Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ARTISTA DA MORTE
O ARTISTA DA MORTE

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

MAIDA VALE, LONDRES
Jacqueline sentiu uma alegria peculiar na manhã seguinte, enquanto atravessava Elgin Avenue, na direcção da estação do metro de Maida Vale. Tinha vivido uma vida de excesso hedonístico demasiado dinheiro, demasiados homens, as coisas boas tidas como garantidas. Era animador estar a fazer algo tão comum como apanhar o metro para o trabalho, mesmo que fosse apenas um emprego de disfarce.
Comprou um exemplar do The Times da banca de jornais na rua, depois entrou na estação e seguiu pelas escadas abaixo até ao átrio dos bilhetes. Na noite anterior, tinha estudado mapas de ruas e memorizado as linhas de metro. Tinham nomes tão curiosos: Jubilee, Circle, District, Victoria. Para chegar à galeria em St. James's, apanharia a Bakerloo Line de Maida Vale até Piccadilly Circus. Comprou um bilhete numa máquina, a seguir passou pelo torniquete e desceu pelas escadas rolantes até à plataforma. Até agora, tudo bem, pensou. Apenas mais uma rapariga trabalhadora em Londres.
A ideia de relaxar por uns minutos com o jornal dissolveu-se quando o metro chegou à estação. As carruagens vinham abarrotadas sem remédio, os passageiros esmagados contra os vidros. Jacqueline, que era sempre protectora do seu espaço, pensou em esperar para ver se o próximo metro viria um pouco melhor. Olhou para o relógio, viu que não tinha tempo a perder. Quando as portas
se abriram, apenas uma mão-cheia de pessoas saiu. Não parecia haver lugar onde ficar. O que faria uma londrina? Empurrar até conseguir entrar. Encostou a mala aos seios e entrou.
O metro avançou aos solavancos. O homem ao seu lado estava a respirar a cerveja da noite passada para cima da cara dela. Esticou o corpo comprido, inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos, descobriu uma corrente de ar fresco a escapar-se por uma fenda nas portas.
Uns instantes mais tarde, o metro chegou a Piccadilly Circus. Cá fora, a neblina tinha-se transformado em chuva fraca. Jacqueline puxou de um guarda-chuva de dentro da mala. Andou depressa, acompanhando a passada dos empregados de escritórios à sua volta, fazendo alterações subtis à trajectória para evitar o trânsito que se aproximava.
Ao virar em Duke Street, deitou uma olhadela por cima do ombro. A andar alguns metros atrás, de calças de ganga pretas e um casaco de cabedal, estava Gabriel. Avançou para sul ao longo de Duke Street, até chegar à entrada de Mason's Yard.
Gabriel deu-lhe um encontrão no cotovelo ao passar.
- Estás segura. Dá beijinhos meus ao Julian.
A galeria estava exactamente como Gabriel a descrevera: apertada entre o escritório da companhia de navegação e o pub. Ao lado da porta havia um painel e no painel estavam dois botões e dois nomes correspondentes: LOCUS TRAVEL e ISHER oo FINE AR s. Carregou no botão, esperou, carregou outra vez, esperou, deitou um olhar ao relógio, carregou outra vez. Nada.
Atravessou Mason's Yard, entrou em Duke Street e descobriu um pequeno café onde podia esperar. Mandou vir café e instalou-se perto da janela com o Times. Quinze minutos mais tarde, às nove e vinte em ponto, reparou num homem de cabelos grisalhos vestido com grande estilo a avançar apressadamente por Duke Street, como se estivesse atrasado para o próprio funeral. Agachou-se para passar entre os edifícios e desapareceu por Mason's Yard dentro. Isherwood, pensou. Tinha de ser.
Enfiou o jornal na mala e esgueirou-se para fora do café, atrás dele. Seguiu-o através de Mason's Yard, em direcção à galeria. Enquanto ele estava a destrancar a porta, gritou:
- Senhor Isherwood, é o senhor? Tenho estado à sua espera. Isherwood voltou-se. A boca abriu-se ligeiramente enquanto ela
se aproximava.
- Sou a Dominique Bonard. Creio que estava à minha espera esta manhã.
Isherwood desimpediu a garganta várias vezes rapidamente e pareceu ter dificuldades em recordar-se de qual a chave que abria o escritório.
- Sim, bom, encantado, realmente - balbuciou. - Peço imensa desculpa, o maldito metro, sabe como é.
- Deixe-me pegar na pasta. Talvez isso ajude.
- Sim, bom, é. francesa - disse, como se achasse que isto pudesse ser uma revelação para ela. - Tenho um italiano fluente, mas receio que o meu francês seja bastante atroz.
- Tenho a certeza de que nos iremos entender perfeitamente em inglês.
- Sim, claro.
Por fim, conseguiu destrancar a porta. Segurou-a de modo demasiado galante e fez-lhe sinal para passar até às escadas. No patamar, Isherwood parou em frente à agência de viagens e estudou a rapariga num dos cartazes. Virou-se e olhou de relance para Jacqueline, depois voltou a olhar fixamente para a rapariga na fotografia.
- Sabe, Dominique, podia ser a sua irmã gémea. Jacqueline sorriu e respondeu:
- Não seja tolo.
Isherwood abriu a galeria e levou Jacqueline até à secretária.
- Vai aparecer por cá um homem chamado Oliver Dimbleby, mais ao fim da manhã. Parece-se bastante com uma salsicha inglesa num fato Savile Roa1. Abra-lhe a porta para ele subir quando chegar. Até lá, deixe-me mostrar-lhe o resto da galeria.
Entregou-lhe um par de chaves numa fita elástica azul.
- Estas são para si. Sempre que um de nós sair da galeria, as
portas são para ser fechadas com o alarme. O código para desligar o alarme é cinco-sete-seis-quatro-nove-sete-três-dois-seis. Memorizou-o?
Jacqueline acenou com a cabeça. Isherwood olhou para ela, incrédulo, e ela repetiu a sequência de números rapidamente e sem erro. Isherwood estava claramente impressionado.
Entraram num pequeno elevador, que mal tinha largura para acomodar dois passageiros. Isherwood inseriu a chave no cadeado de segurança, rodou-a e carregou no botão que dizia B. O elevador gemeu e estremeceu, depois desceu lentamente pelo poço, parando com um solavanco suave. As portas abriram-se e entraram numa sala fresca e escura.
- Isto é a tumba - disse, ligando as luzes.
Era uma cave apertada cheia de telas, algumas emolduradas, outras não e encostadas em ranhuras construídas nas paredes.
- Esta é a minha sala de stock. Centenas de trabalhos, muitos deles valiosos, muitos mais com pouco ou nenhum valor no mercado aberto e que, portanto, estão a acumular pó nesta sala.
Levou-a de volta ao elevador e desta vez subiram. As portas abriram-se para uma sala grande e de tecto alto. A luz cinzenta da manhã entrava a conta-gotas por uma cúpula circular de vidro no tecto. Jacqueline avançou com cuidado alguns passos. Isherwood ligou um interruptor, iluminando a sala.
Era como se ela tivesse entrado num museu. As paredes eram cor creme, imaculadas, o chão de madeira dura polido e muito brilhante. No centro do chão, estava um banco baixo coberto por veludo macio cor de vinho. Nas paredes, estavam telas imponentes
, iluminadas por focos de halogéneo montados no tecto. A chuva l batia ao de leve na clarabóia abobadada. Jacqueline sentou-se no
banco. Havia uma Vénus de Luini e uma Natividade de dei Vaga; U um Baptismo de Cristo de Bordone e uma paisagem estonteante de H Claude.
- É de cortar a respiração - disse. - Sinto-me como se estivesse no Louvre. Deve vir muito aqui acima.
- Quando preciso de pensar. Esteja à vontade para subir sempre que quiser. Traga o almoço.
- vou fazê-lo. Obrigado por mo mostrar.
- Se vai trabalhar aqui, suponho que deva conhecer os cantos à casa.
Apanharam o elevador para o andar principal. Jacqueline sentou-se à sua nova secretária, abriu as gavetas, revolveu os clipes para o papel e as canetas, experimentou a fotocopiadora.
Isherwood perguntou:
- Sabe usar essas coisas, não sabe?
- Tenho a certeza de que lhe vou apanhar o jeito.
- Oh, meu Deus - murmurou ele.
Oliver Dimbleby chegou às onze horas em ponto. Jacqueline inspeccionou-o pela câmara de segurança - parecia mesmo uma salsicha num fato Savile Row - e carregou no botão para o deixar subir. Quando a avistou, meteu o estômago para dentro e sorriu afectuosamente.
- Então, é a nova rapariga do Julian - disse, apertando-lhe a mão. - Chamo-me Oliver Dimbleby. Muito gosto em conhecê-la.: Muito gosto, realmente.
- Anda, Oliver - chamou Isherwood do escritório interior. Aqui, rapaz. Larga-lhe a mão e entra aqui. Não temos o dia todo.
Oliver, relutante, libertou-lhe a mão e entrou no escritório de Isherwood.
- Diz-me, Julie, meu querido. Se eu comprar mesmo este sítio, aquele anjo ali fora também vem?
- Oh, cala-te lá, Oliver. Isherwood fechou a porta.
Jacqueline voltou para o seu escritório e tentou perceber como utilizar o fax.
A chamada para o Kebab Factory veio às 4 horas da tarde. Gabriel esperou três minutos e vinte segundos para que Yusef viesse ao telefone - sabia o tempo exacto que demorava porque, mais tarde, se sentiu compelido a apurá-lo com um cronómetro. Durante a ausência de Yusef, foi brindado com os sons dos ajudantes de cozinha a tagarelar em árabe libanês e com Mohammed, o gerente da
parte da tarde, a gritar a um empregado para limpar a mesa dezassete. Quando Yusef veio finalmente ao telefone, parecia ligeiramente sem fôlego. A conversa inteira durou trinta e sete segundos. Quando terminou, Gabriel rebobinou a cassete e ouviu-a tantas vezes que Karp lhe implorou que parasse.
- Acredita em mim, Gabe, não há nada de sinistro a passar-se. São dois tipos a falar em ir tomar um copo e talvez encontrarem uma miúda e irem para a cama. Lembras-te de ir para a cama, não te lembras?
Mas Gabriel estava a iniciar a fase seguinte da operação - estava a enviar Jacqueline para território hostil - e queria ter a certeza de que não a estava a enviar para uma armadilha. Por isso escutou
outra vez:
- Continua tudo combinado para hoje à noite?
- Completamente. Onde?
- Ali Bar One, em Leicester Square, às nove horas.
- Lá estarei.
STOP. REBOBINAR. PLAY.
- Continua tudo combinado para hoje à noite?
- Completamente. Onde?
- AU Bar One, em Leicester Square, às nove horas.
- Lá estarei.
STOP. REBOBINAR. PLAY.
- AU Bar One, em Leicester Square, às nove horas.
STOP. PLAY.
- Lá estarei.
Gabriel pegou no telefone e marcou com força o número da Isherwood Fine Arts.
LEICESTER SQUARE, LONDRES
O AU Bar One ficava no canto sudoeste de Leicester Square. Tinha dois andares e grandes janelas, de modo que Gabriel, sentado lá fora num banco de madeira frio, podia ver a acção lá dentro como se fosse uma peça ou um palco de múltiplos níveis. Magotes de turistas e pessoas que iam ao cinema passavam por ele a gritar. Os artistas de rua também tinham saído. Num dos lados da praça, um alemão cantava Jimi Hendrix por um microfone a crepitar, acompanhado por uma guitarra acústica amplificada. No outro, um grupo de peruanos tocava a música das montanhas para um bando de punks urbanos com cabelo de cor púrpura e ar desconsolado. A uns metros da entrada do bar, uma estátua humana estava, imobilizada, em cima de um pedestal, a cara pintada da cor do titânio, a olhar para Gabriel de forma malévola.
Yusef apareceu cinco minutos mais tarde, acompanhado por um homem bem-arranjado e de cabelo arruivado. Esquivaram-se à pequena fila à porta subornando o macacão musculado que fazia de segurança. Um momento depois, apareceram à janela no segundo andar. Yusef disse olá a uma loira alta e magra. Gabriel tirou um telemóvel do bolso do casaco, marcou um número, murmurou algumas palavras, depois carregou no botão para desligar.
Jacqueline, quando chegou cinco minutos mais tarde, vestia a mesma roupa que tinha vestido para a galeria de Isherwood nessa manhã, mas soltara os longos cabelos. Apresentou-se ao porteiro e perguntou pelo tempo de espera. O porteiro afastou-se prontamente,
para grande aborrecimento dos outros clientes que se acumulavam à porta. Enquanto Jacqueline desaparecia dentro do bar, Gabriel ouviu alguém dizer entre dentes:
- Cabra francesa.
Subiu, pagou um copo de vinho e sentou-se à janela, a uns metros de Yusef e do amigo. Yusef ainda estava a conversar com a loira mas, após alguns instantes, Gabriel pôde ver os seus olhos a desviarem-se para a rapariga alta e de cabelo escuro sentada à direita.
Vinte minutos mais tarde, nem Gabriel nem a estátua se tinham movido, mas Yusef tinha-se desenvencilhado da loira e estava sentado ao lado de Jacqueline. Ela estava a comê-lo com os olhos, como se o que quer que ele estivesse a dizer fosse a coisa mais fascinante que ouvira em anos.
Gabriel olhou fixamente para a estátua e a estátua retribuiu o olhar.
À meia-noite, saíram do bar e caminharam ao longo da praça no meio de um vento que redemoinhava. Jacqueline tremia e dobrou os braços por baixo dos seios. Yusef pôs-lhe o braço à volta da cintura e puxou-a contra si. Ela conseguia sentir o vinho. Tinha descoberto que a utilização sensata de álcool ajudava em situações como estas. Bebera exactamente o suficiente para perder quaisquer inibições em relação a dormir com um completo desconhecido inibições que a poderiam trair -, mas não o suficiente para lhe entorpecer os sentidos ou os instintos de autopreservação.
Entraram num táxi em Charing Cross Road.
Jacqueline perguntou:
- Onde é que moras?
Sabia a resposta mas Dominique Bonard não.
- Tenho um apartamento em Bayswater. Sussex Gardens. Vamos para lá?
Acenou com a cabeça. Seguiram por Charing Cross Road acima, passando por lojas escurecidas, depois para oeste, ao longo de Oxford Street, na direcção de Marble Arch e do parque. Às vezes, passavam por uma loja iluminada ou por baixo de um candeeiro de rua e ela via-lhe a cara por um instante, como uma fotografia
projectada de relance num ecrã e a seguir retirada. Estudou-lhe o perfil. A articulação do maxilar era um ângulo recto perfeito, o nariz comprido e fino, com linhas nítidas ao longo da cana, os lábios carnudos. Pestanas compridas, sobrancelhas largas. Tinha-se barbeado com atenção. Não usava água-de-colónia.
Baseado no que Gabriel lhe tinha dito, esperava que Yusef fosse convencido e demasiado confiante. Mas, em vez disso, exibia uma inteligência agradável, de certa maneira envergonhada. Pensou no executivo químico alemão que seduzira em Chipre. Era careca e tinha mau hálito. Ao jantar, tinha-lhe contado quanto odiava os judeus. Mais tarde, na cama, pedira-lhe para fazer coisas que a deixaram doente.
Avançaram por Edgware Road acima e viraram em Sussex Gardens. Queria olhar para cima e descobrir o apartamento no qual Gabriel instalara o posto de escuta. Em vez disso, obrigou-se a olhar para Yusef. Passou o dedo pelo maxilar dele.
- És bastante bonito, sabes?
Ele sorriu.
Pensou: Está habituado a elogios das mulheres.
O táxi chegou à entrada do edifício. Era um sítio sem charme, um prédio de apartamentos do pós-guerra de fachada lisa, com um ar de decadência institucional. Ajudou-a a sair do táxi, conduziu-a por um pequeno lance de escadas até à entrada principal. Andava sobre a ponta dos pés - como Gabriel, pensou -, como se estivesse perpetuamente preparado para avançar ou atacar de súbito. Pôs-se a pensar se Gabriel os estaria a observar.
Tirou as chaves, pôs uma de parte para a porta da frente modelo Yale, reparou ela - e inseriu-a na fechadura. Conduziu-a por um pequeno átrio de linóleo em xadrez, a seguir por um lanço de escadas pouco iluminado. Pôs-se a pensar como iria ele avançar. Iria abrir uma garrafa de vinho, pôr a tocar música suave ou acender velas? Ou iria estar sem rodeios e agir como se estivesse a tratar de negócios? Se conversassem, talvez conseguisse saber alguma coisa acerca dele que pudesse ser útil a Gabriel. Decidiu que iria esticar a sedução por mais um bocadinho de tempo.
À porta do apartamento, ele utilizou uma segunda Yale para
destrancar a fechadura principal, depois uma chave mestra antiquada para o trinco. Três fechaduras, três chaves individuais. Nenhum problema.
Entraram no apartamento. A sala estava às escuras. Yusef fechou a porta. A seguir, beijou-a pela primeira vez.
Jacqueline disse:
- Quis que fizesses isso durante a noite toda. Tens uns lábios lindos.
- Quis fazer outras coisas durante a noite toda. Beijou-a de novo.
- Posso arranjar-te alguma coisa para beber?
- Um copo de vinho era óptimo, se tiveres algum.
- Acho que sim. Deixa-me confirmar.
Acendeu uma luz, um candeeiro de pé, barato, com o feixe focado no tecto, e deixou as chaves numa mesa pequena junto à porta. Jacqueline pôs a mala ao lado delas. O treino de Shamron veio ao de cima. Examinou rapidamente a sala. Era o apartamento de um revolucionário intelectual, um centro de operações esparso e utilitário. Três tapetes orientais baratos cobriam o chão de linóleo. A mesa de café era uma peça quadrada e grande de madeira prensada, apoiada em quatro vigas de madeira cor de cinza e rodeada por um quarteto de cadeiras desirmanadas. No centro da mesa, estava um cinzeiro do tamanho de um prato de mesa, que continha beatas de várias marcas. Algumas estavam esborratadas com batom, dois tons diferentes. À volta do cinzeiro estava meia dúzia de pequenas chávenas, manchadas, como padrões de teste Rorschach, com borras de café turco.
Voltou a atenção para as paredes. Havia cartazes de Bob Marley e de Che Guevara, outro de Tommy Smith e John Carlos a erguerem os punhos dentro de luvas nas Olimpíadas da Cidade do México de 1968. Havia uma bandeira palestiniana preta, verde e vermelha e uma gravura de uma pintura, representando uma rapariga de aldeia a receber um banho de outras mulheres na noite anterior ao casamento. Reconheceu a pintura como sendo uma das de Ibrahim Ghannan. Por todo o lado, havia livros, alguns amontoados, alguns em pilhas, como se estivessem à espera de gasolina e de um fósforo
- volumes da história do Médio Oriente, histórias das guerras do Médio Oriente, biografias de Arafat, Sadat, Ben-Gurion, Rabin.
- Lês bastante - disse Jacqueline.
- É um vício meu.
- De onde és, se não te importas que pergunte?
- Palestina.
Veio até à sala, vindo da cozinha, e entregou-lhe um copo de vinho tinto. Depois estendeu a mão.
- Vem comigo.
Gabriel estava parado à janela. O microfone laser de Karp apanhava trechos da conversa deles, mas era como ouvir um disco de vinil que saltava. Quando passaram para o quarto para fazer amor, Gabriel disse:
- Desliga-o.
- Mas, Gabe, agora é que está a chegar à melhor parte.
- Já disse, desliga-o.
Karp baixou o microfone e apagou-o.
- Tenho fome. vou dar uma volta.
- Vai.
- Estás bem, Gabe?
- Estou óptimo.
- Tens a certeza disso?
- Vai.
Uma hora mais tarde, Yusef saiu da cama, andou até à janela e abriu as cortinas. O candeeiro amarelo da rua transformara-lhe a pele verde-azeitona na cor de papel de jornal antigo. Jacqueline estava deitada de barriga para baixo. Colocou o queixo em cima das mãos e olhou para ele, os olhos a seguir a linha que vinha dos ombros muito direitos até à cintura compacta e musculada. Pensou se Gabriel também estaria a olhar para ele.
Yusef estava a observar a rua - a olhar para carros estacionados, a inspeccionar o edifício em frente. Virou o corpo ligeiramente e ela pôde ver-lhe uma cicatriz larga e lisa nas costas, que se estendia
entre a omoplata direita e o centro da coluna vertebral. Sentira-a enquanto estavam a fazer amor. Era dura e grossa, como lixa. Como a pele de um tubarão.
Fora um amante meigo, meticuloso nas tentativas de lhe dar prazer. Quando estava dentro dela, tinha fechado os olhos e imaginado que era Gabriel, e quando sentiu a cicatriz entre as omoplatas imaginou que a cicatriz era de Gabriel, uma relíquia de uma das suas missões secretas, e desejou poder passar a mão por cima dela e fazê-la desaparecer.
- Para onde é que estás a olhar? - perguntou.
Yusef voltou-se e cruzou os braços no peito.
- Já alguma vez tinhas dormido com um árabe, Dominique? Pensou: E estás a mudar de assunto.
Respondeu:
- És o meu primeiro. Talvez tenha de o fazer outra vez um dia destes.
- Não enquanto estiveres a dormir comigo.
- Agora estamos a dormir juntos?
- Isso é contigo.
- Muito bem, agora estamos oficialmente a dormir juntos. Virou-se de costas, olhou para a luz da rua a cair-lhe sobre
o corpo, imaginou que era o olhar de Gabriel.
- Achas que nos devíamos ficar a conhecer um bocadinho melhor, agora que estamos oficialmente a dormir juntos?
Sorriu e respondeu:
- O que é que queres saber?
- Quero saber o que é que aconteceu às tuas costas? Voltou-se e olhou para fora da janela.
Ela estudou o despertador digital em cima da mesa-de-cabeceira.
- Há algumas coisas no meu passado que podes achar deságradáveis - disse.
- Coisas más que fizeste?
- Não, Dominique. Coisas más que me fizeram.
- Como é que ficaste com essa cicatriz nas costas? Virou-se e olhou para ela.
- Cresci num campo de refugiados no Líbano, o campo de
Shatila no Sul de Beirute. Talvez tenhas ouvido falar de Shatila, Dominique.
- Claro que ouvi falar de Shatila.
- A OLP tinha escritórios no campo de Shatila, por isso quando os Israelitas invadiram o Líbano em oitenta e dois, bombardearam o campo dia e noite. Um míssil disparado por um caça israelita acertou no prédio onde a nossa família vivia. O prédio desabou em cima de mim e um pedaço de cimento rasgou-me a pele das costas.
- Porque é que estavas no Líbano?
- Porque foi aí que a minha família foi parar depois de ter sido expulsa das suas casas ancestrais da Palestina pelos judeus.
Jacqueline olhou para o tecto. Yusef perguntou:
- Porque é que afastas o olhar de mim quando te conto isso?
- Conheci uns israelitas em tempos num clube em Paris. Estavam a debater este assunto com um grupo de estudantes franceses. Disseram que os judeus não tiveram de expulsar os Árabes da Palestina porque os Árabes se foram embora de livre vontade.
Yusef riu-se e abanou a cabeça.
- Receio que tenhas sido vítima do maior mito sionista, Dominique. O mito de que os Palestinianos iriam trocar voluntariamente a terra onde viviam há séculos pelo exílio e por campos de refugiados. O mito de que os governos árabes disseram aos Palestinianos para se irem embora.
- Não é verdade?
- Parece-te que pudesse ser verdade?
- Na verdade, não.
- Então confia nos teus instintos, Dominique. Se não soa plausível, provavelmente não é. Queres saber a verdade acerca do que os judeus fizeram ao meu povo? Queres saber porque é que a minha família foi parar a um campo de refugiados em Beirute?
- Quero saber coisas de ti.
- Sou palestiniano. É impossível separar-me da história do meu povo.
- Conta-me - respondeu.
- Já agora, que clube em Paris?
- O quê?
- O clube onde conheceste os israelitas. Qual foi? ?
- Não me consigo lembrar. Já foi há tanto tempo!
- Tenta lembrar-te, por favor. É importante.
- Chamamos-lhe al-Nakba. A Catástrofe.
Tinha vestido umas calças de pijama de algodão largas e uma camisola da Universidade de Londres, como se de repente estivesse consciente da sua nudez. Deu ajacqueline uma camisa azul. Era tácito, mas o significado era claro: não se pode discutir algo tão sagrado como al-Nakba num estado despido e pós-coito. Jacqueline estava sentada no meio da cama, as pernas compridas cruzadas à sua frente, enquanto Yusef andava de um lado para o outro.
- Quando as Nações Unidas apresentaram o plano para dividir a Palestina em dois estados, os judeus aperceberam-se de que tinham um problema grave. Os sionistas tinham vindo à Palestina para construir um estado judeu, mas praticamente metade das pessoas no novo estado dividido seria árabe. Os judeus aceitaram o plano de divisão, sabendo muito bem que seria inaceitável para os Árabes. E porque deviam os Árabes aceitá-lo? Os judeus detinham sete por cento da Palestina, mas estava a ser-lhes entregue cinquenta por cento do país, incluindo a terra mais fértil, ao longo da planície costeira e da Galileia Superior. Estás a ouvir, Dominique?
- Estou a ouvir.
- Os judeus engendraram um plano para retirar os Árabes da terra destinada ao Estado judeu. Até tinham um nome para ele: Plano Dalet. E activaram-no no momento em que os Árabes atacaram. O plano era expulsar os Árabes, escorraçá-los, como disse o Ben-Gurion. Limpar a Palestina judia dos Árabes. Sim, limpar. Não uso essa palavra de ânimo leve, Dominique. A palavra não é minha. É a mesmíssima palavra que os sionistas usaram para descrever o plano para expulsar o meu povo da Palestina.
- Até parece que se portaram como os sérvios.
- E portaram. Já alguma vez ouviste falar de um sítio chamado Deir Yassin?
- Não - respondeu.
- A tua visão do conflito no Médio Oriente foi moldada pelos sionistas, por isso não me surpreende nada que nunca tenhas ouvido falar de Deir Yassin.
- Fala-me sobre Deir Yassin.
- Era uma aldeia árabe às portas de Jerusalém, na estrada para a costa e Telavive. Já não está lá. Há uma vila judia onde Deir Yassin costumava estar. Chama-se Kfar Sha'ul.
Yusef fechou os olhos por um momento, como se a parte seguinte fosse demasiado dolorosa para falar sequer nela. Quando retomou a conversa, falava com a calma neutra de um sobrevivente a recordar os últimos acontecimentos mundanos da vida de um ente querido.
- Os anciãos da aldeia tinham chegado a um entendimento com os sionistas, por isso os quatrocentos árabes que viviam em Deir Yassin sentiam-se seguros. Tinha-lhes sido prometido pelos sionistas que a aldeia não seria atacada. Mas, às quatro da tarde de uma manhã de Abril, os membros do Irgun e do Gangue Stern foram até Deir Yassin. Pelo meio-dia, dois terços dos habitantes da aldeia tinham sido chacinados. Os judeus juntaram os homens e os rapazes, encostaram-nos a um muro e começaram a disparar. Foram de casa em casa e assassinaram as mulheres e as crianças. Dinamitaram as casas. Dispararam sobre uma mulher que estava grávida de nove meses e a seguir abriram-lhe o ventre e arrancaram o filho. Uma mulher avançou para tentar salvar a vida do bebé. Um judeu disparou sobre a mulher e matou-a.
- Não acredito que coisas dessas aconteceram na Palestina.
- Claro que aconteceram, Dominique. Depois do massacre, a palavra foi-se espalhando rapidamente pelas aldeias árabes. Os judeus aproveitaram a situação ao máximo. Montaram altifalantes em carrinhas e emitiram avisos. Disseram aos Árabes para se irem embora, ou haveria outra Deir Yassin. Inventaram histórias de surtos de tifo e cólera. Fizeram emissões de rádio clandestinas em árabe, a fazerem-se passar por líderes árabes, e incitaram os Palestinianos a fugir para evitar um banho de sangue. Esta é a verdadeira razão pela qual os Palestinianos se foram embora.
- Não fazia ideia - disse.
- A minha família veio da aldeia de Lydda. Lydda, como Deir Yassin, já não existe. Agora é Lod. É onde os sionistas puseram a porra do seu aeroporto. Depois de uma batalha com os defensores árabes, os judeus entraram em Lydda. Deu-se o pânico completo. Duzentos e cinquenta aldeões árabes foram mortos no fogo cruzado. Depois da aldeia ter sido capturada, os comandantes perguntaram ao Ben-Gurion o que é que se devia fazer com os Árabes. Respondeu: Escorracem-nos! As ordens de expulsão propriamente ditas foram assinadas pelo Yitzhak Rabin. À minha família foram dados dez minutos para arrumar alguns pertences, tantos quantos conseguissem levar numa única mala, e mandaram-nos ir embora. Começaram a andar. Os judeus riram-se deles. Cuspiram-lhes em cima. É essa a verdade sobre o que aconteceu na Palestina. É isso quem eu sou. É por isso que os odeio.
Jacqueline, no entanto, estava a pensar não nos árabes de Lydda mas nos judeus de Marselha - em Maurice e Rachel Halévy e na noite em que os gendarmes de Vichy os foram buscar.
- Estás a tremer - disse ele.
- A tua história perturbou-me. Volta para a cama. Quero abraçar-te.
Arrastou-se de volta para a cama, esticou o corpo suavemente por cima do dela e beijou-lhe a boca.
- Fim da palestra - disse. - Retomamos amanhã, se estiveres interessada.
- Estou interessada, muito interessada, na verdade.
- Acreditas nas coisas que te contei, ou achas que sou só mais outro árabe fanático que quer ver os judeus expulsos para o mar?
- Acredito em ti, Yusef.
- Gostas de poesia?
- Adoro poesia. !
- A poesia é muito importante para o povo palestiniano. A nossa poesia permite-nos expressar o nosso sofrimento. Dá-nos a coragem para enfrentar o nosso passado. Um poeta chamado Mu'in Basisu é um dos meus preferidos.
Beijou-a de novo e começou a recitar:
E após a cheia, ninguém deste povo restou Esta terra, apenas uma corda e um poste Ninguém a não ser corpos nus a flutuar nos Iodos Partidas de familiares e filhos
Ninguém a não ser corpos inchados ,
Os seus números desconhecidos
Aqui os destroços, aqui a morte, aqui os afogados em águas profundas : Migalhas de carcaças de pão ainda presas na minha mão. ?
Ela disse:
- É lindo.
- Soa melhor em árabe. Parou por um momento, depois perguntou:
- Falas alguma coisa de árabe, Dominique?
- Claro que não, porque é que perguntas?
- Era só para saber.
De manhã, Yusef levou-lhe o café à cama. Jacqueline sentou-se e bebeu-o muito depressa. Precisava do choque da cafeína para a ajudar a pensar. Não tinha dormido. Por várias vezes, pusera a hipótese de se escapulir da cama, mas Yusef tinha um sono leve e receou que pudesse acordar. Se a descobrisse a fazer moldes das chaves com um instrumento especial disfarçado de estojo de maquilhagem, não haveria maneira de se explicar. Partiria do princípio de que era uma agente israelita. Podia muito bem matá-la. Seria melhor sair do apartamento sem os moldes do que ser apanhada. Queria fazê-lo como deve ser - para o bem de Gabriel e de si própria.
Olhou para o relógio. Já eram quase nove horas.
- Peço desculpa por te ter deixado dormir tanto tempo disse Yusef.
- Não faz mal. Estava cansada.
- Foi um bom cansaço, sim? Beijou-o e respondeu:
- Foi um cansaço muito bom.
- Telefona ao teu patrão e diz-lhe que vais tirar o dia para fazer amor com um palestiniano chamado Yusef al-Tawfiki.
- Não me parece que veja onde está a graça disso.
- Este homem nunca quis passar o dia a fazer amor com uma mulher?
- Por acaso, não sei bem.
- vou tomar um duche. Se quiseres, podes acompanhar-me.
- Assim nunca mais chegarei ao trabalho.
- Era essa a minha intenção.
- Vai para o chuveiro. Há mais café?
- Na cozinha.
Yusef entrou na casa de banho e deixou a porta entreaberta. Jacqueline deixou-se ficar na cama até o ouvir entrar no chuveiro; depois escapuliu-se debaixo dos lençóis e caminhou silenciosamente até à cozinha. Serviu-se de uma chávena de café e foi atéà sala de estar. Colocou o café em cima da mesa, junto às chaves de Yusef, e sentou-se. O chuveiro ainda estava a correr.
Enfiou a mão na mala e tirou o estojo de maquilhagem. Abriu -o, com um estalido, e deu uma vista de olhos lá dentro. Estava cheio de um material de cerâmica macio. Tudo o que tinha de fazer era colocar uma chave no material e fechar a tampa com força O estojo artificial produziria uma impressão perfeita.
As mãos tremiam-lhe. Pegou nas chaves com cuidado, para impedir que fizessem qualquer som, e pôs de parte a primeira: o modelo Y ale que ele utilizara para a entrada da rua. Colocou-a dentro do estojo, fechou a tampa e apertou-a. Abriu o estojo e tirou a chave. A impressão era sem falhas. Repetiu o processo duas vezes mais, primeiro com a segunda chave Yale, a seguir com a chave mestra antiquada. Tinha três impressões perfeitas.
Fechou a tampa, colocou as chaves exactamente onde Yusef as tinha deixado, depois voltou a pôr o estojo de maquilhagem na mala.
- O que é que estás a fazer aí?
Olhou para cima, assustada, e recompôs-se rapidamente. Yusef estava parado no centro do soalho, o corpo molhado enrolado numa toalha de banho bege. Há quanto tempo estaria ali parado?
Quanto teria visto? Poça, Jacqueline! Porque é que não estavas a vigiar aporta?
Ela respondeu:
- Estou à procura dos meus cigarros. Viste-os? Apontou na direcção da casa de banho.
- Deixaste-os lá dentro.
- Oh, sim. Meu Deus, às vezes penso que estou a ficar maluca.
- Era só isso que estavas a fazer? Só a procurar cigarros?
- Que mais havia de estar a fazer?
Esticou os braços para indicar a esqualidez austera da sala de estar.
- Achas que estou a tentar fugir com os teus objectos valiosos? i
Levantou-se e pegou na mala.
- Já não precisas mais da casa de banho?
- Não, mas porque é que estás a levar a mala para a casa de banho?
Pensou: Ele suspeita de alguma coisa. De repente, queria sair do apartamento tão depressa quanto possível. Depois pensou: Devia estar ofendida com perguntas assim.
- Acho que é capaz de me estar a vir o período - respondeu de forma gelada. - Não me parece que goste da maneira como estás a agir. É esta a maneira como todos os árabes tratam as amantes na manhã seguinte?
Passou por ele rapidamente e entrou no quarto. Estava surpreendida com o quão convincente tinha conseguido soar. As mãos tremiam-lhe enquanto juntava as roupas e entrava na casa de banho. Pôs a água a correr no lavatório enquanto se vestia. A seguir, abriu a porta e saiu. Yusef estava na sala de estar. Vestia calças de ganga desbotadas, uma camisola, mocassins sem meias.
Disse:
- vou chamar-te um táxi.
- Não te incomodes. Eu descubro o meu caminho para casa.
- Deixa-me acompanhar-te até lá abaixo.
- Saio sozinha, obrigada.
- O que é que se passa contigo? Porque é que estás a agir desta maneira?
- Porque não gosto da maneira como estavas a falar comigo. Passei um bom bocado, até agora. Talvez te veja por aí um dia destes.
Abriu a porta e entrou no corredor. Yusef seguiu-a. Desceu as escadas depressa, depois o átrio.
Na entrada principal, ele agarrou-lhe o braço.
- Desculpa, Dominique. Às vezes, sou um pouco paranóico, só isso. Também serias paranóica se tivesses vivido a minha vida. Não quis dizer nada com isso. Como é que te posso compensar?
Conseguiu sorrir, apesar de o coração lhe estar a bater com toda a força no interior das costelas. Não fazia ideia do que fazer. Tinha as impressões, mas havia a hipótese de ele a ter visto a fazê-las
- ou, pelo menos, de suspeitar que ela tinha feito algo. Se fosse culpada, o impulso natural seria o de rejeitar o convite. Decidiu aceitar a oferta. Se Gabriel julgasse que era um erro, podia inventar uma desculpa e cancelar.
Respondeu:
- Podes levar-me a jantar fora como deve ser.
- A que horas?
- Vai ter comigo à galeria às seis e meia.
- Perfeito.
- E não te atrases. Não suporto homens que se atrasam. Depois beijou-o e saiu.
MAIDA VALE, LONDRES
Quando Jacqueline regressou ao seu apartamento, Gabriel estava sentado no sofá a beber café.
- Como é que correu?
- Foi um encanto. Traz-me um pouco desse café, está bem? Foi para a casa de banho, fechou a porta e começou a encher
a banheira. Depois despiu a roupa e enfiou-se debaixo da água quente. Um momento mais tarde, Gabriel bateu à porta.
- Entra.
Entrou na casa de banho. Pareceu surpreendido por ela já estar na banheira. Desviou o olhar, à procura de um sítio para pôr o café.
- Como é que te sentes? - perguntou, os olhos desviados.
- Como é que te sentes depois de matar alguém?
- Sinto-me sempre sujo.
Jacqueline pegou numa mão-cheia de água e deixou-a escorrer sobre a cara.
Gabriel disse:
- Preciso de te fazer umas perguntas.
- Estou pronta quando estiveres.
- Pode esperar até estares vestida.
- Já vivemos juntos como marido e mulher, Gabriel. Até já nos comportámos como marido e mulher.
- Isso foi diferente.
- Porque é que foi diferente?
- Porque era uma parte necessária da operação.
- Dormirmos na mesma cama ou fazermos amor?
- Jacqueline, por favor.
- Talvez não queiras olhar para mim porque acabei de dormir com o Yusef.
Gabriel fitou-a, zangado, e saiu. Jacqueline deu-se ao luxo de um curto sorriso e a seguir deixou-se escorregar para debaixo da água.
- O telefone é feito pela British Telecom.
Estava sentada na cadeira de couro estalado, o corpo tapado por um grosso roupão branco. Debitou o nome e o número do modelo enquanto passava uma toalha pelo cabelo húmido.
- Não há telefone no quarto, mas tem um rádio-despertador.
- De que tipo?
- Um Sony.
Deu-lhe o número do modelo.
- Vamos voltar ao telefone por um momento - disse Gabriel. - Algumas marcas identificadoras? Algumas etiquetas com preços ou autocolantes com números de telefone? Alguma coisa que nos trouxesse um problema?
- Gosta de se ver como um poeta e um historiador. Escreve o tempo todo. Parece que marca os números do telefone com a ponta de uma caneta. O mostrador está coberto de marcas.
- De que cor?
- Azul e vermelha.
- Que tipo de caneta?
- O que é que queres dizer? O tipo de caneta com que escreves.!
Gabriel suspirou e olhou, de modo cansado, para o tecto.
- É uma esferográfica? É uma caneta de tinta permanente? Talvez uma caneta de feltro?
- De feltro, acho.
- Achas.
- De feltro. Tenho a certeza.
- Muito bem - disse, como se estivesse a falar com uma criança. - Agora, é fina, média ou grossa?
Ergueu devagar o longo e esguio dedo do meio da mão direita e agitou-o para Gabriel.
- vou considerar isso como querendo dizer grossa. Então e as chaves?
Vasculhou dentro da mala e atirou-lhe o estojo de maquilhagem prateado. Gabriel carregou com o polegar na mola, levantou a tampa e olhou para as impressões.
Ela disse:
- Podemos ter um problema.
- Conta-mo.
Recordou-lhe a sequência inteira de acontecimentos, depois acrescentou com cautela:
- Quer voltar a ver-me.
- Quando?
- Hoje à noite, às seis e meia. Vai encontrar-se comigo na galeria.
- Aceitaste?
- Sim, mas posso...
- Não - disse Gabriel, interrompendo-a. - Isso é perfeito. Quero que te encontres com ele e o mantenhas entretido o tempo suficiente para eu poder entrar no apartamento e colocar as escutas.
- E depois?
- Depois ficará feito.
Gabriel saiu do prédio por uma porta de serviço nas traseiras. Escapuliu-se pelo pátio, trepou um muro de cimento cinzento e saltou para uma viela cheia de latas de cerveja e pedaços de vidro partido. A seguir, caminhou até à estação de metro de Maida Vale. Sentia-se inquieto. Não gostava do facto de Yusef ter pedido para ver Jacqueline uma segunda vez.
Apanhou o metro até Covent Garden. O bodel estava à espera na fila para o café no mercado. Era o mesmo rapaz que recebera o relatório de campo de Gabriel na estação de Waterloo. Uma pasta de cabedal preta e macia estava-lhe pendurada nas costas por uma alça, um bolso lateral virado para fora. Gabriel tinha posto o estojo prateado que continha as impressões das chaves de Yusef
num envelope castanho - de tamanho normal, simples, sem marcas. Sentou-se a uma mesa a beber chá, os olhos a inspeccionar metodicamente a multidão.
O bodel pagou o café e começou a afastar-se. Gabriel levantou-se e seguiu-o, abrindo caminho pelo mercado apinhado, até ficar directamente atrás dele. Gabriel deu um encontrão no bodel enquanto este dava o primeiro gole no café, entornando um pouco na parte da frente do casaco. Pediu desculpa e afastou-se, o envelope castanho e simples agora seguramente instalado no bolso de fora da pasta do bodel.
Gabriel serpenteou por St. Giles, ao longo de New Oxford Street, a seguir por Tottenham Court Road acima, onde havia várias lojas especializadas em artigos electrónicos. Dez minutos mais tarde, após visitar duas das lojas, estava num táxi, a atravessar Londres, de volta ao posto de escuta em Sussex Gardens. No banco, ao seu lado, estava um saco com quatro artigos: um rádio-despertador da Sony, um telefone da British Telecom e duas canetas de feltro, uma vermelha, outra azul, ambas grossas.
Karp estava sentado à mesa da sala de jantar, a estudar os componentes internos expostos do rádio-despertador e do telefone com uma lupa iluminada. Enquanto Gabriel observava Karp a trabalhar, pensava no estúdio na Cornualha e imaginava que estava a observar a superfície do Vecellio pelo microscópio Wild.
Karp disse:
- Chamamos-lhe um microfone quente. O teu grupo chama-lhe um vidro, se não me engano.
- Estás certo, como sempre.
- É um equipamentozinho maravilhoso, cobertura do apartamento e do telefone com o mesmo aparelho. Dois pelo preço de um, pode dizer-se. E nunca tens de te preocupar em substituir a bateria já que o transmissor recebe a energia a partir do telefone.
Karp parou por um momento para se concentrar no trabalho.
- Quando estes entrarem, a operação de vigilância fica basicamente em piloto automático. Os gravadores de cassetes são activados por voz. Só vão andar se estiver a vir alguma coisa da fonte. Se
precisares de sair do apartamento por algum motivo, podes verificar as cassetes quando voltares. O meu trabalho está basicamente terminado.
- vou ter saudades tuas, Randy.
- Gabe, estou tocado.
- Eu sei.
- Aquilo foi um belo trabalho. Enviar assim a rapariga. Os arrombamentos podem complicar-se. É sempre melhor apanhar as chaves e o telefone antes de tratar da escuta.
Karp voltou a colocar a cobertura do telefone e passou-o a Gabriel.
- É a tua vez.
Gabriel, o restaurador, pegou nas canetas e começou a fazer marcas no mostrador. Nessa manhã, Kemel Azouri estava na sede da Schloss em Zurique, numa reunião com o pessoal das vendas, quando recebeu uma mensagem de texto no pager: Senhor Taylor desejava falar-lhe sobre um problema com o envio da última quinta-feira. Kemel encurtou a reunião, apanhou um táxi para Gare du Nord e embarcou no comboio Eurostar seguinte para Londres. O momento da mensagem intrigava-o. Senhor Taylor era o nome de código para um agente em Londres. Um problema com o envio era uma frase de código para urgente. A utilização da palavra quinta-feira significava que o agente queria encontrar-se em Cheyne Walk, às quatro horas e quinze. Kemel caminhou a passos largos pelo átrio das chegadas em Waterloo e entrou num táxi na plataforma. Um momento mais tarde, estava a atravessar a toda a velocidade Westminster Bridge.
Disse ao taxista para o deixar no Royal Hospital Chelsea. Andou ao longo do rio, através da escuridão que aumentava, e esperou ao fundo de Battersea Bridge.
Verificou o relógio: quatro e doze.
Acendeu um cigarro e esperou.
Três minutos mais tarde, às quatro e quinze em ponto, um jovem bem-parecido, num casaco preto de cabedal, apareceu a seu
lado.
- Senhor Taylor, presumo.
- Vamos dar uma volta.
- Peço desculpa por te arrastar até Londres, Kemel, mas querias ser informado de todas as potenciais abordagens.
- Qual era o nome dela?
- Dava pelo nome de Dominique Bonard.
- Francesa.
- Diz que é.
- Suspeitas que ela esteja a mentir.
- Não sei bem. Não posso ter a certeza, mas é possível que estivesse a vasculhar as minhas coisas esta manhã.
- Tens sido seguido nos últimos tempos?
- Não, que eu saiba.
- De onde é que é?
- Diz que é de Paris.
- O que é que está a fazer em Londres? Trabalha numa galeria de arte.
- Qual?
- Um sítio chamado Isherwood Fine Arts, em St. James's.
- Em que ponto é que estás com essa mulher?
- Fiquei de a voltar a ver daqui a duas horas.
- Não deixes de manter o encontro com ela. Na verdade, gostava que os dois desenvolvessem uma relação muito próxima. Achas que consegues dar conta do recado?
- Cá me arranjarei.
- vou dando notícias.
ST. JAMES'S, LONDRES
A campainha da porta gemeu cedo naquela noite, enquanto Julian Isherwood ia avançando por uma pilha de contas e bebericava um bom uísque. Deixou-se ficar à secretária - afinal, a rapariga tinha obrigação de ir à porta - mas, quando a campainha uivou uma segunda vez, olhou para cima.
- Dominique, está alguém à porta. Importa-se? Dominique?
Depois lembrou-se de que lhe tinha dito para descer até ao depósito, para voltar a deixar lá uma série de pinturas. Levantou-se, dirigiu-se até à sala de espera com enfado e espreitou o monitor de segurança. Lá fora, parado, estava um jovem. De tipo mediterrânico, bem-parecido. Carregou no botão do intercomunicador.
- Peço desculpa, estamos fechados. Como pode ver, expomos apenas por marcação. Porque é que não liga de manhã? A minha secretária terá todo o gosto em reservar uma hora para si.
- Na verdade, estou aqui para ver a sua secretária. Chamo-me Yusef.
Jacqueline saiu do elevador e entrou na antessala. Isherwood disse:
- Está um sujeito chamado Yusef lá em baixo. Diz que veio vê-la.
Jacqueline olhou para o monitor. Isherwood perguntou:
- Conhece-o?
Ela carregou na campainha que abria o fecho da porta.
- Sim, conheço-o.
- Quem é?
- Um amigo. Um bom amigo.
O maxilar de Isherwood caiu e os olhos esbugalharam-se.
Jacqueline disse:
- Se vai ficar pouco à vontade, talvez seja melhor sair.
- Sim, acho que isso é o mais sensato.
Voltou para o escritório e vestiu o casaco. Quando regressou à sala de espera, o árabe estava a dar um beijo na cara a Jacqueline. Ela disse:
- Yusef, gostava de te apresentar o senhor Isherwood. É o dono da galeria.
- É um prazer conhecê-lo, Yusef. Adoraria ficar para conversar, mas receio estar atrasado para um encontro. Por isso, se me dá licença, tenho mesmo de me ir embora.
- Importa-se que mostre a galeria ao Yusef?
- Claro que não. Encantado. Não se esqueça de fechar tudo à chave, Dominique, querida. Obrigado. Até amanhã de manhã. Um prazer conhecê-lo, Yusef. Adeus.
Isherwood desceu as escadas com dificuldade e apressou-se a atravessar Mason's Yard, para chegar ao santuário do bar em Green's. Pediu um uísque e bebeu-o muito depressa, interrogando-se durante todo esse tempo se seria mesmo possível que a rapariga de Gabriel lhe tivesse trazido um terrorista para a galeria.
Gabriel estava sentado num banco em Victoria Embankment, a observar o rio cinzento a mover-se pesadamente por baixo de Blackfriar's Bridge, segurando um exemplar do Daily Telegraph. Na página treze, escondido por trás de um anúncio, estava um relatório de campo em código para Shamron. O bodel apareceu dez minutos mais tarde. Passou por Gabriel e subiu os degraus em direcção à estação de metro de Temple. Tinha um chapéu, o que significava que não estava a ser seguido e que era seguro continuar. Gabriel seguiu-o para dentro da estação, depois pelas escadas rolantes até à plataforma. Quando o metro chegou, os dois homens entraram na mesma carruagem apinhada. Foram forçados a ficar em pé, lado a lado,
o que tornou a troca - as chaves de Yusef pelo jornal que continha o relatório de campo de Gabriel - praticamente impossível de detectar. Gabriel saiu na estação de Paddington e voltou para o posto de escuta.
Jacqueline disse:
- Há uma coisa que te quero mostrar. Levou Yusef para dentro do elevador e subiram em silêncio.
Quando a porta se abriu, pegou-lhe na mão e guiou-o até ao centro da galeria escurecida. Disse:
- Fecha os olhos.
- Não gosto de jogos destes.
- Fecha os olhos. Depois acrescentou maliciosamente:
- Garanto que vai valer a pena.
Fechou os olhos. Jacqueline atravessou a sala, até ao painel de controlo da iluminação, e pôs a mão sobre o interruptor principal.
- Agora, abre-os.
Aumentou devagar a intensidade das luzes. A boca de Yusef descaiu ligeiramente, enquanto inspeccionava os quadros em redor.
- É lindo.
- É o meu sítio preferido em todo o mundo.
Yusef avançou alguns passos e parou à frente de um dos quadros.
- Meu Deus, isto é mesmo um Claude?
- Sim, é. Na verdade, essa é uma das suas primeiras representações de um rio. E muito valiosa. Repara na maneira como pintou o sol. O Claude foi um dos primeiros artistas a utilizar verdadeiramente o sol como a fonte de luz para uma composição inteira.
- O Claude nasceu em França, mas viveu quase toda a vida em Veneza, se não me engano.
- Por acaso, enganas-te. O Claude viveu e trabalhou em Roma, num pequeno apartamento na Via Margutta, perto da Piazza di Spagna. Tornou-se um dos pintores de paisagens mais procurados de toda a Itália.
Yusef virou as costas ao quadro e olhou para ela. - Sabes bastante sobre pintura.
- Por acaso, sei muito pouco, mas trabalho numa galeria de
arte.
Yusef perguntou:
- Há quanto tempo é que trabalhas aqui?
- Cerca de cinco meses.
- Cerca de cinco meses? O que é que isso quer dizer ao certo? Quer dizer quatro meses ou seis meses?
- Quer dizer quase cinco meses. E porque é que queres saber? Porque é que isto é tão importante para ti?
- Dominique, se esta relação for para continuar, tem de haver honestidade total entre nós.
- Relação? Pensava que estávamos só a dormir juntos.
- Talvez possa haver mais entre nós, mas só se não houver mentiras. Ou segredos.
- Honestidade total? Tens a certeza disso? Pode haver alguma vez honestidade total entre duas pessoas? Isso seria saudável? Não é melhor manter algumas coisas em segredo? Contaste-me todos os teus segredos, Yusef?
Ignorou a pergunta.
- Diz-me, Dominique - perguntou-, estás apaixonada por outro homem?
- Não, não estou apaixonada por outro homem.
- Estás a dizer-me a verdade?
- É claro que estou.
- Não me parece.
- Porque é que dizes isso?
- Por causa da maneira como fizeste amor comigo ontem à noite.
- Já fizeste amor com muitas mulheres? És um perito nestes assuntos?
Ele abriu os lábios num sorriso modesto. Jacqueline disse:
- O que tem a minha maneira de fazer amor contigo que te deixou convencido de que estou apaixonada por outro homem?
- Fechaste os olhos enquanto estava dentro de ti. Fechaste os olhos como se não quisesses olhar para mim. Fechaste os olhos como se estivesses a pensar noutra pessoa.
- E se porventura admitisse estar apaixonada por outro homem? O que sentirias em relação a isso? Mudaria alguma coisa entre nós?
- Talvez me fizesse gostar ainda mais de ti.
- Gosto de fechar os olhos quando faço amor, Yusef. Não significa nada.
- Tens alguns segredos que não me tenhas contado?
- Nada de importante. : Sorriu.
- Vais levar-me a jantar fora?
- Por acaso, tive uma ideia melhor. Vamos para o meu apartamento. vou fazer o jantar.
Jacqueline sentiu uma pontada de pânico. Ele pareceu sentir o seu desconforto pois inclinou a cabeça e perguntou:
- Passa-se alguma coisa, Dominique?
- Não, nada - respondeu, conseguindo fazer um sorriso fraco. - Jantar em tua casa parece-me magnífico.
Gabriel atravessou a rua, uma mochila de náilon ao ombro. Lá dentro, estavam as réplicas do telefone e do rádio-despertador. Olhou para cima, em direcção ao posto de escuta. Karp tinha acendido a luz, um sinal que significava que era seguro continuar. Planearam fazer todas as comunicações com sinais de luzes, apesar de Gabriel trazer um telemóvel para o caso de uma emergência.
Subiu os degraus do prédio de Yusef e tirou o molho de réplicas das chaves do bolso. Escolheu a chave para a porta da frente, enfiou-a na fechadura, rodou. Ficou presa. Gabriel praguejou em voz baixa. Mexeu-a para trás e para a frente, tentou de novo. Desta vez, a fechadura abriu.
Uma vez lá dentro, atravessou o átrio sem hesitação. Era uma doutrina que lhe tinha sido martelada por Shamron durante a operação Setembro Negro: ataca com força e rápido, não te preocupes por fazer um pouco de barulho, afasta-te rapidamente. Após o seu
primeiro trabalho, o assassinato do líder do Setembro Negro em Roma, Gabriel estava a voar para Genebra menos de uma hora depois da execução. Esperava que esta operação corresse igualmente
bem.
Subiu as escadas e trepou rapidamente em direcção ao segundo andar. A descer na sua direcção, vinha um grupo de jovens indianos: dois rapazes, uma rapariga bonita. Ao passarem por ele no patamar do primeiro andar, Gabriel voltou a cara e fingiu estar a mexer no fecho éclair da mochila. Enquanto os indianos continuavam a descer as escadas, arriscou um olhar de soslaio por cima do ombro. Nenhum deles olhou para trás. Esperou um momento no patamar do segundo andar e escutou-os a atravessar o átrio e a sair pela porta da frente. A seguir, foi andando até ao apartamento de Yusef: o número 27.
Desta vez, as chaves funcionaram perfeitamente à primeira tentativa e, no espaço de segundos, Gabriel estava dentro do apartamento. Fechou a porta e deixou as luzes desligadas. Enfiou a mão na mochila e tirou uma pequena lanterna. Acendeu-a e passou rapidamente o feixe pelo chão à volta da porta, à procura de um sinal
- um pedaço de papel ou qualquer outro objecto pequeno de aspecto inocente que alertasse Yusef de que tinham entrado no apartamento. Não viu nada.
Voltou-se e fez reflectir rapidamente a luz pela sala. Resistiu ao impulso de vasculhar o apartamento de Yusef. Tinha-o observado à distância durante vários dias e desenvolvera uma curiosidade natural acerca do homem. Era asseado e arrumado, ou um preguiçoso? Que tipo de comida comia? Tinha dívidas? Consumia drogas? Usava roupa interior estranha? Gabriel queria vasculhar-lhe as gavetas e ler-lhe os documentos privados. Queria olhar-lhe para as roupas e a casa de banho. Queria ver qualquer coisa que pudesse completar o quadro - qualquer pista que o pudesse ajudar a compreender melhor como Yusef se encaixava na organização de Tariq. Mas agora não era a altura para esse tipo de inspecção. Demasiado arriscado, as hipóteses de detecção demasiado elevadas.
O feixe da lanterna fixou-se no telefone de Yusef. Gabriel atravessou a sala e ajoelhou-se ao seu lado. Tirou a réplica da mochila e comparou-a rapidamente com o original. Correspondência perfeita.
Jacqueline fizera bem o seu trabalho. Puxou o cabo do telefone de Yusef e trocou-o pela réplica. O fio que ligava o auscultador à base do telefone de Yusef estava gasto e esticado, o fio da réplica novinho em folha, por isso Gabriel trocou rapidamente os fios.
Olhou de relance pela janela, na direcção do posto de escuta. O sinal de luz de Karp continuava a brilhar. Era seguro continuar. Enfiou o telefone de Yusef na mochila enquanto passava da sala de estar para o quarto.
Ao passar pela cama, teve uma imagem perturbante do corpo nu de Jacqueline a contorcer-se em lençóis amarrotados. Pôs-se a pensar se a curiosidade acerca de Yusef seria puramente profissional. Ter-se-ia tornado também pessoal? Considerava agora o palestiniano uma espécie de rival?
Apercebeu-se de que estava a olhar fixamente para a cama vazia há vários segundos. Mas que diabo se passa contigo?
Voltou-se, concentrou a atenção no rádio-despertador. Antes de o desligar, verificou as definições. O alarme estava programado para disparar às 8 da manhã. Ligou o rádio: BBC Radio Five, volume baixo.
Desligou o rádio da ficha, arrancou o fio eléctrico da parede.
Nesse instante, o telemóvel tocou.
Levantou-se e olhou pela janela. O sinal de luz estava desligado.
Tinha ficado tão enervado com a imagem de Jacqueline na cama que se esquecera de ficar de olho no posto de escuta. Atendeu o telefone antes de poder tocar uma segunda vez.
Karp disse:
- Sai daí, foda-se! Temos companhia.
Gabriel atravessou o quarto em direcção à janela e olhou para fora.
Jacqueline e Yusef estavam a sair de um táxi. O que é que aconteceu ao jantar?
Voltou-se. Agora estava com um problema grave. Tinha desligado o rádio-despertador de Yusef da ficha. Tinha de o voltar a ligar e reprogramar antes de sair. Caso contrário, Yusef iria suspeitar que alguém tinha estado no apartamento.
Calculou o tempo que levariam a chegar até ao andar. Uns segundos
para abrir a entrada da frente... uns segundos mais para atravessar o átrio... cerca de quarenta e cinco segundos para subir as escadas e atravessar o corredor até à porta. Tinha quase um minuto.
Decidiu fazê-lo.
Tirou a réplica do rádio-despertador da mochila e ligou-a à ficha. As luzes vermelhas do mostrador piscavam 12:00... 12:00... 12:00... Quase que tinha vontade de rir com o absurdo da situação. O futuro da operação dependia de ser ou não capaz de programar um despertador suficientemente depressa para evitar ser apanhado. Ari Shamron tinha-o persuadido a regressar e a ajudar a restaurar a glória do Departamento, mas agora ia ser apenas mais outro fiasco!
Começou a carregar no botão das horas. Os números avançaram, mas os dedos tremiam-lhe da adrenalina e, sem querer, programou-o para as nove horas em vez das oito. Merda! Tinha de passar por todo o ciclo das vinte e quatro horas outra vez. À segunda vez, acertou. Programou a hora actual, depois passou para o rádio, sintonizou-o na Radio Five e ajustou o volume.
Não fazia ideia de quanto tempo demorara.
Agarrou subitamente na mochila, apagou a lanterna, passou do quarto para a porta da frente. Enquanto andava, puxou da Beretta, presa na cintura das calças, e enfiou-a no bolso da frente do casaco.
Parou quando chegou à porta da rua e encostou o ouvido. O corredor estava silencioso. Tinha de tentar escapar-se. Não havia nenhum sítio no apartamento onde se pudesse esconder e esperar poder escapulir-se razoavelmente outra vez. Abriu a porta e avançou para o corredor.
Conseguia ouvir o som de passos no vão da escada.
Colocou a mão à volta do punho da Beretta e começou a andar.
No táxi, Jacqueline forçara-se a acalmar. A sua tarefa tinha sido manter Yusef longe do apartamento, mas se tivesse discordado da sua ideia de jantar em casa, provavelmente ele teria ficado com suspeitas. As hipóteses de Gabriel estar no apartamento no momento em que regressassem eram quase nulas. O trabalho todo demoraria apenas uns minutos. As probabilidades de que já tivesse colocado as escutas e desaparecido eram boas. Havia uma outra, e mais
tranquilizadora, possibilidade: Gabriel contava que Yusef fosse ter consigo à galeria às seis e trinta e a seguir a levasse a jantar. Talvez não tivesse ainda entrado sequer no apartamento. Iria reparar que tinham voltado cedo e iria cancelar e tentar noutra altura.
Atravessaram o átrio, começaram a subir as escadas. Um homem passou por eles no patamar do segundo andar: Gabriel, a cabeça para baixo, a mochila ao ombro.
Jacqueline encolheu-se involuntariamente. Recuperou a compostura, mas não sem que antes Yusef reparasse que estava perturbada. Parou e observou Gabriel a descer as escadas, depois olhou para Jacqueline. Pegou-lhe no braço e levou-a até à porta. Quando entraram no apartamento, deu uma vista de olhos rápida pela sala, depois andou até à janela e observou Gabriel a afastar-se na escuridão.
LISBOA
Um denso nevoeiro atlântico subia pelo rio Tejo à medida que Kemel ia avançando pelas ruas apinhadas do Bairro Alto. Fim de tarde, os trabalhadores a fluir para casa vindos dos empregos, os bares e os cafés a encherem-se, os Lisboetas a fazer fila aos balcões das cervejarias para jantar. Kemel atravessou uma pequena praça: velhos a beber vinho tinto no ar fresco da noite; varinas, as vendedeiras de peixe, a lavar percas do mar nos seus cestos grandes. Passou a custo por uma viela estreita cheia de vendedores de roupas baratas e bugigangas. Um mendigo cego pediu-lhe dinheiro. Kemel deixou-lhe cair uns quantos escudos na caixa de madeira preta à volta do pescoço. Uma cigana ofereceu-se para lhe ler a sina. Kemel recusou educadamente e continuou a andar. O Bairro Alto lembrava-lhe Beirute nos velhos tempos - Beirute e os campos de refugiados, pensou. Em comparação, Zurique parecia fria e estéril. Não era de admirar que Kemel gostasse tanto de Lisboa.
Entrou numa casa de fado apinhada e sentou-se. Um empregado colocou-lhe à frente uma garrafa verde de vinho da casa, juntamente com um copo. Acendeu um cigarro e serviu-se de um copo de vinho. Normal, nenhuma complexidade, mas surpreendentemente agradável.
Um momento depois, o mesmo empregado foi para a parte da frente da sala apertada e parou ao lado de um par de guitarristas. Quando os guitarristas tocaram com suavidade os primeiros acordes tristes da música, o empregado fechou os olhos e começou
a cantar. Kemel não conseguia compreender as palavras, mas rapidamente deu por si a ser arrebatado pela melodia lancinante.
No meio da canção, um homem sentou-se ao lado de Kemel. Camisola de lã grossa, jaquetão manhoso, lenço apertado ao pescoço, barba por fazer. Parecia um trabalhador das docas vindo do cais. Inclinou-se para a frente e murmurou umas palavras a Kemel em português. Kemel encolheu os ombros.
- Receio que não fale a língua.
Voltou outra vez a atenção para o cantor. A música estava a chegar ao clímax emocional, mas, na tradição do fado, o cantor permanecia direito como uma vareta, como se estivesse em sentido.
O trabalhador das docas tocou ao de leve no cotovelo de Kemel e falou-lhe em português uma segunda vez. Desta vez, Kemel limitou-se a abanar a cabeça e manteve os olhos no cantor.
Então, o trabalhador das docas inclinou-se para a frente e disse em árabe:
- Perguntei-te se gostavas ou não de fado.
Kemel voltou-se e olhou com atenção para o homem sentado ao seu lado. Tariq disse:
- Vamos para um sítio qualquer sossegado onde possamos falar.
Caminharam do Bairro Alto até Alfama, um labirinto de vielas estreitas e degraus de pedra a serpentear por entre casas caiadas. Kemel espantava-se sempre com a capacidade assombrosa de Tariq em misturar-se com o ambiente à sua volta. Subir as encostas inclinadas parecia cansá-lo. Kemel pôs-se a pensar por quanto tempo mais conseguiria aguentar.
Tariq disse:
- Não chegaste a responder à minha pergunta.
- E que pergunta foi essa?
- Gostas de fado?
- Suponho que seja algo de que se aprenda a gostar. Sorriu e acrescentou:
- Como a própria Lisboa. Por alguma razão, recorda-me a nossa terra.
- O fado é uma música dedicada ao sofrimento e à dor. É por isso que te recorda a nossa terra.
- Suponho que tenhas razão.
Passaram por uma velha a varrer o degrau de entrada da casa. Tariq disse:
- Fala-me de Londres.
- Parece que o Allon fez a sua primeira jogada.
- Não demorou muito tempo. O que é que aconteceu? Kemel falou-lhe de Yusef e da rapariga da galeria de arte.
- O Yusef reparou num estranho no seu prédio de apartamentos ontem à noite. Acha que o homem poderia ser um israelita. Acha que pode ter colocado uma escuta no apartamento.
Kemel conseguia ver que Tariq já estava a calcular as possibilidades.
- E este teu agente é um homem a quem se pode confiar uma missão importante?
- É um jovem muito inteligente. E muito leal. Conheci o pai. Foi morto pelos Israelitas em oitenta e dois.
- Já procurou a escuta?
- Disse-lhe para não o fazer.
- Óptimo - respondeu Tariq. - Deixa-a no sítio. Podemos utilizá-la em nosso proveito. E o que se passa com essa rapariga? Ainda está em jogo?
- Dei instruções ao Yusef para continuar a vê-la.
- Como é que ela é?
- Ao que parece, bastante atraente.
- Tens os recursos necessários em Londres para a seguir?
- com certeza.
- Faz isso. E arranja-me uma fotografia dela.
- Tens uma ideia?
Passaram por uma pequena praça, depois começaram a subir uma encosta longa e inclinada. Na altura em que chegaram ao cimo, Tariq tinha explicado tudo.
- É brilhante - disse Kemel. - Mas tem uma falha.
- E qual é?
- Não vais sobreviver a isso. Tariq sorriu tristemente e respondeu:
Isso é a melhor notícia que ouço há imenso tempo. Voltou-se e afastou-se. Um instante depois, tinha desaparecido pelo nevoeiro dentro. Kemel arrepiou-se. Levantou a gola do casaco e voltou a pé para o Bairro Alto para ouvir fado.
BAYSWATER, LONDRES
A operação instalou-se numa rotina confortável mas bastante entediante. Gabriel passava períodos infindáveis de tempo sem nada para fazer, a não ser escutar pormenores triviais da vida de Yusef, que passavam nos monitores como um medonho drama de rádio. Yusef a conversar ao telefone. Yusef a discutir política com os amigos palestinianos, fumando cigarros e bebendo café turco. Yusef a dizer a uma rapariga de coração despedaçado que não podia continuar a vê-la porque estava seriamente envolvido com outra. Gabriel deu com a vida a mover-se ao ritmo da de Yusef. Comia quando Yusef comia, dormia quando Yusef dormia e, quando Yusef fazia amor com Jacqueline, Gabriel fazia amor com ela também.
Mas passados dez dias, as escutas de Gabriel não tinham apanhado nada de valor. Havia várias explicações possíveis. Talvez Shamron se tivesse simplesmente enganado. Talvez Yusef fosse realmente apenas um empregado e um estudante. Talvez fosse um agente mas estivesse inactivo. Ou talvez fosse um agente no activo mas estivesse a falar com os camaradas por outros meios: por sinais e outras formas de comunicação impessoal. Para detectar isso, Gabriel teria de montar uma operação de vigilância em grande escala e a tempo inteiro. Exigiria múltiplas equipas, pelo menos uma dúzia de funcionários - apartamentos seguros, veículos, rádios... Uma operação dessas seria difícil de esconder do MI5, o serviço de segurança britânico.
Mas havia uma outra possibilidade que preocupava mais Gabriel: a possibilidade de a operação já estar comprometida. Talvez
a vigilância não tivesse resultado em nada por Yusef já suspeitar que estava a ser vigiado. Talvez suspeitasse que o apartamento estivesse sob escuta e os telefonemas interceptados. E talvez suspeitasse que a linda rapariga francesa da galeria de arte fosse, na verdade, uma agente israelita.
Gabriel decidiu que estava na hora de outro encontro cara a cara com Shamron em Paris.
Encontrou-se com Shamron na manhã seguinte, numa loja de chás na rue Mouffetard. Shamron pagou a conta e subiram lentamente a encosta, pelo meio dos mercados e dos vendedores de rua.
- Quero tirá-la da operação - disse Gabriel.
Shamron parou num balcão de fruta, pegou numa laranja e examinou-a por um momento antes de a voltar a colocar com suavidade na caixa. Depois disse:
- Diz-me que não me trouxeste até Paris para esta maluquice.
- Há qualquer coisa que não soa bem. Quero que ela saia antes que seja tarde de mais.
- Ela não foi descoberta e a resposta continua a ser não. Shamron olhou para Gabriel com atenção e acrescentou:
- Porque é que estás de monco caído, Gabriel? Andas a ouvir as cassetes antes de mas enviares?
- É claro que ando.
- E não consegues ouvir o que se passa? As palestras intermináveis sobre o sofrimento dos Palestinianos? A falta de escrúpulos dos Israelitas? O recitar de poesia palestiniana? Todo o velho folclore de como era bela a vida na Palestina antes dos judeus?
- Onde é que queres chegar?
- Ou o rapaz está apaixonado, ou anda a pensar noutra coisa.
- É a segunda possibilidade que me preocupa.
- Já te ocorreu alguma vez que talvez o Yusef pense nela como mais do que uma simples rapariga bonita? Já te ocorreu alguma vez que pense nela como uma rapariga impressionável que poderá ser útil ao Tariq e à sua organização?
-Já, mas ela não está preparada para esse tipo de operação. E, francamente, nós também não.
- Então queres arrumar a trouxa e ir para casa?
- Não, só quero tirar ajacqueline da operação.
- E depois o que é que acontece? O Yusef fica nervoso. O Yusef fica com suspeitas e desfaz o apartamento. Se for disciplinado, atira fora todos os aparelhos eléctricos do sítio. E os teus microfones vão com eles.
- Se tratarmos da partida dela com cuidado, nunca suspeitará de nada. Para além disso, quando a contratei, prometi-lhe um trabalho de curta duração. Sabes que tem outros compromissos.
- Nenhum mais importante do que isto. Paga-lhe os salários, na totalidade. Ela fica, Gabriel. Fim da discussão.
- Se ela ficar, vou eu embora.
- Então vai! - ripostou Shamron. - Vai e volta para a Cornualha e enterra a cabeça no teu Vecellio. Envio alguém para te substituir.
- Sabes que não a vou deixar nas tuas mãos. Shamron passou depressa ao apaziguamento:
- Tens andado a trabalhar sem parar há muito tempo. Não estás lá com grande aspecto. Não me esqueci de como é. Esquece o Yusef por umas horas. Não vai a lado nenhum. Vai dar uma volta de carro. Faz qualquer coisa para limpar a cabeça. Preciso de ti no teu melhor.
No comboio, de regresso a Londres, Gabriel entrou na casa de banho e trancou a porta. Ficou parado em frente ao espelho durante muito tempo. Tinha rugas novas à volta dos olhos, uma rigidez súbita nos cantos da boca, o gume de uma faca nas maçãs do rosto. Por baixo dos olhos, tinha círculos negros, como manchas de carvão.
Não me esqueci de como é.
A operação Setembro Negro... Tinham todos apanhado qualquer coisa: problemas cardíacos, pressão sanguínea alta, erupções cutâneas, constipações crónicas. Os assassinos sofreram o pior. Após o primeiro trabalho em Roma, Gabriel descobriu que era
impossível dormir. Sempre que fechava os olhos, ouvia balas a rasgar carne e a despedaçar ossos, via vinho de figo a misturar-se com sangue no chão de mármore. Shamron descobriu um médico em Paris, um sayan, que deu a Gabriel um frasco de tranquilizantes poderosos. Em poucas semanas, estava viciado neles.
Os comprimidos e o stresse fizeram Gabriel parecer chocante mente mais velho. A pele endureceu, os cantos da boca descaíram, os olhos ficaram da cor da cinza. O cabelo preto ficou grisalho nas têmporas. Tinha vinte e dois anos na altura, mas parecia ter pelo menos quarenta. Quando chegava a casa, Leah quase não o reconhecia. Quando faziam amor, dizia que era como dormir com outro homem - não uma versão mais velha de Gabriel, mas um completo desconhecido.
Atirou água fria para a cara, esfregou vigorosamente com um toalhete de papel e a seguir examinou uma vez mais o reflexo. Meditou sobre a sequência de acontecimentos - a roleta bizarra do desdno - que o tinha levado a este sítio. Se não tivesse havido Hitler, nem Holocausto, os pais teriam permanecido na Europa, em vez de fugirem para uma colónia agrícola poeirenta no vale Jezreel. Antes da guerra, o pai fora um ensaísta e historiador em Munique, a mãe uma pintora talentosa em Praga, e nenhum se tinha ajustado bem ao colectivismo da colónia ou ao zelo sionista em relação ao trabalho manual. Tinham tratado Gabriel mais como um adulto em miniatura do que um rapaz com necessidades diferentes das suas. Esperavam que se divertisse e tomasse conta de si próprio. A primeira recordação de infância era da pequena casa de dois quartos na colónia: o pai a ler na cadeira, a mãe ao cavalete, Gabriel no chão, entre ambos, a construir cidades com blocos toscos.
Os pais detestavam hebreu, por isso, quando estavam sozinhos utilizavam as línguas que tinham falado na Europa: alemão, francês, checo, russo, iídiche. Gabriel absorveu-as todas. Às línguas europeias, acrescentou hebreu e árabe. Do pai herdou também uma memória sem falhas, da mãe, uma paciência inabalável e uma atenção aos pormenores. O desprezo deles pelo colectivo tinha produzido em si arrogância e uma atitude de lobo solitário. O agnosticismo secular não o estorvara com nenhuma moralidade ou ética judaicas.
preferia caminhar ao futebol, ler à agricultura. Tinha um medo quase patológico de sujar as mãos. Tinha muitos segredos. Um dos professores descreveu-o como frio, egoísta, insensível e totalmente brilhante. Quando Ari Shamron foi à procura de soldados para a nova guerra secreta contra o terror árabe na Europa, deparou-se com o rapaz do vale Jezreel, que, tal como o homónimo, o Arcanjo Gabriel, possuía um talento invulgar para as línguas e a paciência de Salomão. Shamron descobriu outra característica valiosa: a frieza emocional de um assassino.
Gabriel saiu da casa de banho e regressou ao seu lugar. Para além da janela, estava a zona este de Londres: filas de armazéns vitorianos a desmoronarem-se, todos eles janelas estilhaçadas e tijolos partidos. Fechou os olhos. Outra coisa os fizera ficar a todos doentes durante a operação Setembro Negro: o medo. Quanto mais tempo permanecessem em campo, maior era o risco de exposição
- não apenas aos serviços de espionagem da Europa, mas aos próprios terroristas. Esse facto tornou-se bastante claro a meio da operação, quando o Setembro Negro assassinou um katsa em Madrid. De repente, todos os membros da equipa perceberam que também eles eram vulneráveis. E ensinou a Gabriel a lição mais valiosa da sua carreira: quando os agentes estão numa operação longe de casa, em território hostil, os caçadores podem facilmente transformar-se em presas.
O comboio chegou a Waterloo. Gabriel caminhou a passos largos pela plataforma e abriu caminho pelo corredor apinhado das chegadas. Deixara o carro num parque de estacionamento subterrâneo. Deixou cair as chaves, executou o ritual de inspecção e a seguir entrou e guiou até Surrey.
Não havia letreiro à entrada do portão. Gabriel sempre quisera um lugar sem letreiro. Para além do muro, havia um relvado bem cuidado, com árvores espaçadas por igual. No final de uma entrada sinuosa, erguia-se uma mansão vitoriana de tijolo vermelho. Desceu a janela do carro e carregou no botão do intercomunicador. A lente de uma câmara de segurança olhava-o fixamente de cima como
uma gárgula. Gabriel afastou por instinto a cara da câmara e fingiu estar à procura de qualquer coisa no porta-luvas.
- Posso ajudá-lo?
Voz feminina, sotaque do Centro da Europa.
- Vim ver a menina Martinson. O doutor Avery está à minha espera.
Subiu a janela, esperou que o portão de segurança automático abrisse; a seguir, entrou nos jardins e subiu a entrada devagar. Fim de tarde, frio e cinzento, vento fraco a abanar as árvores. À medida que se aproximava da casa, começou a ver alguns dos doentes. Uma mulher sentada num banco, no seu melhor vestido de domingo, a olhar fixamente e sem expressão para o espaço. Um homem com um oleado e botas de borracha, a passear apoiado no braço de um empregado jamaicano imponente.
Avery estava à espera no átrio de entrada. Vestia calças de bombazina caras e muito bem passadas e uma camisola de caxemira, género pulôver, cinzenta, que parecia mais adequada a um campo de golfe do que a um hospital psiquiátrico. Apertou a mão a Gabriel com uma formalidade fria, como se Gabriel fosse o representante de um poder ocupador, e a seguir conduziu-o por um longo corredor alcatifado.
- Ela tem andado a falar bastante mais este mês - disse Avery. - Até tivemos conversas com sentido num par de ocasiões.
Gabriel forçou um sorriso tenso. Em todos estes anos, ela nunca tinha falado com ele.
- E a saúde física? - perguntou.
- Nenhuma mudança, na verdade. Está tão em forma quanto seria de esperar.
Avery utilizou um cartão magnético para passar por uma porta fechada. Do outro lado, estava outro corredor, com mosaicos em terracota em vez de alcatifa. Avery falou da medicamentação dela enquanto andavam. Tinha aumentado a dose de um medicamento, reduzido outro e retirado outro por completo. Havia um medicamento novo, ainda em experiência, que estava a revelar alguns
resultados prometedores em doentes que sofriam de uma combinação sernelhante de stresse pós-traumático agudo e depressão psicótica.
- Se acha que vai ajudar.
- Nunca o saberemos se não experimentarmos.
A psiquiatria clínica, pensou Gabriel, era bastante parecida com o trabalho de espionagem.
O corredor em terracota terminava numa sala pequena. Estava cheia de instrumentos de jardinagem - tesouras de podar, pás, colheres de jardineiro - e sacos de sementes de flores e fertilizante. Na outra ponta da sala, havia um par de portas duplas com postigos circulares.
- Está no sítio habitual. Está à sua espera. Por favor, não se demore muito. Penso que uma meia hora será o adequado. Venho buscá-lo quando for a altura.
Um solário, opressivamente quente e húmido. Leah num canto, sentada numa cadeira de jardim de ferro forjado e costas direitas, com rosas novas em vasos aos seus pés. Estava vestida de branco. A camisola branca de gola alta que Gabriel lhe oferecera no último aniversário. As calças brancas que lhe comprara durante umas férias de Verão em Creta. Gabriel tentou lembrar-se do ano mas não conseguiu. Parecia haver apenas Leah antes de Viena e Leah depois de Viena. Estava sentada com a compostura de uma rapariguinha de escola, a olhar para longe, ao longo da extensão do relvado. O cabelo tinha sido cortado curto, à maneira típica de um hospital psiquiátrico. Os pés estavam descalços.
Virou a cabeça enquanto Gabriel se aproximava. Pela primeira vez, pôde ver-lhe as marcas das cicatrizes no lado direito da cara. Como sempre, fê-lo sentir-se violentamente frio. Depois viu-lhe as mãos, ou o que lhe restava das mãos. O tecido branco e duro da cicatriz lembrava-lhe a tela exposta de uma pintura danificada. Desejou poder misturar simplesmente um pouco de pigmento na sua paleta e voltar a pô-la normal.
Beijou-lhe a testa, cheirou-lhe o cabelo, à procura do vestígio familiar de alfazema e limão, mas em vez disso havia apenas a mistura opressiva do solário e do fedor das plantas num espaço fechado.
Avery deixara uma segunda cadeira, que Gabriel aproximou uns centímetros dela. Leah encolheu-se quando as pernas de ferro forjado arranharam o chão. Gabriel murmurou um pedido de desculpas e sentou-se. Leah desviou o olhar.
Era sempre assim. Não era Leah sentada ao seu lado, apenas um monumento a Leah. Uma pedra tumular. Costumava tentar falar com ela, mas agora contentava-se em sentar-se simplesmente na sua presença. Seguiu-lhe o olhar através da paisagem enevoada e perguntou a si próprio para o que estaria ela a olhar. Havia dias, segundo Avery, em que se limitava a ficar sentada a revivê-lo uma e outra vez, com pormenores terrivelmente vívidos, incapaz, ou sem vontade, de o fazer parar. Gabriel não conseguia imaginar o seu sofrimento. Tinha-lhe sido permitido continuar com uma certa aparência da sua vida, mas a Leah fora-lhe tirado tudo - o filho, o corpo, a sanidade mental. Tudo menos a memória. Gabriel receava que o apego dela à vida, por mais ténue que fosse, estivesse de certa maneira ligado à sua fidelidade contínua. Se se permitisse apaixonar por outra pessoa, Leah morreria.
Passados quarenta e cinco minutos, levantou-se e vestiu o casaco; depois agachou-se aos seus pés, com as mãos apoiadas nos joelhos dela. Ela olhou por cima da cabeça dele durante uns segundos, antes de baixar os olhos de encontro ao seu olhar.
- Tenho de ir - disse ele.
Leah não fez nenhum movimento.
Estava prestes a levantar-se quando ela se esticou de repente e lhe tocou no lado da cara. Gabriel tentou não recuar perante a sensação do tecido da cicatriz a deslizar pela pele no canto do olho. Ela sorriu tristemente e baixou a mão. Colocou-a no colo, tapou-a com a outra e retomou a pose hirta em que Gabriel a encontrara.
Levantou-se e afastou-se. Avery estava à espera lá fora. Levou Gabriel até ao carro. Gabriel sentou-se ao volante durante muito tempo, antes de ligar o motor, a pensar na mão dela na sua cara. Nada típico de Leah, tocar-lhe assim. O que viu ela lá? A tensão da operação? Ou a sombra de Jacqueline Delacroix?
LISBOA
Tariq apareceu à entrada da casa de fados. Uma vez mais, estava vestido como um trabalhador das docas. Pálido como um fantasma, a mão a tremer enquanto acendia um cigarro. Atravessou a sala e sentou-se ao lado de Kemel.
- O que é que te traz de novo a Lisboa?
- Parece que temos um engarrafamento bastante grave na nossa cadeia de distribuição ibérica. Talvez seja obrigado a passar bastante tempo em Lisboa durante os próximos dias.
- É tudo?
- E isto.
Kemel pousou uma fotografia grande a cores em cima da mesa.
- Apresento-te a Dominique Bonard.
Tariq pegou na fotografia, examinou-a com atenção.
- Vem comigo - disse calmamente. - Quero mostrar-te uma coisa que penso que vais achar interessante.
O apartamento de Tariq ficava no alto de Alfama. Duas divisões, soalhos de madeira a dar de si e uma varanda com vista para um pátio tranquilo. Preparou chá ao estilo árabe, forte e doce, e sentaram-se junto à porta aberta da varanda, a chuva a bater nas pedras do pátio.
Tariq perguntou:
- Lembras-te de como descobrimos o Allon em Viena?
- Foi há muito tempo. Tens de me refrescar a memória.
- O meu irmão estava na cama quando foi morto. Estava uma rapariga com ele, uma estudante alemã, uma radical. Escreveu uma carta aos meus pais umas semanas depois do Mahmoud ter sido morto e contou-lhes como aconteceu. Disse que nunca se iria esquecer da cara do assassino enquanto vivesse. O meu pai levou a carta ao funcionário de segurança da OLP no campo. O oficial de segurança entregou-a aos serviços de espionagem da OLP.
- Tudo isso me soa vagamente familiar - disse Kemel.
- Depois do Abu Jihad ter sido assassinado em Tunes, o corpo de segurança da OLP conduziu uma investigação. Partiram de uma premissa simples. O assassino parecia conhecer muito bem a casa de campo, por dentro e por fora. Portanto, teve de passar algum tempo nas cercanias da casa, a vigiar e a planear o ataque.
- Um pedaço brilhante de investigação detectivesca - disse Kemel, sarcasticamente. - Se o corpo de segurança da OLP tivesse feito bem o trabalho logo à partida, o Abu Jihad ainda estaria vivo.
Tariq foi até à casa de banho e voltou um momento depois, segurando um grande envelope de papel manilha.
- Começaram a rever todas as cassetes de vídeo das câmaras de segurança e descobriram várias imagens de um homem pequeno e de cabelo escuro.
Tariq abriu o envelope e entregou a Kemel várias fotografias granulosas.
- Ao longo dos anos, os serviços de espionagem da OLP não tinham perdido de vista a rapariga alemã. Mostraram-lhe estas fotografias. Disse que era o mesmo homem que matara o Mahmoud. Sem sombra de dúvida. Por isso começámos a procurá-lo.
- E descobriram-no em Viena?
- Exactamente.
Kemel estendeu as fotografias para Tariq.
- O que é que isto tem a ver com a Domínique Bonard?
- Vem de trás, da investigação ao caso de Tunes. O corpo de segurança da OLP queria descobrir onde é que o assassino tinha ficado em Tunes enquanto planeava o ataque. Sabiam por experiência anterior que os agentes israelitas tendem a fazer passar-se por
europeus durante trabalhos como este. Partiram do princípio de que um homem a fazer passar-se por europeu tinha ficado provavelmente num hotel. Começaram a recorrer aos seus espiões e informadores. Mostraram as fotografias do assassino a um porteiro de um dos hotéis à beira da praia. O porteiro disse que o homem tinha ficado no hotel com a namorada francesa. O corpo de segurança da OLP voltou às cassetes de vídeo e começou a procurar uma rapariga. Descobriram uma e mostraram-na ao porteiro.
- A mesma rapariga?
- A mesma rapariga.
A seguir, Tariq enfiou a mão no envelope e tirou mais uma fotografia de vigilância: esta de uma rapariga de cabelo escuro lindo. Passou-a a Kemel, que a comparou com a fotografia da mulher em Londres.
- Posso estar enganado - disse Tariq-, mas parece-me que a nova namorada do Yusef já trabalhou com o Gabriel Allon antes.
Reviram o plano uma última vez, enquanto caminhavam pelas vielas tortuosas de Alfama.
- O primeiro-ministro e o Arafat partem para os Estados Unidos daqui a cinco dias - disse Kemel. -- Vão primeiro a Washington, para uma reunião na Casa Branca, e a seguir partem para Nova Iorque, para a cerimónia de assinatura nas Nações Unidas. Está tudo a postos em Nova Iorque.
- Agora só preciso de um acompanhante para a viagem disse Tariq. - Acho que gostava de uma francesa linda; o tipo de mulher que ficasse bem de braço dado com um empresário de sucesso.
- Acho que sei onde consigo encontrar uma mulher assim.
- Imagina, matar o processo de paz e o Gabriel Allon num único momento final de glória. Vamos sacudir o mundo, Kemel. E depois vou deixá-lo.
- Tens a certeza de que queres avançar com isto?
- Não estás preocupado com a minha segurança nesta altura?
- É claro que estou.
- Porquê? Sabes o que me está a acontecer.
- Na verdade, tento não pensar nisso.
Ao fundo da encosta, chegaram a uma praça de táxis. Tariq beijou as faces de Kemel e a seguir agarrou-lhe com força os ombros.
- Nada de lágrimas, meu irmão. Ando a lutar há muito tempo. Estou cansado. É melhor assim.
Kemel soltou-se do seu aperto e abriu a porta do táxi que esperava.
Tariq disse:
- Ele devia ter matado a rapariga. Kemel voltou-se.
- O quê?
- O Allon devia ter matado a rapariga alemã que estava com o meu irmão. Teria acabado tudo ali.- Suponho que tenhas razão.
- Foi um erro estúpido - disse Tariq. - Eu não teria cometido um erro desses.
Depois voltou-se e subiu devagar a encosta em direcção a Alfama.
ST. JAMES'S, LONDRES
Quando a campainha da porta soou, Jacqueline voltou-se e espreitou para o monitor: um estafeta de bicicleta. Olhou para o relógio: seis e um quarto. Carregou na campainha para o deixar entrar e a seguir deixou a secretária, encaminhando-se até ao corredor para assinar a encomenda. Um envelope grande de papel manilha. Voltou para o escritório, sentou-se à secretária e abriu o envelope com a ponta do dedo indicador. Lá dentro estava uma única folha de papel de carta de tamanho executivo, de cor cinzento-clara, dobrada meticulosamente ao meio. O cabeçalho trazia o nome de Randolph Stewart, negociante de arte privado. Leu a nota escrita à mão: Acabei de voltar de Paris... Viagem muito boa... Nenhum problema com a aquisição... Continua com a venda como planeado. Colocou a carta na destruidora de papel de Isherwood e observou-a a transformar-se em tirinhas de papel.
Levantou-se, vestiu o casaco e a seguir foi até ao escritório de Isherwood. Este estava debruçado sobre um livro-razão, a roer a ponta de um lápis. Olhou para cima, quando ela entrou na sala, e fez-lhe um sorriso fraco. li
- Já vai embora tão cedo, meu amor?
- Receio que tenha de ir.
- vou contar as horas até a voltar a ver.
- E eu vou fazer o mesmo.
Ao sair, apercebeu-se de que iria ter saudades de Isherwood quando tudo terminasse. Era um homem decente. Interrogou-se sobre como se teria envolvido com pessoas como Ari Shamron
e Gabriel. Apressou-se ao longo de Mason's Yard, através da chuva chicoteada pelo vento, e a seguir subiu Duke Street em direcção a Piccadilly, a pensar na carta. Deprimia-a. Podia imaginar o resto da noite. Iria encontrar-se com Yusef no apartamento dele. Iriam jantar e depois regressariam ao apartamento e fariam amor. A seguir, duas horas de história do Médio Oriente. As injustiças empilhadas sobre os Palestinianos indefesos. Os crimes dos judeus. A desigualdade da solução dos dois estados na mesa de negociações. Estava a tornar-se cada vez mais difícil fingir que se estava a divertir.
Gabriel prometera-lhe uma missão curta: seduzi-lo, conseguir entrar no seu apartamento, apanhar-lhe as chaves e o telefone e voltar a sair. Não se tinha disponibilizado para um romance de longa duração. Achava a ideia de voltar a dormir com Yusef repulsiva. Mas havia algo mais. Tinha concordado em vir para Londres por achar que trabalhar com Gabriel iria reavivar o romance deles. Se tivera algum resultado, fora o de os afastar ainda mais. Raramente o via - ele comunicava por cartas - e, das poucas vezes em que estiveram juntos, tinha estado frio e distante. Fora uma parva ao pensar que as coisas poderiam alguma vez ser como tinham sido em Tunes.
Entrou na estação de metro de Piccadilly e andou até à plataforma apinhada. Pensou na sua casa de campo; nos passeios de bicicleta pelas encostas banhadas pelo sol à volta de Valbonne. Por um momento, imaginou Gabriel a passear ao seu lado, as pernas a bombear ritmicamente. A seguir, sentiu-se tonta por se ter deixado pensar nessas coisas. Quando o metro chegou, conseguiu enfiar-se na carruagem apinhada e agarrou-se a uma pega de metal. No momento em que o metro avançou aos solavancos, decidiu que esta seria a última noite. De manhã, diria a Gabriel que queria desistir.
Gabriel andou para trás e para a frente na carpete do posto de escuta, a driblar com indiferença uma bola de ténis verde-clara com os pés calçados apenas de meias. Faltava pouco para a meia-noite. Jacqueline e Yusef tinham acabado de fazer amor. Escutou as mútuas declarações de prazer físico. Escutou Yusef a utilizar a casa de
banho. Escutou Jacqueline a andar silenciosamente até à cozinha, à procura de algo para beber. Ouviu-a perguntar a Yusef onde tinha escondido os cigarros dela.
Gabriel deitou-se no sofá e atirou a bola ao tecto enquanto esperava que Yusef começasse o seminário desta noite. Pôs-se a pensar qual seria o tópico. O que fora a noite passada? - o mito de que apenas os judeus faziam o deserto florir. Não, isso fora na noite anterior. Na noite passada, tinha sido a traição aos Palestinianos pelo resto do mundo árabe. Desligou o candeeiro e continuou a atirar a bola e a apanhá-la no escuro, para testar os reflexos e a percepção sensorial.
Uma porta a abrir-se, o estalido de um interruptor.
Yusef disse em tom sombrio:
- Precisamos de falar. Enganei-te em relação a uma coisa. Agora, preciso de te contar a verdade.
Gabriel agarrou de repente a bola de ténis no meio da escuridão e segurou-a bem quieta na palma da mão. Pensou em Leah, na noite em que utilizou essas mesmas palavras antes de lhe contar que, em represália à sua infidelidade, tinha tido ela própria amantes.
Jacqueline respondeu em tom despreocupado:
- Isso parece mesmo sério.
Gabriel pôs a bola a pairar na escuridão com um girar subtil do pulso.
- É sobre a cicatriz nas minhas costas.
Gabriel levantou-se e acendeu o candeeiro. Depois verificou os gravadores de cassetes para ter a certeza de que estavam a gravar em condições.
Jacqueline perguntou:
- O que é que há com a tua cicatriz nas costas?
- Como foi ali parar.
Yusef sentou-se na ponta da cama.
- Menti-te quando te contei como tinha ficado com a cicatriz. Agora, preciso de te contar a verdade.
Respirou fundo, deixou sair o ar devagar, começou a falar, lenta
e suavemente:
- A minha família ficou em Shatila depois da OLP ter sido expulsa do Líbano, talvez te recordes desse dia, Dominique; o dia em que o Arafat e as suas guerrilhas se retiraram, enquanto os Israelitas e os Americanos lhes diziam adeus do cais. Sem a OLP, ficámos sem protecção. O Líbano estava em ruínas. Cristãos, sunitas, xiitas, os drusos, toda a gente estava a lutar com toda a gente, e os Palestinianos foram apanhados no meio. Vivíamos com o medo de que alguma coisa terrível pudesse acontecer. Lembras-te, agora?
- Era nova, mas acho que me lembro.
- A situação era um barril de pólvora. Bastava só uma fagulha para desencadear um holocausto. Essa fagulha veio a ser o assassinato do Bashir Gemayel. Era o líder dos cristãos maronitas do Líbano e o presidente eleito do país. Foi morto na explosão de uma bomba num carro, na sede do partido da Falange Cristã.
"Nessa noite, meia Beirute gritava por vingança, enquanto a outra metade se encolhia com medo. Ninguém tinha a certeza de quem colocara a bomba. Podia ter sido qualquer um, mas os falangistas estavam convencidos de que a culpa era dos Palestinianos. Desprezavam-nos. Os cristãos nunca nos quiseram no Líbano e, agora que a OLP tinha desaparecido, queriam eliminar o problema palestiniano do Líbano de uma vez por todas. Antes da sua morte, o Gemayel tinha-o dito muito claramente: Há um povo, a mais: o povo palestiniano.
"Depois do assassinato, os Israelitas entraram em Beirute Ocidental e ocuparam posições com vista para o Sabra e Shatila. Queriam limpar os campos dos últimos combatentes da OLP e, para evitar baixas israelitas, enviaram os milicianos da Falange para fazer o trabalho por eles. Toda a gente sabia o que ia acontecer assim que os milicianos fossem soltos nos campos. O Gemayel estava morto e nós éramos os que iam pagar o preço. Ia ser um massacre, mas o exército israelita soltou-os à mesma.
"Os Israelitas soltaram os primeiros falangistas em Shatila ao pôr do Sol, cento e cinquenta. Tinham pistolas, claro, mas a maioria tinha também facas e machados. A matança durou quarenta e oito horas. Os sortudos morreram com tiros. Os que não tiveram tanta sorte sofreram mortes mais horrendas. Cortaram pessoas aos pedaços.
Estriparam pessoas e deixaram-nas a morrer. Esfolaram pessoas vivas. Arrancaram olhos e deixaram pessoas a deambular às cegas pelo meio da carnificina, até serem mortas a tiro. Amarraram pessoas a camiões e arrastaram-nas pelas ruas até estarem mortas.
"As crianças não foram poupadas. Uma criança podia crescer e tornar-se um terrorista, segundo os falangistas, por isso mataram todas as crianças. As mulheres não foram poupadas, já que uma mulher podia dar à luz um terrorista. Fizeram questão de cortar de maneira ritualista os peitos das mulheres palestinianas. Os peitos dão leite. Os peitos alimentam um povo que os falangistas queriam eliminar. Por toda a noite dentro, invadiram casas e massacraram toda a gente lá dentro. Quando caiu a escuridão, os Israelitas iluminaram o céu com foguetes de sinalização, para os falangistas poderem continuar com o seu trabalho de uma maneira mais fácil.
Jacqueline juntou os dedos e encostou-os aos lábios. Yusef continuou com o relato.
- Os Israelitas sabiam exactamente o que se estava a passar. O quartel-general deles ficava a apenas cerca de duzentos metros do limite de Shatila. Do telhado, conseguiam olhar directamente para o campo. Conseguiam ouvir os falangistas a falar nos seus rádios. Mas não levantaram um dedo para os parar. E porque é que ficaram parados sem fazer nada? Porque era exactamente o que queriam que acontecesse.
"Só tinha sete anos na altura. O meu pai morrera. Tinha sido morto nesse Verão, quando os Israelitas bombardearam os campos durante a batalha de Beirute. Vivia em Shatila com a minha mãe e a minha irmã. Ela só tinha um ano e meio na altura. Escondemo-nos debaixo da cama, a ouvir os gritos e os disparos, a ver as sombras dos foguetes a dançar nas paredes. Rezámos para que os falangistas, por alguma razão, não acertassem na nossa casa. Às vezes, conseguíamos ouvi-los do lado de lá da janela. Estavam a rir. Estavam a massacrar quem quer que vissem, mas riam-se. A minha mãe tapava-nos a boca sempre que se aproximavam, para nos manter em silêncio. Quase sufocou a minha irmã.
"Por fim, invadiram-nos a casa. Desembaracei-me do aperto da minha mãe e fui ter com eles. Perguntaram onde é que estava a
minha família e respondi-lhes que tinham morrido todos. Riram-se e disseram-me que em breve estaria com eles. Um dos falangistas tinha uma faca. Agarrou-me pelos cabelos e arrastou-me até lá fora. Arrancou-me a camisa e rasgou-me a pele no meio das costas. A seguir, amarraram-me a um camião e arrastaram-me pelas ruas. A certa altura, fiquei inconsciente, mas, antes de desmaiar, lembro-me de os falangistas dispararem sobre mim. Estavam a usar-me para tiro ao alvo.
"Não sei como, mas sobrevivi. Talvez achassem que estava morto, não sei. Quando recuperei os sentidos, a corda que tinham utilizado para me arrastar ainda estava amarrada ao meu tornozelo direito. Rastejei para debaixo de um monte de escombros e esperei. Fiquei lá durante um dia e meio. Finalmente, o massacre terminou, e os falangistas retiraram-se dos campos. Saí do meu esconderijo e descobri o caminho de volta para a casa da minha família. Encontrei o corpo da minha mãe na nossa cama. Estava nua e tinha sido violada. Os peitos tinham sido cortados. Procurei a minha irmã. Encontrei-a em cima da mesa da cozinha. Tinham-na cortado aos bocados e disposto num círculo, com a cabeça no centro.
Jacqueline saiu da cama aos trambolhões, arrastou-se até à casa de banho e vomitou violentamente. Yusef ajoelhou-se ao seu lado e colocou-lhe a mão nas costas enquanto o corpo dela se contorcia.
Quando ela terminou, disse:
- Perguntas-me porque é que odeio tanto os Israelitas. Odeio-os, porque enviaram os falangistas para nos massacrar. Odeio-os porque ficaram parados e não fizeram nada enquanto os cristãos, os grandes amigos deles no Líbano, violaram e mataram a minha mãe e cortaram a minha irmã aos bocados e lhe dispuseram o corpo num círculo. Agora sabes porque é que sou pela rejeição no que toca a este suposto processo de paz. Como é que posso confiar nesta gente?
- Compreendo.
- Compreendes mesmo, Dominique? É possível?
- Suponho que não.
- bom, fui totalmente honesto contigo em relação a tudo. Há
alguma coisa que me queiras contar acerca de ti? Algum segredo que andes a esconder de mim?
- Nada de importante.
- Estás a contar-me a verdade, Dominique?
- Sim.
A chamada veio às quatro e quinze dessa manhã. Acordou Yusef, mas não Gabriel. Tinha estado acordado toda a manhã, a escutar o relato de Yusef sobre Sabra e Shatila uma e outra vez. Tocou appenas uma vez. Yusef, a voz cheia de sono, disse:
- Sim?
- Lancaster Gate, amanhã, duas horas. Clique.
Jacqueline perguntou:
- O que era?
- Um número errado. Volta a dormir.
Maida Vale, de manhã. Um grupo de rapazes da escola a provocar uma rapariga bonita. Jacqueline imaginou que eram milicianos falangistas armados com facas e machados. Uma carrinha passou a grande velocidade, a arrotar fumos de gasóleo. Jacqueline viu um homem amarrado ao pára-choques, a ser arrastado para a morte. O seu prédio de apartamentos avultava-se à sua frente. Olhou para cima e imaginou soldados israelitas em cima do telhado, a observar a matança em baixo com binóculos, a disparar foguetes de sinalização para que os assassinos pudessem ver melhor as vítimas. Entrou no prédio, subiu as escadas e enfiou-se no apartamento. Gabriel estava sentado no sofá.
- Porque é que não me disseste?
- Disse o quê?
- Porque é que não me disseste que ele tinha sobrevivido a Shatila? Porque é que não me disseste que a família tinha sido chacinada assim?
- Que diferença é que faria?
- Gostava simplesmente de ter sabido! Acendeu um cigarro e engoliu com força o fumo.
- É verdade? As coisas que me contou são verdadeiras?
- Qual parte?
- Tudo, Gabriel! Não faças joguinhos de merda comigo.
- Sim, é verdade! A família morreu em Shatila. Sofreu. E então? Já sofremos todos. Não lhe dá o direito de assassinar inocentes porque a história não correu como queria!
- Ele era um inocente, Gabriel! Era só um rapaz!
- Estamos a meio de uma operação, Jacqueline. Agora não é a altura para um debate sobre a equivalência moral e a ética do contraterrorismo.
- Peço desculpa por permitir que a questão da moralidade tenha penetrado nos meus pensamentos. Esqueci-me que tu e o Shamron nunca se deixam confundir por uma coisa tão trivial.
- Não me metas no mesmo saco com o Shamron.
- Porque não? Porque ele dá as ordens e tu as segues?
- Então e Tunes? - perguntou Gabriel. - Sabias que Tunes era uma missão de assassinato, mas participaste nela de livre vontade. Até te ofereceste para regressar na noite da execução.
- Isso era porque o alvo era o Abu Jihad. Tinha o sangue de centenas de israelitas e judeus nas mãos.
- Este também tem sangue nas mãos. Não te esqueças disso.
- É só um rapaz, um rapaz cuja família foi chacinada enquanto o exército israelita observava e não fazia nada.
- Não é um rapaz. É um homem com vinte e cinco anos que ajuda o Tariq a matar pessoas.
- E vais usá-lo para chegar ao Tariq, por causa do que o Tariq te fez? Quando é que acaba? Quando não houver mais sangue para derramar? Quando, Gabriel?
Ele levantou-se e vestiu o casaco. Jacqueline disse:
- Quero desistir.
- Não podes sair agora.
- Posso, sim. Não quero dormir mais com o Yusef.
- Porquê?
- Porquê? Tens a lata de me perguntar porquê?
- Desculpa, Jacqueline. Isso não saiu...
- Pensas em mim como uma puta, não é, Gabriel? Pensas que não me incomoda dormir com um homem de quem não gosto.
- Isso não é verdade.
- Foi isso que fui para ti em Tunes? Só uma puta?
- Sabes que isso não é verdade.
- Então diz-me o que fui.
- O que é que vais fazer? Vais voltar para França? Voltar para a tua casa de campo em Valbonne? Voltar para as tuas festas de Paris e para as tuas sessões fotográficas e os teus shows de moda, onde a questão mais difícil é decidir que tom de batom usar?
Deu-lhe uma bofetada no lado esquerdo da cara. Ele ficou a olhar para ela, os olhos frios, a cor a aumentar na pele por cima da maçã do rosto. Puxou a mão para trás para lhe voltar a dar uma bofetada, mas ele levantou com indiferença a mão esquerda e desviou-lhe o golpe.
- Não consegues ouvir o que se está a passar? - perguntou Gabriel. - Contou-te a história do que lhe aconteceu em Shatila por uma razão. Está a testar-te. Quer-te para alguma coisa.
- Não me interessa.
- Pensei que fosses alguém com quem pudesse contar. Não alguém que se fosse abaixo a meio do jogo.
- Cala-te, Gabriel!
- vou contactar o Shamron, dizer-lhe que estamos fora do jogo. Estendeu a mão para a porta. Ela agarrou-lhe a mão.
- Matar o Tariq não vai pôr as coisas bem. Isso é só uma ilusão. Pensas que vai ser como arranjar um quadro: descobres o estrago, retoca-lo e fica tudo bem outra vez. Mas não é assim com um ser humano. Na verdade, nem sequer é assim com um quadro. Se olhares com atenção, consegues sempre ver onde é que foi retocado. As cicatrizes nunca desaparecem. O restaurador não cura um quadro. Só esconde as feridas.
- Preciso de saber se estás disposta a continuar.
- E eu quero saber se fui só a tua puta em Tunes. Gabriel esticou-se e tocou-lhe na face.
- Foste a minha amante em Tunes.
A mão caiu-lhe ao lado.
- E a minha família foi destruída por causa disso.
- Não posso mudar o passado.
- Eu sei.
- Gostaste de mim?
Hesitou por um momento, depois respondeu:
- Sim, muito.
- Gostas de mim agora? Ele fechou os olhos.
- Preciso de saber se consegues continuar ou não.
HYDE PARK, LONDRES
Karp disse:
- O teu amigo escolheu um sítio bem horrível para um encontro.
Estavam sentados na parte de trás de uma carrinha Ford branca, em Bayswater Road, a alguns metros de Lancaster Gate, Karp debruçado sobre uma consola de equipamento áudio, a ajustar os níveis. Gabriel praticamente não conseguia ouvir-se a pensar, com o barulho ensurdecedor dos carros, táxis, carrinhas e autocarros de dois andares. Por cima deles, as árvores que revestiam a ponta norte do parque contorciam-se ao vento. Através dos microfones de Karp, o ar a correr pelos ramos soava como água a borbulhar. Para lá de Lancaster Gate, as fontes dos Italian Gardens chapinhavam e dançavam. Através dos microfones, soava como um aguaceiro de monção.
Gabriel perguntou:
- Quantas pessoas a ouvir é que tens lá fora?
- Três - respondeu Karp. - O tipo no banco que parece um banqueiro, a miúda gira a atirar pão aos patos, e o tipo a vender gelados logo no interior do portão.
- Não está mau - disse Gabriel.
- Nestas condições, não esperes nenhum milagre.
Gabriel olhou para o relógio de pulso: passavam três minutos das duas. Pensou: Não vai aparecer. Avistaram a equipa do Karp e estão a abortar. Perguntou:
- Mas onde é que ele está, foda-se?
- Tem calma, Gabe.
Um momento depois, Gabriel viu Yusef aparecer vindo de Westbourne Street e a correr pela estrada fora, à frente de um camião de entregas que se aproximava velozmente. Karp tirou um par de fotografias enquanto Yusef entrava no parque e se passeava pelas fontes. A meio do segundo circuito, um homem veio juntar-se-lhe, vestido com um sobretudo de lã cinzento, a cara oculta por óculos de sol e um chapéu de feltro. Karp passou para uma lente de maior alcance e tirou mais uma série de fotografias.
Deram uma volta às fontes em silêncio, depois, durante o segundo circuito, começaram a falar em voz baixa em inglês. Devido ao barulho do vento e das fontes, Gabriel só conseguia perceber cada terceira ou quarta palavra.
Karp praguejou em voz baixa.
Deram voltas às fontes por uns minutos, depois subiram uma rampa para um parque infantil. A rapariga que tinha estado a dar de comer aos patos seguiu devagar atrás deles. Passado um instante, a carrinha de vigilância estava repleta dos gritos de alegria de crianças a brincar.
Karp pressionou os olhos com os punhos e abanou a cabeça.
Karp entregou a cassete a Gabriel no posto de escuta, três horas mais tarde, com o ar resignado de um cirurgião que fizera tudo para salvar o doente.
- Passeia-a pelos computadores, filtrei o ruído de fundo e melhorei as partes boas. Mas receio que tenhamos apenas dez por cento, e mesmo isso soa a merda.
Gabriel esticou a mão e aceitou a cassete. Enfiou-a no gravador, carregou no PLAY e escutou enquanto percorria a sala de um lado ao outro.
... precisa de alguém... próxima missão...
Um som, como estática aumentada ao máximo, eliminou o resto da frase. Gabriel pôs a cassete em pausa e olhou para Karp.
- É a fonte - disse Karp. - Não há nada que consiga fazer com isso.
Gabriel reiniciou a cassete.
... vigia a... dela... em Paris... problemas... tudo bem.
Gabriel parou a cassete, carregou no botão de REBOBINAR, depois no PLAY.
... verificar a... dela em Paris... problemas... tudo bem.
... não tenho a certeza... a pessoa certa para... tipo de...
... sê persuasivo... se explicares a importância...
...o que é que eu... dizer-lhe ao certo?
... missão diplomática vital... causa da verdadeira paz no Médio Oriente. precaução de segurança de rotina...
... costumava funcionar... O nível do áudio caiu profundamente. Karp disse:
- Estão a chegar ao pé do parque infantil agora mesmo. Vamos conseguir cobertura daqui a um instante, quando a rapariga se colocar em posição.
... vai ter com ele... de Gaulle... a partir daí... até ao destino final...
... onde...
Uma criança magoada chora pela mãe, eliminando a resposta.
... lida com ela depois...
... é com ele...
... e se... diz que não...
Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
STOP. REBOBINAR. PLAY.
Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
E o que Gabriel ouviu a seguir foi uma mãe a repreender o filho por raspar um pedaço de pastilha elástica do fundo do baloiço e a pôr na boca.
Nessa noite, depois do trabalho, Jacqueline comprou caril e trouxe-o para o apartamento de Yusef. Enquanto comiam, viram um filme americano na televisão sobre um terrorista alemão à solta em Manhattan. Gabriel viu também com eles. Tirou o som à televisão e, em vez disso, ouviu pela de Yusef. Quando o filme terminou, Yusef declarou-o uma treta pegada e desligou a televisão.
Depois disse:
- Temos de falar de uma coisa, Dominique. Preciso de te pedir uma coisa importante.
Gabriel fechou os olhos e escutou.
Na manhã seguinte, Jacqueline saiu da carruagem na estação de metro de Piccadilly e circulou com a multidão pela plataforma fora. Enquanto subia a escada rolante, olhou à sua volta. Tinham de a estar a seguir: os observadores de Yusef. Ele não a deixaria solta pelas ruas de Londres sem uma escolta secreta, depois do que lhe pedira para fazer na noite anterior. Um homem de cabelos pretos estava a olhar fixamente para ela a partir de uma escada rolante paralela. Quando a apanhou olhos nos olhos, sorriu e tentou prender-lhe o olhar. Ela apercebeu-se de que era só um devasso. Virou-se e olhou em frente.
Lá fora, enquanto andava por Piccadilly, julgou ter descoberto Gabriel a utilizar uma cabina telefónica, mas era apenas um sósia de Gabriel. Julgou tê-lo visto outra vez a sair de um táxi, mas era apenas o irmão mais novo inexistente de Gabriel. Apercebeu-se de que havia versões de Gabriel a toda a sua volta. Rapazes com casacos de cabedal. Homens novos com fatos elegantes de negócios. Artistas, estudantes, moços de entregas - com pequenas alterações, Gabriel poderia passar por qualquer um deles.
Isherwood tinha chegado cedo. Estava sentado à secretária, a falar italiano ao telefone e parecendo ressacado. Pôs a mão sobre o auscultador e fez com a boca os movimentos das palavras Café, por favor.
Pendurou o casaco e sentou-se à secretária. Isherwood podia aguentar por mais uns quantos minutos sem o café. O correio da manhã estava em cima da secretária, juntamente com um envelope de papel manilha. Arrancou a dobra e tirou a carta do interior. vou para Paris. Não dês um passo para fora da galeria até teres notícias minhas. Amarrotou-a numa bola apertada.
PARIS
Gabriel não tinha tocado no pequeno-almoço. Estava sentado na carruagem de primeira classe do comboio Eurostar, com os auscultadores postos, a ouvir cassetes num pequeno leitor portátil. Os primeiros encontros entre Yusef e Jacqueline. Yusef a contar a Jacqueline a história do massacre em Shatila. A conversa de Yusef com Jacqueline na noite anterior. Tirou a cassete e enfiou mais uma: o encontro de Yusef com o contacto em Hyde Park. Já perdera a conta a quantas vezes a tinha ouvido. Dez vezes? Vinte? De cada vez, perturbava-o mais. Carregou no botão de rebobinar e utilizou o contador digital de cassetes para parar precisamente no ponto que queria ouvir.
... verificar a... dela em Paris... problemas... tudo bem.
STOP.
Afastou os auscultadores, tirou do bolso um pequeno bloco de notas e passou para uma página em branco. Escreveu: vigia a... dela... em Paris... problemas... tudo bem. Entre as frases, deixou espaços em branco correspondendo aproximadamente aos momentos de brancas na cassete.
Depois escreveu: Enviámos um homem para verificar a história dela em Paris. Não havia problemas. Está tudo bem.
Era possível que fosse isso que ele tivesse dito, ou podia ter sido isto: Enviámos um homem para verificar a história dela em Paris. Havia grandes problemas com ela. Mas está tudo bem.
Isso não fazia sentido. Gabriel riscou-o e a seguir enfiou os
auscultadores e ouviu a parte da cassete mais uma vez. Espera um minuto, pensou. Estaria o contacto de Yusef a dizer tudo bem ou outro lado?(1)
Desta vez escreveu: Enviámos um homem para verificar a história dela em Paris. Havia vários problemas com ela. Pensamos que possa estar a trabalhar para o outro lado.
Mas se fosse esse o caso, porque é que lhe pediriam para acompanhar um agente numa missão?
Gabriel carregou no botão de passar à frente, depois no STOP, depois no PLAY.
Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
Gabriel apanhou um táxi na estação de comboios e deu ao taxista uma morada na Avenue Foch. Cinco minutos mais tarde, anunciou que tinha mudado de ideias, entregou ao taxista alguns francos e saiu. Descobriu outro táxi. com um sotaque de italiano, pediu para ser levado para Notre-Dame. A partir daí, caminhou ao longo do rio, até à estação de metro de St.-Michel. Quando ficou seguro de que não estava a ser seguido, fez sinal a um táxi para parar e deu ao taxista uma morada no Décimo Sexto Arrondissement, perto de Bois de Boulogne. A seguir, andou quinze minutos, até a um prédio de apartamentos, numa rua frondosa, não muito longe da Place de Colombie.
Na parede do átrio de entrada estava um telefone interno e ao lado do telefone uma lista de moradores. Gabriel carregou no botão para o 4B, que tinha o nome Guzman em letra azul apagada. Quando o telefone tocou do outro lado da linha, murmurou umas quantas palavras, repôs o auscultador e esperou que a porta se abrisse. Atravessou a entrada, apanhou o elevador até ao quarto andar e bateu suavemente à porta do apartamento. Ouviu uma c
1 Lm inglês: evetytbing 's fine e other side. Gabriel achou que podia estar a confundir as duas expressões devido à semelhança dos sons. (N. da T.)
corrente a deslizar, seguida da fechadura a abrir-se. Aos ouvidos de Gabriel soava como um atirador a expulsar um cartucho gasto e a enfiar outro com força na câmara.
A porta abriu-se. Parado na soleira, estava um homem da altura de Gabriel, cabeça e ombros quadrados, com olhos azuis de aço e cabelo louro-avermelhado. Parecia extremamente satisfeito consigo próprio - como um homem que tinha tido demasiado sucesso com as mulheres. Não apertou a mão a Gabriel, apenas o puxou para dentro pelo cotovelo e fechou a porta, como se estivesse a tentar impedir o frio de entrar.
Um apartamento grande, escuro, o cheiro de café a escaldar e dos cigarros de Shamron a pairar pelo ar. Sofás largos, cadeiras de couro reclináveis, almofadas enormes - um sítio para os agentes esperarem. Na parede oposta, um centro de entretenimento repleto de componentes japonesas e filmes americanos. Nada de pornografia nos apartamentos seguros: regra de Shamron.
Shamron entrou na sala. Fez questão de mostrar que estava a olhar para o relógio.
- Noventa minutos - disse. - O teu comboio chegou há noventa minutos. Onde raio é que tens estado? Estava prestes a enviar um grupo à tua procura.
E eu nunca te disse como vinha para Paris ou a que horas chegava...
- Um percurso decente de detecção de vigilância demora tempo. Lembras-te de como se faz um desses, Ari, ou deixaste de ensinar essa aula na Academia?
Shamron estendeu a mão ressequida.
- Tens as cassetes?
Mas Gabriel olhou para o outro homem.
- Quem é este?
- É o Uzi Navot. O Uzi é o nosso katsa em Paris agora, um dos meus melhores homens. Tem estado a trabalhar comigo neste caso. Tens o prazer de conhecer o grande Gabriel, Uzi. Aperta a mão ao grande Gabriel Allon.
Gabriel percebeu que Navot era um dos acólitos de Shamron. O Departamento estava cheio deles: homens que fariam tudo trair, enganar, roubar, até mesmo matar - de modo a conquistar a aprovação de Shamron. Navot era novo e era petulante, e havia
em si uma arrogância que fez Gabriel antipatizar logo com ele. Brilhava como uma moeda acabada de cunhar. Os instrutores na Academia tinham-lhe dito que era membro da elite - um príncipe e Navot acreditara neles.
Quando Gabriel entregou as cassetes a Shamron e se afundou na cadeira de couro reclinável, só conseguia pensar numa coisa: Shamron, no Lizard na Cornualha, a prometer-lhe que a operação seria um segredo bem mantido dentro dos corredores do Boulevard do Rei Saul. Se era esse o caso, quem diabos era Uzi Navot e o que estava a fazer aqui?
Shamron atravessou a sala, colocou uma cassete no sistema de estéreo e carregou no PLAY. A seguir, sentou-se em frente a Gabriel e cruzou os braços. Quando Yusef começou a falar, fechou os olhos e inclinou ligeiramente a cabeça para o lado. Para Gabriel, parecia que estava a ouvir a melodia de uma música distante.
Um amigo meu, um palestiniano muito importante, precisa de fazer uma viagem ao estrangeiro para uma reunião crucial. Infelizmente, os sionistas e os seus amigos prefeririam que este homem não estivesse presente nesta reunião importante e, se o avistarem durante a viagem, provavelmente detêm-no e enviam-no de volta para casa.
E porque é que fariam isso?
Porque ousou questionar a justeza do suposto processo de paz Porque ousou desafiar a liderança palestiniana. Porque acredita que a única solução justa para o problema palestiniano é deixarem-nos regressar às nossas terras, onde quer que elas possam ser, e instituir um verdadeiro Estado binacional na terra da Palestina. Escusado será dizer que estas opiniões o tornaram bastante impopular- não só entre os sionistas e amigos, mas também entre alguns palestinianos. Em resultado disso, é um exilado e vive escondido.
O que é que queres de mim?
Porque este homem está sob constante ameaça, acha necessário tomar certas precauções. Quando viaja, fá-lo com um nome falso. É muito instruído e fala várias línguas. Pode fazer passar-se como sendo de diversas nacionalidades.
Continuo sem saber o que queres de mim, Yusef.
Os agentes de controlo de passaportes de todos os países ocidentais utilizam o que é conhecido como retrato de perfil para escolher viajantes para um escrutínio
mais apertado. Infelizmente, devido ao 'terrorismo árabe', os Árabes que viajam sozinhos estão sujeitos ao maior escrutínio de todos. Portanto, este homem prefere viajar com um passaporte ocidental e com outra pessoa - uma mulher.
Porquê uma mulher?
Porque um homem e uma mulher a viajar juntos levantam menos suspeitas do que dois homens. Este homem precisa de um companheiro de viagem, um parceiro, se quiseres. Gostava que fosses com ele nesta viagem.
Só podes estar a brincar.
Não ia brincar com uma coisa destas. A reunião em que este homem precisa de estar presente pode alterar o curso da história no Médio Oriente e para o povo palestiniano. É vital que chegue ao destino e lhe seja permitido estar presente nesta reunião e representar as opiniões de um grande número de palestinianos.
Porquê eu?
Por uma razão, o teu aspecto. És uma mulher muito atraente, muito capaz de desviar atenções. Mas também por causa do teu passaporte. Este homem - e peço desculpa, Dominique, mas não tenho autorização para te dizer o nome dele -prefere viajar com um passaporte francês. Vão passar por amantes, um homem de negócios de sucesso e a namorada mais nova.
Passar por amantes?
Sim, apenas passar por amantes. Nada mais, garanto-te. Este líder palestiniano não pensa em mais nada senão no bem-estar e no futuro do povo palestiniano.
Sou secretária numa galeria de arte, Yusef. Não faço coisas dessas. Para além disso, porque é que havia de me arriscar por ti e pelo povo palestiniano? Arranja uma palestiniana para o fazer.
Nós utilizaríamos uma palestiniana se pudéssemos. Infelizmente, é necessário uma europeia.
Nós, Yusef? O que é que queres dizer com nós? Pensei que fosses um estudante. Pensei que fosses um empregado, por amor de Deus. Quando é que nos envolvemos com um homem que tem de viajar com um nome falso para uma reunião que vai mudar o curso da história no Médio Oriente? Isso é que é honestidade total, hem, Yusef?
Não fiz segredo das minhas crenças políticas. Não fí segredo da minha oposição ao processo de paz.
Sim, mas acabaste por fazer segredo do facto de estares envolvido com pessoas assim. O que é ele, Yusef Algum tipo de terrorista?
Não sejas ridícula, Dominique! As pessoas com quem estou envolvido nunca cometeriam um acto de violência e condenam qualquer grupo que o faça. Para além disso, pareço-te mesmo algum tipo de terrorista?
Então onde é que ele vai? Como é que funcionaria?
Estás a dizer que o vais fazer?
Estou a perguntar onde é que o teu amigo vai e como é que funcionaria nada mais.
Não te posso dizer onde é que ele vai.
Oh, Yusef, por favor. Isto é...
Não te posso dizer onde é que ele vai porque até eu não sei Mas posso dizer-te como funcionaria.
Estou a ouvir.
Viajas para Paris - para o Aeroporto Charles de Gaulle. Encontras-te com o líder palestiniano no terminal. Só ele e alguns dos assistentes mais próximos sabem onde é que vai. Vais acompanhá-lo até à porta de embarque e subir para o avião. O destino pode ser o local da reunião ou talvez tenham de apanhar um outro voo - ou um comboio, ou um ferry, ou ir de carro. Não sei. Quando a reunião tiver terminado, regressam a Paris e cada um segue o seu caminho. Nunca mais o vais voltar a ver e nunca vais mencionar isto a mais ninguém.
E se ele for preso? O que é que me acontece?
Não fizeste nada de mal. Vais viajar com o teu próprio passaporte. Vais dizer que este homem te convidou a ir em viagem com ele e que aceitaste. Muito simples, sem problemas.
Quanto tempo?
Deves fazer planos para uma semana mas esperar menos.
Não posso deixar simplesmente a galeria durante uma semana. Não tenho direito a nenhum tempo de férias e o Isherwood ia entrar em colapso.
Diz ao senhor Isherwood que tens uma emergência de família em Paris. Diz-lhe que não o podes evitar.
E se ele resolve despedir-me?
Não te vai despedir. E se é o dinheiro que te preocupa, podemos arranjar-te qualquer coisa.
Não quero dinheiro, Yusef. Se ofizer, é porque mo pediste. Faço-o porque
estou apaixonada por ti, ainda que não acredite completamente que sejas mesmo a péssó a que pareces ser.
Sou só um homem que ama o seu país e o seu povo, Dominique.
Preciso de pensar nisto.
Claro que precisas de pensar nisso. Mas enquanto tomas a tua decisão é essencial que não o discutas com ninguém.
Compreendo, suponho. Quando é que precisas de uma resposta?
Amanhã à noite.
Quando a cassete terminou, Shamron olhou para cima. - Porquê essa cara soturna, Gabriel? Porque é que não estás aos saltos de alegria?
- Porque me parece demasiado bom para ser verdade.
- Não vais começar outra vez com isto, pois não, Gabriel? Se achassem que ela estava a trabalhar para nós, já estava morta e o Yusef estava a esconder-se.
- Não é assim que o Tariq joga.
- Do que é que estás a falar?
- Talvez queira mais do que um agente de pouca importância como ajacqueline. Lembras-te de como matou o Ben-Eliezer em Madrid? Montou uma armadilha, atirou-lhe o isco, atraíu-o até lá. Não deixou nada ao acaso. Depois deu-lhe um tiro na cara e saiu como se nada se tivesse passado. Bateu-nos no nosso próprio jogo, e o Ben-Eliezer pagou o preço.
- Bateu-me. É isso que estás a tentar dizer, não é, Gabriel? Se eu tivesse sido mais cuidadoso, nunca tinha deixado o Ben-Eliezer entrar naquele café em primeiro lugar.
- Não te estava a culpar.
- Se não eu, então quem, Gabriel? Era o chefe de operações. Aconteceu no meu turno. Em última análise, a morte dele é minha responsabilidade. Mas o que é que queres que faça agora? Que corra e me esconda, porque o Tariq já me bateu antes? Que arrume a trouxa e vá para casa? Não, Gabriel.
- Fica com o Yusef. Afasta-te.-
- Não quero o Yusef, Quero o Tariq!
Shamron bateu com o punho grosso no braço da cadeira.
- Faz todo o sentido. O Tariq gosta de utilizar mulheres legítimas como cobertura. Sempre gostou. Em Paris, foi a rapariga americana. Em Amesterdão, foi a puta que gostava de heroína. Até utilizou uma...
Shamron deteve-se, mas Gabriel sabia no que estava a pensar. Tariq tinha utilizado uma mulher em Viena, uma bonita empregada de loja austríaca que foi encontrada no Danúbio na noite do atentado à bomba com metade da garganta desaparecida.
- Vamos partir do princípio de que tens razão, Gabriel. Vamos partir do princípio de que o Tariq suspeita que a Jacqueline esteja a trabalhar para o Departamento. Vamos partir do princípio de que está a montar uma armadilha para caírmos nela. Mesmo que seja esse o caso, a vantagem continua a ser nossa. Nós decidimos quando forçar a acção. Escolhemos a altura e o sítio, não o Tariq.
- com a vida da Jacqueline em jogo. Não estou preparado para arriscar isso. Não quero que ela acabe como todas as outras.
- Não acaba. É uma profissional e vamos estar com ela a cada passo.
- Há duas semanas atrás estava a trabalhar como modelo. Já não está em campo há anos. Pode ser uma profissional, mas não está preparada para uma coisa assim.
- Deixa-me revelar-te um pequeno segredo, Gabriel. Ninguém está nunca completamente preparado para uma coisa assim. Mas a Jacqueline é capaz de tomar conta de si própria.
- Também não gostei das regras do jogo deles. Temos de a deixar ir para o Charles de Gaulle e apanhar um avião, mas não sabemos para onde é que o avião vai. Vamos andar a brincar à apanhada a partir do momento em que o jogo começar.
- Vamos ficar a saber para onde vão assim que entrarem na porta de embarque, e vamos estar a vigiá-los assim que saírem do avião no outro lado. Não vai estar fora da nossa vista por um minuto.
- E a seguir?
- Quando o momento se proporcionar, eliminas o Tariq e acabará.
- Podemos prendê-lo no Charles de Gaulle.
Shamron franziu os lábios e abanou a cabeça. Gabriel perguntou:
- Porque não?
Shamron levantou o indicador grosso.
- Em primeiro lugar, porque implicava envolver os Franceses, uma coisa que não estou preparado para fazer. Em segundo lugar, ninguém conseguiu montar um caso contra o Tariq que se aguente em tribunal. Em terceiro lugar, se dissermos aos Franceses e aos nossos amigos em Langley que sabemos onde é que o Tariq vai estar num determinado dia, vão querer saber como é que nos chegou essa informação. Isso também significava confessar aos nossos irmãos em Londres que temos andado a executar uma operação no território deles e que nos esquecemos de lhes dizer. Não vão ficar satisfeitos com isso. Finalmente, a última coisa de que precisamos é do Tariq atrás das grades, um símbolo para todos aqueles que gostariam de ver destruído o processo de paz. Preferia que desaparecesse sem alarido.
- Então e um rapto?
- Achas mesmo que íamos conseguir tirar o Tariq do meio de um terminal apinhado no Charles de Gaulle? É claro que não. Se queremos o Tariq, vamos ter de jogar segundo as regras dele por umas horas.
Shamron acendeu um cigarro e apagou o fósforo sacudindo-o violentamente.
- É contigo, Gabriel. Uma operação destas requer a aprovação directa do primeiro-ministro. Ele está no gabinete neste preciso momento, à espera de saber se estás ou não preparado para ir com isto em frente. O que é que lhe devo dizer?
ST. JAMES'S, LONDRES
O meio da tarde, tinha decidido Julian Isherwood, era a parte mais cruel do dia. O que era ao certo? O cansaço de um bom almoço? O escurecer precoce de Londres no Inverno? O ritmo sonolento da chuva a tamborilar nas suas janelas? Esta zona limbo do dia tinha-se tornado o purgatório pessoal de Isherwood, um duro espaço de tempo entalado entre a esperança sentimental que sentia a cada manhã, quando chegava à galeria, e a realidade fria do declínio que sentia a cada final de tarde, enquanto voltava para casa, em South Kensington. Três da tarde, a hora da morte: demasiado cedo para fechar - isso teria a sensação de uma capitulação total -, demasiadas horas para preencher com muito pouco trabalho de importância.
Por isso, estava sentado à secretária, a mão esquerda à volta da forma reconfortante de uma chávena de chá quente, a direita a folhear morosamente uma pilha de papéis: contas que não podia pagar, avisos de bons quadros a chegar ao mercado que não se podia dar ao luxo de comprar.
Levantou a cabeça e espreitou por uma entrada que separava o escritório da sala de espera, na direcção da criatura sentada à pequena secretária de director. Uma figura estonteante, esta rapariga que dava pelo nome de Dominique: uma verdadeira obra de arte, aquela. Ao menos, tinha tornado mais interessantes as coisas na galeria, quem quer que fosse.
No passado, insistira em manter a entrada que separava os dois
escritórios bem fechada. Era um homem importante, gostava de pensar - um homem que tinha discussões importantes com gente importante - e quisera uma muralha entre si e a secretária. Agora, percebeu que preferia mantê-la aberta. Oh, se fosse vinte anos mais novo, no auge dos seus poderes. Podia tê-la tido nessa altura. Tinha tido bastantes nessa altura, raparigas exactamente como ela. Não era só o dinheiro, ou a casa de campo em St.-Tropez, ou o iate. Era a arte. Os quadros eram um afrodisíaco melhor do que a cocaína.
No seu copioso tempo livre, Isherwood tinha engendrado todo o tipo de fantasias acerca dela. Pôs-se a pensar se seria sequer francesa ou apenas uma daquelas israelitas que se podiam passar praticamente por tudo. Também descobrira que a achava vagamente intimidante, o que tornava verdadeiramente impossível considerar sequer o acto físico de amor com ela. Ou sou só eu? pensou. É assim que lidamos com a decadência do envelhecimento? com a diminuição do nosso poder? A deterioração das nossas capacidades? A mente liberta-nos misericordiosamente do desejo, para nos pormos de lado com graciosidade, em favor da geração mais nova e não fazermos figura de completos anormais por causa de mulheres como a Dominique Bonard?
Mas enquanto a observava agora, percebeu que havia qualquer coisa errada. Tinha estado nervosa o dia todo. Recusara-se a sair da galeria. Convidara-a a almoçar no Wilton's - nada de suspeito, entenda-se: sem segundas intenções -, mas recusara e, em vez disso, pedira para entregarem uma sanduíche do café. Talvez tivesse algo a ver com o rapaz árabe que tinha vindo à galeria na outra noite Yusef, tinha-lhe chamado. Ou talvefosse Gabriel. Isherwood estava certo de uma coisa. Se Gabriel alguma vez a magoasse, da maneira como magoou aquele rapazinho na Cornualha - Meu Deus, qual era o nome dele? Pearl? Puck? Não, era Peel - bom... Infelizmente, não havia muito que pudesse fazer a Gabriel, a não ser nunca lhe perdoar.
Lá de fora, ouviu dois toques bruscos de uma buzina automóvel. Levantou-se e foi até à janela. Por baixo de si, na calçada de Mason's Yard, estava uma carrinha de entregas parada mesmo à frente das portas fechadas da zona de cargas e descargas.
Curioso, não havia entregas agendadas para hoje. O condutor voltou a buzinar, desta vez com força e alto. Por amor de Deus, pensou Isherwood. Mas quem raio és tu? E o que é que queres?
Depois espreitou através do pára-brisas da frente. Devido ao ângulo, não conseguia ver a cara do condutor, apenas conseguia ver umas mãos, à volta do volante. Teria reconhecido aquelas mãos em qualquer lado. As melhores mãos do ramo.
Subiram no elevador até à galeria superior, Jacqueline entre eles, como uma prisioneira, Gabriel à esquerda, Shamron à direita. Ela tentou olhar para Gabriel olhos nos olhos, mas ele estava a olhar em frente. Quando a porta se abriu, Shamron guiou-a até ao banco para apreciar as obras, como se estivesse a colocar uma testemunha no banco dos réus. Sentou-se com as pernas cruzadas pelos tornozelos, os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo apoiado nas mãos. Gabriel estava parado atrás dela. Shamron andava de um lado para o outro da galeria, como um potencial comprador nada impressionado com a mercadoria.
Falou durante vinte minutos sem parar. Enquanto Jacqueline o observava, pensou na noite em que a tinha convidado a juntar-se ao Departamento. Sentiu a mesma sensação de propósito e dever que sentira nessa noite. O pequeno corpo agitado de Shamron revelava tanta força que os medos dela pareciam esfumar-se. À primeira vista, o que lhe estava a pedir era chocante - acompanhar o terrorista mais perigoso do mundo numa missão -, mas foi capaz de lhe avaliar as palavras sem a emoção incómoda do medo. Pensou: Shamron não tem medo; logo, não tenho medo. Tinha de admitir que estava fascinada pela simples ideia daquilo. Imagine-se, a rapariga de Marselha, cujos avós foram assassinados no Holocausto, a ajudar a destruir Tariq al-Hourani e a preservar a segurança de Israel. Seria o final perfeito para a carreira no Departamento, a realização de todos os desejos que a fizeram alistar-se em primeiro lugar. Também provaria a Gabriel que ela também conseguia ser corajosa.
- Tens todo o direito de nos dizer que não - disse Shamron.
- Aceitaste participar numa operação muito diferente desta: uma
muito mais curta em duração e com risco físico consideravelmente inferior. Mas a situação alterou-se. Às vezes, as operações são assim.
Parou de andar de um lado para o outro e ficou exactamente à frente dela.
- Mas posso garantir-te uma coisa, Jacqueline. A tua segurança será a nossa primeira prioridade. Nunca estarás sozinha. Vamos acompanhar-te até ao aeroporto e estaremos à espera do outro lado quando saíres. Iremos para onde quer que vás. E à primeira vez que a oportunidade se proporcionar, vamos avançar e terminar com as coisas. Também tens a minha palavra de que, se a tua vida estiver em perigo, avançaremos nesse momento, independentemente das consequências. Compreendes o que te estou a dizer?
Acenou com a cabeça. Shamron enfiou a mão na pasta, tirou uma caixinha em forma de presente, cerca de cinco centímetros por cinco centímetros, e entregou-a a Jacqueline. Abriu-a. Um isqueiro dourado, aconchegado em algodão branco.
- Envia um sinal luminoso com um alcance de cinquenta quilómetros. O que significa que, se alguma coisa correr mal, se perdermos o contacto contigo por alguma razão, vamos ser sempre capazes de te voltar a encontrar.
Jacqueline tirou o isqueiro da caixa e carregou na mola. O isqueiro expeliu uma estreita língua de fogo. Quando enfiou o isqueiro no bolso do peito da blusa, a cara de Shamron soltou um breve sorriso.
- Sinto-me obrigado a informar-te que o teu amigo Gabriel tem sérias reservas em relação a tudo isto.
Estava outra vez em andamento, agora parando em frente à paisagem de Claude.
- Gabriel tem medo de que possas estar a enfiar-te numa armadilha. Normalmente, confio na opinião de Gabriel. Temos um passado considerável entre nós. Mas neste caso, encontro-me em desacordo respeitoso com ele.
- Compreendo - murmurou Jacqueline, mas estava a pensar na noite em que tinha trazido Yusef a esta mesmíssima sala.
O Claude nasceu em França, mas viveu quase toda a vida em Venera, se não me engano.
Por acaso, enganas-te. O Claude viveu e trabalhou em Roma. Talvez a estivesse a testar, já mesmo nessa altura. Shamron continuou:
- Podia dizer-te várias coisas. Podia dizer-te que o Tariq é um animal com o sangue de centenas de judeus nas mãos. Podia lembrar-te que matou o nosso embaixador e a mulher a sangue-frio em Paris. Podia lembrar-te que matou um grande amigo de Israel e a mulher em Amesterdão. Podia dizer-te que está a planear atacar novamente. Que estarás a prestar um grande serviço ao Estado de Israel e ao povo judeu. Podia dizer-te estas coisas todas, mas não te posso dizer para fazeres isto.
Jacqueline olhou para Gabriel, mas ele estava parado em frente ao Del Vagga, a esticar o pescoço para o lado, como se estivesse à procura de falhas no último restauro. Não olhes para mim, estava a dizer. Esta decisão é tua, só tua.
Shamron deixou-os a sós. Gabriel atravessou a sala e ficou parado onde Shamron estivera. Jacqueline queria-o mais perto, mas Gabriel parecia necessitar de uma zona de protecção. A cara já tinha mudado. Era a mesma mudança que se apoderara dele em Tunes. Tinha havido dois Gabriel em Tunes. O Gabriel da fase da vigilância, quando tinham sido amantes, e o Gabriel da noite do assassinato. Lembrou-se do aspecto dele durante a viagem da praia até à casa de campo: parte determinação severa, parte temor. Tinha o mesmo aspecto agora. Era a sua cara de matar. Quando falou, retomou onde Shamron parara. Só a qualidade da voz era diferente. Quando Shamron falou, Jacqueline quase podia ouvir tambores a ressoar. Gabriel falava suave e tranquilamente, como se estivesse a contar uma história a uma criança à hora de dormir.
- O teu elo de ligação ao Departamento vai ser o telefone do teu apartamento aqui em Londres. A linha vai ser encaminhada para a sede em Telavive através de uma ligação segura. Quando chegares ao destino, diz ao Tariq que precisas de ver as mensagens. Quando telefonares, as pessoas no Departamento vão ver o numero
27 de onde estás a ligar e localizá-lo. Se estiveres sozinha, até podes falar com eles e passar-nos mensagens. Vai ser muito seguro.
- E se não me deixar usar o telefone?
- Então armas uma cena. Dizes-lhe que o Yusef nunca te disse que não ias poder usar o telefone. Dizes-lhe que o Yusef nunca te disse que te ias tornar uma prisioneira. Diz-lhe que, a não ser que possas ver as mensagens, te vais embora. Lembra-te, tanto quanto sabes, este homem é um dignitário palestiniano qualquer. Está numa missão diplomática. Não é alguém que tenhas de temer. Se percebe que estás com medo dele, vai suspeitar que sabes mais do que devias saber.
- Compreendo.
- Não fiques surpreendida se ouvires mensagens no teu atendedor. Vamos lá colocar algumas. Lembra-te, de acordo com as regras ditadas pelo Yusef, ninguém a não ser o Julian Isherwood pode saber que estás fora. Talvez o Isherwood ligue a perguntar quando é que estás a pensar regressar. Talvez tenha algum tipo de emergência na galeria que precise da tua atenção. Talvez um familiar ou um amigo telefonem de Paris para saber como te estão a correr as coisas em Londres. Até pode ser que um ligue para te convidar para jantar. És uma mulher atraente. Seria suspeito se não houvesse homens a andar atrás de ti.
Pensou: Então porque não tu, Gabriel?
- Hoje à noite, antes de lhe dares uma resposta, quero que manifestes sérias dúvidas sobre tudo isto uma vez mais. Para ajacqueline Delacroix, o conceito de viajar com um desconhecido pode soar razoável, mas para a Dominique Bonard soa a completa loucura. Quero que discutas com ele. Quero que o forces a dar-te garantias acerca da tua segurança. No fim, claro, vais concordar ir, mas não sem uma discussão. Compreendes-me?
Jacqueline acenou com a cabeça devagar, fascinada com a intensidade serena da voz de Gabriel.
- Faz com que tenhas esta conversa no apartamento dele. Quero ouvir o que ele tem para dizer. Quero ouvir-lhe a voz uma última vez. Depois de concordares fazê-lo, não fiques surpreendida se ele se recusar a deixar-te ficar longe dele. Não fiques surpreendida se te
levar para outro sítio para passares a noite. A Dominique Bonard pode querer protestar em relação a isso, pode querer fazer ameaças vãs de se ir embora, mas ajacqueline Delacroix não deve ficar de maneira nenhuma surpreendida. E, independentemente de onde te levar, vamos estar por perto. Vamos estar a vigiar. Eu vou estar a vigiar.
Parou por um momento e, como Shamron antes de si, começou a andar devagar de um lado para o outro da galeria. Parou em frente ao Luni e olhou para a imagem de Vénus. Jacqueline pôs-se a pensar se ele era capaz de apreciar a beleza de uma peça de arte ou se tinha sido condenado a procurar apenas as falhas. Voltou-se e sentou-se ao lado dela no banco.
- Quero dizer-te mais uma coisa. Quero que estejas preparada para como isto vai terminar. Pode acontecer num sítio tranquilo, completamente fora da vista, ou no meio de uma rua movimentada. Onde estou a tentar chegar é que nunca vais saber quando é que vai terminar. Podes ver-me a vir, ou talvez não. Se de facto me vires, não deves olhar para mim. Não deves hesitar ou chamar-me. Não deves fazer qualquer barulho. Não deves fazer nada que o alerte para a minha presença. Caso contrário, podemos acabar os dois mortos.
Parou por um momento, depois acrescentou:
- Ele não vai morrer logo. Uma Beretta calibre vinte e dois não é esse tipo de arma. São precisos vários tiros no sítio certo. Depois de o derrubar, vou ter de terminar o trabalho. Só há uma maneira de fazer isso.
Fez da mão uma pistola e encostou o indicador à têmpora dela.
- Não quero que me vejas quando fizer isto. Não é quem eu sou.
Ela esticou-se e afastou-lhe a mão da cabeça. Dobrou-lhe o indicador para a palma da mão, para que esta não se parecesse mais com uma Beretta. Então, finalmente, Gabriel inclinou-se para a frente e beijou-lhe os lábios.
- Como é que ela está? - perguntou Shamron enquanto Gabriel virava para Oxford Street e seguia para este.
- Está determinada.
- E tu?
- Os meus sentimentos são irrelevantes nesta altura.
- Não estás de maneira nenhuma excitado? Não estás entusiasmado com a perspectiva de ir para a batalha? A perseguição não te faz sentir completamente vivo?
- Perdi esses sentimentos há muito tempo.
- Tu e eu somos diferentes, Gabriel. Não tenho vergonha de o admitir, mas vivo para este momento. Vivo para o momento em que posso pôr o pé na garganta do meu inimigo e esmagá-lo, cortando-lhe a respiração.
- Tens razão. Tu e eu somos muito diferentes.
- Se não soubesse, diria que sentes qualquer coisa por ela.
- Sempre gostei dela.
- Nunca gostaste de ninguém ou de nada na vida. Sentes amor, sentes ódio ou não sentes nada de nada. Não há meio-termo para ti.
- É isto que os psiquiatras da sede costumavam dizer acerca de mim?
- Não precisava de um psiquiatra para me dizer uma coisa tão óbvia.
- Podemos mudar de assunto, por favor?
- Tudo bem, vamos mudar de assunto. O que é que sentes em relação a mim, Gabriel? É amor, ódio ou nada de nada?
- Há coisas que é melhor ficarem por dizer.
Gabriel atravessou Tottenham Court Road e entrou em Holborn. Em New Square, parou na borda do passeio. Shamron tirou um ficheiro fino da pasta e levantou-o para Gabriel ver.
- Isto tem todas as fotografias conhecidas do Tariq. Não existem muitas e as que de facto temos estão datadas. Dá-lhes uma vista de olhos, de qualquer forma. Seria bastante embaraçoso se disparássemos sobre o homem errado.
- Como em Lillehammer - disse Gabriel.
Shamron fez uma careta perante a simples menção de Lillehammer, uma aldeia para esquiar norueguesa e o local do pior fiasco operacional da história da espionagem israelita. Em Julho de 1973,
um par de kidons da equipa de Shamron assassinaram um homem que acreditavam ser Ali Hassan Salameh, o chefe das operações do Setembro Negro e o cérebro por trás do massacre de Munique. Veio a revelar-se um caso trágico de identidade trocada - o homem não era Salameh mas um empregado marroquino que era casado com uma norueguesa. Depois do assassínio, Gabriel e Shamron escaparam, mas vários membros da equipa de ataque caíram nas mãos da polícia norueguesa. Shamron mal conseguiu salvar a carreira. No Boulevard do Rei Saul, o desastre de Lillehammer ficou conhecido como Leyl-ha-Mar, que em hebreu quer dizer a noite da amargura.
Shamron perguntou:
- Por favor, achas mesmo que agora é uma boa altura para mencionar Leyl-ha-Mar?
Parou e a seguir sorriu com surpreendente ternura.
- Sei que me achas um monstro. Sei que me achas um homem completamente sem princípios morais. Talvez tenhas razão. Mas sempre te amei, Gabriel. Sempre foste o meu favorito. Eras o meu príncipe do fogo. Não importa o que aconteça, quero que te lembres disso.
- Onde é que vais, já agora?
- Vamos precisar de um avião amanhã. Pensei em fazer uma reserva na Air Stone.
- Ari, não estás a beber! Não é justo!
- Desculpa, Benjamin, mas tenho uma noite longa pela frente.
- Trabalho?
Shamron inclinou ligeiramente a cabeça para indicar que sim.
- Então e o que é que te traz aqui?
- Preciso de um favor.
- É claro que precisas de um favor. Caso contrário, não estavas aqui. Espero que não tenhas vindo à procura de dinheiro, já que o Banco de Stone está temporariamente fechado e a tua conta está com um grande saldo a descoberto. Para além disso, o dinheiro desapareceu. Os credores andam a cantar o raio de uma ária. Querem o que é deles por direito. É engraçado como os credores podem ser. Quanto às pessoas que me costumam emprestar dinheiro,
bom, digamos simplesmente que se estão a dirigir para águas mais calmas. O que te estou a tentar dizer, Ari, meu velho, é que estou com uma porra de um grave problema financeiro.
- Não tem a ver com dinheiro.
- Então o que é? Fala, Ari!
- Preciso de te pedir emprestado o teu jacto. Na verdade, preciso de te pedir emprestado a ti e ao teu jacto.
- Estou a ouvir. Agora tens a minha atenção.
- Amanhã, um inimigo do Estado de Israel vai apanhar um voo no Charles de Gaulle. Infelizmente, não sabemos que voo nem qual é o seu destino. E não vamos saber até ele entrar no avião. É imperativo que o sigamos rapidamente e que cheguemos com algum grau de sigilo. Um voo charter El Al não programado, por exemplo, podia levantar suspeitas. Tu, no entanto, tens uma reputação de viagens impetuosas e de alterações de último minuto no teu horário e itinerário.
- Podes crer, Ari. Ir e vir como o vento. Mantém as pessoas em alerta, foda-se. É aquele assunto em Paris, não é? É por isso que me ficaste com o dinheiro antes. Devo dizer que estou intrigado. Parece que vou estar envolvido numa verdadeira operação. Linhas da frente, coisa pesada. Como é que posso dizer que não?
Stone agarrou de repente no telefone.
- Preparem o avião. Paris, uma hora, a suíte habitual no Ritz!, a rapariga habitual. A do piercing de diamante na língua. Um sonho!, essa. Tenham-na à espera no quarto.
Desligou, voltou a encher o copo de champanhe e ergueu-o na direcção de Shamron.
- Não tenho palavras que cheguem para te agradecer, Benjamin.
- Ficas a dever-me, Ari. Um dia, eu vou precisar de um favor. Um dia, todas as dívidas são saldadas.


CONTINUA

MAIDA VALE, LONDRES
Jacqueline sentiu uma alegria peculiar na manhã seguinte, enquanto atravessava Elgin Avenue, na direcção da estação do metro de Maida Vale. Tinha vivido uma vida de excesso hedonístico demasiado dinheiro, demasiados homens, as coisas boas tidas como garantidas. Era animador estar a fazer algo tão comum como apanhar o metro para o trabalho, mesmo que fosse apenas um emprego de disfarce.
Comprou um exemplar do The Times da banca de jornais na rua, depois entrou na estação e seguiu pelas escadas abaixo até ao átrio dos bilhetes. Na noite anterior, tinha estudado mapas de ruas e memorizado as linhas de metro. Tinham nomes tão curiosos: Jubilee, Circle, District, Victoria. Para chegar à galeria em St. James's, apanharia a Bakerloo Line de Maida Vale até Piccadilly Circus. Comprou um bilhete numa máquina, a seguir passou pelo torniquete e desceu pelas escadas rolantes até à plataforma. Até agora, tudo bem, pensou. Apenas mais uma rapariga trabalhadora em Londres.
A ideia de relaxar por uns minutos com o jornal dissolveu-se quando o metro chegou à estação. As carruagens vinham abarrotadas sem remédio, os passageiros esmagados contra os vidros. Jacqueline, que era sempre protectora do seu espaço, pensou em esperar para ver se o próximo metro viria um pouco melhor. Olhou para o relógio, viu que não tinha tempo a perder. Quando as portas
se abriram, apenas uma mão-cheia de pessoas saiu. Não parecia haver lugar onde ficar. O que faria uma londrina? Empurrar até conseguir entrar. Encostou a mala aos seios e entrou.
O metro avançou aos solavancos. O homem ao seu lado estava a respirar a cerveja da noite passada para cima da cara dela. Esticou o corpo comprido, inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos, descobriu uma corrente de ar fresco a escapar-se por uma fenda nas portas.
Uns instantes mais tarde, o metro chegou a Piccadilly Circus. Cá fora, a neblina tinha-se transformado em chuva fraca. Jacqueline puxou de um guarda-chuva de dentro da mala. Andou depressa, acompanhando a passada dos empregados de escritórios à sua volta, fazendo alterações subtis à trajectória para evitar o trânsito que se aproximava.
Ao virar em Duke Street, deitou uma olhadela por cima do ombro. A andar alguns metros atrás, de calças de ganga pretas e um casaco de cabedal, estava Gabriel. Avançou para sul ao longo de Duke Street, até chegar à entrada de Mason's Yard.
Gabriel deu-lhe um encontrão no cotovelo ao passar.
- Estás segura. Dá beijinhos meus ao Julian.
A galeria estava exactamente como Gabriel a descrevera: apertada entre o escritório da companhia de navegação e o pub. Ao lado da porta havia um painel e no painel estavam dois botões e dois nomes correspondentes: LOCUS TRAVEL e ISHER oo FINE AR s. Carregou no botão, esperou, carregou outra vez, esperou, deitou um olhar ao relógio, carregou outra vez. Nada.
Atravessou Mason's Yard, entrou em Duke Street e descobriu um pequeno café onde podia esperar. Mandou vir café e instalou-se perto da janela com o Times. Quinze minutos mais tarde, às nove e vinte em ponto, reparou num homem de cabelos grisalhos vestido com grande estilo a avançar apressadamente por Duke Street, como se estivesse atrasado para o próprio funeral. Agachou-se para passar entre os edifícios e desapareceu por Mason's Yard dentro. Isherwood, pensou. Tinha de ser.
Enfiou o jornal na mala e esgueirou-se para fora do café, atrás dele. Seguiu-o através de Mason's Yard, em direcção à galeria. Enquanto ele estava a destrancar a porta, gritou:
- Senhor Isherwood, é o senhor? Tenho estado à sua espera. Isherwood voltou-se. A boca abriu-se ligeiramente enquanto ela
se aproximava.
- Sou a Dominique Bonard. Creio que estava à minha espera esta manhã.
Isherwood desimpediu a garganta várias vezes rapidamente e pareceu ter dificuldades em recordar-se de qual a chave que abria o escritório.
- Sim, bom, encantado, realmente - balbuciou. - Peço imensa desculpa, o maldito metro, sabe como é.
- Deixe-me pegar na pasta. Talvez isso ajude.
- Sim, bom, é. francesa - disse, como se achasse que isto pudesse ser uma revelação para ela. - Tenho um italiano fluente, mas receio que o meu francês seja bastante atroz.
- Tenho a certeza de que nos iremos entender perfeitamente em inglês.
- Sim, claro.
Por fim, conseguiu destrancar a porta. Segurou-a de modo demasiado galante e fez-lhe sinal para passar até às escadas. No patamar, Isherwood parou em frente à agência de viagens e estudou a rapariga num dos cartazes. Virou-se e olhou de relance para Jacqueline, depois voltou a olhar fixamente para a rapariga na fotografia.
- Sabe, Dominique, podia ser a sua irmã gémea. Jacqueline sorriu e respondeu:
- Não seja tolo.
Isherwood abriu a galeria e levou Jacqueline até à secretária.
- Vai aparecer por cá um homem chamado Oliver Dimbleby, mais ao fim da manhã. Parece-se bastante com uma salsicha inglesa num fato Savile Roa1. Abra-lhe a porta para ele subir quando chegar. Até lá, deixe-me mostrar-lhe o resto da galeria.
Entregou-lhe um par de chaves numa fita elástica azul.
- Estas são para si. Sempre que um de nós sair da galeria, as
portas são para ser fechadas com o alarme. O código para desligar o alarme é cinco-sete-seis-quatro-nove-sete-três-dois-seis. Memorizou-o?
Jacqueline acenou com a cabeça. Isherwood olhou para ela, incrédulo, e ela repetiu a sequência de números rapidamente e sem erro. Isherwood estava claramente impressionado.
Entraram num pequeno elevador, que mal tinha largura para acomodar dois passageiros. Isherwood inseriu a chave no cadeado de segurança, rodou-a e carregou no botão que dizia B. O elevador gemeu e estremeceu, depois desceu lentamente pelo poço, parando com um solavanco suave. As portas abriram-se e entraram numa sala fresca e escura.
- Isto é a tumba - disse, ligando as luzes.
Era uma cave apertada cheia de telas, algumas emolduradas, outras não e encostadas em ranhuras construídas nas paredes.
- Esta é a minha sala de stock. Centenas de trabalhos, muitos deles valiosos, muitos mais com pouco ou nenhum valor no mercado aberto e que, portanto, estão a acumular pó nesta sala.
Levou-a de volta ao elevador e desta vez subiram. As portas abriram-se para uma sala grande e de tecto alto. A luz cinzenta da manhã entrava a conta-gotas por uma cúpula circular de vidro no tecto. Jacqueline avançou com cuidado alguns passos. Isherwood ligou um interruptor, iluminando a sala.
Era como se ela tivesse entrado num museu. As paredes eram cor creme, imaculadas, o chão de madeira dura polido e muito brilhante. No centro do chão, estava um banco baixo coberto por veludo macio cor de vinho. Nas paredes, estavam telas imponentes
, iluminadas por focos de halogéneo montados no tecto. A chuva l batia ao de leve na clarabóia abobadada. Jacqueline sentou-se no
banco. Havia uma Vénus de Luini e uma Natividade de dei Vaga; U um Baptismo de Cristo de Bordone e uma paisagem estonteante de H Claude.
- É de cortar a respiração - disse. - Sinto-me como se estivesse no Louvre. Deve vir muito aqui acima.
- Quando preciso de pensar. Esteja à vontade para subir sempre que quiser. Traga o almoço.
- vou fazê-lo. Obrigado por mo mostrar.
- Se vai trabalhar aqui, suponho que deva conhecer os cantos à casa.
Apanharam o elevador para o andar principal. Jacqueline sentou-se à sua nova secretária, abriu as gavetas, revolveu os clipes para o papel e as canetas, experimentou a fotocopiadora.
Isherwood perguntou:
- Sabe usar essas coisas, não sabe?
- Tenho a certeza de que lhe vou apanhar o jeito.
- Oh, meu Deus - murmurou ele.
Oliver Dimbleby chegou às onze horas em ponto. Jacqueline inspeccionou-o pela câmara de segurança - parecia mesmo uma salsicha num fato Savile Row - e carregou no botão para o deixar subir. Quando a avistou, meteu o estômago para dentro e sorriu afectuosamente.
- Então, é a nova rapariga do Julian - disse, apertando-lhe a mão. - Chamo-me Oliver Dimbleby. Muito gosto em conhecê-la.: Muito gosto, realmente.
- Anda, Oliver - chamou Isherwood do escritório interior. Aqui, rapaz. Larga-lhe a mão e entra aqui. Não temos o dia todo.
Oliver, relutante, libertou-lhe a mão e entrou no escritório de Isherwood.
- Diz-me, Julie, meu querido. Se eu comprar mesmo este sítio, aquele anjo ali fora também vem?
- Oh, cala-te lá, Oliver. Isherwood fechou a porta.
Jacqueline voltou para o seu escritório e tentou perceber como utilizar o fax.
A chamada para o Kebab Factory veio às 4 horas da tarde. Gabriel esperou três minutos e vinte segundos para que Yusef viesse ao telefone - sabia o tempo exacto que demorava porque, mais tarde, se sentiu compelido a apurá-lo com um cronómetro. Durante a ausência de Yusef, foi brindado com os sons dos ajudantes de cozinha a tagarelar em árabe libanês e com Mohammed, o gerente da
parte da tarde, a gritar a um empregado para limpar a mesa dezassete. Quando Yusef veio finalmente ao telefone, parecia ligeiramente sem fôlego. A conversa inteira durou trinta e sete segundos. Quando terminou, Gabriel rebobinou a cassete e ouviu-a tantas vezes que Karp lhe implorou que parasse.
- Acredita em mim, Gabe, não há nada de sinistro a passar-se. São dois tipos a falar em ir tomar um copo e talvez encontrarem uma miúda e irem para a cama. Lembras-te de ir para a cama, não te lembras?
Mas Gabriel estava a iniciar a fase seguinte da operação - estava a enviar Jacqueline para território hostil - e queria ter a certeza de que não a estava a enviar para uma armadilha. Por isso escutou
outra vez:
- Continua tudo combinado para hoje à noite?
- Completamente. Onde?
- Ali Bar One, em Leicester Square, às nove horas.
- Lá estarei.
STOP. REBOBINAR. PLAY.
- Continua tudo combinado para hoje à noite?
- Completamente. Onde?
- AU Bar One, em Leicester Square, às nove horas.
- Lá estarei.
STOP. REBOBINAR. PLAY.
- AU Bar One, em Leicester Square, às nove horas.
STOP. PLAY.
- Lá estarei.
Gabriel pegou no telefone e marcou com força o número da Isherwood Fine Arts.
LEICESTER SQUARE, LONDRES
O AU Bar One ficava no canto sudoeste de Leicester Square. Tinha dois andares e grandes janelas, de modo que Gabriel, sentado lá fora num banco de madeira frio, podia ver a acção lá dentro como se fosse uma peça ou um palco de múltiplos níveis. Magotes de turistas e pessoas que iam ao cinema passavam por ele a gritar. Os artistas de rua também tinham saído. Num dos lados da praça, um alemão cantava Jimi Hendrix por um microfone a crepitar, acompanhado por uma guitarra acústica amplificada. No outro, um grupo de peruanos tocava a música das montanhas para um bando de punks urbanos com cabelo de cor púrpura e ar desconsolado. A uns metros da entrada do bar, uma estátua humana estava, imobilizada, em cima de um pedestal, a cara pintada da cor do titânio, a olhar para Gabriel de forma malévola.
Yusef apareceu cinco minutos mais tarde, acompanhado por um homem bem-arranjado e de cabelo arruivado. Esquivaram-se à pequena fila à porta subornando o macacão musculado que fazia de segurança. Um momento depois, apareceram à janela no segundo andar. Yusef disse olá a uma loira alta e magra. Gabriel tirou um telemóvel do bolso do casaco, marcou um número, murmurou algumas palavras, depois carregou no botão para desligar.
Jacqueline, quando chegou cinco minutos mais tarde, vestia a mesma roupa que tinha vestido para a galeria de Isherwood nessa manhã, mas soltara os longos cabelos. Apresentou-se ao porteiro e perguntou pelo tempo de espera. O porteiro afastou-se prontamente,
para grande aborrecimento dos outros clientes que se acumulavam à porta. Enquanto Jacqueline desaparecia dentro do bar, Gabriel ouviu alguém dizer entre dentes:
- Cabra francesa.
Subiu, pagou um copo de vinho e sentou-se à janela, a uns metros de Yusef e do amigo. Yusef ainda estava a conversar com a loira mas, após alguns instantes, Gabriel pôde ver os seus olhos a desviarem-se para a rapariga alta e de cabelo escuro sentada à direita.
Vinte minutos mais tarde, nem Gabriel nem a estátua se tinham movido, mas Yusef tinha-se desenvencilhado da loira e estava sentado ao lado de Jacqueline. Ela estava a comê-lo com os olhos, como se o que quer que ele estivesse a dizer fosse a coisa mais fascinante que ouvira em anos.
Gabriel olhou fixamente para a estátua e a estátua retribuiu o olhar.
À meia-noite, saíram do bar e caminharam ao longo da praça no meio de um vento que redemoinhava. Jacqueline tremia e dobrou os braços por baixo dos seios. Yusef pôs-lhe o braço à volta da cintura e puxou-a contra si. Ela conseguia sentir o vinho. Tinha descoberto que a utilização sensata de álcool ajudava em situações como estas. Bebera exactamente o suficiente para perder quaisquer inibições em relação a dormir com um completo desconhecido inibições que a poderiam trair -, mas não o suficiente para lhe entorpecer os sentidos ou os instintos de autopreservação.
Entraram num táxi em Charing Cross Road.
Jacqueline perguntou:
- Onde é que moras?
Sabia a resposta mas Dominique Bonard não.
- Tenho um apartamento em Bayswater. Sussex Gardens. Vamos para lá?
Acenou com a cabeça. Seguiram por Charing Cross Road acima, passando por lojas escurecidas, depois para oeste, ao longo de Oxford Street, na direcção de Marble Arch e do parque. Às vezes, passavam por uma loja iluminada ou por baixo de um candeeiro de rua e ela via-lhe a cara por um instante, como uma fotografia
projectada de relance num ecrã e a seguir retirada. Estudou-lhe o perfil. A articulação do maxilar era um ângulo recto perfeito, o nariz comprido e fino, com linhas nítidas ao longo da cana, os lábios carnudos. Pestanas compridas, sobrancelhas largas. Tinha-se barbeado com atenção. Não usava água-de-colónia.
Baseado no que Gabriel lhe tinha dito, esperava que Yusef fosse convencido e demasiado confiante. Mas, em vez disso, exibia uma inteligência agradável, de certa maneira envergonhada. Pensou no executivo químico alemão que seduzira em Chipre. Era careca e tinha mau hálito. Ao jantar, tinha-lhe contado quanto odiava os judeus. Mais tarde, na cama, pedira-lhe para fazer coisas que a deixaram doente.
Avançaram por Edgware Road acima e viraram em Sussex Gardens. Queria olhar para cima e descobrir o apartamento no qual Gabriel instalara o posto de escuta. Em vez disso, obrigou-se a olhar para Yusef. Passou o dedo pelo maxilar dele.
- És bastante bonito, sabes?
Ele sorriu.
Pensou: Está habituado a elogios das mulheres.
O táxi chegou à entrada do edifício. Era um sítio sem charme, um prédio de apartamentos do pós-guerra de fachada lisa, com um ar de decadência institucional. Ajudou-a a sair do táxi, conduziu-a por um pequeno lance de escadas até à entrada principal. Andava sobre a ponta dos pés - como Gabriel, pensou -, como se estivesse perpetuamente preparado para avançar ou atacar de súbito. Pôs-se a pensar se Gabriel os estaria a observar.
Tirou as chaves, pôs uma de parte para a porta da frente modelo Yale, reparou ela - e inseriu-a na fechadura. Conduziu-a por um pequeno átrio de linóleo em xadrez, a seguir por um lanço de escadas pouco iluminado. Pôs-se a pensar como iria ele avançar. Iria abrir uma garrafa de vinho, pôr a tocar música suave ou acender velas? Ou iria estar sem rodeios e agir como se estivesse a tratar de negócios? Se conversassem, talvez conseguisse saber alguma coisa acerca dele que pudesse ser útil a Gabriel. Decidiu que iria esticar a sedução por mais um bocadinho de tempo.
À porta do apartamento, ele utilizou uma segunda Yale para
destrancar a fechadura principal, depois uma chave mestra antiquada para o trinco. Três fechaduras, três chaves individuais. Nenhum problema.
Entraram no apartamento. A sala estava às escuras. Yusef fechou a porta. A seguir, beijou-a pela primeira vez.
Jacqueline disse:
- Quis que fizesses isso durante a noite toda. Tens uns lábios lindos.
- Quis fazer outras coisas durante a noite toda. Beijou-a de novo.
- Posso arranjar-te alguma coisa para beber?
- Um copo de vinho era óptimo, se tiveres algum.
- Acho que sim. Deixa-me confirmar.
Acendeu uma luz, um candeeiro de pé, barato, com o feixe focado no tecto, e deixou as chaves numa mesa pequena junto à porta. Jacqueline pôs a mala ao lado delas. O treino de Shamron veio ao de cima. Examinou rapidamente a sala. Era o apartamento de um revolucionário intelectual, um centro de operações esparso e utilitário. Três tapetes orientais baratos cobriam o chão de linóleo. A mesa de café era uma peça quadrada e grande de madeira prensada, apoiada em quatro vigas de madeira cor de cinza e rodeada por um quarteto de cadeiras desirmanadas. No centro da mesa, estava um cinzeiro do tamanho de um prato de mesa, que continha beatas de várias marcas. Algumas estavam esborratadas com batom, dois tons diferentes. À volta do cinzeiro estava meia dúzia de pequenas chávenas, manchadas, como padrões de teste Rorschach, com borras de café turco.
Voltou a atenção para as paredes. Havia cartazes de Bob Marley e de Che Guevara, outro de Tommy Smith e John Carlos a erguerem os punhos dentro de luvas nas Olimpíadas da Cidade do México de 1968. Havia uma bandeira palestiniana preta, verde e vermelha e uma gravura de uma pintura, representando uma rapariga de aldeia a receber um banho de outras mulheres na noite anterior ao casamento. Reconheceu a pintura como sendo uma das de Ibrahim Ghannan. Por todo o lado, havia livros, alguns amontoados, alguns em pilhas, como se estivessem à espera de gasolina e de um fósforo
- volumes da história do Médio Oriente, histórias das guerras do Médio Oriente, biografias de Arafat, Sadat, Ben-Gurion, Rabin.
- Lês bastante - disse Jacqueline.
- É um vício meu.
- De onde és, se não te importas que pergunte?
- Palestina.
Veio até à sala, vindo da cozinha, e entregou-lhe um copo de vinho tinto. Depois estendeu a mão.
- Vem comigo.
Gabriel estava parado à janela. O microfone laser de Karp apanhava trechos da conversa deles, mas era como ouvir um disco de vinil que saltava. Quando passaram para o quarto para fazer amor, Gabriel disse:
- Desliga-o.
- Mas, Gabe, agora é que está a chegar à melhor parte.
- Já disse, desliga-o.
Karp baixou o microfone e apagou-o.
- Tenho fome. vou dar uma volta.
- Vai.
- Estás bem, Gabe?
- Estou óptimo.
- Tens a certeza disso?
- Vai.
Uma hora mais tarde, Yusef saiu da cama, andou até à janela e abriu as cortinas. O candeeiro amarelo da rua transformara-lhe a pele verde-azeitona na cor de papel de jornal antigo. Jacqueline estava deitada de barriga para baixo. Colocou o queixo em cima das mãos e olhou para ele, os olhos a seguir a linha que vinha dos ombros muito direitos até à cintura compacta e musculada. Pensou se Gabriel também estaria a olhar para ele.
Yusef estava a observar a rua - a olhar para carros estacionados, a inspeccionar o edifício em frente. Virou o corpo ligeiramente e ela pôde ver-lhe uma cicatriz larga e lisa nas costas, que se estendia
entre a omoplata direita e o centro da coluna vertebral. Sentira-a enquanto estavam a fazer amor. Era dura e grossa, como lixa. Como a pele de um tubarão.
Fora um amante meigo, meticuloso nas tentativas de lhe dar prazer. Quando estava dentro dela, tinha fechado os olhos e imaginado que era Gabriel, e quando sentiu a cicatriz entre as omoplatas imaginou que a cicatriz era de Gabriel, uma relíquia de uma das suas missões secretas, e desejou poder passar a mão por cima dela e fazê-la desaparecer.
- Para onde é que estás a olhar? - perguntou.
Yusef voltou-se e cruzou os braços no peito.
- Já alguma vez tinhas dormido com um árabe, Dominique? Pensou: E estás a mudar de assunto.
Respondeu:
- És o meu primeiro. Talvez tenha de o fazer outra vez um dia destes.
- Não enquanto estiveres a dormir comigo.
- Agora estamos a dormir juntos?
- Isso é contigo.
- Muito bem, agora estamos oficialmente a dormir juntos. Virou-se de costas, olhou para a luz da rua a cair-lhe sobre
o corpo, imaginou que era o olhar de Gabriel.
- Achas que nos devíamos ficar a conhecer um bocadinho melhor, agora que estamos oficialmente a dormir juntos?
Sorriu e respondeu:
- O que é que queres saber?
- Quero saber o que é que aconteceu às tuas costas? Voltou-se e olhou para fora da janela.
Ela estudou o despertador digital em cima da mesa-de-cabeceira.
- Há algumas coisas no meu passado que podes achar deságradáveis - disse.
- Coisas más que fizeste?
- Não, Dominique. Coisas más que me fizeram.
- Como é que ficaste com essa cicatriz nas costas? Virou-se e olhou para ela.
- Cresci num campo de refugiados no Líbano, o campo de
Shatila no Sul de Beirute. Talvez tenhas ouvido falar de Shatila, Dominique.
- Claro que ouvi falar de Shatila.
- A OLP tinha escritórios no campo de Shatila, por isso quando os Israelitas invadiram o Líbano em oitenta e dois, bombardearam o campo dia e noite. Um míssil disparado por um caça israelita acertou no prédio onde a nossa família vivia. O prédio desabou em cima de mim e um pedaço de cimento rasgou-me a pele das costas.
- Porque é que estavas no Líbano?
- Porque foi aí que a minha família foi parar depois de ter sido expulsa das suas casas ancestrais da Palestina pelos judeus.
Jacqueline olhou para o tecto. Yusef perguntou:
- Porque é que afastas o olhar de mim quando te conto isso?
- Conheci uns israelitas em tempos num clube em Paris. Estavam a debater este assunto com um grupo de estudantes franceses. Disseram que os judeus não tiveram de expulsar os Árabes da Palestina porque os Árabes se foram embora de livre vontade.
Yusef riu-se e abanou a cabeça.
- Receio que tenhas sido vítima do maior mito sionista, Dominique. O mito de que os Palestinianos iriam trocar voluntariamente a terra onde viviam há séculos pelo exílio e por campos de refugiados. O mito de que os governos árabes disseram aos Palestinianos para se irem embora.
- Não é verdade?
- Parece-te que pudesse ser verdade?
- Na verdade, não.
- Então confia nos teus instintos, Dominique. Se não soa plausível, provavelmente não é. Queres saber a verdade acerca do que os judeus fizeram ao meu povo? Queres saber porque é que a minha família foi parar a um campo de refugiados em Beirute?
- Quero saber coisas de ti.
- Sou palestiniano. É impossível separar-me da história do meu povo.
- Conta-me - respondeu.
- Já agora, que clube em Paris?
- O quê?
- O clube onde conheceste os israelitas. Qual foi? ?
- Não me consigo lembrar. Já foi há tanto tempo!
- Tenta lembrar-te, por favor. É importante.
- Chamamos-lhe al-Nakba. A Catástrofe.
Tinha vestido umas calças de pijama de algodão largas e uma camisola da Universidade de Londres, como se de repente estivesse consciente da sua nudez. Deu ajacqueline uma camisa azul. Era tácito, mas o significado era claro: não se pode discutir algo tão sagrado como al-Nakba num estado despido e pós-coito. Jacqueline estava sentada no meio da cama, as pernas compridas cruzadas à sua frente, enquanto Yusef andava de um lado para o outro.
- Quando as Nações Unidas apresentaram o plano para dividir a Palestina em dois estados, os judeus aperceberam-se de que tinham um problema grave. Os sionistas tinham vindo à Palestina para construir um estado judeu, mas praticamente metade das pessoas no novo estado dividido seria árabe. Os judeus aceitaram o plano de divisão, sabendo muito bem que seria inaceitável para os Árabes. E porque deviam os Árabes aceitá-lo? Os judeus detinham sete por cento da Palestina, mas estava a ser-lhes entregue cinquenta por cento do país, incluindo a terra mais fértil, ao longo da planície costeira e da Galileia Superior. Estás a ouvir, Dominique?
- Estou a ouvir.
- Os judeus engendraram um plano para retirar os Árabes da terra destinada ao Estado judeu. Até tinham um nome para ele: Plano Dalet. E activaram-no no momento em que os Árabes atacaram. O plano era expulsar os Árabes, escorraçá-los, como disse o Ben-Gurion. Limpar a Palestina judia dos Árabes. Sim, limpar. Não uso essa palavra de ânimo leve, Dominique. A palavra não é minha. É a mesmíssima palavra que os sionistas usaram para descrever o plano para expulsar o meu povo da Palestina.
- Até parece que se portaram como os sérvios.
- E portaram. Já alguma vez ouviste falar de um sítio chamado Deir Yassin?
- Não - respondeu.
- A tua visão do conflito no Médio Oriente foi moldada pelos sionistas, por isso não me surpreende nada que nunca tenhas ouvido falar de Deir Yassin.
- Fala-me sobre Deir Yassin.
- Era uma aldeia árabe às portas de Jerusalém, na estrada para a costa e Telavive. Já não está lá. Há uma vila judia onde Deir Yassin costumava estar. Chama-se Kfar Sha'ul.
Yusef fechou os olhos por um momento, como se a parte seguinte fosse demasiado dolorosa para falar sequer nela. Quando retomou a conversa, falava com a calma neutra de um sobrevivente a recordar os últimos acontecimentos mundanos da vida de um ente querido.
- Os anciãos da aldeia tinham chegado a um entendimento com os sionistas, por isso os quatrocentos árabes que viviam em Deir Yassin sentiam-se seguros. Tinha-lhes sido prometido pelos sionistas que a aldeia não seria atacada. Mas, às quatro da tarde de uma manhã de Abril, os membros do Irgun e do Gangue Stern foram até Deir Yassin. Pelo meio-dia, dois terços dos habitantes da aldeia tinham sido chacinados. Os judeus juntaram os homens e os rapazes, encostaram-nos a um muro e começaram a disparar. Foram de casa em casa e assassinaram as mulheres e as crianças. Dinamitaram as casas. Dispararam sobre uma mulher que estava grávida de nove meses e a seguir abriram-lhe o ventre e arrancaram o filho. Uma mulher avançou para tentar salvar a vida do bebé. Um judeu disparou sobre a mulher e matou-a.
- Não acredito que coisas dessas aconteceram na Palestina.
- Claro que aconteceram, Dominique. Depois do massacre, a palavra foi-se espalhando rapidamente pelas aldeias árabes. Os judeus aproveitaram a situação ao máximo. Montaram altifalantes em carrinhas e emitiram avisos. Disseram aos Árabes para se irem embora, ou haveria outra Deir Yassin. Inventaram histórias de surtos de tifo e cólera. Fizeram emissões de rádio clandestinas em árabe, a fazerem-se passar por líderes árabes, e incitaram os Palestinianos a fugir para evitar um banho de sangue. Esta é a verdadeira razão pela qual os Palestinianos se foram embora.
- Não fazia ideia - disse.
- A minha família veio da aldeia de Lydda. Lydda, como Deir Yassin, já não existe. Agora é Lod. É onde os sionistas puseram a porra do seu aeroporto. Depois de uma batalha com os defensores árabes, os judeus entraram em Lydda. Deu-se o pânico completo. Duzentos e cinquenta aldeões árabes foram mortos no fogo cruzado. Depois da aldeia ter sido capturada, os comandantes perguntaram ao Ben-Gurion o que é que se devia fazer com os Árabes. Respondeu: Escorracem-nos! As ordens de expulsão propriamente ditas foram assinadas pelo Yitzhak Rabin. À minha família foram dados dez minutos para arrumar alguns pertences, tantos quantos conseguissem levar numa única mala, e mandaram-nos ir embora. Começaram a andar. Os judeus riram-se deles. Cuspiram-lhes em cima. É essa a verdade sobre o que aconteceu na Palestina. É isso quem eu sou. É por isso que os odeio.
Jacqueline, no entanto, estava a pensar não nos árabes de Lydda mas nos judeus de Marselha - em Maurice e Rachel Halévy e na noite em que os gendarmes de Vichy os foram buscar.
- Estás a tremer - disse ele.
- A tua história perturbou-me. Volta para a cama. Quero abraçar-te.
Arrastou-se de volta para a cama, esticou o corpo suavemente por cima do dela e beijou-lhe a boca.
- Fim da palestra - disse. - Retomamos amanhã, se estiveres interessada.
- Estou interessada, muito interessada, na verdade.
- Acreditas nas coisas que te contei, ou achas que sou só mais outro árabe fanático que quer ver os judeus expulsos para o mar?
- Acredito em ti, Yusef.
- Gostas de poesia?
- Adoro poesia. !
- A poesia é muito importante para o povo palestiniano. A nossa poesia permite-nos expressar o nosso sofrimento. Dá-nos a coragem para enfrentar o nosso passado. Um poeta chamado Mu'in Basisu é um dos meus preferidos.
Beijou-a de novo e começou a recitar:
E após a cheia, ninguém deste povo restou Esta terra, apenas uma corda e um poste Ninguém a não ser corpos nus a flutuar nos Iodos Partidas de familiares e filhos
Ninguém a não ser corpos inchados ,
Os seus números desconhecidos
Aqui os destroços, aqui a morte, aqui os afogados em águas profundas : Migalhas de carcaças de pão ainda presas na minha mão. ?
Ela disse:
- É lindo.
- Soa melhor em árabe. Parou por um momento, depois perguntou:
- Falas alguma coisa de árabe, Dominique?
- Claro que não, porque é que perguntas?
- Era só para saber.
De manhã, Yusef levou-lhe o café à cama. Jacqueline sentou-se e bebeu-o muito depressa. Precisava do choque da cafeína para a ajudar a pensar. Não tinha dormido. Por várias vezes, pusera a hipótese de se escapulir da cama, mas Yusef tinha um sono leve e receou que pudesse acordar. Se a descobrisse a fazer moldes das chaves com um instrumento especial disfarçado de estojo de maquilhagem, não haveria maneira de se explicar. Partiria do princípio de que era uma agente israelita. Podia muito bem matá-la. Seria melhor sair do apartamento sem os moldes do que ser apanhada. Queria fazê-lo como deve ser - para o bem de Gabriel e de si própria.
Olhou para o relógio. Já eram quase nove horas.
- Peço desculpa por te ter deixado dormir tanto tempo disse Yusef.
- Não faz mal. Estava cansada.
- Foi um bom cansaço, sim? Beijou-o e respondeu:
- Foi um cansaço muito bom.
- Telefona ao teu patrão e diz-lhe que vais tirar o dia para fazer amor com um palestiniano chamado Yusef al-Tawfiki.
- Não me parece que veja onde está a graça disso.
- Este homem nunca quis passar o dia a fazer amor com uma mulher?
- Por acaso, não sei bem.
- vou tomar um duche. Se quiseres, podes acompanhar-me.
- Assim nunca mais chegarei ao trabalho.
- Era essa a minha intenção.
- Vai para o chuveiro. Há mais café?
- Na cozinha.
Yusef entrou na casa de banho e deixou a porta entreaberta. Jacqueline deixou-se ficar na cama até o ouvir entrar no chuveiro; depois escapuliu-se debaixo dos lençóis e caminhou silenciosamente até à cozinha. Serviu-se de uma chávena de café e foi atéà sala de estar. Colocou o café em cima da mesa, junto às chaves de Yusef, e sentou-se. O chuveiro ainda estava a correr.
Enfiou a mão na mala e tirou o estojo de maquilhagem. Abriu -o, com um estalido, e deu uma vista de olhos lá dentro. Estava cheio de um material de cerâmica macio. Tudo o que tinha de fazer era colocar uma chave no material e fechar a tampa com força O estojo artificial produziria uma impressão perfeita.
As mãos tremiam-lhe. Pegou nas chaves com cuidado, para impedir que fizessem qualquer som, e pôs de parte a primeira: o modelo Y ale que ele utilizara para a entrada da rua. Colocou-a dentro do estojo, fechou a tampa e apertou-a. Abriu o estojo e tirou a chave. A impressão era sem falhas. Repetiu o processo duas vezes mais, primeiro com a segunda chave Yale, a seguir com a chave mestra antiquada. Tinha três impressões perfeitas.
Fechou a tampa, colocou as chaves exactamente onde Yusef as tinha deixado, depois voltou a pôr o estojo de maquilhagem na mala.
- O que é que estás a fazer aí?
Olhou para cima, assustada, e recompôs-se rapidamente. Yusef estava parado no centro do soalho, o corpo molhado enrolado numa toalha de banho bege. Há quanto tempo estaria ali parado?
Quanto teria visto? Poça, Jacqueline! Porque é que não estavas a vigiar aporta?
Ela respondeu:
- Estou à procura dos meus cigarros. Viste-os? Apontou na direcção da casa de banho.
- Deixaste-os lá dentro.
- Oh, sim. Meu Deus, às vezes penso que estou a ficar maluca.
- Era só isso que estavas a fazer? Só a procurar cigarros?
- Que mais havia de estar a fazer?
Esticou os braços para indicar a esqualidez austera da sala de estar.
- Achas que estou a tentar fugir com os teus objectos valiosos? i
Levantou-se e pegou na mala.
- Já não precisas mais da casa de banho?
- Não, mas porque é que estás a levar a mala para a casa de banho?
Pensou: Ele suspeita de alguma coisa. De repente, queria sair do apartamento tão depressa quanto possível. Depois pensou: Devia estar ofendida com perguntas assim.
- Acho que é capaz de me estar a vir o período - respondeu de forma gelada. - Não me parece que goste da maneira como estás a agir. É esta a maneira como todos os árabes tratam as amantes na manhã seguinte?
Passou por ele rapidamente e entrou no quarto. Estava surpreendida com o quão convincente tinha conseguido soar. As mãos tremiam-lhe enquanto juntava as roupas e entrava na casa de banho. Pôs a água a correr no lavatório enquanto se vestia. A seguir, abriu a porta e saiu. Yusef estava na sala de estar. Vestia calças de ganga desbotadas, uma camisola, mocassins sem meias.
Disse:
- vou chamar-te um táxi.
- Não te incomodes. Eu descubro o meu caminho para casa.
- Deixa-me acompanhar-te até lá abaixo.
- Saio sozinha, obrigada.
- O que é que se passa contigo? Porque é que estás a agir desta maneira?
- Porque não gosto da maneira como estavas a falar comigo. Passei um bom bocado, até agora. Talvez te veja por aí um dia destes.
Abriu a porta e entrou no corredor. Yusef seguiu-a. Desceu as escadas depressa, depois o átrio.
Na entrada principal, ele agarrou-lhe o braço.
- Desculpa, Dominique. Às vezes, sou um pouco paranóico, só isso. Também serias paranóica se tivesses vivido a minha vida. Não quis dizer nada com isso. Como é que te posso compensar?
Conseguiu sorrir, apesar de o coração lhe estar a bater com toda a força no interior das costelas. Não fazia ideia do que fazer. Tinha as impressões, mas havia a hipótese de ele a ter visto a fazê-las
- ou, pelo menos, de suspeitar que ela tinha feito algo. Se fosse culpada, o impulso natural seria o de rejeitar o convite. Decidiu aceitar a oferta. Se Gabriel julgasse que era um erro, podia inventar uma desculpa e cancelar.
Respondeu:
- Podes levar-me a jantar fora como deve ser.
- A que horas?
- Vai ter comigo à galeria às seis e meia.
- Perfeito.
- E não te atrases. Não suporto homens que se atrasam. Depois beijou-o e saiu.
MAIDA VALE, LONDRES
Quando Jacqueline regressou ao seu apartamento, Gabriel estava sentado no sofá a beber café.
- Como é que correu?
- Foi um encanto. Traz-me um pouco desse café, está bem? Foi para a casa de banho, fechou a porta e começou a encher
a banheira. Depois despiu a roupa e enfiou-se debaixo da água quente. Um momento mais tarde, Gabriel bateu à porta.
- Entra.
Entrou na casa de banho. Pareceu surpreendido por ela já estar na banheira. Desviou o olhar, à procura de um sítio para pôr o café.
- Como é que te sentes? - perguntou, os olhos desviados.
- Como é que te sentes depois de matar alguém?
- Sinto-me sempre sujo.
Jacqueline pegou numa mão-cheia de água e deixou-a escorrer sobre a cara.
Gabriel disse:
- Preciso de te fazer umas perguntas.
- Estou pronta quando estiveres.
- Pode esperar até estares vestida.
- Já vivemos juntos como marido e mulher, Gabriel. Até já nos comportámos como marido e mulher.
- Isso foi diferente.
- Porque é que foi diferente?
- Porque era uma parte necessária da operação.
- Dormirmos na mesma cama ou fazermos amor?
- Jacqueline, por favor.
- Talvez não queiras olhar para mim porque acabei de dormir com o Yusef.
Gabriel fitou-a, zangado, e saiu. Jacqueline deu-se ao luxo de um curto sorriso e a seguir deixou-se escorregar para debaixo da água.
- O telefone é feito pela British Telecom.
Estava sentada na cadeira de couro estalado, o corpo tapado por um grosso roupão branco. Debitou o nome e o número do modelo enquanto passava uma toalha pelo cabelo húmido.
- Não há telefone no quarto, mas tem um rádio-despertador.
- De que tipo?
- Um Sony.
Deu-lhe o número do modelo.
- Vamos voltar ao telefone por um momento - disse Gabriel. - Algumas marcas identificadoras? Algumas etiquetas com preços ou autocolantes com números de telefone? Alguma coisa que nos trouxesse um problema?
- Gosta de se ver como um poeta e um historiador. Escreve o tempo todo. Parece que marca os números do telefone com a ponta de uma caneta. O mostrador está coberto de marcas.
- De que cor?
- Azul e vermelha.
- Que tipo de caneta?
- O que é que queres dizer? O tipo de caneta com que escreves.!
Gabriel suspirou e olhou, de modo cansado, para o tecto.
- É uma esferográfica? É uma caneta de tinta permanente? Talvez uma caneta de feltro?
- De feltro, acho.
- Achas.
- De feltro. Tenho a certeza.
- Muito bem - disse, como se estivesse a falar com uma criança. - Agora, é fina, média ou grossa?
Ergueu devagar o longo e esguio dedo do meio da mão direita e agitou-o para Gabriel.
- vou considerar isso como querendo dizer grossa. Então e as chaves?
Vasculhou dentro da mala e atirou-lhe o estojo de maquilhagem prateado. Gabriel carregou com o polegar na mola, levantou a tampa e olhou para as impressões.
Ela disse:
- Podemos ter um problema.
- Conta-mo.
Recordou-lhe a sequência inteira de acontecimentos, depois acrescentou com cautela:
- Quer voltar a ver-me.
- Quando?
- Hoje à noite, às seis e meia. Vai encontrar-se comigo na galeria.
- Aceitaste?
- Sim, mas posso...
- Não - disse Gabriel, interrompendo-a. - Isso é perfeito. Quero que te encontres com ele e o mantenhas entretido o tempo suficiente para eu poder entrar no apartamento e colocar as escutas.
- E depois?
- Depois ficará feito.
Gabriel saiu do prédio por uma porta de serviço nas traseiras. Escapuliu-se pelo pátio, trepou um muro de cimento cinzento e saltou para uma viela cheia de latas de cerveja e pedaços de vidro partido. A seguir, caminhou até à estação de metro de Maida Vale. Sentia-se inquieto. Não gostava do facto de Yusef ter pedido para ver Jacqueline uma segunda vez.
Apanhou o metro até Covent Garden. O bodel estava à espera na fila para o café no mercado. Era o mesmo rapaz que recebera o relatório de campo de Gabriel na estação de Waterloo. Uma pasta de cabedal preta e macia estava-lhe pendurada nas costas por uma alça, um bolso lateral virado para fora. Gabriel tinha posto o estojo prateado que continha as impressões das chaves de Yusef
num envelope castanho - de tamanho normal, simples, sem marcas. Sentou-se a uma mesa a beber chá, os olhos a inspeccionar metodicamente a multidão.
O bodel pagou o café e começou a afastar-se. Gabriel levantou-se e seguiu-o, abrindo caminho pelo mercado apinhado, até ficar directamente atrás dele. Gabriel deu um encontrão no bodel enquanto este dava o primeiro gole no café, entornando um pouco na parte da frente do casaco. Pediu desculpa e afastou-se, o envelope castanho e simples agora seguramente instalado no bolso de fora da pasta do bodel.
Gabriel serpenteou por St. Giles, ao longo de New Oxford Street, a seguir por Tottenham Court Road acima, onde havia várias lojas especializadas em artigos electrónicos. Dez minutos mais tarde, após visitar duas das lojas, estava num táxi, a atravessar Londres, de volta ao posto de escuta em Sussex Gardens. No banco, ao seu lado, estava um saco com quatro artigos: um rádio-despertador da Sony, um telefone da British Telecom e duas canetas de feltro, uma vermelha, outra azul, ambas grossas.
Karp estava sentado à mesa da sala de jantar, a estudar os componentes internos expostos do rádio-despertador e do telefone com uma lupa iluminada. Enquanto Gabriel observava Karp a trabalhar, pensava no estúdio na Cornualha e imaginava que estava a observar a superfície do Vecellio pelo microscópio Wild.
Karp disse:
- Chamamos-lhe um microfone quente. O teu grupo chama-lhe um vidro, se não me engano.
- Estás certo, como sempre.
- É um equipamentozinho maravilhoso, cobertura do apartamento e do telefone com o mesmo aparelho. Dois pelo preço de um, pode dizer-se. E nunca tens de te preocupar em substituir a bateria já que o transmissor recebe a energia a partir do telefone.
Karp parou por um momento para se concentrar no trabalho.
- Quando estes entrarem, a operação de vigilância fica basicamente em piloto automático. Os gravadores de cassetes são activados por voz. Só vão andar se estiver a vir alguma coisa da fonte. Se
precisares de sair do apartamento por algum motivo, podes verificar as cassetes quando voltares. O meu trabalho está basicamente terminado.
- vou ter saudades tuas, Randy.
- Gabe, estou tocado.
- Eu sei.
- Aquilo foi um belo trabalho. Enviar assim a rapariga. Os arrombamentos podem complicar-se. É sempre melhor apanhar as chaves e o telefone antes de tratar da escuta.
Karp voltou a colocar a cobertura do telefone e passou-o a Gabriel.
- É a tua vez.
Gabriel, o restaurador, pegou nas canetas e começou a fazer marcas no mostrador. Nessa manhã, Kemel Azouri estava na sede da Schloss em Zurique, numa reunião com o pessoal das vendas, quando recebeu uma mensagem de texto no pager: Senhor Taylor desejava falar-lhe sobre um problema com o envio da última quinta-feira. Kemel encurtou a reunião, apanhou um táxi para Gare du Nord e embarcou no comboio Eurostar seguinte para Londres. O momento da mensagem intrigava-o. Senhor Taylor era o nome de código para um agente em Londres. Um problema com o envio era uma frase de código para urgente. A utilização da palavra quinta-feira significava que o agente queria encontrar-se em Cheyne Walk, às quatro horas e quinze. Kemel caminhou a passos largos pelo átrio das chegadas em Waterloo e entrou num táxi na plataforma. Um momento mais tarde, estava a atravessar a toda a velocidade Westminster Bridge.
Disse ao taxista para o deixar no Royal Hospital Chelsea. Andou ao longo do rio, através da escuridão que aumentava, e esperou ao fundo de Battersea Bridge.
Verificou o relógio: quatro e doze.
Acendeu um cigarro e esperou.
Três minutos mais tarde, às quatro e quinze em ponto, um jovem bem-parecido, num casaco preto de cabedal, apareceu a seu
lado.
- Senhor Taylor, presumo.
- Vamos dar uma volta.
- Peço desculpa por te arrastar até Londres, Kemel, mas querias ser informado de todas as potenciais abordagens.
- Qual era o nome dela?
- Dava pelo nome de Dominique Bonard.
- Francesa.
- Diz que é.
- Suspeitas que ela esteja a mentir.
- Não sei bem. Não posso ter a certeza, mas é possível que estivesse a vasculhar as minhas coisas esta manhã.
- Tens sido seguido nos últimos tempos?
- Não, que eu saiba.
- De onde é que é?
- Diz que é de Paris.
- O que é que está a fazer em Londres? Trabalha numa galeria de arte.
- Qual?
- Um sítio chamado Isherwood Fine Arts, em St. James's.
- Em que ponto é que estás com essa mulher?
- Fiquei de a voltar a ver daqui a duas horas.
- Não deixes de manter o encontro com ela. Na verdade, gostava que os dois desenvolvessem uma relação muito próxima. Achas que consegues dar conta do recado?
- Cá me arranjarei.
- vou dando notícias.
ST. JAMES'S, LONDRES
A campainha da porta gemeu cedo naquela noite, enquanto Julian Isherwood ia avançando por uma pilha de contas e bebericava um bom uísque. Deixou-se ficar à secretária - afinal, a rapariga tinha obrigação de ir à porta - mas, quando a campainha uivou uma segunda vez, olhou para cima.
- Dominique, está alguém à porta. Importa-se? Dominique?
Depois lembrou-se de que lhe tinha dito para descer até ao depósito, para voltar a deixar lá uma série de pinturas. Levantou-se, dirigiu-se até à sala de espera com enfado e espreitou o monitor de segurança. Lá fora, parado, estava um jovem. De tipo mediterrânico, bem-parecido. Carregou no botão do intercomunicador.
- Peço desculpa, estamos fechados. Como pode ver, expomos apenas por marcação. Porque é que não liga de manhã? A minha secretária terá todo o gosto em reservar uma hora para si.
- Na verdade, estou aqui para ver a sua secretária. Chamo-me Yusef.
Jacqueline saiu do elevador e entrou na antessala. Isherwood disse:
- Está um sujeito chamado Yusef lá em baixo. Diz que veio vê-la.
Jacqueline olhou para o monitor. Isherwood perguntou:
- Conhece-o?
Ela carregou na campainha que abria o fecho da porta.
- Sim, conheço-o.
- Quem é?
- Um amigo. Um bom amigo.
O maxilar de Isherwood caiu e os olhos esbugalharam-se.
Jacqueline disse:
- Se vai ficar pouco à vontade, talvez seja melhor sair.
- Sim, acho que isso é o mais sensato.
Voltou para o escritório e vestiu o casaco. Quando regressou à sala de espera, o árabe estava a dar um beijo na cara a Jacqueline. Ela disse:
- Yusef, gostava de te apresentar o senhor Isherwood. É o dono da galeria.
- É um prazer conhecê-lo, Yusef. Adoraria ficar para conversar, mas receio estar atrasado para um encontro. Por isso, se me dá licença, tenho mesmo de me ir embora.
- Importa-se que mostre a galeria ao Yusef?
- Claro que não. Encantado. Não se esqueça de fechar tudo à chave, Dominique, querida. Obrigado. Até amanhã de manhã. Um prazer conhecê-lo, Yusef. Adeus.
Isherwood desceu as escadas com dificuldade e apressou-se a atravessar Mason's Yard, para chegar ao santuário do bar em Green's. Pediu um uísque e bebeu-o muito depressa, interrogando-se durante todo esse tempo se seria mesmo possível que a rapariga de Gabriel lhe tivesse trazido um terrorista para a galeria.
Gabriel estava sentado num banco em Victoria Embankment, a observar o rio cinzento a mover-se pesadamente por baixo de Blackfriar's Bridge, segurando um exemplar do Daily Telegraph. Na página treze, escondido por trás de um anúncio, estava um relatório de campo em código para Shamron. O bodel apareceu dez minutos mais tarde. Passou por Gabriel e subiu os degraus em direcção à estação de metro de Temple. Tinha um chapéu, o que significava que não estava a ser seguido e que era seguro continuar. Gabriel seguiu-o para dentro da estação, depois pelas escadas rolantes até à plataforma. Quando o metro chegou, os dois homens entraram na mesma carruagem apinhada. Foram forçados a ficar em pé, lado a lado,
o que tornou a troca - as chaves de Yusef pelo jornal que continha o relatório de campo de Gabriel - praticamente impossível de detectar. Gabriel saiu na estação de Paddington e voltou para o posto de escuta.
Jacqueline disse:
- Há uma coisa que te quero mostrar. Levou Yusef para dentro do elevador e subiram em silêncio.
Quando a porta se abriu, pegou-lhe na mão e guiou-o até ao centro da galeria escurecida. Disse:
- Fecha os olhos.
- Não gosto de jogos destes.
- Fecha os olhos. Depois acrescentou maliciosamente:
- Garanto que vai valer a pena.
Fechou os olhos. Jacqueline atravessou a sala, até ao painel de controlo da iluminação, e pôs a mão sobre o interruptor principal.
- Agora, abre-os.
Aumentou devagar a intensidade das luzes. A boca de Yusef descaiu ligeiramente, enquanto inspeccionava os quadros em redor.
- É lindo.
- É o meu sítio preferido em todo o mundo.
Yusef avançou alguns passos e parou à frente de um dos quadros.
- Meu Deus, isto é mesmo um Claude?
- Sim, é. Na verdade, essa é uma das suas primeiras representações de um rio. E muito valiosa. Repara na maneira como pintou o sol. O Claude foi um dos primeiros artistas a utilizar verdadeiramente o sol como a fonte de luz para uma composição inteira.
- O Claude nasceu em França, mas viveu quase toda a vida em Veneza, se não me engano.
- Por acaso, enganas-te. O Claude viveu e trabalhou em Roma, num pequeno apartamento na Via Margutta, perto da Piazza di Spagna. Tornou-se um dos pintores de paisagens mais procurados de toda a Itália.
Yusef virou as costas ao quadro e olhou para ela. - Sabes bastante sobre pintura.
- Por acaso, sei muito pouco, mas trabalho numa galeria de
arte.
Yusef perguntou:
- Há quanto tempo é que trabalhas aqui?
- Cerca de cinco meses.
- Cerca de cinco meses? O que é que isso quer dizer ao certo? Quer dizer quatro meses ou seis meses?
- Quer dizer quase cinco meses. E porque é que queres saber? Porque é que isto é tão importante para ti?
- Dominique, se esta relação for para continuar, tem de haver honestidade total entre nós.
- Relação? Pensava que estávamos só a dormir juntos.
- Talvez possa haver mais entre nós, mas só se não houver mentiras. Ou segredos.
- Honestidade total? Tens a certeza disso? Pode haver alguma vez honestidade total entre duas pessoas? Isso seria saudável? Não é melhor manter algumas coisas em segredo? Contaste-me todos os teus segredos, Yusef?
Ignorou a pergunta.
- Diz-me, Dominique - perguntou-, estás apaixonada por outro homem?
- Não, não estou apaixonada por outro homem.
- Estás a dizer-me a verdade?
- É claro que estou.
- Não me parece.
- Porque é que dizes isso?
- Por causa da maneira como fizeste amor comigo ontem à noite.
- Já fizeste amor com muitas mulheres? És um perito nestes assuntos?
Ele abriu os lábios num sorriso modesto. Jacqueline disse:
- O que tem a minha maneira de fazer amor contigo que te deixou convencido de que estou apaixonada por outro homem?
- Fechaste os olhos enquanto estava dentro de ti. Fechaste os olhos como se não quisesses olhar para mim. Fechaste os olhos como se estivesses a pensar noutra pessoa.
- E se porventura admitisse estar apaixonada por outro homem? O que sentirias em relação a isso? Mudaria alguma coisa entre nós?
- Talvez me fizesse gostar ainda mais de ti.
- Gosto de fechar os olhos quando faço amor, Yusef. Não significa nada.
- Tens alguns segredos que não me tenhas contado?
- Nada de importante. : Sorriu.
- Vais levar-me a jantar fora?
- Por acaso, tive uma ideia melhor. Vamos para o meu apartamento. vou fazer o jantar.
Jacqueline sentiu uma pontada de pânico. Ele pareceu sentir o seu desconforto pois inclinou a cabeça e perguntou:
- Passa-se alguma coisa, Dominique?
- Não, nada - respondeu, conseguindo fazer um sorriso fraco. - Jantar em tua casa parece-me magnífico.
Gabriel atravessou a rua, uma mochila de náilon ao ombro. Lá dentro, estavam as réplicas do telefone e do rádio-despertador. Olhou para cima, em direcção ao posto de escuta. Karp tinha acendido a luz, um sinal que significava que era seguro continuar. Planearam fazer todas as comunicações com sinais de luzes, apesar de Gabriel trazer um telemóvel para o caso de uma emergência.
Subiu os degraus do prédio de Yusef e tirou o molho de réplicas das chaves do bolso. Escolheu a chave para a porta da frente, enfiou-a na fechadura, rodou. Ficou presa. Gabriel praguejou em voz baixa. Mexeu-a para trás e para a frente, tentou de novo. Desta vez, a fechadura abriu.
Uma vez lá dentro, atravessou o átrio sem hesitação. Era uma doutrina que lhe tinha sido martelada por Shamron durante a operação Setembro Negro: ataca com força e rápido, não te preocupes por fazer um pouco de barulho, afasta-te rapidamente. Após o seu
primeiro trabalho, o assassinato do líder do Setembro Negro em Roma, Gabriel estava a voar para Genebra menos de uma hora depois da execução. Esperava que esta operação corresse igualmente
bem.
Subiu as escadas e trepou rapidamente em direcção ao segundo andar. A descer na sua direcção, vinha um grupo de jovens indianos: dois rapazes, uma rapariga bonita. Ao passarem por ele no patamar do primeiro andar, Gabriel voltou a cara e fingiu estar a mexer no fecho éclair da mochila. Enquanto os indianos continuavam a descer as escadas, arriscou um olhar de soslaio por cima do ombro. Nenhum deles olhou para trás. Esperou um momento no patamar do segundo andar e escutou-os a atravessar o átrio e a sair pela porta da frente. A seguir, foi andando até ao apartamento de Yusef: o número 27.
Desta vez, as chaves funcionaram perfeitamente à primeira tentativa e, no espaço de segundos, Gabriel estava dentro do apartamento. Fechou a porta e deixou as luzes desligadas. Enfiou a mão na mochila e tirou uma pequena lanterna. Acendeu-a e passou rapidamente o feixe pelo chão à volta da porta, à procura de um sinal
- um pedaço de papel ou qualquer outro objecto pequeno de aspecto inocente que alertasse Yusef de que tinham entrado no apartamento. Não viu nada.
Voltou-se e fez reflectir rapidamente a luz pela sala. Resistiu ao impulso de vasculhar o apartamento de Yusef. Tinha-o observado à distância durante vários dias e desenvolvera uma curiosidade natural acerca do homem. Era asseado e arrumado, ou um preguiçoso? Que tipo de comida comia? Tinha dívidas? Consumia drogas? Usava roupa interior estranha? Gabriel queria vasculhar-lhe as gavetas e ler-lhe os documentos privados. Queria olhar-lhe para as roupas e a casa de banho. Queria ver qualquer coisa que pudesse completar o quadro - qualquer pista que o pudesse ajudar a compreender melhor como Yusef se encaixava na organização de Tariq. Mas agora não era a altura para esse tipo de inspecção. Demasiado arriscado, as hipóteses de detecção demasiado elevadas.
O feixe da lanterna fixou-se no telefone de Yusef. Gabriel atravessou a sala e ajoelhou-se ao seu lado. Tirou a réplica da mochila e comparou-a rapidamente com o original. Correspondência perfeita.
Jacqueline fizera bem o seu trabalho. Puxou o cabo do telefone de Yusef e trocou-o pela réplica. O fio que ligava o auscultador à base do telefone de Yusef estava gasto e esticado, o fio da réplica novinho em folha, por isso Gabriel trocou rapidamente os fios.
Olhou de relance pela janela, na direcção do posto de escuta. O sinal de luz de Karp continuava a brilhar. Era seguro continuar. Enfiou o telefone de Yusef na mochila enquanto passava da sala de estar para o quarto.
Ao passar pela cama, teve uma imagem perturbante do corpo nu de Jacqueline a contorcer-se em lençóis amarrotados. Pôs-se a pensar se a curiosidade acerca de Yusef seria puramente profissional. Ter-se-ia tornado também pessoal? Considerava agora o palestiniano uma espécie de rival?
Apercebeu-se de que estava a olhar fixamente para a cama vazia há vários segundos. Mas que diabo se passa contigo?
Voltou-se, concentrou a atenção no rádio-despertador. Antes de o desligar, verificou as definições. O alarme estava programado para disparar às 8 da manhã. Ligou o rádio: BBC Radio Five, volume baixo.
Desligou o rádio da ficha, arrancou o fio eléctrico da parede.
Nesse instante, o telemóvel tocou.
Levantou-se e olhou pela janela. O sinal de luz estava desligado.
Tinha ficado tão enervado com a imagem de Jacqueline na cama que se esquecera de ficar de olho no posto de escuta. Atendeu o telefone antes de poder tocar uma segunda vez.
Karp disse:
- Sai daí, foda-se! Temos companhia.
Gabriel atravessou o quarto em direcção à janela e olhou para fora.
Jacqueline e Yusef estavam a sair de um táxi. O que é que aconteceu ao jantar?
Voltou-se. Agora estava com um problema grave. Tinha desligado o rádio-despertador de Yusef da ficha. Tinha de o voltar a ligar e reprogramar antes de sair. Caso contrário, Yusef iria suspeitar que alguém tinha estado no apartamento.
Calculou o tempo que levariam a chegar até ao andar. Uns segundos
para abrir a entrada da frente... uns segundos mais para atravessar o átrio... cerca de quarenta e cinco segundos para subir as escadas e atravessar o corredor até à porta. Tinha quase um minuto.
Decidiu fazê-lo.
Tirou a réplica do rádio-despertador da mochila e ligou-a à ficha. As luzes vermelhas do mostrador piscavam 12:00... 12:00... 12:00... Quase que tinha vontade de rir com o absurdo da situação. O futuro da operação dependia de ser ou não capaz de programar um despertador suficientemente depressa para evitar ser apanhado. Ari Shamron tinha-o persuadido a regressar e a ajudar a restaurar a glória do Departamento, mas agora ia ser apenas mais outro fiasco!
Começou a carregar no botão das horas. Os números avançaram, mas os dedos tremiam-lhe da adrenalina e, sem querer, programou-o para as nove horas em vez das oito. Merda! Tinha de passar por todo o ciclo das vinte e quatro horas outra vez. À segunda vez, acertou. Programou a hora actual, depois passou para o rádio, sintonizou-o na Radio Five e ajustou o volume.
Não fazia ideia de quanto tempo demorara.
Agarrou subitamente na mochila, apagou a lanterna, passou do quarto para a porta da frente. Enquanto andava, puxou da Beretta, presa na cintura das calças, e enfiou-a no bolso da frente do casaco.
Parou quando chegou à porta da rua e encostou o ouvido. O corredor estava silencioso. Tinha de tentar escapar-se. Não havia nenhum sítio no apartamento onde se pudesse esconder e esperar poder escapulir-se razoavelmente outra vez. Abriu a porta e avançou para o corredor.
Conseguia ouvir o som de passos no vão da escada.
Colocou a mão à volta do punho da Beretta e começou a andar.
No táxi, Jacqueline forçara-se a acalmar. A sua tarefa tinha sido manter Yusef longe do apartamento, mas se tivesse discordado da sua ideia de jantar em casa, provavelmente ele teria ficado com suspeitas. As hipóteses de Gabriel estar no apartamento no momento em que regressassem eram quase nulas. O trabalho todo demoraria apenas uns minutos. As probabilidades de que já tivesse colocado as escutas e desaparecido eram boas. Havia uma outra, e mais
tranquilizadora, possibilidade: Gabriel contava que Yusef fosse ter consigo à galeria às seis e trinta e a seguir a levasse a jantar. Talvez não tivesse ainda entrado sequer no apartamento. Iria reparar que tinham voltado cedo e iria cancelar e tentar noutra altura.
Atravessaram o átrio, começaram a subir as escadas. Um homem passou por eles no patamar do segundo andar: Gabriel, a cabeça para baixo, a mochila ao ombro.
Jacqueline encolheu-se involuntariamente. Recuperou a compostura, mas não sem que antes Yusef reparasse que estava perturbada. Parou e observou Gabriel a descer as escadas, depois olhou para Jacqueline. Pegou-lhe no braço e levou-a até à porta. Quando entraram no apartamento, deu uma vista de olhos rápida pela sala, depois andou até à janela e observou Gabriel a afastar-se na escuridão.
LISBOA
Um denso nevoeiro atlântico subia pelo rio Tejo à medida que Kemel ia avançando pelas ruas apinhadas do Bairro Alto. Fim de tarde, os trabalhadores a fluir para casa vindos dos empregos, os bares e os cafés a encherem-se, os Lisboetas a fazer fila aos balcões das cervejarias para jantar. Kemel atravessou uma pequena praça: velhos a beber vinho tinto no ar fresco da noite; varinas, as vendedeiras de peixe, a lavar percas do mar nos seus cestos grandes. Passou a custo por uma viela estreita cheia de vendedores de roupas baratas e bugigangas. Um mendigo cego pediu-lhe dinheiro. Kemel deixou-lhe cair uns quantos escudos na caixa de madeira preta à volta do pescoço. Uma cigana ofereceu-se para lhe ler a sina. Kemel recusou educadamente e continuou a andar. O Bairro Alto lembrava-lhe Beirute nos velhos tempos - Beirute e os campos de refugiados, pensou. Em comparação, Zurique parecia fria e estéril. Não era de admirar que Kemel gostasse tanto de Lisboa.
Entrou numa casa de fado apinhada e sentou-se. Um empregado colocou-lhe à frente uma garrafa verde de vinho da casa, juntamente com um copo. Acendeu um cigarro e serviu-se de um copo de vinho. Normal, nenhuma complexidade, mas surpreendentemente agradável.
Um momento depois, o mesmo empregado foi para a parte da frente da sala apertada e parou ao lado de um par de guitarristas. Quando os guitarristas tocaram com suavidade os primeiros acordes tristes da música, o empregado fechou os olhos e começou
a cantar. Kemel não conseguia compreender as palavras, mas rapidamente deu por si a ser arrebatado pela melodia lancinante.
No meio da canção, um homem sentou-se ao lado de Kemel. Camisola de lã grossa, jaquetão manhoso, lenço apertado ao pescoço, barba por fazer. Parecia um trabalhador das docas vindo do cais. Inclinou-se para a frente e murmurou umas palavras a Kemel em português. Kemel encolheu os ombros.
- Receio que não fale a língua.
Voltou outra vez a atenção para o cantor. A música estava a chegar ao clímax emocional, mas, na tradição do fado, o cantor permanecia direito como uma vareta, como se estivesse em sentido.
O trabalhador das docas tocou ao de leve no cotovelo de Kemel e falou-lhe em português uma segunda vez. Desta vez, Kemel limitou-se a abanar a cabeça e manteve os olhos no cantor.
Então, o trabalhador das docas inclinou-se para a frente e disse em árabe:
- Perguntei-te se gostavas ou não de fado.
Kemel voltou-se e olhou com atenção para o homem sentado ao seu lado. Tariq disse:
- Vamos para um sítio qualquer sossegado onde possamos falar.
Caminharam do Bairro Alto até Alfama, um labirinto de vielas estreitas e degraus de pedra a serpentear por entre casas caiadas. Kemel espantava-se sempre com a capacidade assombrosa de Tariq em misturar-se com o ambiente à sua volta. Subir as encostas inclinadas parecia cansá-lo. Kemel pôs-se a pensar por quanto tempo mais conseguiria aguentar.
Tariq disse:
- Não chegaste a responder à minha pergunta.
- E que pergunta foi essa?
- Gostas de fado?
- Suponho que seja algo de que se aprenda a gostar. Sorriu e acrescentou:
- Como a própria Lisboa. Por alguma razão, recorda-me a nossa terra.
- O fado é uma música dedicada ao sofrimento e à dor. É por isso que te recorda a nossa terra.
- Suponho que tenhas razão.
Passaram por uma velha a varrer o degrau de entrada da casa. Tariq disse:
- Fala-me de Londres.
- Parece que o Allon fez a sua primeira jogada.
- Não demorou muito tempo. O que é que aconteceu? Kemel falou-lhe de Yusef e da rapariga da galeria de arte.
- O Yusef reparou num estranho no seu prédio de apartamentos ontem à noite. Acha que o homem poderia ser um israelita. Acha que pode ter colocado uma escuta no apartamento.
Kemel conseguia ver que Tariq já estava a calcular as possibilidades.
- E este teu agente é um homem a quem se pode confiar uma missão importante?
- É um jovem muito inteligente. E muito leal. Conheci o pai. Foi morto pelos Israelitas em oitenta e dois.
- Já procurou a escuta?
- Disse-lhe para não o fazer.
- Óptimo - respondeu Tariq. - Deixa-a no sítio. Podemos utilizá-la em nosso proveito. E o que se passa com essa rapariga? Ainda está em jogo?
- Dei instruções ao Yusef para continuar a vê-la.
- Como é que ela é?
- Ao que parece, bastante atraente.
- Tens os recursos necessários em Londres para a seguir?
- com certeza.
- Faz isso. E arranja-me uma fotografia dela.
- Tens uma ideia?
Passaram por uma pequena praça, depois começaram a subir uma encosta longa e inclinada. Na altura em que chegaram ao cimo, Tariq tinha explicado tudo.
- É brilhante - disse Kemel. - Mas tem uma falha.
- E qual é?
- Não vais sobreviver a isso. Tariq sorriu tristemente e respondeu:
Isso é a melhor notícia que ouço há imenso tempo. Voltou-se e afastou-se. Um instante depois, tinha desaparecido pelo nevoeiro dentro. Kemel arrepiou-se. Levantou a gola do casaco e voltou a pé para o Bairro Alto para ouvir fado.
BAYSWATER, LONDRES
A operação instalou-se numa rotina confortável mas bastante entediante. Gabriel passava períodos infindáveis de tempo sem nada para fazer, a não ser escutar pormenores triviais da vida de Yusef, que passavam nos monitores como um medonho drama de rádio. Yusef a conversar ao telefone. Yusef a discutir política com os amigos palestinianos, fumando cigarros e bebendo café turco. Yusef a dizer a uma rapariga de coração despedaçado que não podia continuar a vê-la porque estava seriamente envolvido com outra. Gabriel deu com a vida a mover-se ao ritmo da de Yusef. Comia quando Yusef comia, dormia quando Yusef dormia e, quando Yusef fazia amor com Jacqueline, Gabriel fazia amor com ela também.
Mas passados dez dias, as escutas de Gabriel não tinham apanhado nada de valor. Havia várias explicações possíveis. Talvez Shamron se tivesse simplesmente enganado. Talvez Yusef fosse realmente apenas um empregado e um estudante. Talvez fosse um agente mas estivesse inactivo. Ou talvez fosse um agente no activo mas estivesse a falar com os camaradas por outros meios: por sinais e outras formas de comunicação impessoal. Para detectar isso, Gabriel teria de montar uma operação de vigilância em grande escala e a tempo inteiro. Exigiria múltiplas equipas, pelo menos uma dúzia de funcionários - apartamentos seguros, veículos, rádios... Uma operação dessas seria difícil de esconder do MI5, o serviço de segurança britânico.
Mas havia uma outra possibilidade que preocupava mais Gabriel: a possibilidade de a operação já estar comprometida. Talvez
a vigilância não tivesse resultado em nada por Yusef já suspeitar que estava a ser vigiado. Talvez suspeitasse que o apartamento estivesse sob escuta e os telefonemas interceptados. E talvez suspeitasse que a linda rapariga francesa da galeria de arte fosse, na verdade, uma agente israelita.
Gabriel decidiu que estava na hora de outro encontro cara a cara com Shamron em Paris.
Encontrou-se com Shamron na manhã seguinte, numa loja de chás na rue Mouffetard. Shamron pagou a conta e subiram lentamente a encosta, pelo meio dos mercados e dos vendedores de rua.
- Quero tirá-la da operação - disse Gabriel.
Shamron parou num balcão de fruta, pegou numa laranja e examinou-a por um momento antes de a voltar a colocar com suavidade na caixa. Depois disse:
- Diz-me que não me trouxeste até Paris para esta maluquice.
- Há qualquer coisa que não soa bem. Quero que ela saia antes que seja tarde de mais.
- Ela não foi descoberta e a resposta continua a ser não. Shamron olhou para Gabriel com atenção e acrescentou:
- Porque é que estás de monco caído, Gabriel? Andas a ouvir as cassetes antes de mas enviares?
- É claro que ando.
- E não consegues ouvir o que se passa? As palestras intermináveis sobre o sofrimento dos Palestinianos? A falta de escrúpulos dos Israelitas? O recitar de poesia palestiniana? Todo o velho folclore de como era bela a vida na Palestina antes dos judeus?
- Onde é que queres chegar?
- Ou o rapaz está apaixonado, ou anda a pensar noutra coisa.
- É a segunda possibilidade que me preocupa.
- Já te ocorreu alguma vez que talvez o Yusef pense nela como mais do que uma simples rapariga bonita? Já te ocorreu alguma vez que pense nela como uma rapariga impressionável que poderá ser útil ao Tariq e à sua organização?
-Já, mas ela não está preparada para esse tipo de operação. E, francamente, nós também não.
- Então queres arrumar a trouxa e ir para casa?
- Não, só quero tirar ajacqueline da operação.
- E depois o que é que acontece? O Yusef fica nervoso. O Yusef fica com suspeitas e desfaz o apartamento. Se for disciplinado, atira fora todos os aparelhos eléctricos do sítio. E os teus microfones vão com eles.
- Se tratarmos da partida dela com cuidado, nunca suspeitará de nada. Para além disso, quando a contratei, prometi-lhe um trabalho de curta duração. Sabes que tem outros compromissos.
- Nenhum mais importante do que isto. Paga-lhe os salários, na totalidade. Ela fica, Gabriel. Fim da discussão.
- Se ela ficar, vou eu embora.
- Então vai! - ripostou Shamron. - Vai e volta para a Cornualha e enterra a cabeça no teu Vecellio. Envio alguém para te substituir.
- Sabes que não a vou deixar nas tuas mãos. Shamron passou depressa ao apaziguamento:
- Tens andado a trabalhar sem parar há muito tempo. Não estás lá com grande aspecto. Não me esqueci de como é. Esquece o Yusef por umas horas. Não vai a lado nenhum. Vai dar uma volta de carro. Faz qualquer coisa para limpar a cabeça. Preciso de ti no teu melhor.
No comboio, de regresso a Londres, Gabriel entrou na casa de banho e trancou a porta. Ficou parado em frente ao espelho durante muito tempo. Tinha rugas novas à volta dos olhos, uma rigidez súbita nos cantos da boca, o gume de uma faca nas maçãs do rosto. Por baixo dos olhos, tinha círculos negros, como manchas de carvão.
Não me esqueci de como é.
A operação Setembro Negro... Tinham todos apanhado qualquer coisa: problemas cardíacos, pressão sanguínea alta, erupções cutâneas, constipações crónicas. Os assassinos sofreram o pior. Após o primeiro trabalho em Roma, Gabriel descobriu que era
impossível dormir. Sempre que fechava os olhos, ouvia balas a rasgar carne e a despedaçar ossos, via vinho de figo a misturar-se com sangue no chão de mármore. Shamron descobriu um médico em Paris, um sayan, que deu a Gabriel um frasco de tranquilizantes poderosos. Em poucas semanas, estava viciado neles.
Os comprimidos e o stresse fizeram Gabriel parecer chocante mente mais velho. A pele endureceu, os cantos da boca descaíram, os olhos ficaram da cor da cinza. O cabelo preto ficou grisalho nas têmporas. Tinha vinte e dois anos na altura, mas parecia ter pelo menos quarenta. Quando chegava a casa, Leah quase não o reconhecia. Quando faziam amor, dizia que era como dormir com outro homem - não uma versão mais velha de Gabriel, mas um completo desconhecido.
Atirou água fria para a cara, esfregou vigorosamente com um toalhete de papel e a seguir examinou uma vez mais o reflexo. Meditou sobre a sequência de acontecimentos - a roleta bizarra do desdno - que o tinha levado a este sítio. Se não tivesse havido Hitler, nem Holocausto, os pais teriam permanecido na Europa, em vez de fugirem para uma colónia agrícola poeirenta no vale Jezreel. Antes da guerra, o pai fora um ensaísta e historiador em Munique, a mãe uma pintora talentosa em Praga, e nenhum se tinha ajustado bem ao colectivismo da colónia ou ao zelo sionista em relação ao trabalho manual. Tinham tratado Gabriel mais como um adulto em miniatura do que um rapaz com necessidades diferentes das suas. Esperavam que se divertisse e tomasse conta de si próprio. A primeira recordação de infância era da pequena casa de dois quartos na colónia: o pai a ler na cadeira, a mãe ao cavalete, Gabriel no chão, entre ambos, a construir cidades com blocos toscos.
Os pais detestavam hebreu, por isso, quando estavam sozinhos utilizavam as línguas que tinham falado na Europa: alemão, francês, checo, russo, iídiche. Gabriel absorveu-as todas. Às línguas europeias, acrescentou hebreu e árabe. Do pai herdou também uma memória sem falhas, da mãe, uma paciência inabalável e uma atenção aos pormenores. O desprezo deles pelo colectivo tinha produzido em si arrogância e uma atitude de lobo solitário. O agnosticismo secular não o estorvara com nenhuma moralidade ou ética judaicas.
preferia caminhar ao futebol, ler à agricultura. Tinha um medo quase patológico de sujar as mãos. Tinha muitos segredos. Um dos professores descreveu-o como frio, egoísta, insensível e totalmente brilhante. Quando Ari Shamron foi à procura de soldados para a nova guerra secreta contra o terror árabe na Europa, deparou-se com o rapaz do vale Jezreel, que, tal como o homónimo, o Arcanjo Gabriel, possuía um talento invulgar para as línguas e a paciência de Salomão. Shamron descobriu outra característica valiosa: a frieza emocional de um assassino.
Gabriel saiu da casa de banho e regressou ao seu lugar. Para além da janela, estava a zona este de Londres: filas de armazéns vitorianos a desmoronarem-se, todos eles janelas estilhaçadas e tijolos partidos. Fechou os olhos. Outra coisa os fizera ficar a todos doentes durante a operação Setembro Negro: o medo. Quanto mais tempo permanecessem em campo, maior era o risco de exposição
- não apenas aos serviços de espionagem da Europa, mas aos próprios terroristas. Esse facto tornou-se bastante claro a meio da operação, quando o Setembro Negro assassinou um katsa em Madrid. De repente, todos os membros da equipa perceberam que também eles eram vulneráveis. E ensinou a Gabriel a lição mais valiosa da sua carreira: quando os agentes estão numa operação longe de casa, em território hostil, os caçadores podem facilmente transformar-se em presas.
O comboio chegou a Waterloo. Gabriel caminhou a passos largos pela plataforma e abriu caminho pelo corredor apinhado das chegadas. Deixara o carro num parque de estacionamento subterrâneo. Deixou cair as chaves, executou o ritual de inspecção e a seguir entrou e guiou até Surrey.
Não havia letreiro à entrada do portão. Gabriel sempre quisera um lugar sem letreiro. Para além do muro, havia um relvado bem cuidado, com árvores espaçadas por igual. No final de uma entrada sinuosa, erguia-se uma mansão vitoriana de tijolo vermelho. Desceu a janela do carro e carregou no botão do intercomunicador. A lente de uma câmara de segurança olhava-o fixamente de cima como
uma gárgula. Gabriel afastou por instinto a cara da câmara e fingiu estar à procura de qualquer coisa no porta-luvas.
- Posso ajudá-lo?
Voz feminina, sotaque do Centro da Europa.
- Vim ver a menina Martinson. O doutor Avery está à minha espera.
Subiu a janela, esperou que o portão de segurança automático abrisse; a seguir, entrou nos jardins e subiu a entrada devagar. Fim de tarde, frio e cinzento, vento fraco a abanar as árvores. À medida que se aproximava da casa, começou a ver alguns dos doentes. Uma mulher sentada num banco, no seu melhor vestido de domingo, a olhar fixamente e sem expressão para o espaço. Um homem com um oleado e botas de borracha, a passear apoiado no braço de um empregado jamaicano imponente.
Avery estava à espera no átrio de entrada. Vestia calças de bombazina caras e muito bem passadas e uma camisola de caxemira, género pulôver, cinzenta, que parecia mais adequada a um campo de golfe do que a um hospital psiquiátrico. Apertou a mão a Gabriel com uma formalidade fria, como se Gabriel fosse o representante de um poder ocupador, e a seguir conduziu-o por um longo corredor alcatifado.
- Ela tem andado a falar bastante mais este mês - disse Avery. - Até tivemos conversas com sentido num par de ocasiões.
Gabriel forçou um sorriso tenso. Em todos estes anos, ela nunca tinha falado com ele.
- E a saúde física? - perguntou.
- Nenhuma mudança, na verdade. Está tão em forma quanto seria de esperar.
Avery utilizou um cartão magnético para passar por uma porta fechada. Do outro lado, estava outro corredor, com mosaicos em terracota em vez de alcatifa. Avery falou da medicamentação dela enquanto andavam. Tinha aumentado a dose de um medicamento, reduzido outro e retirado outro por completo. Havia um medicamento novo, ainda em experiência, que estava a revelar alguns
resultados prometedores em doentes que sofriam de uma combinação sernelhante de stresse pós-traumático agudo e depressão psicótica.
- Se acha que vai ajudar.
- Nunca o saberemos se não experimentarmos.
A psiquiatria clínica, pensou Gabriel, era bastante parecida com o trabalho de espionagem.
O corredor em terracota terminava numa sala pequena. Estava cheia de instrumentos de jardinagem - tesouras de podar, pás, colheres de jardineiro - e sacos de sementes de flores e fertilizante. Na outra ponta da sala, havia um par de portas duplas com postigos circulares.
- Está no sítio habitual. Está à sua espera. Por favor, não se demore muito. Penso que uma meia hora será o adequado. Venho buscá-lo quando for a altura.
Um solário, opressivamente quente e húmido. Leah num canto, sentada numa cadeira de jardim de ferro forjado e costas direitas, com rosas novas em vasos aos seus pés. Estava vestida de branco. A camisola branca de gola alta que Gabriel lhe oferecera no último aniversário. As calças brancas que lhe comprara durante umas férias de Verão em Creta. Gabriel tentou lembrar-se do ano mas não conseguiu. Parecia haver apenas Leah antes de Viena e Leah depois de Viena. Estava sentada com a compostura de uma rapariguinha de escola, a olhar para longe, ao longo da extensão do relvado. O cabelo tinha sido cortado curto, à maneira típica de um hospital psiquiátrico. Os pés estavam descalços.
Virou a cabeça enquanto Gabriel se aproximava. Pela primeira vez, pôde ver-lhe as marcas das cicatrizes no lado direito da cara. Como sempre, fê-lo sentir-se violentamente frio. Depois viu-lhe as mãos, ou o que lhe restava das mãos. O tecido branco e duro da cicatriz lembrava-lhe a tela exposta de uma pintura danificada. Desejou poder misturar simplesmente um pouco de pigmento na sua paleta e voltar a pô-la normal.
Beijou-lhe a testa, cheirou-lhe o cabelo, à procura do vestígio familiar de alfazema e limão, mas em vez disso havia apenas a mistura opressiva do solário e do fedor das plantas num espaço fechado.
Avery deixara uma segunda cadeira, que Gabriel aproximou uns centímetros dela. Leah encolheu-se quando as pernas de ferro forjado arranharam o chão. Gabriel murmurou um pedido de desculpas e sentou-se. Leah desviou o olhar.
Era sempre assim. Não era Leah sentada ao seu lado, apenas um monumento a Leah. Uma pedra tumular. Costumava tentar falar com ela, mas agora contentava-se em sentar-se simplesmente na sua presença. Seguiu-lhe o olhar através da paisagem enevoada e perguntou a si próprio para o que estaria ela a olhar. Havia dias, segundo Avery, em que se limitava a ficar sentada a revivê-lo uma e outra vez, com pormenores terrivelmente vívidos, incapaz, ou sem vontade, de o fazer parar. Gabriel não conseguia imaginar o seu sofrimento. Tinha-lhe sido permitido continuar com uma certa aparência da sua vida, mas a Leah fora-lhe tirado tudo - o filho, o corpo, a sanidade mental. Tudo menos a memória. Gabriel receava que o apego dela à vida, por mais ténue que fosse, estivesse de certa maneira ligado à sua fidelidade contínua. Se se permitisse apaixonar por outra pessoa, Leah morreria.
Passados quarenta e cinco minutos, levantou-se e vestiu o casaco; depois agachou-se aos seus pés, com as mãos apoiadas nos joelhos dela. Ela olhou por cima da cabeça dele durante uns segundos, antes de baixar os olhos de encontro ao seu olhar.
- Tenho de ir - disse ele.
Leah não fez nenhum movimento.
Estava prestes a levantar-se quando ela se esticou de repente e lhe tocou no lado da cara. Gabriel tentou não recuar perante a sensação do tecido da cicatriz a deslizar pela pele no canto do olho. Ela sorriu tristemente e baixou a mão. Colocou-a no colo, tapou-a com a outra e retomou a pose hirta em que Gabriel a encontrara.
Levantou-se e afastou-se. Avery estava à espera lá fora. Levou Gabriel até ao carro. Gabriel sentou-se ao volante durante muito tempo, antes de ligar o motor, a pensar na mão dela na sua cara. Nada típico de Leah, tocar-lhe assim. O que viu ela lá? A tensão da operação? Ou a sombra de Jacqueline Delacroix?
LISBOA
Tariq apareceu à entrada da casa de fados. Uma vez mais, estava vestido como um trabalhador das docas. Pálido como um fantasma, a mão a tremer enquanto acendia um cigarro. Atravessou a sala e sentou-se ao lado de Kemel.
- O que é que te traz de novo a Lisboa?
- Parece que temos um engarrafamento bastante grave na nossa cadeia de distribuição ibérica. Talvez seja obrigado a passar bastante tempo em Lisboa durante os próximos dias.
- É tudo?
- E isto.
Kemel pousou uma fotografia grande a cores em cima da mesa.
- Apresento-te a Dominique Bonard.
Tariq pegou na fotografia, examinou-a com atenção.
- Vem comigo - disse calmamente. - Quero mostrar-te uma coisa que penso que vais achar interessante.
O apartamento de Tariq ficava no alto de Alfama. Duas divisões, soalhos de madeira a dar de si e uma varanda com vista para um pátio tranquilo. Preparou chá ao estilo árabe, forte e doce, e sentaram-se junto à porta aberta da varanda, a chuva a bater nas pedras do pátio.
Tariq perguntou:
- Lembras-te de como descobrimos o Allon em Viena?
- Foi há muito tempo. Tens de me refrescar a memória.
- O meu irmão estava na cama quando foi morto. Estava uma rapariga com ele, uma estudante alemã, uma radical. Escreveu uma carta aos meus pais umas semanas depois do Mahmoud ter sido morto e contou-lhes como aconteceu. Disse que nunca se iria esquecer da cara do assassino enquanto vivesse. O meu pai levou a carta ao funcionário de segurança da OLP no campo. O oficial de segurança entregou-a aos serviços de espionagem da OLP.
- Tudo isso me soa vagamente familiar - disse Kemel.
- Depois do Abu Jihad ter sido assassinado em Tunes, o corpo de segurança da OLP conduziu uma investigação. Partiram de uma premissa simples. O assassino parecia conhecer muito bem a casa de campo, por dentro e por fora. Portanto, teve de passar algum tempo nas cercanias da casa, a vigiar e a planear o ataque.
- Um pedaço brilhante de investigação detectivesca - disse Kemel, sarcasticamente. - Se o corpo de segurança da OLP tivesse feito bem o trabalho logo à partida, o Abu Jihad ainda estaria vivo.
Tariq foi até à casa de banho e voltou um momento depois, segurando um grande envelope de papel manilha.
- Começaram a rever todas as cassetes de vídeo das câmaras de segurança e descobriram várias imagens de um homem pequeno e de cabelo escuro.
Tariq abriu o envelope e entregou a Kemel várias fotografias granulosas.
- Ao longo dos anos, os serviços de espionagem da OLP não tinham perdido de vista a rapariga alemã. Mostraram-lhe estas fotografias. Disse que era o mesmo homem que matara o Mahmoud. Sem sombra de dúvida. Por isso começámos a procurá-lo.
- E descobriram-no em Viena?
- Exactamente.
Kemel estendeu as fotografias para Tariq.
- O que é que isto tem a ver com a Domínique Bonard?
- Vem de trás, da investigação ao caso de Tunes. O corpo de segurança da OLP queria descobrir onde é que o assassino tinha ficado em Tunes enquanto planeava o ataque. Sabiam por experiência anterior que os agentes israelitas tendem a fazer passar-se por
europeus durante trabalhos como este. Partiram do princípio de que um homem a fazer passar-se por europeu tinha ficado provavelmente num hotel. Começaram a recorrer aos seus espiões e informadores. Mostraram as fotografias do assassino a um porteiro de um dos hotéis à beira da praia. O porteiro disse que o homem tinha ficado no hotel com a namorada francesa. O corpo de segurança da OLP voltou às cassetes de vídeo e começou a procurar uma rapariga. Descobriram uma e mostraram-na ao porteiro.
- A mesma rapariga?
- A mesma rapariga.
A seguir, Tariq enfiou a mão no envelope e tirou mais uma fotografia de vigilância: esta de uma rapariga de cabelo escuro lindo. Passou-a a Kemel, que a comparou com a fotografia da mulher em Londres.
- Posso estar enganado - disse Tariq-, mas parece-me que a nova namorada do Yusef já trabalhou com o Gabriel Allon antes.
Reviram o plano uma última vez, enquanto caminhavam pelas vielas tortuosas de Alfama.
- O primeiro-ministro e o Arafat partem para os Estados Unidos daqui a cinco dias - disse Kemel. -- Vão primeiro a Washington, para uma reunião na Casa Branca, e a seguir partem para Nova Iorque, para a cerimónia de assinatura nas Nações Unidas. Está tudo a postos em Nova Iorque.
- Agora só preciso de um acompanhante para a viagem disse Tariq. - Acho que gostava de uma francesa linda; o tipo de mulher que ficasse bem de braço dado com um empresário de sucesso.
- Acho que sei onde consigo encontrar uma mulher assim.
- Imagina, matar o processo de paz e o Gabriel Allon num único momento final de glória. Vamos sacudir o mundo, Kemel. E depois vou deixá-lo.
- Tens a certeza de que queres avançar com isto?
- Não estás preocupado com a minha segurança nesta altura?
- É claro que estou.
- Porquê? Sabes o que me está a acontecer.
- Na verdade, tento não pensar nisso.
Ao fundo da encosta, chegaram a uma praça de táxis. Tariq beijou as faces de Kemel e a seguir agarrou-lhe com força os ombros.
- Nada de lágrimas, meu irmão. Ando a lutar há muito tempo. Estou cansado. É melhor assim.
Kemel soltou-se do seu aperto e abriu a porta do táxi que esperava.
Tariq disse:
- Ele devia ter matado a rapariga. Kemel voltou-se.
- O quê?
- O Allon devia ter matado a rapariga alemã que estava com o meu irmão. Teria acabado tudo ali.- Suponho que tenhas razão.
- Foi um erro estúpido - disse Tariq. - Eu não teria cometido um erro desses.
Depois voltou-se e subiu devagar a encosta em direcção a Alfama.
ST. JAMES'S, LONDRES
Quando a campainha da porta soou, Jacqueline voltou-se e espreitou para o monitor: um estafeta de bicicleta. Olhou para o relógio: seis e um quarto. Carregou na campainha para o deixar entrar e a seguir deixou a secretária, encaminhando-se até ao corredor para assinar a encomenda. Um envelope grande de papel manilha. Voltou para o escritório, sentou-se à secretária e abriu o envelope com a ponta do dedo indicador. Lá dentro estava uma única folha de papel de carta de tamanho executivo, de cor cinzento-clara, dobrada meticulosamente ao meio. O cabeçalho trazia o nome de Randolph Stewart, negociante de arte privado. Leu a nota escrita à mão: Acabei de voltar de Paris... Viagem muito boa... Nenhum problema com a aquisição... Continua com a venda como planeado. Colocou a carta na destruidora de papel de Isherwood e observou-a a transformar-se em tirinhas de papel.
Levantou-se, vestiu o casaco e a seguir foi até ao escritório de Isherwood. Este estava debruçado sobre um livro-razão, a roer a ponta de um lápis. Olhou para cima, quando ela entrou na sala, e fez-lhe um sorriso fraco. li
- Já vai embora tão cedo, meu amor?
- Receio que tenha de ir.
- vou contar as horas até a voltar a ver.
- E eu vou fazer o mesmo.
Ao sair, apercebeu-se de que iria ter saudades de Isherwood quando tudo terminasse. Era um homem decente. Interrogou-se sobre como se teria envolvido com pessoas como Ari Shamron
e Gabriel. Apressou-se ao longo de Mason's Yard, através da chuva chicoteada pelo vento, e a seguir subiu Duke Street em direcção a Piccadilly, a pensar na carta. Deprimia-a. Podia imaginar o resto da noite. Iria encontrar-se com Yusef no apartamento dele. Iriam jantar e depois regressariam ao apartamento e fariam amor. A seguir, duas horas de história do Médio Oriente. As injustiças empilhadas sobre os Palestinianos indefesos. Os crimes dos judeus. A desigualdade da solução dos dois estados na mesa de negociações. Estava a tornar-se cada vez mais difícil fingir que se estava a divertir.
Gabriel prometera-lhe uma missão curta: seduzi-lo, conseguir entrar no seu apartamento, apanhar-lhe as chaves e o telefone e voltar a sair. Não se tinha disponibilizado para um romance de longa duração. Achava a ideia de voltar a dormir com Yusef repulsiva. Mas havia algo mais. Tinha concordado em vir para Londres por achar que trabalhar com Gabriel iria reavivar o romance deles. Se tivera algum resultado, fora o de os afastar ainda mais. Raramente o via - ele comunicava por cartas - e, das poucas vezes em que estiveram juntos, tinha estado frio e distante. Fora uma parva ao pensar que as coisas poderiam alguma vez ser como tinham sido em Tunes.
Entrou na estação de metro de Piccadilly e andou até à plataforma apinhada. Pensou na sua casa de campo; nos passeios de bicicleta pelas encostas banhadas pelo sol à volta de Valbonne. Por um momento, imaginou Gabriel a passear ao seu lado, as pernas a bombear ritmicamente. A seguir, sentiu-se tonta por se ter deixado pensar nessas coisas. Quando o metro chegou, conseguiu enfiar-se na carruagem apinhada e agarrou-se a uma pega de metal. No momento em que o metro avançou aos solavancos, decidiu que esta seria a última noite. De manhã, diria a Gabriel que queria desistir.
Gabriel andou para trás e para a frente na carpete do posto de escuta, a driblar com indiferença uma bola de ténis verde-clara com os pés calçados apenas de meias. Faltava pouco para a meia-noite. Jacqueline e Yusef tinham acabado de fazer amor. Escutou as mútuas declarações de prazer físico. Escutou Yusef a utilizar a casa de
banho. Escutou Jacqueline a andar silenciosamente até à cozinha, à procura de algo para beber. Ouviu-a perguntar a Yusef onde tinha escondido os cigarros dela.
Gabriel deitou-se no sofá e atirou a bola ao tecto enquanto esperava que Yusef começasse o seminário desta noite. Pôs-se a pensar qual seria o tópico. O que fora a noite passada? - o mito de que apenas os judeus faziam o deserto florir. Não, isso fora na noite anterior. Na noite passada, tinha sido a traição aos Palestinianos pelo resto do mundo árabe. Desligou o candeeiro e continuou a atirar a bola e a apanhá-la no escuro, para testar os reflexos e a percepção sensorial.
Uma porta a abrir-se, o estalido de um interruptor.
Yusef disse em tom sombrio:
- Precisamos de falar. Enganei-te em relação a uma coisa. Agora, preciso de te contar a verdade.
Gabriel agarrou de repente a bola de ténis no meio da escuridão e segurou-a bem quieta na palma da mão. Pensou em Leah, na noite em que utilizou essas mesmas palavras antes de lhe contar que, em represália à sua infidelidade, tinha tido ela própria amantes.
Jacqueline respondeu em tom despreocupado:
- Isso parece mesmo sério.
Gabriel pôs a bola a pairar na escuridão com um girar subtil do pulso.
- É sobre a cicatriz nas minhas costas.
Gabriel levantou-se e acendeu o candeeiro. Depois verificou os gravadores de cassetes para ter a certeza de que estavam a gravar em condições.
Jacqueline perguntou:
- O que é que há com a tua cicatriz nas costas?
- Como foi ali parar.
Yusef sentou-se na ponta da cama.
- Menti-te quando te contei como tinha ficado com a cicatriz. Agora, preciso de te contar a verdade.
Respirou fundo, deixou sair o ar devagar, começou a falar, lenta
e suavemente:
- A minha família ficou em Shatila depois da OLP ter sido expulsa do Líbano, talvez te recordes desse dia, Dominique; o dia em que o Arafat e as suas guerrilhas se retiraram, enquanto os Israelitas e os Americanos lhes diziam adeus do cais. Sem a OLP, ficámos sem protecção. O Líbano estava em ruínas. Cristãos, sunitas, xiitas, os drusos, toda a gente estava a lutar com toda a gente, e os Palestinianos foram apanhados no meio. Vivíamos com o medo de que alguma coisa terrível pudesse acontecer. Lembras-te, agora?
- Era nova, mas acho que me lembro.
- A situação era um barril de pólvora. Bastava só uma fagulha para desencadear um holocausto. Essa fagulha veio a ser o assassinato do Bashir Gemayel. Era o líder dos cristãos maronitas do Líbano e o presidente eleito do país. Foi morto na explosão de uma bomba num carro, na sede do partido da Falange Cristã.
"Nessa noite, meia Beirute gritava por vingança, enquanto a outra metade se encolhia com medo. Ninguém tinha a certeza de quem colocara a bomba. Podia ter sido qualquer um, mas os falangistas estavam convencidos de que a culpa era dos Palestinianos. Desprezavam-nos. Os cristãos nunca nos quiseram no Líbano e, agora que a OLP tinha desaparecido, queriam eliminar o problema palestiniano do Líbano de uma vez por todas. Antes da sua morte, o Gemayel tinha-o dito muito claramente: Há um povo, a mais: o povo palestiniano.
"Depois do assassinato, os Israelitas entraram em Beirute Ocidental e ocuparam posições com vista para o Sabra e Shatila. Queriam limpar os campos dos últimos combatentes da OLP e, para evitar baixas israelitas, enviaram os milicianos da Falange para fazer o trabalho por eles. Toda a gente sabia o que ia acontecer assim que os milicianos fossem soltos nos campos. O Gemayel estava morto e nós éramos os que iam pagar o preço. Ia ser um massacre, mas o exército israelita soltou-os à mesma.
"Os Israelitas soltaram os primeiros falangistas em Shatila ao pôr do Sol, cento e cinquenta. Tinham pistolas, claro, mas a maioria tinha também facas e machados. A matança durou quarenta e oito horas. Os sortudos morreram com tiros. Os que não tiveram tanta sorte sofreram mortes mais horrendas. Cortaram pessoas aos pedaços.
Estriparam pessoas e deixaram-nas a morrer. Esfolaram pessoas vivas. Arrancaram olhos e deixaram pessoas a deambular às cegas pelo meio da carnificina, até serem mortas a tiro. Amarraram pessoas a camiões e arrastaram-nas pelas ruas até estarem mortas.
"As crianças não foram poupadas. Uma criança podia crescer e tornar-se um terrorista, segundo os falangistas, por isso mataram todas as crianças. As mulheres não foram poupadas, já que uma mulher podia dar à luz um terrorista. Fizeram questão de cortar de maneira ritualista os peitos das mulheres palestinianas. Os peitos dão leite. Os peitos alimentam um povo que os falangistas queriam eliminar. Por toda a noite dentro, invadiram casas e massacraram toda a gente lá dentro. Quando caiu a escuridão, os Israelitas iluminaram o céu com foguetes de sinalização, para os falangistas poderem continuar com o seu trabalho de uma maneira mais fácil.
Jacqueline juntou os dedos e encostou-os aos lábios. Yusef continuou com o relato.
- Os Israelitas sabiam exactamente o que se estava a passar. O quartel-general deles ficava a apenas cerca de duzentos metros do limite de Shatila. Do telhado, conseguiam olhar directamente para o campo. Conseguiam ouvir os falangistas a falar nos seus rádios. Mas não levantaram um dedo para os parar. E porque é que ficaram parados sem fazer nada? Porque era exactamente o que queriam que acontecesse.
"Só tinha sete anos na altura. O meu pai morrera. Tinha sido morto nesse Verão, quando os Israelitas bombardearam os campos durante a batalha de Beirute. Vivia em Shatila com a minha mãe e a minha irmã. Ela só tinha um ano e meio na altura. Escondemo-nos debaixo da cama, a ouvir os gritos e os disparos, a ver as sombras dos foguetes a dançar nas paredes. Rezámos para que os falangistas, por alguma razão, não acertassem na nossa casa. Às vezes, conseguíamos ouvi-los do lado de lá da janela. Estavam a rir. Estavam a massacrar quem quer que vissem, mas riam-se. A minha mãe tapava-nos a boca sempre que se aproximavam, para nos manter em silêncio. Quase sufocou a minha irmã.
"Por fim, invadiram-nos a casa. Desembaracei-me do aperto da minha mãe e fui ter com eles. Perguntaram onde é que estava a
minha família e respondi-lhes que tinham morrido todos. Riram-se e disseram-me que em breve estaria com eles. Um dos falangistas tinha uma faca. Agarrou-me pelos cabelos e arrastou-me até lá fora. Arrancou-me a camisa e rasgou-me a pele no meio das costas. A seguir, amarraram-me a um camião e arrastaram-me pelas ruas. A certa altura, fiquei inconsciente, mas, antes de desmaiar, lembro-me de os falangistas dispararem sobre mim. Estavam a usar-me para tiro ao alvo.
"Não sei como, mas sobrevivi. Talvez achassem que estava morto, não sei. Quando recuperei os sentidos, a corda que tinham utilizado para me arrastar ainda estava amarrada ao meu tornozelo direito. Rastejei para debaixo de um monte de escombros e esperei. Fiquei lá durante um dia e meio. Finalmente, o massacre terminou, e os falangistas retiraram-se dos campos. Saí do meu esconderijo e descobri o caminho de volta para a casa da minha família. Encontrei o corpo da minha mãe na nossa cama. Estava nua e tinha sido violada. Os peitos tinham sido cortados. Procurei a minha irmã. Encontrei-a em cima da mesa da cozinha. Tinham-na cortado aos bocados e disposto num círculo, com a cabeça no centro.
Jacqueline saiu da cama aos trambolhões, arrastou-se até à casa de banho e vomitou violentamente. Yusef ajoelhou-se ao seu lado e colocou-lhe a mão nas costas enquanto o corpo dela se contorcia.
Quando ela terminou, disse:
- Perguntas-me porque é que odeio tanto os Israelitas. Odeio-os, porque enviaram os falangistas para nos massacrar. Odeio-os porque ficaram parados e não fizeram nada enquanto os cristãos, os grandes amigos deles no Líbano, violaram e mataram a minha mãe e cortaram a minha irmã aos bocados e lhe dispuseram o corpo num círculo. Agora sabes porque é que sou pela rejeição no que toca a este suposto processo de paz. Como é que posso confiar nesta gente?
- Compreendo.
- Compreendes mesmo, Dominique? É possível?
- Suponho que não.
- bom, fui totalmente honesto contigo em relação a tudo. Há
alguma coisa que me queiras contar acerca de ti? Algum segredo que andes a esconder de mim?
- Nada de importante.
- Estás a contar-me a verdade, Dominique?
- Sim.
A chamada veio às quatro e quinze dessa manhã. Acordou Yusef, mas não Gabriel. Tinha estado acordado toda a manhã, a escutar o relato de Yusef sobre Sabra e Shatila uma e outra vez. Tocou appenas uma vez. Yusef, a voz cheia de sono, disse:
- Sim?
- Lancaster Gate, amanhã, duas horas. Clique.
Jacqueline perguntou:
- O que era?
- Um número errado. Volta a dormir.
Maida Vale, de manhã. Um grupo de rapazes da escola a provocar uma rapariga bonita. Jacqueline imaginou que eram milicianos falangistas armados com facas e machados. Uma carrinha passou a grande velocidade, a arrotar fumos de gasóleo. Jacqueline viu um homem amarrado ao pára-choques, a ser arrastado para a morte. O seu prédio de apartamentos avultava-se à sua frente. Olhou para cima e imaginou soldados israelitas em cima do telhado, a observar a matança em baixo com binóculos, a disparar foguetes de sinalização para que os assassinos pudessem ver melhor as vítimas. Entrou no prédio, subiu as escadas e enfiou-se no apartamento. Gabriel estava sentado no sofá.
- Porque é que não me disseste?
- Disse o quê?
- Porque é que não me disseste que ele tinha sobrevivido a Shatila? Porque é que não me disseste que a família tinha sido chacinada assim?
- Que diferença é que faria?
- Gostava simplesmente de ter sabido! Acendeu um cigarro e engoliu com força o fumo.
- É verdade? As coisas que me contou são verdadeiras?
- Qual parte?
- Tudo, Gabriel! Não faças joguinhos de merda comigo.
- Sim, é verdade! A família morreu em Shatila. Sofreu. E então? Já sofremos todos. Não lhe dá o direito de assassinar inocentes porque a história não correu como queria!
- Ele era um inocente, Gabriel! Era só um rapaz!
- Estamos a meio de uma operação, Jacqueline. Agora não é a altura para um debate sobre a equivalência moral e a ética do contraterrorismo.
- Peço desculpa por permitir que a questão da moralidade tenha penetrado nos meus pensamentos. Esqueci-me que tu e o Shamron nunca se deixam confundir por uma coisa tão trivial.
- Não me metas no mesmo saco com o Shamron.
- Porque não? Porque ele dá as ordens e tu as segues?
- Então e Tunes? - perguntou Gabriel. - Sabias que Tunes era uma missão de assassinato, mas participaste nela de livre vontade. Até te ofereceste para regressar na noite da execução.
- Isso era porque o alvo era o Abu Jihad. Tinha o sangue de centenas de israelitas e judeus nas mãos.
- Este também tem sangue nas mãos. Não te esqueças disso.
- É só um rapaz, um rapaz cuja família foi chacinada enquanto o exército israelita observava e não fazia nada.
- Não é um rapaz. É um homem com vinte e cinco anos que ajuda o Tariq a matar pessoas.
- E vais usá-lo para chegar ao Tariq, por causa do que o Tariq te fez? Quando é que acaba? Quando não houver mais sangue para derramar? Quando, Gabriel?
Ele levantou-se e vestiu o casaco. Jacqueline disse:
- Quero desistir.
- Não podes sair agora.
- Posso, sim. Não quero dormir mais com o Yusef.
- Porquê?
- Porquê? Tens a lata de me perguntar porquê?
- Desculpa, Jacqueline. Isso não saiu...
- Pensas em mim como uma puta, não é, Gabriel? Pensas que não me incomoda dormir com um homem de quem não gosto.
- Isso não é verdade.
- Foi isso que fui para ti em Tunes? Só uma puta?
- Sabes que isso não é verdade.
- Então diz-me o que fui.
- O que é que vais fazer? Vais voltar para França? Voltar para a tua casa de campo em Valbonne? Voltar para as tuas festas de Paris e para as tuas sessões fotográficas e os teus shows de moda, onde a questão mais difícil é decidir que tom de batom usar?
Deu-lhe uma bofetada no lado esquerdo da cara. Ele ficou a olhar para ela, os olhos frios, a cor a aumentar na pele por cima da maçã do rosto. Puxou a mão para trás para lhe voltar a dar uma bofetada, mas ele levantou com indiferença a mão esquerda e desviou-lhe o golpe.
- Não consegues ouvir o que se está a passar? - perguntou Gabriel. - Contou-te a história do que lhe aconteceu em Shatila por uma razão. Está a testar-te. Quer-te para alguma coisa.
- Não me interessa.
- Pensei que fosses alguém com quem pudesse contar. Não alguém que se fosse abaixo a meio do jogo.
- Cala-te, Gabriel!
- vou contactar o Shamron, dizer-lhe que estamos fora do jogo. Estendeu a mão para a porta. Ela agarrou-lhe a mão.
- Matar o Tariq não vai pôr as coisas bem. Isso é só uma ilusão. Pensas que vai ser como arranjar um quadro: descobres o estrago, retoca-lo e fica tudo bem outra vez. Mas não é assim com um ser humano. Na verdade, nem sequer é assim com um quadro. Se olhares com atenção, consegues sempre ver onde é que foi retocado. As cicatrizes nunca desaparecem. O restaurador não cura um quadro. Só esconde as feridas.
- Preciso de saber se estás disposta a continuar.
- E eu quero saber se fui só a tua puta em Tunes. Gabriel esticou-se e tocou-lhe na face.
- Foste a minha amante em Tunes.
A mão caiu-lhe ao lado.
- E a minha família foi destruída por causa disso.
- Não posso mudar o passado.
- Eu sei.
- Gostaste de mim?
Hesitou por um momento, depois respondeu:
- Sim, muito.
- Gostas de mim agora? Ele fechou os olhos.
- Preciso de saber se consegues continuar ou não.
HYDE PARK, LONDRES
Karp disse:
- O teu amigo escolheu um sítio bem horrível para um encontro.
Estavam sentados na parte de trás de uma carrinha Ford branca, em Bayswater Road, a alguns metros de Lancaster Gate, Karp debruçado sobre uma consola de equipamento áudio, a ajustar os níveis. Gabriel praticamente não conseguia ouvir-se a pensar, com o barulho ensurdecedor dos carros, táxis, carrinhas e autocarros de dois andares. Por cima deles, as árvores que revestiam a ponta norte do parque contorciam-se ao vento. Através dos microfones de Karp, o ar a correr pelos ramos soava como água a borbulhar. Para lá de Lancaster Gate, as fontes dos Italian Gardens chapinhavam e dançavam. Através dos microfones, soava como um aguaceiro de monção.
Gabriel perguntou:
- Quantas pessoas a ouvir é que tens lá fora?
- Três - respondeu Karp. - O tipo no banco que parece um banqueiro, a miúda gira a atirar pão aos patos, e o tipo a vender gelados logo no interior do portão.
- Não está mau - disse Gabriel.
- Nestas condições, não esperes nenhum milagre.
Gabriel olhou para o relógio de pulso: passavam três minutos das duas. Pensou: Não vai aparecer. Avistaram a equipa do Karp e estão a abortar. Perguntou:
- Mas onde é que ele está, foda-se?
- Tem calma, Gabe.
Um momento depois, Gabriel viu Yusef aparecer vindo de Westbourne Street e a correr pela estrada fora, à frente de um camião de entregas que se aproximava velozmente. Karp tirou um par de fotografias enquanto Yusef entrava no parque e se passeava pelas fontes. A meio do segundo circuito, um homem veio juntar-se-lhe, vestido com um sobretudo de lã cinzento, a cara oculta por óculos de sol e um chapéu de feltro. Karp passou para uma lente de maior alcance e tirou mais uma série de fotografias.
Deram uma volta às fontes em silêncio, depois, durante o segundo circuito, começaram a falar em voz baixa em inglês. Devido ao barulho do vento e das fontes, Gabriel só conseguia perceber cada terceira ou quarta palavra.
Karp praguejou em voz baixa.
Deram voltas às fontes por uns minutos, depois subiram uma rampa para um parque infantil. A rapariga que tinha estado a dar de comer aos patos seguiu devagar atrás deles. Passado um instante, a carrinha de vigilância estava repleta dos gritos de alegria de crianças a brincar.
Karp pressionou os olhos com os punhos e abanou a cabeça.
Karp entregou a cassete a Gabriel no posto de escuta, três horas mais tarde, com o ar resignado de um cirurgião que fizera tudo para salvar o doente.
- Passeia-a pelos computadores, filtrei o ruído de fundo e melhorei as partes boas. Mas receio que tenhamos apenas dez por cento, e mesmo isso soa a merda.
Gabriel esticou a mão e aceitou a cassete. Enfiou-a no gravador, carregou no PLAY e escutou enquanto percorria a sala de um lado ao outro.
... precisa de alguém... próxima missão...
Um som, como estática aumentada ao máximo, eliminou o resto da frase. Gabriel pôs a cassete em pausa e olhou para Karp.
- É a fonte - disse Karp. - Não há nada que consiga fazer com isso.
Gabriel reiniciou a cassete.
... vigia a... dela... em Paris... problemas... tudo bem.
Gabriel parou a cassete, carregou no botão de REBOBINAR, depois no PLAY.
... verificar a... dela em Paris... problemas... tudo bem.
... não tenho a certeza... a pessoa certa para... tipo de...
... sê persuasivo... se explicares a importância...
...o que é que eu... dizer-lhe ao certo?
... missão diplomática vital... causa da verdadeira paz no Médio Oriente. precaução de segurança de rotina...
... costumava funcionar... O nível do áudio caiu profundamente. Karp disse:
- Estão a chegar ao pé do parque infantil agora mesmo. Vamos conseguir cobertura daqui a um instante, quando a rapariga se colocar em posição.
... vai ter com ele... de Gaulle... a partir daí... até ao destino final...
... onde...
Uma criança magoada chora pela mãe, eliminando a resposta.
... lida com ela depois...
... é com ele...
... e se... diz que não...
Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
STOP. REBOBINAR. PLAY.
Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
E o que Gabriel ouviu a seguir foi uma mãe a repreender o filho por raspar um pedaço de pastilha elástica do fundo do baloiço e a pôr na boca.
Nessa noite, depois do trabalho, Jacqueline comprou caril e trouxe-o para o apartamento de Yusef. Enquanto comiam, viram um filme americano na televisão sobre um terrorista alemão à solta em Manhattan. Gabriel viu também com eles. Tirou o som à televisão e, em vez disso, ouviu pela de Yusef. Quando o filme terminou, Yusef declarou-o uma treta pegada e desligou a televisão.
Depois disse:
- Temos de falar de uma coisa, Dominique. Preciso de te pedir uma coisa importante.
Gabriel fechou os olhos e escutou.
Na manhã seguinte, Jacqueline saiu da carruagem na estação de metro de Piccadilly e circulou com a multidão pela plataforma fora. Enquanto subia a escada rolante, olhou à sua volta. Tinham de a estar a seguir: os observadores de Yusef. Ele não a deixaria solta pelas ruas de Londres sem uma escolta secreta, depois do que lhe pedira para fazer na noite anterior. Um homem de cabelos pretos estava a olhar fixamente para ela a partir de uma escada rolante paralela. Quando a apanhou olhos nos olhos, sorriu e tentou prender-lhe o olhar. Ela apercebeu-se de que era só um devasso. Virou-se e olhou em frente.
Lá fora, enquanto andava por Piccadilly, julgou ter descoberto Gabriel a utilizar uma cabina telefónica, mas era apenas um sósia de Gabriel. Julgou tê-lo visto outra vez a sair de um táxi, mas era apenas o irmão mais novo inexistente de Gabriel. Apercebeu-se de que havia versões de Gabriel a toda a sua volta. Rapazes com casacos de cabedal. Homens novos com fatos elegantes de negócios. Artistas, estudantes, moços de entregas - com pequenas alterações, Gabriel poderia passar por qualquer um deles.
Isherwood tinha chegado cedo. Estava sentado à secretária, a falar italiano ao telefone e parecendo ressacado. Pôs a mão sobre o auscultador e fez com a boca os movimentos das palavras Café, por favor.
Pendurou o casaco e sentou-se à secretária. Isherwood podia aguentar por mais uns quantos minutos sem o café. O correio da manhã estava em cima da secretária, juntamente com um envelope de papel manilha. Arrancou a dobra e tirou a carta do interior. vou para Paris. Não dês um passo para fora da galeria até teres notícias minhas. Amarrotou-a numa bola apertada.
PARIS
Gabriel não tinha tocado no pequeno-almoço. Estava sentado na carruagem de primeira classe do comboio Eurostar, com os auscultadores postos, a ouvir cassetes num pequeno leitor portátil. Os primeiros encontros entre Yusef e Jacqueline. Yusef a contar a Jacqueline a história do massacre em Shatila. A conversa de Yusef com Jacqueline na noite anterior. Tirou a cassete e enfiou mais uma: o encontro de Yusef com o contacto em Hyde Park. Já perdera a conta a quantas vezes a tinha ouvido. Dez vezes? Vinte? De cada vez, perturbava-o mais. Carregou no botão de rebobinar e utilizou o contador digital de cassetes para parar precisamente no ponto que queria ouvir.
... verificar a... dela em Paris... problemas... tudo bem.
STOP.
Afastou os auscultadores, tirou do bolso um pequeno bloco de notas e passou para uma página em branco. Escreveu: vigia a... dela... em Paris... problemas... tudo bem. Entre as frases, deixou espaços em branco correspondendo aproximadamente aos momentos de brancas na cassete.
Depois escreveu: Enviámos um homem para verificar a história dela em Paris. Não havia problemas. Está tudo bem.
Era possível que fosse isso que ele tivesse dito, ou podia ter sido isto: Enviámos um homem para verificar a história dela em Paris. Havia grandes problemas com ela. Mas está tudo bem.
Isso não fazia sentido. Gabriel riscou-o e a seguir enfiou os
auscultadores e ouviu a parte da cassete mais uma vez. Espera um minuto, pensou. Estaria o contacto de Yusef a dizer tudo bem ou outro lado?(1)
Desta vez escreveu: Enviámos um homem para verificar a história dela em Paris. Havia vários problemas com ela. Pensamos que possa estar a trabalhar para o outro lado.
Mas se fosse esse o caso, porque é que lhe pediriam para acompanhar um agente numa missão?
Gabriel carregou no botão de passar à frente, depois no STOP, depois no PLAY.
Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
Não te preocupes, Yusef. A tua namorada não te vai dizer que não.
Gabriel apanhou um táxi na estação de comboios e deu ao taxista uma morada na Avenue Foch. Cinco minutos mais tarde, anunciou que tinha mudado de ideias, entregou ao taxista alguns francos e saiu. Descobriu outro táxi. com um sotaque de italiano, pediu para ser levado para Notre-Dame. A partir daí, caminhou ao longo do rio, até à estação de metro de St.-Michel. Quando ficou seguro de que não estava a ser seguido, fez sinal a um táxi para parar e deu ao taxista uma morada no Décimo Sexto Arrondissement, perto de Bois de Boulogne. A seguir, andou quinze minutos, até a um prédio de apartamentos, numa rua frondosa, não muito longe da Place de Colombie.
Na parede do átrio de entrada estava um telefone interno e ao lado do telefone uma lista de moradores. Gabriel carregou no botão para o 4B, que tinha o nome Guzman em letra azul apagada. Quando o telefone tocou do outro lado da linha, murmurou umas quantas palavras, repôs o auscultador e esperou que a porta se abrisse. Atravessou a entrada, apanhou o elevador até ao quarto andar e bateu suavemente à porta do apartamento. Ouviu uma c
1 Lm inglês: evetytbing 's fine e other side. Gabriel achou que podia estar a confundir as duas expressões devido à semelhança dos sons. (N. da T.)
corrente a deslizar, seguida da fechadura a abrir-se. Aos ouvidos de Gabriel soava como um atirador a expulsar um cartucho gasto e a enfiar outro com força na câmara.
A porta abriu-se. Parado na soleira, estava um homem da altura de Gabriel, cabeça e ombros quadrados, com olhos azuis de aço e cabelo louro-avermelhado. Parecia extremamente satisfeito consigo próprio - como um homem que tinha tido demasiado sucesso com as mulheres. Não apertou a mão a Gabriel, apenas o puxou para dentro pelo cotovelo e fechou a porta, como se estivesse a tentar impedir o frio de entrar.
Um apartamento grande, escuro, o cheiro de café a escaldar e dos cigarros de Shamron a pairar pelo ar. Sofás largos, cadeiras de couro reclináveis, almofadas enormes - um sítio para os agentes esperarem. Na parede oposta, um centro de entretenimento repleto de componentes japonesas e filmes americanos. Nada de pornografia nos apartamentos seguros: regra de Shamron.
Shamron entrou na sala. Fez questão de mostrar que estava a olhar para o relógio.
- Noventa minutos - disse. - O teu comboio chegou há noventa minutos. Onde raio é que tens estado? Estava prestes a enviar um grupo à tua procura.
E eu nunca te disse como vinha para Paris ou a que horas chegava...
- Um percurso decente de detecção de vigilância demora tempo. Lembras-te de como se faz um desses, Ari, ou deixaste de ensinar essa aula na Academia?
Shamron estendeu a mão ressequida.
- Tens as cassetes?
Mas Gabriel olhou para o outro homem.
- Quem é este?
- É o Uzi Navot. O Uzi é o nosso katsa em Paris agora, um dos meus melhores homens. Tem estado a trabalhar comigo neste caso. Tens o prazer de conhecer o grande Gabriel, Uzi. Aperta a mão ao grande Gabriel Allon.
Gabriel percebeu que Navot era um dos acólitos de Shamron. O Departamento estava cheio deles: homens que fariam tudo trair, enganar, roubar, até mesmo matar - de modo a conquistar a aprovação de Shamron. Navot era novo e era petulante, e havia
em si uma arrogância que fez Gabriel antipatizar logo com ele. Brilhava como uma moeda acabada de cunhar. Os instrutores na Academia tinham-lhe dito que era membro da elite - um príncipe e Navot acreditara neles.
Quando Gabriel entregou as cassetes a Shamron e se afundou na cadeira de couro reclinável, só conseguia pensar numa coisa: Shamron, no Lizard na Cornualha, a prometer-lhe que a operação seria um segredo bem mantido dentro dos corredores do Boulevard do Rei Saul. Se era esse o caso, quem diabos era Uzi Navot e o que estava a fazer aqui?
Shamron atravessou a sala, colocou uma cassete no sistema de estéreo e carregou no PLAY. A seguir, sentou-se em frente a Gabriel e cruzou os braços. Quando Yusef começou a falar, fechou os olhos e inclinou ligeiramente a cabeça para o lado. Para Gabriel, parecia que estava a ouvir a melodia de uma música distante.
Um amigo meu, um palestiniano muito importante, precisa de fazer uma viagem ao estrangeiro para uma reunião crucial. Infelizmente, os sionistas e os seus amigos prefeririam que este homem não estivesse presente nesta reunião importante e, se o avistarem durante a viagem, provavelmente detêm-no e enviam-no de volta para casa.
E porque é que fariam isso?
Porque ousou questionar a justeza do suposto processo de paz Porque ousou desafiar a liderança palestiniana. Porque acredita que a única solução justa para o problema palestiniano é deixarem-nos regressar às nossas terras, onde quer que elas possam ser, e instituir um verdadeiro Estado binacional na terra da Palestina. Escusado será dizer que estas opiniões o tornaram bastante impopular- não só entre os sionistas e amigos, mas também entre alguns palestinianos. Em resultado disso, é um exilado e vive escondido.
O que é que queres de mim?
Porque este homem está sob constante ameaça, acha necessário tomar certas precauções. Quando viaja, fá-lo com um nome falso. É muito instruído e fala várias línguas. Pode fazer passar-se como sendo de diversas nacionalidades.
Continuo sem saber o que queres de mim, Yusef.
Os agentes de controlo de passaportes de todos os países ocidentais utilizam o que é conhecido como retrato de perfil para escolher viajantes para um escrutínio
mais apertado. Infelizmente, devido ao 'terrorismo árabe', os Árabes que viajam sozinhos estão sujeitos ao maior escrutínio de todos. Portanto, este homem prefere viajar com um passaporte ocidental e com outra pessoa - uma mulher.
Porquê uma mulher?
Porque um homem e uma mulher a viajar juntos levantam menos suspeitas do que dois homens. Este homem precisa de um companheiro de viagem, um parceiro, se quiseres. Gostava que fosses com ele nesta viagem.
Só podes estar a brincar.
Não ia brincar com uma coisa destas. A reunião em que este homem precisa de estar presente pode alterar o curso da história no Médio Oriente e para o povo palestiniano. É vital que chegue ao destino e lhe seja permitido estar presente nesta reunião e representar as opiniões de um grande número de palestinianos.
Porquê eu?
Por uma razão, o teu aspecto. És uma mulher muito atraente, muito capaz de desviar atenções. Mas também por causa do teu passaporte. Este homem - e peço desculpa, Dominique, mas não tenho autorização para te dizer o nome dele -prefere viajar com um passaporte francês. Vão passar por amantes, um homem de negócios de sucesso e a namorada mais nova.
Passar por amantes?
Sim, apenas passar por amantes. Nada mais, garanto-te. Este líder palestiniano não pensa em mais nada senão no bem-estar e no futuro do povo palestiniano.
Sou secretária numa galeria de arte, Yusef. Não faço coisas dessas. Para além disso, porque é que havia de me arriscar por ti e pelo povo palestiniano? Arranja uma palestiniana para o fazer.
Nós utilizaríamos uma palestiniana se pudéssemos. Infelizmente, é necessário uma europeia.
Nós, Yusef? O que é que queres dizer com nós? Pensei que fosses um estudante. Pensei que fosses um empregado, por amor de Deus. Quando é que nos envolvemos com um homem que tem de viajar com um nome falso para uma reunião que vai mudar o curso da história no Médio Oriente? Isso é que é honestidade total, hem, Yusef?
Não fiz segredo das minhas crenças políticas. Não fí segredo da minha oposição ao processo de paz.
Sim, mas acabaste por fazer segredo do facto de estares envolvido com pessoas assim. O que é ele, Yusef Algum tipo de terrorista?
Não sejas ridícula, Dominique! As pessoas com quem estou envolvido nunca cometeriam um acto de violência e condenam qualquer grupo que o faça. Para além disso, pareço-te mesmo algum tipo de terrorista?
Então onde é que ele vai? Como é que funcionaria?
Estás a dizer que o vais fazer?
Estou a perguntar onde é que o teu amigo vai e como é que funcionaria nada mais.
Não te posso dizer onde é que ele vai.
Oh, Yusef, por favor. Isto é...
Não te posso dizer onde é que ele vai porque até eu não sei Mas posso dizer-te como funcionaria.
Estou a ouvir.
Viajas para Paris - para o Aeroporto Charles de Gaulle. Encontras-te com o líder palestiniano no terminal. Só ele e alguns dos assistentes mais próximos sabem onde é que vai. Vais acompanhá-lo até à porta de embarque e subir para o avião. O destino pode ser o local da reunião ou talvez tenham de apanhar um outro voo - ou um comboio, ou um ferry, ou ir de carro. Não sei. Quando a reunião tiver terminado, regressam a Paris e cada um segue o seu caminho. Nunca mais o vais voltar a ver e nunca vais mencionar isto a mais ninguém.
E se ele for preso? O que é que me acontece?
Não fizeste nada de mal. Vais viajar com o teu próprio passaporte. Vais dizer que este homem te convidou a ir em viagem com ele e que aceitaste. Muito simples, sem problemas.
Quanto tempo?
Deves fazer planos para uma semana mas esperar menos.
Não posso deixar simplesmente a galeria durante uma semana. Não tenho direito a nenhum tempo de férias e o Isherwood ia entrar em colapso.
Diz ao senhor Isherwood que tens uma emergência de família em Paris. Diz-lhe que não o podes evitar.
E se ele resolve despedir-me?
Não te vai despedir. E se é o dinheiro que te preocupa, podemos arranjar-te qualquer coisa.
Não quero dinheiro, Yusef. Se ofizer, é porque mo pediste. Faço-o porque
estou apaixonada por ti, ainda que não acredite completamente que sejas mesmo a péssó a que pareces ser.
Sou só um homem que ama o seu país e o seu povo, Dominique.
Preciso de pensar nisto.
Claro que precisas de pensar nisso. Mas enquanto tomas a tua decisão é essencial que não o discutas com ninguém.
Compreendo, suponho. Quando é que precisas de uma resposta?
Amanhã à noite.
Quando a cassete terminou, Shamron olhou para cima. - Porquê essa cara soturna, Gabriel? Porque é que não estás aos saltos de alegria?
- Porque me parece demasiado bom para ser verdade.
- Não vais começar outra vez com isto, pois não, Gabriel? Se achassem que ela estava a trabalhar para nós, já estava morta e o Yusef estava a esconder-se.
- Não é assim que o Tariq joga.
- Do que é que estás a falar?
- Talvez queira mais do que um agente de pouca importância como ajacqueline. Lembras-te de como matou o Ben-Eliezer em Madrid? Montou uma armadilha, atirou-lhe o isco, atraíu-o até lá. Não deixou nada ao acaso. Depois deu-lhe um tiro na cara e saiu como se nada se tivesse passado. Bateu-nos no nosso próprio jogo, e o Ben-Eliezer pagou o preço.
- Bateu-me. É isso que estás a tentar dizer, não é, Gabriel? Se eu tivesse sido mais cuidadoso, nunca tinha deixado o Ben-Eliezer entrar naquele café em primeiro lugar.
- Não te estava a culpar.
- Se não eu, então quem, Gabriel? Era o chefe de operações. Aconteceu no meu turno. Em última análise, a morte dele é minha responsabilidade. Mas o que é que queres que faça agora? Que corra e me esconda, porque o Tariq já me bateu antes? Que arrume a trouxa e vá para casa? Não, Gabriel.
- Fica com o Yusef. Afasta-te.-
- Não quero o Yusef, Quero o Tariq!
Shamron bateu com o punho grosso no braço da cadeira.
- Faz todo o sentido. O Tariq gosta de utilizar mulheres legítimas como cobertura. Sempre gostou. Em Paris, foi a rapariga americana. Em Amesterdão, foi a puta que gostava de heroína. Até utilizou uma...
Shamron deteve-se, mas Gabriel sabia no que estava a pensar. Tariq tinha utilizado uma mulher em Viena, uma bonita empregada de loja austríaca que foi encontrada no Danúbio na noite do atentado à bomba com metade da garganta desaparecida.
- Vamos partir do princípio de que tens razão, Gabriel. Vamos partir do princípio de que o Tariq suspeita que a Jacqueline esteja a trabalhar para o Departamento. Vamos partir do princípio de que está a montar uma armadilha para caírmos nela. Mesmo que seja esse o caso, a vantagem continua a ser nossa. Nós decidimos quando forçar a acção. Escolhemos a altura e o sítio, não o Tariq.
- com a vida da Jacqueline em jogo. Não estou preparado para arriscar isso. Não quero que ela acabe como todas as outras.
- Não acaba. É uma profissional e vamos estar com ela a cada passo.
- Há duas semanas atrás estava a trabalhar como modelo. Já não está em campo há anos. Pode ser uma profissional, mas não está preparada para uma coisa assim.
- Deixa-me revelar-te um pequeno segredo, Gabriel. Ninguém está nunca completamente preparado para uma coisa assim. Mas a Jacqueline é capaz de tomar conta de si própria.
- Também não gostei das regras do jogo deles. Temos de a deixar ir para o Charles de Gaulle e apanhar um avião, mas não sabemos para onde é que o avião vai. Vamos andar a brincar à apanhada a partir do momento em que o jogo começar.
- Vamos ficar a saber para onde vão assim que entrarem na porta de embarque, e vamos estar a vigiá-los assim que saírem do avião no outro lado. Não vai estar fora da nossa vista por um minuto.
- E a seguir?
- Quando o momento se proporcionar, eliminas o Tariq e acabará.
- Podemos prendê-lo no Charles de Gaulle.
Shamron franziu os lábios e abanou a cabeça. Gabriel perguntou:
- Porque não?
Shamron levantou o indicador grosso.
- Em primeiro lugar, porque implicava envolver os Franceses, uma coisa que não estou preparado para fazer. Em segundo lugar, ninguém conseguiu montar um caso contra o Tariq que se aguente em tribunal. Em terceiro lugar, se dissermos aos Franceses e aos nossos amigos em Langley que sabemos onde é que o Tariq vai estar num determinado dia, vão querer saber como é que nos chegou essa informação. Isso também significava confessar aos nossos irmãos em Londres que temos andado a executar uma operação no território deles e que nos esquecemos de lhes dizer. Não vão ficar satisfeitos com isso. Finalmente, a última coisa de que precisamos é do Tariq atrás das grades, um símbolo para todos aqueles que gostariam de ver destruído o processo de paz. Preferia que desaparecesse sem alarido.
- Então e um rapto?
- Achas mesmo que íamos conseguir tirar o Tariq do meio de um terminal apinhado no Charles de Gaulle? É claro que não. Se queremos o Tariq, vamos ter de jogar segundo as regras dele por umas horas.
Shamron acendeu um cigarro e apagou o fósforo sacudindo-o violentamente.
- É contigo, Gabriel. Uma operação destas requer a aprovação directa do primeiro-ministro. Ele está no gabinete neste preciso momento, à espera de saber se estás ou não preparado para ir com isto em frente. O que é que lhe devo dizer?
ST. JAMES'S, LONDRES
O meio da tarde, tinha decidido Julian Isherwood, era a parte mais cruel do dia. O que era ao certo? O cansaço de um bom almoço? O escurecer precoce de Londres no Inverno? O ritmo sonolento da chuva a tamborilar nas suas janelas? Esta zona limbo do dia tinha-se tornado o purgatório pessoal de Isherwood, um duro espaço de tempo entalado entre a esperança sentimental que sentia a cada manhã, quando chegava à galeria, e a realidade fria do declínio que sentia a cada final de tarde, enquanto voltava para casa, em South Kensington. Três da tarde, a hora da morte: demasiado cedo para fechar - isso teria a sensação de uma capitulação total -, demasiadas horas para preencher com muito pouco trabalho de importância.
Por isso, estava sentado à secretária, a mão esquerda à volta da forma reconfortante de uma chávena de chá quente, a direita a folhear morosamente uma pilha de papéis: contas que não podia pagar, avisos de bons quadros a chegar ao mercado que não se podia dar ao luxo de comprar.
Levantou a cabeça e espreitou por uma entrada que separava o escritório da sala de espera, na direcção da criatura sentada à pequena secretária de director. Uma figura estonteante, esta rapariga que dava pelo nome de Dominique: uma verdadeira obra de arte, aquela. Ao menos, tinha tornado mais interessantes as coisas na galeria, quem quer que fosse.
No passado, insistira em manter a entrada que separava os dois
escritórios bem fechada. Era um homem importante, gostava de pensar - um homem que tinha discussões importantes com gente importante - e quisera uma muralha entre si e a secretária. Agora, percebeu que preferia mantê-la aberta. Oh, se fosse vinte anos mais novo, no auge dos seus poderes. Podia tê-la tido nessa altura. Tinha tido bastantes nessa altura, raparigas exactamente como ela. Não era só o dinheiro, ou a casa de campo em St.-Tropez, ou o iate. Era a arte. Os quadros eram um afrodisíaco melhor do que a cocaína.
No seu copioso tempo livre, Isherwood tinha engendrado todo o tipo de fantasias acerca dela. Pôs-se a pensar se seria sequer francesa ou apenas uma daquelas israelitas que se podiam passar praticamente por tudo. Também descobrira que a achava vagamente intimidante, o que tornava verdadeiramente impossível considerar sequer o acto físico de amor com ela. Ou sou só eu? pensou. É assim que lidamos com a decadência do envelhecimento? com a diminuição do nosso poder? A deterioração das nossas capacidades? A mente liberta-nos misericordiosamente do desejo, para nos pormos de lado com graciosidade, em favor da geração mais nova e não fazermos figura de completos anormais por causa de mulheres como a Dominique Bonard?
Mas enquanto a observava agora, percebeu que havia qualquer coisa errada. Tinha estado nervosa o dia todo. Recusara-se a sair da galeria. Convidara-a a almoçar no Wilton's - nada de suspeito, entenda-se: sem segundas intenções -, mas recusara e, em vez disso, pedira para entregarem uma sanduíche do café. Talvez tivesse algo a ver com o rapaz árabe que tinha vindo à galeria na outra noite Yusef, tinha-lhe chamado. Ou talvefosse Gabriel. Isherwood estava certo de uma coisa. Se Gabriel alguma vez a magoasse, da maneira como magoou aquele rapazinho na Cornualha - Meu Deus, qual era o nome dele? Pearl? Puck? Não, era Peel - bom... Infelizmente, não havia muito que pudesse fazer a Gabriel, a não ser nunca lhe perdoar.
Lá de fora, ouviu dois toques bruscos de uma buzina automóvel. Levantou-se e foi até à janela. Por baixo de si, na calçada de Mason's Yard, estava uma carrinha de entregas parada mesmo à frente das portas fechadas da zona de cargas e descargas.
Curioso, não havia entregas agendadas para hoje. O condutor voltou a buzinar, desta vez com força e alto. Por amor de Deus, pensou Isherwood. Mas quem raio és tu? E o que é que queres?
Depois espreitou através do pára-brisas da frente. Devido ao ângulo, não conseguia ver a cara do condutor, apenas conseguia ver umas mãos, à volta do volante. Teria reconhecido aquelas mãos em qualquer lado. As melhores mãos do ramo.
Subiram no elevador até à galeria superior, Jacqueline entre eles, como uma prisioneira, Gabriel à esquerda, Shamron à direita. Ela tentou olhar para Gabriel olhos nos olhos, mas ele estava a olhar em frente. Quando a porta se abriu, Shamron guiou-a até ao banco para apreciar as obras, como se estivesse a colocar uma testemunha no banco dos réus. Sentou-se com as pernas cruzadas pelos tornozelos, os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo apoiado nas mãos. Gabriel estava parado atrás dela. Shamron andava de um lado para o outro da galeria, como um potencial comprador nada impressionado com a mercadoria.
Falou durante vinte minutos sem parar. Enquanto Jacqueline o observava, pensou na noite em que a tinha convidado a juntar-se ao Departamento. Sentiu a mesma sensação de propósito e dever que sentira nessa noite. O pequeno corpo agitado de Shamron revelava tanta força que os medos dela pareciam esfumar-se. À primeira vista, o que lhe estava a pedir era chocante - acompanhar o terrorista mais perigoso do mundo numa missão -, mas foi capaz de lhe avaliar as palavras sem a emoção incómoda do medo. Pensou: Shamron não tem medo; logo, não tenho medo. Tinha de admitir que estava fascinada pela simples ideia daquilo. Imagine-se, a rapariga de Marselha, cujos avós foram assassinados no Holocausto, a ajudar a destruir Tariq al-Hourani e a preservar a segurança de Israel. Seria o final perfeito para a carreira no Departamento, a realização de todos os desejos que a fizeram alistar-se em primeiro lugar. Também provaria a Gabriel que ela também conseguia ser corajosa.
- Tens todo o direito de nos dizer que não - disse Shamron.
- Aceitaste participar numa operação muito diferente desta: uma
muito mais curta em duração e com risco físico consideravelmente inferior. Mas a situação alterou-se. Às vezes, as operações são assim.
Parou de andar de um lado para o outro e ficou exactamente à frente dela.
- Mas posso garantir-te uma coisa, Jacqueline. A tua segurança será a nossa primeira prioridade. Nunca estarás sozinha. Vamos acompanhar-te até ao aeroporto e estaremos à espera do outro lado quando saíres. Iremos para onde quer que vás. E à primeira vez que a oportunidade se proporcionar, vamos avançar e terminar com as coisas. Também tens a minha palavra de que, se a tua vida estiver em perigo, avançaremos nesse momento, independentemente das consequências. Compreendes o que te estou a dizer?
Acenou com a cabeça. Shamron enfiou a mão na pasta, tirou uma caixinha em forma de presente, cerca de cinco centímetros por cinco centímetros, e entregou-a a Jacqueline. Abriu-a. Um isqueiro dourado, aconchegado em algodão branco.
- Envia um sinal luminoso com um alcance de cinquenta quilómetros. O que significa que, se alguma coisa correr mal, se perdermos o contacto contigo por alguma razão, vamos ser sempre capazes de te voltar a encontrar.
Jacqueline tirou o isqueiro da caixa e carregou na mola. O isqueiro expeliu uma estreita língua de fogo. Quando enfiou o isqueiro no bolso do peito da blusa, a cara de Shamron soltou um breve sorriso.
- Sinto-me obrigado a informar-te que o teu amigo Gabriel tem sérias reservas em relação a tudo isto.
Estava outra vez em andamento, agora parando em frente à paisagem de Claude.
- Gabriel tem medo de que possas estar a enfiar-te numa armadilha. Normalmente, confio na opinião de Gabriel. Temos um passado considerável entre nós. Mas neste caso, encontro-me em desacordo respeitoso com ele.
- Compreendo - murmurou Jacqueline, mas estava a pensar na noite em que tinha trazido Yusef a esta mesmíssima sala.
O Claude nasceu em França, mas viveu quase toda a vida em Venera, se não me engano.
Por acaso, enganas-te. O Claude viveu e trabalhou em Roma. Talvez a estivesse a testar, já mesmo nessa altura. Shamron continuou:
- Podia dizer-te várias coisas. Podia dizer-te que o Tariq é um animal com o sangue de centenas de judeus nas mãos. Podia lembrar-te que matou o nosso embaixador e a mulher a sangue-frio em Paris. Podia lembrar-te que matou um grande amigo de Israel e a mulher em Amesterdão. Podia dizer-te que está a planear atacar novamente. Que estarás a prestar um grande serviço ao Estado de Israel e ao povo judeu. Podia dizer-te estas coisas todas, mas não te posso dizer para fazeres isto.
Jacqueline olhou para Gabriel, mas ele estava parado em frente ao Del Vagga, a esticar o pescoço para o lado, como se estivesse à procura de falhas no último restauro. Não olhes para mim, estava a dizer. Esta decisão é tua, só tua.
Shamron deixou-os a sós. Gabriel atravessou a sala e ficou parado onde Shamron estivera. Jacqueline queria-o mais perto, mas Gabriel parecia necessitar de uma zona de protecção. A cara já tinha mudado. Era a mesma mudança que se apoderara dele em Tunes. Tinha havido dois Gabriel em Tunes. O Gabriel da fase da vigilância, quando tinham sido amantes, e o Gabriel da noite do assassinato. Lembrou-se do aspecto dele durante a viagem da praia até à casa de campo: parte determinação severa, parte temor. Tinha o mesmo aspecto agora. Era a sua cara de matar. Quando falou, retomou onde Shamron parara. Só a qualidade da voz era diferente. Quando Shamron falou, Jacqueline quase podia ouvir tambores a ressoar. Gabriel falava suave e tranquilamente, como se estivesse a contar uma história a uma criança à hora de dormir.
- O teu elo de ligação ao Departamento vai ser o telefone do teu apartamento aqui em Londres. A linha vai ser encaminhada para a sede em Telavive através de uma ligação segura. Quando chegares ao destino, diz ao Tariq que precisas de ver as mensagens. Quando telefonares, as pessoas no Departamento vão ver o numero
27 de onde estás a ligar e localizá-lo. Se estiveres sozinha, até podes falar com eles e passar-nos mensagens. Vai ser muito seguro.
- E se não me deixar usar o telefone?
- Então armas uma cena. Dizes-lhe que o Yusef nunca te disse que não ias poder usar o telefone. Dizes-lhe que o Yusef nunca te disse que te ias tornar uma prisioneira. Diz-lhe que, a não ser que possas ver as mensagens, te vais embora. Lembra-te, tanto quanto sabes, este homem é um dignitário palestiniano qualquer. Está numa missão diplomática. Não é alguém que tenhas de temer. Se percebe que estás com medo dele, vai suspeitar que sabes mais do que devias saber.
- Compreendo.
- Não fiques surpreendida se ouvires mensagens no teu atendedor. Vamos lá colocar algumas. Lembra-te, de acordo com as regras ditadas pelo Yusef, ninguém a não ser o Julian Isherwood pode saber que estás fora. Talvez o Isherwood ligue a perguntar quando é que estás a pensar regressar. Talvez tenha algum tipo de emergência na galeria que precise da tua atenção. Talvez um familiar ou um amigo telefonem de Paris para saber como te estão a correr as coisas em Londres. Até pode ser que um ligue para te convidar para jantar. És uma mulher atraente. Seria suspeito se não houvesse homens a andar atrás de ti.
Pensou: Então porque não tu, Gabriel?
- Hoje à noite, antes de lhe dares uma resposta, quero que manifestes sérias dúvidas sobre tudo isto uma vez mais. Para ajacqueline Delacroix, o conceito de viajar com um desconhecido pode soar razoável, mas para a Dominique Bonard soa a completa loucura. Quero que discutas com ele. Quero que o forces a dar-te garantias acerca da tua segurança. No fim, claro, vais concordar ir, mas não sem uma discussão. Compreendes-me?
Jacqueline acenou com a cabeça devagar, fascinada com a intensidade serena da voz de Gabriel.
- Faz com que tenhas esta conversa no apartamento dele. Quero ouvir o que ele tem para dizer. Quero ouvir-lhe a voz uma última vez. Depois de concordares fazê-lo, não fiques surpreendida se ele se recusar a deixar-te ficar longe dele. Não fiques surpreendida se te
levar para outro sítio para passares a noite. A Dominique Bonard pode querer protestar em relação a isso, pode querer fazer ameaças vãs de se ir embora, mas ajacqueline Delacroix não deve ficar de maneira nenhuma surpreendida. E, independentemente de onde te levar, vamos estar por perto. Vamos estar a vigiar. Eu vou estar a vigiar.
Parou por um momento e, como Shamron antes de si, começou a andar devagar de um lado para o outro da galeria. Parou em frente ao Luni e olhou para a imagem de Vénus. Jacqueline pôs-se a pensar se ele era capaz de apreciar a beleza de uma peça de arte ou se tinha sido condenado a procurar apenas as falhas. Voltou-se e sentou-se ao lado dela no banco.
- Quero dizer-te mais uma coisa. Quero que estejas preparada para como isto vai terminar. Pode acontecer num sítio tranquilo, completamente fora da vista, ou no meio de uma rua movimentada. Onde estou a tentar chegar é que nunca vais saber quando é que vai terminar. Podes ver-me a vir, ou talvez não. Se de facto me vires, não deves olhar para mim. Não deves hesitar ou chamar-me. Não deves fazer qualquer barulho. Não deves fazer nada que o alerte para a minha presença. Caso contrário, podemos acabar os dois mortos.
Parou por um momento, depois acrescentou:
- Ele não vai morrer logo. Uma Beretta calibre vinte e dois não é esse tipo de arma. São precisos vários tiros no sítio certo. Depois de o derrubar, vou ter de terminar o trabalho. Só há uma maneira de fazer isso.
Fez da mão uma pistola e encostou o indicador à têmpora dela.
- Não quero que me vejas quando fizer isto. Não é quem eu sou.
Ela esticou-se e afastou-lhe a mão da cabeça. Dobrou-lhe o indicador para a palma da mão, para que esta não se parecesse mais com uma Beretta. Então, finalmente, Gabriel inclinou-se para a frente e beijou-lhe os lábios.
- Como é que ela está? - perguntou Shamron enquanto Gabriel virava para Oxford Street e seguia para este.
- Está determinada.
- E tu?
- Os meus sentimentos são irrelevantes nesta altura.
- Não estás de maneira nenhuma excitado? Não estás entusiasmado com a perspectiva de ir para a batalha? A perseguição não te faz sentir completamente vivo?
- Perdi esses sentimentos há muito tempo.
- Tu e eu somos diferentes, Gabriel. Não tenho vergonha de o admitir, mas vivo para este momento. Vivo para o momento em que posso pôr o pé na garganta do meu inimigo e esmagá-lo, cortando-lhe a respiração.
- Tens razão. Tu e eu somos muito diferentes.
- Se não soubesse, diria que sentes qualquer coisa por ela.
- Sempre gostei dela.
- Nunca gostaste de ninguém ou de nada na vida. Sentes amor, sentes ódio ou não sentes nada de nada. Não há meio-termo para ti.
- É isto que os psiquiatras da sede costumavam dizer acerca de mim?
- Não precisava de um psiquiatra para me dizer uma coisa tão óbvia.
- Podemos mudar de assunto, por favor?
- Tudo bem, vamos mudar de assunto. O que é que sentes em relação a mim, Gabriel? É amor, ódio ou nada de nada?
- Há coisas que é melhor ficarem por dizer.
Gabriel atravessou Tottenham Court Road e entrou em Holborn. Em New Square, parou na borda do passeio. Shamron tirou um ficheiro fino da pasta e levantou-o para Gabriel ver.
- Isto tem todas as fotografias conhecidas do Tariq. Não existem muitas e as que de facto temos estão datadas. Dá-lhes uma vista de olhos, de qualquer forma. Seria bastante embaraçoso se disparássemos sobre o homem errado.
- Como em Lillehammer - disse Gabriel.
Shamron fez uma careta perante a simples menção de Lillehammer, uma aldeia para esquiar norueguesa e o local do pior fiasco operacional da história da espionagem israelita. Em Julho de 1973,
um par de kidons da equipa de Shamron assassinaram um homem que acreditavam ser Ali Hassan Salameh, o chefe das operações do Setembro Negro e o cérebro por trás do massacre de Munique. Veio a revelar-se um caso trágico de identidade trocada - o homem não era Salameh mas um empregado marroquino que era casado com uma norueguesa. Depois do assassínio, Gabriel e Shamron escaparam, mas vários membros da equipa de ataque caíram nas mãos da polícia norueguesa. Shamron mal conseguiu salvar a carreira. No Boulevard do Rei Saul, o desastre de Lillehammer ficou conhecido como Leyl-ha-Mar, que em hebreu quer dizer a noite da amargura.
Shamron perguntou:
- Por favor, achas mesmo que agora é uma boa altura para mencionar Leyl-ha-Mar?
Parou e a seguir sorriu com surpreendente ternura.
- Sei que me achas um monstro. Sei que me achas um homem completamente sem princípios morais. Talvez tenhas razão. Mas sempre te amei, Gabriel. Sempre foste o meu favorito. Eras o meu príncipe do fogo. Não importa o que aconteça, quero que te lembres disso.
- Onde é que vais, já agora?
- Vamos precisar de um avião amanhã. Pensei em fazer uma reserva na Air Stone.
- Ari, não estás a beber! Não é justo!
- Desculpa, Benjamin, mas tenho uma noite longa pela frente.
- Trabalho?
Shamron inclinou ligeiramente a cabeça para indicar que sim.
- Então e o que é que te traz aqui?
- Preciso de um favor.
- É claro que precisas de um favor. Caso contrário, não estavas aqui. Espero que não tenhas vindo à procura de dinheiro, já que o Banco de Stone está temporariamente fechado e a tua conta está com um grande saldo a descoberto. Para além disso, o dinheiro desapareceu. Os credores andam a cantar o raio de uma ária. Querem o que é deles por direito. É engraçado como os credores podem ser. Quanto às pessoas que me costumam emprestar dinheiro,
bom, digamos simplesmente que se estão a dirigir para águas mais calmas. O que te estou a tentar dizer, Ari, meu velho, é que estou com uma porra de um grave problema financeiro.
- Não tem a ver com dinheiro.
- Então o que é? Fala, Ari!
- Preciso de te pedir emprestado o teu jacto. Na verdade, preciso de te pedir emprestado a ti e ao teu jacto.
- Estou a ouvir. Agora tens a minha atenção.
- Amanhã, um inimigo do Estado de Israel vai apanhar um voo no Charles de Gaulle. Infelizmente, não sabemos que voo nem qual é o seu destino. E não vamos saber até ele entrar no avião. É imperativo que o sigamos rapidamente e que cheguemos com algum grau de sigilo. Um voo charter El Al não programado, por exemplo, podia levantar suspeitas. Tu, no entanto, tens uma reputação de viagens impetuosas e de alterações de último minuto no teu horário e itinerário.
- Podes crer, Ari. Ir e vir como o vento. Mantém as pessoas em alerta, foda-se. É aquele assunto em Paris, não é? É por isso que me ficaste com o dinheiro antes. Devo dizer que estou intrigado. Parece que vou estar envolvido numa verdadeira operação. Linhas da frente, coisa pesada. Como é que posso dizer que não?
Stone agarrou de repente no telefone.
- Preparem o avião. Paris, uma hora, a suíte habitual no Ritz!, a rapariga habitual. A do piercing de diamante na língua. Um sonho!, essa. Tenham-na à espera no quarto.
Desligou, voltou a encher o copo de champanhe e ergueu-o na direcção de Shamron.
- Não tenho palavras que cheguem para te agradecer, Benjamin.
- Ficas a dever-me, Ari. Um dia, eu vou precisar de um favor. Um dia, todas as dívidas são saldadas.

 

 


CONTINUA