam o pára-brisas do Peugeot alugado de Gabriel. Jacqueline reclinou o banco e observou
afluentes de água da chuva a correr pela capota em forma de lua, mas a cabeça já estava concentrada em Londres e no alvo. Acendeu um cigarro e disse:
- Fala-me dele.
- Não - respondeu. - Não quero nada na tua cabeça que te possa colocar numa situação comprometedora.
- Vieste buscar-me porque sei o que estou a fazer, Gabriel. Diz-me qualquer coisa acerca dele.
- Chama-se Yusef. Cresceu em Beirute.
- Onde em Beirute?
- Shatila.
- Jesus - disse, fechando os olhos.
- Os pais eram refugiados em quarenta e oito. Antes viviam na aldeia árabe de Lydda, mas durante a guerra fugiram e atravessaram a fronteira para o Líbano. Ficaram algum tempo pelo Sul, depois mudaram-se para Beirute à procura de emprego e instalaram-se no campo de Shatila.
- Como é que acabou por ir parar a Londres?
- Um tio trouxe-o para Inglaterra. Certificou-se de que Yusef fosse ensinado e aprendesse a falar um inglês e um francês perfeitos. Tornou-se um radical político. Achou que o Arafat e a OLP se tinham rendido. Apoiou os líderes palestinianos que queriam continuar a guerra até Israel ser apagada do mapa. Chegou à atenção da organização do Tariq. Tem sido um membro activo desde há vários anos.
- Parece um encanto.
- E por acaso até é.
- Alguns passatempos?
- Gosta de poesia palestiniana e de mulheres europeias. E ajuda o Tariq a matar israelitas.
Gabriel saiu da auto-estrada e seguiu por uma pequena estrada em direcção a este, a caminho das montanhas. Passaram por uma aldeia adormecida e viraram para um trilho de lama cheio de sulcos e ladeado por plátanos desfolhados e a pingar. Seguiu o trilho até descobrir um portão de madeira partido, que dava para uma área pequena de terra desbravada. Parou o carro, saiu e abriu o portão
o suficiente para deixar passar o Peugeot. Guiou até à clareira e desligou o motor, deixando os faróis acesos. Enfiou a mão na mala de Jacqueline e tirou a Beretta dela e o carregador sobressalente. Depois agarrou numa das revistas de moda lustrosas dela e arrancou a capa e a contracapa.
- Sai.
- Está a chover.
- Paciência.
Gabriel saiu e andou alguns metros pela terra encharcada, em direcção a uma árvore onde os restos esfarrapados de uma tabuleta que dizia "Entrada Proibida" estavam pendurados num prego dobrado e ferrugento. Enfiou a capa da revista na cabeça do prego e regressou até junto do carro. Jacqueline tinha a silhueta reflectida nos faróis amarelos, o capuz para cima para se proteger da chuva, os braços cruzados. Estava tudo em silêncio, tirando o tiquetaque do radiador do Peugeot e o ladrar longínquo do cão de uma quinta. Gabriel tirou o carregador da Beretta, verificou para ter a certeza de que a câmara estava vazia e a seguir entregou a arma e as munições a Jacqueline.
- Quero saber se ainda te consegues safar com uma destas.
- Mas eu conheço a rapariga naquela capa.
- Dá-lhe um tiro na cara.
Jacqueline enfiou o carregador com força na coronha da Beretta, bateu ao de leve na base do punho com a parte de trás da palma da mão, para ter a certeza de que estava bem seguro. Avançou, levantou a arma, dobrou os joelhos ligeiramente e rodou o corpo uns quantos graus para reduzir o seu perfil enquanto alvo em relação ao inimigo imaginário. Disparou sem hesitação, rítmica e firmemente, até o carregador ficar vazio.
Gabriel, ouvindo os disparos da pequena pistola, estava de súbito de volta ao vão das escadas do apartamento em Roma. Jacqueline baixou a Beretta, retirou o carregador e inspeccionou a câmara para se assegurar de que estava vazia. Atirou a arma a Gabriel e disse:
- Vamos lá ver-te a experimentar agora.
Mas Gabriel limitou-se a enfiar a Beretta no bolso do casaco e caminhou até à árvore para examinar os resultados. Só um tiro
não tinha acertado; os tiros estavam bastante perto uns dos outros na parte superior direita. Arrancou do prego a capa, pendurou a contracapa no seu lugar e voltou a dar a Beretta a Jacqueline.
- Repete isso, mas, desta vez, avança enquanto disparas.
Enfiou o segundo carregador com força na Beretta, puxou a culatra e avançou sobre o alvo, a disparar à medida que se ia aproximando. O último tiro foi quase à queima-roupa. Tirou o alvo, voltou-se e ergueu-o para os faróis brilharem através dos buracos de balas no papel. Cada tiro tinha acertado no alvo. Regressou até junto de Gabriel e deu-lhe a Beretta e a capa da revista.
Ele disse:
- Apanha os teus cartuchos
Enquanto Jacqueline recolhia os cartuchos gastos, desmontou rapidamente a Beretta. Tirou o macaco da bagageira e triturou as peças da arma até ficarem inoperantes. Voltaram para dentro do Peugeot e Gabriel saiu pelo caminho por onde viera. A dada altura, lançou a capa e contracapa da revista e os pedaços partidos da Beretta para a escuridão. Depois de terem passado pela aldeia, abriu a janela uma vez mais e espalhou os cartuchos.
Jacqueline acendeu outro cigarro.
- Como é que me saí?
- Passaste.
AMESTERDÃO
Tariq passou a tarde a tratar de recados. Andou desde a casa flutuante até à Centraalstation, onde comprou um bilhete em primeira classe para o comboio da noite para Antuérpia. Da estação de comboios andou até ao bairro da luz vermelha, passeando-se pelo labirinto de vielas estreitas, passando pelas sex shops, os bordéis e os bares soturnos, até um traficante de droga o puxar para o lado e lhe oferecer heroína. Tariq regateou o preço, depois pediu o suficiente para três pessoas se passarem. Tariq deu-lhe o dinheiro, enfiou as drogas no bolso e afastou-se.
Em Dam Square, pulou para um eléctrico e viajou pela cidade, seguindo para sul, até Bloemenmarkt, um mercado de flores flutuante no canal Singel. Foi até à banca maior e pediu ao florista um ramo elaborado de flores tradicionais holandesas. Quando o florista lhe perguntou quanto estava disposto a gastar, Tariq assegurou-lhe que o dinheiro não era um problema. O florista sorriu e disse-lhe para voltar dali a vinte minutos.
Tariq passeou-se pelo mercado, passando por túlipas e irises, lírios e girassóis a explodir de cor, até se cruzar com um homem a pintar. Cabelo preto cortado curto, pele clara e olhos azul-claros. O trabalho era uma representação do Bloemenmarkt, enquadrado pelo canal e por uma fila de casas com empenas. Tinha uma qualidade onírica, uma erupção de cor e luz líquidas.
Tariq parou por um momento e observou-o a trabalhar.
- Fala francês?
- Oui - respondeu o pintor, sem tirar os olhos do quadro.
- Admiro o seu trabalho. O pintor sorriu e respondeu:
- E eu admiro o seu.
Tariq acenou com a cabeça e afastou-se, interrogando-se sobre que raio estaria o maluco do pintor a falar.
Foi buscar as flores e regressou à casa flutuante. A rapariga estava a dormir. Tariq ajoelhou-se ao lado da cama e abanou-lhe o ombro gentilmente. Ela abriu os olhos e olhou para ele como se fosse louco. Fechou os olhos.
- Que horas são?
- Horas de ir trabalhar.
- Vem para a cama.
- Por acaso, sou capaz de ter uma coisa de que vais gostar mais.
Abriu os olhos e viu as flores. Sorriu.
- Para mim? Qual é o motivo?
- É só a minha maneira de te agradecer por seres uma anfitriã tão atenciosa.
- Gosto mais de ti do que de flores. Tira a roupa e vem para
a cama.
- Tenho mais outra coisa.
Segurou os sacos de pó branco no ar.
Inge vestiu rapidamente umas roupas enquanto Tariq se dirigiu para a cozinha do barco. Sacou uma colher da gaveta e acendeu uma vela. Aqueceu a droga por cima da chama, mas em vez de diluir um saco de heroína na mistura, utilizou logo os três. Quando terminou, puxou o líquido para dentro de uma seringa e levou-a para a cabina da frente.
Inge estava sentada à beira da cama. Tinha atado a extensão de borracha por cima do cotovelo e estava a examinar as nódoas negras ao longo da parte de dentro do antebraço, à procura de uma veia adequada.
- Aquela tem ar de servir - disse Tariq, passando-lhe a seringa.
Ela segurou-a na palma da mão e inseriu calmamente a agulha no braço. Tariq desviou o olhar enquanto ela puxava o êmbolo com a ponta do polegar e a heroína líquida se escurecia com o seu sangue. Depois carregou no êmbolo e desapertou o elástico, fazendo com que a droga disparasse para dentro do corpo.
Olhou para cima de repente, os olhos esbugalhados.
- Eh, Paul, meu... o que é que se está a...
Caiu de costas na cama, o corpo a estremecer com convulsões violentas, a agulha vazia a balouçar no braço. Tariq andou calmamente até à cozinha e fez café enquanto esperava que a rapariga acabasse de morrer.
Cinco minutos mais tarde, quando estava a arrumar as suas coisas numa pequena mala de viagem, sentiu o barco subitamente a balançar. Olhou para cima, espantado. Estava alguém no convés! Numa questão de segundos, a porta abriu-se e um homem grande e de constituição forte entrou na cabina. Tinha cabelo loiro e brincos pequenos e redondos nas orelhas. Tariq achou que tinha uma vaga parecença com Inge. Por instinto, procurou a pistola Makarov, que estava enfiada nas calças, no fundo das costas.
O homem olhou para Tariq.
- Quem és tu?
- Sou um amigo da Inge. Tenho estado a viver aqui há uns dias.
Falou de forma calma, a tentar reunir os pensamentos. A aparição repentina do homem apanhara-o completamente desprevenido. Há cinco minutos atrás tinha-se livrado calmamente da rapariga. Agora estava confrontado com alguém que podia dar cabo de tudo. Depois pensou: Se sou na verdade amigo da Inge, não tenho nada a temer. Obrigou-se a sorrir e esticou a mão.
- Chamo-me Paul.
O intruso ignorou a mão de Tariq.
- Sou o Maarten, o irmão da Inge. Onde é que ela está? Tariq fez um gesto na direcção do quarto.
- Sabes como a Inge pode ser. Ainda a dormir. Apercebeu-se de que tinha deixado a porta aberta.
- Deixa-me fechar-lhe a porta para não a acordarmos. Acabei de fazer café. Queres uma chávena?
Mas Maarten passou por si e entrou no quarto de Inge. Tariq pensou, Porra! Estava surpreendido com a velocidade a que as coisas tinham ficado fora de controlo. Apercebeu-se de que tinha cerca de cinco segundos para decidir como o ia matar.
A coisa mais fácil de se fazer, evidentemente, era dar-lhe um tiro. Mas isso teria consequências. Assassinato com pistola era quase inédito na Holanda. Uma rapariga morta com uma seringa espetada no braço era uma coisa. Mas dois corpos - um deles cheio de cartuchos de 9mm - era bem outra. Haveria uma grande investigação. A polícia iria interrogar os habitantes das casas flutuantes à volta. Alguém se podia recordar da sua cara. Dariam uma descrição à polícia, a polícia daria uma descrição à Interpol, a Interpol daria uma descrição aos judeus. Todos os polícias e funcionários de segurança da Europa Ocidental andariam à procura de si. Disparar sobre Maarten seria rápido, mas custar-lhe-ia a longo prazo.
Olhou por cima do ombro para a cozinha. Lembrou-se de que na gaveta ao lado do fogão a gás propano estava uma faca grande. Se matasse o irmão de Inge com uma faca talvez se parecesse com um crime passional ou com um crime de rua comum. Mas Tariq considerava a ideia de matar alguém com uma faca totalmente repulsiva. E havia outro problema, mais sério. Havia uma grande hipótese de não o matar ao primeiro golpe. A doença já começara a fazer sentir em si os seus efeitos. Tinha perdido força e resistência. A última coisa que queria fazer era envolver-se numa luta de vida ou de morte com um adversário maior e mais forte. Viu os sonhos - de destruir o processo de paz e de finalmente ajustar contas com Gabriel Allon - a evaporarem-se, tudo porque o irmão mais velho de Inge tinha chegado a casa num momento inoportuno. Leila devia ter escolhido com mais cuidado.
Tariq ouviu Maarten a gritar. Decidiu dar-lhe um tiro.
Sacou a Makarov da cintura. Apercebeu-se de que a arma não tinha o silenciador atarraxado. Onde é que ele está? No bolso do casaco, e o casaco estava em cima da cadeira na cabine. Merda! Como é que posso ter ficado tão complacente?
Maarten saiu a correr do quarto, a cara pálida.
- Está morta!
- Do que é que estás a falar? - perguntou Tariq, a fazer os possíveis para empatar.
- Está morta! É disso que estou a falar! Teve uma overdose!
- Drogas?
Tariq aproximou-se uns centímetros do casaco. Se conseguisse tirar o silenciador do bolso e atarraxá-lo ao cano, então pelo menos podia matá-lo sem barulho...
- Tem uma agulha pendurada no braço. O corpo ainda está quente. Provavelmente, acabou de se injectar ainda há uns minutos. Deste-lhe a porra das drogas, pá?
- Não sei nada sobre drogas.
Tariq apercebeu-se de que soava demasiado calmo para a situação. Tinha tentado não parecer perturbado pela chegada de Maarten, e agora parecia demasiado descontraído em relação à morte da sua irmãzinha. Maarten claramente não acreditava nele. Gritou com raiva e precipitou-se pela cabina, os braços erguidos, os punhos cerrados.
Tariq desistiu de tentar apanhar o silenciador. Agarrou na Makarov, puxou a culatra, fez pontaria à cara de Maarten e deu-lhe um tiro no olho.
Tariq trabalhava depressa. Tinha conseguido matar Maarten com um único tiro, mas teve de partir do princípio de que alguém numa das casas flutuantes das redondezas ou ao longo do dique ouvira o tiro. A polícia podia estar agora mesmo a caminho. Voltou a enfiar a Makarov na cintura, a seguir agarrou na mala, nas flores e no cartucho gasto e saiu da cabina para o convés da popa. Tinha anoitecido; a neve amontoava-se sobre o Amstel. A escuridão iria ajudá-lo. Olhou para baixo e reparou que estava a deixar pegadas no convés. Arrastou os pés enquanto andava, escondendo as marcas, e saltou para o cais.
Caminhou rápida mas calmamente. Num local escurecido no meio do cais, largou a mala no rio. O chape foi quase inaudível. Mesmo que a polícia descobrisse a mala, não havia nada nela que
pudesse conduzir a si. Iria comprar uma muda de roupa e uma mala nova quando chegasse a Antuérpia: Depois pensou: Se chegar a Antuérpia.
Seguiu pelo Herengracht em direcção a oeste, atravessando a cidade. Por um momento, pensou em abortar o ataque, ir directamente para a Centraalstation e fugir do país. Os Morgenthau eram alvos ligeiros e de valor político mínimo. Kemel escolhera-os porque matá-los seria fácil e porque permitiria a Tariq manter a pressão sobre o processo de paz. Mas agora o risco de captura tinha aumentado dramaticamente devido ao fiasco no barco. Talvez fosse melhor esquecer tudo.
À sua frente, um par de aves marinhas elevaram-se da superfície do canal e começaram a voar, os gritos a ecoar nas fachadas das casas no canal, e, por um momento, Tariq foi outra vez um rapaz de oito anos, a correr descalço pelo campo em Sídon.
A carta chegou ao final da tarde. Vinha dirigida aos pais de Tariq. Dizia que Mahmoud al-Hourani tinha sido morto em Colónia porque era um terrorista - que se Tariq, o filho mais novo da família al-Hourani, se tornasse um terrorista, também seria morto. O pai de Tariq disse-lhe para ir a correr até ao escritório da OLP e perguntar se a carta dizia a verdade. Tariq encontrou um funcionário da OLP e mostrou-lha. O homem da OLP leu-a uma vez, devolveu-a a Tariq e deu-lhe ordem para ir para casa e dizer ao pai que era verdade. Tariq correu pelo campo esquálido em direcção a casa, as lágrimas a toldarem-lhe a visão. Venerava Mahmoud. Não conseguia imaginar viver sem ele.
Quando chegou a casa, já a notícia da carta se tinha espalhado pelo campo - outras famílias tinham recebido cartas semelhantes ao longo dos anos. As mulheres reuniram-se à porta da casa de Tariq. O som dos seus lamentos e a agitação das línguas erguiam-se pelo campo com o fumo das fogueiras nocturnas. Tariq achava que soavam como pássaros dos pântanos. Encontrou o pai e disse-lhe que a carta era verdadeira - Mahmoud estava morto. O pai atirou a carta para a fogueira. Tariq nunca iria esquecer a dor no rosto do pai, a vergonha indizível de ter sido informado da morte do filho mais velho pelos próprios homens que o haviam morto.
Não, pensava agora Tariq enquanto caminhava ao longo do Herengracht. Não ia anular o ataque e fugir por ter medo de ser preso. Tinha chegado demasiado longe. Restava-lhe demasiado pouco tempo.
Tariq chegou à casa. Subiu os degraus da frente, esticou-se e tocou à campainha. Um momento depois, a porta foi aberta por uma rapariga num uniforme de empregada.
Estendeu o arranjo de flores e disse em holandês:
- Um presente para os Morgenthau.
- Oh, que adorável.
- E bastante pesado. Quer que o leve para dentro?
-
A rapariga afastou-se para Tariq poder passar. Fechou a porta para não deixar entrar o frio e esperou, com uma mão no trinco, que Tariq colocasse a caixa em cima de uma mesa no átrio de entrada e se fosse embora. Poisou a embalagem e sacou da Makarov enquanto se virava. Desta vez, o silenciador estava atarraxado no sítio.
A rapariga abriu a boca para gritar. Tariq disparou-lhe dois tiros na garganta.
Arrastou o corpo para fora do átrio de entrada e utilizou uma toalha da casa de banho para limpar o rasto de sangue. A seguir, sentou-se na sala de jantar escurecida e esperou que David e Cynthia Morgenthau chegassem a casa.
PARIS
Shamron chamou Gabriel aos jardins de Tuileries na manhã seguinte, para uma reunião rápida. Gabriel encontrou-o sentado num banco perto de um caminho de cascalho, rodeado por um bando de pombos. Tinha um cachecol de seda cinzento-ardósia à volta do pescoço, com as pontas bem aconchegadas por baixo das lapelas do sobretudo preto, de modo que a careca parecia estar colocada no topo de um pedestal. Levantou-se, tirou a luva preta de cabedal da mão direita e esticou-a como uma faca de trinchar. Gabriel achou-lhe a palma da mão invulgarmente quente e húmida. Shamron soprou para dentro do canhão da luva e voltou a colocá-la. Não estava acostumado a climas frios, e Paris no Inverno deprimia-o.
Caminharam rapidamente, não como dois homens a conversar num parque, mas como dois homens a ir com pressa para algum lado - ao longo dos caminhos de Tuileries, através da muito ventosa Place de la Concorde. Folhas mortas estalavam sob os seus pés, à medida que marchavam ao longo do passeio revestido de árvores junto aos Champs-Élysées.
- Recebemos um relatório esta manhã de um sayan nos serviços de segurança holandeses - disse Shamron. - Foi o Tariq que matou o David Morgenthau e a mulher em Amesterdão.
- Como é que podem ter tanta certeza?
- Eles não têm a certeza, mas eu sim. A polícia de Amesterdão
descobriu uma rapariga morta numa casa flutuante no Amstel. Tinha tido uma overdose de heroína. O irmão também estava morto.
- Heroína?
- Uma única bala pelo olho dentro.
- O que é que aconteceu?
- Segundo os vizinhos da rapariga, uma mulher árabe mudou-se para a casa flutuante há um par de semanas atrás. Saiu há um par de dias e um homem tomou o seu lugar. Um francês que dava pelo nome de Paul.
- Então o Tariq enviou antecipadamente uma agente para Amesterdão, para assegurar um alojamento seguro e uma rapariga para cobertura.
- E quando já não precisava mais dela, deu-lhe heroína suficiente para matar um camelo. A polícia diz que a rapariga tinha antecedentes longos de uso de drogas e prostituição. Obviamente, achou que conseguia fazê-lo passar por uma overdose acidental.
- Como é que o irmão acabou morto?
- A casa flutuante está registada em nome dele. Segundo a polícia, tem estado a trabalhar em Roterdão num projecto de construção. Talvez tenha aparecido sem aviso no local, enquanto o Tariq estava a matar a irmã.
- Faz sentido.
- Na verdade, há provas que suportam essa teoria. Uns vizinhos ouviram o disparo. Se Tariq tivesse estado a planear matar o irmão, teria utilizado um método de execução mais silencioso. Talvez tivesse sido surpreendido.
- Já compararam a bala do irmão com as balas tiradas dos Morgenthau e da empregada?
- Há uma correspondência perfeita. A mesma arma matou as quatro pessoas todas.
Um casal de jovens suecos estava a posar para uma fotografia. Gabriel e Shamron viraram-se bruscamente e caminharam no sentido contrário.
Gabriel perguntou:
- Alguma outra novidade?
Quero que tenhas cuidado em Londres. Um homem de
Langley fez-me uma visita de cortesia na semana passada. Os Americanos foram informados pelas suas fontes de que o Tariq esteve envolvido em Paris. Querem-no preso e julgado nos Estados Unidos.
- A última coisa de que precisamos agora é de estar a tropeçar
na CIA.
- Receio que ainda seja pior. O homem de Langley deixou cair um aviso não muito subtil sobre os perigos de fazer operações em certos países sem permissão.
- Sabem de alguma coisa?
- Duvido, mas não o excluiria por completo.
- Estava à espera que o meu regresso ao Departamento não me fosse enfiar numa cadeia inglesa.
- E não vai, desde que mantenhas a disciplina.
- Obrigado pelo voto de confiança.
- Descobriste-a? - perguntou Shamron, mudando de assunto. Gabriel acenou com a cabeça.
- E está disposta a fazê-lo?
- Demorei algum tempo a convencê-la, mas concordou.
- Porque é que os meus filhos estão todos tão relutantes em voltar para casa? Fui um pai assim tão mau?
- Só demasiado exigente. Gabriel parou em frente de um café nos Champs-Élysées. Jacqueline estava junto à janela, com uns grandes óculos de sol, a ler uma revista. Olhou para cima de relance enquanto se aproximavam, depois voltou a fixar o olhar na revista. Shamron disse:
- É bom ver-vos aos dois a trabalhar juntos outra vez. Mas não lhe partas o coração desta vez. É boa rapariga.
- Eu sei.
- Vais precisar de lhe arranjar um trabalho de disfarce em Londres. Conheço uma pessoa que está à procura de uma secretária.
- Estou um passo à tua frente.
Shamron sorriu e afastou-se. Desapareceu nas multidões ao longo dos Champs-Élysées e, um momento depois, sumira-se.
Julian Isherwood abriu caminho pelos ladrilhos molhados de Mason's Yard. Eram três e trinta e estava a voltar à galeria a seguir ao almoço. Estava bêbado. Não tinha reparado que estava bêbado até sair do Green's e inspirar fundo um pouco do ar húmido e gelado. O oxigénio ressuscitara-lhe o cérebro, e o cérebro alertara o corpo de que, uma vez mais, tinha despejado demasiado vinho dentro dele. O companheiro de almoço fora o barrigudo Oliver Dimbleby e, uma vez mais, o tema da conversa tinha sido a proposta de compra da Isherwood Fine Arts por parte de Oliver. Desta vez, Isherwood conseguira manter a compostura e discutido a situação de uma forma razoavelmente racional - mas não sem a ajuda de duas garrafas de um soberbo Sancerre. Quando estamos a discutir o desmembramento do nosso negócio - da nossa própria alma, pensou -, é-nos permitido entorpecer a dor com um bom vinho francês.
Puxou o casaco para tapar os ouvidos. Uma rajada de vento húmido varreu a Duke Street. Isherwood viu-se apanhado num remoinho de folhas mortas e lixo molhado. Avançou alguns passos aos trambolhões, as mãos a proteger a cara, até o remoinho se extinguir. Pelo amor de Deus! Clima horroroso. Autenticamente siberiano. Pôs a hipótese de se escapulir para dentro do pub, para aquecer os ossos, mas pensou melhor. Já tinha feito suficientes estragos para uma tarde.
Utilizou a chave para abrir a porta no rés-do-chão, subiu as escadas devagar, a pensar que devia mesmo tratar do tapete. No patamar, estava a entrada para uma pequena agência de viagens. As paredes estavam forradas com cartazes de amazonas ferozmente bronzeadas, seminuas, a brincar ao sol. Talvez isto seja a melhor coisa para mim, pensou, a olhar fixamente para uma rapariga em topless, deitada de barriga para baixo na areia imaculadamente branca. Talvez deva abandonar enquanto ainda tenho alguns anos decentes dentro de mim. Fugir de Londres, ir para um sítio quente, lamber as minhas feridas.
Enfiou a chave com força na fechadura, empurrou a porta para
trás, despiu o casaco e pendurou-o no cabide na sala de espera. A seguir, entrou no escritório e deu um toque no interruptor.
- Olá, Julian. Isherwood virou-se e deu de caras com Gabriel Allon.
- Tu! Como diabo é que entraste aqui?
- Queres mesmo saber?
- Suponho que não -- respondeu Isherwood. - Em nome de Deus, o que é que estás aqui a fazer? E onde é que tens estado?
- Preciso de um favor.
- Tu precisas de um favor! Tu precisas de um favor, meu! Abandonaste-me a meio de um trabalho. Deixaste o meu Vecellio num chalé na Cornualha sem segurança nenhuma.
- Às vezes, o melhor sítio para esconder um Vecellio de valor inestimável é o último sítio onde alguém se lembraria de o procurar. Se me quisesse aproveitar à vontade do conteúdo do teu cofre lá em baixo, podia tê-lo feito com bastante facilidade.
- Isso é porque és uma aberração da natureza!
- Não é preciso tornares as coisas pessoais, Julian.
- A sério? E que tal isto para pessoal? " Pegou numa chávena de café da secretária e atirou-a direita
à cabeça de Gabriel.
Gabriel conseguiu ver que Isherwood tinha estado a beber, por isso puxou-o lá para fora para o pôr sóbrio. Andaram aos círculos pelos caminhos do Green Park, até Isherwood se cansar e recostar num banco. Gabriel sentou-se ao lado e esperou que um casal passasse antes de recomeçar a falar.
- Ela sabe escrever à máquina? - perguntou Isherwood. Sabe atender o telefone? Tomar nota de um recado?
- Não me parece que tenha feito um verdadeiro dia de trabalho em toda a vida.
- Oh, mas que perfeito. Absolutamente estupendo.
- É uma rapariga esperta. Tenho a certeza de que vai ser capaz de ajudar no escritório.
- Isso é reconfortante. É-me permitido perguntar porque é que devo contratar esta mulher?
- Julian, por favor.
- Julian, por favor, Julian, mete-te na tua vida. Julian, cala-te e faz o que te dizemos. É sempre o mesmo convosco. E enquanto tudo isto se passa, o meu negócio está a ir para o buraco. O Oliver fez-me uma proposta. vou aceitá-la.
- O Oliver não parece o teu tipo.
- A cavalo dado não se olha o dente. Não estaria nesta posição se não me tivesses abandonado.
- Não te abandonei.
- E chamas-lhe o quê, Gabriel?
- É só uma coisa que preciso de fazer. É tal e qual como nos velhos tempos.
- Nos velhos tempos, isso fazia parte do acordo logo à partida. Mas estes não são os velhos tempos. Isto é negócio, a porra de um negócio e ponto final, Gabriel, e tu passaste-me bem a perna. O que é que é suposto eu fazer acerca do Vecellio enquanto fazes jogos com o Ari?
- Espera por mim - respondeu Gabriel. - Isto vai terminar em breve e vou trabalhar nisso dia e noite, até estar acabado.
- Não quero um trabalho às três pancadas. Dei-to porque sabia que ias demorar o teu tempo e fazê-lo como deve ser. Se quisesse um trabalho às três pancadas, podia ter contratado um tipo sem talento para o fazer por um terço do que te estou a pagar.
- Dá-me um tempo. Mantém o teu comprador à distância e, faças o que fizeres, não vendas a tua posição ao Oliver Dimbleby. Nunca te irás perdoar.
Isherwood olhou para o relógio e levantou-se.
- Tenho um encontro. Alguém que quer mesmo comprar um quadro.
Virou-se e começou a afastar-se; depois parou e disse:
- Já agora, deixaste para trás um rapazinho desgostoso na Cornualha.
- O Peel - disse Gabriel de longe.
- Tem piada, Gabriel, mas nunca tinha imaginado que fosses do tipo de magoar uma criança. Diz à tua rapariga para estar na galeria amanhã às nove da manhã. E diz-lhe para não se atrasar.
- Vai lá estar.
- O que é que devo chamar a esta secretária que me estás a enviar?
- Podes chamar-lhe Dominique.
- Gira? - perguntou Isherwood, recuperando um pouco do seu velho humor.
- Não é má.
MAIDA VALE, LONDRES
Gabriel carregou as malas para dentro, enquanto Jacqueline examinava a sua nova casa, um apartamento acanhado de uma divisão, com uma única janela com vista para um pátio interior. Um sofá desdobrável, uma cadeira de couro estalado, uma secretária pequena. Ao lado da janela, estava um radiador lascado e, ao lado do radiador, uma porta que dava para uma cozinha pouco maior do que a da chalupa de Gabriel. Jacqueline entrou na cozinha e começou a abrir e a fechar armários, tristemente, como se cada um fosse mais repulsivo do que o último.
- Disse ao bodel para fazer umas compras para ti.
- Não podias ter arranjado uma coisa um bocadinho mais agradável?
- A Dominique Bonard é uma rapariga de Paris que veio para Londres à procura de trabalho. Não achei que um duplex de três quartos em Mayfair fosse apropriado.
- É aí que estás?
- Não exactamente.
- Fica uns minutos. Acho a ideia de estar sozinha aqui deprimente.
- Poucos.
Encheu a chaleira de água, colocou-a no fogão e ligou o bico. Gabriel descobriu saquinhos de chá e uma embalagem de leite de longa duração. Ela preparou duas chávenas grandes de chá e levou-as
para a sala de estar. Gabriel estava sentado no sofá. Jacqueline tirou os sapatos e sentou-se à frente dele, os joelhos por baixo do queixo.
- Quando é que começamos?
- Amanhã à noite. Se isso não funcionar, tentamos a noite a seguir.
Acendeu um cigarro, encostou a cabeça para trás e atirou o fumo para o tecto. Depois olhou para Gabriel e franziu os olhos.
- Lembras-te daquela noite em Tunes?
- Qual noite?
- A noite da operação.
- É claro que me lembro.
- Lembro-me como se tivesse sido ontem. Fechou os olhos.
- Lembro-me especialmente da viagem pela água, do regresso ao barco. Estava tão excitada que não conseguia sentir o corpo. Estava a voar. Tínhamos mesmo conseguido. Tínhamos ido direitos à casa daquele sacana, no meio de um recinto da OLP, e eliminado o tipo. Apetecia-me gritar de alegria. Mas nunca vou esquecer a tua expressão. Estavas atormentado. Era como se os homens mortos estivessem sentados ao teu lado no barco.
- Muito poucas pessoas compreendem o que é matar um homem à queima-roupa. E ainda menos sabem o que é encostar-lhe uma arma à cabeça e puxar o gatilho. Matar no campo de batalha dos serviços secretos é diferente do que matar um homem no Golan ou Sinai, mesmo quando se trata de um sacana assassino como o Abu Jihad.
- Agora compreendo isso. Senti-me tão idiota quando regressámos a Telavive. Comportei-me como se tivesses acabado de marcar o golo da vitória, e durante todo esse tempo estavas a morrer por dentro. Espero que me possas perdoar.
- Não precisas de pedir desculpa.
- Mas o que não compreendo é como o Shamron te atraiu de volta, depois destes anos todos.
- Não tem nada a ver com o Shamron. Tem a ver com o Tariq.
- O que tem o Tariq?
Gabriel deixou-se ficar sentado em silêncio por um momento, depois levantou-se e foi até à janela. No pátio, um trio de rapazes dava pontapés numa bola sob a luz âmbar de um candeeiro, jornais velhos a pairar sobre eles como cinzas no vento húmido.
- O irmão mais velho do Tariq, o Mahmoud, era membro do Setembro Negro. O Ari Shamron seguiu-lhe o rasto até Colónia e enviou-me para acabar com ele. Enfiei-me no apartamento dele enquanto estava a dormir e apontei-lhe uma arma à cara. Depois acordei-o, para que não tivesse uma morte tranquila. Dei-lhe dois tiros nos olhos. Dezassete anos mais tarde, o Tariq teve a sua vingança ao rebentar com a minha mulher e o meu filho diante dos meus olhos.
Jacqueline tapou a boca com as mãos. Gabriel continuava a olhar fixamente pela janela, mas conseguia perceber que era Viena que via agora e não os rapazes a brincar no pátio.
- Durante muito tempo, pensei que o Tariq se tivesse enganado - disse Gabriel. - Mas ele nunca se engana assim. É cuidadoso, faz tudo com um propósito. É o predador perfeito. Foi atrás da minha família por uma razão. Foi atrás deles para me castigar por lhe ter matado o irmão. Sabia que seria pior do que a morte.
Voltou-se para a olhar de frente.
- De um profissional para outro, foi um trabalho perfeito.
- E agora vais matá-lo em retribuição? Afastou o olhar e não respondeu nada.
- Sempre me culpei pelo que aconteceu em Viena - disse Jacqueline. - Se não tivéssemos...
- Não tiveste culpa - disse Gabriel, interrompendo-a. A culpa foi minha, não tua. Devia ter calculado. Comportei-me de uma forma estúpida. Mas agora acabou.
A frieza da sua voz foi como uma faca no peito dela. Demorou muito tempo a apagar o cigarro e depois olhou para cima, na direcção dele.
- Porque é que contaste à Leah sobre nós?
Ficou parado à janela por um momento, sem dizer nada. Jacqueline receou que tivesse ido longe de mais. Tentou pensar em algum modo de desbloquear a situação e mudar de assunto, mas queria
desesperadamente saber a resposta. Se Gabriel não tivesse confessado o caso, Leah e Dani nunca teriam estado com ele na missão em Viena.
- Contei-lhe porque não lhe queria mentir. A minha vida inteira era uma mentira. O Shamron tinha-me convencido de que eu era perfeito, mas não era perfeito. Pela primeira vez na vida, tinha-me comportado com um pouco de fragilidade e fraqueza humanas. Suponho que precisasse de o partilhar com ela. Suponho que precisasse de alguém para me perdoar.
Pegou no casaco. O rosto estava contorcido. Estava zangado, não com ela mas consigo próprio.
- Tens um dia longo à tua frente amanhã. A voz era agora toda ela negócios.
- Instala-te e tenta descansar um bocado. O Julian está a contar que apareças às nove horas.
E depois saiu.
Durante uns minutos, distraiu-se com o ritual do desfazer das malas. Depois, a dor tomou-a de surpresa, como o ardor atrasado de uma bofetada. Deixou-se cair no sofá e começou a chorar. Acendeu outro cigarro e olhou em redor do apartamentozinho horroroso. Mas que diabo estou eu aqui afazer? Tinha concordado em regressar por uma razão - porque julgava que podia fazer Gabriel amá-la -, mas ele tinha reduzido o caso em Tunes a um momento de fraqueza. Ainda assim, porque tinha ele voltado, após todos estes anos, para matar Tariq? Era simplesmente por vingança? Um olho por olho? Não, pensou, os motivos de Gabriel eram muito mais profundos e mais complexos do que a simples vingança. Talvez precisasse de matar Tariq para se perdoar pelo que tinha acontecido a Leah e avançar, por fim, com a vida. Mas será capa de alguma ve me perdoar? Talvez a única forma de lhe ganhar a confiança fosse ajudá-lo a matar Tariq. E a única forma de o poder ajudar a matar Tariq éfaer um outro homem apaixonar-se por mim e levá-lo para a cama. Fechou os olhos e pensou em Yusef al-Tawfiki.
Gabriel deixara o carro em Ashworth Road. Fez questão de mostrar que tinha deixado cair as chaves no passeio e que estava
a apalpar na escuridão como se estivesse a tentar encontrá-las. Na realidade, estava a inspeccionar a parte de baixo do carro, à procura de algo que não devesse estar lá - uma massa, um cabo grande. O carro parecia limpo, por isso entrou, ligou o motor e guiou em círculos durante meia hora por Maida Vale e Notting Hill, assegurando-se de que não estava a ser seguido.
Estava aborrecido consigo mesmo. Tinham-lhe ensinado primeiro o pai e depois Ari Shamron - que os homens que não conseguiam guardar segredos eram fracos e inferiores. O pai sobrevivera a Auschwitz, mas recusou-se sempre a falar disso. Bateu em Gabriel uma vez apenas - quando Gabriel exigiu que o pai lhe contasse o que tinha acontecido no campo de concentração. Se não tivesse sido pelos números tatuados no antebraço direito, Gabriel poderia nunca ter sabido que o pai sofrera.
Na verdade, Israel era um local pejado de gente traumatizada
- mães que enterraram filhos mortos em guerras, crianças que enterraram irmãos mortos por terroristas. Após Viena, Gabriel apoiou-se nas lições do pai: "Às vezes, as pessoas morrem demasiado cedo. Chora-as em privado. Não tenhas o sofrimento à flor da pele como os Árabes. E quando tiveres acabado de fazer o luto, põe-te de pé e continua com a vida."
Tinha sido a última parte - continuar com a vida - que dera mais trabalho a Gabriel. Culpava-se pelo que tinha acontecido em Viena, não só pelo caso com Jacqueline, mas também pelo modo como tinha matado o irmão de Tariq. Quisera ter a satisfação de saber que Mahmoud estava ciente da sua morte - que tinha ficado aterrorizado no momento em que a Beretta de Gabriel lhe enviou silenciosamente a primeira bala ardente para o cérebro. Shamron dissera-lhe para aterrorizar os terroristas - para pensar como eles e comportar-se como eles. Gabriel acreditava que tinha sido castigado por se ter deixado tornar igual ao inimigo.
Como resultado, tinha-se castigado a si próprio. Uma por uma, fechara as portas e obstruíra as janelas que em tempos lhe tinham dado acesso aos prazeres da vida. Vagueou pelo tempo e pelo espaço como imaginava que um espírito maldito pudesse visitar o lugar
onde vivera: capaz de ver os entes queridos e os pertences mas incapaz de comunicar ou saborear ou tocar ou sentir. Senda a beleza apenas na arte e apenas ao reparar os danos infligidos por proprietários negligentes ou pela passagem corrosiva do tempo. Shamron tinha feito de si o destruidor. Gabriel voltara a tornar-se o curador. Infelizmente, não era capaz de se curar a si próprio.
Então porquê contar segredos ajacqueline? Porquê responder-lhe às malditas questões? A resposta simples era porque o queria fazer. Tinha-o sentido no momento em que entrara na sua vivenda em Valbonne, uma necessidade prosaica de partilhar segredos e revelar dor e desapontamento passados. Mas havia algo mais importante: não tinha de se explicar a ela. Pensou na fantasia tola acerca da mãe de Peel, como tinha terminado quando lhe contara a verdade sobre si mesmo. A cena reflectia um dos medos profundos de Gabriel - o temor de dizer a uma outra mulher que era um assassino profissional. Jacqueline já conhecia os seus segredos.
Talvez Jacqueline tivesse tido razão numa coisa, pensou - talvez devesse ter pedido outra rapariga a Shamron. Jacqueline era a sua bat leveyha, e amanhã ia enviá-la para a cama de outro homem.
Estacionou à esquina do apartamento e caminhou depressa pelo passeio, em direcção à entrada do prédio. Olhou para cima, para a sua janela, e murmurou:
- Boa noite, Senhor Karp.
E imaginou Karp, a espreitar pela mira do seu microfone parabólico, a dizer:
- Bem-vindo a casa, Gabriel. Há muito tempo que não te ouvia.


CONTINUA

PARTE II
AVALIAÇÃO
Antes da guerra, Maurice Halévy era um dos mais proeminentes advogados de Marselha. Ele e a mulher, Rachel, tinham vivido numa imponente casa antiga na rue Sjlvabelle em Beaux Quartiers, onde a maioria dos judeus assimilados com sucesso da cidade se estabelecera. Tinham orgulho em ser franceses; consideravam-se primeiro franceses e depois judeus. Na verdade, Maurice Halévy estava tão assimilado que raramente se dava ao trabalho de ir à sinagoga. Mas quando os Alemães invadiram, a vida idílica dos Halévy em Marselha chegou a um fim abrupto. Em Outubro de 1940, o governo colaboracionista de Vichy divulgou o statut dês Juifs, os decretos antijudeus que reduziram os judeus a cidadãos de segunda classe na França de Vichy. Foi retirado a Maurice Halévy o direito de exercer advocacia. Exigiram-lhe que se registasse na polícia e, mais tarde, ele e a mulher foram forçados a utilizar a Estrela de David nas roupas.
A situação piorou em 1942, quando o exército alemão se instalou na França de Vichy, após a invasão do Norte de África pelos Aliados. As forças da Resistência Francesa levaram a cabo uma série de ataques mortíferos às forças alemãs. A polícia de segurança alemã, com a ajuda das autoridades francesas de Vichy, respondeu com assassinatos brutais. Maurice Halévy não podia mais ignorar a ameaça. Rachel ficara grávida. A ideia de tentar cuidar de um recém-nascido no caos de Marselha era demasiado para suportar. Decidiu deixar a cidade e partir para o campo. Utilizou as poupanças diminutas para arrendar um chalé nas colinas à saída de Aix-en-Provence. Em janeiro, Rachel deu à luz um filho, Isaac.
Uma semana mais tarde, os Alemães e a polícia francesa começaram a reunir os judeus. Demoraram um mês para descobrir Maurice e Rachel Halévy. Um par de oficiais alemães das S S apareceu no chalé num final de tarde de
Fevereiro, acompanhado por um gendarme local. Deram aos Halévy vinte minutos para fazer uma mala que não pesasse mais do que vinte e sete quilos. Enquanto os alemães e o gendarme esperavam na sala de jantar, a mulher do chalé do lado apareceu aporta.
- O meu nome é Anne-Marie Delacroix - disse. - Os Halévy estavam a tomar conta do meu filho enquanto fui ao mercado.
O gendarme estudou os seus documentos. De acordo com estes, apenas dois judeus viviam no chalé. Chamou os Halévy e disse:
- Esta mulher diz que o rapaz é dela. É verdade?
- É claro que é - respondeu Maurice Halévy, apertando o braço de Rachel antes de ela poder emitir um som. - Estávamos só a tomar conta do rapaz durante a tarde.
O gendarme olhou para Maurice Halévy incredulamente, depois consultou os documentos de registo uma segunda vez.
- Pegue na criança e vá-se embora - disparou para a mulher. - Apetecia-me bastante levá-la sob custódia eu mesmo, por entregar uma criança francesa ao cuidado destes judeus nojentos.
Dois meses mais tarde, Maurice e Rachel Halévy foram assassinados em Sobibor.
Anne-Marie Delacroix levou Isaac a uma sinagoga e contou ao rabi o que acontecera naquela noite em Aix-en-Provence. O rabi deu-lhe a escolher entre entregar a criança para adopção por uma família judia ou criá-la ela própria. Eevou o rapaz de volta a Aix e criou-o como judeu, ao lado dos seus próprios filhos católicos. Em 1965, Isaac Halévy casou com uma rapariga de Nimes, chamada Deborah, e instalou-se em Marselha, na antiga casa do pai, na rue Sylvabelle. Três anos mais tarde, tiveram o primeiro e único filho: uma rapariga a quem chamaram Sarah.
PARIS
Michel Duval era o fotógrafo da moda mais em voga em Paris. Os estilistas e os editores de revistas adoravam-no, pois as suas fotografias irradiavam uma aura muito forte de sexualidade perigosa. Jacqueline Delacroix achava que ele era um porco. Sabia que conseguia o seu olhar singular abusando das modelos. Não estava com grande vontade de trabalhar com ele.
Saiu de um táxi e entrou num edifício de apartamentos na rue St-Jacques, onde Michel tinha o estúdio. Lá em cima, uma pequena multidão aguardava: artista de maquilhagem, cabeleireiro, estilista, um representante da Givenchy. Michel estava em cima de um escadote, a ajustar luzes: bem-parecido, cabelos loiros pelos ombros, feições felinas. Vestia calças de cabedal pretas, descaídas nas ancas estreitas, e um pulôver largo. Piscou o olho a Jacqueline quando ela entrou. Ela sorriu e disse:
- Prazer em ver-te, Michel.
- Vamos ter uma boa sessão hoje, não é? Consigo senti-lo.
- Espero que sim.
Entrou num quarto para mudar de roupa, despiu-se e estudou o aspecto ao espelho com impassibilidade profissional. Fisicamente, era uma mulher estonteante: alta, braços e pernas graciosos, cintura elegante, pele cor de azeitona clara. Os seios eram esteticamente perfeitos: firmes, arredondados, nem demasiado pequenos nem anormalmente grandes. Os fotógrafos adoravam sempre os seus seios. A maior parte das modelos detestava o trabalho com Ungem, mas isso nunca incomodara Jacqueline. Tivera sempre mais ofertas de trabalho do que aquelas que podia encaixar na agenda.
O seu olhar passou do corpo para a cara. Tinha cabelo encaracolado, preto como um corvo, que lhe chegava aos ombros, olhos escuros, um nariz comprido e fino. As maçãs do rosto eram largas e uniformes, a linha do maxilar angulosa, os lábios carnudos. Orgulhava-se do facto de a cara nunca ter sido alterada pelo bisturi de um cirurgião. Inclinou-se para a frente, apalpou a pele à volta dos olhos. Não gostou do que viu. Não era uma linha, na realidade algo mais subtil e insidioso. O sinal intangível do envelhecer. Já não tinha os olhos de uma criança. Tinha os olhos de uma mulher com trinta e três anos.
Continuas linda, mas aceita os factos, Jacqueline. Estás a ficar velha.
Vestiu um robe branco, foi até ao quarto do lado e sentou-se. O artista de maquilhagem começou a aplicar-lhe uma base na bochecha. Jacqueline observou no espelho enquanto a sua cara era transformada lentamente na de alguém que não reconhecia bem. Interrogou-se sobre o que o avô acharia se pudesse ver isto.
Provavelmente, ficaria envergonhado...
Quando o artista de maquilhagem e o estilista para o cabelo terminaram, Jacqueline olhou-se ao espelho. Se não tivesse sido pela coragem daquelas três pessoas notáveis - os avós e Anne-Marie Delacroix -, não estaria hoje aqui.
E vê no que te tornaste - um requintado cabide para roupas.
Levantou-se, regressou ao quarto para mudar de roupa. O vestido, um traje de cerimónia preto e sem alças, aguardava-a. Tirou o robe, vestiu o traje e puxou-o sobre os seios nus. A seguir, mirou-se ao espelho. Devastadora.
Uma batida na porta.
- O Michel está pronto para si, menina Delacroix.
- Diga ao Michel que saio já. Menina Delacroix...
Mesmo passados todos estes anos, ainda não se habituara a isso: Jacqueline Delacroix. O agente, Mareei Lambert, tinha sido quem lhe alterara o nome - Sarah Halév soa demasiado... bom... sabes o que quero dizer, mon chou. Não me faças dizê-lo em voz alta. Tão vulgar, mas é assim o mundo. Por vezes, o som do seu nome francês fazia a pele arrepiar-se-lhe. Quando soube o que acontecera aos avós na guerra, ardera de ódio e suspeita em relação a todos os franceses. Sempre que via um velho, interrogava-se sobre o que teria feito durante a guerra. Teria sido um guarda em Gurs ou Lês Milles ou num dos outros campos de detenção? Teria sido um gendarme que ajudara os Alemães a reunir a sua família? Teria sido um burocrata que carimbava e processava a papelada da morte? Ou teria simplesmente permanecido em silêncio, sem fazer nada? Secretamente, dava-lhe intenso prazer estar a enganar o mundo da moda. Imagine-se a reacção deles se descobrissem que a beldade alta e magra e de cabelos pretos de Marselha era de facto uma judia da Provença, cujos avós tinham sido mortos na câmara de gás em Sobibor. De certa maneira, ser uma modelo, a imagem por excelência da beleza francesa, era a sua vingança.
Olhou uma última vez para si própria, baixando o queixo para o peito, afastando os lábios ligeiramente, trazendo fogo aos olhos pretos cor de carvão.
Agora estava pronta.
Trabalharam durante trinta minutos sem parar. Jacqueline adoptou diversas poses. Estendeu-se ao longo de uma simples cadeira de madeira. Sentou-se no chão, encostando-se para trás apoiada nas mãos, com a cabeça inclinada para cima e os olhos fechados. Pôs-se em pé com as mãos nas ancas e os olhos a perfurar a lente da máquina fotográfica de Michel. Michel parecia gostar do que estava a ver. Estavam em sintonia. De poucos em poucos minutos, parava por uns segundos para mudar de rolo, depois retomava a sessão rapidamente. Jacqueline estava na profissão há tempo suficiente para saber quando uma sessão fotográfica estava a funcionar.
Por isso, ficou surpreendida quando ele saiu de repente detrás da objectiva e passou a mão pelo cabelo. Tinha um olhar carrancudo.
- Saiam do estúdio, por favor. Preciso de privacidade. Jacqueline pensou: Oh, céus. Aqui vamos nós.
Michel perguntou:
- Mas o que raio se passa contigo?
- Não se passa nada comigo!
- Nada? Estás apática, Jacqueline. As fotos estão apáticas. Bem podia estar a tirar fotografias a um manequim com o vestido posto. Não me posso dar ao luxo de entregar à Givenchy um conjunto de fotografias apáticas. E pelo que ouço na rua, também não podes.
- O que é que isso quer dizer supostamente?
- Quer dizer que estás a ficar velha, querida. Quer dizer que ninguém tem bem a certeza de que ainda tenhas o que é preciso.
- Vai mas é para trás da máquina e mostro-te que ainda tenho o que é preciso.
- Já vi o suficiente. Simplesmente não está aí hoje.
- Tretas!
- Queres que te vá buscar uma bebida? Talvez um copo de vinho te ajude a descontrair.
- Não preciso de uma bebida.
- E que tal um pouco de coca?
- Sabes que já não snifo.
- Pois eu, sim.
- Há coisas que nunca mudam.
Michel tirou um pequeno saco de cocaína do bolso da camisa. Jacqueline sentou-se na cadeira que servia de adereço enquanto ele preparava duas linhas numa mesa com tampo de vidro. Snifou uma e a seguir ofereceu-lhe a nota de cem francos enrolada.
- Apetece-te ser uma rapariga mazinha hoje?
- É toda tua, Michel. Não estou interessada.
Ele inclinou-se e snifou a segunda linha. A seguir, limpou o vidro com o dedo e espalhou o resto pelas gengivas.
- Se não vais tomar uma bebida nem snifar uma linha, talvez tenhamos de pensar numa outra maneira de acender uma chama dentro de ti.
- Como o quê? - perguntou, mas sabia no que Michel estava a pensar.
Pôs-se atrás dela, colocou-lhe as mãos ao de leve nos ombros nus.
- Talvez precises de pensar em seres fodida.
As mãos deixaram-lhe os ombros e acariciaram-lhe a pele logo acima dos seios.
- Talvez possamos fazer alguma coisa para tornar a ideia um pouco mais realista na tua imaginação.
Pressionou-lhe a pélvis contra as costas para que ela lhe pudesse sentir a erecção por baixo das calças de cabedal. Ela afastou-se.
- Estou só a tentar ajudar, Jacqueline. Quero certificar-me de que estas fotografias saem bem. Não quero ver a tua carreira a ir pelo cano abaixo. Os meus motivos são puramente altruístas.
- Nunca soube que eras tão filantropo, Michel. Ele riu-se.
- Vem comigo. Quero mostrar-te uma coisa.
Pegou-lhe na mão e puxou-a para fora do plateau. Atravessaram um corredor e entraram num quarto que tinha apenas como mobília uma cama grande. Michel tirou a camisa e começou a desabotoar as calças.
Jacqueline perguntou:
- O que é que pensas que estás a fazer?
- Tu queres fotografias boas, eu quero fotografias boas. Vamo-nos pôr em sintonia. Tira o vestido para não ficar estragado.
- Vai-te foder, Michel. Vou-me embora.
- Vá lá, Jacqueline. Deixa-te de parvoíces e mete-te na cama.
- Não!
- Mas qual é o problema? Dormiste com o Robert Leboucher, para que ele te desse aquela sessão fotográfica de fatos de banho, em Mustique.
- Como é que soubeste?
- Porque ele me disse.
- És um sacana, e ele também! Não sou nenhuma miúda de dezassete anos que vai abrir as pernas para ti porque quer boas fotografias tiradas pelo grande Michel Duval.
- Se sais daqui para fora, a tua carreira está acabada.
- Estou-me bem a lixar. Ele apontou para a erecção.
- O que é que é suposto eu fazer acerca disto?
Mareei Lambert vivia a uma curta distância dali, na rue de Tournon, no Quartier Luxembourg. Jacqueline precisava de tempo para si própria, por isso foi a pé, demorando-se pelas ruas laterais e estreitas do Quartier Latin. A escuridão a cair, as luzes a acenderem-se nos pequenos restaurantes e nos cafés, o cheiro de cigarros e alho a fritar no ar fresco.
Atravessou para o Quartier Luxembourg. Como tinha chegado tão depressa a isto, pensou - Michel Duval, a tentar ameaçá-la para uma rapidinha entre disparos. Há uns poucos anos atrás, ele não teria pensado nisso. Mas não agora. Agora, ela estava vulnerável e Mareei tinha resolvido testá-la.
Por vezes, arrependia-se de ter entrado nesta profissão. Projectara ser bailarina - e tinha estudado na academia mais reputada de Marselha -, mas aos dezasseis anos foi descoberta por um caçador de talentos de uma agência de modelos de Paris, que deu o nome dela a Mareei Lambert. Mareei marcou uma sessão fotográfica de
teste, deixou-a mudar-se para o seu apartamento, ensinou-a a mover-se e a agir como modelo e não como bailarina. As fotos da sessão de teste foram estonteantes. Tinha dominado a objectiva, irradiado uma sexualidade brincalhona. Mareei colocou discretamente as fotografias a circular por Paris: nenhum nome, nada acerca da rapariga, apenas as fotografias e o cartão dele. A reacção foi instantânea. O telefone não parou de tocar durante uma semana. Os fotógrafos exigiam trabalhar com ela. Os estilistas queriam contratá-la para as suas apresentações de Outono. O boca a boca dos fotógrafos passou de Paris para Milão e de Milão para Nova Iorque. O mundo da moda inteiro queria saber o nome desta misteriosa beldade francesa de cabelos pretos como um corvo.
Jacqueline Delacroix.
Como as coisas eram diferentes agora. O trabalho de qualidade começara a abrandar quando fez vinte e seis anos, mas agora, que tinha trinta e três, os bons trabalhos tinham secado. Ainda recebia algum trabalho nas passarelas em Paris e Milão, no Outono, mas apenas com estilistas de segundo plano. Ainda conseguia o ocasional anúncio de lingerie - Não há nada de errado com as tuas mamas, gostava de dizer Mareei -, mas fora forçado a alugá-la para diferentes tipos de sessões fotográficas. Tinha acabado de fazer uma sessão para uma cervejaria alemã, na qual se fazia passar pela atraente mulher de um homem de meia-idade bem-sucedido.
Mareei avisara que iria acontecer assim. Dissera-lhe para poupar o dinheiro, para se preparar para uma vida depois das passagens de modelos. Jacqueline nunca se dera a esse trabalho - Tinha partido do princípio de que o dinheiro continuaria a jorrar para sempre. Às vezes, tentava lembrar-se para onde fora todo. As roupas. As casas para dormir em Paris e Nova Iorque. As férias extravagantes com as outras raparigas nas Caraíbas ou no Sul do Pacífico. A tonelada de cocaína que havia sugado pelo nariz antes de se endireitar.
Michel Duval tivera razão numa coisa: ela tinha dormido com um homem para conseguir um trabalho, um editor da Vogue francesa chamado Robert Leboucher. Era um trabalho que atraía atenção e publicidade, e do qual precisava desesperadamente - uma sessão
para fatos de banho e roupa de Verão, em Mustique. Podia mudar tudo para si - dar-lhe o dinheiro suficiente para voltar a ter estabilidade financeira, mostrar a toda a gente na indústria que ainda tinha o que era preciso para os trabalhos mais apetecíveis. Pelo menos, por mais um ano, dois, no máximo. E a seguir?
Entrou no prédio de Mareei, enfiou-se no elevador, subiu até ao apartamento dele. Quando bateu à porta, esta escancarou-se. Mareei estava ali parado, olhos esbugalhados, boca aberta.
- Jacqueline, minha ternura! Por favor, diz-me que não é verdade. Diz-me que não pontapeaste o Michel Duval nos tomates! Diz-me que ele inventou a história toda!
- Na verdade, Mareei, dei-lhe um pontapé na pila. Ele lançou a cabeça para trás e riu ruidosamente.
- Tenho a certeza de que foste a primeira mulher que alguma vez fez isso. É para o sacana aprender. Quase destruiu a Claudette. Lembras-te do que ele lhe fez? Coitadinha. Tão linda, tanto talento.
Puxou os lábios para baixo, soltou um resfolego gaulês de desaprovação, pegou-lhe na mão e puxou-a para dentro. Um instante depois, estavam a beber vinho no sofá da sua sala de estar, o zumbido do trânsito do fim de tarde a correr por entre as janelas abertas. Mareei acendeu-lhe o cigarro e apagou com destreza o fósforo, agitando-o. Vestia calças de ganga azuis justas e desbotadas, mocassins pretos e uma camisola de gola alta cinzenta. O cabelo cinzento, que estava a enfraquecer, estava cortado muito curto. Tinha feito um novo liftíng recentemente; os olhos azuis pareciam estranhamente grandes e salientes, como se estivesse constantemente surpreendido. Ela pensou naqueles dias tão longínquos, quando Mareei a trouxera para este apartamento e a preparara para a vida à sua frente. Sempre se sentira segura neste sítio.
- Então com que tipo de parvoíce é que o Michel se saiu agora?
Jacqueline descreveu a sessão, não omitindo nada. Havia poucos segredos entre eles. Quando terminou, Mareei disse:
- Provavelmente, não lhe devias ter dado um pontapé. Está
a ameaçar com um processo.
- Que tente. Todas as raparigas que coagiu a ter sexo irão testemunhar no julgamento dele. Vai destruí-lo.
- O Robert Leboucher ligou-me há uns minutos, antes de chegares. Está a tentar desistir de Mustique. Diz que não consegue trabalhar com uma mulher que dá pontapés nos fotógrafos.
- As notícias correm depressa neste negócio.
- Sempre correram. Acho que consigo convencer o Robert a ter bom senso. Mareei hesitou, depois acrescentou:
- Isto é, se quiseres que o faça.
- Claro que quero que o faças.
- Tens a certeza, Jacqueline? Tens a certeza de que ainda tens o que é preciso para este tipo de trabalho?
Deu um gole grande no vinho, encostou a cabeça ao ombro de Mareei.
- Na verdade, não tenho bem a certeza de que o tenha.
- Faz-me um favor, querida. Vai para tua casa, no Sul, por uns dias. Ou faz uma daquelas viagens longas como costumavas fazer. Tu sabes - aquelas sobre as quais eras tão misteriosa. Descansa um bocado. Desanuvia a cabeça. Pensa a sério. vou tentar convencer o Robert a ter bom senso. Mas tens de decidir se isto é mesmo
o que queres ou não.
Fechou os olhos. Talvez fosse altura de sair enquanto ainda tinha uma réstia de dignidade.
- Tens razão - disse. - Faziam-me bem uns dias no campo. Mas quero que ligues àquele cabrão do Robert Leboucher, agora mesmo, e lhe digas que esperas que cumpra a palavra em relação à sessão em Mustique.
- E se não o conseguir fazer mudar de ideias?
- Diz-lhe que lhe dou um pontapé na pila também. Mareei sorriu.
- Jacqueline, querida, sempre gostei do teu estilo.
BAYSWATER, LONDRES
Fiona Barrows parecia-se muito com o prédio de apartamentos que geria em Sussex Gardens: ampla e atarracada, com uma camada brilhante de tinta que não conseguia esconder o facto de estar a envelhecer e não de uma forma muito graciosa. A curta caminhada do elevador até à entrada do apartamento vago deixou-a ligeiramente sem fôlego. Empurrou a chave para dentro da fechadura com a mão roliça, abriu a porta com um empurrão e um pequeno grunhido.
- Cá estamos nós - cantarolou.
Guiou-o numa curta visita: uma sala de estar mobilada com sofás e cadeiras bastante gastos, dois quartos idênticos com camas de casal e mesinhas-de-cabeceira iguais, uma pequena sala de jantar com uma mesa moderna de vidro colorido de cinzento, uma exígua cozinha de navio com um fogão de dois bicos e um microondas.
Ele regressou à sala de estar, parou em frente da janela, abriu as persianas. Do outro lado da rua estava outro prédio de apartamentos.
- Se quer a minha opinião, não podia pedir uma melhor localização em Londres por este preço - disse Fiona Barrows. - Oxford Street é muito perto e, claro, o Hyde Park fica logo ao virar da esquina. Tem filhos?
- Não, não tenho - respondeu Gabriel, distraído, ainda a olhar para o prédio de apartamentos do outro lado da rua.
- Que tipo de trabalho faz, se não me leva a mal perguntar?
- Sou restaurador de arte.
- Quer dizer que arranja quadros antigos?
- Qualquer coisa do género.
- Também trata das molduras? Tenho uma moldura antiga no meu apartamento que precisa de uns remendos.
- Receio que só as pinturas.
Ela olhou para ele parado à janela, a contemplar o espaço. Um homem atraente, pensou. Mãos bonitas. Mãos boas eram sexy num homem. Imagine-se, um restaurador de arte aqui mesmo no prédio. Seria bom ter por aqui um toque de classe para variar. Oh, se ainda fosse solteira - solteira, vinte anos mais nova e nove quilos mais leve. Era um fulano cuidadoso; conseguia ver isso. Um homem que nunca dava um passo sem pensar nele por todos os ângulos. Provavelmente, iria querer ver mais uma dúzia de apartamentos antes de se decidir.
- Então, o que acha?
- É perfeito --respondeu ele para a janela.
- Para quando é que o quer? Gabriel fechou a persiana.
- Imediatamente.
Durante dois dias, Gabriel observou-o.
No primeiro dia, só o viu uma vez - quando se levantou pouco depois do meio-dia e apareceu brevemente à janela, apenas com umas cuecas pretas vestidas. Tinha cabelos escuros e encaracolados, maçãs do rosto angulosas e lábios carnudos. O corpo era magro e levemente musculado. Gabriel abriu o ficheiro de Shamron e comparou a cara à janela com a fotografia presa por um clipe à capa de papel manilha.
O mesmo homem.
Gabriel podia sentir uma frieza operacional a apoderar-se de si, à medida que estudava a figura à janela. De repente, tudo parecia mais claro e nítido por contraste. Os ruídos pareciam mais altos e mais distintos - a porta de um carro a fechar-se, amantes a discutir no apartamento ao lado, um telefone a tocar sem ser atendido,
a sua chaleira para o chá a apitar com força na cozinha. Uma por urna, desligou estas intrusões e concentrou toda a atenção no homem à janela, do outro lado da rua.
Yusef al-Tawfiki, poeta nacionalista palestiniano em part-time, estudante no University College London em part-time, empregado de um restaurante libanês chamado Kebab Factory, em Edgware Road, em part-time, agente do exército secreto de Tariq a tempo inteiro.
Uma mão apareceu no abdómen de Yusef: pele clara, luminosa em contraste com a sua tez escura. Uma mão de mulher. Gabriel viu de relance um cabelo loiro curto. A seguir, Yusef desapareceu por trás das cortinas.
A rapariga saiu uma hora mais tarde. Antes de entrar no táxi, olhou para cima, na direcção do apartamento, para ver se o amante a estava a observar. A janela estava vazia e as cortinas corridas. Fechou a porta, com um pouco mais de força do que o necessário, e o táxi partiu.
Gabriel fez a primeira avaliação operacional: Yusef não tratava as suas mulheres bem.
No dia seguinte, Gabriel decidiu montar uma vigilância física pouco apertada.
Yusef saiu do apartamento ao meio-dia. Vestia uma camisa branca, calças pretas e um casaco de cabedal preto. Ao pisar o passeio, parou para acender um cigarro e sondar os carros estacionados, à procura de qualquer sinal de vigilância. Apagou o fósforo, agitando-o, e começou a andar na direcção de Edgware Road. Cerca de noventa metros depois, parou de repente, voltou-se e regressou à entrada do prédio de apartamentos.
Uma manobra típica de contravigilância, pensou Gabriel. E um profissional.
Cinco minutos depois, Yusef estava de volta à rua e a andar na direcção de Edgware Road. Gabriel foi à casa de banho, passou gel pelo cabelo curto e pôs uns óculos coloridos de vermelho. A seguir, vestiu o casaco e saiu.
Do outro lado da rua, em frente ao Kebab Factory, ficava um restaurante italiano. Gabriel entrou e sentou-se a uma mesa junto
à janela. Recordou-se das palestras na Academia. Se estivermos a vigiar um alvo a partir de um café, não devemos fazer coisas que nos façam parecer estar a vigiar um alvo a partir de um café, tais como ficarmos sentados sozinhos durante horas, a fingir estarmos a ler um jornal. Demasiado óbvio.
Gabriel transformou-se. Tornou-se Cedric, escritor para uma revista cultural de Paris. Falou inglês com um sotaque francês quase impenetrável. Afirmou estar a trabalhar numa história sobre o porquê de Londres ser tão excitante hoje em dia e Paris tão monótona. Fumou cigarros Gitane e bebeu uma grande quantidade de vinho. Manteve uma conversa entediante com um par de raparigas suecas na mesa ao lado. Convidou uma delas a ir até ao seu quarto de hotel. Quando ela recusou, convidou a outra. Quando ela recusou, convidou as duas. Entornou um copo de Chianti. O gerente, Signor Andriotti, veio até à mesa e avisou Cedric para estar sossegado ou teria de se ir embora.
E, no entanto, durante todo esse tempo, Gabriel estava a vigiar Yusef do outro lado da rua. Vigiou-o enquanto ele lidava com perícia com a multidão do almoço. Vigiou-o quando saiu por momentos do restaurante e subiu a rua até a uma tabacaria que vendia jornais de língua árabe. Vigiou-o enquanto uma rapariga morena, bonita, anotou o número de telefone nas costas de um guardanapo e o enfiou no bolso da camisa dele para não se perder. Vigiou-o enquanto mantinha uma longa conversa com um árabe de ar vigilante. Na verdade, no momento em que Gabriel despejava o Chianti, estava a memorizar a marca e a matrícula do Nissan do árabe. E enquanto afastava o exasperado Signor Andriotti, estava a vigiar Yusef a falar ao telefone. com quem estava a falar? Uma mulher? Um primo em Ramallah? O seu controleiro?
Passada uma hora, Gabriel decidiu que já não era sensato permanecer no café. Pagou a conta, deixou uma gorjeta generosa e pediu desculpas pelo comportamento grosseiro. Signor Andriotti guiou-o até à porta e fê-lo sair gentilmente.
Nessa noite, Gabriel estava sentado na cadeira junto à janela, à espera de que Yusef regressasse a casa. A rua brilhou com o
combóio da noite. Uma mota passou em alta velocidade, um rapaz a conduzir, uma rapariga à pendura, a implorar-lhe para abrandar. Provavelmente nada, mas tomou nota disso no livro de registos, juntamente com as horas: onze e um quarto.
Estava com dores de cabeça devido ao vinho. O apartamento já o começava a deprimir. Quantas noites tinha passado assim? Sentado num estéril apartamento seguro do Departamento ou num manhoso quarto arrendado, a vigiar, a aguardar. Ansiava por algo lindo, por isso enfiou um disco compacto de La Bohème na aparelhagem portátil aos seus pés e reduziu o volume até a um sussurro. Trabalho de espionagem é paciência, Shamron sempre o dissera. Trabalho de espionagem é tédio.
Levantou-se, foi até à cozinha, tomou aspirina para a dor de cabeça. Na porta ao lado, uma mãe e uma filha começaram a discutir num árabe com sotaque libanês. Um copo partiu-se, depois outro, uma porta bateu com força, uma correria lá fora no corredor.
Gabriel voltou a sentar-se e fechou os olhos, e um momento depois estava de volta ao Norte de África, há doze anos atrás.
Os botes de borracha chegaram à costa com a rebentação suave em E.ouad. Gabriel saltou para a água quente e a dar pelas canelas e puxou o bote para a areia. O grupo de comandos Sayaret seguiram-no ao longo da praia, as armas ao seu lado. Algures, um cão ladrava. O aroma a fumo de madeira e carne grelhada pairava no ar. A rapariga estava à espera ao volante de um miniautocarro Volkswagen. Quatro dos comandos entraram no Volkswagen com Gabriel. O resto enfiou-se num par de carrinhas Peugeot estacionadas por trás do miniautocarro. Uns segundos mais tarde, os motores começaram a trabalhar em uníssono e partiram velozmente pela noite fresca de Abril.
Gabriel usava um microfone de lábios ligado a um pequeno transmissor no bolso do casaco. O rádio emitia, através de uma onda segura, para um Boeing
707 especialmente equipado e a voar mesmo ao lado da costa tunisina, num corredor aéreo civil, fazendo-se passar por um El Al charter. Se algo corresse mal, podiam abortar a missão em segundos.
- A Mãe chegou bem - murmurou Gabriel.
Soltou o botão para falar e ouviu as palavras:
- Continuem até à casa da Mãe.
Gabriel segurou a Beretta entre os joelhos durante o percurso e fumou devido aos nervos. A rapariga manteve as duas mãos no volante, os olhos fixos nas ruas escurecidas. Era alta, mais alta do que Leah, com olhos pretos e uma juba de cabelo escuro segura por um simples gancho prateado na nuca. Sabia o caminho tão bem quanto Gabriel. Quando Shamron enviou Gabriel para Tunes para estudar o alvo, a rapariga tinha ido consigo efeito passar-se por sua mulher. Gabriel esticou-se e apertou-lhe o ombro gentilmente enquanto conduzia. Os músculos estavam rígidos.
- Relaxa - disse suavemente, e ela sorriu por um breve instante e soltou um longo suspiro. - Estás a ir muito bem.
Entraram em Sidi Boussaid, um subúrbio abastado de Tunes não muito longe do mar, e estacionaram à entrada da vivenda. Os Peugeots pararam atrás deles. A rapariga desligou o motor. Doze e quinze. Exactamente na hora prevista.
Gabriel conhecia a casa de férias tão bem quanto a sua casa. Estudara-a e fotografara-a de todas as posições privilegiadas possíveis e imagináveis, durante a operação de vigilância. Tinham construído uma réplica perfeita no Negev, onde ele e o resto da equipa ensaiaram o ataque inúmeras vezes. Durante a sessão final, conseguiram levar a cabo a missão em vinte e dois segundos.
- Chegámos à casa da Mãe - Gabriel murmurou ao rádio.
- Façam uma visita à mãe. Gabriel voltou-se e disse:
- Vamos.
Abriu aporta do miniautocarro e atravessou a rua, a andar velozmente, não a correr. Conseguia escutar os passos silenciosos do grupo Sayaret atrás de si. Gabriel inspirou várias vezes para tentar baixar o ritmo cardíaco. A casa de férias pertencia a Khalil el-Wair, mais conhecido por Abu ]ihad, chefe de operações da OLP e o tenente de maior confiança de Yasser Arafat.
Logo aporta da casa de férias, o motorista de Abu ihad estava a dormir atrás do volante de um Mercedes, um presente de Arafat. Gabriel enfiou aponta da Beretta com silenciador no ouvido do motorista, puxou o gatilho, continuou a andar.
A entrada para a casa de férias, Gabriel afastou-se enquanto um par de comandos Sayaret prendiam um plástico silencioso especial à porta pesada.
O explosivo detonou, emitindo menos som do que um bater de palmas, e a porta explodiu. Gabriel liderou o grupo pelo hall de entrada adentro, a Beretta nas mãos estendidas.
Um segurança tunisino apareceu. Enquanto procurava sacar da arma, Gabriel alvejou-o por diversas vezes no peito.
Gabriel debruçou-se sobre o moribundo e disse.
- Diz-me onde ele está e não te dou um tiro no olho.
Mas o segurança limitou-se a soltar um esgar de dor e não respondeu nada.
Gabriel deu-lhe dois tiros na cara.
Subiu as escadas, enfiando um carregador novo na Beretta enquanto andava, e dirigiu-se até ao estúdio onde Abu Jihad passava a maior parte das noites a trabalhar. Irrompeu pela porta e encontrou o palestiniano sentado à frente de uma televisão, a ver notícias da intifada, que estava a ajudar a dirigir a partir de Tunes. Abu jihad tentou chegar a uma pistola. Gabriel avançou enquanto disparava, tal como Shamron o treinara para fazer. Dois dos disparos atingiram Abu Jihad no peito. Gabriel debruçou-se sobre ele, empurrou-lhe a arma contra a têmpora e disparou mais duas vezes. O corpo agitou-se num espasmo de morte.
Gabriel precipitou-se para fora da sala. No corredor, estava a mulher de Abu Jihad, a apertar o filho pequeno nos braços, e a sua filha adolescente. Fechou os olhos e agarrou o rapaz com mais força, à espera que Gabriel a matasse.
- Volte para o seu quarto! - gritou ele em árabe. Depois voltou-se para afilha:
- Vai e cuida da tua mãe.
Gabriel escapuliu-se da casa, seguido pelo grupo Sayaret inteiro. Amontoaram-se no miniautocarro e nos Peugeots e partiram a toda a velocidade. Atravessaram Sidi Boussaid, de volta até Rouad, onde abandonaram os veículos na praia e subiram para os botes. Um instante depois, estavam a acelerar pela superfície negra do Mediterrâneo, em direcção às luzes de um barco-patrulha israelita que aguardava.
- Treze segundos, Gabriel! Fizeste-o em treze segundos!
Era a rapariga. Esticou-se para o tocar, mas ele recuou. Viu as luzes do barco a aproximarem-se. Olhou para o céu preto, à procura do avião de comando, mas viu apenas uma Lua fina e uma chuva de estrelas. A seguir, viu os
rostos da mulher e dos filhos de Abu Jihad, a olhar fixamente para si, com ódio a arder-lhes nos olhos,
Atirou a Beretta para o mar e começou a tremer.
A discussão na porta ao lado tinha acalmado. Gabriel queria pensar em algo sem ser Tunes, por isso imaginou estar a velejar na sua chalupa por Helford Passage, a caminho do mar. Depois pensou no Vecellio, despido de verniz sujo, os estragos de séculos à mostra. Pensou em Peel e, pela primeira vez nesse dia, pensou em Dani. Lembrou-se de estar a puxar o que restava do seu corpo dos destroços flamejantes do carro em Viena, de verificar se, de algum modo, teria sobrevivido, de agradecer a Deus por ter morrido depressa e não ter sobrevivido com um braço e uma perna e metade da cara.
Levantou-se e andou pelo quarto, a tentar fazer com que a imagem desaparecesse, e, por alguma razão, deu por si a pensar na mãe de Peel. Várias vezes, durante a estadia em Port Navas, tinha dado por si a fantasiar com ela. Começava sempre do mesmo modo. Davam de caras um com o outro na aldeia e ela anunciava de forma espontânea que Derek tinha saído para uma longa caminhada pelo Lizard, para tentar emendar o segundo acto.
- Vai demorar horas - dizia. - Quer ir lá a casa tomar um chá?
Respondia que sim, mas em vez de servir chá, ela levava-o até lá acima, para a cama de Derek, e deixava-o descarregar nove anos de abstinência auto-imposta no seu corpo flexível. A seguir, ficava deitada com a cabeça no estômago dele, o cabelo húmido espalhado ao longo do peito dele.
- Não és mesmo um restaurador de arte, pois não? - perguntava na fantasia.
E Gabriel contava-lhe a verdade:
- Mato pessoas para o governo de Israel. Matei Abu Jihad à frente da mulher e dos filhos. Matei três pessoas em treze segundos nessa noite. O primeiro-ministro deu-me uma medalha por isso. Já tive uma mulher e um filho, mas um terrorista pôs uma bomba por baixo do carro deles porque tive um caso com a minha bat leveyha em Tunes.
E a mãe de Peel corria para fora do chalé a gritar, o corpo enrolado num lençol de cama branco, o lençol manchado com o sangue de Leah.
Regressou à cadeira e esperou por Yusef. O rosto da mãe de Peel tinha sido substituído pelo rosto da Virgem Maria de Vecellio. Para ajudar a preencher as horas livres, Gabriel mergulhou um pincel imaginário num pigmento imaginário e curou com ternura a sua bochecha ferida.
Yusef chegou a casa às 3 horas da manhã. Estava uma rapariga consigo, a rapariga que lhe tinha dado o número de telefone naquela tarde no restaurante. Gabriel observou-os a desaparecer pela entrada da frente. Lá em cima, no apartamento, as luzes acenderam-se por breves momentos, antes de Yusef fazer a aparição nocturna à janela. Gabriel desejou-lhe uma boa noite enquanto ele desaparecia por trás da cortina. A seguir, deixou-se cair no sofá e fechou os olhos. Hoje tinha observado. Amanhã começaria a escutar.

AMESTERDÃO

Três horas mais tarde, uma jovem esbelta chamada Inge van der Hoff saiu de um bar no bairro da luz vermelha e caminhou depressa por uma viela estreita. Saia preta de cabedal, meias pretas, casaco preto de cabedal, botas a causar um estardalhaço nos tijolos da viela. As ruas da parte velha ainda estavam escuras, uma neblina leve a cair. Levantou a cara em direcção ao céu. A neblina sabia a sal, cheirava ao mar do Norte. Passou por dois homens, um bêbado e um vendedor de haxixe, baixou a cabeça, continuou a andar. O patrão não gostava que voltasse a pé para casa de manhã, mas após uma longa noite a servir bebidas e a repelir os avanços de clientes embriagados, sabia sempre bem ficar sozinha por uns minutos.
De repente, sentiu-se muito cansada. Precisava de dormir. Pensou: Do que eu preciso mesmo é de uma dose. Espero que a Leila se tenha orientado esta noite.
Leila... Adorava o som do nome dela. Adorava tudo acerca dela. Tinham-se conhecido duas semanas antes no bar. Leila tinha vindo por três noites consecutivas, sempre sozinha. Ficava durante uma hora, bebia um shot de. jenever1, uma Grolscti1, umas passas de haxixe, ouvia a música. De cada vez que Inge ia até à mesa dela, conseguia sentir os olhos da rapariga postos em si. Inge tinha de admitir que
1 licor alcoólico tradicional holandês e da Flandres, de sabor a zimbro. (N. da T.)
2 Marca de cerveja holandesa. (N. da T.)
admitir que gostava. Era uma mulher estonteantemente atraente, com cabelo preto lustroso e grandes olhos castanhos. Por fim, na terceira noite, Inge apresentou-se e começaram a conversar. Leila disse que o pai era um homem de negócios e que ela tinha vivido por todo o mundo. Disse que estava a tirar um ano de descanso dos estudos em Paris, apenas a viajar e a viver a vida. Disse que Amesterdão a encantava. Os canais pitorescos. As casas com empenas, os museus e os parques. Queria ficar por uns meses, ficar a conhecer o sítio.
- Onde é que estás a morar? - perguntara Inge.
- Numa pousada da juventude no Sul de Amesterdão. É horrível. Onde é que moras?
- Numa casa flutuante no Amstel.
- Uma casa flutuante! Que maravilha.
- É do meu irmão, mas ele está em Roterdão durante uns meses a trabalhar num grande projecto de construção.
- Estás a oferecer-te para me deixares dormir na tua casa flutuante durante uns dias?
- Estou a oferecer-me para te deixar ficar o tempo que quiseres. Não gosto de chegar a casa e encontrar um sítio vazio.
A alvorada estava a nascer no rio, as primeiras luzes a brilhar nas casas flutuantes alinhadas no dique. Inge andou uma pequena distância ao longo do cais, depois pisou o convés da sua casa. As cortinas estavam corridas sobre as janelas. Atravessou o convés e entrou na cabina. Esperava encontrar Leila a dormir na cama, mas, em vez disso, estava ao fogão a fazer café. No chão, ao seu lado, estava uma mala. Inge fechou a porta, a tentar esconder o desapontamento.
- Telefonei ao meu irmão em Paris a noite passada, enquanto estavas no trabalho - disse Leila. - O meu pai está muito doente. Tenho de ir já para casa, para estar com a minha mãe. Desculpa, Inge.
- Vais estar fora quanto tempo?
- Uma semana, duas, no máximo.
- Vais voltar?
- Claro que vou voltar!
Beijou a bochecha de Inge e passou-lhe uma chávena de café.
- O meu voo parte daqui a duas horas. Senta-te. Preciso de falar contigo sobre uma coisa.
Sentaram-se na cabina. Leila disse:
- Um amigo meu chega a Amesterdão amanhã. Chama-se Paul. É francês. Estava a pensar se podia cá ficar por alguns dias até arranjar um sítio para ele.
- Leila, não...
- É um bom homem, Inge. Não vai tentar nada contigo, se é com isso que estás preocupada.
- Sei tomar conta de mim.
- Então vais deixar o Paul cá ficar por alguns dias?
- Quantos dias são alguns dias?
- Uma semana, talvez.
- E o que é que recebo em troca?
Leila enfiou a mão no bolso, tirou um pequeno saco de pó branco e segurou-o à frente de si, entre o polegar e o indicador. Inge esticou-se e sacou-o.
- Leila, és um anjo!
- Eu sei.
Inge foi para o quarto e abriu a gaveta de cima da cómoda. Lá dentro, estava o seu kit caixa de seringas, vela, colher, tubo de borracha para atar à volta do braço. Preparou a droga enquanto Leila arrumava as últimas coisas. Introduziu a droga na seringa e enfiou com cuidado a agulha numa veia no braço esquerdo.
Um momento depois, o corpo foi invadido por uma sensação intensamente agradável de dormência. E a última coisa de que se lembrou, antes de ficar inconsciente, foi da visão de Leila, a sua amante linda, a sair pela porta fora e a pairar pelo cais da casa flutuante.
BAYSWATER, LONDRES
Randall Karp, anteriormente do Departamento de Serviços Técnicos, em Langley, Virgínia, nos últimos tempos da dubiamente apelidada Clarendon International Security, em Mayfair, Londres, chegou ao apartamento de Gabriel em Sussex Gardens nos momentos tranquilos que antecedem a alvorada. Vestia um pulôver de lã para se proteger do frio matinal, calças de ganga azul-claras e sandálias de camurça a combinar com as meias grossas de lã de um amante do ar livre. Nas extremidades de cada um dos braços, parecidos com os de uma aranha, estava um saco de lona, um com o seu kit, o outro com as ferramentas do ofício. Pousou os sacos na sala de estar com um ar de contentamento discreto e apreciou o ambiente.
- Gosto do que fizeste com o sítio, Gabe.
Falava com o sotaque monótono do Sul da Califórnia e, desde que Gabriel o vira pela última vez, deixara crescer um rabo-de-cavalo para compensar a calvície que alastrava rapidamente.
- Até tem o cheiro certo. O que é? Caril? Cigarros? Um pouco de leite estragado? Acho que vou gostar de estar cá.
- Estou muito satisfeito. Karp dirigiu-se para a janela.
- Então, onde é que está o nosso rapaz?
- Terceiro andar, directamente por cima da entrada. Cortinas brancas.
- Quem é ele?
- É um palestiniano que deseja fazer mal ao meu país.
- Era capaz de chegar até aí sozinho. Podes desenvolver? Hamas? Hezbollah? Jihad Islâmica?
Mas Gabriel não disse nada e Karp percebeu que não devia insistir. Karp era um consumado técnico de som, e os técnicos estavam acostumados a trabalhar apenas com metade da informação. Tinha atingido um estatuto lendário dentro da comunidade dos serviços secretos ocidental por ter monitorizado, com sucesso, um encontro entre um russo e um agente em Praga, ao prender um microfone na coleira do cão do russo. Gabriel conhecera-o em Chipre, durante uma operação de vigilância conjunta entre americanos e israelitas a um agente líbio. A seguir à operação, por sugestão de Shamron, Gabriel alugou um iate e levou Karp a velejar à volta da ilha. A destreza náutica de Karp era tão boa quanto o trabalho de vigilância e, durante os três dias de cruzeiro, construíram uma ligação profissional e pessoal.
- Porquê eu, Gabe? - perguntou Karp. - Os vossos rapazes têm os melhores brinquedos do ramo. Coisas lindas. Porque é que precisas de um forasteiro como eu para fazer um trabalho simples como este?
- Porque os nossos rapazes ultimamente não têm sido capazes de fazer um trabalho como este sem se queimarem.
- Pois, li que não. Preferia não acabar na cadeia, Gabe, se me estás a entender.
- Ninguém vai para a cadeia, Randy. Karp voltou-se e contemplou a janela.
- Então e o rapaz do outro lado da rua? Vai para a cadeia ou tens outros planos para ele?
- O que é que estás a perguntar?
- Estou a perguntar se este vai acabar numa viela, cheio de buracos de balas de calibre vinte e dois. As pessoas têm o hábito esquisito de acabarem mortas sempre que apareces.
- É um trabalho de vigilância puro e simples. Quero saber com quem está a falar, o que está a dizer. O habitual.
Karp dobrou os braços e estudou os ângulos.
- É um profissional?
- Parece ser bom. Muito disciplinado na rua.
- Podia tentar apontar para o vidro da janela, mas se é um profissional, vai tomar medidas reactivas e fazer-nos a vida num inferno. Para além disso, o laser não é muito discriminativo. Lê as vibrações do vidro e converte-as em som. O trânsito faz o vidro vibrar, o vento, os vizinhos, o leitor de CD dele. Não é a melhor maneira de o fazer.
- O que é que queres fazer?
- Podia apanhar o telefone dele desde a caixa de interface dos assinantes.
- Interface dos assinantes?
Karp levantou a mão e apontou em direcção ao prédio de apartamentos.
- Aquela caixa de metal na parede logo ali à esquerda da entrada. É aí que as linhas da British Telecom entram no edifício. A partir daí, as linhas estendem-se para os assinantes individuais. Podia pôr uma simples escuta rf na linha dele ali mesmo. Transmitiria um sinal analógico e conseguiríamos ouvir as conversas telefónicas a partir daqui, com um rádio FM normal.
- Também preciso de cobertura das salas.
- Se queres uma boa cobertura das salas, vais ter de entrar no apartamento.
- Então entramos no apartamento. !
- É assim que as pessoas vão parar à cadeia, Gabe.
- Ninguém vai para a cadeia.
- O nosso rapaz tem um computador?
- Presumo que sim. É estudante em part-time.
- Podia enfiar-lhe com uma Tempestade.
- Desculpa, Randy, mas estive fora do jogo por alguns anos.
- É um sistema que foi desenvolvido por um cientista holandês chamado Van Eyck. O computador comunica com o monitor transmitindo sinais pelo cabo. Esses sinais têm frequência e podem ser captados por um receptor devidamente sintonizado. Se estiver a fazer negócios ao computador, podemos vigiá-lo a partir daqui. Será como estar por cima do ombro dele enquanto trabalha.
- Faz isso - disse Gabriel. - Também quero o telefone de trabalho.
- Onde é que ele trabalha?
- Num restaurante em Edgware Road.
- Uma escuta rf nunca será capaz de transmitir de Edgware Road até aqui. A perda durante o caminho é demasiado grande. vou precisar de instalar um repetidor, um ponto para um interruptor electromagnético entre o restaurante e aqui, para aumentar o sinal.
- Do que é que precisas? - De um veículo qualquer. ?;
- Um carro serve?
- Um carro será óptimo.
- Arranjo-te um hoje.
- Limpo?
- Limpo.
- Vais arranjá-lo de um dos teus ajudantezinhos?
- Não te preocupes com a forma como o vou arranjar.
- Mas, por favor, não o roubes. Não quero estar a guiar um carro procurado.
Nesse momento, Yusef apareceu à janela e iniciou a inspecção matinal à rua em baixo.
- Então aquele é o nosso rapaz? - perguntou Karp.
- É ele.
- Diz-me uma coisa, Gabe. Exactamente como é que estás a planear entrar no apartamento?
Gabriel olhou para Karp e sorriu.
- Ele gosta de raparigas.
Às duas horas da manhã seguinte, Gabriel e Karp entraram furtivamente na viela por trás do Kebab Factory. Para chegar à caixa de interface dos assinantes, Karp teve de se equilibrar em cima de um caixote de lixo grande, ondulado e cheio de lixo a apodrecer. Forçou a fechadura, abriu a portinha e, durante dois minutos, trabalhou em silêncio, sob o feixe fraco da luz de uma caneta segura entre os dentes da frente.
Gabriel ficou de guarda em baixo, com a atenção concentrada na entrada da viela.
- Falta muito? - murmurou.
- Um minuto, se te calares. Dois, se insistires em falar comigo. Gabriel voltou a olhar para baixo e avistou dois homens com
casacos de cabedal a andar na sua direcção. Um pegou numa garrafa e partiu-a contra uma parede. O amigo quase caiu de riso.
Gabriel afastou-se uns centímetros de Karp, encostou-se a uma parede e fingiu estar doente. Os dois homens acercaram-se. O maior agarrou-lhe o ombro. Tinha uma cicatriz branca em relevo ao longo da bochecha direita e tresandava a cerveja e a uísque. O outro sorriu de forma estúpida, a mostrar os dentes. Era magro e tinha rapado a cabeça. A pele clara brilhava na luz fraca da viela.
- Por favor, não quero problemas - disse Gabriel, num inglês com sotaque francês. - Só estou doente. Bebi demasiado, sabem?
- O raio de um franciú - cantarolou o careca. - E tem ar de maricas, também.
- Por favor, não quero problemas - repetiu Gabriel. Levou a mão ao bolso, tirou várias notas amarrotadas de vinte
libras e estendeu-as.
- Pronto, levem-me o dinheiro. Mas deixem-me em paz.
Mas o grande com a cicatriz arrancou o dinheiro da mão de Gabriel com uma chapada. A seguir, recuou o punho e lançou um soco violento em arco na direcção da cabeça de Gabriel.
Dez minutos mais tarde, estavam de volta ao apartamento. Karp estava sentado em frente ao equipamento na mesa da sala de jantar. Pegou num telemóvel e ligou para o restaurante. Enquanto a chamada estava a tocar, pousou o telefone e aumentou o volume do receptor. Conseguia ouvir uma mensagem gravada a dizer que o Kebab Factory estava fechado e não voltaria a abrir até às onze e trinta do dia seguinte. Marcou o número outra vez e mais uma vez conseguiu ouvir a mensagem pelo receptor. A escuta e o repetidor estavam a funcionar na perfeição.
Enquanto guardava as ferramentas, pensou na contribuição de Gabriel para o trabalho daquela noite. Durara precisamente três segundos, pelos cálculos de Karp. Não viu nada - a sua atenção tinha permanecido fixada no trabalho -, mas ouvira tudo. Tinha havido quatro golpes duros. O último foi o mais cruel. Karp ouvira sem sombra de dúvida ossos a partirem-se. Tinha olhado para baixo apenas depois de terminar a instalação e fechar a caixa. Nunca mais iria esquecer a visão: Gabriel Allon, a debruçar-se sobre cada uma das vítimas, a verificar-lhes a garganta com suavidade, à procura de pulso, certificando-se que não os tinha matado.
Na manhã seguinte, Gabriel saiu para comprar o jornal. Percorreu a caminho até Edgware Road sob um chuvisco fraco e comprou um exemplar do The Times numa banca. Aconchegou o jornal dentro do casaco e caminhou pela rua até a um pequeno mercado. Lá, comprou cola, tesouras e um segundo exemplar do The Times.
Karp ainda estava a dormir quando Gabriel regressou ao apartamento. Sentou-se à mesa com duas folhas de papel simples à frente. No cimo de uma página, escreveu a autorização de segurança - top secret - e o destinatário - Rom, o nome de código para o chefe.
Durante quinze minutos, Gabriel escreveu, a mão direita a rabiscar ritmicamente ao longo da página, a esquerda encostada à têmpora. A prosa era concisa e económica, como Shamron gostava.
Quando terminou, pegou num exemplar do The Times, abriu na página oito e recortou com cuidado um anúncio grande a uma cadeia de lojas de roupa para homens. Deitou fora o resto do jornal, depois pegou no segundo exemplar e abriu-o na mesma página. Colocou o relatório por cima do anúncio, depois colou o recorte por cima do relatório. Dobrou o jornal e enfiou-o no bolso lateral de um pequeno saco de viagem preto. Depois vestiu um casaco, pôs a mala ao ombro e saiu.
Andou até Marble Arch e entrou no metro. Comprou um bilhete na máquina automática e antes de passar pelos torniquetes fez
um telefonema curto. Quinze minutos mais tarde, chegou a Waterloo.
O bodel de Shamron estava à espera num café no terminal de bilhetes Eurostar, a segurar um saco de compras de plástico com o nome de um cigarro americano. Gabriel sentou-se na mesa ao lado, a beber chá e a ler o jornal. Quando terminou o chá, levantou-se e foi-se embora, deixando o jornal para trás. O bodel enfiou-o no saco de compras e partiu na direcção oposta.
Gabriel aguardou no terminal que o seu comboio fosse chamado. Dez minutos mais tarde, embarcou no Eurostar para Paris.

 

AMESTERDÃO
A elegante casa no canal ficava no Herengracht, na Curva Dourada do Anel Central do Canal de Amesterdão. Era alta e ampla, com grandes janelas com vista para o canal e uma empena elevada. O proprietário, David Morgenthau, era o multimilionário presidente da Optique, um dos maiores fabricantes do mundo de óculos de designer. Era também um sionísta fervoroso. Ao longo dos anos, tinha dado milhões de dólares a obras de caridade israelitas e investido ainda mais milhões em negócios israelitas. Americano de origem judia-holandesa, Morgenthau estivera nas direcções de várias organizações judaicas nova-iorquinas e era visto como um falcão no que dizia respeito a assuntos da segurança israelita. Ele e a mulher, Cynthia, uma designer de interiores nova-iorquina de renome, visitavam a sua casa em Amesterdão com regularidade e precisão, duas vezes por ano - uma vez no Verão, a caminho da vivenda à saída de Cannes, e uma vez mais no Inverno, para as férias.
Tariq estava sentado num café do outro lado do canal, a beber chá doce quente. Sabia outras coisas acerca de David Morgenthau
- coisas que não apareciam nas páginas de sociedade ou nas revistas de negócios do mundo. Sabia que Morgenthau era amigo íntimo do primeiro-ministro israelita, que tinha feito certos favores a Ari Shamron e que em tempos servira de elo de ligação secreto entre o governo israelita e a OLP. Por todas essas razões, Tariq ia matá-lo.
Leila preparara um relatório de vigilância pormenorizado
durante a estada em Amesterdão. David e Cynthia Morgenthau saíam todas as manhãs de casa para visitar museus ou ir patinar no gelo para o campo. Durante o dia, a única pessoa que ficava em casa era a empregada, uma rapariga holandesa.
Isto vai ser muito fácil.
Um Mercedes com motorista travou a fundo à porta da casa. Tariq olhou para o relógio: quatro horas da tarde, mesmo na hora. Um homem alto e de cabelo grisalho saiu do carro. Vestia uma camisola grossa e pesadas calças de tecido canelado e carregava dois pares de patins no gelo. Um momento depois, saiu uma mulher atraente, vestida com umas calças justas de lã preta e um pulôver. Ao entrarem na casa, o Mercedes arrancou.
Tariq deixou uns quantos florins em cima da mesa e saiu.
A neve caía sobre o Herengracht, enquanto se deslocava lentamente em direcção à casa flutuante no Amstel. Um par de ciclistas passaram a deslizar de forma silenciosa, deixando faixas de preto na neve recente. O anoitecer numa cidade estrangeira fazia-o sempre ficar melancólico. Luzes a acenderem-se, escritórios a esvaziarem-se, bares e cafés a encherem lentamente. Através das janelas amplas das casas do canal, conseguia ver pais a regressar a casa e aos filhos, maridos a regressar a casa e às mulheres, amantes a reunirem-se, luzes calorosas a trabalhar. Vida, pensou. A vida de outra pessoa, a terra natal de outra pessoa.
Pensou no que Kemel lhe tinha contado durante o encontro no comboio. A antiga némesis de Tariq, Gabriel Allon, fora trazida de volta para ajudar Ari Shamron a encontrá-lo. A notícia não o preocupou. Na realidade, recebeu-a com prazer. Ia tornar as próximas semanas ainda mais doces. Imagine-se, destruir o suposto processo de paz e acertar contas com Gabriel Allon, tudo ao mesmo tempo...
Matar Allon não seria fácil, mas enquanto vagueava ao longo das margens do Herengracht, percebeu que já tinha uma vantagem clara sobre o seu oponente. O simples facto de saber que Allon estava algures por aí à sua procura dava vantagem a Tariq. O caçador
tem de vir até à presa para desferir o golpe mortal. Se Tariq jogasse bem o jogo, podia atrair Allon a uma armadilha. E depois mato-o, como ele matou o Mahmoud.
Os serviços secretos têm duas formas essenciais de tentar apanhar um terrorista. Podem utilizar a sua tecnologia superior para interceptar as comunicações do terrorista, ou podem penetrar na organização deste, introduzindo um espião ou convencendo um agente activo a trocar de lado. Tariq e Kemel tinham cuidado com o modo como comunicavam. Evitavam os telefones e a Internet sempre que possível e utilizavam em vez disso correios. Como o idiota que o Kemel enviou para Samos! Não, não seriam capazes de o localizar interceptando-lhe as comunicações, por isso teriam de tentar penetrar no seu grupo. Era difícil para uma agência de espionagem penetrar em qualquer grupo terrorista, mas ia ser ainda mais difícil entrar na de Tariq. A organização era pequena, muito unida e bastante móvel. Eram dedicados à luta, muito bem treinados e intensamente leais. Nenhum dos seus agentes o ia alguma vez atraiçoar aos judeus.
Tariq podia utilizar isto como vantagem. Tinha dado instruções a Kemel para contactar todos os agentes e lhes dar uma simples instrução. Se algum reparasse em algo fora do normal - tal como vigilância ou uma abordagem de um estranho -, devia-o comunicar de imediato. Se Tariq conseguisse estabelecer que os serviços secretos israelitas estavam envolvidos, seria de imediato transformado de presa em caçador.
Pensou numa operação que havia conduzido enquanto ainda estava com a Jihaz el-Razd, o braço de espionagem da OLP. Tinha identificado um agente do Departamento a trabalhar com cobertura diplomática a partir da Embaixada israelita em Madrid. O funcionário conseguira recrutar diversos espiões no interior da OLP e Tariq decidira que era altura de se vingar. Enviou um palestiniano para Madrid, fazendo-o passar por desertor. O palestiniano encontrou-se com o funcionário israelita dentro da embaixada e prometeu entregar informação sensível sobre os líderes da OLP e os seus hábitos. De início, o israelita recusou. Tariq tinha-o previsto, por isso dera ao agente vários pedaços de informação verdadeira e relativamente
inofensiva - tudo coisas que os israelitas já sabiam. O israelita acreditou que estava a lidar com um verdadeiro desertor e concordou em encontrar-se com o palestiniano uma segunda vez, num café, uma semana mais tarde. Mas desta vez Tariq viajou para Madrid. Entrou no café à hora combinada, disparou dois tiros na cara do funcionário e saiu calmamente.
Chegou ao rio e andou uma pequena distância ao longo do dique, até chegar à casa flutuante da rapariga. Era um sítio deprimente - sujo, cheio de acessórios para drogas e sexo - mas um lugar perfeito para se esconder enquanto planeava o ataque. Atravessou o convés coberto pela neve recente, e entrou na cabina muito fria. Tariq ligou um candeeiro e a seguir ligou o pequeno aquecedor eléctrico. Conseguia ouvir a rapariga a mexer-se no quarto, por baixo dos cobertores. Era um farrapo patético, nada como a rapariga com quem tinha ficado em Paris. Ninguém iria sentir falta desta quando desaparecesse.
Virou-se e olhou para ele através das madeixas do cabelo loiro fino e seco.
- Onde é que estiveste? Estava preocupada contigo.
- Fui só andar um pouco. Adoro andar nesta cidade, especialmente quando está a nevar.
- Que horas são?
- Quatro e meia. Não devias estar a sair da cama?
- Só tenho de sair daqui a uma hora.
Tariq preparou-lhe uma caneca de Nescafé e levou-a até ao quarto. Inge virou-se e apoiou-se no cotovelo. O cobertor caiu-lhe pelo corpo abaixo, expondo-lhe os seios. Tariq entregou-lhe o café e desviou o olhar. A rapariga bebeu o café, os olhos a olhar para ele por cima da asa da caneca. Perguntou:
- Alguma coisa errada?
- Não, nada.
- Porque é que desviaste o olhar?
Sentou-se e afastou os cobertores. Ele queria dizer que não, mas temeu que ela pudesse ficar com suspeitas de um francês que resistisse aos avanços de uma rapariga atraente. Por isso, ficou parado
à borda da cama e deixou-a despi-lo. Uns momentos mais tarde, enquanto explodia dentro dela, não pensava na rapariga mas sim em como iria finalmente matar Gabriel Allon.
Deixou-se ficar na cama muito tempo depois de ela ter saído, a ouvir os sons dos barcos a moverem-se pelo rio. A dor de cabeça veio uma hora mais tarde. Agora vinham com mais frequência três, às vezes quatro por semana. O médico avisara-o de que se iria passar assim. A dor foi-se intensificando devagar e quase perdeu os sentidos com ela. Colocou uma toalha fresca e húmida na cara. Analgésicos, não. Entorpeciam-lhe os sentidos, faziam-no dormir um sono demasiado pesado e provocavam-lhe a sensação de estar a cair vertiginosamente para trás, por um abismo abaixo. Por isso, deixou-se ficar sozinho na cama da rapariga holandesa, numa casa flutuante no rio Amstel, a sentir-se como se alguém lhe estivesse a despejar chumbo fundido no crânio através das órbitas.
VALBONNE, PRÓVENÇA
A manhã estava límpida e fria, a luz do Sol a inundar as colinas. Jacqueline vestiu umas calças de ciclista de camurça e uma camisola de lã e enfiou o cabelo comprido debaixo de um capacete azul-escuro. Pôs uns óculos de sol de ciclista e estudou a aparência ao espelho. Parecia um homem muito bonito, o que era a sua intenção. Fez alongamentos no chão do quarto, depois desceu até ao átrio de entrada, onde a sua bicicleta de corrida Bianchi estava encostada a uma parede. Empurrou a bicicleta pela porta da frente e guiou-a pelo caminho de gravilha. Um instante mais tarde, estava a deslizar através das sombras frias, pela colina comprida e suave abaixo, na direcção da aldeia.
Deslizou por Valbonne e fez a subida comprida e contínua em direcção a Ópio, o ar frio a queimar-lhe as bochechas. Pedalou devagar e a um ritmo regular durante os primeiros quilómetros, enquanto os músculos aqueciam. A seguir pôs uma mudança acima e aumentou a cadência do pedalar. Pouco depois, estava a voar pela estrada estreita, a cabeça para baixo, as pernas a bombear como pistões. O cheiro a alfazema pairava no ar. Ao seu lado, uma plantação de oliveiras descia por uma encosta em socalcos. Saiu debaixo das sombras das oliveiras e chegou a uma planície com a luz do Sol quente. Um momento depois, pôde sentir o primeiro suor por baixo da camisola.
A meio do caminho, verificou o tempo: só trinta segundos a mais do que o seu melhor. Nada mau para uma manhã fria de
Dezembro. Contornou uma rotunda, pôs uma mudança abaixo e começou a subir uma colina longa e íngreme. Uns momentos mais tarde, a respiração estava ruidosa e ofegante e as pernas a arder - demasiados cigarros de um raio! - mas forçou-se a continuar sentada e a avançar pesadamente pela longa colina. Pensou em Michel Duval: Porco! A uns noventa metros do cume, levantou-se do selim, pressionando os pés com fúria nas correias, gritando consigo mesma para continuar e não ceder à dor. Foi recompensada com uma longa descida. Podia ter-se deixado ir, mas em vez disso bebeu um gole rápido e fez um sprint pela colina abaixo. Ao entrar novamente em Valbonne, olhou para o relógio. Um novo recorde pessoal por uma diferença de quinze segundos. Obrigada, Michel Duval.
Saiu de cima da bicicleta e empurrou-a pelas ruas silenciosas da povoação antiga. Na praça central, apoiou a bicicleta contra um pilar, comprou um jornal e ofereceu a si mesma um croissant aquecido e uma chávena cheia de café com leite a escaldar. Quando terminou, foi buscar a bicicleta e empurrou-a ao longo de uma rua com sombras.
No final de uma fila de chalés, com vista para o parque de estacionamento da povoação, ficava um edifício comercial. Um letreiro estava pendurado na janela: todo o piso zero estava disponível. Estava livre há meses. Jacqueline pôs as mãos em concha à volta dos olhos e espreitou através do vidro sujo: um espaço aberto e grande, chão de madeira, tecto alto. Perfeito para um estúdio de dança. Tinha uma fantasia. Ia abandonar a carreira de modelo e abrir uma escola de bailei em Valbonne. Ia servir as raparigas locais durante a maior parte do ano, mas em Agosto, quando os turistas inundassem Valbonne para as férias de Verão, abriria a escola aos visitantes. Ia ensinar durante umas horas por dia, andar de bicicleta pelas colinas, beber café e ler no café da praça. Mudar de nome e de imagem. Tornar-se Sarah Halévy outra vez - Sarah Halévy, a rapariga judia de Marselha. Mas para abrir a escola precisava de dinheiro e para conseguir dinheiro tinha de prosseguir a carreira de modelo. Tinha de voltar a Paris e aturar homens como Michel Duval durante um pouco mais de tempo. Depois ficaria livre.
Montou a bicicleta e pedalou devagar de regresso a casa. Era uma vivenda bastante pequena, da cor do arenito e com um
telhado de telhas vermelhas, escondida por uma fila de imponentes ciprestes. No jardim grande e em socalcos, com vista para o vale, alecrim e alfazema cresciam de modo selvagem entre as oliveiras e as pimenteiras murchas. No princípio do jardim, estava uma piscina rectangular.
Jacqueline abriu a porta e entrou, encostou a bicicleta no átrio de entrada e foi até à cozinha. A luz vermelha do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no botão de reprodução e fez café enquanto ouvia as mensagens.
Yvonne tinha ligado a convidá-la para uma festa na casa de um jogador de ténis espanhol milionário em Monte Carlo. Michel Duval ligara para pedir desculpas pelo comportamento na sessão fotográfica do outro dia. A nódoa negra estava a sarar bem. Mareei tinha ligado para dizer que falara com Robert. A sessão em Mustique estava outra vez de pé.
- Partes daqui a três semanas, meu anjo, por isso deixa-te do queijo e da pasta e põe o teu rabo lindo em forma.
Pensou no percurso de bicicleta e sorriu. A cara podia parecer ter trinta e três anos, mas o corpo nunca estivera melhor.
- Ah, já agora, um tipo chamado Jean-Claude passou pelo escritório. Disse que queria falar contigo em pessoa acerca de um trabalho.
Jacqueline pousou a cafeteira e olhou para a máquina.
- Disse-lhe que estavas no Sul. Disse que estava a caminho de lá e que te iria procurar quando chegasse. Não te zangues comigo, meu anjo. Pareceu ser um tipo decente. Jeitoso, também. Fiquei louco de ciúmes. Adoro-te. Ciao.
Carregou no botão para rebobinar e voltou a escutar a mensagem, para ter a certeza de que a tinha ouvido bem.
- Ah, já agora, um tipo chamado Jean-Claude passou pelo escritório. Disse que queria falar contigo em pessoa acerca de um trabalho.
Carregou no botão para apagar, a mão a tremer, o coração a bater contra as costelas.
Jacqueline estava sentada lá fora, no terraço banhado pela luz do Sol, a pensar na noite em que fora recrutada por Ari Shamron. Tinha utilizado algum do dinheiro ganho como modelo para comprar um presente de reforma aos pais: um pequeno apartamento em Herzliya virado para o mar. Visitava-os em Israel sempre que conseguia escapar-se por uns dias. Sentia-se completamente apaixonada pelo país. Era o único lugar onde se sentia verdadeiramente livre e segura. Mais do que tudo o resto, adorava o facto de não ter de esconder que era judia.
Uma noite, num café dejag em Telavive, um homem mais velho apareceu-lhe à mesa. Careca, bastante feio, um casaco de bombardeiro com um rasgão no lado direito.
- Olá, Sarah - disse, sorrindo com confiança. - Posso fazer-lhe companhia?
Olhou para cima, assustada.
- Como é que sabe que o meu nome é Sarah?
- Na verdade, sei bastante sobre si. Sou um grande fã.
- Quem é o senhor?
- Chamo-me Ari. Trabalho para uma organização vagamente ligada ao Ministério da Defesa chamada Instituto para a Coordenação. Chamamos-lhe apenas o Departamento.
- bom, estou realmente contente por termos esclarecido isso. Ele lançou a cabeça para trás e riu-se.
- Gostaríamos de falar consigo sobre um trabalho. Importa-se que a trate por Sarah? Tenho dificuldade em pensar em si como Jacqueline.
- Os meus pais são os únicos que ainda me chamam Sarah.
- Não há velhos amigos?
- Só tenho novos amigos - respondeu, a voz tingida de tristeza. - Pelo menos, pessoas que afirmam ser minhas amigas. Todos os meus amigos de Marselha foram caindo depois de me ter tornado modelo. Acharam que tinha mudado por causa do meu trabalho.
- Mas mudou, não mudou, Sarah?
- Sim, suponho que sim.
A seguir pensou: Porque é que estou a dizer isto a um homem que ainda agora conheci? Será que ele dá a volta a toda a gente assim tão depressa?
- E não é só um trabalho, pois não, Sarah? É um modo de vida. Dá-se com os designers da moda e os fotógrafos famosos. Vai a festas espampanantes e a restaurantes exclusivos com actores e estrelas de rock eplayboys milionários. Como aquele conde italiano com quem teve um caso em Milão, aquele que chegou aos jornais. com certeza que não é a mesma rapariguinha de Marselha. A rapariguinha judia cujos avós foram assassinados pelos nazis em Sobibor.
- Sabe mesmo muito sobre mim.
Olhou com atenção para ele. Estava habituada a estar rodeada de pessoas atraentes e sofisticadas, mas agora aqui estava ela na companhia deste homem bastante feio, com óculos de aros de aço e um rasgão no casaco. Havia algo de primitivo nele - o Sabra rude de que sempre ouvira falar. Era o tipo de homem que não sabia fazer um laço e não se importava. Achava-o completamente encantador. Mas, acima de tudo, intrigava-a.
- Sendo uma judia de Marselha, sabe que o nosso povo tem muitos inimigos. Muitas pessoas gostariam de nos destruir, deitar abaixo tudo o que construímos nesta terra.
Enquanto falava, as mãos cortavam o ar.
- Ao longo dos anos, Israel tem travado muitas guerras com os seus inimigos. Neste momento, não há combate, mas Israel continua envolvido numa outra guerra, uma guerra secreta. Esta guerra é incessante. Nunca irá terminar. Por causa do seu passaporte e, em boa verdade, do seu aspecto, poderia ser uma grande ajuda para nós.
- Está a pedir-me para me tornar uma espia? Ele riu-se. -
- Receio que não seja nada assim tão dramático.
- O que quer que eu faça?
- Quero que se torne uma bat leveyha.
- Peço desculpa, mas não falo hebreu.
- Bat leveyha é o termo que utilizamos para um agente assistente feminino. Como bat leveyha, poderá ser chamada a desempenhar
uma série de funções para o Departamento. Às vezes, poderá ser-lhe pedido para se fazer passar pela mulher ou namorada de um dos nossos funcionários. Às vezes, poderá ser-lhe pedido para obter um pedaço vital de informação, que uma mulher do seu tipo poderá conseguir mais prontamente do que um funcionário.
Parou de falar por um momento e demorou o seu tempo a acender o cigarro seguinte.
- E, às vezes, poderemos pedir-lhe para desempenhar um outro tipo de missão. Uma missão que algumas mulheres consideram demasiado desagradável para pensarem sequer nela.
- Por exemplo?
- Poderemos pedir-lhe para seduzir um homem, um dos nossos inimigos, por exemplo, de maneira a colocá-lo numa situação comprometedora.
- Há imensas mulheres lindas em Israel. Por que carga d'água é que haviam de precisar de mim?
- Porque não é israelita. Porque tem um passaporte francês legal e um emprego legal.
- Esse emprego legal, como lhe chama, paga-me bastante bem. Não estou preparada para abrir mão dele.
- Se decidir trabalhar para nós, farei com que as suas missões sejam curtas e que seja compensada pelos salários perdidos.
Sorriu afectuosamente.
- Apesar de achar que não consigo suportar os seus honorários habituais de três mil dólares à hora.
- Cinco mil - respondeu ela, sorrindo.
- Os meus parabéns.
- Tenho de pensar nisso.
- Compreendo, mas enquanto considera a minha oferta, lembre-se de uma coisa. Se tivesse havido Israel durante a Segunda Guerra Mundial, o Maurice e a Rachel Halévy poderiam ainda estar vivos. O meu dever é assegurar a sobrevivência do Estado, para que da próxima vez que algum louco resolva transformar o nosso povo em sabão, ele tenha um lugar onde se refugiar. Espero que me ajude.
Deu-lhe um cartão com um número de telefone e disse para lhe
telefonar com uma decisão na manhã seguinte. A seguir, apertou-lhe a mão e afastou-se. Era a mão mais dura que ela alguma vez sentira.
Nunca tinha havido na cabeça dela nenhuma dúvida sobre qual seria a resposta. Por qualquer padrão objectivo, vivia uma vida excitante e sedutora, mas parecia enfadonha e sem significado comparada com aquilo que Ari Shamron estava a oferecer. As sessões entediantes, os agentes aos apalpões, os fotógrafos lamurientos - de repente, tudo parecia ainda mais plástico e pretensioso.
Regressou à Europa para a temporada da moda de Outono tinha compromissos em Paris, Milão e Roma - e em Novembro, quando as coisas acalmaram, disse a Mareei Lambert que estava exausta e que precisava de um descanso. Mareei desbloqueou-lhe o calendário, beijou-lhe a bochecha e disse-lhe para se afastar o máximo possível de Paris. Nessa noite, foi até ao balcão da El Al no Aeroporto Charles de Gaulle, levantou o bilhete em primeira classe que Shamron lhe tinha deixado e embarcou num voo para Telavive.
Estava à sua espera quando chegou ao Aeroporto Ben-Gurion. Acompanhou-a até a uma sala de espera especial no interior do terminal. Tudo estava concebido para lhe fazer transmitir que agora fazia parte da elite. Que estava a atravessar uma porta secreta e que a sua vida nunca mais voltaria a ser a mesma. Do aeroporto, levou-a rapidamente pelas ruas de Telavive, até a um luxuoso apartamento seguro no Opera Tower, com uma grande varanda com vista para a marginal e para a Praia Ge'ula.
- Esta será a tua casa durante as próximas semanas. Espero que seja do teu agrado.
- É absolutamente linda.
- Hoje, descansas. Amanhã, começa o trabalho a sério.
Na manhã seguinte, dirigiu-se à Academia e suportou um curso intensivo sobre as artes do ofício e a doutrina do Departamento. Ele deu-lhe palestras acerca dos princípios fundamentais da comunicação impessoal. Treinou-a a utilizar uma Bereta e a fazer cortes estratégicos na roupa, para poder agarrá-la depressa. Ensinou-a a abrir fechaduras e a fazer moldes de chaves, utilizando um aparelho
especial. Ensinou-a a detectar e a despistar vigilância. Todas as tardes, passava duas horas com um homem chamado Oded, que lhe ensinava árabe rudimentar.
Mas a maior parte do tempo na Academia era passado a desenvolver a memória e a consciência. Ele colocava-a sozinha numa sala e projectava dúzias de nomes num ecrã, obrigando-a a memorizar o máximo possível. Levava-a para um pequeno apartamento, deixava-a olhar para a sala por não mais do que uns segundos, a seguir puxava-a para fora e fazia-a descrevê-la em pormenor. Levou-a a almoçar à cantina e pediu-lhe para descrever a empregada que tinha acabado de os servir. Jacqueline confessou que não fazia ideia.
- Tens de estar consciente do que te rodeia a toda a hora disse ele. - Deves partir do princípio de que a empregada é um potencial inimigo. Tens de estar a sondar, a observar e a examinar constantemente. E, no entanto, tens de parecer não estar a fazer nada disso.
O treino não terminava ao pôr do Sol. Todas as noites, Shamron aparecia no Opera Tower e levava-a para o interior das ruas de Telavive para mais. Levou-a ao escritório de um advogado, mandou-a arrombá-lo e roubar um conjunto de ficheiros específico. Levou-a a uma rua cheia de boutiques chiques e mandou-a roubar algo.
- Estás a brincar.
- E se estás em fuga num país estrangeiro? E se não tens dinheiro nem maneira de nos contactar? A polícia anda à tua procura e precisas de mudar de roupa depressa.
- Não sou propriamente feita para andar a roubar lojas.
- Faz-te passar despercebida.
Entrou numa boutique e passou dez minutos a experimentar roupas. Quando regressou à entrada, não tinha comprado nada, mas dentro da mala estava um sexy vestido preto de festa.
Shamron disse:
- Agora quero que descubras um sítio para te mudares e livrares das outras roupas. A seguir, vem ter comigo lá fora, junto à barraca dos gelados na marginal.
Estava um fim de tarde quente para o início de Novembro
e havia muitas pessoas a passear e a apanhar ar. Caminharam de braço dado ao longo do cais, como um velho rico e a amante, Jacqueline a lamber maliciosamente um cone de gelado.
- Estás a ser seguida por três pessoas - disse Shamron. Vai ter comigo ao bar daquele restaurante daqui a meia hora e diz-me quem são. E não te esqueças que vou enviar um kidon para as matar, por isso não te enganes.
Jacqueline iniciou um procedimento típico de contravigilância, tal como Shamron lhe tinha ensinado. A seguir, foi até ao bar e encontrou-o sentado sozinho a uma mesa no canto.
- Casaco de cabedal preto, calças de ganga azuis com uma camisola de Yale, rapariga loira com uma rosa tatuada na omoplata.
- Errado, errado, errado. Acabaste de condenar à morte três turistas inocentes. Vamos experimentar outra vez.
Apanharam um táxi para andar uma pequena distância, até Rothschild Boulevard, uma marginal larga revestida por árvores, bancos, quiosques e cafés chiques.
- Mais uma vez, estão três pessoas a seguir-te. Vai ter comigo ao Café Tamar daqui a trinta minutos.
- Onde é o Café Tamar?
Mas Shamron virou-se e desapareceu na corrente de peões. Meia hora mais tarde, tendo localizado o chique Café Tamar em Sheinkin Street, voltou a juntar-se a ele.
- A rapariga com o cão, o rapaz com os auscultadores e a T-shirt do Springsteen, o miúdo do kibbut com a Uzi.
Shamron sorriu.
- Muito bem. Só mais um teste esta noite. Vês aquele sentado ali sozinho?
Jacqueline acenou com a cabeça.
- Mete conversa com ele, descobre tudo o que puderes e a seguir atrai-o para o teu apartamento. Quando chegares ao átrio, arranja uma maneira de te desenvencilhares da situação sem fazer
uma cena.
Shamron levantou-se e afastou-se. Jacqueline olhou, olhos nos olhos, para o homem e, alguns minutos mais tarde, ele veio ter consigo. Disse que se chamava Mark, que era de Boston e que
trabalhava para uma empresa de informática com negócios em Israel. Conversaram durante uma hora e começaram a namoriscar. Mas quando o convidou para ir até ao seu apartamento, confessou que era casado.
- É pena respondeu ela. - Podíamos ter passado uns belos momentos.
Ele mudou de ideias rapidamente. Jacqueline pediu licença para ir à casa de banho e em vez disso dirigiu-se a um telefone público. Marcou o número da recepção do Opera Tower e deixou uma mensagem a si mesma. Depois voltou para a mesa e disse:
- Vamos.
Foram a pé até ao apartamento. Antes de subirem, foi à recepção verificar se havia mensagens.
- A sua irmã ligou de Herzliya - respondeu o recepcionista;
- Tentou o apartamento, mas ninguém atendeu, por isso ligou para aqui e deixou uma mensagem.
- Qual é?
- O seu pai teve um ataque de coração.
- Oh, meu Deus!
- Levaram-no para o hospital. Ela diz que vai ficar bom, mas quer que vá assim que puder.
Jacqueline voltou-se para o americano.
- Tenho muita pena, mas tenho de ir.
O americano beijou-lhe a bochecha e afastou-se, cabisbaixo. Shamron, que estava a observar toda a cena do outro lado do átrio, avançou, de sorriso aberto como um rapazinho.
- Isso foi pura poesia. Sarah Halévy, és um talento natural.
A primeira missão não a obrigou a sair de Paris. O Departamento estava a tentar recrutar um cientista iraquiano de armas nucleares que vivia em Paris e trabalhava com os fornecedores franceses do Iraque. Shamron resolveu preparar uma "armadilha de mel" e deu o trabalho a Jacqueline. Conheceu o iraquiano num bar, seduziu-o e começou a passar a noite no apartamento dele. Ele apaixonou-se perdidamente por ela. Jacqueline disse ao amante que, se a queria continuar a ver, teria de se encontrar com um amigo dela,
que tinha uma proposta de negócio. O amigo acabou por ser Ari Shamron, a proposta, simples: trabalha para nós ou vamos contar à tua mulher e aos gorilas da segurança de Saddam que tens andado a foder uma agente israelita. O iraquiano concordou em trabalhar para Shamron.
Jacqueline tivera a primeira experiência de trabalho de espionagem. Achou-o excitante. Tinha desempenhado um pequeno papel numa operação que desferira um golpe nas ambições nucleares do Iraque. Ajudara a proteger o Estado de Israel de um inimigo que tudo faria para o destruir. E, de uma maneira pequena, tinha vingado as mortes dos avós.
Teve de esperar mais um ano para a missão seguinte: seduzir e chantagear um funcionário de espionagem sírio em Londres. Foi outro sucesso estonteante. Nove meses mais tarde, foi enviada para Chipre para seduzir um executivo de uma empresa química alemã que estava a vender os seus artigos à Líbia. Desta vez havia uma diferença. Shamron queria que drogasse o alemão e fotografasse os documentos da sua pasta enquanto estava inconsciente. Uma vez mais, cumpriu o trabalho sem dificuldades.
A seguir à operação, Shamron fê-la voar até Telavive, entregou-lhe uma menção secreta e disse-lhe que tinha terminado. Não demorava muito para as coisas circularem pelo submundo da espionagem. O próximo alvo poderia suspeitar que a bonita modelo francesa era mais do que parecia. E poderia muito bem acabar morta.
Implorou-lhe por mais um trabalho. Shamron concordou com relutância.
Três meses mais tarde, enviou-a para Tunes.
Jacqueline achara estranho Shamron ter-lhe dado instruções para se encontrar com Gabriel Allon numa igreja em Turim. Encontrou-o em cima de uma plataforma, a restaurar um fresco que representava a Ascensão. Trabalhava com homens bonitos todos os dias na sua vida pública, mas havia algo em Gabriel que a deixou sem fôlego. Era a concentração intensa nos seus olhos. Jacqueline
queria que olhasse para ela como estava a olhar para o fresco. Decidiu que iria fazer amor com este homem antes da operação terminar.
Viajaram para Tunes na manhã seguinte e deram entrada num hotel na praia. Durante os primeiros dias, deixou-a sozinha enquanto trabalhava. Regressava ao hotel todas as noites. Jantavam, passeavam pelo mercado ou pela estrada ao longo da praia, depois voltavam para o quarto. Falavam como se fossem amantes, para o caso de o quarto estar sob escuta. Dormia vestido, ficava inflexivelmente do seu lado da cama, uma parede de Plexiglas a separá-los.
Ao quarto dia, levou-a consigo enquanto trabalhava. Mostrou-lhe a praia onde os comandos desembarcariam e a vivenda que era propriedade do alvo. A paixão por ele tornou-se mais profunda. Aqui estava um homem que tinha devotado a vida a defender Israel dos inimigos. Sentia-se insignificante e frívola em comparação. Também descobriu que não conseguia tirar os olhos de cima dele. Queria passar-lhe as mãos pelo cabelo curto, tocar-lhe na cara e no corpo. Enquanto estavam deitados na cama juntos nessa noite, rebolou para cima dele sem aviso e beijou-lhe os lábios, mas ele afastou-a e fez uma cama de campanha beduína para si no chão.
Jacqueline pensou: Meu Deus, fiz uma completa figura de parva.
Passados cinco minutos, voltou para a cama e sentou-se ao seu lado. Depois inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Também quero fazer amor contigo, mas não posso. Sou casado.
- Não me importa.
- Quando a operação terminar, nunca mais me vais ver.
- Eu sei.
Ele era exactamente como ela imaginava: habilidoso e engenhoso, meticuloso e gentil. Nas mãos dele, sentia-se como um dos seus quadros. Quase que conseguia sentir os olhos a tocar-lhe. Sentiu um orgulho estúpido por ter sido capaz de penetrar as suas barreiras de autocontrolo e seduzi-lo. Queria que a operação continuasse para sempre. Não podia, é claro, e a noite em que deixaram Tunes foi a mais triste da sua vida.
Depois de Tunes, lançou-se a fundo na carreira de modelo. Disse a Mareei para aceitar todas as ofertas que aparecessem. Trabalhou sem parar durante seis meses, levando-se até a um ponto de exaustão. Até tentou sair com outros homens. Nada resultou. Pensava em Gabriel e Tunes constantemente. Pela primeira vez na vida, sentia obsessão e, no entanto, era completamente impotente para fazer algo em relação a isso. Em desespero, foi ter com Shamron e pediu-lhe para a pôr em contacto com Gabriel. Ele recusou. Começou a ter uma fantasia terrível acerca da morte da mulher de Gabriel. E quando Shamron lhe contou o que acontecera em Viena, sentiu uma culpa insuportável.
Não tinha visto nem falado com Gabriel desde essa noite em Tunes. Não conseguia imaginar porque haveria ele de a querer ver agora. Mas, uma hora mais tarde, enquanto observava o carro dele a parar à entrada, sentiu um sorriso a espalhar-se pela cara. Pensou: Graças a Deus que estás aqui, Gabriel, porque também estou a precisar de um pouco de restauro.
TELAVIVE
O director executivo da CIA, Adrian Cárter, era um homem facilmente subestimado. Era uma característica que utilizara com bons resultados durante a longa carreira. Era pequeno e magro como um maratonista. O cabelo escasso e os óculos sem aros davam-lhe um ar ligeiramente clínico, as calças e o casaco tinham aspecto de terem sido usados a dormir. Parecia deslocado na sala de conferências fria e moderna no Boulevard do Rei Saul, como se tivesse entrado no edifício por engano. Mas Ari Shamron tinha trabalhado com Cárter quando estava à frente do Centro de Contraterrorismo da CIA. Sabia que Cárter era um agente experimentado - um homem que falava seis línguas fluentemente e podia desaparecer nas vielas traseiras de Varsóvia ou Beirute com igual facilidade. Também sabia que os seus talentos em campo eram apenas igualados pela perícia nas trincheiras burocráticas. Um adversário de respeito, sem dúvida.
- Alguns avanços na investigação de Paris? - perguntou Cárter.
Shamron abanou a cabeça devagar.
- Receio que não.
- Nada de nada, Ari? Acho difícil acreditar nisso.
- Assim que soubermos alguma coisa, serás o primeiro a saber. Então e tu? Alguma intercepção interessante que te apeteça partilhar? Algum funcionário árabe amistoso te contou alguma coisa que estaria relutante em partilhar com a entidade sionista?
Cárter tinha acabado de completar uma digressão regional de duas semanas, conferenciando com chefes dos serviços secretos desde o golfo Pérsico até ao Norte de África. O Boulevard do Rei Saul foi a última paragem.
- Nada, receio - respondeu. - Mas temos ouvido uns quantos sussurros de algumas das nossas outras fontes.
Shamron franziu o sobrolho.
- Ai sim?
- Dizem-nos que o que se ouve na rua é que o Tariq esteve por trás do ataque em Paris.
- O Tariq tem estado calmo há já algum tempo. Porque é que se iria sair agora com uma coisa do género de Paris?
- Porque está desesperado - respondeu Cárter. - Porque os dois lados estão a aproximar-se de um acordo e o Tariq não quereria outra coisa que não fosse estragar-lhes a festa. E porque o Tariq se vê a si próprio como um homem da História, e a História está prestes a deixá-lo para trás.
- É uma teoria interessante, mas não vimos provas que sugerissem que o Tariq estivesse envolvido.
- Se recebessem tais provas, iam partilhá-las connosco, claro.
- Claro.
- Não preciso de te lembrar que uma cidadã americana foi assassinada juntamente com o vosso embaixador. O presidente fez uma promessa ao povo americano de que o seu assassino seria levado à justiça. Conto ajudá-lo a cumprir essa promessa.
- Podes contar com o apoio deste serviço - respondeu Shamron, piedosamente.
- Se foi o Tariq, gostaríamos de o encontrar e trazer para os Estados Unidos, para ir a julgamento. Mas não poderemos fazer isso se ele aparecer morto algures, cheio de buracos de balas de calibre vinte e dois.
- Adrian, o que é que estás a tentar dizer-me?
- O que estou a dizer é que o homem na grande casa branca da Pennsylvania Avenue quer a situação tratada de uma maneira civilizada. Se se acabar por descobrir que foi o Tariq quem matou
a Emily Parker em Paris, quer vê-lo julgado num tribunal americano. Nada de tretas de olho por olho nisto, Ari, nada de execuções em ruelas.
- É óbvio que temos uma diferença de opinião sobre como lidar melhor com um homem como o Tariq.
- O presidente também acha que nesta altura uma morte em represália poderá não ser no melhor interesse do processo de paz. Acha que se fores responder com um assassinato, estarias a lançar-te nas mãos daqueles que queres derrubar.
- E o que queria o presidente que fizéssemos quando os terroristas matam os nossos diplomatas a sangue-frio?
- Mostrem algum comedimento, porra! Na nossa humilde opinião, talvez fosse mais sensato encostarem-se às cordas durante um par de assaltos e aguentar uns quantos golpes no corpo se tiver de ser. Dêem aos negociadores espaço para manobrar. Se os radicais atacarem depois de terem um acordo alinhavado, então não deixem de ripostar. Mas não piorem agora as coisas procurando vingança.
Shamron inclinou-se para a frente e esfregou as mãos.
- Posso assegurar-te, Adrian, de que nem o Departamento nem nenhum outro braço dos serviços de segurança israelitas estão a planear qualquer operação contra qualquer membro de qualquer grupo terrorista árabe, incluindo o Tariq.
- Admiro a vossa prudência e coragem. E o presidente também o fará.
- E eu admiro-vos pela vossa franqueza.
- Gostaria de te dar um pequeno conselho de amigo, se puder.
- Se fazes favor - respondeu Shamron.
- Israel celebrou acordos com vários serviços de informação do Ocidente, comprometendo-se a não realizar operações no solo desses países sem notificar primeiro o serviço de informação respectivo. Posso assegurar-te de que a Agência e os seus amigos reagirão com dureza se esses acordos forem violados.
- Isso soa mais a um aviso do que a um conselho entre amigos.
Cárter sorriu e deu um gole no café.
O primeiro-ministro estava embrenhado numa pilha de documentos na secretária quando Shamron entrou na sala. Shamron sentou-se e informou-o rapidamente acerca do encontro com o homem da CIA.
- Conheço o Adrian Cárter demasiado bem - disse Shamron.
- É um bom jogador de póquer. Sabe mais do que aquilo que está a dizer. Está a dizer-me para recuar ou vai haver sarilho.
- Ou então suspeita de qualquer coisa mas não tem o suficiente para o dizer às claras - respondeu o primeiro-ministro. - Tens de decidir qual é o caso.
- Preciso de saber se ainda quer que leve a operação a cabo nestas novas circunstâncias.
O primeiro-ministro levantou por fim os olhos da papelada.
- E eu preciso de saber se consegues levar a operação a cabo sem a CIA descobrir.
- Consigo.
- Então avança e não faças merda.
VALBONNE, PROVENÇA
A tarde tinha ficado mais fria. Jacqueline preparou umas sanduíches enquanto Gabriel empilhava madeira de oliveira na lareira e a acendia com jornais. Estava de cócoras, a observar as chamas fracas a lamber a madeira. De segundos em segundos, esticava-se até ao fogo e fazia um ou outro pequeno ajustamento na disposição dos g ravetos ou na posição de um dos pedaços de madeira maiores. Parecia ser capaz de segurar a madeira a escaldar durante muito tempo, sem desconforto. Por fim, levantou-se e bateu com as mãos uma na outra para retirar os restos do pó da madeira e da fuligem. Move-se com tanta delicadeza, pensou Jacqueline - um bailarino a erguer-se após ter levado o joelho ao chão. Parecia de certa forma mais novo. Menos grisalho no cabelo, os olhos mais claros e luminosos.
Colocou a comida numa travessa e levou-a até à sala de estar. Durante anos, imaginara uma cena assim. Num certo sentido, tinha feito esta sala para Gabriel, tinha-a decorado de uma maneira que imaginara que ele pudesse gostar - o chão de pedra, os tapetes rústicos, as mobílias confortáveis.
Colocou a travessa em cima de uma mesa de café e sentou-se
no sofá. Gabriel sentou-se ao seu lado e foi deitando colheres de
açúcar no café. Sim, isto seria o que teria acontecido se tivéssemos terminado
juntos. Uma refeição simples, uma viagem de carro pelas montanhas,
uma passeata por uma vila antiga na colina. Talvez pela costa
abaixo, para deambular pelo Velho Porto de Cannes ou ver um filme no cinema. Depois para casa, para fazer amor à luz da lareira. Pára com isso, Jacqueline. Gabriel disse:
- Estou outra vez a trabalhar para o Departamento e preciso da tua ajuda.
Então, afinal de contas eram só negócios. Gabriel tinha sido agarrado outra vez e precisava dela para um trabalho. Ele ia fazer de conta que o passado nunca acontecera. Talvez fosse mais fácil desse modo.
- O Ari contou-me que tinhas deixado o Departamento.
- Pediu-me para regressar por um trabalho. Sabes como o Shamron consegue ser quando quer qualquer coisa.
- Lembro-me - respondeu Jacqueline. - Ouve, Gabriel, não sei muito bem como dizer isto, por isso vou simplesmente dizê-lo. Lamento muito aquilo que aconteceu em Viena.
Ele afastou o olhar, os olhos frios e sem expressão. Claramente, Leah era algo em que não se podia tocar. Jacqueline tinha visto uma fotografia sua uma vez. A mulher de Gabriel era exactamente como imaginara - uma Sabra de cabelos escuros, a transbordar do tipo de fogo e confiança que Jacqueline ansiara por possuir quando era uma judia a crescer em França. O facto de ele ter escolhido uma mulher como Leah apenas fizera Jacqueline amar mais Gabriel.
Mudou abruptamente de assunto:
- Suponho que tenhas ouvido falar do ataque ao nosso embaixador em Paris?
- Claro. Foi terrível.
- O Shamron está convencido de que o Tariq esteve por trás do ataque.
- E quer descobri-lo? Gabriel acenou com a cabeça.
- Porquê tu, Gabriel? Estás afastado do jogo há tanto tempo. Porque não utilizar um dos outros katsas dele?
- Para o caso de não teres reparado, o Departamento tem tido mais desastres do que sucessos ultimamente.
- O Tariq tem conseguido manter-se um passo à frente do Departamento durante anos. Como é que, supostamente, o vais descobrir agora?
- O Shamron identificou um dos seus agentes em Londres. Coloquei-lhe uma escuta no telefone do trabalho, mas também preciso de lhe pôr o apartamento sob escuta para conseguir descobrir com quem está a falar e o que está a dizer. Se tivermos sorte, talvez consigamos saber onde é que o Tariq está a planear atacar a seguir.
- Porque é que precisas de mim?
- Preciso de ti para me ajudares a entrar no apartamento.
- Porque é que precisas da minha ajuda? Sabes abrir uma fechadura e colocar uma escuta.
- É exactamente por isso. Não quero ter de lhe abrir a fechadura. Os arrombamentos são arriscados. Se perceber que esteve alguém no apartamento, então perdemos a vantagem. Quero que entres no apartamento por mim, faças uma cópia das chaves e verifiques que tipo de telefone é que tem para poder arranjar um duplicado.
- E como é que, supostamente, vou entrar no apartamento? Sabia a resposta, claro. Apenas queria ouvi-lo a dizê-lo. Gabriel levantou-se e juntou mais um bocado de madeira ao fogo.
- O Yusef gosta de mulheres. Gosta da vida nocturna londrina. Quero que vás ter com ele num bar ou numa discoteca e faças amizade. Quero que o encorajes a convidar-te para o apartamento.
- Desculpa, Gabriel. Não estou interessada. O Ari que te dê uma das suas raparigas novas.
Ele voltou-se e olhou para ela.
Pensou: Está surpreendido por eu lhe ter dito que não. Não estava à espera disso.
- Estou a oferecer-te uma oportunidade de me ajudares a descobrir o Tariq al-Hourani antes que mate mais judeus e prejudique ainda mais o processo de paz.
- E eu estou a dizer-te que já fiz a minha parte. Que uma outra rapariga tenha a sua vez.
Ele voltou a sentar-se.
- Percebo porque é que o Shamron havia de querer ter-te de
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volta - disse Jacqueline. - És o melhor no que fazes. Mas não percebo porque é que precisas de mim.
- Porque também és boa - respondeu. Depois acrescentou:
- E porque posso confiar em ti. Pensou: O que é que me estás a tentar dizer, Gabriel Allon? Respondeu:
- Tenho de ir às Caraíbas para uma sessão fotográfica daqui a três semanas.
- Só vou precisar de ti por uns dias.
- Não vou fazer isto de borla.
- Quero-te a ti e não me vou contentar com qualquer outra
- respondeu Gabriel. - Portanto, estás em posição de fixar o teu preço.
Olhou para o tecto, a calcular de quanto iria precisar. Renda, renovações, publicidade...
- Cinquenta mil.
- Francos?
- Não sejas ridículo, Gabriel. Dólares.
Fez uma cara carrancuda. Jacqueline cruzou os braços em sinal de desafio.
- Cinquenta mil ou podes ligar ao Shamron e pedir-lhe uma rapariga nova.
- Cinquenta mil - respondeu. Jacqueline sorriu.
Jacqueline telefonou a Mareei Lambert em Paris e disse-lhe para cancelar todas as sessões para as duas semanas seguintes.
- Jacqueline, perdeste o juízo? Não podes estar a falar a sério. Uma mulher na tua posição débil não anda por aí a tornar as coisas piores a cancelar sessões. É assim que se ganha uma reputação nesta profissão.
- Mareei, estou nesta profissão há dezassete anos e nunca tive a reputação de deixar cair sessões. Surgiu uma coisa e preciso de me ausentar por uns dias.
- É isso que esperas que diga às pessoas que tiveram a bondade de te contratar? Surgiu uma coisa. Vá lá, querida. Vais ter de fazer muito melhor do que isso.
- Diz-lhes que apanhei qualquer coisa.
- Alguma sugestão?
- Lepra - respondeu.
- Oh, sim, maravilhoso.
A sua voz ficou séria de repente.
- Diz-me uma coisa, Jacqueline. Não estás metida em algum tipo de sarilho, pois não? Sabes que podes confiar em mim. Tenho estado lá desde o início, lembra-te. Conheço todos os teus segredos.
- E eu não me esqueço que conheço todos os teus, Mareei Lambert. E não, não estou metida em nenhum tipo de sarilho. Há simplesmente uma coisa de que preciso de tratar e não pode esperar.
- Não estás doente, pois não, Jacqueline?
- Estou de perfeita saúde.
- Não é a coca outra vez, pois não? - sussurrou Mareei.
- Mareei!
- Operação? Um retoque aos olhos?
- Vai-te foder.
- Um homem. É um homem? Alguém conseguiu amolgar finalmente esse teu coração de ferro?
- vou desligar agora, Mareei. Ligo-te daqui a uns dias.
- Então tenho razão! É um homem!
- És o único homem para mim, Mareei.
- Quem me dera que fosse assim.
- A. tout à l'heure.
- Ciao.
Partiram ao final da tarde e seguiram para norte na auto-estrada sinuosa, em direcção às montanhas. Nuvens que já se estavam a dissipar pairavam sobre as ravinas. À medida que subiam para as colinas, bolas gordas de chuva esmurravam o pára-brisas do Peugeot alugado de Gabriel. Jacqueline reclinou o banco e observou
afluentes de água da chuva a correr pela capota em forma de lua, mas a cabeça já estava concentrada em Londres e no alvo. Acendeu um cigarro e disse:
- Fala-me dele.
- Não - respondeu. - Não quero nada na tua cabeça que te possa colocar numa situação comprometedora.
- Vieste buscar-me porque sei o que estou a fazer, Gabriel. Diz-me qualquer coisa acerca dele.
- Chama-se Yusef. Cresceu em Beirute.
- Onde em Beirute?
- Shatila.
- Jesus - disse, fechando os olhos.
- Os pais eram refugiados em quarenta e oito. Antes viviam na aldeia árabe de Lydda, mas durante a guerra fugiram e atravessaram a fronteira para o Líbano. Ficaram algum tempo pelo Sul, depois mudaram-se para Beirute à procura de emprego e instalaram-se no campo de Shatila.
- Como é que acabou por ir parar a Londres?
- Um tio trouxe-o para Inglaterra. Certificou-se de que Yusef fosse ensinado e aprendesse a falar um inglês e um francês perfeitos. Tornou-se um radical político. Achou que o Arafat e a OLP se tinham rendido. Apoiou os líderes palestinianos que queriam continuar a guerra até Israel ser apagada do mapa. Chegou à atenção da organização do Tariq. Tem sido um membro activo desde há vários anos.
- Parece um encanto.
- E por acaso até é.
- Alguns passatempos?
- Gosta de poesia palestiniana e de mulheres europeias. E ajuda o Tariq a matar israelitas.
Gabriel saiu da auto-estrada e seguiu por uma pequena estrada em direcção a este, a caminho das montanhas. Passaram por uma aldeia adormecida e viraram para um trilho de lama cheio de sulcos e ladeado por plátanos desfolhados e a pingar. Seguiu o trilho até descobrir um portão de madeira partido, que dava para uma área pequena de terra desbravada. Parou o carro, saiu e abriu o portão
o suficiente para deixar passar o Peugeot. Guiou até à clareira e desligou o motor, deixando os faróis acesos. Enfiou a mão na mala de Jacqueline e tirou a Beretta dela e o carregador sobressalente. Depois agarrou numa das revistas de moda lustrosas dela e arrancou a capa e a contracapa.
- Sai.
- Está a chover.
- Paciência.
Gabriel saiu e andou alguns metros pela terra encharcada, em direcção a uma árvore onde os restos esfarrapados de uma tabuleta que dizia "Entrada Proibida" estavam pendurados num prego dobrado e ferrugento. Enfiou a capa da revista na cabeça do prego e regressou até junto do carro. Jacqueline tinha a silhueta reflectida nos faróis amarelos, o capuz para cima para se proteger da chuva, os braços cruzados. Estava tudo em silêncio, tirando o tiquetaque do radiador do Peugeot e o ladrar longínquo do cão de uma quinta. Gabriel tirou o carregador da Beretta, verificou para ter a certeza de que a câmara estava vazia e a seguir entregou a arma e as munições a Jacqueline.
- Quero saber se ainda te consegues safar com uma destas.
- Mas eu conheço a rapariga naquela capa.
- Dá-lhe um tiro na cara.
Jacqueline enfiou o carregador com força na coronha da Beretta, bateu ao de leve na base do punho com a parte de trás da palma da mão, para ter a certeza de que estava bem seguro. Avançou, levantou a arma, dobrou os joelhos ligeiramente e rodou o corpo uns quantos graus para reduzir o seu perfil enquanto alvo em relação ao inimigo imaginário. Disparou sem hesitação, rítmica e firmemente, até o carregador ficar vazio.
Gabriel, ouvindo os disparos da pequena pistola, estava de súbito de volta ao vão das escadas do apartamento em Roma. Jacqueline baixou a Beretta, retirou o carregador e inspeccionou a câmara para se assegurar de que estava vazia. Atirou a arma a Gabriel e disse:
- Vamos lá ver-te a experimentar agora.
Mas Gabriel limitou-se a enfiar a Beretta no bolso do casaco e caminhou até à árvore para examinar os resultados. Só um tiro
não tinha acertado; os tiros estavam bastante perto uns dos outros na parte superior direita. Arrancou do prego a capa, pendurou a contracapa no seu lugar e voltou a dar a Beretta a Jacqueline.
- Repete isso, mas, desta vez, avança enquanto disparas.
Enfiou o segundo carregador com força na Beretta, puxou a culatra e avançou sobre o alvo, a disparar à medida que se ia aproximando. O último tiro foi quase à queima-roupa. Tirou o alvo, voltou-se e ergueu-o para os faróis brilharem através dos buracos de balas no papel. Cada tiro tinha acertado no alvo. Regressou até junto de Gabriel e deu-lhe a Beretta e a capa da revista.
Ele disse:
- Apanha os teus cartuchos
Enquanto Jacqueline recolhia os cartuchos gastos, desmontou rapidamente a Beretta. Tirou o macaco da bagageira e triturou as peças da arma até ficarem inoperantes. Voltaram para dentro do Peugeot e Gabriel saiu pelo caminho por onde viera. A dada altura, lançou a capa e contracapa da revista e os pedaços partidos da Beretta para a escuridão. Depois de terem passado pela aldeia, abriu a janela uma vez mais e espalhou os cartuchos.
Jacqueline acendeu outro cigarro.
- Como é que me saí?
- Passaste.
AMESTERDÃO
Tariq passou a tarde a tratar de recados. Andou desde a casa flutuante até à Centraalstation, onde comprou um bilhete em primeira classe para o comboio da noite para Antuérpia. Da estação de comboios andou até ao bairro da luz vermelha, passeando-se pelo labirinto de vielas estreitas, passando pelas sex shops, os bordéis e os bares soturnos, até um traficante de droga o puxar para o lado e lhe oferecer heroína. Tariq regateou o preço, depois pediu o suficiente para três pessoas se passarem. Tariq deu-lhe o dinheiro, enfiou as drogas no bolso e afastou-se.
Em Dam Square, pulou para um eléctrico e viajou pela cidade, seguindo para sul, até Bloemenmarkt, um mercado de flores flutuante no canal Singel. Foi até à banca maior e pediu ao florista um ramo elaborado de flores tradicionais holandesas. Quando o florista lhe perguntou quanto estava disposto a gastar, Tariq assegurou-lhe que o dinheiro não era um problema. O florista sorriu e disse-lhe para voltar dali a vinte minutos.
Tariq passeou-se pelo mercado, passando por túlipas e irises, lírios e girassóis a explodir de cor, até se cruzar com um homem a pintar. Cabelo preto cortado curto, pele clara e olhos azul-claros. O trabalho era uma representação do Bloemenmarkt, enquadrado pelo canal e por uma fila de casas com empenas. Tinha uma qualidade onírica, uma erupção de cor e luz líquidas.
Tariq parou por um momento e observou-o a trabalhar.
- Fala francês?
- Oui - respondeu o pintor, sem tirar os olhos do quadro.
- Admiro o seu trabalho. O pintor sorriu e respondeu:
- E eu admiro o seu.
Tariq acenou com a cabeça e afastou-se, interrogando-se sobre que raio estaria o maluco do pintor a falar.
Foi buscar as flores e regressou à casa flutuante. A rapariga estava a dormir. Tariq ajoelhou-se ao lado da cama e abanou-lhe o ombro gentilmente. Ela abriu os olhos e olhou para ele como se fosse louco. Fechou os olhos.
- Que horas são?
- Horas de ir trabalhar.
- Vem para a cama.
- Por acaso, sou capaz de ter uma coisa de que vais gostar mais.
Abriu os olhos e viu as flores. Sorriu.
- Para mim? Qual é o motivo?
- É só a minha maneira de te agradecer por seres uma anfitriã tão atenciosa.
- Gosto mais de ti do que de flores. Tira a roupa e vem para
a cama.
- Tenho mais outra coisa.
Segurou os sacos de pó branco no ar.
Inge vestiu rapidamente umas roupas enquanto Tariq se dirigiu para a cozinha do barco. Sacou uma colher da gaveta e acendeu uma vela. Aqueceu a droga por cima da chama, mas em vez de diluir um saco de heroína na mistura, utilizou logo os três. Quando terminou, puxou o líquido para dentro de uma seringa e levou-a para a cabina da frente.
Inge estava sentada à beira da cama. Tinha atado a extensão de borracha por cima do cotovelo e estava a examinar as nódoas negras ao longo da parte de dentro do antebraço, à procura de uma veia adequada.
- Aquela tem ar de servir - disse Tariq, passando-lhe a seringa.
Ela segurou-a na palma da mão e inseriu calmamente a agulha no braço. Tariq desviou o olhar enquanto ela puxava o êmbolo com a ponta do polegar e a heroína líquida se escurecia com o seu sangue. Depois carregou no êmbolo e desapertou o elástico, fazendo com que a droga disparasse para dentro do corpo.
Olhou para cima de repente, os olhos esbugalhados.
- Eh, Paul, meu... o que é que se está a...
Caiu de costas na cama, o corpo a estremecer com convulsões violentas, a agulha vazia a balouçar no braço. Tariq andou calmamente até à cozinha e fez café enquanto esperava que a rapariga acabasse de morrer.
Cinco minutos mais tarde, quando estava a arrumar as suas coisas numa pequena mala de viagem, sentiu o barco subitamente a balançar. Olhou para cima, espantado. Estava alguém no convés! Numa questão de segundos, a porta abriu-se e um homem grande e de constituição forte entrou na cabina. Tinha cabelo loiro e brincos pequenos e redondos nas orelhas. Tariq achou que tinha uma vaga parecença com Inge. Por instinto, procurou a pistola Makarov, que estava enfiada nas calças, no fundo das costas.
O homem olhou para Tariq.
- Quem és tu?
- Sou um amigo da Inge. Tenho estado a viver aqui há uns dias.
Falou de forma calma, a tentar reunir os pensamentos. A aparição repentina do homem apanhara-o completamente desprevenido. Há cinco minutos atrás tinha-se livrado calmamente da rapariga. Agora estava confrontado com alguém que podia dar cabo de tudo. Depois pensou: Se sou na verdade amigo da Inge, não tenho nada a temer. Obrigou-se a sorrir e esticou a mão.
- Chamo-me Paul.
O intruso ignorou a mão de Tariq.
- Sou o Maarten, o irmão da Inge. Onde é que ela está? Tariq fez um gesto na direcção do quarto.
- Sabes como a Inge pode ser. Ainda a dormir. Apercebeu-se de que tinha deixado a porta aberta.
- Deixa-me fechar-lhe a porta para não a acordarmos. Acabei de fazer café. Queres uma chávena?
Mas Maarten passou por si e entrou no quarto de Inge. Tariq pensou, Porra! Estava surpreendido com a velocidade a que as coisas tinham ficado fora de controlo. Apercebeu-se de que tinha cerca de cinco segundos para decidir como o ia matar.
A coisa mais fácil de se fazer, evidentemente, era dar-lhe um tiro. Mas isso teria consequências. Assassinato com pistola era quase inédito na Holanda. Uma rapariga morta com uma seringa espetada no braço era uma coisa. Mas dois corpos - um deles cheio de cartuchos de 9mm - era bem outra. Haveria uma grande investigação. A polícia iria interrogar os habitantes das casas flutuantes à volta. Alguém se podia recordar da sua cara. Dariam uma descrição à polícia, a polícia daria uma descrição à Interpol, a Interpol daria uma descrição aos judeus. Todos os polícias e funcionários de segurança da Europa Ocidental andariam à procura de si. Disparar sobre Maarten seria rápido, mas custar-lhe-ia a longo prazo.
Olhou por cima do ombro para a cozinha. Lembrou-se de que na gaveta ao lado do fogão a gás propano estava uma faca grande. Se matasse o irmão de Inge com uma faca talvez se parecesse com um crime passional ou com um crime de rua comum. Mas Tariq considerava a ideia de matar alguém com uma faca totalmente repulsiva. E havia outro problema, mais sério. Havia uma grande hipótese de não o matar ao primeiro golpe. A doença já começara a fazer sentir em si os seus efeitos. Tinha perdido força e resistência. A última coisa que queria fazer era envolver-se numa luta de vida ou de morte com um adversário maior e mais forte. Viu os sonhos - de destruir o processo de paz e de finalmente ajustar contas com Gabriel Allon - a evaporarem-se, tudo porque o irmão mais velho de Inge tinha chegado a casa num momento inoportuno. Leila devia ter escolhido com mais cuidado.
Tariq ouviu Maarten a gritar. Decidiu dar-lhe um tiro.
Sacou a Makarov da cintura. Apercebeu-se de que a arma não tinha o silenciador atarraxado. Onde é que ele está? No bolso do casaco, e o casaco estava em cima da cadeira na cabine. Merda! Como é que posso ter ficado tão complacente?
Maarten saiu a correr do quarto, a cara pálida.
- Está morta!
- Do que é que estás a falar? - perguntou Tariq, a fazer os possíveis para empatar.
- Está morta! É disso que estou a falar! Teve uma overdose!
- Drogas?
Tariq aproximou-se uns centímetros do casaco. Se conseguisse tirar o silenciador do bolso e atarraxá-lo ao cano, então pelo menos podia matá-lo sem barulho...
- Tem uma agulha pendurada no braço. O corpo ainda está quente. Provavelmente, acabou de se injectar ainda há uns minutos. Deste-lhe a porra das drogas, pá?
- Não sei nada sobre drogas.
Tariq apercebeu-se de que soava demasiado calmo para a situação. Tinha tentado não parecer perturbado pela chegada de Maarten, e agora parecia demasiado descontraído em relação à morte da sua irmãzinha. Maarten claramente não acreditava nele. Gritou com raiva e precipitou-se pela cabina, os braços erguidos, os punhos cerrados.
Tariq desistiu de tentar apanhar o silenciador. Agarrou na Makarov, puxou a culatra, fez pontaria à cara de Maarten e deu-lhe um tiro no olho.
Tariq trabalhava depressa. Tinha conseguido matar Maarten com um único tiro, mas teve de partir do princípio de que alguém numa das casas flutuantes das redondezas ou ao longo do dique ouvira o tiro. A polícia podia estar agora mesmo a caminho. Voltou a enfiar a Makarov na cintura, a seguir agarrou na mala, nas flores e no cartucho gasto e saiu da cabina para o convés da popa. Tinha anoitecido; a neve amontoava-se sobre o Amstel. A escuridão iria ajudá-lo. Olhou para baixo e reparou que estava a deixar pegadas no convés. Arrastou os pés enquanto andava, escondendo as marcas, e saltou para o cais.
Caminhou rápida mas calmamente. Num local escurecido no meio do cais, largou a mala no rio. O chape foi quase inaudível. Mesmo que a polícia descobrisse a mala, não havia nada nela que
pudesse conduzir a si. Iria comprar uma muda de roupa e uma mala nova quando chegasse a Antuérpia: Depois pensou: Se chegar a Antuérpia.
Seguiu pelo Herengracht em direcção a oeste, atravessando a cidade. Por um momento, pensou em abortar o ataque, ir directamente para a Centraalstation e fugir do país. Os Morgenthau eram alvos ligeiros e de valor político mínimo. Kemel escolhera-os porque matá-los seria fácil e porque permitiria a Tariq manter a pressão sobre o processo de paz. Mas agora o risco de captura tinha aumentado dramaticamente devido ao fiasco no barco. Talvez fosse melhor esquecer tudo.
À sua frente, um par de aves marinhas elevaram-se da superfície do canal e começaram a voar, os gritos a ecoar nas fachadas das casas no canal, e, por um momento, Tariq foi outra vez um rapaz de oito anos, a correr descalço pelo campo em Sídon.
A carta chegou ao final da tarde. Vinha dirigida aos pais de Tariq. Dizia que Mahmoud al-Hourani tinha sido morto em Colónia porque era um terrorista - que se Tariq, o filho mais novo da família al-Hourani, se tornasse um terrorista, também seria morto. O pai de Tariq disse-lhe para ir a correr até ao escritório da OLP e perguntar se a carta dizia a verdade. Tariq encontrou um funcionário da OLP e mostrou-lha. O homem da OLP leu-a uma vez, devolveu-a a Tariq e deu-lhe ordem para ir para casa e dizer ao pai que era verdade. Tariq correu pelo campo esquálido em direcção a casa, as lágrimas a toldarem-lhe a visão. Venerava Mahmoud. Não conseguia imaginar viver sem ele.
Quando chegou a casa, já a notícia da carta se tinha espalhado pelo campo - outras famílias tinham recebido cartas semelhantes ao longo dos anos. As mulheres reuniram-se à porta da casa de Tariq. O som dos seus lamentos e a agitação das línguas erguiam-se pelo campo com o fumo das fogueiras nocturnas. Tariq achava que soavam como pássaros dos pântanos. Encontrou o pai e disse-lhe que a carta era verdadeira - Mahmoud estava morto. O pai atirou a carta para a fogueira. Tariq nunca iria esquecer a dor no rosto do pai, a vergonha indizível de ter sido informado da morte do filho mais velho pelos próprios homens que o haviam morto.
Não, pensava agora Tariq enquanto caminhava ao longo do Herengracht. Não ia anular o ataque e fugir por ter medo de ser preso. Tinha chegado demasiado longe. Restava-lhe demasiado pouco tempo.
Tariq chegou à casa. Subiu os degraus da frente, esticou-se e tocou à campainha. Um momento depois, a porta foi aberta por uma rapariga num uniforme de empregada.
Estendeu o arranjo de flores e disse em holandês:
- Um presente para os Morgenthau.
- Oh, que adorável.
- E bastante pesado. Quer que o leve para dentro?
-
A rapariga afastou-se para Tariq poder passar. Fechou a porta para não deixar entrar o frio e esperou, com uma mão no trinco, que Tariq colocasse a caixa em cima de uma mesa no átrio de entrada e se fosse embora. Poisou a embalagem e sacou da Makarov enquanto se virava. Desta vez, o silenciador estava atarraxado no sítio.
A rapariga abriu a boca para gritar. Tariq disparou-lhe dois tiros na garganta.
Arrastou o corpo para fora do átrio de entrada e utilizou uma toalha da casa de banho para limpar o rasto de sangue. A seguir, sentou-se na sala de jantar escurecida e esperou que David e Cynthia Morgenthau chegassem a casa.
PARIS
Shamron chamou Gabriel aos jardins de Tuileries na manhã seguinte, para uma reunião rápida. Gabriel encontrou-o sentado num banco perto de um caminho de cascalho, rodeado por um bando de pombos. Tinha um cachecol de seda cinzento-ardósia à volta do pescoço, com as pontas bem aconchegadas por baixo das lapelas do sobretudo preto, de modo que a careca parecia estar colocada no topo de um pedestal. Levantou-se, tirou a luva preta de cabedal da mão direita e esticou-a como uma faca de trinchar. Gabriel achou-lhe a palma da mão invulgarmente quente e húmida. Shamron soprou para dentro do canhão da luva e voltou a colocá-la. Não estava acostumado a climas frios, e Paris no Inverno deprimia-o.
Caminharam rapidamente, não como dois homens a conversar num parque, mas como dois homens a ir com pressa para algum lado - ao longo dos caminhos de Tuileries, através da muito ventosa Place de la Concorde. Folhas mortas estalavam sob os seus pés, à medida que marchavam ao longo do passeio revestido de árvores junto aos Champs-Élysées.
- Recebemos um relatório esta manhã de um sayan nos serviços de segurança holandeses - disse Shamron. - Foi o Tariq que matou o David Morgenthau e a mulher em Amesterdão.
- Como é que podem ter tanta certeza?
- Eles não têm a certeza, mas eu sim. A polícia de Amesterdão
descobriu uma rapariga morta numa casa flutuante no Amstel. Tinha tido uma overdose de heroína. O irmão também estava morto.
- Heroína?
- Uma única bala pelo olho dentro.
- O que é que aconteceu?
- Segundo os vizinhos da rapariga, uma mulher árabe mudou-se para a casa flutuante há um par de semanas atrás. Saiu há um par de dias e um homem tomou o seu lugar. Um francês que dava pelo nome de Paul.
- Então o Tariq enviou antecipadamente uma agente para Amesterdão, para assegurar um alojamento seguro e uma rapariga para cobertura.
- E quando já não precisava mais dela, deu-lhe heroína suficiente para matar um camelo. A polícia diz que a rapariga tinha antecedentes longos de uso de drogas e prostituição. Obviamente, achou que conseguia fazê-lo passar por uma overdose acidental.
- Como é que o irmão acabou morto?
- A casa flutuante está registada em nome dele. Segundo a polícia, tem estado a trabalhar em Roterdão num projecto de construção. Talvez tenha aparecido sem aviso no local, enquanto o Tariq estava a matar a irmã.
- Faz sentido.
- Na verdade, há provas que suportam essa teoria. Uns vizinhos ouviram o disparo. Se Tariq tivesse estado a planear matar o irmão, teria utilizado um método de execução mais silencioso. Talvez tivesse sido surpreendido.
- Já compararam a bala do irmão com as balas tiradas dos Morgenthau e da empregada?
- Há uma correspondência perfeita. A mesma arma matou as quatro pessoas todas.
Um casal de jovens suecos estava a posar para uma fotografia. Gabriel e Shamron viraram-se bruscamente e caminharam no sentido contrário.
Gabriel perguntou:
- Alguma outra novidade?
Quero que tenhas cuidado em Londres. Um homem de
Langley fez-me uma visita de cortesia na semana passada. Os Americanos foram informados pelas suas fontes de que o Tariq esteve envolvido em Paris. Querem-no preso e julgado nos Estados Unidos.
- A última coisa de que precisamos agora é de estar a tropeçar
na CIA.
- Receio que ainda seja pior. O homem de Langley deixou cair um aviso não muito subtil sobre os perigos de fazer operações em certos países sem permissão.
- Sabem de alguma coisa?
- Duvido, mas não o excluiria por completo.
- Estava à espera que o meu regresso ao Departamento não me fosse enfiar numa cadeia inglesa.
- E não vai, desde que mantenhas a disciplina.
- Obrigado pelo voto de confiança.
- Descobriste-a? - perguntou Shamron, mudando de assunto. Gabriel acenou com a cabeça.
- E está disposta a fazê-lo?
- Demorei algum tempo a convencê-la, mas concordou.
- Porque é que os meus filhos estão todos tão relutantes em voltar para casa? Fui um pai assim tão mau?
- Só demasiado exigente. Gabriel parou em frente de um café nos Champs-Élysées. Jacqueline estava junto à janela, com uns grandes óculos de sol, a ler uma revista. Olhou para cima de relance enquanto se aproximavam, depois voltou a fixar o olhar na revista. Shamron disse:
- É bom ver-vos aos dois a trabalhar juntos outra vez. Mas não lhe partas o coração desta vez. É boa rapariga.
- Eu sei.
- Vais precisar de lhe arranjar um trabalho de disfarce em Londres. Conheço uma pessoa que está à procura de uma secretária.
- Estou um passo à tua frente.
Shamron sorriu e afastou-se. Desapareceu nas multidões ao longo dos Champs-Élysées e, um momento depois, sumira-se.
Julian Isherwood abriu caminho pelos ladrilhos molhados de Mason's Yard. Eram três e trinta e estava a voltar à galeria a seguir ao almoço. Estava bêbado. Não tinha reparado que estava bêbado até sair do Green's e inspirar fundo um pouco do ar húmido e gelado. O oxigénio ressuscitara-lhe o cérebro, e o cérebro alertara o corpo de que, uma vez mais, tinha despejado demasiado vinho dentro dele. O companheiro de almoço fora o barrigudo Oliver Dimbleby e, uma vez mais, o tema da conversa tinha sido a proposta de compra da Isherwood Fine Arts por parte de Oliver. Desta vez, Isherwood conseguira manter a compostura e discutido a situação de uma forma razoavelmente racional - mas não sem a ajuda de duas garrafas de um soberbo Sancerre. Quando estamos a discutir o desmembramento do nosso negócio - da nossa própria alma, pensou -, é-nos permitido entorpecer a dor com um bom vinho francês.
Puxou o casaco para tapar os ouvidos. Uma rajada de vento húmido varreu a Duke Street. Isherwood viu-se apanhado num remoinho de folhas mortas e lixo molhado. Avançou alguns passos aos trambolhões, as mãos a proteger a cara, até o remoinho se extinguir. Pelo amor de Deus! Clima horroroso. Autenticamente siberiano. Pôs a hipótese de se escapulir para dentro do pub, para aquecer os ossos, mas pensou melhor. Já tinha feito suficientes estragos para uma tarde.
Utilizou a chave para abrir a porta no rés-do-chão, subiu as escadas devagar, a pensar que devia mesmo tratar do tapete. No patamar, estava a entrada para uma pequena agência de viagens. As paredes estavam forradas com cartazes de amazonas ferozmente bronzeadas, seminuas, a brincar ao sol. Talvez isto seja a melhor coisa para mim, pensou, a olhar fixamente para uma rapariga em topless, deitada de barriga para baixo na areia imaculadamente branca. Talvez deva abandonar enquanto ainda tenho alguns anos decentes dentro de mim. Fugir de Londres, ir para um sítio quente, lamber as minhas feridas.
Enfiou a chave com força na fechadura, empurrou a porta para
trás, despiu o casaco e pendurou-o no cabide na sala de espera. A seguir, entrou no escritório e deu um toque no interruptor.
- Olá, Julian. Isherwood virou-se e deu de caras com Gabriel Allon.
- Tu! Como diabo é que entraste aqui?
- Queres mesmo saber?
- Suponho que não -- respondeu Isherwood. - Em nome de Deus, o que é que estás aqui a fazer? E onde é que tens estado?
- Preciso de um favor.
- Tu precisas de um favor! Tu precisas de um favor, meu! Abandonaste-me a meio de um trabalho. Deixaste o meu Vecellio num chalé na Cornualha sem segurança nenhuma.
- Às vezes, o melhor sítio para esconder um Vecellio de valor inestimável é o último sítio onde alguém se lembraria de o procurar. Se me quisesse aproveitar à vontade do conteúdo do teu cofre lá em baixo, podia tê-lo feito com bastante facilidade.
- Isso é porque és uma aberração da natureza!
- Não é preciso tornares as coisas pessoais, Julian.
- A sério? E que tal isto para pessoal? " Pegou numa chávena de café da secretária e atirou-a direita
à cabeça de Gabriel.
Gabriel conseguiu ver que Isherwood tinha estado a beber, por isso puxou-o lá para fora para o pôr sóbrio. Andaram aos círculos pelos caminhos do Green Park, até Isherwood se cansar e recostar num banco. Gabriel sentou-se ao lado e esperou que um casal passasse antes de recomeçar a falar.
- Ela sabe escrever à máquina? - perguntou Isherwood. Sabe atender o telefone? Tomar nota de um recado?
- Não me parece que tenha feito um verdadeiro dia de trabalho em toda a vida.
- Oh, mas que perfeito. Absolutamente estupendo.
- É uma rapariga esperta. Tenho a certeza de que vai ser capaz de ajudar no escritório.
- Isso é reconfortante. É-me permitido perguntar porque é que devo contratar esta mulher?
- Julian, por favor.
- Julian, por favor, Julian, mete-te na tua vida. Julian, cala-te e faz o que te dizemos. É sempre o mesmo convosco. E enquanto tudo isto se passa, o meu negócio está a ir para o buraco. O Oliver fez-me uma proposta. vou aceitá-la.
- O Oliver não parece o teu tipo.
- A cavalo dado não se olha o dente. Não estaria nesta posição se não me tivesses abandonado.
- Não te abandonei.
- E chamas-lhe o quê, Gabriel?
- É só uma coisa que preciso de fazer. É tal e qual como nos velhos tempos.
- Nos velhos tempos, isso fazia parte do acordo logo à partida. Mas estes não são os velhos tempos. Isto é negócio, a porra de um negócio e ponto final, Gabriel, e tu passaste-me bem a perna. O que é que é suposto eu fazer acerca do Vecellio enquanto fazes jogos com o Ari?
- Espera por mim - respondeu Gabriel. - Isto vai terminar em breve e vou trabalhar nisso dia e noite, até estar acabado.
- Não quero um trabalho às três pancadas. Dei-to porque sabia que ias demorar o teu tempo e fazê-lo como deve ser. Se quisesse um trabalho às três pancadas, podia ter contratado um tipo sem talento para o fazer por um terço do que te estou a pagar.
- Dá-me um tempo. Mantém o teu comprador à distância e, faças o que fizeres, não vendas a tua posição ao Oliver Dimbleby. Nunca te irás perdoar.
Isherwood olhou para o relógio e levantou-se.
- Tenho um encontro. Alguém que quer mesmo comprar um quadro.
Virou-se e começou a afastar-se; depois parou e disse:
- Já agora, deixaste para trás um rapazinho desgostoso na Cornualha.
- O Peel - disse Gabriel de longe.
- Tem piada, Gabriel, mas nunca tinha imaginado que fosses do tipo de magoar uma criança. Diz à tua rapariga para estar na galeria amanhã às nove da manhã. E diz-lhe para não se atrasar.
- Vai lá estar.
- O que é que devo chamar a esta secretária que me estás a enviar?
- Podes chamar-lhe Dominique.
- Gira? - perguntou Isherwood, recuperando um pouco do seu velho humor.
- Não é má.
MAIDA VALE, LONDRES
Gabriel carregou as malas para dentro, enquanto Jacqueline examinava a sua nova casa, um apartamento acanhado de uma divisão, com uma única janela com vista para um pátio interior. Um sofá desdobrável, uma cadeira de couro estalado, uma secretária pequena. Ao lado da janela, estava um radiador lascado e, ao lado do radiador, uma porta que dava para uma cozinha pouco maior do que a da chalupa de Gabriel. Jacqueline entrou na cozinha e começou a abrir e a fechar armários, tristemente, como se cada um fosse mais repulsivo do que o último.
- Disse ao bodel para fazer umas compras para ti.
- Não podias ter arranjado uma coisa um bocadinho mais agradável?
- A Dominique Bonard é uma rapariga de Paris que veio para Londres à procura de trabalho. Não achei que um duplex de três quartos em Mayfair fosse apropriado.
- É aí que estás?
- Não exactamente.
- Fica uns minutos. Acho a ideia de estar sozinha aqui deprimente.
- Poucos.
Encheu a chaleira de água, colocou-a no fogão e ligou o bico. Gabriel descobriu saquinhos de chá e uma embalagem de leite de longa duração. Ela preparou duas chávenas grandes de chá e levou-as
para a sala de estar. Gabriel estava sentado no sofá. Jacqueline tirou os sapatos e sentou-se à frente dele, os joelhos por baixo do queixo.
- Quando é que começamos?
- Amanhã à noite. Se isso não funcionar, tentamos a noite a seguir.
Acendeu um cigarro, encostou a cabeça para trás e atirou o fumo para o tecto. Depois olhou para Gabriel e franziu os olhos.
- Lembras-te daquela noite em Tunes?
- Qual noite?
- A noite da operação.
- É claro que me lembro.
- Lembro-me como se tivesse sido ontem. Fechou os olhos.
- Lembro-me especialmente da viagem pela água, do regresso ao barco. Estava tão excitada que não conseguia sentir o corpo. Estava a voar. Tínhamos mesmo conseguido. Tínhamos ido direitos à casa daquele sacana, no meio de um recinto da OLP, e eliminado o tipo. Apetecia-me gritar de alegria. Mas nunca vou esquecer a tua expressão. Estavas atormentado. Era como se os homens mortos estivessem sentados ao teu lado no barco.
- Muito poucas pessoas compreendem o que é matar um homem à queima-roupa. E ainda menos sabem o que é encostar-lhe uma arma à cabeça e puxar o gatilho. Matar no campo de batalha dos serviços secretos é diferente do que matar um homem no Golan ou Sinai, mesmo quando se trata de um sacana assassino como o Abu Jihad.
- Agora compreendo isso. Senti-me tão idiota quando regressámos a Telavive. Comportei-me como se tivesses acabado de marcar o golo da vitória, e durante todo esse tempo estavas a morrer por dentro. Espero que me possas perdoar.
- Não precisas de pedir desculpa.
- Mas o que não compreendo é como o Shamron te atraiu de volta, depois destes anos todos.
- Não tem nada a ver com o Shamron. Tem a ver com o Tariq.
- O que tem o Tariq?
Gabriel deixou-se ficar sentado em silêncio por um momento, depois levantou-se e foi até à janela. No pátio, um trio de rapazes dava pontapés numa bola sob a luz âmbar de um candeeiro, jornais velhos a pairar sobre eles como cinzas no vento húmido.
- O irmão mais velho do Tariq, o Mahmoud, era membro do Setembro Negro. O Ari Shamron seguiu-lhe o rasto até Colónia e enviou-me para acabar com ele. Enfiei-me no apartamento dele enquanto estava a dormir e apontei-lhe uma arma à cara. Depois acordei-o, para que não tivesse uma morte tranquila. Dei-lhe dois tiros nos olhos. Dezassete anos mais tarde, o Tariq teve a sua vingança ao rebentar com a minha mulher e o meu filho diante dos meus olhos.
Jacqueline tapou a boca com as mãos. Gabriel continuava a olhar fixamente pela janela, mas conseguia perceber que era Viena que via agora e não os rapazes a brincar no pátio.
- Durante muito tempo, pensei que o Tariq se tivesse enganado - disse Gabriel. - Mas ele nunca se engana assim. É cuidadoso, faz tudo com um propósito. É o predador perfeito. Foi atrás da minha família por uma razão. Foi atrás deles para me castigar por lhe ter matado o irmão. Sabia que seria pior do que a morte.
Voltou-se para a olhar de frente.
- De um profissional para outro, foi um trabalho perfeito.
- E agora vais matá-lo em retribuição? Afastou o olhar e não respondeu nada.
- Sempre me culpei pelo que aconteceu em Viena - disse Jacqueline. - Se não tivéssemos...
- Não tiveste culpa - disse Gabriel, interrompendo-a. A culpa foi minha, não tua. Devia ter calculado. Comportei-me de uma forma estúpida. Mas agora acabou.
A frieza da sua voz foi como uma faca no peito dela. Demorou muito tempo a apagar o cigarro e depois olhou para cima, na direcção dele.
- Porque é que contaste à Leah sobre nós?
Ficou parado à janela por um momento, sem dizer nada. Jacqueline receou que tivesse ido longe de mais. Tentou pensar em algum modo de desbloquear a situação e mudar de assunto, mas queria
desesperadamente saber a resposta. Se Gabriel não tivesse confessado o caso, Leah e Dani nunca teriam estado com ele na missão em Viena.
- Contei-lhe porque não lhe queria mentir. A minha vida inteira era uma mentira. O Shamron tinha-me convencido de que eu era perfeito, mas não era perfeito. Pela primeira vez na vida, tinha-me comportado com um pouco de fragilidade e fraqueza humanas. Suponho que precisasse de o partilhar com ela. Suponho que precisasse de alguém para me perdoar.
Pegou no casaco. O rosto estava contorcido. Estava zangado, não com ela mas consigo próprio.
- Tens um dia longo à tua frente amanhã. A voz era agora toda ela negócios.
- Instala-te e tenta descansar um bocado. O Julian está a contar que apareças às nove horas.
E depois saiu.
Durante uns minutos, distraiu-se com o ritual do desfazer das malas. Depois, a dor tomou-a de surpresa, como o ardor atrasado de uma bofetada. Deixou-se cair no sofá e começou a chorar. Acendeu outro cigarro e olhou em redor do apartamentozinho horroroso. Mas que diabo estou eu aqui afazer? Tinha concordado em regressar por uma razão - porque julgava que podia fazer Gabriel amá-la -, mas ele tinha reduzido o caso em Tunes a um momento de fraqueza. Ainda assim, porque tinha ele voltado, após todos estes anos, para matar Tariq? Era simplesmente por vingança? Um olho por olho? Não, pensou, os motivos de Gabriel eram muito mais profundos e mais complexos do que a simples vingança. Talvez precisasse de matar Tariq para se perdoar pelo que tinha acontecido a Leah e avançar, por fim, com a vida. Mas será capa de alguma ve me perdoar? Talvez a única forma de lhe ganhar a confiança fosse ajudá-lo a matar Tariq. E a única forma de o poder ajudar a matar Tariq éfaer um outro homem apaixonar-se por mim e levá-lo para a cama. Fechou os olhos e pensou em Yusef al-Tawfiki.
Gabriel deixara o carro em Ashworth Road. Fez questão de mostrar que tinha deixado cair as chaves no passeio e que estava
a apalpar na escuridão como se estivesse a tentar encontrá-las. Na realidade, estava a inspeccionar a parte de baixo do carro, à procura de algo que não devesse estar lá - uma massa, um cabo grande. O carro parecia limpo, por isso entrou, ligou o motor e guiou em círculos durante meia hora por Maida Vale e Notting Hill, assegurando-se de que não estava a ser seguido.
Estava aborrecido consigo mesmo. Tinham-lhe ensinado primeiro o pai e depois Ari Shamron - que os homens que não conseguiam guardar segredos eram fracos e inferiores. O pai sobrevivera a Auschwitz, mas recusou-se sempre a falar disso. Bateu em Gabriel uma vez apenas - quando Gabriel exigiu que o pai lhe contasse o que tinha acontecido no campo de concentração. Se não tivesse sido pelos números tatuados no antebraço direito, Gabriel poderia nunca ter sabido que o pai sofrera.
Na verdade, Israel era um local pejado de gente traumatizada
- mães que enterraram filhos mortos em guerras, crianças que enterraram irmãos mortos por terroristas. Após Viena, Gabriel apoiou-se nas lições do pai: "Às vezes, as pessoas morrem demasiado cedo. Chora-as em privado. Não tenhas o sofrimento à flor da pele como os Árabes. E quando tiveres acabado de fazer o luto, põe-te de pé e continua com a vida."
Tinha sido a última parte - continuar com a vida - que dera mais trabalho a Gabriel. Culpava-se pelo que tinha acontecido em Viena, não só pelo caso com Jacqueline, mas também pelo modo como tinha matado o irmão de Tariq. Quisera ter a satisfação de saber que Mahmoud estava ciente da sua morte - que tinha ficado aterrorizado no momento em que a Beretta de Gabriel lhe enviou silenciosamente a primeira bala ardente para o cérebro. Shamron dissera-lhe para aterrorizar os terroristas - para pensar como eles e comportar-se como eles. Gabriel acreditava que tinha sido castigado por se ter deixado tornar igual ao inimigo.
Como resultado, tinha-se castigado a si próprio. Uma por uma, fechara as portas e obstruíra as janelas que em tempos lhe tinham dado acesso aos prazeres da vida. Vagueou pelo tempo e pelo espaço como imaginava que um espírito maldito pudesse visitar o lugar
onde vivera: capaz de ver os entes queridos e os pertences mas incapaz de comunicar ou saborear ou tocar ou sentir. Senda a beleza apenas na arte e apenas ao reparar os danos infligidos por proprietários negligentes ou pela passagem corrosiva do tempo. Shamron tinha feito de si o destruidor. Gabriel voltara a tornar-se o curador. Infelizmente, não era capaz de se curar a si próprio.
Então porquê contar segredos ajacqueline? Porquê responder-lhe às malditas questões? A resposta simples era porque o queria fazer. Tinha-o sentido no momento em que entrara na sua vivenda em Valbonne, uma necessidade prosaica de partilhar segredos e revelar dor e desapontamento passados. Mas havia algo mais importante: não tinha de se explicar a ela. Pensou na fantasia tola acerca da mãe de Peel, como tinha terminado quando lhe contara a verdade sobre si mesmo. A cena reflectia um dos medos profundos de Gabriel - o temor de dizer a uma outra mulher que era um assassino profissional. Jacqueline já conhecia os seus segredos.
Talvez Jacqueline tivesse tido razão numa coisa, pensou - talvez devesse ter pedido outra rapariga a Shamron. Jacqueline era a sua bat leveyha, e amanhã ia enviá-la para a cama de outro homem.
Estacionou à esquina do apartamento e caminhou depressa pelo passeio, em direcção à entrada do prédio. Olhou para cima, para a sua janela, e murmurou:
- Boa noite, Senhor Karp.
E imaginou Karp, a espreitar pela mira do seu microfone parabólico, a dizer:
- Bem-vindo a casa, Gabriel. Há muito tempo que não te ouvia.


CONTINUA

PARTE II
AVALIAÇÃO
Antes da guerra, Maurice Halévy era um dos mais proeminentes advogados de Marselha. Ele e a mulher, Rachel, tinham vivido numa imponente casa antiga na rue Sjlvabelle em Beaux Quartiers, onde a maioria dos judeus assimilados com sucesso da cidade se estabelecera. Tinham orgulho em ser franceses; consideravam-se primeiro franceses e depois judeus. Na verdade, Maurice Halévy estava tão assimilado que raramente se dava ao trabalho de ir à sinagoga. Mas quando os Alemães invadiram, a vida idílica dos Halévy em Marselha chegou a um fim abrupto. Em Outubro de 1940, o governo colaboracionista de Vichy divulgou o statut dês Juifs, os decretos antijudeus que reduziram os judeus a cidadãos de segunda classe na França de Vichy. Foi retirado a Maurice Halévy o direito de exercer advocacia. Exigiram-lhe que se registasse na polícia e, mais tarde, ele e a mulher foram forçados a utilizar a Estrela de David nas roupas.
A situação piorou em 1942, quando o exército alemão se instalou na França de Vichy, após a invasão do Norte de África pelos Aliados. As forças da Resistência Francesa levaram a cabo uma série de ataques mortíferos às forças alemãs. A polícia de segurança alemã, com a ajuda das autoridades francesas de Vichy, respondeu com assassinatos brutais. Maurice Halévy não podia mais ignorar a ameaça. Rachel ficara grávida. A ideia de tentar cuidar de um recém-nascido no caos de Marselha era demasiado para suportar. Decidiu deixar a cidade e partir para o campo. Utilizou as poupanças diminutas para arrendar um chalé nas colinas à saída de Aix-en-Provence. Em janeiro, Rachel deu à luz um filho, Isaac.
Uma semana mais tarde, os Alemães e a polícia francesa começaram a reunir os judeus. Demoraram um mês para descobrir Maurice e Rachel Halévy. Um par de oficiais alemães das S S apareceu no chalé num final de tarde de
Fevereiro, acompanhado por um gendarme local. Deram aos Halévy vinte minutos para fazer uma mala que não pesasse mais do que vinte e sete quilos. Enquanto os alemães e o gendarme esperavam na sala de jantar, a mulher do chalé do lado apareceu aporta.
- O meu nome é Anne-Marie Delacroix - disse. - Os Halévy estavam a tomar conta do meu filho enquanto fui ao mercado.
O gendarme estudou os seus documentos. De acordo com estes, apenas dois judeus viviam no chalé. Chamou os Halévy e disse:
- Esta mulher diz que o rapaz é dela. É verdade?
- É claro que é - respondeu Maurice Halévy, apertando o braço de Rachel antes de ela poder emitir um som. - Estávamos só a tomar conta do rapaz durante a tarde.
O gendarme olhou para Maurice Halévy incredulamente, depois consultou os documentos de registo uma segunda vez.
- Pegue na criança e vá-se embora - disparou para a mulher. - Apetecia-me bastante levá-la sob custódia eu mesmo, por entregar uma criança francesa ao cuidado destes judeus nojentos.
Dois meses mais tarde, Maurice e Rachel Halévy foram assassinados em Sobibor.
Anne-Marie Delacroix levou Isaac a uma sinagoga e contou ao rabi o que acontecera naquela noite em Aix-en-Provence. O rabi deu-lhe a escolher entre entregar a criança para adopção por uma família judia ou criá-la ela própria. Eevou o rapaz de volta a Aix e criou-o como judeu, ao lado dos seus próprios filhos católicos. Em 1965, Isaac Halévy casou com uma rapariga de Nimes, chamada Deborah, e instalou-se em Marselha, na antiga casa do pai, na rue Sylvabelle. Três anos mais tarde, tiveram o primeiro e único filho: uma rapariga a quem chamaram Sarah.
PARIS
Michel Duval era o fotógrafo da moda mais em voga em Paris. Os estilistas e os editores de revistas adoravam-no, pois as suas fotografias irradiavam uma aura muito forte de sexualidade perigosa. Jacqueline Delacroix achava que ele era um porco. Sabia que conseguia o seu olhar singular abusando das modelos. Não estava com grande vontade de trabalhar com ele.
Saiu de um táxi e entrou num edifício de apartamentos na rue St-Jacques, onde Michel tinha o estúdio. Lá em cima, uma pequena multidão aguardava: artista de maquilhagem, cabeleireiro, estilista, um representante da Givenchy. Michel estava em cima de um escadote, a ajustar luzes: bem-parecido, cabelos loiros pelos ombros, feições felinas. Vestia calças de cabedal pretas, descaídas nas ancas estreitas, e um pulôver largo. Piscou o olho a Jacqueline quando ela entrou. Ela sorriu e disse:
- Prazer em ver-te, Michel.
- Vamos ter uma boa sessão hoje, não é? Consigo senti-lo.
- Espero que sim.
Entrou num quarto para mudar de roupa, despiu-se e estudou o aspecto ao espelho com impassibilidade profissional. Fisicamente, era uma mulher estonteante: alta, braços e pernas graciosos, cintura elegante, pele cor de azeitona clara. Os seios eram esteticamente perfeitos: firmes, arredondados, nem demasiado pequenos nem anormalmente grandes. Os fotógrafos adoravam sempre os seus seios. A maior parte das modelos detestava o trabalho com Ungem, mas isso nunca incomodara Jacqueline. Tivera sempre mais ofertas de trabalho do que aquelas que podia encaixar na agenda.
O seu olhar passou do corpo para a cara. Tinha cabelo encaracolado, preto como um corvo, que lhe chegava aos ombros, olhos escuros, um nariz comprido e fino. As maçãs do rosto eram largas e uniformes, a linha do maxilar angulosa, os lábios carnudos. Orgulhava-se do facto de a cara nunca ter sido alterada pelo bisturi de um cirurgião. Inclinou-se para a frente, apalpou a pele à volta dos olhos. Não gostou do que viu. Não era uma linha, na realidade algo mais subtil e insidioso. O sinal intangível do envelhecer. Já não tinha os olhos de uma criança. Tinha os olhos de uma mulher com trinta e três anos.
Continuas linda, mas aceita os factos, Jacqueline. Estás a ficar velha.
Vestiu um robe branco, foi até ao quarto do lado e sentou-se. O artista de maquilhagem começou a aplicar-lhe uma base na bochecha. Jacqueline observou no espelho enquanto a sua cara era transformada lentamente na de alguém que não reconhecia bem. Interrogou-se sobre o que o avô acharia se pudesse ver isto.
Provavelmente, ficaria envergonhado...
Quando o artista de maquilhagem e o estilista para o cabelo terminaram, Jacqueline olhou-se ao espelho. Se não tivesse sido pela coragem daquelas três pessoas notáveis - os avós e Anne-Marie Delacroix -, não estaria hoje aqui.
E vê no que te tornaste - um requintado cabide para roupas.
Levantou-se, regressou ao quarto para mudar de roupa. O vestido, um traje de cerimónia preto e sem alças, aguardava-a. Tirou o robe, vestiu o traje e puxou-o sobre os seios nus. A seguir, mirou-se ao espelho. Devastadora.
Uma batida na porta.
- O Michel está pronto para si, menina Delacroix.
- Diga ao Michel que saio já. Menina Delacroix...
Mesmo passados todos estes anos, ainda não se habituara a isso: Jacqueline Delacroix. O agente, Mareei Lambert, tinha sido quem lhe alterara o nome - Sarah Halév soa demasiado... bom... sabes o que quero dizer, mon chou. Não me faças dizê-lo em voz alta. Tão vulgar, mas é assim o mundo. Por vezes, o som do seu nome francês fazia a pele arrepiar-se-lhe. Quando soube o que acontecera aos avós na guerra, ardera de ódio e suspeita em relação a todos os franceses. Sempre que via um velho, interrogava-se sobre o que teria feito durante a guerra. Teria sido um guarda em Gurs ou Lês Milles ou num dos outros campos de detenção? Teria sido um gendarme que ajudara os Alemães a reunir a sua família? Teria sido um burocrata que carimbava e processava a papelada da morte? Ou teria simplesmente permanecido em silêncio, sem fazer nada? Secretamente, dava-lhe intenso prazer estar a enganar o mundo da moda. Imagine-se a reacção deles se descobrissem que a beldade alta e magra e de cabelos pretos de Marselha era de facto uma judia da Provença, cujos avós tinham sido mortos na câmara de gás em Sobibor. De certa maneira, ser uma modelo, a imagem por excelência da beleza francesa, era a sua vingança.
Olhou uma última vez para si própria, baixando o queixo para o peito, afastando os lábios ligeiramente, trazendo fogo aos olhos pretos cor de carvão.
Agora estava pronta.
Trabalharam durante trinta minutos sem parar. Jacqueline adoptou diversas poses. Estendeu-se ao longo de uma simples cadeira de madeira. Sentou-se no chão, encostando-se para trás apoiada nas mãos, com a cabeça inclinada para cima e os olhos fechados. Pôs-se em pé com as mãos nas ancas e os olhos a perfurar a lente da máquina fotográfica de Michel. Michel parecia gostar do que estava a ver. Estavam em sintonia. De poucos em poucos minutos, parava por uns segundos para mudar de rolo, depois retomava a sessão rapidamente. Jacqueline estava na profissão há tempo suficiente para saber quando uma sessão fotográfica estava a funcionar.
Por isso, ficou surpreendida quando ele saiu de repente detrás da objectiva e passou a mão pelo cabelo. Tinha um olhar carrancudo.
- Saiam do estúdio, por favor. Preciso de privacidade. Jacqueline pensou: Oh, céus. Aqui vamos nós.
Michel perguntou:
- Mas o que raio se passa contigo?
- Não se passa nada comigo!
- Nada? Estás apática, Jacqueline. As fotos estão apáticas. Bem podia estar a tirar fotografias a um manequim com o vestido posto. Não me posso dar ao luxo de entregar à Givenchy um conjunto de fotografias apáticas. E pelo que ouço na rua, também não podes.
- O que é que isso quer dizer supostamente?
- Quer dizer que estás a ficar velha, querida. Quer dizer que ninguém tem bem a certeza de que ainda tenhas o que é preciso.
- Vai mas é para trás da máquina e mostro-te que ainda tenho o que é preciso.
- Já vi o suficiente. Simplesmente não está aí hoje.
- Tretas!
- Queres que te vá buscar uma bebida? Talvez um copo de vinho te ajude a descontrair.
- Não preciso de uma bebida.
- E que tal um pouco de coca?
- Sabes que já não snifo.
- Pois eu, sim.
- Há coisas que nunca mudam.
Michel tirou um pequeno saco de cocaína do bolso da camisa. Jacqueline sentou-se na cadeira que servia de adereço enquanto ele preparava duas linhas numa mesa com tampo de vidro. Snifou uma e a seguir ofereceu-lhe a nota de cem francos enrolada.
- Apetece-te ser uma rapariga mazinha hoje?
- É toda tua, Michel. Não estou interessada.
Ele inclinou-se e snifou a segunda linha. A seguir, limpou o vidro com o dedo e espalhou o resto pelas gengivas.
- Se não vais tomar uma bebida nem snifar uma linha, talvez tenhamos de pensar numa outra maneira de acender uma chama dentro de ti.
- Como o quê? - perguntou, mas sabia no que Michel estava a pensar.
Pôs-se atrás dela, colocou-lhe as mãos ao de leve nos ombros nus.
- Talvez precises de pensar em seres fodida.
As mãos deixaram-lhe os ombros e acariciaram-lhe a pele logo acima dos seios.
- Talvez possamos fazer alguma coisa para tornar a ideia um pouco mais realista na tua imaginação.
Pressionou-lhe a pélvis contra as costas para que ela lhe pudesse sentir a erecção por baixo das calças de cabedal. Ela afastou-se.
- Estou só a tentar ajudar, Jacqueline. Quero certificar-me de que estas fotografias saem bem. Não quero ver a tua carreira a ir pelo cano abaixo. Os meus motivos são puramente altruístas.
- Nunca soube que eras tão filantropo, Michel. Ele riu-se.
- Vem comigo. Quero mostrar-te uma coisa.
Pegou-lhe na mão e puxou-a para fora do plateau. Atravessaram um corredor e entraram num quarto que tinha apenas como mobília uma cama grande. Michel tirou a camisa e começou a desabotoar as calças.
Jacqueline perguntou:
- O que é que pensas que estás a fazer?
- Tu queres fotografias boas, eu quero fotografias boas. Vamo-nos pôr em sintonia. Tira o vestido para não ficar estragado.
- Vai-te foder, Michel. Vou-me embora.
- Vá lá, Jacqueline. Deixa-te de parvoíces e mete-te na cama.
- Não!
- Mas qual é o problema? Dormiste com o Robert Leboucher, para que ele te desse aquela sessão fotográfica de fatos de banho, em Mustique.
- Como é que soubeste?
- Porque ele me disse.
- És um sacana, e ele também! Não sou nenhuma miúda de dezassete anos que vai abrir as pernas para ti porque quer boas fotografias tiradas pelo grande Michel Duval.
- Se sais daqui para fora, a tua carreira está acabada.
- Estou-me bem a lixar. Ele apontou para a erecção.
- O que é que é suposto eu fazer acerca disto?
Mareei Lambert vivia a uma curta distância dali, na rue de Tournon, no Quartier Luxembourg. Jacqueline precisava de tempo para si própria, por isso foi a pé, demorando-se pelas ruas laterais e estreitas do Quartier Latin. A escuridão a cair, as luzes a acenderem-se nos pequenos restaurantes e nos cafés, o cheiro de cigarros e alho a fritar no ar fresco.
Atravessou para o Quartier Luxembourg. Como tinha chegado tão depressa a isto, pensou - Michel Duval, a tentar ameaçá-la para uma rapidinha entre disparos. Há uns poucos anos atrás, ele não teria pensado nisso. Mas não agora. Agora, ela estava vulnerável e Mareei tinha resolvido testá-la.
Por vezes, arrependia-se de ter entrado nesta profissão. Projectara ser bailarina - e tinha estudado na academia mais reputada de Marselha -, mas aos dezasseis anos foi descoberta por um caçador de talentos de uma agência de modelos de Paris, que deu o nome dela a Mareei Lambert. Mareei marcou uma sessão fotográfica de
teste, deixou-a mudar-se para o seu apartamento, ensinou-a a mover-se e a agir como modelo e não como bailarina. As fotos da sessão de teste foram estonteantes. Tinha dominado a objectiva, irradiado uma sexualidade brincalhona. Mareei colocou discretamente as fotografias a circular por Paris: nenhum nome, nada acerca da rapariga, apenas as fotografias e o cartão dele. A reacção foi instantânea. O telefone não parou de tocar durante uma semana. Os fotógrafos exigiam trabalhar com ela. Os estilistas queriam contratá-la para as suas apresentações de Outono. O boca a boca dos fotógrafos passou de Paris para Milão e de Milão para Nova Iorque. O mundo da moda inteiro queria saber o nome desta misteriosa beldade francesa de cabelos pretos como um corvo.
Jacqueline Delacroix.
Como as coisas eram diferentes agora. O trabalho de qualidade começara a abrandar quando fez vinte e seis anos, mas agora, que tinha trinta e três, os bons trabalhos tinham secado. Ainda recebia algum trabalho nas passarelas em Paris e Milão, no Outono, mas apenas com estilistas de segundo plano. Ainda conseguia o ocasional anúncio de lingerie - Não há nada de errado com as tuas mamas, gostava de dizer Mareei -, mas fora forçado a alugá-la para diferentes tipos de sessões fotográficas. Tinha acabado de fazer uma sessão para uma cervejaria alemã, na qual se fazia passar pela atraente mulher de um homem de meia-idade bem-sucedido.
Mareei avisara que iria acontecer assim. Dissera-lhe para poupar o dinheiro, para se preparar para uma vida depois das passagens de modelos. Jacqueline nunca se dera a esse trabalho - Tinha partido do princípio de que o dinheiro continuaria a jorrar para sempre. Às vezes, tentava lembrar-se para onde fora todo. As roupas. As casas para dormir em Paris e Nova Iorque. As férias extravagantes com as outras raparigas nas Caraíbas ou no Sul do Pacífico. A tonelada de cocaína que havia sugado pelo nariz antes de se endireitar.
Michel Duval tivera razão numa coisa: ela tinha dormido com um homem para conseguir um trabalho, um editor da Vogue francesa chamado Robert Leboucher. Era um trabalho que atraía atenção e publicidade, e do qual precisava desesperadamente - uma sessão
para fatos de banho e roupa de Verão, em Mustique. Podia mudar tudo para si - dar-lhe o dinheiro suficiente para voltar a ter estabilidade financeira, mostrar a toda a gente na indústria que ainda tinha o que era preciso para os trabalhos mais apetecíveis. Pelo menos, por mais um ano, dois, no máximo. E a seguir?
Entrou no prédio de Mareei, enfiou-se no elevador, subiu até ao apartamento dele. Quando bateu à porta, esta escancarou-se. Mareei estava ali parado, olhos esbugalhados, boca aberta.
- Jacqueline, minha ternura! Por favor, diz-me que não é verdade. Diz-me que não pontapeaste o Michel Duval nos tomates! Diz-me que ele inventou a história toda!
- Na verdade, Mareei, dei-lhe um pontapé na pila. Ele lançou a cabeça para trás e riu ruidosamente.
- Tenho a certeza de que foste a primeira mulher que alguma vez fez isso. É para o sacana aprender. Quase destruiu a Claudette. Lembras-te do que ele lhe fez? Coitadinha. Tão linda, tanto talento.
Puxou os lábios para baixo, soltou um resfolego gaulês de desaprovação, pegou-lhe na mão e puxou-a para dentro. Um instante depois, estavam a beber vinho no sofá da sua sala de estar, o zumbido do trânsito do fim de tarde a correr por entre as janelas abertas. Mareei acendeu-lhe o cigarro e apagou com destreza o fósforo, agitando-o. Vestia calças de ganga azuis justas e desbotadas, mocassins pretos e uma camisola de gola alta cinzenta. O cabelo cinzento, que estava a enfraquecer, estava cortado muito curto. Tinha feito um novo liftíng recentemente; os olhos azuis pareciam estranhamente grandes e salientes, como se estivesse constantemente surpreendido. Ela pensou naqueles dias tão longínquos, quando Mareei a trouxera para este apartamento e a preparara para a vida à sua frente. Sempre se sentira segura neste sítio.
- Então com que tipo de parvoíce é que o Michel se saiu agora?
Jacqueline descreveu a sessão, não omitindo nada. Havia poucos segredos entre eles. Quando terminou, Mareei disse:
- Provavelmente, não lhe devias ter dado um pontapé. Está
a ameaçar com um processo.
- Que tente. Todas as raparigas que coagiu a ter sexo irão testemunhar no julgamento dele. Vai destruí-lo.
- O Robert Leboucher ligou-me há uns minutos, antes de chegares. Está a tentar desistir de Mustique. Diz que não consegue trabalhar com uma mulher que dá pontapés nos fotógrafos.
- As notícias correm depressa neste negócio.
- Sempre correram. Acho que consigo convencer o Robert a ter bom senso. Mareei hesitou, depois acrescentou:
- Isto é, se quiseres que o faça.
- Claro que quero que o faças.
- Tens a certeza, Jacqueline? Tens a certeza de que ainda tens o que é preciso para este tipo de trabalho?
Deu um gole grande no vinho, encostou a cabeça ao ombro de Mareei.
- Na verdade, não tenho bem a certeza de que o tenha.
- Faz-me um favor, querida. Vai para tua casa, no Sul, por uns dias. Ou faz uma daquelas viagens longas como costumavas fazer. Tu sabes - aquelas sobre as quais eras tão misteriosa. Descansa um bocado. Desanuvia a cabeça. Pensa a sério. vou tentar convencer o Robert a ter bom senso. Mas tens de decidir se isto é mesmo
o que queres ou não.
Fechou os olhos. Talvez fosse altura de sair enquanto ainda tinha uma réstia de dignidade.
- Tens razão - disse. - Faziam-me bem uns dias no campo. Mas quero que ligues àquele cabrão do Robert Leboucher, agora mesmo, e lhe digas que esperas que cumpra a palavra em relação à sessão em Mustique.
- E se não o conseguir fazer mudar de ideias?
- Diz-lhe que lhe dou um pontapé na pila também. Mareei sorriu.
- Jacqueline, querida, sempre gostei do teu estilo.
BAYSWATER, LONDRES
Fiona Barrows parecia-se muito com o prédio de apartamentos que geria em Sussex Gardens: ampla e atarracada, com uma camada brilhante de tinta que não conseguia esconder o facto de estar a envelhecer e não de uma forma muito graciosa. A curta caminhada do elevador até à entrada do apartamento vago deixou-a ligeiramente sem fôlego. Empurrou a chave para dentro da fechadura com a mão roliça, abriu a porta com um empurrão e um pequeno grunhido.
- Cá estamos nós - cantarolou.
Guiou-o numa curta visita: uma sala de estar mobilada com sofás e cadeiras bastante gastos, dois quartos idênticos com camas de casal e mesinhas-de-cabeceira iguais, uma pequena sala de jantar com uma mesa moderna de vidro colorido de cinzento, uma exígua cozinha de navio com um fogão de dois bicos e um microondas.
Ele regressou à sala de estar, parou em frente da janela, abriu as persianas. Do outro lado da rua estava outro prédio de apartamentos.
- Se quer a minha opinião, não podia pedir uma melhor localização em Londres por este preço - disse Fiona Barrows. - Oxford Street é muito perto e, claro, o Hyde Park fica logo ao virar da esquina. Tem filhos?
- Não, não tenho - respondeu Gabriel, distraído, ainda a olhar para o prédio de apartamentos do outro lado da rua.
- Que tipo de trabalho faz, se não me leva a mal perguntar?
- Sou restaurador de arte.
- Quer dizer que arranja quadros antigos?
- Qualquer coisa do género.
- Também trata das molduras? Tenho uma moldura antiga no meu apartamento que precisa de uns remendos.
- Receio que só as pinturas.
Ela olhou para ele parado à janela, a contemplar o espaço. Um homem atraente, pensou. Mãos bonitas. Mãos boas eram sexy num homem. Imagine-se, um restaurador de arte aqui mesmo no prédio. Seria bom ter por aqui um toque de classe para variar. Oh, se ainda fosse solteira - solteira, vinte anos mais nova e nove quilos mais leve. Era um fulano cuidadoso; conseguia ver isso. Um homem que nunca dava um passo sem pensar nele por todos os ângulos. Provavelmente, iria querer ver mais uma dúzia de apartamentos antes de se decidir.
- Então, o que acha?
- É perfeito --respondeu ele para a janela.
- Para quando é que o quer? Gabriel fechou a persiana.
- Imediatamente.
Durante dois dias, Gabriel observou-o.
No primeiro dia, só o viu uma vez - quando se levantou pouco depois do meio-dia e apareceu brevemente à janela, apenas com umas cuecas pretas vestidas. Tinha cabelos escuros e encaracolados, maçãs do rosto angulosas e lábios carnudos. O corpo era magro e levemente musculado. Gabriel abriu o ficheiro de Shamron e comparou a cara à janela com a fotografia presa por um clipe à capa de papel manilha.
O mesmo homem.
Gabriel podia sentir uma frieza operacional a apoderar-se de si, à medida que estudava a figura à janela. De repente, tudo parecia mais claro e nítido por contraste. Os ruídos pareciam mais altos e mais distintos - a porta de um carro a fechar-se, amantes a discutir no apartamento ao lado, um telefone a tocar sem ser atendido,
a sua chaleira para o chá a apitar com força na cozinha. Uma por urna, desligou estas intrusões e concentrou toda a atenção no homem à janela, do outro lado da rua.
Yusef al-Tawfiki, poeta nacionalista palestiniano em part-time, estudante no University College London em part-time, empregado de um restaurante libanês chamado Kebab Factory, em Edgware Road, em part-time, agente do exército secreto de Tariq a tempo inteiro.
Uma mão apareceu no abdómen de Yusef: pele clara, luminosa em contraste com a sua tez escura. Uma mão de mulher. Gabriel viu de relance um cabelo loiro curto. A seguir, Yusef desapareceu por trás das cortinas.
A rapariga saiu uma hora mais tarde. Antes de entrar no táxi, olhou para cima, na direcção do apartamento, para ver se o amante a estava a observar. A janela estava vazia e as cortinas corridas. Fechou a porta, com um pouco mais de força do que o necessário, e o táxi partiu.
Gabriel fez a primeira avaliação operacional: Yusef não tratava as suas mulheres bem.
No dia seguinte, Gabriel decidiu montar uma vigilância física pouco apertada.
Yusef saiu do apartamento ao meio-dia. Vestia uma camisa branca, calças pretas e um casaco de cabedal preto. Ao pisar o passeio, parou para acender um cigarro e sondar os carros estacionados, à procura de qualquer sinal de vigilância. Apagou o fósforo, agitando-o, e começou a andar na direcção de Edgware Road. Cerca de noventa metros depois, parou de repente, voltou-se e regressou à entrada do prédio de apartamentos.
Uma manobra típica de contravigilância, pensou Gabriel. E um profissional.
Cinco minutos depois, Yusef estava de volta à rua e a andar na direcção de Edgware Road. Gabriel foi à casa de banho, passou gel pelo cabelo curto e pôs uns óculos coloridos de vermelho. A seguir, vestiu o casaco e saiu.
Do outro lado da rua, em frente ao Kebab Factory, ficava um restaurante italiano. Gabriel entrou e sentou-se a uma mesa junto
à janela. Recordou-se das palestras na Academia. Se estivermos a vigiar um alvo a partir de um café, não devemos fazer coisas que nos façam parecer estar a vigiar um alvo a partir de um café, tais como ficarmos sentados sozinhos durante horas, a fingir estarmos a ler um jornal. Demasiado óbvio.
Gabriel transformou-se. Tornou-se Cedric, escritor para uma revista cultural de Paris. Falou inglês com um sotaque francês quase impenetrável. Afirmou estar a trabalhar numa história sobre o porquê de Londres ser tão excitante hoje em dia e Paris tão monótona. Fumou cigarros Gitane e bebeu uma grande quantidade de vinho. Manteve uma conversa entediante com um par de raparigas suecas na mesa ao lado. Convidou uma delas a ir até ao seu quarto de hotel. Quando ela recusou, convidou a outra. Quando ela recusou, convidou as duas. Entornou um copo de Chianti. O gerente, Signor Andriotti, veio até à mesa e avisou Cedric para estar sossegado ou teria de se ir embora.
E, no entanto, durante todo esse tempo, Gabriel estava a vigiar Yusef do outro lado da rua. Vigiou-o enquanto ele lidava com perícia com a multidão do almoço. Vigiou-o quando saiu por momentos do restaurante e subiu a rua até a uma tabacaria que vendia jornais de língua árabe. Vigiou-o enquanto uma rapariga morena, bonita, anotou o número de telefone nas costas de um guardanapo e o enfiou no bolso da camisa dele para não se perder. Vigiou-o enquanto mantinha uma longa conversa com um árabe de ar vigilante. Na verdade, no momento em que Gabriel despejava o Chianti, estava a memorizar a marca e a matrícula do Nissan do árabe. E enquanto afastava o exasperado Signor Andriotti, estava a vigiar Yusef a falar ao telefone. com quem estava a falar? Uma mulher? Um primo em Ramallah? O seu controleiro?
Passada uma hora, Gabriel decidiu que já não era sensato permanecer no café. Pagou a conta, deixou uma gorjeta generosa e pediu desculpas pelo comportamento grosseiro. Signor Andriotti guiou-o até à porta e fê-lo sair gentilmente.
Nessa noite, Gabriel estava sentado na cadeira junto à janela, à espera de que Yusef regressasse a casa. A rua brilhou com o
combóio da noite. Uma mota passou em alta velocidade, um rapaz a conduzir, uma rapariga à pendura, a implorar-lhe para abrandar. Provavelmente nada, mas tomou nota disso no livro de registos, juntamente com as horas: onze e um quarto.
Estava com dores de cabeça devido ao vinho. O apartamento já o começava a deprimir. Quantas noites tinha passado assim? Sentado num estéril apartamento seguro do Departamento ou num manhoso quarto arrendado, a vigiar, a aguardar. Ansiava por algo lindo, por isso enfiou um disco compacto de La Bohème na aparelhagem portátil aos seus pés e reduziu o volume até a um sussurro. Trabalho de espionagem é paciência, Shamron sempre o dissera. Trabalho de espionagem é tédio.
Levantou-se, foi até à cozinha, tomou aspirina para a dor de cabeça. Na porta ao lado, uma mãe e uma filha começaram a discutir num árabe com sotaque libanês. Um copo partiu-se, depois outro, uma porta bateu com força, uma correria lá fora no corredor.
Gabriel voltou a sentar-se e fechou os olhos, e um momento depois estava de volta ao Norte de África, há doze anos atrás.
Os botes de borracha chegaram à costa com a rebentação suave em E.ouad. Gabriel saltou para a água quente e a dar pelas canelas e puxou o bote para a areia. O grupo de comandos Sayaret seguiram-no ao longo da praia, as armas ao seu lado. Algures, um cão ladrava. O aroma a fumo de madeira e carne grelhada pairava no ar. A rapariga estava à espera ao volante de um miniautocarro Volkswagen. Quatro dos comandos entraram no Volkswagen com Gabriel. O resto enfiou-se num par de carrinhas Peugeot estacionadas por trás do miniautocarro. Uns segundos mais tarde, os motores começaram a trabalhar em uníssono e partiram velozmente pela noite fresca de Abril.
Gabriel usava um microfone de lábios ligado a um pequeno transmissor no bolso do casaco. O rádio emitia, através de uma onda segura, para um Boeing
707 especialmente equipado e a voar mesmo ao lado da costa tunisina, num corredor aéreo civil, fazendo-se passar por um El Al charter. Se algo corresse mal, podiam abortar a missão em segundos.
- A Mãe chegou bem - murmurou Gabriel.
Soltou o botão para falar e ouviu as palavras:
- Continuem até à casa da Mãe.
Gabriel segurou a Beretta entre os joelhos durante o percurso e fumou devido aos nervos. A rapariga manteve as duas mãos no volante, os olhos fixos nas ruas escurecidas. Era alta, mais alta do que Leah, com olhos pretos e uma juba de cabelo escuro segura por um simples gancho prateado na nuca. Sabia o caminho tão bem quanto Gabriel. Quando Shamron enviou Gabriel para Tunes para estudar o alvo, a rapariga tinha ido consigo efeito passar-se por sua mulher. Gabriel esticou-se e apertou-lhe o ombro gentilmente enquanto conduzia. Os músculos estavam rígidos.
- Relaxa - disse suavemente, e ela sorriu por um breve instante e soltou um longo suspiro. - Estás a ir muito bem.
Entraram em Sidi Boussaid, um subúrbio abastado de Tunes não muito longe do mar, e estacionaram à entrada da vivenda. Os Peugeots pararam atrás deles. A rapariga desligou o motor. Doze e quinze. Exactamente na hora prevista.
Gabriel conhecia a casa de férias tão bem quanto a sua casa. Estudara-a e fotografara-a de todas as posições privilegiadas possíveis e imagináveis, durante a operação de vigilância. Tinham construído uma réplica perfeita no Negev, onde ele e o resto da equipa ensaiaram o ataque inúmeras vezes. Durante a sessão final, conseguiram levar a cabo a missão em vinte e dois segundos.
- Chegámos à casa da Mãe - Gabriel murmurou ao rádio.
- Façam uma visita à mãe. Gabriel voltou-se e disse:
- Vamos.
Abriu aporta do miniautocarro e atravessou a rua, a andar velozmente, não a correr. Conseguia escutar os passos silenciosos do grupo Sayaret atrás de si. Gabriel inspirou várias vezes para tentar baixar o ritmo cardíaco. A casa de férias pertencia a Khalil el-Wair, mais conhecido por Abu ]ihad, chefe de operações da OLP e o tenente de maior confiança de Yasser Arafat.
Logo aporta da casa de férias, o motorista de Abu ihad estava a dormir atrás do volante de um Mercedes, um presente de Arafat. Gabriel enfiou aponta da Beretta com silenciador no ouvido do motorista, puxou o gatilho, continuou a andar.
A entrada para a casa de férias, Gabriel afastou-se enquanto um par de comandos Sayaret prendiam um plástico silencioso especial à porta pesada.
O explosivo detonou, emitindo menos som do que um bater de palmas, e a porta explodiu. Gabriel liderou o grupo pelo hall de entrada adentro, a Beretta nas mãos estendidas.
Um segurança tunisino apareceu. Enquanto procurava sacar da arma, Gabriel alvejou-o por diversas vezes no peito.
Gabriel debruçou-se sobre o moribundo e disse.
- Diz-me onde ele está e não te dou um tiro no olho.
Mas o segurança limitou-se a soltar um esgar de dor e não respondeu nada.
Gabriel deu-lhe dois tiros na cara.
Subiu as escadas, enfiando um carregador novo na Beretta enquanto andava, e dirigiu-se até ao estúdio onde Abu Jihad passava a maior parte das noites a trabalhar. Irrompeu pela porta e encontrou o palestiniano sentado à frente de uma televisão, a ver notícias da intifada, que estava a ajudar a dirigir a partir de Tunes. Abu jihad tentou chegar a uma pistola. Gabriel avançou enquanto disparava, tal como Shamron o treinara para fazer. Dois dos disparos atingiram Abu Jihad no peito. Gabriel debruçou-se sobre ele, empurrou-lhe a arma contra a têmpora e disparou mais duas vezes. O corpo agitou-se num espasmo de morte.
Gabriel precipitou-se para fora da sala. No corredor, estava a mulher de Abu Jihad, a apertar o filho pequeno nos braços, e a sua filha adolescente. Fechou os olhos e agarrou o rapaz com mais força, à espera que Gabriel a matasse.
- Volte para o seu quarto! - gritou ele em árabe. Depois voltou-se para afilha:
- Vai e cuida da tua mãe.
Gabriel escapuliu-se da casa, seguido pelo grupo Sayaret inteiro. Amontoaram-se no miniautocarro e nos Peugeots e partiram a toda a velocidade. Atravessaram Sidi Boussaid, de volta até Rouad, onde abandonaram os veículos na praia e subiram para os botes. Um instante depois, estavam a acelerar pela superfície negra do Mediterrâneo, em direcção às luzes de um barco-patrulha israelita que aguardava.
- Treze segundos, Gabriel! Fizeste-o em treze segundos!
Era a rapariga. Esticou-se para o tocar, mas ele recuou. Viu as luzes do barco a aproximarem-se. Olhou para o céu preto, à procura do avião de comando, mas viu apenas uma Lua fina e uma chuva de estrelas. A seguir, viu os
rostos da mulher e dos filhos de Abu Jihad, a olhar fixamente para si, com ódio a arder-lhes nos olhos,
Atirou a Beretta para o mar e começou a tremer.
A discussão na porta ao lado tinha acalmado. Gabriel queria pensar em algo sem ser Tunes, por isso imaginou estar a velejar na sua chalupa por Helford Passage, a caminho do mar. Depois pensou no Vecellio, despido de verniz sujo, os estragos de séculos à mostra. Pensou em Peel e, pela primeira vez nesse dia, pensou em Dani. Lembrou-se de estar a puxar o que restava do seu corpo dos destroços flamejantes do carro em Viena, de verificar se, de algum modo, teria sobrevivido, de agradecer a Deus por ter morrido depressa e não ter sobrevivido com um braço e uma perna e metade da cara.
Levantou-se e andou pelo quarto, a tentar fazer com que a imagem desaparecesse, e, por alguma razão, deu por si a pensar na mãe de Peel. Várias vezes, durante a estadia em Port Navas, tinha dado por si a fantasiar com ela. Começava sempre do mesmo modo. Davam de caras um com o outro na aldeia e ela anunciava de forma espontânea que Derek tinha saído para uma longa caminhada pelo Lizard, para tentar emendar o segundo acto.
- Vai demorar horas - dizia. - Quer ir lá a casa tomar um chá?
Respondia que sim, mas em vez de servir chá, ela levava-o até lá acima, para a cama de Derek, e deixava-o descarregar nove anos de abstinência auto-imposta no seu corpo flexível. A seguir, ficava deitada com a cabeça no estômago dele, o cabelo húmido espalhado ao longo do peito dele.
- Não és mesmo um restaurador de arte, pois não? - perguntava na fantasia.
E Gabriel contava-lhe a verdade:
- Mato pessoas para o governo de Israel. Matei Abu Jihad à frente da mulher e dos filhos. Matei três pessoas em treze segundos nessa noite. O primeiro-ministro deu-me uma medalha por isso. Já tive uma mulher e um filho, mas um terrorista pôs uma bomba por baixo do carro deles porque tive um caso com a minha bat leveyha em Tunes.
E a mãe de Peel corria para fora do chalé a gritar, o corpo enrolado num lençol de cama branco, o lençol manchado com o sangue de Leah.
Regressou à cadeira e esperou por Yusef. O rosto da mãe de Peel tinha sido substituído pelo rosto da Virgem Maria de Vecellio. Para ajudar a preencher as horas livres, Gabriel mergulhou um pincel imaginário num pigmento imaginário e curou com ternura a sua bochecha ferida.
Yusef chegou a casa às 3 horas da manhã. Estava uma rapariga consigo, a rapariga que lhe tinha dado o número de telefone naquela tarde no restaurante. Gabriel observou-os a desaparecer pela entrada da frente. Lá em cima, no apartamento, as luzes acenderam-se por breves momentos, antes de Yusef fazer a aparição nocturna à janela. Gabriel desejou-lhe uma boa noite enquanto ele desaparecia por trás da cortina. A seguir, deixou-se cair no sofá e fechou os olhos. Hoje tinha observado. Amanhã começaria a escutar.

AMESTERDÃO

Três horas mais tarde, uma jovem esbelta chamada Inge van der Hoff saiu de um bar no bairro da luz vermelha e caminhou depressa por uma viela estreita. Saia preta de cabedal, meias pretas, casaco preto de cabedal, botas a causar um estardalhaço nos tijolos da viela. As ruas da parte velha ainda estavam escuras, uma neblina leve a cair. Levantou a cara em direcção ao céu. A neblina sabia a sal, cheirava ao mar do Norte. Passou por dois homens, um bêbado e um vendedor de haxixe, baixou a cabeça, continuou a andar. O patrão não gostava que voltasse a pé para casa de manhã, mas após uma longa noite a servir bebidas e a repelir os avanços de clientes embriagados, sabia sempre bem ficar sozinha por uns minutos.
De repente, sentiu-se muito cansada. Precisava de dormir. Pensou: Do que eu preciso mesmo é de uma dose. Espero que a Leila se tenha orientado esta noite.
Leila... Adorava o som do nome dela. Adorava tudo acerca dela. Tinham-se conhecido duas semanas antes no bar. Leila tinha vindo por três noites consecutivas, sempre sozinha. Ficava durante uma hora, bebia um shot de. jenever1, uma Grolscti1, umas passas de haxixe, ouvia a música. De cada vez que Inge ia até à mesa dela, conseguia sentir os olhos da rapariga postos em si. Inge tinha de admitir que
1 licor alcoólico tradicional holandês e da Flandres, de sabor a zimbro. (N. da T.)
2 Marca de cerveja holandesa. (N. da T.)
admitir que gostava. Era uma mulher estonteantemente atraente, com cabelo preto lustroso e grandes olhos castanhos. Por fim, na terceira noite, Inge apresentou-se e começaram a conversar. Leila disse que o pai era um homem de negócios e que ela tinha vivido por todo o mundo. Disse que estava a tirar um ano de descanso dos estudos em Paris, apenas a viajar e a viver a vida. Disse que Amesterdão a encantava. Os canais pitorescos. As casas com empenas, os museus e os parques. Queria ficar por uns meses, ficar a conhecer o sítio.
- Onde é que estás a morar? - perguntara Inge.
- Numa pousada da juventude no Sul de Amesterdão. É horrível. Onde é que moras?
- Numa casa flutuante no Amstel.
- Uma casa flutuante! Que maravilha.
- É do meu irmão, mas ele está em Roterdão durante uns meses a trabalhar num grande projecto de construção.
- Estás a oferecer-te para me deixares dormir na tua casa flutuante durante uns dias?
- Estou a oferecer-me para te deixar ficar o tempo que quiseres. Não gosto de chegar a casa e encontrar um sítio vazio.
A alvorada estava a nascer no rio, as primeiras luzes a brilhar nas casas flutuantes alinhadas no dique. Inge andou uma pequena distância ao longo do cais, depois pisou o convés da sua casa. As cortinas estavam corridas sobre as janelas. Atravessou o convés e entrou na cabina. Esperava encontrar Leila a dormir na cama, mas, em vez disso, estava ao fogão a fazer café. No chão, ao seu lado, estava uma mala. Inge fechou a porta, a tentar esconder o desapontamento.
- Telefonei ao meu irmão em Paris a noite passada, enquanto estavas no trabalho - disse Leila. - O meu pai está muito doente. Tenho de ir já para casa, para estar com a minha mãe. Desculpa, Inge.
- Vais estar fora quanto tempo?
- Uma semana, duas, no máximo.
- Vais voltar?
- Claro que vou voltar!
Beijou a bochecha de Inge e passou-lhe uma chávena de café.
- O meu voo parte daqui a duas horas. Senta-te. Preciso de falar contigo sobre uma coisa.
Sentaram-se na cabina. Leila disse:
- Um amigo meu chega a Amesterdão amanhã. Chama-se Paul. É francês. Estava a pensar se podia cá ficar por alguns dias até arranjar um sítio para ele.
- Leila, não...
- É um bom homem, Inge. Não vai tentar nada contigo, se é com isso que estás preocupada.
- Sei tomar conta de mim.
- Então vais deixar o Paul cá ficar por alguns dias?
- Quantos dias são alguns dias?
- Uma semana, talvez.
- E o que é que recebo em troca?
Leila enfiou a mão no bolso, tirou um pequeno saco de pó branco e segurou-o à frente de si, entre o polegar e o indicador. Inge esticou-se e sacou-o.
- Leila, és um anjo!
- Eu sei.
Inge foi para o quarto e abriu a gaveta de cima da cómoda. Lá dentro, estava o seu kit caixa de seringas, vela, colher, tubo de borracha para atar à volta do braço. Preparou a droga enquanto Leila arrumava as últimas coisas. Introduziu a droga na seringa e enfiou com cuidado a agulha numa veia no braço esquerdo.
Um momento depois, o corpo foi invadido por uma sensação intensamente agradável de dormência. E a última coisa de que se lembrou, antes de ficar inconsciente, foi da visão de Leila, a sua amante linda, a sair pela porta fora e a pairar pelo cais da casa flutuante.
BAYSWATER, LONDRES
Randall Karp, anteriormente do Departamento de Serviços Técnicos, em Langley, Virgínia, nos últimos tempos da dubiamente apelidada Clarendon International Security, em Mayfair, Londres, chegou ao apartamento de Gabriel em Sussex Gardens nos momentos tranquilos que antecedem a alvorada. Vestia um pulôver de lã para se proteger do frio matinal, calças de ganga azul-claras e sandálias de camurça a combinar com as meias grossas de lã de um amante do ar livre. Nas extremidades de cada um dos braços, parecidos com os de uma aranha, estava um saco de lona, um com o seu kit, o outro com as ferramentas do ofício. Pousou os sacos na sala de estar com um ar de contentamento discreto e apreciou o ambiente.
- Gosto do que fizeste com o sítio, Gabe.
Falava com o sotaque monótono do Sul da Califórnia e, desde que Gabriel o vira pela última vez, deixara crescer um rabo-de-cavalo para compensar a calvície que alastrava rapidamente.
- Até tem o cheiro certo. O que é? Caril? Cigarros? Um pouco de leite estragado? Acho que vou gostar de estar cá.
- Estou muito satisfeito. Karp dirigiu-se para a janela.
- Então, onde é que está o nosso rapaz?
- Terceiro andar, directamente por cima da entrada. Cortinas brancas.
- Quem é ele?
- É um palestiniano que deseja fazer mal ao meu país.
- Era capaz de chegar até aí sozinho. Podes desenvolver? Hamas? Hezbollah? Jihad Islâmica?
Mas Gabriel não disse nada e Karp percebeu que não devia insistir. Karp era um consumado técnico de som, e os técnicos estavam acostumados a trabalhar apenas com metade da informação. Tinha atingido um estatuto lendário dentro da comunidade dos serviços secretos ocidental por ter monitorizado, com sucesso, um encontro entre um russo e um agente em Praga, ao prender um microfone na coleira do cão do russo. Gabriel conhecera-o em Chipre, durante uma operação de vigilância conjunta entre americanos e israelitas a um agente líbio. A seguir à operação, por sugestão de Shamron, Gabriel alugou um iate e levou Karp a velejar à volta da ilha. A destreza náutica de Karp era tão boa quanto o trabalho de vigilância e, durante os três dias de cruzeiro, construíram uma ligação profissional e pessoal.
- Porquê eu, Gabe? - perguntou Karp. - Os vossos rapazes têm os melhores brinquedos do ramo. Coisas lindas. Porque é que precisas de um forasteiro como eu para fazer um trabalho simples como este?
- Porque os nossos rapazes ultimamente não têm sido capazes de fazer um trabalho como este sem se queimarem.
- Pois, li que não. Preferia não acabar na cadeia, Gabe, se me estás a entender.
- Ninguém vai para a cadeia, Randy. Karp voltou-se e contemplou a janela.
- Então e o rapaz do outro lado da rua? Vai para a cadeia ou tens outros planos para ele?
- O que é que estás a perguntar?
- Estou a perguntar se este vai acabar numa viela, cheio de buracos de balas de calibre vinte e dois. As pessoas têm o hábito esquisito de acabarem mortas sempre que apareces.
- É um trabalho de vigilância puro e simples. Quero saber com quem está a falar, o que está a dizer. O habitual.
Karp dobrou os braços e estudou os ângulos.
- É um profissional?
- Parece ser bom. Muito disciplinado na rua.
- Podia tentar apontar para o vidro da janela, mas se é um profissional, vai tomar medidas reactivas e fazer-nos a vida num inferno. Para além disso, o laser não é muito discriminativo. Lê as vibrações do vidro e converte-as em som. O trânsito faz o vidro vibrar, o vento, os vizinhos, o leitor de CD dele. Não é a melhor maneira de o fazer.
- O que é que queres fazer?
- Podia apanhar o telefone dele desde a caixa de interface dos assinantes.
- Interface dos assinantes?
Karp levantou a mão e apontou em direcção ao prédio de apartamentos.
- Aquela caixa de metal na parede logo ali à esquerda da entrada. É aí que as linhas da British Telecom entram no edifício. A partir daí, as linhas estendem-se para os assinantes individuais. Podia pôr uma simples escuta rf na linha dele ali mesmo. Transmitiria um sinal analógico e conseguiríamos ouvir as conversas telefónicas a partir daqui, com um rádio FM normal.
- Também preciso de cobertura das salas.
- Se queres uma boa cobertura das salas, vais ter de entrar no apartamento.
- Então entramos no apartamento. !
- É assim que as pessoas vão parar à cadeia, Gabe.
- Ninguém vai para a cadeia.
- O nosso rapaz tem um computador?
- Presumo que sim. É estudante em part-time.
- Podia enfiar-lhe com uma Tempestade.
- Desculpa, Randy, mas estive fora do jogo por alguns anos.
- É um sistema que foi desenvolvido por um cientista holandês chamado Van Eyck. O computador comunica com o monitor transmitindo sinais pelo cabo. Esses sinais têm frequência e podem ser captados por um receptor devidamente sintonizado. Se estiver a fazer negócios ao computador, podemos vigiá-lo a partir daqui. Será como estar por cima do ombro dele enquanto trabalha.
- Faz isso - disse Gabriel. - Também quero o telefone de trabalho.
- Onde é que ele trabalha?
- Num restaurante em Edgware Road.
- Uma escuta rf nunca será capaz de transmitir de Edgware Road até aqui. A perda durante o caminho é demasiado grande. vou precisar de instalar um repetidor, um ponto para um interruptor electromagnético entre o restaurante e aqui, para aumentar o sinal.
- Do que é que precisas? - De um veículo qualquer. ?;
- Um carro serve?
- Um carro será óptimo.
- Arranjo-te um hoje.
- Limpo?
- Limpo.
- Vais arranjá-lo de um dos teus ajudantezinhos?
- Não te preocupes com a forma como o vou arranjar.
- Mas, por favor, não o roubes. Não quero estar a guiar um carro procurado.
Nesse momento, Yusef apareceu à janela e iniciou a inspecção matinal à rua em baixo.
- Então aquele é o nosso rapaz? - perguntou Karp.
- É ele.
- Diz-me uma coisa, Gabe. Exactamente como é que estás a planear entrar no apartamento?
Gabriel olhou para Karp e sorriu.
- Ele gosta de raparigas.
Às duas horas da manhã seguinte, Gabriel e Karp entraram furtivamente na viela por trás do Kebab Factory. Para chegar à caixa de interface dos assinantes, Karp teve de se equilibrar em cima de um caixote de lixo grande, ondulado e cheio de lixo a apodrecer. Forçou a fechadura, abriu a portinha e, durante dois minutos, trabalhou em silêncio, sob o feixe fraco da luz de uma caneta segura entre os dentes da frente.
Gabriel ficou de guarda em baixo, com a atenção concentrada na entrada da viela.
- Falta muito? - murmurou.
- Um minuto, se te calares. Dois, se insistires em falar comigo. Gabriel voltou a olhar para baixo e avistou dois homens com
casacos de cabedal a andar na sua direcção. Um pegou numa garrafa e partiu-a contra uma parede. O amigo quase caiu de riso.
Gabriel afastou-se uns centímetros de Karp, encostou-se a uma parede e fingiu estar doente. Os dois homens acercaram-se. O maior agarrou-lhe o ombro. Tinha uma cicatriz branca em relevo ao longo da bochecha direita e tresandava a cerveja e a uísque. O outro sorriu de forma estúpida, a mostrar os dentes. Era magro e tinha rapado a cabeça. A pele clara brilhava na luz fraca da viela.
- Por favor, não quero problemas - disse Gabriel, num inglês com sotaque francês. - Só estou doente. Bebi demasiado, sabem?
- O raio de um franciú - cantarolou o careca. - E tem ar de maricas, também.
- Por favor, não quero problemas - repetiu Gabriel. Levou a mão ao bolso, tirou várias notas amarrotadas de vinte
libras e estendeu-as.
- Pronto, levem-me o dinheiro. Mas deixem-me em paz.
Mas o grande com a cicatriz arrancou o dinheiro da mão de Gabriel com uma chapada. A seguir, recuou o punho e lançou um soco violento em arco na direcção da cabeça de Gabriel.
Dez minutos mais tarde, estavam de volta ao apartamento. Karp estava sentado em frente ao equipamento na mesa da sala de jantar. Pegou num telemóvel e ligou para o restaurante. Enquanto a chamada estava a tocar, pousou o telefone e aumentou o volume do receptor. Conseguia ouvir uma mensagem gravada a dizer que o Kebab Factory estava fechado e não voltaria a abrir até às onze e trinta do dia seguinte. Marcou o número outra vez e mais uma vez conseguiu ouvir a mensagem pelo receptor. A escuta e o repetidor estavam a funcionar na perfeição.
Enquanto guardava as ferramentas, pensou na contribuição de Gabriel para o trabalho daquela noite. Durara precisamente três segundos, pelos cálculos de Karp. Não viu nada - a sua atenção tinha permanecido fixada no trabalho -, mas ouvira tudo. Tinha havido quatro golpes duros. O último foi o mais cruel. Karp ouvira sem sombra de dúvida ossos a partirem-se. Tinha olhado para baixo apenas depois de terminar a instalação e fechar a caixa. Nunca mais iria esquecer a visão: Gabriel Allon, a debruçar-se sobre cada uma das vítimas, a verificar-lhes a garganta com suavidade, à procura de pulso, certificando-se que não os tinha matado.
Na manhã seguinte, Gabriel saiu para comprar o jornal. Percorreu a caminho até Edgware Road sob um chuvisco fraco e comprou um exemplar do The Times numa banca. Aconchegou o jornal dentro do casaco e caminhou pela rua até a um pequeno mercado. Lá, comprou cola, tesouras e um segundo exemplar do The Times.
Karp ainda estava a dormir quando Gabriel regressou ao apartamento. Sentou-se à mesa com duas folhas de papel simples à frente. No cimo de uma página, escreveu a autorização de segurança - top secret - e o destinatário - Rom, o nome de código para o chefe.
Durante quinze minutos, Gabriel escreveu, a mão direita a rabiscar ritmicamente ao longo da página, a esquerda encostada à têmpora. A prosa era concisa e económica, como Shamron gostava.
Quando terminou, pegou num exemplar do The Times, abriu na página oito e recortou com cuidado um anúncio grande a uma cadeia de lojas de roupa para homens. Deitou fora o resto do jornal, depois pegou no segundo exemplar e abriu-o na mesma página. Colocou o relatório por cima do anúncio, depois colou o recorte por cima do relatório. Dobrou o jornal e enfiou-o no bolso lateral de um pequeno saco de viagem preto. Depois vestiu um casaco, pôs a mala ao ombro e saiu.
Andou até Marble Arch e entrou no metro. Comprou um bilhete na máquina automática e antes de passar pelos torniquetes fez
um telefonema curto. Quinze minutos mais tarde, chegou a Waterloo.
O bodel de Shamron estava à espera num café no terminal de bilhetes Eurostar, a segurar um saco de compras de plástico com o nome de um cigarro americano. Gabriel sentou-se na mesa ao lado, a beber chá e a ler o jornal. Quando terminou o chá, levantou-se e foi-se embora, deixando o jornal para trás. O bodel enfiou-o no saco de compras e partiu na direcção oposta.
Gabriel aguardou no terminal que o seu comboio fosse chamado. Dez minutos mais tarde, embarcou no Eurostar para Paris.

 

AMESTERDÃO
A elegante casa no canal ficava no Herengracht, na Curva Dourada do Anel Central do Canal de Amesterdão. Era alta e ampla, com grandes janelas com vista para o canal e uma empena elevada. O proprietário, David Morgenthau, era o multimilionário presidente da Optique, um dos maiores fabricantes do mundo de óculos de designer. Era também um sionísta fervoroso. Ao longo dos anos, tinha dado milhões de dólares a obras de caridade israelitas e investido ainda mais milhões em negócios israelitas. Americano de origem judia-holandesa, Morgenthau estivera nas direcções de várias organizações judaicas nova-iorquinas e era visto como um falcão no que dizia respeito a assuntos da segurança israelita. Ele e a mulher, Cynthia, uma designer de interiores nova-iorquina de renome, visitavam a sua casa em Amesterdão com regularidade e precisão, duas vezes por ano - uma vez no Verão, a caminho da vivenda à saída de Cannes, e uma vez mais no Inverno, para as férias.
Tariq estava sentado num café do outro lado do canal, a beber chá doce quente. Sabia outras coisas acerca de David Morgenthau
- coisas que não apareciam nas páginas de sociedade ou nas revistas de negócios do mundo. Sabia que Morgenthau era amigo íntimo do primeiro-ministro israelita, que tinha feito certos favores a Ari Shamron e que em tempos servira de elo de ligação secreto entre o governo israelita e a OLP. Por todas essas razões, Tariq ia matá-lo.
Leila preparara um relatório de vigilância pormenorizado
durante a estada em Amesterdão. David e Cynthia Morgenthau saíam todas as manhãs de casa para visitar museus ou ir patinar no gelo para o campo. Durante o dia, a única pessoa que ficava em casa era a empregada, uma rapariga holandesa.
Isto vai ser muito fácil.
Um Mercedes com motorista travou a fundo à porta da casa. Tariq olhou para o relógio: quatro horas da tarde, mesmo na hora. Um homem alto e de cabelo grisalho saiu do carro. Vestia uma camisola grossa e pesadas calças de tecido canelado e carregava dois pares de patins no gelo. Um momento depois, saiu uma mulher atraente, vestida com umas calças justas de lã preta e um pulôver. Ao entrarem na casa, o Mercedes arrancou.
Tariq deixou uns quantos florins em cima da mesa e saiu.
A neve caía sobre o Herengracht, enquanto se deslocava lentamente em direcção à casa flutuante no Amstel. Um par de ciclistas passaram a deslizar de forma silenciosa, deixando faixas de preto na neve recente. O anoitecer numa cidade estrangeira fazia-o sempre ficar melancólico. Luzes a acenderem-se, escritórios a esvaziarem-se, bares e cafés a encherem lentamente. Através das janelas amplas das casas do canal, conseguia ver pais a regressar a casa e aos filhos, maridos a regressar a casa e às mulheres, amantes a reunirem-se, luzes calorosas a trabalhar. Vida, pensou. A vida de outra pessoa, a terra natal de outra pessoa.
Pensou no que Kemel lhe tinha contado durante o encontro no comboio. A antiga némesis de Tariq, Gabriel Allon, fora trazida de volta para ajudar Ari Shamron a encontrá-lo. A notícia não o preocupou. Na realidade, recebeu-a com prazer. Ia tornar as próximas semanas ainda mais doces. Imagine-se, destruir o suposto processo de paz e acertar contas com Gabriel Allon, tudo ao mesmo tempo...
Matar Allon não seria fácil, mas enquanto vagueava ao longo das margens do Herengracht, percebeu que já tinha uma vantagem clara sobre o seu oponente. O simples facto de saber que Allon estava algures por aí à sua procura dava vantagem a Tariq. O caçador
tem de vir até à presa para desferir o golpe mortal. Se Tariq jogasse bem o jogo, podia atrair Allon a uma armadilha. E depois mato-o, como ele matou o Mahmoud.
Os serviços secretos têm duas formas essenciais de tentar apanhar um terrorista. Podem utilizar a sua tecnologia superior para interceptar as comunicações do terrorista, ou podem penetrar na organização deste, introduzindo um espião ou convencendo um agente activo a trocar de lado. Tariq e Kemel tinham cuidado com o modo como comunicavam. Evitavam os telefones e a Internet sempre que possível e utilizavam em vez disso correios. Como o idiota que o Kemel enviou para Samos! Não, não seriam capazes de o localizar interceptando-lhe as comunicações, por isso teriam de tentar penetrar no seu grupo. Era difícil para uma agência de espionagem penetrar em qualquer grupo terrorista, mas ia ser ainda mais difícil entrar na de Tariq. A organização era pequena, muito unida e bastante móvel. Eram dedicados à luta, muito bem treinados e intensamente leais. Nenhum dos seus agentes o ia alguma vez atraiçoar aos judeus.
Tariq podia utilizar isto como vantagem. Tinha dado instruções a Kemel para contactar todos os agentes e lhes dar uma simples instrução. Se algum reparasse em algo fora do normal - tal como vigilância ou uma abordagem de um estranho -, devia-o comunicar de imediato. Se Tariq conseguisse estabelecer que os serviços secretos israelitas estavam envolvidos, seria de imediato transformado de presa em caçador.
Pensou numa operação que havia conduzido enquanto ainda estava com a Jihaz el-Razd, o braço de espionagem da OLP. Tinha identificado um agente do Departamento a trabalhar com cobertura diplomática a partir da Embaixada israelita em Madrid. O funcionário conseguira recrutar diversos espiões no interior da OLP e Tariq decidira que era altura de se vingar. Enviou um palestiniano para Madrid, fazendo-o passar por desertor. O palestiniano encontrou-se com o funcionário israelita dentro da embaixada e prometeu entregar informação sensível sobre os líderes da OLP e os seus hábitos. De início, o israelita recusou. Tariq tinha-o previsto, por isso dera ao agente vários pedaços de informação verdadeira e relativamente
inofensiva - tudo coisas que os israelitas já sabiam. O israelita acreditou que estava a lidar com um verdadeiro desertor e concordou em encontrar-se com o palestiniano uma segunda vez, num café, uma semana mais tarde. Mas desta vez Tariq viajou para Madrid. Entrou no café à hora combinada, disparou dois tiros na cara do funcionário e saiu calmamente.
Chegou ao rio e andou uma pequena distância ao longo do dique, até chegar à casa flutuante da rapariga. Era um sítio deprimente - sujo, cheio de acessórios para drogas e sexo - mas um lugar perfeito para se esconder enquanto planeava o ataque. Atravessou o convés coberto pela neve recente, e entrou na cabina muito fria. Tariq ligou um candeeiro e a seguir ligou o pequeno aquecedor eléctrico. Conseguia ouvir a rapariga a mexer-se no quarto, por baixo dos cobertores. Era um farrapo patético, nada como a rapariga com quem tinha ficado em Paris. Ninguém iria sentir falta desta quando desaparecesse.
Virou-se e olhou para ele através das madeixas do cabelo loiro fino e seco.
- Onde é que estiveste? Estava preocupada contigo.
- Fui só andar um pouco. Adoro andar nesta cidade, especialmente quando está a nevar.
- Que horas são?
- Quatro e meia. Não devias estar a sair da cama?
- Só tenho de sair daqui a uma hora.
Tariq preparou-lhe uma caneca de Nescafé e levou-a até ao quarto. Inge virou-se e apoiou-se no cotovelo. O cobertor caiu-lhe pelo corpo abaixo, expondo-lhe os seios. Tariq entregou-lhe o café e desviou o olhar. A rapariga bebeu o café, os olhos a olhar para ele por cima da asa da caneca. Perguntou:
- Alguma coisa errada?
- Não, nada.
- Porque é que desviaste o olhar?
Sentou-se e afastou os cobertores. Ele queria dizer que não, mas temeu que ela pudesse ficar com suspeitas de um francês que resistisse aos avanços de uma rapariga atraente. Por isso, ficou parado
à borda da cama e deixou-a despi-lo. Uns momentos mais tarde, enquanto explodia dentro dela, não pensava na rapariga mas sim em como iria finalmente matar Gabriel Allon.
Deixou-se ficar na cama muito tempo depois de ela ter saído, a ouvir os sons dos barcos a moverem-se pelo rio. A dor de cabeça veio uma hora mais tarde. Agora vinham com mais frequência três, às vezes quatro por semana. O médico avisara-o de que se iria passar assim. A dor foi-se intensificando devagar e quase perdeu os sentidos com ela. Colocou uma toalha fresca e húmida na cara. Analgésicos, não. Entorpeciam-lhe os sentidos, faziam-no dormir um sono demasiado pesado e provocavam-lhe a sensação de estar a cair vertiginosamente para trás, por um abismo abaixo. Por isso, deixou-se ficar sozinho na cama da rapariga holandesa, numa casa flutuante no rio Amstel, a sentir-se como se alguém lhe estivesse a despejar chumbo fundido no crânio através das órbitas.
VALBONNE, PRÓVENÇA
A manhã estava límpida e fria, a luz do Sol a inundar as colinas. Jacqueline vestiu umas calças de ciclista de camurça e uma camisola de lã e enfiou o cabelo comprido debaixo de um capacete azul-escuro. Pôs uns óculos de sol de ciclista e estudou a aparência ao espelho. Parecia um homem muito bonito, o que era a sua intenção. Fez alongamentos no chão do quarto, depois desceu até ao átrio de entrada, onde a sua bicicleta de corrida Bianchi estava encostada a uma parede. Empurrou a bicicleta pela porta da frente e guiou-a pelo caminho de gravilha. Um instante mais tarde, estava a deslizar através das sombras frias, pela colina comprida e suave abaixo, na direcção da aldeia.
Deslizou por Valbonne e fez a subida comprida e contínua em direcção a Ópio, o ar frio a queimar-lhe as bochechas. Pedalou devagar e a um ritmo regular durante os primeiros quilómetros, enquanto os músculos aqueciam. A seguir pôs uma mudança acima e aumentou a cadência do pedalar. Pouco depois, estava a voar pela estrada estreita, a cabeça para baixo, as pernas a bombear como pistões. O cheiro a alfazema pairava no ar. Ao seu lado, uma plantação de oliveiras descia por uma encosta em socalcos. Saiu debaixo das sombras das oliveiras e chegou a uma planície com a luz do Sol quente. Um momento depois, pôde sentir o primeiro suor por baixo da camisola.
A meio do caminho, verificou o tempo: só trinta segundos a mais do que o seu melhor. Nada mau para uma manhã fria de
Dezembro. Contornou uma rotunda, pôs uma mudança abaixo e começou a subir uma colina longa e íngreme. Uns momentos mais tarde, a respiração estava ruidosa e ofegante e as pernas a arder - demasiados cigarros de um raio! - mas forçou-se a continuar sentada e a avançar pesadamente pela longa colina. Pensou em Michel Duval: Porco! A uns noventa metros do cume, levantou-se do selim, pressionando os pés com fúria nas correias, gritando consigo mesma para continuar e não ceder à dor. Foi recompensada com uma longa descida. Podia ter-se deixado ir, mas em vez disso bebeu um gole rápido e fez um sprint pela colina abaixo. Ao entrar novamente em Valbonne, olhou para o relógio. Um novo recorde pessoal por uma diferença de quinze segundos. Obrigada, Michel Duval.
Saiu de cima da bicicleta e empurrou-a pelas ruas silenciosas da povoação antiga. Na praça central, apoiou a bicicleta contra um pilar, comprou um jornal e ofereceu a si mesma um croissant aquecido e uma chávena cheia de café com leite a escaldar. Quando terminou, foi buscar a bicicleta e empurrou-a ao longo de uma rua com sombras.
No final de uma fila de chalés, com vista para o parque de estacionamento da povoação, ficava um edifício comercial. Um letreiro estava pendurado na janela: todo o piso zero estava disponível. Estava livre há meses. Jacqueline pôs as mãos em concha à volta dos olhos e espreitou através do vidro sujo: um espaço aberto e grande, chão de madeira, tecto alto. Perfeito para um estúdio de dança. Tinha uma fantasia. Ia abandonar a carreira de modelo e abrir uma escola de bailei em Valbonne. Ia servir as raparigas locais durante a maior parte do ano, mas em Agosto, quando os turistas inundassem Valbonne para as férias de Verão, abriria a escola aos visitantes. Ia ensinar durante umas horas por dia, andar de bicicleta pelas colinas, beber café e ler no café da praça. Mudar de nome e de imagem. Tornar-se Sarah Halévy outra vez - Sarah Halévy, a rapariga judia de Marselha. Mas para abrir a escola precisava de dinheiro e para conseguir dinheiro tinha de prosseguir a carreira de modelo. Tinha de voltar a Paris e aturar homens como Michel Duval durante um pouco mais de tempo. Depois ficaria livre.
Montou a bicicleta e pedalou devagar de regresso a casa. Era uma vivenda bastante pequena, da cor do arenito e com um
telhado de telhas vermelhas, escondida por uma fila de imponentes ciprestes. No jardim grande e em socalcos, com vista para o vale, alecrim e alfazema cresciam de modo selvagem entre as oliveiras e as pimenteiras murchas. No princípio do jardim, estava uma piscina rectangular.
Jacqueline abriu a porta e entrou, encostou a bicicleta no átrio de entrada e foi até à cozinha. A luz vermelha do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no botão de reprodução e fez café enquanto ouvia as mensagens.
Yvonne tinha ligado a convidá-la para uma festa na casa de um jogador de ténis espanhol milionário em Monte Carlo. Michel Duval ligara para pedir desculpas pelo comportamento na sessão fotográfica do outro dia. A nódoa negra estava a sarar bem. Mareei tinha ligado para dizer que falara com Robert. A sessão em Mustique estava outra vez de pé.
- Partes daqui a três semanas, meu anjo, por isso deixa-te do queijo e da pasta e põe o teu rabo lindo em forma.
Pensou no percurso de bicicleta e sorriu. A cara podia parecer ter trinta e três anos, mas o corpo nunca estivera melhor.
- Ah, já agora, um tipo chamado Jean-Claude passou pelo escritório. Disse que queria falar contigo em pessoa acerca de um trabalho.
Jacqueline pousou a cafeteira e olhou para a máquina.
- Disse-lhe que estavas no Sul. Disse que estava a caminho de lá e que te iria procurar quando chegasse. Não te zangues comigo, meu anjo. Pareceu ser um tipo decente. Jeitoso, também. Fiquei louco de ciúmes. Adoro-te. Ciao.
Carregou no botão para rebobinar e voltou a escutar a mensagem, para ter a certeza de que a tinha ouvido bem.
- Ah, já agora, um tipo chamado Jean-Claude passou pelo escritório. Disse que queria falar contigo em pessoa acerca de um trabalho.
Carregou no botão para apagar, a mão a tremer, o coração a bater contra as costelas.
Jacqueline estava sentada lá fora, no terraço banhado pela luz do Sol, a pensar na noite em que fora recrutada por Ari Shamron. Tinha utilizado algum do dinheiro ganho como modelo para comprar um presente de reforma aos pais: um pequeno apartamento em Herzliya virado para o mar. Visitava-os em Israel sempre que conseguia escapar-se por uns dias. Sentia-se completamente apaixonada pelo país. Era o único lugar onde se sentia verdadeiramente livre e segura. Mais do que tudo o resto, adorava o facto de não ter de esconder que era judia.
Uma noite, num café dejag em Telavive, um homem mais velho apareceu-lhe à mesa. Careca, bastante feio, um casaco de bombardeiro com um rasgão no lado direito.
- Olá, Sarah - disse, sorrindo com confiança. - Posso fazer-lhe companhia?
Olhou para cima, assustada.
- Como é que sabe que o meu nome é Sarah?
- Na verdade, sei bastante sobre si. Sou um grande fã.
- Quem é o senhor?
- Chamo-me Ari. Trabalho para uma organização vagamente ligada ao Ministério da Defesa chamada Instituto para a Coordenação. Chamamos-lhe apenas o Departamento.
- bom, estou realmente contente por termos esclarecido isso. Ele lançou a cabeça para trás e riu-se.
- Gostaríamos de falar consigo sobre um trabalho. Importa-se que a trate por Sarah? Tenho dificuldade em pensar em si como Jacqueline.
- Os meus pais são os únicos que ainda me chamam Sarah.
- Não há velhos amigos?
- Só tenho novos amigos - respondeu, a voz tingida de tristeza. - Pelo menos, pessoas que afirmam ser minhas amigas. Todos os meus amigos de Marselha foram caindo depois de me ter tornado modelo. Acharam que tinha mudado por causa do meu trabalho.
- Mas mudou, não mudou, Sarah?
- Sim, suponho que sim.
A seguir pensou: Porque é que estou a dizer isto a um homem que ainda agora conheci? Será que ele dá a volta a toda a gente assim tão depressa?
- E não é só um trabalho, pois não, Sarah? É um modo de vida. Dá-se com os designers da moda e os fotógrafos famosos. Vai a festas espampanantes e a restaurantes exclusivos com actores e estrelas de rock eplayboys milionários. Como aquele conde italiano com quem teve um caso em Milão, aquele que chegou aos jornais. com certeza que não é a mesma rapariguinha de Marselha. A rapariguinha judia cujos avós foram assassinados pelos nazis em Sobibor.
- Sabe mesmo muito sobre mim.
Olhou com atenção para ele. Estava habituada a estar rodeada de pessoas atraentes e sofisticadas, mas agora aqui estava ela na companhia deste homem bastante feio, com óculos de aros de aço e um rasgão no casaco. Havia algo de primitivo nele - o Sabra rude de que sempre ouvira falar. Era o tipo de homem que não sabia fazer um laço e não se importava. Achava-o completamente encantador. Mas, acima de tudo, intrigava-a.
- Sendo uma judia de Marselha, sabe que o nosso povo tem muitos inimigos. Muitas pessoas gostariam de nos destruir, deitar abaixo tudo o que construímos nesta terra.
Enquanto falava, as mãos cortavam o ar.
- Ao longo dos anos, Israel tem travado muitas guerras com os seus inimigos. Neste momento, não há combate, mas Israel continua envolvido numa outra guerra, uma guerra secreta. Esta guerra é incessante. Nunca irá terminar. Por causa do seu passaporte e, em boa verdade, do seu aspecto, poderia ser uma grande ajuda para nós.
- Está a pedir-me para me tornar uma espia? Ele riu-se. -
- Receio que não seja nada assim tão dramático.
- O que quer que eu faça?
- Quero que se torne uma bat leveyha.
- Peço desculpa, mas não falo hebreu.
- Bat leveyha é o termo que utilizamos para um agente assistente feminino. Como bat leveyha, poderá ser chamada a desempenhar
uma série de funções para o Departamento. Às vezes, poderá ser-lhe pedido para se fazer passar pela mulher ou namorada de um dos nossos funcionários. Às vezes, poderá ser-lhe pedido para obter um pedaço vital de informação, que uma mulher do seu tipo poderá conseguir mais prontamente do que um funcionário.
Parou de falar por um momento e demorou o seu tempo a acender o cigarro seguinte.
- E, às vezes, poderemos pedir-lhe para desempenhar um outro tipo de missão. Uma missão que algumas mulheres consideram demasiado desagradável para pensarem sequer nela.
- Por exemplo?
- Poderemos pedir-lhe para seduzir um homem, um dos nossos inimigos, por exemplo, de maneira a colocá-lo numa situação comprometedora.
- Há imensas mulheres lindas em Israel. Por que carga d'água é que haviam de precisar de mim?
- Porque não é israelita. Porque tem um passaporte francês legal e um emprego legal.
- Esse emprego legal, como lhe chama, paga-me bastante bem. Não estou preparada para abrir mão dele.
- Se decidir trabalhar para nós, farei com que as suas missões sejam curtas e que seja compensada pelos salários perdidos.
Sorriu afectuosamente.
- Apesar de achar que não consigo suportar os seus honorários habituais de três mil dólares à hora.
- Cinco mil - respondeu ela, sorrindo.
- Os meus parabéns.
- Tenho de pensar nisso.
- Compreendo, mas enquanto considera a minha oferta, lembre-se de uma coisa. Se tivesse havido Israel durante a Segunda Guerra Mundial, o Maurice e a Rachel Halévy poderiam ainda estar vivos. O meu dever é assegurar a sobrevivência do Estado, para que da próxima vez que algum louco resolva transformar o nosso povo em sabão, ele tenha um lugar onde se refugiar. Espero que me ajude.
Deu-lhe um cartão com um número de telefone e disse para lhe
telefonar com uma decisão na manhã seguinte. A seguir, apertou-lhe a mão e afastou-se. Era a mão mais dura que ela alguma vez sentira.
Nunca tinha havido na cabeça dela nenhuma dúvida sobre qual seria a resposta. Por qualquer padrão objectivo, vivia uma vida excitante e sedutora, mas parecia enfadonha e sem significado comparada com aquilo que Ari Shamron estava a oferecer. As sessões entediantes, os agentes aos apalpões, os fotógrafos lamurientos - de repente, tudo parecia ainda mais plástico e pretensioso.
Regressou à Europa para a temporada da moda de Outono tinha compromissos em Paris, Milão e Roma - e em Novembro, quando as coisas acalmaram, disse a Mareei Lambert que estava exausta e que precisava de um descanso. Mareei desbloqueou-lhe o calendário, beijou-lhe a bochecha e disse-lhe para se afastar o máximo possível de Paris. Nessa noite, foi até ao balcão da El Al no Aeroporto Charles de Gaulle, levantou o bilhete em primeira classe que Shamron lhe tinha deixado e embarcou num voo para Telavive.
Estava à sua espera quando chegou ao Aeroporto Ben-Gurion. Acompanhou-a até a uma sala de espera especial no interior do terminal. Tudo estava concebido para lhe fazer transmitir que agora fazia parte da elite. Que estava a atravessar uma porta secreta e que a sua vida nunca mais voltaria a ser a mesma. Do aeroporto, levou-a rapidamente pelas ruas de Telavive, até a um luxuoso apartamento seguro no Opera Tower, com uma grande varanda com vista para a marginal e para a Praia Ge'ula.
- Esta será a tua casa durante as próximas semanas. Espero que seja do teu agrado.
- É absolutamente linda.
- Hoje, descansas. Amanhã, começa o trabalho a sério.
Na manhã seguinte, dirigiu-se à Academia e suportou um curso intensivo sobre as artes do ofício e a doutrina do Departamento. Ele deu-lhe palestras acerca dos princípios fundamentais da comunicação impessoal. Treinou-a a utilizar uma Bereta e a fazer cortes estratégicos na roupa, para poder agarrá-la depressa. Ensinou-a a abrir fechaduras e a fazer moldes de chaves, utilizando um aparelho
especial. Ensinou-a a detectar e a despistar vigilância. Todas as tardes, passava duas horas com um homem chamado Oded, que lhe ensinava árabe rudimentar.
Mas a maior parte do tempo na Academia era passado a desenvolver a memória e a consciência. Ele colocava-a sozinha numa sala e projectava dúzias de nomes num ecrã, obrigando-a a memorizar o máximo possível. Levava-a para um pequeno apartamento, deixava-a olhar para a sala por não mais do que uns segundos, a seguir puxava-a para fora e fazia-a descrevê-la em pormenor. Levou-a a almoçar à cantina e pediu-lhe para descrever a empregada que tinha acabado de os servir. Jacqueline confessou que não fazia ideia.
- Tens de estar consciente do que te rodeia a toda a hora disse ele. - Deves partir do princípio de que a empregada é um potencial inimigo. Tens de estar a sondar, a observar e a examinar constantemente. E, no entanto, tens de parecer não estar a fazer nada disso.
O treino não terminava ao pôr do Sol. Todas as noites, Shamron aparecia no Opera Tower e levava-a para o interior das ruas de Telavive para mais. Levou-a ao escritório de um advogado, mandou-a arrombá-lo e roubar um conjunto de ficheiros específico. Levou-a a uma rua cheia de boutiques chiques e mandou-a roubar algo.
- Estás a brincar.
- E se estás em fuga num país estrangeiro? E se não tens dinheiro nem maneira de nos contactar? A polícia anda à tua procura e precisas de mudar de roupa depressa.
- Não sou propriamente feita para andar a roubar lojas.
- Faz-te passar despercebida.
Entrou numa boutique e passou dez minutos a experimentar roupas. Quando regressou à entrada, não tinha comprado nada, mas dentro da mala estava um sexy vestido preto de festa.
Shamron disse:
- Agora quero que descubras um sítio para te mudares e livrares das outras roupas. A seguir, vem ter comigo lá fora, junto à barraca dos gelados na marginal.
Estava um fim de tarde quente para o início de Novembro
e havia muitas pessoas a passear e a apanhar ar. Caminharam de braço dado ao longo do cais, como um velho rico e a amante, Jacqueline a lamber maliciosamente um cone de gelado.
- Estás a ser seguida por três pessoas - disse Shamron. Vai ter comigo ao bar daquele restaurante daqui a meia hora e diz-me quem são. E não te esqueças que vou enviar um kidon para as matar, por isso não te enganes.
Jacqueline iniciou um procedimento típico de contravigilância, tal como Shamron lhe tinha ensinado. A seguir, foi até ao bar e encontrou-o sentado sozinho a uma mesa no canto.
- Casaco de cabedal preto, calças de ganga azuis com uma camisola de Yale, rapariga loira com uma rosa tatuada na omoplata.
- Errado, errado, errado. Acabaste de condenar à morte três turistas inocentes. Vamos experimentar outra vez.
Apanharam um táxi para andar uma pequena distância, até Rothschild Boulevard, uma marginal larga revestida por árvores, bancos, quiosques e cafés chiques.
- Mais uma vez, estão três pessoas a seguir-te. Vai ter comigo ao Café Tamar daqui a trinta minutos.
- Onde é o Café Tamar?
Mas Shamron virou-se e desapareceu na corrente de peões. Meia hora mais tarde, tendo localizado o chique Café Tamar em Sheinkin Street, voltou a juntar-se a ele.
- A rapariga com o cão, o rapaz com os auscultadores e a T-shirt do Springsteen, o miúdo do kibbut com a Uzi.
Shamron sorriu.
- Muito bem. Só mais um teste esta noite. Vês aquele sentado ali sozinho?
Jacqueline acenou com a cabeça.
- Mete conversa com ele, descobre tudo o que puderes e a seguir atrai-o para o teu apartamento. Quando chegares ao átrio, arranja uma maneira de te desenvencilhares da situação sem fazer
uma cena.
Shamron levantou-se e afastou-se. Jacqueline olhou, olhos nos olhos, para o homem e, alguns minutos mais tarde, ele veio ter consigo. Disse que se chamava Mark, que era de Boston e que
trabalhava para uma empresa de informática com negócios em Israel. Conversaram durante uma hora e começaram a namoriscar. Mas quando o convidou para ir até ao seu apartamento, confessou que era casado.
- É pena respondeu ela. - Podíamos ter passado uns belos momentos.
Ele mudou de ideias rapidamente. Jacqueline pediu licença para ir à casa de banho e em vez disso dirigiu-se a um telefone público. Marcou o número da recepção do Opera Tower e deixou uma mensagem a si mesma. Depois voltou para a mesa e disse:
- Vamos.
Foram a pé até ao apartamento. Antes de subirem, foi à recepção verificar se havia mensagens.
- A sua irmã ligou de Herzliya - respondeu o recepcionista;
- Tentou o apartamento, mas ninguém atendeu, por isso ligou para aqui e deixou uma mensagem.
- Qual é?
- O seu pai teve um ataque de coração.
- Oh, meu Deus!
- Levaram-no para o hospital. Ela diz que vai ficar bom, mas quer que vá assim que puder.
Jacqueline voltou-se para o americano.
- Tenho muita pena, mas tenho de ir.
O americano beijou-lhe a bochecha e afastou-se, cabisbaixo. Shamron, que estava a observar toda a cena do outro lado do átrio, avançou, de sorriso aberto como um rapazinho.
- Isso foi pura poesia. Sarah Halévy, és um talento natural.
A primeira missão não a obrigou a sair de Paris. O Departamento estava a tentar recrutar um cientista iraquiano de armas nucleares que vivia em Paris e trabalhava com os fornecedores franceses do Iraque. Shamron resolveu preparar uma "armadilha de mel" e deu o trabalho a Jacqueline. Conheceu o iraquiano num bar, seduziu-o e começou a passar a noite no apartamento dele. Ele apaixonou-se perdidamente por ela. Jacqueline disse ao amante que, se a queria continuar a ver, teria de se encontrar com um amigo dela,
que tinha uma proposta de negócio. O amigo acabou por ser Ari Shamron, a proposta, simples: trabalha para nós ou vamos contar à tua mulher e aos gorilas da segurança de Saddam que tens andado a foder uma agente israelita. O iraquiano concordou em trabalhar para Shamron.
Jacqueline tivera a primeira experiência de trabalho de espionagem. Achou-o excitante. Tinha desempenhado um pequeno papel numa operação que desferira um golpe nas ambições nucleares do Iraque. Ajudara a proteger o Estado de Israel de um inimigo que tudo faria para o destruir. E, de uma maneira pequena, tinha vingado as mortes dos avós.
Teve de esperar mais um ano para a missão seguinte: seduzir e chantagear um funcionário de espionagem sírio em Londres. Foi outro sucesso estonteante. Nove meses mais tarde, foi enviada para Chipre para seduzir um executivo de uma empresa química alemã que estava a vender os seus artigos à Líbia. Desta vez havia uma diferença. Shamron queria que drogasse o alemão e fotografasse os documentos da sua pasta enquanto estava inconsciente. Uma vez mais, cumpriu o trabalho sem dificuldades.
A seguir à operação, Shamron fê-la voar até Telavive, entregou-lhe uma menção secreta e disse-lhe que tinha terminado. Não demorava muito para as coisas circularem pelo submundo da espionagem. O próximo alvo poderia suspeitar que a bonita modelo francesa era mais do que parecia. E poderia muito bem acabar morta.
Implorou-lhe por mais um trabalho. Shamron concordou com relutância.
Três meses mais tarde, enviou-a para Tunes.
Jacqueline achara estranho Shamron ter-lhe dado instruções para se encontrar com Gabriel Allon numa igreja em Turim. Encontrou-o em cima de uma plataforma, a restaurar um fresco que representava a Ascensão. Trabalhava com homens bonitos todos os dias na sua vida pública, mas havia algo em Gabriel que a deixou sem fôlego. Era a concentração intensa nos seus olhos. Jacqueline
queria que olhasse para ela como estava a olhar para o fresco. Decidiu que iria fazer amor com este homem antes da operação terminar.
Viajaram para Tunes na manhã seguinte e deram entrada num hotel na praia. Durante os primeiros dias, deixou-a sozinha enquanto trabalhava. Regressava ao hotel todas as noites. Jantavam, passeavam pelo mercado ou pela estrada ao longo da praia, depois voltavam para o quarto. Falavam como se fossem amantes, para o caso de o quarto estar sob escuta. Dormia vestido, ficava inflexivelmente do seu lado da cama, uma parede de Plexiglas a separá-los.
Ao quarto dia, levou-a consigo enquanto trabalhava. Mostrou-lhe a praia onde os comandos desembarcariam e a vivenda que era propriedade do alvo. A paixão por ele tornou-se mais profunda. Aqui estava um homem que tinha devotado a vida a defender Israel dos inimigos. Sentia-se insignificante e frívola em comparação. Também descobriu que não conseguia tirar os olhos de cima dele. Queria passar-lhe as mãos pelo cabelo curto, tocar-lhe na cara e no corpo. Enquanto estavam deitados na cama juntos nessa noite, rebolou para cima dele sem aviso e beijou-lhe os lábios, mas ele afastou-a e fez uma cama de campanha beduína para si no chão.
Jacqueline pensou: Meu Deus, fiz uma completa figura de parva.
Passados cinco minutos, voltou para a cama e sentou-se ao seu lado. Depois inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Também quero fazer amor contigo, mas não posso. Sou casado.
- Não me importa.
- Quando a operação terminar, nunca mais me vais ver.
- Eu sei.
Ele era exactamente como ela imaginava: habilidoso e engenhoso, meticuloso e gentil. Nas mãos dele, sentia-se como um dos seus quadros. Quase que conseguia sentir os olhos a tocar-lhe. Sentiu um orgulho estúpido por ter sido capaz de penetrar as suas barreiras de autocontrolo e seduzi-lo. Queria que a operação continuasse para sempre. Não podia, é claro, e a noite em que deixaram Tunes foi a mais triste da sua vida.
Depois de Tunes, lançou-se a fundo na carreira de modelo. Disse a Mareei para aceitar todas as ofertas que aparecessem. Trabalhou sem parar durante seis meses, levando-se até a um ponto de exaustão. Até tentou sair com outros homens. Nada resultou. Pensava em Gabriel e Tunes constantemente. Pela primeira vez na vida, sentia obsessão e, no entanto, era completamente impotente para fazer algo em relação a isso. Em desespero, foi ter com Shamron e pediu-lhe para a pôr em contacto com Gabriel. Ele recusou. Começou a ter uma fantasia terrível acerca da morte da mulher de Gabriel. E quando Shamron lhe contou o que acontecera em Viena, sentiu uma culpa insuportável.
Não tinha visto nem falado com Gabriel desde essa noite em Tunes. Não conseguia imaginar porque haveria ele de a querer ver agora. Mas, uma hora mais tarde, enquanto observava o carro dele a parar à entrada, sentiu um sorriso a espalhar-se pela cara. Pensou: Graças a Deus que estás aqui, Gabriel, porque também estou a precisar de um pouco de restauro.
TELAVIVE
O director executivo da CIA, Adrian Cárter, era um homem facilmente subestimado. Era uma característica que utilizara com bons resultados durante a longa carreira. Era pequeno e magro como um maratonista. O cabelo escasso e os óculos sem aros davam-lhe um ar ligeiramente clínico, as calças e o casaco tinham aspecto de terem sido usados a dormir. Parecia deslocado na sala de conferências fria e moderna no Boulevard do Rei Saul, como se tivesse entrado no edifício por engano. Mas Ari Shamron tinha trabalhado com Cárter quando estava à frente do Centro de Contraterrorismo da CIA. Sabia que Cárter era um agente experimentado - um homem que falava seis línguas fluentemente e podia desaparecer nas vielas traseiras de Varsóvia ou Beirute com igual facilidade. Também sabia que os seus talentos em campo eram apenas igualados pela perícia nas trincheiras burocráticas. Um adversário de respeito, sem dúvida.
- Alguns avanços na investigação de Paris? - perguntou Cárter.
Shamron abanou a cabeça devagar.
- Receio que não.
- Nada de nada, Ari? Acho difícil acreditar nisso.
- Assim que soubermos alguma coisa, serás o primeiro a saber. Então e tu? Alguma intercepção interessante que te apeteça partilhar? Algum funcionário árabe amistoso te contou alguma coisa que estaria relutante em partilhar com a entidade sionista?
Cárter tinha acabado de completar uma digressão regional de duas semanas, conferenciando com chefes dos serviços secretos desde o golfo Pérsico até ao Norte de África. O Boulevard do Rei Saul foi a última paragem.
- Nada, receio - respondeu. - Mas temos ouvido uns quantos sussurros de algumas das nossas outras fontes.
Shamron franziu o sobrolho.
- Ai sim?
- Dizem-nos que o que se ouve na rua é que o Tariq esteve por trás do ataque em Paris.
- O Tariq tem estado calmo há já algum tempo. Porque é que se iria sair agora com uma coisa do género de Paris?
- Porque está desesperado - respondeu Cárter. - Porque os dois lados estão a aproximar-se de um acordo e o Tariq não quereria outra coisa que não fosse estragar-lhes a festa. E porque o Tariq se vê a si próprio como um homem da História, e a História está prestes a deixá-lo para trás.
- É uma teoria interessante, mas não vimos provas que sugerissem que o Tariq estivesse envolvido.
- Se recebessem tais provas, iam partilhá-las connosco, claro.
- Claro.
- Não preciso de te lembrar que uma cidadã americana foi assassinada juntamente com o vosso embaixador. O presidente fez uma promessa ao povo americano de que o seu assassino seria levado à justiça. Conto ajudá-lo a cumprir essa promessa.
- Podes contar com o apoio deste serviço - respondeu Shamron, piedosamente.
- Se foi o Tariq, gostaríamos de o encontrar e trazer para os Estados Unidos, para ir a julgamento. Mas não poderemos fazer isso se ele aparecer morto algures, cheio de buracos de balas de calibre vinte e dois.
- Adrian, o que é que estás a tentar dizer-me?
- O que estou a dizer é que o homem na grande casa branca da Pennsylvania Avenue quer a situação tratada de uma maneira civilizada. Se se acabar por descobrir que foi o Tariq quem matou
a Emily Parker em Paris, quer vê-lo julgado num tribunal americano. Nada de tretas de olho por olho nisto, Ari, nada de execuções em ruelas.
- É óbvio que temos uma diferença de opinião sobre como lidar melhor com um homem como o Tariq.
- O presidente também acha que nesta altura uma morte em represália poderá não ser no melhor interesse do processo de paz. Acha que se fores responder com um assassinato, estarias a lançar-te nas mãos daqueles que queres derrubar.
- E o que queria o presidente que fizéssemos quando os terroristas matam os nossos diplomatas a sangue-frio?
- Mostrem algum comedimento, porra! Na nossa humilde opinião, talvez fosse mais sensato encostarem-se às cordas durante um par de assaltos e aguentar uns quantos golpes no corpo se tiver de ser. Dêem aos negociadores espaço para manobrar. Se os radicais atacarem depois de terem um acordo alinhavado, então não deixem de ripostar. Mas não piorem agora as coisas procurando vingança.
Shamron inclinou-se para a frente e esfregou as mãos.
- Posso assegurar-te, Adrian, de que nem o Departamento nem nenhum outro braço dos serviços de segurança israelitas estão a planear qualquer operação contra qualquer membro de qualquer grupo terrorista árabe, incluindo o Tariq.
- Admiro a vossa prudência e coragem. E o presidente também o fará.
- E eu admiro-vos pela vossa franqueza.
- Gostaria de te dar um pequeno conselho de amigo, se puder.
- Se fazes favor - respondeu Shamron.
- Israel celebrou acordos com vários serviços de informação do Ocidente, comprometendo-se a não realizar operações no solo desses países sem notificar primeiro o serviço de informação respectivo. Posso assegurar-te de que a Agência e os seus amigos reagirão com dureza se esses acordos forem violados.
- Isso soa mais a um aviso do que a um conselho entre amigos.
Cárter sorriu e deu um gole no café.
O primeiro-ministro estava embrenhado numa pilha de documentos na secretária quando Shamron entrou na sala. Shamron sentou-se e informou-o rapidamente acerca do encontro com o homem da CIA.
- Conheço o Adrian Cárter demasiado bem - disse Shamron.
- É um bom jogador de póquer. Sabe mais do que aquilo que está a dizer. Está a dizer-me para recuar ou vai haver sarilho.
- Ou então suspeita de qualquer coisa mas não tem o suficiente para o dizer às claras - respondeu o primeiro-ministro. - Tens de decidir qual é o caso.
- Preciso de saber se ainda quer que leve a operação a cabo nestas novas circunstâncias.
O primeiro-ministro levantou por fim os olhos da papelada.
- E eu preciso de saber se consegues levar a operação a cabo sem a CIA descobrir.
- Consigo.
- Então avança e não faças merda.
VALBONNE, PROVENÇA
A tarde tinha ficado mais fria. Jacqueline preparou umas sanduíches enquanto Gabriel empilhava madeira de oliveira na lareira e a acendia com jornais. Estava de cócoras, a observar as chamas fracas a lamber a madeira. De segundos em segundos, esticava-se até ao fogo e fazia um ou outro pequeno ajustamento na disposição dos g ravetos ou na posição de um dos pedaços de madeira maiores. Parecia ser capaz de segurar a madeira a escaldar durante muito tempo, sem desconforto. Por fim, levantou-se e bateu com as mãos uma na outra para retirar os restos do pó da madeira e da fuligem. Move-se com tanta delicadeza, pensou Jacqueline - um bailarino a erguer-se após ter levado o joelho ao chão. Parecia de certa forma mais novo. Menos grisalho no cabelo, os olhos mais claros e luminosos.
Colocou a comida numa travessa e levou-a até à sala de estar. Durante anos, imaginara uma cena assim. Num certo sentido, tinha feito esta sala para Gabriel, tinha-a decorado de uma maneira que imaginara que ele pudesse gostar - o chão de pedra, os tapetes rústicos, as mobílias confortáveis.
Colocou a travessa em cima de uma mesa de café e sentou-se
no sofá. Gabriel sentou-se ao seu lado e foi deitando colheres de
açúcar no café. Sim, isto seria o que teria acontecido se tivéssemos terminado
juntos. Uma refeição simples, uma viagem de carro pelas montanhas,
uma passeata por uma vila antiga na colina. Talvez pela costa
abaixo, para deambular pelo Velho Porto de Cannes ou ver um filme no cinema. Depois para casa, para fazer amor à luz da lareira. Pára com isso, Jacqueline. Gabriel disse:
- Estou outra vez a trabalhar para o Departamento e preciso da tua ajuda.
Então, afinal de contas eram só negócios. Gabriel tinha sido agarrado outra vez e precisava dela para um trabalho. Ele ia fazer de conta que o passado nunca acontecera. Talvez fosse mais fácil desse modo.
- O Ari contou-me que tinhas deixado o Departamento.
- Pediu-me para regressar por um trabalho. Sabes como o Shamron consegue ser quando quer qualquer coisa.
- Lembro-me - respondeu Jacqueline. - Ouve, Gabriel, não sei muito bem como dizer isto, por isso vou simplesmente dizê-lo. Lamento muito aquilo que aconteceu em Viena.
Ele afastou o olhar, os olhos frios e sem expressão. Claramente, Leah era algo em que não se podia tocar. Jacqueline tinha visto uma fotografia sua uma vez. A mulher de Gabriel era exactamente como imaginara - uma Sabra de cabelos escuros, a transbordar do tipo de fogo e confiança que Jacqueline ansiara por possuir quando era uma judia a crescer em França. O facto de ele ter escolhido uma mulher como Leah apenas fizera Jacqueline amar mais Gabriel.
Mudou abruptamente de assunto:
- Suponho que tenhas ouvido falar do ataque ao nosso embaixador em Paris?
- Claro. Foi terrível.
- O Shamron está convencido de que o Tariq esteve por trás do ataque.
- E quer descobri-lo? Gabriel acenou com a cabeça.
- Porquê tu, Gabriel? Estás afastado do jogo há tanto tempo. Porque não utilizar um dos outros katsas dele?
- Para o caso de não teres reparado, o Departamento tem tido mais desastres do que sucessos ultimamente.
- O Tariq tem conseguido manter-se um passo à frente do Departamento durante anos. Como é que, supostamente, o vais descobrir agora?
- O Shamron identificou um dos seus agentes em Londres. Coloquei-lhe uma escuta no telefone do trabalho, mas também preciso de lhe pôr o apartamento sob escuta para conseguir descobrir com quem está a falar e o que está a dizer. Se tivermos sorte, talvez consigamos saber onde é que o Tariq está a planear atacar a seguir.
- Porque é que precisas de mim?
- Preciso de ti para me ajudares a entrar no apartamento.
- Porque é que precisas da minha ajuda? Sabes abrir uma fechadura e colocar uma escuta.
- É exactamente por isso. Não quero ter de lhe abrir a fechadura. Os arrombamentos são arriscados. Se perceber que esteve alguém no apartamento, então perdemos a vantagem. Quero que entres no apartamento por mim, faças uma cópia das chaves e verifiques que tipo de telefone é que tem para poder arranjar um duplicado.
- E como é que, supostamente, vou entrar no apartamento? Sabia a resposta, claro. Apenas queria ouvi-lo a dizê-lo. Gabriel levantou-se e juntou mais um bocado de madeira ao fogo.
- O Yusef gosta de mulheres. Gosta da vida nocturna londrina. Quero que vás ter com ele num bar ou numa discoteca e faças amizade. Quero que o encorajes a convidar-te para o apartamento.
- Desculpa, Gabriel. Não estou interessada. O Ari que te dê uma das suas raparigas novas.
Ele voltou-se e olhou para ela.
Pensou: Está surpreendido por eu lhe ter dito que não. Não estava à espera disso.
- Estou a oferecer-te uma oportunidade de me ajudares a descobrir o Tariq al-Hourani antes que mate mais judeus e prejudique ainda mais o processo de paz.
- E eu estou a dizer-te que já fiz a minha parte. Que uma outra rapariga tenha a sua vez.
Ele voltou a sentar-se.
- Percebo porque é que o Shamron havia de querer ter-te de
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volta - disse Jacqueline. - És o melhor no que fazes. Mas não percebo porque é que precisas de mim.
- Porque também és boa - respondeu. Depois acrescentou:
- E porque posso confiar em ti. Pensou: O que é que me estás a tentar dizer, Gabriel Allon? Respondeu:
- Tenho de ir às Caraíbas para uma sessão fotográfica daqui a três semanas.
- Só vou precisar de ti por uns dias.
- Não vou fazer isto de borla.
- Quero-te a ti e não me vou contentar com qualquer outra
- respondeu Gabriel. - Portanto, estás em posição de fixar o teu preço.
Olhou para o tecto, a calcular de quanto iria precisar. Renda, renovações, publicidade...
- Cinquenta mil.
- Francos?
- Não sejas ridículo, Gabriel. Dólares.
Fez uma cara carrancuda. Jacqueline cruzou os braços em sinal de desafio.
- Cinquenta mil ou podes ligar ao Shamron e pedir-lhe uma rapariga nova.
- Cinquenta mil - respondeu. Jacqueline sorriu.
Jacqueline telefonou a Mareei Lambert em Paris e disse-lhe para cancelar todas as sessões para as duas semanas seguintes.
- Jacqueline, perdeste o juízo? Não podes estar a falar a sério. Uma mulher na tua posição débil não anda por aí a tornar as coisas piores a cancelar sessões. É assim que se ganha uma reputação nesta profissão.
- Mareei, estou nesta profissão há dezassete anos e nunca tive a reputação de deixar cair sessões. Surgiu uma coisa e preciso de me ausentar por uns dias.
- É isso que esperas que diga às pessoas que tiveram a bondade de te contratar? Surgiu uma coisa. Vá lá, querida. Vais ter de fazer muito melhor do que isso.
- Diz-lhes que apanhei qualquer coisa.
- Alguma sugestão?
- Lepra - respondeu.
- Oh, sim, maravilhoso.
A sua voz ficou séria de repente.
- Diz-me uma coisa, Jacqueline. Não estás metida em algum tipo de sarilho, pois não? Sabes que podes confiar em mim. Tenho estado lá desde o início, lembra-te. Conheço todos os teus segredos.
- E eu não me esqueço que conheço todos os teus, Mareei Lambert. E não, não estou metida em nenhum tipo de sarilho. Há simplesmente uma coisa de que preciso de tratar e não pode esperar.
- Não estás doente, pois não, Jacqueline?
- Estou de perfeita saúde.
- Não é a coca outra vez, pois não? - sussurrou Mareei.
- Mareei!
- Operação? Um retoque aos olhos?
- Vai-te foder.
- Um homem. É um homem? Alguém conseguiu amolgar finalmente esse teu coração de ferro?
- vou desligar agora, Mareei. Ligo-te daqui a uns dias.
- Então tenho razão! É um homem!
- És o único homem para mim, Mareei.
- Quem me dera que fosse assim.
- A. tout à l'heure.
- Ciao.
Partiram ao final da tarde e seguiram para norte na auto-estrada sinuosa, em direcção às montanhas. Nuvens que já se estavam a dissipar pairavam sobre as ravinas. À medida que subiam para as colinas, bolas gordas de chuva esmurravam o pára-brisas do Peugeot alugado de Gabriel. Jacqueline reclinou o banco e observou
afluentes de água da chuva a correr pela capota em forma de lua, mas a cabeça já estava concentrada em Londres e no alvo. Acendeu um cigarro e disse:
- Fala-me dele.
- Não - respondeu. - Não quero nada na tua cabeça que te possa colocar numa situação comprometedora.
- Vieste buscar-me porque sei o que estou a fazer, Gabriel. Diz-me qualquer coisa acerca dele.
- Chama-se Yusef. Cresceu em Beirute.
- Onde em Beirute?
- Shatila.
- Jesus - disse, fechando os olhos.
- Os pais eram refugiados em quarenta e oito. Antes viviam na aldeia árabe de Lydda, mas durante a guerra fugiram e atravessaram a fronteira para o Líbano. Ficaram algum tempo pelo Sul, depois mudaram-se para Beirute à procura de emprego e instalaram-se no campo de Shatila.
- Como é que acabou por ir parar a Londres?
- Um tio trouxe-o para Inglaterra. Certificou-se de que Yusef fosse ensinado e aprendesse a falar um inglês e um francês perfeitos. Tornou-se um radical político. Achou que o Arafat e a OLP se tinham rendido. Apoiou os líderes palestinianos que queriam continuar a guerra até Israel ser apagada do mapa. Chegou à atenção da organização do Tariq. Tem sido um membro activo desde há vários anos.
- Parece um encanto.
- E por acaso até é.
- Alguns passatempos?
- Gosta de poesia palestiniana e de mulheres europeias. E ajuda o Tariq a matar israelitas.
Gabriel saiu da auto-estrada e seguiu por uma pequena estrada em direcção a este, a caminho das montanhas. Passaram por uma aldeia adormecida e viraram para um trilho de lama cheio de sulcos e ladeado por plátanos desfolhados e a pingar. Seguiu o trilho até descobrir um portão de madeira partido, que dava para uma área pequena de terra desbravada. Parou o carro, saiu e abriu o portão
o suficiente para deixar passar o Peugeot. Guiou até à clareira e desligou o motor, deixando os faróis acesos. Enfiou a mão na mala de Jacqueline e tirou a Beretta dela e o carregador sobressalente. Depois agarrou numa das revistas de moda lustrosas dela e arrancou a capa e a contracapa.
- Sai.
- Está a chover.
- Paciência.
Gabriel saiu e andou alguns metros pela terra encharcada, em direcção a uma árvore onde os restos esfarrapados de uma tabuleta que dizia "Entrada Proibida" estavam pendurados num prego dobrado e ferrugento. Enfiou a capa da revista na cabeça do prego e regressou até junto do carro. Jacqueline tinha a silhueta reflectida nos faróis amarelos, o capuz para cima para se proteger da chuva, os braços cruzados. Estava tudo em silêncio, tirando o tiquetaque do radiador do Peugeot e o ladrar longínquo do cão de uma quinta. Gabriel tirou o carregador da Beretta, verificou para ter a certeza de que a câmara estava vazia e a seguir entregou a arma e as munições a Jacqueline.
- Quero saber se ainda te consegues safar com uma destas.
- Mas eu conheço a rapariga naquela capa.
- Dá-lhe um tiro na cara.
Jacqueline enfiou o carregador com força na coronha da Beretta, bateu ao de leve na base do punho com a parte de trás da palma da mão, para ter a certeza de que estava bem seguro. Avançou, levantou a arma, dobrou os joelhos ligeiramente e rodou o corpo uns quantos graus para reduzir o seu perfil enquanto alvo em relação ao inimigo imaginário. Disparou sem hesitação, rítmica e firmemente, até o carregador ficar vazio.
Gabriel, ouvindo os disparos da pequena pistola, estava de súbito de volta ao vão das escadas do apartamento em Roma. Jacqueline baixou a Beretta, retirou o carregador e inspeccionou a câmara para se assegurar de que estava vazia. Atirou a arma a Gabriel e disse:
- Vamos lá ver-te a experimentar agora.
Mas Gabriel limitou-se a enfiar a Beretta no bolso do casaco e caminhou até à árvore para examinar os resultados. Só um tiro
não tinha acertado; os tiros estavam bastante perto uns dos outros na parte superior direita. Arrancou do prego a capa, pendurou a contracapa no seu lugar e voltou a dar a Beretta a Jacqueline.
- Repete isso, mas, desta vez, avança enquanto disparas.
Enfiou o segundo carregador com força na Beretta, puxou a culatra e avançou sobre o alvo, a disparar à medida que se ia aproximando. O último tiro foi quase à queima-roupa. Tirou o alvo, voltou-se e ergueu-o para os faróis brilharem através dos buracos de balas no papel. Cada tiro tinha acertado no alvo. Regressou até junto de Gabriel e deu-lhe a Beretta e a capa da revista.
Ele disse:
- Apanha os teus cartuchos
Enquanto Jacqueline recolhia os cartuchos gastos, desmontou rapidamente a Beretta. Tirou o macaco da bagageira e triturou as peças da arma até ficarem inoperantes. Voltaram para dentro do Peugeot e Gabriel saiu pelo caminho por onde viera. A dada altura, lançou a capa e contracapa da revista e os pedaços partidos da Beretta para a escuridão. Depois de terem passado pela aldeia, abriu a janela uma vez mais e espalhou os cartuchos.
Jacqueline acendeu outro cigarro.
- Como é que me saí?
- Passaste.
AMESTERDÃO
Tariq passou a tarde a tratar de recados. Andou desde a casa flutuante até à Centraalstation, onde comprou um bilhete em primeira classe para o comboio da noite para Antuérpia. Da estação de comboios andou até ao bairro da luz vermelha, passeando-se pelo labirinto de vielas estreitas, passando pelas sex shops, os bordéis e os bares soturnos, até um traficante de droga o puxar para o lado e lhe oferecer heroína. Tariq regateou o preço, depois pediu o suficiente para três pessoas se passarem. Tariq deu-lhe o dinheiro, enfiou as drogas no bolso e afastou-se.
Em Dam Square, pulou para um eléctrico e viajou pela cidade, seguindo para sul, até Bloemenmarkt, um mercado de flores flutuante no canal Singel. Foi até à banca maior e pediu ao florista um ramo elaborado de flores tradicionais holandesas. Quando o florista lhe perguntou quanto estava disposto a gastar, Tariq assegurou-lhe que o dinheiro não era um problema. O florista sorriu e disse-lhe para voltar dali a vinte minutos.
Tariq passeou-se pelo mercado, passando por túlipas e irises, lírios e girassóis a explodir de cor, até se cruzar com um homem a pintar. Cabelo preto cortado curto, pele clara e olhos azul-claros. O trabalho era uma representação do Bloemenmarkt, enquadrado pelo canal e por uma fila de casas com empenas. Tinha uma qualidade onírica, uma erupção de cor e luz líquidas.
Tariq parou por um momento e observou-o a trabalhar.
- Fala francês?
- Oui - respondeu o pintor, sem tirar os olhos do quadro.
- Admiro o seu trabalho. O pintor sorriu e respondeu:
- E eu admiro o seu.
Tariq acenou com a cabeça e afastou-se, interrogando-se sobre que raio estaria o maluco do pintor a falar.
Foi buscar as flores e regressou à casa flutuante. A rapariga estava a dormir. Tariq ajoelhou-se ao lado da cama e abanou-lhe o ombro gentilmente. Ela abriu os olhos e olhou para ele como se fosse louco. Fechou os olhos.
- Que horas são?
- Horas de ir trabalhar.
- Vem para a cama.
- Por acaso, sou capaz de ter uma coisa de que vais gostar mais.
Abriu os olhos e viu as flores. Sorriu.
- Para mim? Qual é o motivo?
- É só a minha maneira de te agradecer por seres uma anfitriã tão atenciosa.
- Gosto mais de ti do que de flores. Tira a roupa e vem para
a cama.
- Tenho mais outra coisa.
Segurou os sacos de pó branco no ar.
Inge vestiu rapidamente umas roupas enquanto Tariq se dirigiu para a cozinha do barco. Sacou uma colher da gaveta e acendeu uma vela. Aqueceu a droga por cima da chama, mas em vez de diluir um saco de heroína na mistura, utilizou logo os três. Quando terminou, puxou o líquido para dentro de uma seringa e levou-a para a cabina da frente.
Inge estava sentada à beira da cama. Tinha atado a extensão de borracha por cima do cotovelo e estava a examinar as nódoas negras ao longo da parte de dentro do antebraço, à procura de uma veia adequada.
- Aquela tem ar de servir - disse Tariq, passando-lhe a seringa.
Ela segurou-a na palma da mão e inseriu calmamente a agulha no braço. Tariq desviou o olhar enquanto ela puxava o êmbolo com a ponta do polegar e a heroína líquida se escurecia com o seu sangue. Depois carregou no êmbolo e desapertou o elástico, fazendo com que a droga disparasse para dentro do corpo.
Olhou para cima de repente, os olhos esbugalhados.
- Eh, Paul, meu... o que é que se está a...
Caiu de costas na cama, o corpo a estremecer com convulsões violentas, a agulha vazia a balouçar no braço. Tariq andou calmamente até à cozinha e fez café enquanto esperava que a rapariga acabasse de morrer.
Cinco minutos mais tarde, quando estava a arrumar as suas coisas numa pequena mala de viagem, sentiu o barco subitamente a balançar. Olhou para cima, espantado. Estava alguém no convés! Numa questão de segundos, a porta abriu-se e um homem grande e de constituição forte entrou na cabina. Tinha cabelo loiro e brincos pequenos e redondos nas orelhas. Tariq achou que tinha uma vaga parecença com Inge. Por instinto, procurou a pistola Makarov, que estava enfiada nas calças, no fundo das costas.
O homem olhou para Tariq.
- Quem és tu?
- Sou um amigo da Inge. Tenho estado a viver aqui há uns dias.
Falou de forma calma, a tentar reunir os pensamentos. A aparição repentina do homem apanhara-o completamente desprevenido. Há cinco minutos atrás tinha-se livrado calmamente da rapariga. Agora estava confrontado com alguém que podia dar cabo de tudo. Depois pensou: Se sou na verdade amigo da Inge, não tenho nada a temer. Obrigou-se a sorrir e esticou a mão.
- Chamo-me Paul.
O intruso ignorou a mão de Tariq.
- Sou o Maarten, o irmão da Inge. Onde é que ela está? Tariq fez um gesto na direcção do quarto.
- Sabes como a Inge pode ser. Ainda a dormir. Apercebeu-se de que tinha deixado a porta aberta.
- Deixa-me fechar-lhe a porta para não a acordarmos. Acabei de fazer café. Queres uma chávena?
Mas Maarten passou por si e entrou no quarto de Inge. Tariq pensou, Porra! Estava surpreendido com a velocidade a que as coisas tinham ficado fora de controlo. Apercebeu-se de que tinha cerca de cinco segundos para decidir como o ia matar.
A coisa mais fácil de se fazer, evidentemente, era dar-lhe um tiro. Mas isso teria consequências. Assassinato com pistola era quase inédito na Holanda. Uma rapariga morta com uma seringa espetada no braço era uma coisa. Mas dois corpos - um deles cheio de cartuchos de 9mm - era bem outra. Haveria uma grande investigação. A polícia iria interrogar os habitantes das casas flutuantes à volta. Alguém se podia recordar da sua cara. Dariam uma descrição à polícia, a polícia daria uma descrição à Interpol, a Interpol daria uma descrição aos judeus. Todos os polícias e funcionários de segurança da Europa Ocidental andariam à procura de si. Disparar sobre Maarten seria rápido, mas custar-lhe-ia a longo prazo.
Olhou por cima do ombro para a cozinha. Lembrou-se de que na gaveta ao lado do fogão a gás propano estava uma faca grande. Se matasse o irmão de Inge com uma faca talvez se parecesse com um crime passional ou com um crime de rua comum. Mas Tariq considerava a ideia de matar alguém com uma faca totalmente repulsiva. E havia outro problema, mais sério. Havia uma grande hipótese de não o matar ao primeiro golpe. A doença já começara a fazer sentir em si os seus efeitos. Tinha perdido força e resistência. A última coisa que queria fazer era envolver-se numa luta de vida ou de morte com um adversário maior e mais forte. Viu os sonhos - de destruir o processo de paz e de finalmente ajustar contas com Gabriel Allon - a evaporarem-se, tudo porque o irmão mais velho de Inge tinha chegado a casa num momento inoportuno. Leila devia ter escolhido com mais cuidado.
Tariq ouviu Maarten a gritar. Decidiu dar-lhe um tiro.
Sacou a Makarov da cintura. Apercebeu-se de que a arma não tinha o silenciador atarraxado. Onde é que ele está? No bolso do casaco, e o casaco estava em cima da cadeira na cabine. Merda! Como é que posso ter ficado tão complacente?
Maarten saiu a correr do quarto, a cara pálida.
- Está morta!
- Do que é que estás a falar? - perguntou Tariq, a fazer os possíveis para empatar.
- Está morta! É disso que estou a falar! Teve uma overdose!
- Drogas?
Tariq aproximou-se uns centímetros do casaco. Se conseguisse tirar o silenciador do bolso e atarraxá-lo ao cano, então pelo menos podia matá-lo sem barulho...
- Tem uma agulha pendurada no braço. O corpo ainda está quente. Provavelmente, acabou de se injectar ainda há uns minutos. Deste-lhe a porra das drogas, pá?
- Não sei nada sobre drogas.
Tariq apercebeu-se de que soava demasiado calmo para a situação. Tinha tentado não parecer perturbado pela chegada de Maarten, e agora parecia demasiado descontraído em relação à morte da sua irmãzinha. Maarten claramente não acreditava nele. Gritou com raiva e precipitou-se pela cabina, os braços erguidos, os punhos cerrados.
Tariq desistiu de tentar apanhar o silenciador. Agarrou na Makarov, puxou a culatra, fez pontaria à cara de Maarten e deu-lhe um tiro no olho.
Tariq trabalhava depressa. Tinha conseguido matar Maarten com um único tiro, mas teve de partir do princípio de que alguém numa das casas flutuantes das redondezas ou ao longo do dique ouvira o tiro. A polícia podia estar agora mesmo a caminho. Voltou a enfiar a Makarov na cintura, a seguir agarrou na mala, nas flores e no cartucho gasto e saiu da cabina para o convés da popa. Tinha anoitecido; a neve amontoava-se sobre o Amstel. A escuridão iria ajudá-lo. Olhou para baixo e reparou que estava a deixar pegadas no convés. Arrastou os pés enquanto andava, escondendo as marcas, e saltou para o cais.
Caminhou rápida mas calmamente. Num local escurecido no meio do cais, largou a mala no rio. O chape foi quase inaudível. Mesmo que a polícia descobrisse a mala, não havia nada nela que
pudesse conduzir a si. Iria comprar uma muda de roupa e uma mala nova quando chegasse a Antuérpia: Depois pensou: Se chegar a Antuérpia.
Seguiu pelo Herengracht em direcção a oeste, atravessando a cidade. Por um momento, pensou em abortar o ataque, ir directamente para a Centraalstation e fugir do país. Os Morgenthau eram alvos ligeiros e de valor político mínimo. Kemel escolhera-os porque matá-los seria fácil e porque permitiria a Tariq manter a pressão sobre o processo de paz. Mas agora o risco de captura tinha aumentado dramaticamente devido ao fiasco no barco. Talvez fosse melhor esquecer tudo.
À sua frente, um par de aves marinhas elevaram-se da superfície do canal e começaram a voar, os gritos a ecoar nas fachadas das casas no canal, e, por um momento, Tariq foi outra vez um rapaz de oito anos, a correr descalço pelo campo em Sídon.
A carta chegou ao final da tarde. Vinha dirigida aos pais de Tariq. Dizia que Mahmoud al-Hourani tinha sido morto em Colónia porque era um terrorista - que se Tariq, o filho mais novo da família al-Hourani, se tornasse um terrorista, também seria morto. O pai de Tariq disse-lhe para ir a correr até ao escritório da OLP e perguntar se a carta dizia a verdade. Tariq encontrou um funcionário da OLP e mostrou-lha. O homem da OLP leu-a uma vez, devolveu-a a Tariq e deu-lhe ordem para ir para casa e dizer ao pai que era verdade. Tariq correu pelo campo esquálido em direcção a casa, as lágrimas a toldarem-lhe a visão. Venerava Mahmoud. Não conseguia imaginar viver sem ele.
Quando chegou a casa, já a notícia da carta se tinha espalhado pelo campo - outras famílias tinham recebido cartas semelhantes ao longo dos anos. As mulheres reuniram-se à porta da casa de Tariq. O som dos seus lamentos e a agitação das línguas erguiam-se pelo campo com o fumo das fogueiras nocturnas. Tariq achava que soavam como pássaros dos pântanos. Encontrou o pai e disse-lhe que a carta era verdadeira - Mahmoud estava morto. O pai atirou a carta para a fogueira. Tariq nunca iria esquecer a dor no rosto do pai, a vergonha indizível de ter sido informado da morte do filho mais velho pelos próprios homens que o haviam morto.
Não, pensava agora Tariq enquanto caminhava ao longo do Herengracht. Não ia anular o ataque e fugir por ter medo de ser preso. Tinha chegado demasiado longe. Restava-lhe demasiado pouco tempo.
Tariq chegou à casa. Subiu os degraus da frente, esticou-se e tocou à campainha. Um momento depois, a porta foi aberta por uma rapariga num uniforme de empregada.
Estendeu o arranjo de flores e disse em holandês:
- Um presente para os Morgenthau.
- Oh, que adorável.
- E bastante pesado. Quer que o leve para dentro?
-
A rapariga afastou-se para Tariq poder passar. Fechou a porta para não deixar entrar o frio e esperou, com uma mão no trinco, que Tariq colocasse a caixa em cima de uma mesa no átrio de entrada e se fosse embora. Poisou a embalagem e sacou da Makarov enquanto se virava. Desta vez, o silenciador estava atarraxado no sítio.
A rapariga abriu a boca para gritar. Tariq disparou-lhe dois tiros na garganta.
Arrastou o corpo para fora do átrio de entrada e utilizou uma toalha da casa de banho para limpar o rasto de sangue. A seguir, sentou-se na sala de jantar escurecida e esperou que David e Cynthia Morgenthau chegassem a casa.
PARIS
Shamron chamou Gabriel aos jardins de Tuileries na manhã seguinte, para uma reunião rápida. Gabriel encontrou-o sentado num banco perto de um caminho de cascalho, rodeado por um bando de pombos. Tinha um cachecol de seda cinzento-ardósia à volta do pescoço, com as pontas bem aconchegadas por baixo das lapelas do sobretudo preto, de modo que a careca parecia estar colocada no topo de um pedestal. Levantou-se, tirou a luva preta de cabedal da mão direita e esticou-a como uma faca de trinchar. Gabriel achou-lhe a palma da mão invulgarmente quente e húmida. Shamron soprou para dentro do canhão da luva e voltou a colocá-la. Não estava acostumado a climas frios, e Paris no Inverno deprimia-o.
Caminharam rapidamente, não como dois homens a conversar num parque, mas como dois homens a ir com pressa para algum lado - ao longo dos caminhos de Tuileries, através da muito ventosa Place de la Concorde. Folhas mortas estalavam sob os seus pés, à medida que marchavam ao longo do passeio revestido de árvores junto aos Champs-Élysées.
- Recebemos um relatório esta manhã de um sayan nos serviços de segurança holandeses - disse Shamron. - Foi o Tariq que matou o David Morgenthau e a mulher em Amesterdão.
- Como é que podem ter tanta certeza?
- Eles não têm a certeza, mas eu sim. A polícia de Amesterdão
descobriu uma rapariga morta numa casa flutuante no Amstel. Tinha tido uma overdose de heroína. O irmão também estava morto.
- Heroína?
- Uma única bala pelo olho dentro.
- O que é que aconteceu?
- Segundo os vizinhos da rapariga, uma mulher árabe mudou-se para a casa flutuante há um par de semanas atrás. Saiu há um par de dias e um homem tomou o seu lugar. Um francês que dava pelo nome de Paul.
- Então o Tariq enviou antecipadamente uma agente para Amesterdão, para assegurar um alojamento seguro e uma rapariga para cobertura.
- E quando já não precisava mais dela, deu-lhe heroína suficiente para matar um camelo. A polícia diz que a rapariga tinha antecedentes longos de uso de drogas e prostituição. Obviamente, achou que conseguia fazê-lo passar por uma overdose acidental.
- Como é que o irmão acabou morto?
- A casa flutuante está registada em nome dele. Segundo a polícia, tem estado a trabalhar em Roterdão num projecto de construção. Talvez tenha aparecido sem aviso no local, enquanto o Tariq estava a matar a irmã.
- Faz sentido.
- Na verdade, há provas que suportam essa teoria. Uns vizinhos ouviram o disparo. Se Tariq tivesse estado a planear matar o irmão, teria utilizado um método de execução mais silencioso. Talvez tivesse sido surpreendido.
- Já compararam a bala do irmão com as balas tiradas dos Morgenthau e da empregada?
- Há uma correspondência perfeita. A mesma arma matou as quatro pessoas todas.
Um casal de jovens suecos estava a posar para uma fotografia. Gabriel e Shamron viraram-se bruscamente e caminharam no sentido contrário.
Gabriel perguntou:
- Alguma outra novidade?
Quero que tenhas cuidado em Londres. Um homem de
Langley fez-me uma visita de cortesia na semana passada. Os Americanos foram informados pelas suas fontes de que o Tariq esteve envolvido em Paris. Querem-no preso e julgado nos Estados Unidos.
- A última coisa de que precisamos agora é de estar a tropeçar
na CIA.
- Receio que ainda seja pior. O homem de Langley deixou cair um aviso não muito subtil sobre os perigos de fazer operações em certos países sem permissão.
- Sabem de alguma coisa?
- Duvido, mas não o excluiria por completo.
- Estava à espera que o meu regresso ao Departamento não me fosse enfiar numa cadeia inglesa.
- E não vai, desde que mantenhas a disciplina.
- Obrigado pelo voto de confiança.
- Descobriste-a? - perguntou Shamron, mudando de assunto. Gabriel acenou com a cabeça.
- E está disposta a fazê-lo?
- Demorei algum tempo a convencê-la, mas concordou.
- Porque é que os meus filhos estão todos tão relutantes em voltar para casa? Fui um pai assim tão mau?
- Só demasiado exigente. Gabriel parou em frente de um café nos Champs-Élysées. Jacqueline estava junto à janela, com uns grandes óculos de sol, a ler uma revista. Olhou para cima de relance enquanto se aproximavam, depois voltou a fixar o olhar na revista. Shamron disse:
- É bom ver-vos aos dois a trabalhar juntos outra vez. Mas não lhe partas o coração desta vez. É boa rapariga.
- Eu sei.
- Vais precisar de lhe arranjar um trabalho de disfarce em Londres. Conheço uma pessoa que está à procura de uma secretária.
- Estou um passo à tua frente.
Shamron sorriu e afastou-se. Desapareceu nas multidões ao longo dos Champs-Élysées e, um momento depois, sumira-se.
Julian Isherwood abriu caminho pelos ladrilhos molhados de Mason's Yard. Eram três e trinta e estava a voltar à galeria a seguir ao almoço. Estava bêbado. Não tinha reparado que estava bêbado até sair do Green's e inspirar fundo um pouco do ar húmido e gelado. O oxigénio ressuscitara-lhe o cérebro, e o cérebro alertara o corpo de que, uma vez mais, tinha despejado demasiado vinho dentro dele. O companheiro de almoço fora o barrigudo Oliver Dimbleby e, uma vez mais, o tema da conversa tinha sido a proposta de compra da Isherwood Fine Arts por parte de Oliver. Desta vez, Isherwood conseguira manter a compostura e discutido a situação de uma forma razoavelmente racional - mas não sem a ajuda de duas garrafas de um soberbo Sancerre. Quando estamos a discutir o desmembramento do nosso negócio - da nossa própria alma, pensou -, é-nos permitido entorpecer a dor com um bom vinho francês.
Puxou o casaco para tapar os ouvidos. Uma rajada de vento húmido varreu a Duke Street. Isherwood viu-se apanhado num remoinho de folhas mortas e lixo molhado. Avançou alguns passos aos trambolhões, as mãos a proteger a cara, até o remoinho se extinguir. Pelo amor de Deus! Clima horroroso. Autenticamente siberiano. Pôs a hipótese de se escapulir para dentro do pub, para aquecer os ossos, mas pensou melhor. Já tinha feito suficientes estragos para uma tarde.
Utilizou a chave para abrir a porta no rés-do-chão, subiu as escadas devagar, a pensar que devia mesmo tratar do tapete. No patamar, estava a entrada para uma pequena agência de viagens. As paredes estavam forradas com cartazes de amazonas ferozmente bronzeadas, seminuas, a brincar ao sol. Talvez isto seja a melhor coisa para mim, pensou, a olhar fixamente para uma rapariga em topless, deitada de barriga para baixo na areia imaculadamente branca. Talvez deva abandonar enquanto ainda tenho alguns anos decentes dentro de mim. Fugir de Londres, ir para um sítio quente, lamber as minhas feridas.
Enfiou a chave com força na fechadura, empurrou a porta para
trás, despiu o casaco e pendurou-o no cabide na sala de espera. A seguir, entrou no escritório e deu um toque no interruptor.
- Olá, Julian. Isherwood virou-se e deu de caras com Gabriel Allon.
- Tu! Como diabo é que entraste aqui?
- Queres mesmo saber?
- Suponho que não -- respondeu Isherwood. - Em nome de Deus, o que é que estás aqui a fazer? E onde é que tens estado?
- Preciso de um favor.
- Tu precisas de um favor! Tu precisas de um favor, meu! Abandonaste-me a meio de um trabalho. Deixaste o meu Vecellio num chalé na Cornualha sem segurança nenhuma.
- Às vezes, o melhor sítio para esconder um Vecellio de valor inestimável é o último sítio onde alguém se lembraria de o procurar. Se me quisesse aproveitar à vontade do conteúdo do teu cofre lá em baixo, podia tê-lo feito com bastante facilidade.
- Isso é porque és uma aberração da natureza!
- Não é preciso tornares as coisas pessoais, Julian.
- A sério? E que tal isto para pessoal? " Pegou numa chávena de café da secretária e atirou-a direita
à cabeça de Gabriel.
Gabriel conseguiu ver que Isherwood tinha estado a beber, por isso puxou-o lá para fora para o pôr sóbrio. Andaram aos círculos pelos caminhos do Green Park, até Isherwood se cansar e recostar num banco. Gabriel sentou-se ao lado e esperou que um casal passasse antes de recomeçar a falar.
- Ela sabe escrever à máquina? - perguntou Isherwood. Sabe atender o telefone? Tomar nota de um recado?
- Não me parece que tenha feito um verdadeiro dia de trabalho em toda a vida.
- Oh, mas que perfeito. Absolutamente estupendo.
- É uma rapariga esperta. Tenho a certeza de que vai ser capaz de ajudar no escritório.
- Isso é reconfortante. É-me permitido perguntar porque é que devo contratar esta mulher?
- Julian, por favor.
- Julian, por favor, Julian, mete-te na tua vida. Julian, cala-te e faz o que te dizemos. É sempre o mesmo convosco. E enquanto tudo isto se passa, o meu negócio está a ir para o buraco. O Oliver fez-me uma proposta. vou aceitá-la.
- O Oliver não parece o teu tipo.
- A cavalo dado não se olha o dente. Não estaria nesta posição se não me tivesses abandonado.
- Não te abandonei.
- E chamas-lhe o quê, Gabriel?
- É só uma coisa que preciso de fazer. É tal e qual como nos velhos tempos.
- Nos velhos tempos, isso fazia parte do acordo logo à partida. Mas estes não são os velhos tempos. Isto é negócio, a porra de um negócio e ponto final, Gabriel, e tu passaste-me bem a perna. O que é que é suposto eu fazer acerca do Vecellio enquanto fazes jogos com o Ari?
- Espera por mim - respondeu Gabriel. - Isto vai terminar em breve e vou trabalhar nisso dia e noite, até estar acabado.
- Não quero um trabalho às três pancadas. Dei-to porque sabia que ias demorar o teu tempo e fazê-lo como deve ser. Se quisesse um trabalho às três pancadas, podia ter contratado um tipo sem talento para o fazer por um terço do que te estou a pagar.
- Dá-me um tempo. Mantém o teu comprador à distância e, faças o que fizeres, não vendas a tua posição ao Oliver Dimbleby. Nunca te irás perdoar.
Isherwood olhou para o relógio e levantou-se.
- Tenho um encontro. Alguém que quer mesmo comprar um quadro.
Virou-se e começou a afastar-se; depois parou e disse:
- Já agora, deixaste para trás um rapazinho desgostoso na Cornualha.
- O Peel - disse Gabriel de longe.
- Tem piada, Gabriel, mas nunca tinha imaginado que fosses do tipo de magoar uma criança. Diz à tua rapariga para estar na galeria amanhã às nove da manhã. E diz-lhe para não se atrasar.
- Vai lá estar.
- O que é que devo chamar a esta secretária que me estás a enviar?
- Podes chamar-lhe Dominique.
- Gira? - perguntou Isherwood, recuperando um pouco do seu velho humor.
- Não é má.
MAIDA VALE, LONDRES
Gabriel carregou as malas para dentro, enquanto Jacqueline examinava a sua nova casa, um apartamento acanhado de uma divisão, com uma única janela com vista para um pátio interior. Um sofá desdobrável, uma cadeira de couro estalado, uma secretária pequena. Ao lado da janela, estava um radiador lascado e, ao lado do radiador, uma porta que dava para uma cozinha pouco maior do que a da chalupa de Gabriel. Jacqueline entrou na cozinha e começou a abrir e a fechar armários, tristemente, como se cada um fosse mais repulsivo do que o último.
- Disse ao bodel para fazer umas compras para ti.
- Não podias ter arranjado uma coisa um bocadinho mais agradável?
- A Dominique Bonard é uma rapariga de Paris que veio para Londres à procura de trabalho. Não achei que um duplex de três quartos em Mayfair fosse apropriado.
- É aí que estás?
- Não exactamente.
- Fica uns minutos. Acho a ideia de estar sozinha aqui deprimente.
- Poucos.
Encheu a chaleira de água, colocou-a no fogão e ligou o bico. Gabriel descobriu saquinhos de chá e uma embalagem de leite de longa duração. Ela preparou duas chávenas grandes de chá e levou-as
para a sala de estar. Gabriel estava sentado no sofá. Jacqueline tirou os sapatos e sentou-se à frente dele, os joelhos por baixo do queixo.
- Quando é que começamos?
- Amanhã à noite. Se isso não funcionar, tentamos a noite a seguir.
Acendeu um cigarro, encostou a cabeça para trás e atirou o fumo para o tecto. Depois olhou para Gabriel e franziu os olhos.
- Lembras-te daquela noite em Tunes?
- Qual noite?
- A noite da operação.
- É claro que me lembro.
- Lembro-me como se tivesse sido ontem. Fechou os olhos.
- Lembro-me especialmente da viagem pela água, do regresso ao barco. Estava tão excitada que não conseguia sentir o corpo. Estava a voar. Tínhamos mesmo conseguido. Tínhamos ido direitos à casa daquele sacana, no meio de um recinto da OLP, e eliminado o tipo. Apetecia-me gritar de alegria. Mas nunca vou esquecer a tua expressão. Estavas atormentado. Era como se os homens mortos estivessem sentados ao teu lado no barco.
- Muito poucas pessoas compreendem o que é matar um homem à queima-roupa. E ainda menos sabem o que é encostar-lhe uma arma à cabeça e puxar o gatilho. Matar no campo de batalha dos serviços secretos é diferente do que matar um homem no Golan ou Sinai, mesmo quando se trata de um sacana assassino como o Abu Jihad.
- Agora compreendo isso. Senti-me tão idiota quando regressámos a Telavive. Comportei-me como se tivesses acabado de marcar o golo da vitória, e durante todo esse tempo estavas a morrer por dentro. Espero que me possas perdoar.
- Não precisas de pedir desculpa.
- Mas o que não compreendo é como o Shamron te atraiu de volta, depois destes anos todos.
- Não tem nada a ver com o Shamron. Tem a ver com o Tariq.
- O que tem o Tariq?
Gabriel deixou-se ficar sentado em silêncio por um momento, depois levantou-se e foi até à janela. No pátio, um trio de rapazes dava pontapés numa bola sob a luz âmbar de um candeeiro, jornais velhos a pairar sobre eles como cinzas no vento húmido.
- O irmão mais velho do Tariq, o Mahmoud, era membro do Setembro Negro. O Ari Shamron seguiu-lhe o rasto até Colónia e enviou-me para acabar com ele. Enfiei-me no apartamento dele enquanto estava a dormir e apontei-lhe uma arma à cara. Depois acordei-o, para que não tivesse uma morte tranquila. Dei-lhe dois tiros nos olhos. Dezassete anos mais tarde, o Tariq teve a sua vingança ao rebentar com a minha mulher e o meu filho diante dos meus olhos.
Jacqueline tapou a boca com as mãos. Gabriel continuava a olhar fixamente pela janela, mas conseguia perceber que era Viena que via agora e não os rapazes a brincar no pátio.
- Durante muito tempo, pensei que o Tariq se tivesse enganado - disse Gabriel. - Mas ele nunca se engana assim. É cuidadoso, faz tudo com um propósito. É o predador perfeito. Foi atrás da minha família por uma razão. Foi atrás deles para me castigar por lhe ter matado o irmão. Sabia que seria pior do que a morte.
Voltou-se para a olhar de frente.
- De um profissional para outro, foi um trabalho perfeito.
- E agora vais matá-lo em retribuição? Afastou o olhar e não respondeu nada.
- Sempre me culpei pelo que aconteceu em Viena - disse Jacqueline. - Se não tivéssemos...
- Não tiveste culpa - disse Gabriel, interrompendo-a. A culpa foi minha, não tua. Devia ter calculado. Comportei-me de uma forma estúpida. Mas agora acabou.
A frieza da sua voz foi como uma faca no peito dela. Demorou muito tempo a apagar o cigarro e depois olhou para cima, na direcção dele.
- Porque é que contaste à Leah sobre nós?
Ficou parado à janela por um momento, sem dizer nada. Jacqueline receou que tivesse ido longe de mais. Tentou pensar em algum modo de desbloquear a situação e mudar de assunto, mas queria
desesperadamente saber a resposta. Se Gabriel não tivesse confessado o caso, Leah e Dani nunca teriam estado com ele na missão em Viena.
- Contei-lhe porque não lhe queria mentir. A minha vida inteira era uma mentira. O Shamron tinha-me convencido de que eu era perfeito, mas não era perfeito. Pela primeira vez na vida, tinha-me comportado com um pouco de fragilidade e fraqueza humanas. Suponho que precisasse de o partilhar com ela. Suponho que precisasse de alguém para me perdoar.
Pegou no casaco. O rosto estava contorcido. Estava zangado, não com ela mas consigo próprio.
- Tens um dia longo à tua frente amanhã. A voz era agora toda ela negócios.
- Instala-te e tenta descansar um bocado. O Julian está a contar que apareças às nove horas.
E depois saiu.
Durante uns minutos, distraiu-se com o ritual do desfazer das malas. Depois, a dor tomou-a de surpresa, como o ardor atrasado de uma bofetada. Deixou-se cair no sofá e começou a chorar. Acendeu outro cigarro e olhou em redor do apartamentozinho horroroso. Mas que diabo estou eu aqui afazer? Tinha concordado em regressar por uma razão - porque julgava que podia fazer Gabriel amá-la -, mas ele tinha reduzido o caso em Tunes a um momento de fraqueza. Ainda assim, porque tinha ele voltado, após todos estes anos, para matar Tariq? Era simplesmente por vingança? Um olho por olho? Não, pensou, os motivos de Gabriel eram muito mais profundos e mais complexos do que a simples vingança. Talvez precisasse de matar Tariq para se perdoar pelo que tinha acontecido a Leah e avançar, por fim, com a vida. Mas será capa de alguma ve me perdoar? Talvez a única forma de lhe ganhar a confiança fosse ajudá-lo a matar Tariq. E a única forma de o poder ajudar a matar Tariq éfaer um outro homem apaixonar-se por mim e levá-lo para a cama. Fechou os olhos e pensou em Yusef al-Tawfiki.
Gabriel deixara o carro em Ashworth Road. Fez questão de mostrar que tinha deixado cair as chaves no passeio e que estava
a apalpar na escuridão como se estivesse a tentar encontrá-las. Na realidade, estava a inspeccionar a parte de baixo do carro, à procura de algo que não devesse estar lá - uma massa, um cabo grande. O carro parecia limpo, por isso entrou, ligou o motor e guiou em círculos durante meia hora por Maida Vale e Notting Hill, assegurando-se de que não estava a ser seguido.
Estava aborrecido consigo mesmo. Tinham-lhe ensinado primeiro o pai e depois Ari Shamron - que os homens que não conseguiam guardar segredos eram fracos e inferiores. O pai sobrevivera a Auschwitz, mas recusou-se sempre a falar disso. Bateu em Gabriel uma vez apenas - quando Gabriel exigiu que o pai lhe contasse o que tinha acontecido no campo de concentração. Se não tivesse sido pelos números tatuados no antebraço direito, Gabriel poderia nunca ter sabido que o pai sofrera.
Na verdade, Israel era um local pejado de gente traumatizada
- mães que enterraram filhos mortos em guerras, crianças que enterraram irmãos mortos por terroristas. Após Viena, Gabriel apoiou-se nas lições do pai: "Às vezes, as pessoas morrem demasiado cedo. Chora-as em privado. Não tenhas o sofrimento à flor da pele como os Árabes. E quando tiveres acabado de fazer o luto, põe-te de pé e continua com a vida."
Tinha sido a última parte - continuar com a vida - que dera mais trabalho a Gabriel. Culpava-se pelo que tinha acontecido em Viena, não só pelo caso com Jacqueline, mas também pelo modo como tinha matado o irmão de Tariq. Quisera ter a satisfação de saber que Mahmoud estava ciente da sua morte - que tinha ficado aterrorizado no momento em que a Beretta de Gabriel lhe enviou silenciosamente a primeira bala ardente para o cérebro. Shamron dissera-lhe para aterrorizar os terroristas - para pensar como eles e comportar-se como eles. Gabriel acreditava que tinha sido castigado por se ter deixado tornar igual ao inimigo.
Como resultado, tinha-se castigado a si próprio. Uma por uma, fechara as portas e obstruíra as janelas que em tempos lhe tinham dado acesso aos prazeres da vida. Vagueou pelo tempo e pelo espaço como imaginava que um espírito maldito pudesse visitar o lugar
onde vivera: capaz de ver os entes queridos e os pertences mas incapaz de comunicar ou saborear ou tocar ou sentir. Senda a beleza apenas na arte e apenas ao reparar os danos infligidos por proprietários negligentes ou pela passagem corrosiva do tempo. Shamron tinha feito de si o destruidor. Gabriel voltara a tornar-se o curador. Infelizmente, não era capaz de se curar a si próprio.
Então porquê contar segredos ajacqueline? Porquê responder-lhe às malditas questões? A resposta simples era porque o queria fazer. Tinha-o sentido no momento em que entrara na sua vivenda em Valbonne, uma necessidade prosaica de partilhar segredos e revelar dor e desapontamento passados. Mas havia algo mais importante: não tinha de se explicar a ela. Pensou na fantasia tola acerca da mãe de Peel, como tinha terminado quando lhe contara a verdade sobre si mesmo. A cena reflectia um dos medos profundos de Gabriel - o temor de dizer a uma outra mulher que era um assassino profissional. Jacqueline já conhecia os seus segredos.
Talvez Jacqueline tivesse tido razão numa coisa, pensou - talvez devesse ter pedido outra rapariga a Shamron. Jacqueline era a sua bat leveyha, e amanhã ia enviá-la para a cama de outro homem.
Estacionou à esquina do apartamento e caminhou depressa pelo passeio, em direcção à entrada do prédio. Olhou para cima, para a sua janela, e murmurou:
- Boa noite, Senhor Karp.
E imaginou Karp, a espreitar pela mira do seu microfone parabólico, a dizer:
- Bem-vindo a casa, Gabriel. Há muito tempo que não te ouvia.

 

 


CONTINUA