Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O AVATAR I
Num passado que se perdia na bruma dos tempos, uma raça misteriosa, a que se chamava simplesmente “Os Outros”, deixara à humanidade um legado precioso que era simultaneamente um grande desafio; uma passagem assinalada para alcançar as estrelas inexploradas. E a humanidade utilizou essa passagem para colonizar o sistema da estrela Phoebus, mas deixou inexplorado tudo o que restava da galáxia...
Num ambiente político conturbado, a grande nave Emissário utiliza a passagem pára uma viagem de exploração. Mas, quando regressa, os governantes da União mandam aprisionar a nave e deter a tripulação, ao mesmo tempo que proíbem qualquer futura exploração do espaço...
Apenas um homem, um colono de Deméter, consegue aperceber-se da situação e empreende uma ação desesperada para salvar o presente e acautelar o futuro...
Eu era uma bétula, esbelta na minha brancura no meio de um prado, mas não tinha nome para aquilo que eu era. As minhas folhas bebiam energia da luz do Sol, que perpassava através delas e lhes fixava o verde resplandecente. As minhas folhas dançavam ao vento, que tirava melodias dos meus ramos como se eles fossem uma harpa. Mas eu não via nem ouvia. Os dias, já a encurtar, deram-me um tom de mel-queimado; a geada acabou por me desfolhar, deixando-me nua; a neve estendeu-se em torno de mim durante a minha longa sonolência. Depois Orion perseguiu a sua presa para além deste firmamento e o Sol dirigiu-se para o Norte para brilhar sobre mim e me despertar. Mas de nada disto eu tinha percepção.
E no entanto eu tudo registrrava, porque vivia. Cada célula dentro de mim sentia de maneira secreta como o céu reluzia primeiro em todo o seu esplendor e depois mergulhava na quietude, como o ar soprava em vendaval ou uivava ou me acariciava num sonho, como a chuva caía fria a tamborilar, como a água e os vermes abriam caminho até às minhas raízes penetrantes, como as avezitas pipilavam no ninho onde eu lhes dava abrigo e tremiam, como a erva e o dente-de-leão me envolviam num amplexo, e como o húmus reverdecia enquanto a Terra avançava na sua rota por entre as estrelas. Cada novo ano que findava deixava gravado um anel no meu corpo, a lembrar a sua passagem. Embora não tivesse consciência disso, eu estava ainda em Criação e fazia parte dessa Criação. Embora não compreendesse, eu sabia. Era Árvore.
Quando a Emissário transpôs a passagem e Febo brilhou de novo sobre ela, metade daquela dúzia de tripulantes que tinham sobrevivido estava reunida na sua sala comum, juntamente com o passageiro vindo de Beta. Após tão longa ausência, queriam acompanhar as fases deste regresso nos maiores écrans que tinham e participar de uma cerimônia, num brinde com o último vinho que restava a bordo, bebendo-o com votos de boa chegada. O pessoal que estava de serviço juntou-se aos colegas, fazendo ouvir as suas vozes pelos intercomunicadores. Salud, Proost, Skal. Banzai. Saúde. Zdoroviye. Prosit. Mazel tov. Santé. Viva. Aloha — disse cada um do ponto onde se encontrava.
Do seu posto ao computador, Joelle Ky murmurou, em nome daqueles que tinham ficado para trás para todo o sempre,Zivio por Alexander Vlantis, Kan bei por Yuan Chichao, Cheers por Christine Burns. Não acrescentou nada em seu próprio nome. Refletiu em como estava a ficar sentimental, e desejou no seu íntimo que ninguém a tivesse ouvido. Ficou a olhar num pequeno écran que estava ali para lhe fornecer elementos visuais no caso de serem necessários. No meio dos instrumentos de medição e controlo, do equipamento emissor e receptor que enchia a cabina, o écran abria-se como uma janela sobre p mundo.
O “mundo” ali significava o “universo”. A amplificação foi ajustada no um, mostrando simplesmente aquilo que se poderia ver a olho nu. No entanto, as estrelas brilhavam em tal quantidade e com tal esplendor — diamante puro, safira, topázio, rubi — que as trevas em redor e muito para além pareciam um cálice a envolvê-las. Mesmo no Sistema Solar, Joelle não podia ter descoberto constelação nenhuma tão densa. Contudo, a configuração da Via Láctea pouco tinha mudado em comparação com as noites por cima de Nova Iorque. Com aquele brilho gelado como guia, deparou com uma luminosidade vermelha, que era M31; e teria parecido igual em Beta também, pois é irmã de toda a nossa galáxia.
Todavia, Joelle quis de repente ter diante dos olhos uma imagem mais familiar. A necessidade do reconforto que isso lhe daria surpreendeu-a, a ela, holoteta, para quem tudo quanto é visível não passava de um manto a cobrir a realidade. Os últimos oito anos terrestres deviam ter-lhe penetrado na alma mais fundo do que ela pensava. Sem querer esperar as horas, talvez mesmo os dias, até poder ver o Sol de novo, fez deslizar os dedos pelo teclado que ali estava diante dela, dirigindo o foco para Febo. Pelo menos tinha-o vislumbrado ao partir e vira inúmeras fotografias dele durante a vida.
Pusera já o capacete na cabeça e estava completada a ligação com o computador, com o banco de memória e com os instrumentos de bordo. Um instante depois de ter desejado aquela zona do céu, já a tinha calculado. Para si tratava-se de uma operação banal: era como saber onde pôr a mão para tirar uma ferramenta ou deduzir donde vinha um som. Nada de misterioso naquilo.
A cena mudou para um setor diferente. Apareceu um disco, ligeiramente maior do que o Sol observado da Terra ou da Lua, um pouco mais amarelo, tipo G5. A luminescência fotosférica, dez por cento superioras recebida pela Terra, havia sido automaticamente atenuada para evitar que a operadora se sentisse ofuscada. As intensidades menores permaneciam com o seu brilho natural. Assim, Joelle descobriu pontos na superfície, fulgores no limbo, nácar da coroa, tênues traços de luz zodiacal. Sim, pensou ela, Febo.tem a mesma beleza do meu Sol. Centrum não, e só agora sinto quanto me fazia falta esta beleza.
Os dedos de Joelle avançaram, à procura de uma vista de Deméter. Era problema que ela podia ter solucionado simplesmente com o seu cérebro, sem recorrer a mais nada. Acabada agora a viagem que fizera, a Emissário flutuava junto da passagem. E mantinha-se numa posição Lagrange 4 em relação ao planeta, na mesma órbita do que ele mas com 60° de avanço. A escova de captação devia meramente deslizar ao longo da eclíptica para encontrar o que Joelle pretendia.
A uma distância de 0,81 unidades astronômicas, sem ampliação Deméter parecia-se com as estrelas que o rodeavam, mais brilhantes do que a maior parte delas e mais azul do que algumas. Estás aí, Dan Brodersen? —perguntava Joelle a si mesma. E depois concluía: Sim, deves estar. Andei lá por fora oito anos, enquanto se passavam escassos dos vossos meses. Quantos, ao certo? Nem sei. Fidélio não pode dizer com precisão.
Uma chamada geral do capitão Langendijk veio interromper-lhe o devaneio. “Atenção, por favor. Os nossos radares registrram a presença de duas naves. Uma, naturalmente, é a nave oficial de vigilância e está a emitir sinais para entrar em comunicação conosco . Vou ligá-la ao intercomunicador, mas peço que não interrompam a conversa nem façam barulho desnecessário. Melhor será eles não saberem que vocês estão a ouvir.”
Por um momento Joelle sentiu-se surpreendida. Porque haveria o capitão Langendijk de tomar precauções daquelas? Como se o regresso da Emissário não pudesse ser motivo de regozijo para toda a espécie humana! Donde viria aquela nota de tensão na sua voz? A resposta feria-a no seu íntimo. Joelle tinha-se mantido indiferente a questões partidárias. Essas questões quase não existiam para ela. Uma vez, porém, recrutada para esta tripulação, não podia deixar de ouvir falar de disputas e de intrigas. Brodersen tinha-lhe explicado os fatos um tanto sombriamente, e eles haviam com freqüência sido objeto de conversa em Beta. Um forte grupo de pressões dentro da humanidade nunca vira com bons olhos aquela expedição e não se iria agora sentir nada satisfeita com o seu êxito.
Duas naves, ambas provavelmente em órbita em torno da máquina T. A segunda deve ser de Dan.
— Fala Thomas Archer, a comandar a nave de vigilância Faraday da União Mundial — anunciou uma voz de homem. O seu espanhol era carregado, como o de Joelle. — Identifiquem-se.
— Willem Langendijk, a comandar a nave de exploração Emissário — respondeu o capitão. — Estamos de regresso ao Sistema Solar. Podemos dar início às manobras?
— O quê? Mas ...
Percebia-se que Archer estava visivelmente espantado. Acabou por articular:
— Bem, parece não haver dúvidas... Mas toda a gente supunha que vocês tinham partido para uma viagem de anos!
— E partimos.
— Não. Eu assisti à vossa passagem. Foi, vejamos, há cinco meses, quando muito.
— Essa agora! Quer dizer-me em que data estamos? E a hora?
— Mas vocês ...
— Se faz favor.
Joelle podia bem imaginar como a cara chupada de Langendijk se alongava para sublinhar a sua insistência.
Archer leu alto as indicações de um cronômetro. Joelle confirmou pelo banco de memória a leitura exata do relógio quando ela e os seus camaradas haviam acabado de traçar a rota e se punham em marcha através do espaço--tempo para o seu destino desconhecido. A subtração deu um intervalo de vinte semanas e três dias. Joelle poderia com a mesma facilidade ter calculado quantos segundos ou microssegundos haviam passado na vida de Archer, mas ele apenas tinha dado a informação arredondada para o minuto mais próximo.
— Obrigado! — disse Langendijk. — Para nós passaram cerca de oito anos terrestres. Acontece que a máquina T é na verdade uma espécie de máquina de tempo, assim como um meio de transporte no espaço. Os Betanos — os seres que nos indicaram o caminho — calcularam a nossa viagem para que regressássemos muito perto da data em que havíamos partido.
Fez-se silêncio. Joelle notou que estava consciente do ambiente que a rodeava com mais intensidade do que o usual. Na queda livre, a nave conservava a ausência de peso, mantendo-se como que a planar. Era uma sensação agradável que fazia lembrar os sonhos de vôo de há muito, quando era novinha. (Depois disso, os sonhos haviam mudado com a sua maneira de sentir e com a sua alma, à medida que se tornava holoteta.) O ar de um ventilador parecia um murmúrio a acariciar-lhe as faces. Trazia consigo um ligeiro odor a floresta verdejante, produzido por produtos químicos em reconversão, e, na fase actual de variabilidade necessária para a saúde, uma sensação de friúra e um aroma forte, subliminal, de íons. Joelle sentia nos ouvidos o martelar possante do coração. E, sim, uma impressão no pulso esquerdo havia-se tornado em dor persistente. Joelle sentia-se à beira da artrite, e o tempo passava, o tempo passava. Provavelmente nem mesmo os outros podiam modificar aquilo ...
— Bem — disse Archer em inglês. — Com mil diabos! Sejam bem--vindos de regresso. Como estão vocês?
Langendijk mudou para a mesma língua, na qual se sentia um pouco mais à vontade e que era, de fato, usada a bordo da Emissário quase com a mesma freqüência que o espanhol.
— Perdemos três pessoas. Mas quanto ao resto, capitão, pode crer, as notícias que trazemos são verdadeiramente espantosas. Além de estarmos ansiosos por voltar para casa — e o senhor compreenderá isso —, temos pressa também em dar a conhecer a nossa história à União.
— E vocês...
Archer deteve-se, como se tivesse receio de formular a pergunta. Muito possivelmente tinha receio. Joelle ouvia-lhe a respiração pesada, antes de se decidir.
— E vocês encontraram os Outros?
— Não. O que encontramos foi uma civilização avançada, uma civilização não humana mas amiga, em contacto com um grande número de mundos habitados. Nessa civilização estão desejosos também de estabelecer estreitas relações conosco . Oferecem aquilo que a minha tripulação e eu consideramos serem condições fantasticamente boas. Não, não sabem mais do que nós a respeito dos Outros, a não ser quanto às restantes passagens que eles aprenderam a utilizar. Mas nós, as próximas gerações de homens, teremos muito que fazer para assimilar o que os Betanos nos proporcionarem.
“Escute agora, capitão. Compreendo que o senhor gostaria que lhe contássemos tudo, mas levaria dias. E, de qualquer modo, temos instruções para não nos demorarmos. O Conselho da União Mundial confiou-nos uma tarefa e exige que a ele façamos o primeiro relato do que vimos. É razoável, não? Nestas circunstâncias, pedimos que nos dê passagem a fim de seguirmos já, diretos, para o Sistema Solar.
De novo Archer permaneceu sem dizer palavra. Seria aquilo mais do que surpresa nele? Num gesto automático, Joelle recorreu aos circuitos exo-instrumentais da nave. Foi logo submersa por uma avalancha de informações. Não era uma percepção completa, mas, tanto quanto possível, como era fácil e ditoso compreender agora aquele cosmos no seu todo e sentir-se viver em uníssono com ele! Resistindo, Joelle concentrou-se apenas no radar e nas informações de navegação. Numa fração da sua própria pulsação, calculou como apanhar a Faraday no seu écran.
Não havia qualquer razão especial para isso. Joelle sabia muito bem qual o aspeto da nave de vigilância: um cilindro cinzento a terminar em ponta cônica, concebido de modo a poder descer em planetas, a poder lançar mísseis e raios. Mergulhado na luminosidade, e completamente diferente da enorme e frágil esfera eriçada de equipamento que era a Emissário. Quando a imagem mudou, Joelle não a ampliou para tornar a nave visível a um milhar de quilômetros. Em vez disso, prenderam-lhe a atenção dois globos pouco luminosos, vermelho e verde, que entraram no seu campo visual, num fundo de estrelas. Tratava-se de balizas à volta da máquina T. Tinham sido os Outros que as haviam colocado ali. Os órgãos de percepção de Joelle, agora reforçados, indicaram-lhe que uma terceira baliza devia também estar visível no receptor. E viu-a. Tinha uma coloração ultravioleta.
Ouviu vagamente Archer:
— ... quarentena? E Langendijk:
— Bem, se eles insistem. Mas andamos em Beta, de um lado para o outro, durante oito anos. E trouxemos um betano conosco . Ninguém apanhou doença nenhuma. Pinski e Carvalho, os nossos biólogos, estudaram o assunto e dizem-me que é impossível transmitirmos qualquer infecção. Também são improváveis mutações bioquímicas.
Atraída pelos pontos luminosos, Joelle deixou por completo de ouvir o que se dizia. Oh! Com certeza que algum dia ela, holoteta, poderia falar de cérebro para cérebro com os que tinham instalado aquele equipamento, se alguma vez os encontrasse.
Contudo, que fariam eles dela, e isto talvez em mais de um sentido da frase? Até o aspeto físico poderia provavelmente não lhes ser de todo indiferente. Era singular o que estava a fazer naquelas circunstâncias, mas, pela primeira vez em quase uma década, Joelle Ky olhou de repente para o seu corpo como um organismo de carne viva, palpitante, e não como maquinaria.
Com 58 anos (da Terra), aquele corpo de um metro e setenta e cinco conservava-se esguio, um tanto para o magro. A pele era um pouco pálida, apenas com ligeiras rugas. Nisso e nos zigomas salientes conservavam os seus genes um pedaço da história que o seu nome também lembrava. Joelle tinha nascido na América do Norte, naquilo que restara dos antigos Estados Unidos antes de eles se federarem com o Canadá. Os seus traços eram delicados, com grandes olhos pretos. O cabelo, outrora escuro, arrepanhado logo por baixo das orelhas, era agora da cor do ferro. Vestida com o uniforme de trabalho da nave, um fato-macaco com bastantes bolsos e fechos, só raramente usava qualquer coisa mais elegante.
Esboçou um sorriso. Que idiota que sou! Se qualquer coisa há de seguro a respeito dos Outros, é que nenhum deles me chegará um dia afazer a corte! E vai fazer-ma Dan, ali em De meter? Outro absurdo! Não esqueçamos que em Beta fiquei oito anos mais velha do que ele.
De qualquer maneira, estes pensamentos despertaram nela a lembrança de Eric Stranathan, o primeiro e único homem pelo qual sentiu amor verdadeiramente profundo. Ao cabo de um quarto de século — mais o tempo que ela tinha andado nesta missão —, Eric surgia-lhe de novo como se estivesse ali diante dos seus olhos. Sentou-se em frente dela numa canoa no lago Luísa, no meio das montanhas, a respirarem os dois o ar dos pinhais, sob um céu nocturno quase tão vasto como aquele que nesse momento se estendia à volta da Emissário. E, levantando os olhos ao alto, Joelle murmurou:
— Como vêem os Outros isto? Que significa para eles?
— Primeiro, o que são eles? — perguntou Eric por sua vez. — Animais que evoluíram mais do que nós? Máquinas que pensam? Anjos que habitam em volta do trono de Deus? Seres, ou um ser, de uma espécie que nunca imaginamos e nunca poderemos imaginar? Ou o quê? Há mais de cem anos que os Humanos andam a fazer a si mesmos esta pergunta.
Joelle mostrou-se confiante:
— Haveremos de saber um dia.
— Por meios holotéticos? — perguntou Eric.
— Talvez. Ou por meio sabe-se lá de quê? Mas estou convencida de que haveremos de conseguir. Tenho de acreditar nisso.
— Pode ser que não queiramos. Cheguei à conclusão de que nunca mais voltaríamos de novo a ser os mesmos, e esse preço poderia ser demasiado elevado.
Joelle estremeceu:
— Quer isso dizer que haveríamos de renunciar a tudo o que temos aqui?
— E a tudo o que somos. Sim, é possível.
Aquele jovem alto e magro pôs-se a mexer o corpo, balouçando o barco. E continuou:
— Quanto a mim, não queria. Sinto-me tão feliz como estou, neste momento!
Passou-se isto na noite em que se tornaram amantes.
... Joelle sentiu um frêmito. E se eu parasse com os meus devaneios? Se fosse razoável? Estou obcecada pelos Outros, sei isso. Ver o trabalho deles de novo, não ao serviço de estrangeiros mas de humanos, deve ter feito brotar em mim uma fonte de energia. Mas Willem tem razão. Os Betanos devem ser suficientes para ocuparem muitas gerações da minha raça. Será que os Outros sabem isso? Previram-no?
Joelle sentiu-se um pouco confusa ao notar que a sua atenção se tinha desviado do intercomunicador durante alguns minutos. Não era dada a introspecção nem a sonhar acordada. Talvez aquilo tivesse sucedido por estar ligada ao computador. Nessas ocasiões, um operador tornava-se no maior matemático e lógico do mundo, sem comparação com nenhum outro que houvesse existido na Terra antes de se ter aperfeiçoado a conjunção. Mas o operador continuava a ser um mortal, repleto de estultícia dos mortais. Suponho que o meu hábito de profunda concentração enquanto permaneço neste estado se apoderou já de mim. Uma vez que não estou habituada a entregar-me a emoções, perdi o hábito.
Ela tinha uma noção periférica de que se estava a discutir qualquer coisa. Pondo-se à escuta, ouviu Archer, que remascava:
— Muito bem, capitão Langendijk. Ninguém previa que vocês regressassem assim tão cedo. Ou mesmo que regressassem, para ser-lhe franco. Portanto, não tenho ordens concretas a vosso respeito. Mas os meus superiores deram-me instruções gerais.
— Ah, sim? — exclamou o comandante da Emissário. — E que dizem essas instruções?
— Vejamos: certas pessoas altamente colocadas estão muito preocupadas por qualquer coisa mais do que por vocês trazerem um ser estranho para a Terra. O fato é que nem sabem o que podem vocês trazer convosco. Olhe: eu não vou dizer que um monstro se apoderou da vossa nave e que esse monstro pretende agora passar pelo capitão Langendijk, ou qualquer coisa de paranóico no mesmo gênero.
— Espero que não! A verdade é que os Betanos — nome que nós lhes demos, é claro —, os Betanos não são apenas amigos. Estão desejosos também de nos conhecerem melhor. Essa a razão por que tratarão conosco em condições incrivelmente favoráveis. Eles querem estreitar as relações ainda mais.
Desconfiado, Archer perguntou:
— E como?
— Levaria longo tempo a explicar. Há qualquer coisa de vital que eles esperam saber de nós.
Aquilo fez espécie a Joelle: Qualquer coisa que eu ainda não sei ta saberei.
A voz de Archer arrancou-a àquele pensamento:
— Bom, talvez. Embora eu pense que isso ainda reforça o ponto de vista de que ninguém pode dizer quais serão as conseqüências ... para nós. E a União Mundial não é lá muito estável, o senhor sabe. Tenciona fazer o seu relato diretamente ao Conselho?
— Tenciono, sim — confirmou Langendijk. — Vamos prosseguir a viagem até às proximidades da Terra, e depois chamamos Lima e pedimos instruções. Que haverá de mal nisso?
— Dá demasiado nas vistas! — exclamou Archer. E poucos segundos depois continuou: — Olhe, não me sinto em condições para adiantar muito na matéria. Mas... os funcionários que eu mencionei querem, veja bem, querem ouvi-lo estritamente em privado. Querem examinar, eles, os vossos materiais, essa tal coisa, antes de deixarem transpirar o mínimo que seja. Está a perceber?
— Hum! ... Eu cá tinha as minhas suspeitas! — resmungou Langendijk. — Continue,
— Ora, nestas circunstâncias, et coetera, eu tenho de interpretar as minhas ordens da maneira seguinte: vamos acompanhá-los pela passagem, para o Sistema Solar. Funcionará a interligação pela rádio dos nossos auto-pilotos, é claro, para nos assegurarmos de que as naves saem peto outro extremo simultaneamente. Vocês não comunicarão com mais ninguém a não ser conosco , em circuito fechado — trataremos de tudo no exterior —, até receberem indicação em contrário. Fica entendido?
— É mais do que explícito!
— Por favor, capitão, não temos a mínima intenção de o ofender. Nem por sombras. Deve compreender que se trata de assunto de tremenda importância. Não esqueça: aqueles que têm sobre os seus ombros a responsabilidade por bilhões de vidas humanas precisam de ser cautelosos. A começar logo por mim próprio.
— Sim, concordo que o senhor está a cumprir o seu dever tal como o interpreta, capitão Archer. Além disso, tem a força.
A Emissário trazia umas armas de fogo, mas quase como excentricidade. Os seus oficiais de tiro eram ao mesmo tempo pilotos da nave. Embora esta pudesse atingir velocidades enormes se lhe dessem tempo, a sua aceleração máxima com a carga e a massa de reação de que dispunha não chegava a duas gravidades. E os seus giroscópios ou os reatores laterais só com muita dificuldade lhe permitiam mudar de posição. Ninguém a tinha imaginado como vaso de guerra, nave solitária que era, a lançar-se provavelmente por toda uma galáxia. A Faraday, essa, fora concebida para agüentar uma batalha. (Nunca surgira ocasião para tal, mas quem sabe o que poderia ocorrer de repente ao atravessar uma passagem? Além disso, a sua alta flexibilidade de manobra tornava-a indicada para trabalhos de salvamento e para o transporte de equipas de exploração.)
— Estou a procurar fazer o melhor que posso para o nosso Governo, capitão.
— Gostaria que me dissesse para quem, dentro do Governo.
— Desculpe, mas limito-me a ser oficial de astronáutica. Não seria razoável que me pusesse a discutir política. Deve compreender, não é verdade, que não tem motivo para se preocupar? Trata-se apenas de uma precaução extra, e não passa disso.
— Claro, claro! — suspirou Langendijk. — Faça-se a sua vontade!
A conversa desviou-se para aspetos técnicos. Desligaram depois. Langendijk dirigiu-se à sua tripulação;
— Todos ouviram, é evidente. Têm perguntas a fazer? Comentários? Seguiu-se uma onda de indignação e de consternação. Os protestos mais clamorosos vieram de Frieda von Moltke: “Que essa choldra vá toda para o diabo!” O primeiro-mecânico, Dairoku Mitsuküri, foi mais moderado: “Talvez isto seja arbitrário, mas não devemos ficar retidos por muito tempo. O próprio fato da nossa chegada irá suscitar enorme pressão da opinião pública para nos porem em liberdade.”
Carlos Francisco Rueda Suárez, o imediato, acrescentou no seu tom mais altivo:
— Além disso, a minha família há-de ter uma palavra a dizer na matéria. Um temor, que ela esperava fosse ridículo, levantou-se em Joelle, enregelou-lhe os músculos e endureceu-lhe a voz de contralto:
— Você parte do princípio de que a sua família vai saber do que se passa.
— Deus do céu, como podemos nós pôr isso em dúvida? — protestou o segundo-mecânico, Torsten Sverdrup. — Os Ruedas mantidos na ignorância do caso? Impossível!
— Receio bem que não seja impossível — volveu Joelle. — Como sabe, nós estamos inteiramente à mercê daquela nave de vigilância. E o seu comandante não está a proceder como alguém que apenas quer agir com segurança. Não é assim? Não tenho pretensões a ser muito perspicaz no que respeita às pessoas, mas já me vi perante camarilhas, perante cabalas, nas altas esferas políticas. Da última vez que falei com Dan Brodersen na Terra, também ele me preveniu de que não só podíamos suscitar a hostilidade de algumas facções, mas também sofrer dissabores.
— Brodersen? — perguntou Sam Kalahele, o atirador, companheiro de Von Moltke.
— O proprietário das Empresas Chehalis, em De meter — explicou Marie Feuillet, química. — Deve descontar-lhe os exageros. É um capitalista que trabalha por iniciativa própria. Portanto, abertamente desconfiado de tudo quanto sejam organismos do Estado, e talvez mesmo da própria União.
— Temos de começar a acelerar daqui a pouco — preveniu Langendijk. — Todos aos seus postos de voo!
— Por favor, comandante!—gritou Joelle. — Escute um minuto. Não vou pôr-me a contestar. Reconheço que sou lamentavelmente ingênua a respeito de muitas coisas. Mas Dan, o capitão Brodersen, disse-me que mandava um robô para as proximidades da passagem. Um robô programado para olhar por nós, e meramente para o caso de termos qualquer dificuldade. Previa a possibilidade — a probabilidade, disse ele — de voltarmos numa data próxima, em relação à da partida. Ora bem, que outra coisa pode ser aquele segundo aparelho, ali em órbita mais a distância? Ele apareceu-nos no radar, lembra--se? Que outra coisa pode ser senão o observador do capitão Brodersen?
Ouviu-se a voz de Rueda:
— Virgem Santíssima, Joelle! No decorrer de todos estes anos, porque nunca me falou disso?
— Oh! Ele achava que não nos devíamos preocupar com uma coisa que talvez nunca viesse a acontecer. Disse-mo porque somos amigos, e sabendo que eu ficaria com a informação apenas para mim. Gravei-a na minha banda de apontamentos, para vocês a consultarem se eu morresse.
— Mas nesse caso não há problemas! — observou Rueda, satisfeito. — Não nos podem manter incomunicáveis, se é isso o que você receia. Uma vez que o robô informe o capitão Brodersen, ele o anunciará ao mundo. Eu podia ter esperado uma coisa destas da parte dele. Talvez você hão saiba que Brodersen é ainda meu parente pelo primeiro casamento.
Joelle abanou a cabeça. Os cabos do seu capacete em forma de tigela eram flexíveis e permitiam-no, embora o acréscimo de massa a obrigasse a um visível esforço e, na ausência de gravidade, tivesse de imprimir ao busto um ligeiro movimento de compensação.
— Não — respondeu ela. — Observe como aquilo está distante. Nenhum sistema óptico construído até hoje pelo homem tem possibilidade de distinguir & Emissário a uma distância destas, a não serem sete — não é assim? —, sete naves semelhantes. Esta não passa, no fim de contas, de um transporte da classe Reina, modificado.
— Para que serve então colocar um observador aqui? — interrompeu o contramestre Bruno Benedetti.
— Não era de esperar o que aconteceu? — perguntou por sua vez a planetologista Olga Razumovski. — Mas diga-nos lá, Joelle.
A holoteta respirou fundo.
— Eis o que Brodersen planeava fazer — começou ela. — Ele mandaria o robô, na aparência para estudar a máquina T durante alguns anos e conseguir alguns elementos sobre a maneira como ela funciona. As naves de vigilância não têm um programa lá muito satisfatório, de modo que o projeto só dificilmente poderia ser impedido. Além disso, Brodersen não o levaria a cabo em seu próprio nome. Poria à frente a Fundação Demeteriana de Investigação, a cobri-lo. Já espalhou ali em Deméter donativos bastante avultados. De qualquer maneira, o aparelho estaria a fazer observações de boa fé.
“Nestas circunstâncias, por que razão é forçado um equipamento tão dispendioso a ficar a mais de um milhão de quilômetros daquilo que tem de investigar? Presumo que as entidades oficiais hajam dado qualquer justificação quanto a segurança, possível colisão se uma nave aparecesse com vetores errados. Calculo que a probabilidade de isso acontecer seria da ordem de um em dez, com uma décima de aproximação. Mas elas podiam fazer respeitar o regulamento, se estivessem resolvidas a isso. Assim, o fato de o terem feito não revela o seu verdadeiro motivo? Não querem perder o controlo das notícias sobre a passagem — outra nave betana que aparecesse, talvez, ou nós a regressarmos, ou qualquer coisa de anormal. Querem é exercer uma censura. Irão exercer a censura sobre nós? Existe uma forte tendência antiestelar na Terra, em mais de um governo nacional. Essa gente poderia ter-se apoderado das alavancas apropriadas na hierarquia da União. Podia ter planos sobre os quais não consultou os seus colegas.
Do intercomunicador chegaram imprecações, rosnadelas, uma data de objeções. Isoladamente, no meio daquilo tudo, ouviu-se o som aflautado de Fidélio a exprimir a sua desorientação.
— Que se passa? — cantou o betano. — Porque já não estão vocês nada contentes?
Langendijk impôs silêncio.
— Como comandante de uma nave de vigilância, Archer é meu superior — disse ele. — Preparem-se para obedecer às suas instruções.
— Willem, escute — suplicou Joelle. — Eu posso fazer chegar um sinal ao robô, sem que detetem algo a bordo da Faraday. Isso daria a conhecer a Brodersen a verdade ...
Langendijk interrompeu-a:
— Vamos cumprir as ordens que temos. É uma instrução precisa da minha parte, e vou registrá-la no livro de bordo.
A seguir, o seu tom suavizou-se:
— Não nos vamos pôr a discutir uns com os outros, depois de termos feito juntos uma viagem tão longa, tão difícil. Acalmem-se. Pensem em como são grandes as probabilidades de alguns de vocês estarem cansados, levantando agora castelos fantasmagóricos por cima de um mero grão de areia. Archer comunica secretamente, com a conivência secreta do comandante da nave de vigilância no Sistema Solar... Este por sua vez comunica secretamente com os seus chefes secretos, que lhe dizem para nos levar para um lugar secreto. Não será isto um pouco melodramático? Com franqueza! Pensem também que a lei do espaço está por cima das contingências políticas. Tem de estar. Sem isso o homem não vai às estrelas: morre. Cada um de nós prestou juramento solene de cumprir o seu dever.
Após uma pausa, durante a qual apenas se ouvia a deslocação do ar vindo do ventilador, prosseguiu:
— Tomem as vossas posições de voo. Vamos acelerar dentro de dez minutos.
Joelle deixou-se cair. O desespero esmagava-a. Ela podia, de fato, ter mandado a imperceptível mensagem de que havia falado, se a sua ligação com o computador fosse prolongada ao sistema de comunicação exterior. Mas os botões para isso não estavam naquela sala.
E Willem faz uma idéia muito sua a respeito da lei. Talvez também tenha razão, e é possível que todo esse conluio contra nós não passe de pura fantasia. Quem sou eu para julgar? Tenho andado tão afastada da humanidade corrente, durante anos e anos! Como posso eu saber ao certo como se passam estas coisas?
A realidade absoluta é mais fácil de compreender, sim, quando estamos integrados nela. E não é esse o nosso caso. O que chega até nós são apenas reflexos através do Númeno.
— Está pronta, Joelle? — perguntou Langendijk com suavidade, um tudo-nada pesaroso.
— Oh! — replicou ela. — Estou pronta, sempre!
— Vou assinalar à Faraday a nossa intenção de nos lançarmos a um G às 15 h e 35, e eles estão de acordo. Eles nos acompanharão. Estão a manobrar nesse sentido, agora mesmo. A interligação de autopilotos será feita a 100 km da Baliza Charlie. Já tem todos os elementos de que precisa? ... Oh, é claro que sim. Uma pergunta destas da minha parte é idiota.
Joelle, ela também desejosa de reconciliação, esboçou um sorriso que ele não pôde ver, e respondeu:
— Para si é fácil esquecer, Willem. Eu estou a desempenhar as funções de Christine.
Christine Burns, a operadora efetiva de computadores, morrera nos braços de Joelle escassos meses antes de a Emissário empreender a viagem de regresso.
— A marcha está agora portanto em suas mãos — disse Langendijk, em tom formal. — Pode começar quando receber sinal.
— Muito bem!
Joelle ficou então muito ocupada. Chegavam-lhe informações de todos os lados: vetores de posição, vetores de velocidade, momentos de forças, pressões exercidas, valores do campo gravitacional, derivadas no tempo e no espaço, a modificarem-se de instante para instante, de forma ligeira mas permanente. Aquela avalancha de dados provinha de vários instrumentos e transformava-se em dígitos. E, entretanto, o banco de memória fornecia-lhe não só todos os fatos concretos do passado e as constantes naturais de que ela precisava, mas também uma visão de toda a grandiosa estrutura analítica da mecânica celeste e os tensores das tensões. Ela tinha ao seu imediato dispor os conhecimentos físicos de séculos e também o conhecimento preciso do ponto em que se encontrava naquele momento, no espaço-tempo.
Os elementos de informação passavam das várias fontes através de uma unidade que, em nanossegundos, os traduzia em sinais apropriados. Daí seguiam para o cérebro de Joelle. A ligação, aqui, não era feita por fios fixados no crânio nem por qualquer outro sistema do gênero. Bastava a indução eletromagnética. Joelle, por sua vez, consultava o potente computador a que estava ligada, à medida que os problemas surgiam, de momento a momento.
A harmonia era perfeita. Joelle tinha adicionado ao seu sistema nervoso a imensa capacidade de recepção e armazenamento e a velocidade de pesquisa do conjunto eletrônico, assim como a imensa capacidade lógico-matemática necessária ao volume e velocidade de operações que resultavam da outra metade desse conjunto. Por seu lado, Joelle contribuía com a sua qualidade humana de se aperceber do inesperado, com o seu pensamento criador, que lhe permitia modificar os pontos de vista. Era a parte mais maleável de todo o sistema, o programa que continuamente se reajustava a si mesmo. Regia uma vasta orquestra muda, que podia começar a tocar jazz sem aviso prévio ou compor toda uma sinfonia perfeitamente nova.
Os números e as operações não desfilavam diante dela como elementos isolados. (Da mesma maneira que ela não planeava as inúmeras decisões cinestéticas que o seu corpo ia tomando ao andar.) Joelle sentia-os, mas como parte do seu âmago, como um reflexo sensorial de equilíbrio, uma função. A sua consciência do que se passava ia para além da tessitura mecânica dos símbolos. Ela moldava os contornos da ação, tal como o escultor dá forma à argila com mãos que sabem por si mesmas o que devem fazer.
Artista, cientista, atleta, no fugidio pináculo do sucesso ... Fora isso o que sentira Christine Burns.
Não se passava o mesmo com Joelle. Christine fora uma operadora normal, uma linker. Joelle, essa, era holoteta. Uma holoteta que tinha transcendido a mera experiência de ligação ao computador. Talvez a diferença se pudesse comparar à que existe entre um leigo católico a desfiar o seu terço e São João da Cruz.
Além disso, o trabalho agora a fazer era de pura rotina. Joelle tinha meramente de dirigir, pelos seus pensamentos, o equipamento que guiava a nave, por meio de um conjunto estabelecido de curvas através de uma série conhecida de configurações. O computador só por si poderia no fundo fazer o mesmo, sem a ajuda de ninguém, se se dessem ao trabalho de reajustar certo número de circuitos. Era assim que funcionava o robô de Brodersen.
Christine, a linker, tinha sido contratada porque a Emissário ia partir para um destino totalmente desconhecido, podendo a sobrevivência depender de uma decisão a tomar de maneira rapidíssima, e que ninguém poderia prever e programar. A própria Christine, se ainda fosse viva, teria achado fácil agora esta manobra.
Joelle achava-a repousante. Reclinou-se na cadeira, consciente de ter reganhado peso, e saboreou o prazer de formar um todo, indivisível, com a nave. Não podia ouvir nem lhe chegavam os movimentos, mas sentia o murmúrio da marcha. Células migma estavam a gerar gigawatts de potência de fusão, a decompor a água, a ionizar-lhe os átomos e a lançar o plasma através do concentrador de jacto a uma velocidade que se aproximava da velocidade da própria luz. Mas a eficiência era magnífica. Um triunfo tão perfeito como o da catedral de Chartres. Tudo quanto se via era uma leve esteira de luz difusa a ficar para trás durante alguns quilômetros e o movimento do casco a avançar no espaço.
O movimento, esse, iria durar várias horas, com orientações e configurações constantemente a variarem à medida que a Emissário prosseguia o seu caminho através da passagem estelar entre Febo e Sol. No entanto, só havia por agora um avanço em linha reta para a primeira das balizas. Joelle agitou-se e franziu a testa. Com menos de metade da sua atenção em atividade, não podia durante muito tempo afastar o seu receio de ficar presa ali em frente.
Mas aconteceu então que o écran apanhou a própria máquina T, e Joelle viu-se em presença de um milagre que nunca perdia o seu encanto.
À distância, o cilindro surgia como um fio de luz no meio dos corpos celestes, de nuvens de estrelas. Joelle ampliou a imagem, e a forma da máquina tornou-se mais nítida, embora as dimensões permanecessem uma abstração: cerca de um milhar de quilômetros de extensão, diâmetro ligeiramente superior a dois. Girava em torno do seu longo eixo a tal velocidade que um ponto na periferia se deslocava a três quartos da velocidade da luz. Nada na sua superfície brilhante, cor da prata, revelava isso à vista desarmada. No entanto, a verdade é que um tremular contínuo, quase imperceptível, de cores a mudar, dava uma idéia do turbilhão de energia ali contida. Os Humanos pensavam que aquela claridade provinha de campos de força que mantinham coesa a matéria comprimida às maiores densidades. Luas havia que tinham menos massa do que aquele engenho destinado a abrir passagens através das estrelas.
Como pano de fundo, cintilavam mais duas balizas que o rodeavam: uma púrpura e outra dourada. E, através dos instrumentos, Joelle espiou uma terceira, cor de rádio.
Era uma coisa que os Outros haviam concebido e posto a circular em torno de Febo, tal como haviam instalado uma em Sol e outra em Centrum e outra em... quem se atrevia a dizer em quantas outras estrelas, por quantos e quantos anos-luz? Qual o número de raças sensíveis que tinham encontrado aqueles engenhos no espaço, obtido a mesma licença impessoal para os utilizar e ansiado depois por saber quem haviam sido os construtores de tudo aquilo?
Além desses, quantos mais se abalançaram pelo caminho que estamos agora a percorrer? — perguntava Joelle num acesso de amargura. Oh, Dan, Dan! De nada valeu teres procurado descobrir a mensagem que nos pudesse libertar...
E então, tal como o Sol a irromper de repente por detrás das nuvens, Joelle viu aquilo que ele já devia ter visto antes. Brodersen devia ter pensado naquilo mesmo. Joelle lembrou-se de o ouvir dizer: “Cada raposa tem dois covis para se acolher.” A esperança reacendeu-se nela. Não deixou de ver como essa esperança era fraca, como era fácil ser destruída de novo. Por agora, a centelha bastava.
Daniel Brodersen nasceu naquilo que então se designava por Estado de Washington e que ainda se não havia, na verdade, separado dos Estados Unidos da América durante as guerras civis, como várias regiões haviam tentado e a Santa República do Ocidente conseguira fazer. No entanto, durante três gerações antes dele, o chefe da família tinha usado o título de capitão-geral do Domínio Olímpico e exercido a liderança sobre aquela península, incluindo .a cidade de Tacoma, liderança que era real, ao passo que as pretensões do Governo Federal não passavam de palavras.
Aqueles barões não se haviam considerado como nobreza. Mike era pescador, casado com uma indiana quinault, e havia investido o seu dinheiro em vários navios. Quando as Perturbações atingiram a América, ele e os seus homens tornaram-se no núcleo de um grupo que repôs a ordem na região, principalmente no intuito de protegerem famílias e bens. À medida que a situação ia piorando, chegaram-lhe pedidos de ajuda vindos de um círculo sempre crescente de fazendas e de pequenas cidades, até que, um tanto para surpresa sua, se viu senhor de muitas montanhas, florestas, vales e costas, com todas as populações que aí habitavam. Qualquer pessoa se podia fazer ouvir por ele. Não era homem que se distanciasse de ninguém.
Acabou por cair numa batalha com bandidos. O seu filho mais velho, Bob, vingou-o de maneira terrível, anexou o território sem lei, para evitar que aquilo se repetisse, e decidiu-se a assegurar a defesa e a fazer justiça na sua própria terra, a fim de toda a gente poder prosseguir o seu trabalho. Bob cultivava a lealdade para com os Estados Unidos e por duas vezes formou regimentos de voluntários para lutarem pela sua integridade. Foi desse modo que perdeu dois dos filhos, e veio a morrer quando defendia Seattle, atacada por uma esquadra que a Santa República tinha mandado para o Norte.
No decorrer da sua vida passaram-se acontecimentos semelhantes na Colômbia Britânica. O nacionalismo americano e canadiano significava muito menos do que a necessidade de cooperação local. Bob casou John, o filho que lhe restava, com Bárbara, filha do capitão-geral do Fraser Valley. Essa aliança selou uma estreita amizade entre as duas famílias. Após a morte de Bob, uma eleição especial deu a maioria esmagadora a Joim para lhe suceder. “Temo-nos dado muito bem com os Brodersens, não é verdade?” — foram as palavras que saíram dos cais e das docas, das choupanas e das vivendas, dos pomares, dos campos, das florestas, das oficinas, dos bares, desde Cape Flattery até Puget Sound e de Tatoosh até Hoquiam.
Os primeiros anos de governo de John foram agitados, mas deve-se isso a acontecimentos que se desenrolaram fora da Península Olímpica, e também, aos poucos, estes vieram a perder a virulência. Com a paz estendeu--se a prosperidade e um renascer de civilização. Os barões sempre tinham sido gente instruída, mas homens rudes na ação. John dotou as escolas, mandou vir professores, ouviu-os com atenção e lia livros sempre que lhe restava tempo disponível.
Dessa maneira veio a compreender, melhor ainda do que o espírito nacional permitia, que a época feudal estava em declínio. Primeiro, o comando militar federal pôs o conjunto dos Estados Unidos sob seu controlo, tal como o general McDonough havia feito no Canadá. A seguir, peça por peça, instituiu um novo aparelho do Estado, chegou a acordo precário com a Santa República do Ocidente e com o Império Mexicano, e iniciou negociações para se unir ao seu vizinho do Norte. Nesse meio tempo estava a expandir-se a União Mundial, criada pela Convenção de Lima. A Federação Norte -- Americana aderiu a ela dentro de três anos após haver sido proclamada, nos termos de um compromisso que tomara antes. Este exemplo arrastou as últimas nações ainda hesitantes, e tornou-se então realidade o governo constitucional sobre toda a raça humana — durante algum tempo pelo menos.
No início destes acontecimentos, John decidiu que o seu apelo fosse no sentido de preservar ao seu povo suficiente independência interna para que ele pudesse viver mais ou menos de harmonia com as suas tradições e desejos.
Com o volver dos anos caminhou-se para a centralização, passo a passo, negociando cada ponto concreto, e conseguiu o que desejava. Por fim, era nominalmente um verdadeiro senhor, possuidor de consideráveis propriedades, com direito a várias honras e benefícios, e não um cidadão comum. Na prática, contava-se entre os magnates, retirando a força do respeito e do afeto de todo o Noroeste do Pacífico.
Daniel era o seu terceiro filho, que pouca riqueza iria herdar e nenhuma posição social. Isso, aliás, adaptava-se bem ao feitio de Daniel. Ele gozou da sua infância — bosques, montanhas, rios caudalosos, o mar, cavalos, carros, barcos, aviões, armas de fogo, amigos, cerimônias da guarda, severo esplendor de casa senhorial até ela se tornar numa mansão, visitas aos parentes de sua mãe e a cidades mais próximas onde prazer e cultura se renovavam sem cessar, tornando-se cada vez mais refinados. Mas a inquietação permanecia nele, herança de uma casa de guerreiros, e na sua adolescência com freqüência entrava em brigas, quando não andava na pândega com amigos das camadas mais baixas ou a meter-se com as criadas. Finalmente, alistou-se no Corpo de Emergência do Comando de Paz da União Mundial, logo após a formação desse corpo. A própria União estava ainda a ensaiar os primeiros passos, que muitos procuravam impedir. Os homens que faziam parte do Corpo de Emergência andavam sempre de um lado para o outro pelas várias regiões da Terra — e mais tarde fora dela também. A maior parte destes homens iam carregados de armas, que mostravam freqüente uso. Para Brodersen começou aqui uma série de andanças que por fim o levaram a Deméter.
As pessoas das suas relações mais recentes tinham como ponto assente que as loucuras da juventude constituíam nele uma fase muito distante no espaço e talvez, com a idade de cinqüenta anos terrestres, mais afastada ainda no tempo. Ele próprio só raras vezes pensava nelas. Estava sempre muito ocupado.
Aconchegando-se numa cadeira, tirou a saca com o cachimbo e o tabaco.
— Vão para o diabo os torpedos! — murmurou ele. — Para a frente é que é o caminho.
A governadora-geral de Deméter olhou para ele, surpreendida, por cima da secretária.
— Como?
— Uma expressão de meu pai — explicou ele. — Significa que a senhora me pediu para vir ao seu gabinete em pessoa, porque não queria que falássemos disto pelo telefone. E agora está para aí com pezinhos de lã a rodear o assunto, como se tivéssemos de entrar num estábulo que não tivesse sido lavado há semanas.
Esboçou um sorriso forçado para mostrar que não via onde estava a dificuldade. E prosseguiu:
— Não me vai por certo deixar ficar para aqui a grasnar as minhas figuras de retórica mais tempo do que o necessário. A Lis está à minha espera em casa para o jantar, e não me perdoará se o assado ficar queimado por minha causa.
Aurélia Hancock franziu as sobrancelhas. Era uma mulher bastante alta, para o pesado, feições vincadas e cabelo curto, já encanecido. Nos seus dedos amarelados ardia-lhe vagarosamente um cigarro. O fumo tinha-lhe enrouquecido a voz, e dizia-se que ela se submetia agora a uma quantidade invulgar de tratamentos de rádio contra o cancro. Como era seu hábito, usava roupa que seguia a moda da Terra, mas de maneira bastante conservadora: uma túnica verde com decote aberto e franja prateada, por cima de calças à boca de sino, e sandálias douradas.
— Eu estava a tentar ser-lhe agradável — disse ela.
O polegar de Brodersen amassou o tabaco no cachimbo:
— Obrigado — respondeu ele —, mas receio bem que este assunto não se possa tornar interessante, de maneira nenhuma.
Ela levantou a cabeça:
— Como sabe o senhor aquilo de que lhe quero falar?
— Oh, desça desse tosco pedestal, Aurie! De que outro assunto se poderia tratar senão da Emissário?
Hancock levou o cigarro aos lábios, pousou-o e disse:
— Muito bem, Dan! O senhor vai deixar de espalhar essas histórias a respeito do regresso da nave. O fato é que elas não correspondem em nada à verdade. O meu pessoal e eu já temos muito com que nos ocupar com o que se passa no dia-a-dia, sem necessidade de acrescentarmos infundadas suspeitas de que o próprio Conselho ande a mentir ao povo.
Brodersen alçou as suas espessas sobrancelhas:
— Quem disse que eu tenho andado para aí a badalar? Não apareci em emissão nenhuma, nem subi para cima de um caixote e me pus a discursar em Goddard Park, não é verdade? Há quatro ou cinco semanas perguntei-lhe se a senhora tinha notícias da Emissário. Voltei a perguntar-lho outras vezes, em seguida. Disse-me que não. É tudo.
— Não, não é tudo. O senhor tem andado a falar...
— Com amigos, claro. E há quanto tempo andam os seus bufos a escutar as conversas?
— Bufos? Suponho que queira dizer detetives. Agentes da polícia. Não, Dan, pode ter a certeza que não. Que juízo faz de mim? Para que haveria eu de querer que lhe andassem a escutar as conversas, apenas com meio milhão de pessoas em Eópolis e da maneira como elas pairam? O que se diz à esquina de uma rua chega até mim, automaticamente.
Brodersen olhou para ela com renovado respeito. Desempenhava um cargo político de confiança, membro proeminente que era do Partido da Ação da Federação da América do Norte e protegida de Ira Quick. Mas, no fim de contas, não tinha feito mau trabalho em Deméter, servindo de medianeira entre o Conselho da União e um grupo heterogêneo de colonos cada vez mais descontentes. (Uma nota de piedade: o seu marido fora jurisconsultocom altos poderes na Terra, mas pouco se recorria aos seus serviços aqui e, apesar de ele querer salvar as aparências, toda a gente sabia que se tinha afundado no álcool, sem se querer emendar. Isso, porém, só podia tornar Aurélia Hancock ainda mais digna de admiração.) Melhor seria Brodersen jogar jogo franco.
— Eu falei com a senhora, primeiro — disse ele.
— Sim, é verdade que falou. E respondi-lhe que com certeza eu já teria sabido alguma coisa se ...
— Mas nunca me convenceu de que as minhas deduções eram erradas.
— Procurei fazê-lo. O senhor não me quis ouvir. Mas pense um pouco. Aquela distância, como poderia o seu robô dizer-lhe se era a Emissário a passar por ali?
Hancock franziu de novo o sobrolho. E prosseguiu:
— A sua falsa declaração aos Serviços de Controlo Astronáutico quanto ao verdadeiro objetivo daquele aparelho podia afetar a continuação das suas licenças, e o senhor sabe disso.
Brodersen já esperava aquela forma de ataque.
— Aurie — e suspirou calculadamente —, permita-me que lhe reconstitua exatamente o que se passou.
Acendeu o cachimbo e levou-o à boca. Pôs-se a olhar em torno de si. O gabinete e o mobiliário agradavam-lhe, com pouco de sintético, quase tudo feito à mão com os materiais de que se dispunha há uns setenta anos, quando a colônia estabelecida em Deméter tinha cerca de uma geração. (Issofaria meio século da Terra, lembrou-se ele. Realmente mergulhei de vez neste planeta, não há dúvida.) Lambris de dafne creme com nervuras em espiral faziam ressair um jarrão com girassóis sobre a secretária e, numa estante por detrás, um excelente holograma do monte Lorn, com ambas as luas cheias por cima das suas neves. À direita, duas janelas abertas para um jardim. Estendiam-se aí canteiros de roseiras da Terra e relvado até a um gradeamento de ferro forjado, mas restava um enorme carvalho da antiga floresta, com as suas folhas de um verde-azulado a espalharem um leve perfume a gengibre, e cresciam trepadeiras viçosas por cima do metal. O tráfego usual circulava pela rua, com os peões, os ciclistas, o ronronar de um carro e o deslizar de um vagão de mercadorias a toda a velocidade nas suas almofadas de ar. Do outro lado da rua, um prédio moderno erguia a sua massa trapezoidal de cores suaves. Lá no alto, o céu arqueava-se numa abóbada de um azul mais profundo do que em qualquer parte da Terra, e Febo à tarde tinha uma suavidade muito parecida com a do Sol no crepúsculo. Durante meio segundo, lembrou-se Brodersen de que a pressão atmosférica era mais baixa e mais baixa também era a força de gravidade (80%0, mas o seu corpo estava bem habituado e já não sentia as diferenças.
Puxou uma cachimbada, saboreou um pouco o fumo entre a língua e as fossas nasais, e continuou:
— Nunca fiz segredo do que pensava. Diz a teoria que uma máquina T pode levar uma pessoa para qualquer parte no espaço-tempo dentro do seu campo de ação ... o que significa espaço e tempo. A Emissário estava a seguir uma nave desconhecida que fora observada a transpor uma passagem no nosso sistema, evidentemente para fazer o trajeto, entre dois pontos acerca dos quais nada sabemos. Parti do princípio de que tanto a tripulação como os que mandaram aquela nave seriam amigos. E porque não haveriam de ser? Pelo menos, ajudariam a Emissário a regressar, uma vez concluída a sua missão. E, nesse caso, porque não mandar para cá, de volta, a nossa gente muito próximo da data em que havia partido?
— Ouvi falar do seu ponto de vista — disse Hancock —, mas só depois de o senhor se começar a mexer. Se achou que isso era plausível, se achou que isso era importante, porque não mandou um relatório, em primeiro lugar, ao organismo competente?
Brodersen encolheu os ombros:
— E porque o haveria eu de mandar? A idéia não era só minha. Além disso, sou um mero particular.
Ela lançou-lhe um olhar carregado:
— O homem mais rico de Deméter não é, de maneira nenhuma, um mero particular.
— Bem pouco sou em comparação com os ricos da Terra — respondeu em voz macia.
— Como o clã dos Ruedas no Peru, com o qual o senhor está ligado por negócios e por laços de família. Não, o senhor não é propriamente um particular.
Hancock voltou a fixar-lhe os olhos, Brodersen sentou-se, afagando a quenturado seu cachimbo, e deixou que ela o olhasse. Não que tivesse ilusões quanto à sua elegância. Era um homem alto, de um metro e oitenta e oito, corpulento, de ossos resistentes, músculos sólidos, ombros largos, forte de peito. Nos últimos anos, porém, tinha criado um pouco de barriga, até parecer gordo. A cabeça era maciça, mesocefálica, com uma cara quadrada, queixo e boca vincados, nariz romano saliente, largos olhos cinzentos, a descair obliquamente, já com pés-de-galinha, pele tisnada e com rugas. Como a maior parte dos homens em Deméter, tinha o rosto barbeado e o cabelo cortado por cima das orelhas. O cabelo era direito, áspero, preto com algumas madeixas brancas, herança ainda da sua bisavó. Para este encontro, assim como a maior parte das vezes, vestia traje colonial de uso corrente: bolero de pele de orosauro, com a camisa de fora, calças largas enfiadas em meias-botas macias, um largo cinto com pequenas ferramentas e instrumentos a pender-lhe da ilharga, mais uma faca dentro de uma bainha.
— Bem vistas as coisas — disse ele, mantendo o seu tom afável —, não sei que leis tenha eu infringido, e suponho que não me desviei irreparavelmente das normas estabelecidas.
— Não esteja muito seguro de si a esse respeito — preveniu ela.
— Como? Melhor seria retomarmos toda a história desde o princípio e dizer-me de maneira precisa em que ponto cometi eu uma ilegalidade. De contrário, para quê estarmo-nos a ralar?
Brodersen respirou fundo antes de prosseguir:
— Eu pensei, e falei disso a várias pessoas, que a Emissário podia regressar em breve. Poucos me deram grande atenção. Sim, como a senhora imaginou, foi de minha iniciativa aquele robô de observação que a Fundação mandou para ali, a fim de estudar a máquina T, mas estava fundamentalmente a levar a cabo autêntico trabalho científico e ainda não recebi uma explicação satisfatória quanto ao motivo por que lhe impuseram uma órbita tão distante.
— Espere um pouco, por favor — pediu ele. — Deixe-me prosseguir mais um momento.
E, embora as pálpebras lhe palpitassem atenuando o tom imperativo, a sua voz suavizou-se:
— Os regulamentos do espaço não prescrevem a obrigatoridade de os planos de investigação serem discriminados em pormenor. E que mal haveria, em todo o caso, em manter um óculo apontado para a Emissário? A senhora acusa-me de fazer as coisas pela calada? Que diabo, Aurie, não foi nada assim!
Depois de breve pausa, Brodersen prosseguiu:
— É claro que, após alguns meses, o observador regressou e lançou uma mensagem à estação a que estava ligado, revelando certos fatos. Eu vim aqui falar consigo e perguntei-lhe — com bastante diplomacia, penso eu — se sabia alguma coisa sobre o assunto. A senhora disse-me que não. Pedi informações para a Terra e todos aqueles a quem me dirigi disseram também que não. Eu não gostaria agora de lhes chamar mentirosos a todos. Especialmente a si, Aurie. No entanto, a senhora convidou-me hoje para uma conversa confidencial, que parece ter por fim fazer-me calar.
Hancock endireitou-se na cadeira, apoiou-se ao tampo da secretária e olhou para ele num desafio.
— O senhor pôs-se logo a tirar ilações desde o princípio. Ilações absurdas.
— Devo ser eu porventura a andar descalço pela estrebaria em vez de si? O tom de paciência que deu às palavras não era espontâneo. Brodersen tinha planeado a sua táctica no caminho, quando se dirigia para aquela entrevista. Continuou:
— Direta ou indiretamente, a senhora já conhece o meu raciocínio. Apesar disso, porém, vou-lho delinear de novo.
Hancock encheu os pulmões de fumo e aguardou. Pôs-se a refletir rapidamente quanto o discurso humano era, como nestas circunstâncias, árida repetição, se não mesmo mero ressoar do tanta, e perguntou no seu íntimo se os Outros também estariam sujeitos àquela necessidade ou se podiam falar chegando diretamente a um ponto pleno de significado.
— O robô descobriu um transporte da classe Reina a sair de uma passagem — disse ele. — É claro, a distância era muito grande para que fosse possível identificar a nave, mas nós, Humanos, não construímos nada de maior, e a configuração era a usual. Ou se tratava de uma Reina ou então de uma nave de não humanos, da mesma espécie geral. O robô descobriu nessa altura a Faraday a rodear a nave recém-chegada, e depois assinalou-as a ambas quando seguiam de Febo para Sol. Era o bastante para o seu programa o mandar regressar à base, dar conhecimento do que se passava.
“Ainda não mergulhei, Aurie, até tocar no fundo das coisas. Comecei por pedir aos meus agentes na Terra que me informassem do paradeiro exato das várias Reinas nessa ocasião. Ficou demonstrado que nenhuma delas podia ser a que o meu observador viu. Todas se encontravam no Sistema Solar ou neste aqui.
“Entretanto a Füraday voltava para Febo e retomava as suas atividades. Pedi a um diretor da Fundação que dirigisse ao capitão Archer um pedido muito polido, para saber o que se havia passado. Respondeu ele que não fora nada de extraordinário. Que uma nave de carga tivera certas dificuldades quando fazia a viagem ida de Sol e que a havia escoltado, como medida de precaução. Que não era uma Reina, nem uma Princesa, e que se isso não coincidia com os elementos fornecidos pelo nosso robô, melhor seria que lhe mandássemos fazer uma revisão à aparelhagem.
“Agora* veja, Aurie: -eu sei que o observador está em perfeita forma. Nestes termos, que diabo quer a senhora que eu pense? Ou que se trata de uma nave de não humanos ou que era a Emissário, o que, imagino eu, e a senhora concordará, é mais provável, sem dúvida nenhuma. De qualquer modo, é a maior história desde ... veja bem ... e ninguém de responsabilidade tem uma simples palavra a dizer sobre isto!
Brodersen inclinou-se para a frente. Com a ponta do cachimbo riscou uma curva no ar. E prosseguiu:
— Reconheço que, provavelmente, a maior parte daqueles a quem me dirigi, ou a quem os meus agentes se dirigiram, são pessoas honestas. Não tinham realmente qualquer conhecimento do que se estava a passar. Em alguns casos, deram-se ao trabalho de fazer diligências de sua própria iniciativa, e não obtiveram resultados positivos. É compreensível que não tenham então aprofundado mais a questão. Entendem que o seu tempo é valioso, e eu já ganhei a reputação de ser importuno. Por que razão haveriam eles de aceitar que as minhas informações fossem de confiança? Sem dúvida que alguns deles devem ter pensado que eu estava a mentir, por qualquer motivo não muito claro.
“Bem, a senhor está em Deméter há bastante tempo para me conhecer melhor do que isso, não lhe parece? E, pela minha parte, quando entrei em contacto consigo pela primeira vez a este respeito e a senhora me disse que não sabia de nada, eu acreditei. Quando mais tarde lhe pedi de novo notícias e me respondeu que estava a investigar, acreditei também. A partir de então, contudo — e francamente —, tornei-me cada vez mais céptico. Para que me pediu então para vir hoje aqui?
Hancock amassou a ponta do cigarro no cinzeiro, tirou outro cigarro de uma caixa e acendeu-o num gesto vivo.
— Pretende o senhor que eu lhe quero tapar a boca — observou ela. — Chame-lhe o que muito bem entender. É isso mesmo que eu procuro fazer.
Estas palavras não foram totalmente uma surpresa para Brodersen. Este fez um esforço para que os músculos do ventre se descontraíssem e para que a sua resposta fosse envolvida num tom delicado.
— E porquê? Com que direito? Hancock enfrentou o seu olhar, sem fletir:
— Recebi uma resposta às minhas consultas sobre o assunto. Resposta vinda de uma entidade altamente colocada. O interesse público exige que, por tempo ainda indeterminado, não se dêem notícias sobre o que se está a passar, isso abrange as ilações que o senhor tem andado a tirar.
— Interesse público? Ari, sim?
— Sim. Desejo...
A mão de Hancock, ao levar o cigarro à boca, perdera bastante da sua firmeza.
— Dan — reatou Hancock quase com tristeza —, temos andado em conflito um com o outro. Compreendo quanto o senhor se opõe a certas medidas políticas da União e, por isso, se está a tornar um porta-voz de uma certa atitude entre os Demeterianos. No entanto, estimo-o e ousei esperar que acreditasse que também eu anseio pelo melhor futuro deste planeta. Trabalhamos juntos mesmo, não é verdade? Como quando eu pedi ao Conselho que se fizesse a apropriação extra para a Universidade que o senhor pretendia, ou quando o senhor fez pressão sobre o seu intratável parlamento colonial para aprovar a Lei Ecológica que, conforme eu o persuadi, se tinha tornado uma necessidade. Posso esperar hoje de si um pouco mais de confiança?
— Claro que pode — rosnou ele —, se me disser as razões que estão por detrás disto tudo.
Ela abanou a cabeça.
— Não posso. E o senhor compreende: também não me deram pormenores. É assunto espinhoso. Mas, no que se refere àqueles que solicitaram o meu auxílio, eu confio neles.
— Sobretudo em Ira Uuick — volveu Brodersen, sem poder neutralizar o tom ácido do remoque.
Hancock empertigou-se.
— Como quiser. Ele é ministro da Investigação e do Desenvolvimento.
— E uma roda motora do Partido da Ação, que manobra todas essas facções na Terra que bem queriam não nos verem andar pelas galáxias — replicou Brodersen, refreando os seus impulsos. — Não, hão nos vamos pôr agora a discutir política. Que é que lhe é permitido dizer-me? Presumo que me possa dar alguma justificação, que me possa apontar algum motivo para andar a vigiar-me.
Hancock lançou o fumo para o ar enquanto fixava os olhos na ponta do cigarro a arder, que segurava em cima da mesa.
— Eles sugeriram-me uma situação hipotética. Imagine que o senhor tem razão, que a Emissário voltou, mas que trazia consigo qualquer coisa de terrível?
— Uma praga? Uma horda de vampiros? Valha-nos Santo André, Aurie! E valham-nos os quatro evangelistas!
— Podia simplesmente trazer más notícias. Nós admitimos como ponto assente uma porção de coisas. Por exemplo, que todas as civilizações tecnologicamente avançadas para além da nossa são civilizações pacíficas. Que de outro modo não se poderiam ter mantido. O que é um non sequitur lógico, no fim de contas. Suponha que a Emissário descobriu uma raça conquistadora de hunos interestelares.
— Se é essa a questão, duvido que os Outros continuassem tranqüilos nesse campo. No entanto, supondo que sim, eu haveria de querer alertar a minha espécie para podermos preparar, todos, a nossa defesa.
Hancock dirigiu a Brodersen um pálido sorriso.
— Este foi um exemplo que as circunstâncias me sugeriram. Reconheço que não é muito plausível.
— Então dê-me outro que o seja. Ela teve um sobressalto.
— Muito bem. Uma vez que o senhor mencionou os Outros, suponha que não há Outros.
— Como? Mas alguém construiu as máquinas T e nos deixa utilizá-las.
— Robôs. Quando os primeiros exploradores chegaram à máquina no Sistema Solar, a coisa que lhes falou não escondeu que era apenas um robô. Nós assentamos toda a concepção dos Outros apenas sobre a base daquilo que ele nos disse. O que é espantosamente pouco, Dan, se pensar bem. Suponha que a Emissário nos trouxe a prova de que estávamos enganados. Que os Outros se extinguiram. Ou que nunca existiram. Ou que são fundamentalmente um perigo. Ou tudo o mais que o senhor possa imaginar. O senhor é um herético nato. Não acha nada disto inconcebível, ou acha?
— N... não. Acho-o extremamente improvável. Mas suponhamos que é verdade, para termos uma base de raciocínio. E daí?
— O senhor podia ver as coisas a frio. É um espírito excepcional. Mas aconteceria porventura o mesmo com a humanidade no seu conjunto?
— Aonde quer a senhora chegar?
Uma vez mais Hancock levantou a cabeça, atormentada, para lhe fazer frente.
— O senhor gosta de ler a História — disse ela — e como homem empreendedor é uma espécie de político pragmático. Será preciso que eu lhe diga a si o que significaria isso? O esfrangalhar da nossa imagem dos Outros?
O cachimbo de Brodersen acabara por se apagar. Ele reacendeu-o.
— Talvez convenha dizê-lo.
— Bem, olhe, homem. (Ele ficou singularmente sensibilizado pelo americanismo. Partilhavam ambos da mesma origem, embora Hancock viesse do Médio Oeste. E Joelle tinha nascido na Pensilvânia, recordou-se Brodersen. Onde estarás tu agora, Joelle?) Quando os homens descobriram o que era aquele estranho objeto, uma verdadeira máquina T, e ouviram o que o robô tinha para lhes dizer, devem ter sentido o mais violento choque que a raça humana sofreu até hoje. Toda a raça humana. Em Jesus ou Buda tinha-se de acreditar pela fé, e a fé propagou-se lentamente. Mas aqui, de um momento para o outro, encontrávamo-nos perante a prova direta de que existiam seres superiores a nós. Superiores não meramente em ciência e tecnologia. O que a Voz dizia mostrava que estavam para além de nós na sua própria essência. Anjos, deuses, demos-lhes o nome que quisermos. E na aparência inofensivos, mas indiferentes. Ensinaram-nos como irmos de Sol a Febo e volta. Tínhamos liberdade de nos estabelecermos em Deméter, se quiséssemos. O resto ficou à nossa decisão, incluindo como irmos mais para a frente a partir daqui.
— Sim, é claro — encorajou-a ele.
— Provavelmente isso representou uma larga parte do choque: a indiferença. De súbito, os Humanos aperceberam-se de que, na realidade, não são nada de especial no universo. Mas ao mesmo tempo há também qualquer coisa a que aspirar. Não nos admiremos, por conseguinte, que se tenha espalhado um milhão de cultos, de teorias, de verdades feitas, de autênticas idiotices. Nada de espantar que daí a pouco a Terra explodisse.
— Hum, eu não atiraria inteiramente a culpa das Perturbações sobre a revelação — disse Brodersen. — O equilíbrio a que se tinha chegado-antes disso era terrivelmente precário. Pelo menos, creio que o pensar nos Outros contribuiu para impedir que toda a gente ficasse tresloucada, contribuiu para que as armas autenticamente destruidoras de planetas não tivessem demasiado uso. É por isso que a Terra é ainda habitável.
— Como quiser — respondeu Hancock. — A verdade é que essa idéia suscitou uma tremenda divisão, talvez maior do que qualquer das religiões tradicionais, até aos nossos dias.
Hancock armou-se de coragem e continuou:
— Ouça bem: suponhamos que a expedição da Emissário descobriu que aquilo era uma falsa idéia. Como sugeri, talvez os Outros estejam mortos ou se tenham mudado para outro lado. Ou menos do que nós pensamos, ou pior do que nós pensamos. Ponhamos essa notícia a circular sem qualquer preparação prévia. Deixemos comentadores histéricos atacar os alicerces mal seguros em que se apoiam centenas de milhões de pessoas. E que acontece? A União não ganhou ainda suficiente firmeza para sobreviver a um delírio à escala mundial. E da próxima vez os assassinos planetários podiam ter o campo livre diante deles. — Ela suplicou: — Dan, está a ver por que motivo temos de guardar silêncio durante algum tempo?
Brodersen puxou pelo cachimbo.
— A verdade é que preciso dos pormenores — respondeu ele.
— Mas ...
— A senhora admitiu que isto é uma hipótese, não é assim? Pois bem, eu não me conformo com tal hipótese. Se os Outros fossem monstros, não estávamos agora sentados aqui. Já tínhamos sido eliminados. Ou então não passaríamos hoje de animais domésticos deles, ou outra coisa do gênero. Se se extinguiram, diga-me então como é que uma espécie com inteligência e meios para construir máquinas T se deixa extinguir. Não imagino também que sejam inferiores a nós. Com uma tecnologia daquelas não melhoraria a senhora a sua própria raça, supondo que a evolução já não o tivesse feito antes? E quanto a eles irem coletivamente viver em qualquer espécie de universo paralelo, porque haveriam eles de o fazer, quando este a que chegamos está cheio de atrativos que ninguém pode esgotar até que se extinga a derradeira estrela?
— Eu não afirmei que fosse nada disso — protestou Hancock. — Apenas lhe dei alguns exemplos.
— Sim, sim. Já alguma vez ouviu falar das cortinas de fumo? Conheço-as de pequenino ...
— Escolha então a mais simples explicação para os fatos.
— Tem razão. E neste caso qual é a mais simples? Parto do princípio que a Emissário voltou. Que a história que ela trouxe era de como nós podíamos ir para além destes dois sistemas planetários onde nos encontramos. Que certos políticos na Terra não apreciam essa possibilidade e a querem destruir. E que a senhora, Aurie, recebeu também agora as suas ordens a cumprir, imagino que não há-de concordar em princípio com elas, de uma maneira ou outra. A senhora pertence ao Partido da Ação.
Brodersen dispôs-se a prosseguir nas suas deduções. Podia muito bem fazê-lo, com base numa decisão já tomada. E talvez pudesse extrair dali um pouco de verdade, daquela governadora que se havia tornado sua inimiga.
No entanto, sentiu-se chocado quando ela disse da maneira mais fria:
— Tomo isso por um insulto, capitão Brodersen. Mas deixe lá. Se não quiser cooperar conosco de boamente, teremos de recorrer a medidas severas. O senhor não pode continuar a falar como até aqui.
Brodersen sentiu-se enregelar. Esperava que Hancock exercesse forte pressão sobre ele, mas que não tentasse pôr-lhe a pata em cima.
— Já leu alguma vez a Convenção? — perguntou ele em voz baixa.
— Quero dizer, o artigo sobre a liberdade de expressão?
— E o senhor já leu as disposições relativas a situações de emergência e as leis que daí resultam? — replicou ela, embora visivelmente contrafeita.
— Ah, então é isso? ...
— Eu proclamo uma situação de emergência. Volte daqui a cinco anos e meta o caso no tribunal.
Hancock procurou outro cigarro.
— Dan — prosseguiu ela com ar contristado —, eu pus em campo os bufos, como o senhor lhes chama. Até podermos chegar a acordo sobre esta matéria, o senhor fica sem liberdade de movimentos.
Queria ela dizer que Brodersen ficava detido em casa, com o correio e o telefone sob vigilância. Talvez ela fosse sincera na promessa de que os agentes de vigilância apenas poriam a funcionar os aparelhos eletrônicos de escuta quando ele tivesse visitas. Podia portanto continuar a orientar de casa os seus negócios, como habitualmente — naquela época eles marchavam por si mesmos, de qualquer maneira — e podia alegar o motivo que quisesse, tal como violentos acessos de eólicas, para não sair dali. Se Brodersen dissesse, porém, que era por ordem dela, Hancock diria por sua vez aos órgãos de informação que ele estava com residência fixa enquanto se investigavam as atividades da sua companhia por suspeitas de fraude.
Pensava ela que o poderia provavelmente deixar em paz dentro de um mês ou dois. Isso dependeria daquilo que lhe comunicassem da Terra.
Brodersen não gastou energias a protestar.
— A senhora está a proceder como um governo, Aurie — observou ele. E quando Hancock lhe lançou um olhar inquiridor, Brodersen explicou:
— A mais simples definição de governo que até hoje encontrei e que corresponde às realidades é que se trata de uma organização que proclama o direito de matar as pessoas que não fazem aquilo que ela quer.
Brodersen podia continuar, reconhecendo que estava a simplificar a quês' tão ao extremo, uma vez que Hancock estava, evidentemente, a agirem nome de um grupo cujo comportamento podia ser ele próprio ilegal. Mas pensou que não valia a pena.
Dois corteses polícias à paisana escoltaram Brodersen da residência da governadora e acompanharam-no a casa no carro dele. Nesse momento estava Deméter a completar outro dia, 10% mais curto do que os da Terra. O Sol escondia-se por detrás de Anvil Hill, que se recortava ao longe, de um cinzento-azulado, ao fundo da Avenida dos Pioneiros, com a cúpula do Capitólio a brilhar, dourada, no alto. À esquerda e à direita, estendia-se a cidade, num amplo panorama de casas de habitação, pequenas fábricas, armazéns, empresas de serviços públicos, e muitos prédios rodeados de relvado e flores. Por detrás de Brodersen cintilava o rio Europa, largo, a caminho da baía de Apoio, onde ia desaguar, no mar Hefestiano. A outra margem era de terras aráveis, searas de trigo, milheirais, todos verdejantes nesta estação do ano, rodeados de uns tufos azulados de malvas e de acianos. Via-se no alto uma lua na sua meia fase, pálida e como coberta por um véu, no meio do azul sem nuvens. Cruzavam-se no céu aves, frailes e bucearos à procura dos seus ninho$, estarletas à caça ao lusco-fusco. O ar soprava frio e trazia um perfume selvagem das terras do interior, para leste.
Como isto é belo! -y- meditou Brodersen quando saiu. Vieram-lhe à memória ao mesmo tempo algumas linhas do seu poeta favorito, escritas há mais de duzentos anos:
Deus deu, a todos os homens a Terra inteira para eles amarem,
Mas, como os nossos corações são pequenos,
A cada qual destinou o seu recanto,
O recanto que seria querido acima de todos.
E ao mesmo tempo: Não, com os diabos! Isso não basta! Nós temos um universo inteiro para vivermos nele, se nos pudermos desvencilhar dos que abusam do poder.
Foi assaltado pelas recordações: a Terra vista do espaço, muito pequena, um ponto perdido a brilhar na imensidão, mas um ponto infinitivamente precioso; crateras lunares por baixo de uma camada refulgente de estrelas; um alvorecer marciano, vermelho, vermelho, vermelho, por cima de areias e seixos e cores; o vigoroso aspeto de Júpiter com numerosas cinturas; a primeira vez que viu Febo por entre novas constelações. Que mais poderia ter Joelle visto? E que mais poderia ele ver ainda?
— Tempo magnífico! — disse um dos polícias. — Pelos vistos, não vamos ter os temporais de Verão senão lá para Hetos ou Hebdomos, este ano.
— Ah, sim! — respondeu Brodersen como uma máquina. Uma parte dele notou que o jovem que ia a seu lado tinha nascido ali. Aquela gente usava automaticamente o calendário demeteriano. Poucos eram naqueles homens os átomos que tinham vindo da Terra. Que pensavam eles individualmente sobre a perspectiva de o gênero humano atingir a liberdade de cosmo? Sem dúvida iriam dizer que era uma grande idéia ... até que qualquer neocoletivista lhes desse uma estimativa do custo social que aquilo implicava. E depois? Ele absteve-se de perguntar.
Em vez disso, dirigiu-se para o subúrbio da Igreja de São Miguel. (O tráfego não era tão denso em Eópolis que fossem obrigatórios autopilotos.) A discreta Estrada da Montanha estendia-se à noite com a sua iluminação dourada, vi vendas e jardins largamente separados, campos livres e matas entre eles. Também a residência de Brodersen fora concebida para o clima: um bangalô estilo havaiano em meio hectare de relvado e flores terrestres.
— E como pensam os senhores regressar depois? — perguntou ele enquanto abrandava no acelerador.
— Nós ficamos por aqui nas redondezas até nos virem render — foi a resposta.
— Querem entrar um pouco para tomarem uma chávena de café?
— É preferível não entrarmos. Muito obrigado!
Brodersen sorriu perante o embaraço dos seus passageiros, ò que lhes aliviou um pouco a cólera, e saiu. Eles retiraram-se da propriedade e desapareceram por detrás de uma alta sebe de davísias, sem dúvida para ficarem a vigiar os acessos pela frente e pela retaguarda.
Depois de fazer festas ao seu pastor-alemão, entrou em casa. A sala de estar era ampla e alta, com paredes como as do gabinete onde ele tinha estado. Uma chaminé, toda de pedra, construída por ele próprio, erguia-se, de aspeto sóbrio, em frente de uma larga janela que dava sobre o pátio. Na sala sentia-se o perfume das flores que a sua mulher havia trazido. Esta ouvia música, um trecho do seu querido Sibelius, mas suavemente, sentada num cadeirão com o gato no regaço, e estudava um relatório técnico. (Depois de Brodersen a ter contratado, depressa verificou que Lis merecia rápida promoção. Casaram e fê-la sua sócia em parte inteira. Agora, Elisabet Leino ocupava muito do seu tempo em atividades alheias às Empresas Chehalis: atividades sociais, teatrais, hortícolas, para não mencionar dois endiabrados miúdos, mas a companhia continuava a precisar dela para o seu bom andamento.)
— Oh,já voltaste! —disse Lis, ao mesmo tempo que pousava os papéis e se levantava, à espera de um beijo. Era uma mulher esbelta, com pele de marfim, cabelo castanho, voz doce, e trazia um vestido curto que lhe realçava as pernas. As suas feições finas, quase clássicas, breve perderam todo o aspeto de alegria.
— Pelos vistos, ti veste contrariedades. Decorreu mal, não foi?
— Primeiro, quero cerveja — rosnou ele, e tirou uma garrafa da geleira por detrás de um pequeno bar. A seguir retomou a sua amabilidade. — Queres também?
Lis foi ao seu encontro para o abraçar ao de leve.
— Aguardo pela hora cio aperitivo. Que aconteceu, querido?
— Uma porção de coisas, e todas elas desagradáveis.
Deitou a cerveja numa caneca de prata de um serviço que havia trazido da Terra da última vez que ali fora, sem olhar a taxas de bagagem, para o nono aniversário do casamento neste ano dimeteriano. Foi reconfortante sentir a caneca na mão e a cerveja gelada na boca.
A sua mulher estudou-o.
— Refletiste bem no que vais fazer? — perguntou ela.
— Estou a analisar o caso. Também estás envolvida nisto, é claro, como principal consultora.
— Diz-me então o que se passa.
Lis pegou-lhe na mão e levou-o para o canapé.
Brodersen deixou-a sentar enquanto ele andava de cá para lá e de lá para cá a falar, bebendo um trago entre as passagens desagradáveis. Por fim, resumiu:
— Parece-me claro. Um grupo de tipos antiestelares formou um conluio. Devem ter gente em vários governos nacionais, e também sem dúvida no Conselho da União, no aparelho burocrático, no corpo espacial. Inteiramente provável que hajam tomado muito mais a sério do que dizem a idéia de a Emissário poder regressar mais cedo do que se esperava, e hajam tomado as suas precauções. Por isso a conservam agora incomunicável, enquanto decidem o que hão-de fazer dela. Entretanto, eu tenho andado a dar demasiado à língua. De modo que a Hancock recebeu instruções para me fazer calar. Duvido que esteja metida em qualquer conspiração, mas é muito dedicada ao Partido da Ação em geral e aos seus dirigentes políticos em particular. Se eles lhe disserem que é seu dever impor o silêncio, ela o imporá sem fazer perguntas indiscretas.
Encolheu os ombros e prosseguiu:
— Suponho que tenho de dar muitas graças por ela não ser do gênero de tomar medidas mais drásticas.
Lis deixou o silêncio pairar sobre eles por um momento, enquanto o crepúsculo descia. Depois murmurou:
— Julgo que não há qualquer possibilidade de eles terem razão.
— E que pensas tu?
— Oh! Temos falado disto tantas, tantas vezes! Sabes que eu concordo contigo. Simplesmente me espanta o que se passa. É penoso para a nossa maneira de ser imaginarmos que exista corrupção nas altas esferas da União. Da União! Não te parece? E tu, que tencionar fazer?
Brodersen deteve-se, olhou para ela e respondeu:
— Que posso fazer, senão ser compreensivo? E tu, compreensiva também. A Hancock sabe muito bem que eu te haveria de contar aquilo que se passa, mas preveniu-me que também tu terias a tua conta se falasses. Diremos que eu ... Bem, “indisposto” durante semanas não é crível... Diremos que eu me fiz eremita para trabalhar numa nova idéia relacionada com os nossos negócios, idéia essa que tem de ficar em segredo até estar bem delineada. Entretanto, tomas a direção da firma por mim.
— O quê? — perguntou ela, estupefata. — Tu, Dan, a aceitares uma coisas destas com tanta mansidão?
Ele abanou a cabeça e levou um dedo aos lábios.
— E que outra solução temos nós? Podia encontrar-me em piores lençóis do que tomar umas férias forçadas. Terei assim a oportunidade, pelo menos, de ler alguns daqueles livros de que tantas vezes me falas. Olha, minha querida, sinto-me cansado, acabrunhado, e se quiseres que aprecie bem o teu jantar deixa-me descansar primeiro um pouco. Está bem?
Lis olhou para ele, desta vez a compreendê-lo melhor.
— Muito bem — disse ela.
Deste modo, entregaram-se em seguida à rotina familiar. Depois da segunda cerveja, Brodersen levou as crianças para a sala de jogos, para a meia hora com o Papá, que lhes pertencia por direito. Mike, nos três anos (dois, pelo calendário da Terra), sentia-se radiante, a chilrear e a rir, a saltar ao pé-coxinho, e a participar sem palavras em algumas canções. Tinha melhor ouvido do que o pai, embora não fosse lá muito. Bárbara, de sete anos, pedia que ele desenhasse um retrato e lhe contasse a parte final do seu conto do orosauro dos Pés Revirados. (Na infância, Brodersen ouvira do capitão-geral John a história do urso dos Pés Revirados, mas isso tinha sido na Terra.) Acabou a aventura um tanto abruptamente, com o regresso a salvo ao Castelo de Queets.
A filha pressentiu-lhe a pressa.
— Vais sair de novo, pai? — perguntou ela.
— Ainda não sei, minha filha — e dentro dele travava-se um conflito. — Talvez tenha de me ausentar.
Ela sentou-se com afeto entre as suas mãos.
— Muito tempo?
— Espero que não. Tu sabes que eu tenho de viajar às vezes, para ganhar dinheiro. Se tiver de partir, bem, hei-de voltar para casa logo que puder, com um carregamento de brinquedos e uma nova série de histórias.
Apertou-a nos braços e perguntou-lhe:
— E tu ajudas a Mãe, como das outras vezes, não é verdade? É assim a minha filhinha!
Ela passou-lhe também os braços em torno do pescoço.
Supunha Brodersen que os agentes de escuta pudessem estar a ouvir pelos auscultadores, apesar da promessa de Hancock, mas que não ligassem qualquer importância a uma conversa daquelas. No entanto, depois de as crianças regressarem aos seus quartos e de ele se sentar com Lis para tomar uma bebida, teve a precaução de observar:
— A propósito da minha detenção no domicílio, gostaria de saber se não me deixariam visitar a Chinook. Há ali diversas coisas que precisam de ser vistas. Até a Bárbara pôde sentir que eu estava ansioso por causa daquilo. Eles podem mandar comigo um par desses malditos guardas, para terem a certeza de que não ando a dar à língua.
— Bem, é experimentares — respondeu Lis.
— Daqui a uns dias, quando os ânimos serenarem.
Conhecedora do estado de espírito de Brodersen como a filha, Lis mudou de assunto. Tinham sempre os dois muito de que falar. Os negócios eram só por si um tema inesgotável. A Chehalis tinha muitas naves no Sistema Febiano e desenvolvia a maior parte da sua atividade fora de Deméter, por conta própria ou por empreitada, no campo dos transportes, da prospecção, das minas, das indústrias, da exploração, da investigação pura. Isto envolvia-a inevitavelmente em variados aspetos da economia da colônia, da sua política, e também cada vez mais em questões relacionadas com a Terra. Para além disso, sem alimentar ambições a cargos oficiais, ambos se interessavam muito pelo andamento dos assuntos públicos. Iam navegar à vela juntos ou viajavam por regiões desérticas, esquiavam, patinavam, jogavam tênis e divertiam-se com o xadrez e o pôquer, trabalhavam na casa e nos terrenos à volta. Com freqüência deambulavam a observar as estrelas e perguntavam um ao outro o que estaria para além delas. Naquela noite entregaram-se a algumas recentes descobertas a respeito de uma singular relação entre os dominantes hipersauróides e os primitivos teróides ao longo do litoral do golfo Jónico, e quase esqueceram as suas preocupações. Depois disso, as crianças tornaram muito aprazível o jantar.
Mas quando os dois ficaram outra vez sozinhos, Brodersen disse:
— Sinto-me inquieto. Tenho de reparar aquele gravador de monofilme. Queres vir ajudar-me?
Coisas daquelas não estavam dentro dos passatempos prediletos de Lis, mas ela percebeu o sentido das palavras e respondeu:
— Vamos lá!
Dirigiram-se para a oficina. Em meia hora Brodersen consertou o aparelho, recorrendo a uma larga provisão de sobresselentes, e pô-lo a funcionar. Uma espécie de lamento encheu aquela dependência atulhada de aparelhagem. Brodersen fez estalar a língua.
— Deus meu! Não serve.
— É para cobrir as nossas vozes? — perguntou ela.
Lis tinha compreendido o que o preocupava. Falava-se finlandês na fazenda dos pais de Lis, na região de Trollberg, e Brodersen tinha aprendido algumas outras línguas nos seus anos de andanças pela Terra. Mas tudo quanto os dois tinham de comum era o inglês — a língua que falavam todos os dias — e o espanhol, ambos conhecidos de qualquer detetive.
— Não — explicou ele. — A parte sonora não trabalha, pelo menos sem uma complicada aparelhagem heteródina. Isto não passa de um gerador de ruídos de larga banda e alta potência, mas que serviria quando muito para interferir em comunicações eletrônicas num raio de escassas centenas de metros, e com aspeto de acidental. Parto do princípio de que aqueles amigos semearam aparelhos de escuta pelas nossas paredes, para ouvirem o que se diz na nossa casa e levarem as conversas para um receptor. Fácil de fazer. Coisa de pouca monta. Podia-se neutralizar aquilo também com meios primitivos.
Lis sentiu medo:
— Pensas realmente que Aurie Hancock pudesse dar ordens dessas ou que a polícia obedecesse? Parte-se do princípio de que em Deméter se vive numa sociedade livre.
— Parte-se do princípio, não há dúvida. Mas trata-se de um aglomerado de comunidades, e tu sabes isso. E algumas das mães-pátrias não são propriamente modelos de liberdade. Se eu fosse governador, conservaria no exército alguns homens com passado sem escrúpulos para com a vida privada de cada um. Poderia precisar deles de um dia para o outro para fazer face a criminosos que quisessem tornar este planeta numa espécie de fácil coutada.
Brodersen sentou-se no banco de trabalho e pôs-se a balouçar as pernas.
— De qualquer maneira, Lis — continuou ele —, não me limito a supor que tenham instalado um sistema de escuta. Tenho a certeza de que montaram. É assunto demasiado importante para otimismos. Amanhã há-de vir aqui Mamoru Saigo com um detetor e há-de procurar aparelhos de escuta, escondidos. Se encontrar algum, sugiro que tu os destruas, mas primeiro transmite uma mensagem bem vincada a dizer que se uma coisa destas se repetir pões o caso no tribunal e dás conhecimento dele, ao mesmo tempo, aos órgãos de informação.
Lis não dizia palavra, absorta entre as ferramentas. Apenas o sondava com o olhar. A janela por detrás dela estava fechada, com a cortina corrida, mas vinha dali uma ponta de frio, como uma sensação do escuro que estava lá fora.
— Mas então não estarás aqui — conjeturou ela.
Brodersen remexeu os bolsos à procura do cachimbo e do tabaco.
— Receio que não, minha querida. Não podemos deixar que esta canalha faça pouco de nós, não é assim? Com mil diabos, está em causa o futuro de todo o programa espacial do homem! Além disso — e não esqueceste, pois não? —, o imediato que anda na Emissário é Carlos Rueda Suárez, um amigo meu, primo da Toni. Não me esqueço da família.
— Também lá anda Joelle Ky, se estiver viva — lembrou Lis, discretamente.
Brodersen não pôde esconder um movimento de contrariedade, suscitado pela dor que se lia na cara de Lis.
— Sim, é claro, uma velha amiga igualmente.
— Mais do que amiga — e Lis levantou a palma da mão. — Não, não tentes fingir. Eu nunca pus entraves às tuas pequenas folias, não achas? Gostava também de conhecer Joelle. Deve ser muito especial, para significar assim tanto para ti. Nunca me falaste dela tão desprendidamente como imaginas.
— Tens razão — reconheceu Brodersen, com as faces a arder. — Não que tenhamos tecido um romance, compreenda-se. Ela é tão... tão estranha para isso! Mas ... De qualquer maneira, o que me preocupa mais é que vejo como pode aquela cambada deixar agora sair a Emissário. O conhecimento do que se passou iria destruir todos os objetivos daquela gente, e as suas carreiras pessoais ainda por cima. Ao mesmo tempo, é perigoso manter prisioneira a tripulação. E se se decidissem por uma carnificina?
— Se forem celerados a esse ponto. Se houver um conluio. Brodersen fez que sim com a cabeça.
— Um risco que eu tomo, e posso estar enganado.
— Assim como os riscos com a tua vida, Dan.
— Não muito graves. Realmente. Tenho amor à pele. É o que me resta.
— Que pretendes fazer, no fim de contas?
— Ir à Terra. Ir ver o que se passa. Agir. Principalmente, suponho, alertar o clã dos Ruedas. Quando muito, devem-lhes ter chegado vagos rumores. Não lhes escrevi diretamente, como sabes, porque de início não estava seguro dos fatos. E depois, quando fiquei seguro deles, pedi confiadamente à Aurie que levasse por diante os seus pedidos de informação com mais vigor. E a seguir, hoje, ela atirou com este balde de água fria sobre mim. A nossa correspondência está sujeita a ser interceptada e retida, se disser qualquer coisa de inconveniente. Não sei de ninguém em Deméter a quem possa de qualquer modo passar palavra. Ninguém com possibilidade de ir à Terra ou com as relações que ali tenho. Não, é preciso que eu mesmo vá a Lima, falar aos Ruedas.
— Como?
Brodersen fez uma pausa, atestando o cachimbo, e lançou a Lis um olhar de viés.
— Lis, essa singela pergunta, bem prática, precisamente numa hora destas, faria que eu te amasse.
Havia muito tempo que Brodersen não a via corar e desviar o olhar. Ela apertou-lhe a coxa.
— Somos sócios, lembras-te? — murmurou Lis.
— Descansa, que não esqueço.
Brodersen pousou os seus apetrechos de fumador para assentar a mão em cima das dela.
— Olha, não temos lá muito tempo. Melhor será irmos andando. A verdade é que não tenho ainda um plano exato. Sobretudo, entendo que é indispensável sair daqui, sem me poderem deitar a mão em cima. E já. Se não virem nem ouvirem nada de mim durante os próximos dois, três dias, Aurie suporá que eu estou para aqui a rabujar na minha tenda. Depois disso, porém, haveria de parecer estranho se eu não fizesse pelo menos uma ou outra chamada telefônica a alguém. Por isso, vou-me pôr a andar esta noite.
Lis não perguntou pormenores. Ninguém mais, a não serem eles os dois, sabia do túnel. Alguns anos atrás, Brodersen tinha contratado um perfurador para acrescentar uma cave para o vinho ao seu abrigo contra as tempestades. Enquanto se efetuavam os trabalhos, escavou uma saída para o meio da floresta a norte do seu terreno, consolidando-a depois com uma camada de protecção a pulverizador. Passou-se isso durante o mais duro da disputa na Terra e à volta dela quanto a jurisdição e a direitos de propriedade entre os asteróides, quando durante algum tempo tudo parecia indicar que a Liga Iliádica se ia desconjuntar. Se aquela federação das colônias orbitais e lunares saísse da União e a União decidisse pegar em armas para manter ali a sua autoridade, sabe Deus o que sucederia também em Deméter! A crise foi ultrapassada por meio de um compromisso que não agradou a todos, mas Brodersen ainda se censurava a si mesmo por não ter construído uma saída secreta da casa antes disso. Já tinha visto bastantes desastres, muitos deles devidos aos governos, e a prudência aconselhava-o a que tomasse tal medida de precaução logo de início.
Da floresta podia andar a pé 5 km até uma paragem isolada dos ônibus aéreos, voar até uma cidade distante e alugar ali um carro. Tinha preparado uma série de identidades falsas, completadas com excelentes documentos de crédito, para proteger a sua identidade quando ele e os seus viajassem. No pequeno mundo que era Deméter, com uma população de menos de três milhões, havia-se tornado uma figura notável. Mais notável do que desejaria.
— E depois? — perguntou bis.
— Vamos pensar — volveu ele, acendendo o cachimbo e aspirando o fumo. — É claro, necessitarei de transporte para o Sol, transporte que me fará algum bem merecido depois de eu tomar. A Chinook — o quê mais? —, a tripulação que ela pode levar, os mantimentos a bordo, a nave auxiliar. Além disso, a Williwaw foi praticamente concebida para tarefas como levar-me no mais perfeito incógnito de qualquer parte onde eu esteja neste planeta.
— E como esperavas tu sair com a Chinook pela passagem, estando ali a nave de vigilância?
Brodersen sorriu. Agradava-lhe imenso a perspectiva de dirigir as operações, em vez de ser dirigido. Não que se deliciasse com a embrulhada em que estava agora metido. Mas, nos últimos anos, os acontecimentos tinham-se tornado demasiado monótonos para o seu gosto.
— Vamos pensar nisso. Se não puderes ocupar-te das negociações, minha querida, melhor seria consultarmos ambos o nosso geroclínico. E sem demora ... Hum ... Bem, a Aventureiros — a companhia-mãe da Chehalis — certamente que pode usar outro grande transporte dentro do Sistema Solar. E sem qualquer perspectiva agora de a Chinook ir para as estrelas, vejamos, podíamos também servir-nos dela.
Brodersen deu estalidos com os dedos e continuou:
— Sim, isso lhe forneceria a perfeita justificação oficial para contactar os Ruedas.
Inclinando-se para a frente, foi mais preciso:
— Vamos, de fato, contar com isso. Amanhã conversas com a tripulação. Falas de uma possível viagem a Sol, de um momento para o outro, e convocas toda a gente para uma reunião, aqui, sobre o assunto. Disse-me a Hancock, muito francamente, que as minhas conversas seriam escutadas sempre que tivéssemos visitas. E se cobríssemos as escutas com interferências nesse momento, isso tornava-se suspeito. Mas tu podes preparar sumários escritos para entregares a cada um, e toda a verdadeira conversa pode ser por escrito, embora digamos coisas perfeitamente inofensivas, que também poderás preparar por escrito. Trata-se de espíritos brilhantes que eu selecionei, e com bons estudos. Dali sairá uma exibição convincente.
Lis franziu as sobrancelhas.
— E irão eles concordar com uma aventura assim tão arriscada?
— Bom, alguns podem ser demasiado legalistas ou apegarem-se a qualquer coisa do gênero. No entanto, tenho a certeza de que, se alguém recusar, serão todos suficientemente leais para não irem revelar o que aqui se disse.
Não os escolhi para fazerem parte da minha tripulação numa possível viagem a novos planetas sem os conhecer a todos muito bem. Mesmo assim, Aurélia não é tola nenhuma. Se souber que a Chinook está a preparar-se para largar, pode retê-la sob qualquer pretexto que possa imaginar, a fim de agir pelo seguro.
— E precisa ela de saber? O Governo-Geral não tem, em regra, nada que ver com as idas e vindas das naves espaciais. E estou quase certa de que poderás chegar a uma saída.
Brodersen hesitou antes de acrescentar:
— Mas, com o tempo, ela vai ter a certeza de que me escapei, e muito provavelmente chegará à conclusão de que me meti a bordo. Será a tua vez de suportar o embate, e lamento-o.
— Eu me saberei desvencilhar — assegurou-lhe Lis. Brodersen sorriu.
— Excelente! Bem sei do que és capaz. Não vejo como poderá ela pôr-te em embaraços sem se comprometer, o que não há-de querer fazer. O que pode ela provar legalmente, a não ser talvez que ajudaste o teu marido a ausentar-se de uma residência forçada que lhe foi imposta de modo legalmente muito duvidoso? E se isso chegasse a julgamento, nicles!
— Aurie podia tecer qualquer coisa de pior — observou Lis. — Não que eu pense que o faça de vontade. No fundo, não é uma comissária. Mas podia receber instruções para isso.
— Os nossos advogados podem fazer arrastar qualquer processo no tribunal durante meses — lembrou-lhe ele. — Por essa altura, já eu podia ter posto em frangalhos toda esta manobra, que cheira mal.
Brodersen franziu as sobrancelhas e prosseguiu:
— É claro, se eu falhar...
— Não te preocupes comigo — interrompeu ela. — Sabes que eu cá estou.
De novo Lis ficou calada, de pé ao lado dele.
— Receio, sim, mas por ti — disse ela, por fim.
— Não tenhas medo — volveu Brodersen, mudando o tabaco no cachimbo e passando um braço pelos ombros de Lis.
— Bem, uma vez que tencionas ir, o melhore planearmos as coisas com todo o cuidado. Para começar, como havemos de ficar em contacto?
— Diriges-te á Abner Croft — propôs ele. Era uma das suas personalidades fictícias. Abner Croft tinha uma cabana no lago Ártemis, a uma centena de quilômetros dali. O seu telefone estava equipado com qualquer coisa mais do que um misturador de freqüências. Tinha um dispositivo militar a respeito do qual Brodersen se havia informado na Terra e que fora adaptado para si próprio, como precaução suplementar durante a crise iliádica. Alguém que estivesse à escuta na linha apenas ouvia uma conversa banal, previamente gravada. Brodersen e Lis tinham-se divertido a criar várias conversas dessas, usando vozes disfarçadas e vozes criadas pelo sistema voder. Ele podia entrar no circuito a partir de qualquer terceiro telefone, pedindo uma chamada. A aparelhagem de interligação não se opunha a isso.
— Hum! — murmurou ela. — Onde esperas ficar realmente?
— No Planalto. Uma zona lógica, não? Lis fez uma pausa e perguntou:
— Com Caitlín?
Desconcertado por a ouvir falar com tal gravidade, Brodersen emaranhou-se:
— Bem, é aí que ela está nesta época do ano. Toda a gente ali há-de saber onde se encontra, e penso que é perfeitamente natural que um visitante estranho queira ouvir umas canções dela. E quem melhor do que Caitlín me poderia esconder ou indicar um local seguro de abrigo ou... outras coisas mais?
Deu umas fortes cachimbadas. Lis tocou-lhe de novo, e agora ela não deixou escapar a ocasião:
— Desculpa por ter perguntado isto — disse, baixo. — Não estou a protestar. Tens razão, ela é uma boa ajuda para nós. Mas, compreendes ... Não, não tenho ciúmes, mas podia nunca mais te voltar a ver a partir desta noite. E Caitlín significa muito mais para ti do que Joelle, não é verdade?
— Oh, minha querida!
Brodersen pôs de lado o cachimbo, para deslizar ao longo do banco e a tomar nos seus braços.
Com a cabeça no peito do marido, dedos espalmados nas suas costas, Lis deixou sair as palavras, embora conservasse um tom suave:
— Dan, querido Dan, é preciso que me compreendas. Sei o amor que tens por mim. E eu, quando o meu maldito casamento se desfez, quando te conheci... Tudo quanto fizeste demonstra que me tens amor. Mas tu, tu e a tua primeira mulher... Nunca foste mais feliz do que com a Antônia, não é verdade?
— Não — confessou ele com veemência. — A não ser a felicidade que me deste ...
— Chuta! Já te disse de maneira bem clara que não me importo e que não é muito para me preocupar se fizeres uma escapada de vez em quando. Encontrarás pessoas de toda a espécie, e eu não te costumo acompanhar nas tuas viagens à Terra. Além disso, és um homem fortemente atrativo. Não to disse já? Não, cala-te um pouco, querido. Deixa-me acabar. Não me preocupo por causa de Joelle. Pelo pouco que me disseste, paira em torno dela uma espécie de bruxaria... Uma holoteta e... Mas tu nunca inventaste. pretextos para voltar para ela. Caitlín, porém...
— Nem para Caitlín ... — procurou Brodersen explicar.
— Não me disseste que era apenas uma amiga e uma companheira ocasional de jogo. Bem, não mo disseste abertamente, a respeito de ninguém. És uma pessoa muito especial à tua maneira, Dan. Mas acabei porte conhecer, apesar disso. Observei-vos aos dois quando ela aqui esteve em casa. Caitlín é muito parecida com Toni, não é?
A única resposta de Brodersen foi apertá-la nos braços.
— Disseste tu que não precisava de ser monógama também — observou Lis. — E talvez não o seja sempre.
Ela abafou o riso.
— Que belo par de anacronismos nós somos, sabendo o que significa a monogamia!... Mas desde que casamos, Dan, ninguém mais valeu a pena. E ninguém mais valerá enquanto estiveres ausente nesta viagem e eu não souber se alguma vez voltarás.
— Hei-de voltar!—protestou ele. —Hei-de voltar, sim, para junto de ti.
— Vais fazer todo o possível, é claro. O que será diabolicamente difícil. Lis levantou a cara para ele. Brodersen viu-lhe lágrimas nos olhos, e tocou-as, saboreou-as.
— Desculpa — prosseguiu ela. — Eu não devia ter falado em Caitlín. A não ser... para que lhe dês lembranças minhas. Não esqueças!
— Eu disse-to já: a tua pergunta prática lembrou-me o gênero de pessoa que tu és — balbuciou ele. — Daí tudo isto ... És incrivelmente boa.
Lis desprendeu-se dos seus braços, recuou, tirou as mãos das costas dele e pôs-lhas nos quadris. Disse do fundo do coração:
— Obrigado, meu amor. Olha, esta noite vai ser tão curta! ... Hás-de querer apanhar o transporte enquanto os passageiros estão a dormir. E tens ainda um ror de coisas para fazer. Primeiro, contudo ... m-m-m-m?
O calor despertou nele.
— M-m-m-m — repetiu.
A 300 km a leste do mar Hefestiano, 2000 km ao norte de Eópolis, estende-se o Planalto. Tinha-se aí fixado uma quantidade de imigrantes vindos do Norte da Europa durante o povoamento no século passado. Como a maior parte dos colonos — uma vez que se tornara possível sobreviver para lá da cidade inicial e do seu apoio tecnológico —, eles tendiam a agrupar-se em conformidade com a sua própria maneira de ser. Fazendeiros, criadores de gado, madeireiros, caçadores, viviam de maneira primitiva por falta de maquinaria. Os custos de transporte de materiais vindos da Terra eram enormes. Mais tarde, quando a indústria demeteriana se começou a desenvolver, adquiriram algum equipamento moderno, mas não muito porque tinham entretanto aperfeiçoado métodos muito apropriados para fazerem face aos problemas que se punham nas regiões em que viviam. Além disso, à maior parte deles não agradava a idéia de se tornarem dependentes de outrem. Esta gente, ou os seus antepassados, tinham vindo para ali para se sentirem livres de governos, de corporações, de sindicatos e de outros monopólios. Esse mesmo espírito persistia ainda.
O povo que o alimentava veio a criar um espírito novo. Em casa, muita daquela gente continuava a falar as suas línguas de origem. Dada, porém, a variedade dessas línguas, era o inglês o mais corrente, num novo dialeto. Fundiram-se as tradições, operou-se nelas uma verdadeira mutação, e formaram-se espontaneamente outras. Por exemplo, no solstício de Inverno — frio, sombrio, coberto de neve naquela zona do continente a que os Humanos chamavam Jónia — celebrava-se Yule (e não o Natal, que ainda perdurava pelo calendário da Terra) com boa comida, alegria, grinaldas, presentes e reuniões. A meio do ano demeteriano encontravam todos uma outra ocasião para se reunirem, e desta vez era mais francamente à maneira das festas de Baco. Nessa altura, as fogueiras respondiam às fogueiras através de longas distâncias, enquanto em redor das chamas se dançava, bebia, comia, . cantava, gracejava, jogava, praticava desporto ou gozava o amor físico, desde o anoitecer ao clarear do dia.
No decorrer dos últimos três anos, Caitlín Margaret Mulryan tinha levado a sua música naquela estação aos que se reuniam em Trollberg, quando não estava ocupada com outros prazeres. Ia agora de novo a caminho, a pé ao longo de uma estrada de terra batida, uma vez que a viagem fazia parte da festa. Enquanto andava, ia ensaiando a última canção que tinha preparado para o festival, marchando ao ritmo dela e espalhando em redor a sua voz de soprano.
Em azul-prateado, brilha o orvalho.
A noite de Verão
Está repleta de luz.
Venham, enlacem as mãos,
Pois a música despertou Por toda a parte.
Os dedos corriam pelo teclado do sonador que ela apoiava na cova do braço esquerdo. Programado para imitar uma flauta, embora um pouco mais forte, a caixa cor de mogno ressoava a acompanhar o seu cântico.
Contentes vamos a subir, contentes a descer.
A dança a voar, a voar como riso,
Dos campos em flor ao cume das montanhas.
Regozijemo-nos na alegria que vem depois!
A medida que ia andando, levantava-se-lhe poeira dos sapatos. Em tomo de Caitlín erguiam-se as alturas, adormecidas, com Febo a declinar no ocidente, cor de âmbar, próximo do seu ponto mais setentrional, num céu em que branquejavam nuvens esparsas. A estrada acompanhava o rio Astrid, que serpenteava num doce murmúrio, verde com um brilho glacial, à direita, em direção a Aguabranca, onde ia desembocar no caudaloso Europa. Para além do rio estendiam-se terrenos ainda por cultivar, caindo depois a pique num pequeno vale já escuro, coberto de vegetação verde-azulada sempre que os seixos deixassem campo livre — lódix, como uma espécie de relva ou trevo trilobado, tudo isto recamado de pétalas de sagitárias e de girassóis, e entrecortado de bosques de portentoso arvoredo e esguias dafnáceas. Enxameavam insetóides por ali, com as asas chamejantes sumptuosamente coloridas, arbustos a despontar. Um fraile de penas brilhantes cruzava por eles, um minstrel trinou de um ramo, desceu depois um casal de bucearos, e um draque
deixou-se planar, muito por cima. Não eram pássaros, estes, mas hipersauróides, como todos os vertebrados bem desenvolvidos que Deméter havia produzido. Um odor forte que lembrava resina e canela espalhou-se com a brisa do sul que estava rapidamente a arrefecer aquela tarde a cair.
Do lado esquerdo de Caitlín estendia-se uma sebe. Um tanto plano até atingir uma escarpa a 3 km ou 4 km dali, o terreno assim demarcado havia sido transformado em pastagens para o gado vindo da Terra e também em campo de cevada para os humanos. Para os invasores chegados do espaço, a carne e a vegetação de Deméter eram com freqüência comestíveis, por vezes deliciosas. Caitlín tinha estado a colher morangos-da-lua, maçãs-pérola e dulcifrutos desde que saíra do ônibus aéreo em Freidorp. Faltava-lhes, porém, todo o complemento de vitaminas e de aminoácidos, embora contivessem outros componentes que eram inúteis. As plantas importadas eram de um verde intenso, e o gado que as comia tornava-se fantasticamente vermelho.
Por detrás de Caitlín, a estrada perdia-se de vista a contornar uma montanha. À frente, trepava como uma serpente. Para além da primeira lomba que se aproximava, via Trollberg, cheia de árvores e de campinas até ao seu topo. Sombrios como fantasmas, erguiam-se lá em cima os picos feacianos cobertos de neve, com o monte Lorn a dominá-los.
A música desprende-se, lesta e doce.
A donzela desliza ali diante dele,
Apaixonada na sua marcha.
Tão ágil e álacre, e engrinaldada
Com rosas e o fulgor das estrelas
Em torno da sua querida cabeça.
Contentes vamos a subir, contentes a descer.
A dança a voar, a voar como riso ...
Caitlín parou. De um bosque cerrado havia surgido um garmo. De pele cinzenta, focinho redondo, rabo curto, do tamanho de um tigre, avançava com uma graciosidade que lhe arrancou um pequeno grito de espanto. Nenhum deles precisava de ter medo. Os carnívoros de Deméter não gostavam do cheiro dos animais da Terra è nunca os atacavam. Por seu lado, os caçadores humanos procuravam manter o equilíbrio de uma natureza que lhes fornecia peles para os seus mercados, e a Associação de Defesa do Planalto tinha declarado os garmos uma espécie protegida.
Também o animal parou e fitou os olhos nela. Viu uma mulher jovem. (A idade exata de Caitlín era de 34 anos, embora, tendo nascido na Terra, se considerasse de 25 anos.) De estatura média, peito cheio, esbelta, pernas compridas, usava cabeleira frisada, de um castanho-tíronzeado, que lhe caía até aos ombros. A cara era larga de testa, saliente nos zigomas, adelgaçada para o queixo. A boca, essa, era rubicunda, de lábios carnudos. Por baixo de sobrancelhas muito pretas e arqueadas brilhavam uns olhos em esmeralda. O nariz era miúdo e levemente recurvo. O clima tinha-lhe tornado trigueira a pele, acrescentando-lhe um bom número de sardas. A sua túnica e as calças
estavam muito cocadas. Por cima delas trazia um vistoso cinto com as cores do arco-íris. Na mochila vinha a roupa para mudar, um saco de dormir, um pouco de comida fria, os poemas de Yeats e alguns artigos de viagem.
— Louvada seja a Criação! -*- murmurou ela. — És belo, meu bravo! O garmo sumiu-se cara o seu domínio. Caitlín suspirou e prosseguiu o seu caminho.
Ele despreza a gleba que outrora calcorreou.
O seu braço lança um clarão
Em torno da cintura dela.
E num rodopio através do mundo,- ela vê-o
Ligeiro como o vento,
Mais alto do que o arvoredo.
Contentes vamos a subir...
Caitlín parou de cantar. Tinha parado ali perto um homem, à beira de um grande rochedo, por detrás da sebe, à frente dela. Igualmente surpreendido, passado um instante o homem ergueu a mão e saudou-a. Caitlín dirigiu-se para ele. Era jovem também, como ela viu. Espadaúdo e loiro. Vestia fato-macaco e trazia um corno para chamar as vacas.
— Boa tarde, menina! — disse o homem, com o seu acento cantante, quando Caitlín chegou ao pé dele. Uma aproximação que era cortês. —Como está?
— Bem, obrigada. E desejo-lhe também a si uma boa tarde — respondeu ela, no afável inglês da sua região, que de há muito tinha adotado o acento dos seus conquistadores, apropriando-se dele.
— Posso perguntar-lhe para onde vai?
— Para Trollberg, para as festas do solstício de Verão. Os olhos dele abriram-se muito:
— Ah, era o que eu pensava. O seu nome é Cathleen, não é? Eu devia chamar-lhe Miz, como pessoa bem educada, mas não sei o seu último nome. Parece que ninguém o usa.
Ela percebia sem esforço a pronúncia daquele homem. Poucos saxões ou escandinavos tinham ali atingido melhor do que aquilo.
— Ah, sim! Porque estou para aqui sozinha ao pôr do Sol, quando toda a gente na região só pensa em se divertir e beber. É uma bela terra a sua, povo agradável, mas há muito mais ainda que ver no planeta. Quem é você, agora?
— Elias Daukantas. Da Fazenda Vilnyus.
O homem apontou o polegar para trás. Por cima de uma fila de alamos subia aquilo que devia ser o fumo de uma chaminé. Timidamente, ele continuou:
— Ouvi falar muito de si, e desejava que Trollberg fosse aqui nas redondezas. Ou, pelo menos, que eu tivesse a felicidade de a ver de passagem. Hum! ... Anda sempre a pé?
Ela sacudiu a cabeça:
— Para que haveria eu de andar de carro, sem nunca chegar a conhecer aquilo por onde passo?
— Mas onde dorme à* noite? Nunca ouvi que visitasse as nossas raras estalagens, embora alguns senhores da terra digam que lhe pagariam bem por uma noite de festa.
Ela sorriu, a mostrar que não tomava aquilo por uma ofensa, e respondeu:
— Os bardos não cantam por dinheiro, agricultor Daukantas, e eu orgulho-me de ser um dos bardos. Pelo menos, como um Brian Merriman. Podemos receber pequenas lembranças, mas quando cantamos é por amor ou pela hospitalidade. Eu vou aonde me acolhem bem. De contrário, estendo o meu saco no lódix.
À sua maneira desajeitada, exclamou ele:
— Mas de que vive então?
Saída a pergunta, sentiu as faces a arder com a tolice.
— Sente-se embaraçado, não? — observou ela, prazenteira, batendo-lhe ao de leve na mão com que ele se apoiava à sebe. — Vejamos, toda a gente me pergunta isso.
Ela mudou deliberadamente para a língua eopolitana corrente:
— Tenho uma preparação médica, embora não seja formada em Medicina . No Inverno, trabalho na cidade e nas regiões próximas, a partir do Hospital de Santo Henoch. A falta de médicos permite-me fixar à vontade as condições que pretendo. Claro, se eu fosse uma pessoa decente, trabalhava a tempo inteiro. Mas a duração da minha vida não chegaria para explorar Deméter...
Pôs-se muito direita. E acrescentou:
— E quando tenho de ver gente a sofrer... Deteve-se, descontraiu-se e riu.
— Mas tenha piedade! Estive a falar a meu respeito, e já basta. Podemos agora falar de si?
— Não há nada para contar, minha senhora. Isto aqui é de meu pai, e sou o terceiro filho.
Caitlín sondou-lhe a fisionomia.
— Solteiro, então?
Ele fez que sim com a cabeça e confirmou:
— Solteiro. Sabe os nossos costumes no Planalto. Quando me casar, podemos ficar na casa grande, em sociedade, ou podemos pedir auxílio para desmatar terreno e levantar uma casa para nós. Quanto a mim, é isto que vou escolher. Repartir do zero.
— E não tem rapariga nenhuma a quem possa contar os seus desejos?
— Não, ninguém. Um dia será ... Mas também já é falar muito a meu respeito, Cathleen — disse ele, de súbito. — Quer passar a noite conosco ? Asseguro-lhe que todos ali ficavam radiantes.
Caitlín voltou os olhos para ocidente. Embora as nuvens se estivessem a alongar e as montanhas a tomar uma cor púrpura, Febo tinha ainda diante de si uma hora ou mais antes de mergulhar no horizonte.
— Muito, muito obrigada, a si e à sua família — respondeu ela. — Mas tenho de estar em Trollberg dentro de três dias, e o meu plano era continuar a caminhar depois do pôr do Sol, pois não tarda a levantar-se Perséfone, toda brilhante, radiosa e cheia de luz, como a Lua sobre a Terra.
Erion, com metade daquele tamanho aparente, já se tinha levantado, desenhando uma curva de marfim sobre anil.
— Eu levo-a amanhã de carro até onde quiser — ofereceu ele.
Na expressão de Caitlín transparecia relutância. Ele tornava-se mais insinuante:
— Sim, a senhora quer estar mais próximo das coisas simples. Pois bem, aqui tem uma família como a senhora não conhece outra. A nossa casa, as nossas maneiras, tudo isto lhe deve interessar. São fora do usual, juro-lhe. Não somos suecos, nem britânicos, nem ... Por favor! Seria maravilhoso para nós. Nunca mais,esqueceríamos.
— B-bem ... —e Caitlín descontraiu-se mais, sorriu, aproximou-se dele, e acabou por ceder. — É muito amável da sua parte, Elias Daukantas, e vou ter com toda a certeza uma bela noite, ficando aqui. De modo que se você tivera certeza de que seu pai não levanta objeções...
Ouviu-se um zumbido. Voltando a cabeça, viram aproximar-se um pequeno carro. A sua almofada de ar lançava poeira para a direita e para a esquerda, como espuma à proa de um barco a grande velocidade. O carro chegou ao pé deles e fez uma travagem seca. Viram descer os tripés. O cimo da campânula dilatou-se. Saiu um homem alto.
— Caitlín! — gritou ele. Caitlín pousou o sonador.
— Dan! Oh, Dan! — e lançou-se para ele.
Estreitaram-se nos braços. Depois os lábios de Dan separaram-se dos lábios dela e falou-lhe ao ouvido:
— Escuta, macushla — segredou ele. — Estou de fugida. Perseguido. O meu nome é Dan Smith. Entendido?
— Entendido! — e Caitlín retomou o fôlego. Ele enlaçou-lhe a cintura fina, flexível, sorveu-lhe o odor soalheiro do cabelo e a fragrância quente da pele.
— E que procuras tu, meu amor?
— Sair daqui para fora, para qualquer abrigo seguro. Depois falamos. Brodersen fez um esforço para se mostrar discreto, mas o seu desejo era
sentir-lhe o corpo contra o seu.
O mesmo desejo crescia nela, mais forte ainda do que em Brodersen. Soltou-se, porém, dos seus braços, afastou-se e disse com voz vacilante ao agricultor, que assistia àquilo perplexo:
— Elias, meu amigo, foi uma grande surpresa que tive. Este é o meu noivo, Daniel Smith. Não esperávamos encontrar-nos senão no festival. Vinha pela estrada fora. Mas, uma vez que os deuses são tão amáveis... Você perdoa-me, não perdoa? Hei-de voltar aqui, se os Fados me deixarem, e então cantarei para vocês.
Os dois homens apertaram a mão e trocaram palavras convencionais. Caitlín apanhou o sonador e puxou pela manga de Brodersen. Meteram-se os dois no carro e este pôs-se em movimento. Daukantas ficou por longo tempo a olhar para o lado onde eles tinham desaparecido. Em seguida levantou o corno, levou-o à boca e chamou pelo gado.
Uma lua e uma meia-lua a brilhar, com Febo desaparecido ainda há pouco, tornavam o céu violeta, mais do que escuro. Nele cintilavam raras estrelas. Das constelações, só Medeia e Ariadne apareciam completas. Afrodite e Zeus, planetas irmãos, permaneciam com uma luz viva. Reluziam três pequenas nuvens. Um tom prateado inundava a paisagem por cima das árvores e prolongava-se pela campina abaixo, que se estendia num crepúsculo translúcido. Por uma abertura da floresta via-se a distância o monte Lorn. Zigueza-gueavam pirilampos como minúsculas lanternas. Dezenas de milhares de coristas trinavam a chamar pelos machos por entre a folhagem. Cantava ao longe uma estarleta. Perto da gruta corria uma nascente com um murmúrio cristalino.
Caitlín tinha guiado Brodersen para ali, para o fundo de uma pista de caça, depois de arrumarem o carro. Brodersen tinha trazido o seu próprio equipamento de campismo, incluindo um aquecedor com pilha, que deu logo ao abrigo uma temperatura agradável. Sacos de dormir, assentes sobre almofadas de molite, tornaram confortável o chão. Mas não dormiram. Passado um pouco, entregaram-se a uma conversa terna, cozinharam e jantaram. Feito isto, também não dormiram.
Sobre a alba, Caitlín levantou-se apoiando-se num cotovelo, para melhor olhar para Brodersen. A gruta abria-se para ocidente, e os raios de Perséfone estavam agora a entrar por ali dentro, de frente, tão brilhantes que na brancura daquele corpo pôde Brodersen ver como eram rosados os mamilos da sua companheira. Ele ergueu-se, para afastar de si uma grande moleza. Essa moleza pesava-lhe no corpo, enquanto Caitlín se inclinava para o beijar, num beijo que se prolongou.
— Meu amor, meu querido, vida da minha vida! — quase cantou ela. — Tivesse eu palavras para realçar as tuas maravilhas, e os Humanos lembrar--se-iam de mim quando Safo e Catulo já estivessem esquecidos para sempre. Mas não é propriamente Brígida que inspira esta magia.
— Deus meu, quanto eu te amo! — exclama ele, em voz rouca. — Há quantos anos? Três anos que passaram sobre nós?
— Um pouco mais. Eu conto os meses também, quando pela primeira vez descobri o que estás a fazer à minha alma. Até que tive a sorte de me apoderar de ti.
— E eu a pensar que era apenas um divertimento de mocinha. Depressa, porém, me demonstraste que eu estava enganado. Tu, não apenas um corpo delicioso e o diabo desenfreado na cama, mas tudo o mais que és.
— Se não fosse a situação difícil que te pôs agora no meu caminho, eu ficaria numa felicidade isotopicamente pura, Dan, meu querido Dan. E mesmo assim bendigo os teus inimigos por isto que me deram, enquanto faço projetos sobre a maneira de lhes arrancar as entranhas. Não tinha a menor idéia de que te iria voltar a ver antes do Outono.
— Se ficasses em Eópolis...
Os brilhantes anéis de cabelo oscilaram, matizando-lhe as feições, e ela abanou a cabeça.
— Não — e ficou com ar muito sério. — Já não dissemos tudo o que tínhamos a dizer sobre essa questão? Não seria decente para Lis. Nem para ti. Tu amá-la também, como deves. E eu estimo-a. Não lhe queria causar mais amargura do que tenho necessariamente de causar, e espero que a amizade que ela tem por mim não seja apenas convencional. Ela sabe sem dúvida o que existe entre nós, embora nunca mo tenha dito abertamente.
Caitlín sentou-se, com as mãos a unir os joelhos, olhando por cima dele para o ermo cor de prata.
— Também, porque eu não tenho as qualidades de Lis quanto a números e organização e não poderia comparticipar na marcha das tuas empresas — murmurou ela. — Não quero ser parasita. E um emprego estável, seguro, sempre num mesmo lugar, não tardaria a fazer de mim uma taradinha. Ave de arribação, isso sim, aí tens o que eu fui sempre, desde a hora em que nasci.
As suas feições deixavam transparecer plenitude.
— Vês? Sou louca! Como querias que nascesse uma ave? Brodersen ergueu-se para se sentar, pernas cruzadas, ao lado dela.
— Da mesma maneira que é chocada uma idéia — sugeriu ele.
— Tens razão! — respondeu Caitlín, com vivacidade. — Repara nisto; Einstein incubou longamente a sua... Tinham de lhe levar comida, tabaco, onde ele trabalhava... Até que, um belo dia, o ovo fez craque! e saiu dali um pequeno princípio da relatividade especial, ainda húmido e nu, e então o pobre homem deve ter corrido de um lado para o outro à procura de longas e complicadas equações para lhe encher o bico; por fim, aquilo lá cresceu e tornou-se no grande galo da teoria da relatividade generalizada, e a mecânica dos quanta veio a constituir um belo poleiro para ele.
— S-sim! — concordou Brodersen, passando o braço em torno de Caitlín. — Quanto a lançar um projeto, eu vejo-o assente no estaleiro, pronto a deslizar, e vens tu e quebras-lhe uma garrafa de champanhe no costado, na presença do diretor... Ele é a figura decorativa, claro...
A loucura das palavras prosseguiu. O bom humor de Caitlín era uma parte indivisível daquilo que Brodersen apreciava nela.
— Bem — observou Brodersen, por fim —, ainda não me disseste como descobriste esta gruta. Não que eu tenha perdido tempo também a perguntar. Mas, uma vez que estamos a descansar um pouco, diz-me como foi que vieste parar aqui.
— E que imaginas tu? — perguntou ela, esboçando um sorriso.
— Hum ...
— Com o mais belo caçador, o ano passado ... Sabes, meu tesouro, quase podia desejar — quase — que tivesses partido um dia mais tarde. Eu estava a tecer projetos a respeito daquele moço, quando tu chegaste. Ah, sem dúvida que ele pode esperar um pouco!
Brodersen procurou não se mostrar duro. Ela sentiu-o, abraçou-se a ele e disse:
— Desculpa. Magoei-te? Deploro-o.
— A verdade é que não posso esperar, naturalmente, que faças vida de celibatária durante meses e meses — decidiu-se ele a responder. — Tens demasiada vida em ti.
— É a ti que eu amo, Daniel. Tive, de fato, os meus amores no passado, e eles inflamaram-me também, mas nenhum como o nosso. O vigor do teu corpo, o teu conhecimento perfeito, a maleabilidade das tuas mãos queridas! Sim, és inteiramente um homem. E ao mesmo tempo és amável e generoso e afetuoso. A ti amar-te-ei até que me cerrem os olhos. O resto... alguns mostraram- se maus, a maior parte são bons, nenhum foi monótono. Mas todos eles se queriam divertir. No máximo, uma espécie de camaradagem mais estreita.
— Sim, compreendo — disse ele. — Também eu estou longe de ser monógamo.
Caitlín procurou vencer a barreira que se levantava no seu companheiro.
— Eu disse-te, meu amor, que não sou uma gatinha. Um impulso de quando em quando, sim, mas acima de tudo devo fazer um bom juízo do meu par e, depois da minha avaliação, não causo prejuízo a ninguém por dar um beijo. Não é muito grande o número de amantes que tive. Um êxito talvez, uma vez que fiz dezasseis anos na Terra.
— Quanto a mim, nem sempre me dei a grande escolha — concordou Brodersen.
Puxou-a para si e conservou-a nos braços por um momento.
— Desculpa-me — disse ele, a seguir, agitado. — Eu não queria reagir desta maneira a uma simples picadela tua. Mas...
— Mas? — interrogou ela, segundos depois.
— Creio que o que me despertou foi a tua observação. Que eu podia ter saído de casa hoje em vez de ontem. De repente, lembrei-me de que saí realmente de casa, e porquê.
— E deixaste-te cair no ciúme porque a idéia em si te contrariou muito. Ah, meu querido!
Caitlín ajoelhou-se diante dele, acariciou-lhe o rosto, fitou nele os olhos onde lhe nasciam duas lágrimas.
— Pode ser que sim — disse Brodersen. — Não estou habituado a sondar a minha psique.
Fez um movimento com os lábios para cima e continuou:
— Enquanto o diabo da coisa andar, sem emperrar muito, limito-me a mudar-lhe o óleo de vez em quando. Muito bem, e se puséssemos ponto final neste assunto, deixando-o cair como chocho, sem interesse?
Ela permaneceu grave.
— Não, Dan. Tu estás em perigo e em perigo está tudo quanto tens no coração. Lis e as crianças em primeiro lugar. Como mereceria eu ser tua amante se te sentisses na obrigação de me pôr ao abrigo das tuas preocupações? Conta-me o que se passa.
— Já to contei no caminho.
— Não, tu delineaste um mero esqueleto. Insufla nele agora um pouco de alma, para que possa ter vida.
— Olha, no fundo, nem sei bem o que dizer, Pegeen. Pegeen era o nome que usavam entre os dois.
— Deixa-me ajudar-te então.
Caitlín pôs-se de novo ao lado dele. Tocavam-se os dois, braço com braço, flanco com flanco, enquanto olhavam para fora, para os pirilampos, para as árvores, para as estrelas a piscarem no céu. A noite estava silenciosa, cada vez mais silenciosa à medida que o tempo avançava. Só se ouvia a água do regato.
— Porque estás tu em rebelião? — perguntou Caitlín. —Claro, também eu estou ansiosa por explorar sóis longínquos. Mas tens a Chinook, que mandaste remodelar e hoje com uma tripulação para esse fim.
— Realmente, depois de a nave estrangeira haver atravessado a passagem de Febo. Esqueceste isto porventura? Só havia ali uma nave de vigilância, para observar o caminho preciso que ela seguia — o que, em verdade, só um par de especialistas fez. Mas o diabo foi que eles só forneceram informações ao seu alto-comando, e o Governo da União declarou logo que era assunto do mais estrito segredo. O próprio Don Pedro — o Sehor, o chefe do clã dos Ruedas e do consórcio — nunca conseguiu o mínimo elemento que o esclarecesse. Se o resto da tripulação não tivesse dado à língua, talvez nem tu nem eu soubéssemos ainda que tinha chegado uma nave vinda do mundo exterior.
Depois Brodersen continuou com acrimônia no seu tom de voz:
— Ah, sim! Eu podia compreender o raciocínio. Mas, vejamos, podia eu concordar? Acreditarias tu? Não tínhamos qualquer idéia de que espécie de seres estavam para além da passagem. Não podíamos deixar qualquer grupo ao acaso irromper por aí, para levar a cabo a devastação, fosse de que espécie fosse. Isso tinha de me incluir a mim e à minha companhia. Quando equipei a Chinook fi-lo na pura esperança de que a expedição oficial voltasse trazendo boas notícias, de modo que o Governo deixasse partir livremente os outros grupos, de particulares. Ou então, se a expedição não voltasse, que o Conselho da União me deixasse num dos anos mais próximos empreender uma nova tentativa. Por isso mantive a nave em ordem de marcha, de modo que eu pudesse descolar com suficiente rapidez antes de qualquer político ou de qualquer manga-de-alpaca me cancelar a autorização. E — com mil demônios! — a Emissário voltou! E eles estão a esconder o fato! Querem-nos impedir de ir...
Mudou de tom:
— Diabo com isto! Tu ouviste-me a lengalenga, e eu a repeti-la, sobre aquilo que toda a gente sabe. Da última vez que nos encontramos, ouviste-me falar das minhas suspeitas. Hoje ouviste-me discorrer sobre o que se passou depois disso. Porque queres tu que eu repita todas estas coisas?
Caitlín encostou a cabeça ao ombro dele.
— Porque tu precisas disso, meu amor, meu querido — respondeu ela. E um momento depois prosseguiu: — Mas, diz-me agora: que necessidade tinhas tu de uma arremetida destas, assim tão furibundo? Tu dominas-te muito bem. Porque não pudeste ser paciente e astuto, até teres pelo menos a verdade entre os teus dedos e para que um nó corredio fizesse então a justiça do carrasco?
Mais do que as palavras, foi o tom que acalmou Brodersen.
— Bem — disse ele —, já me tinha comprometido, até certo ponto. Depois confiei demasiado em Aurélia Hancock, e vê o que aconteceu.
— Podias esperar adiar isso. Quantos anos, ou milhões de anos, passaram desde que os Outros estão a espalhar-se pela galáxia, e nós postados, cegos, no nosso pequeno globo? Que mal haveria em aguardar alguns anos mais?
— Mas está em causa a tripulação da Emissário — rosnou ele. — Sabes que o imediato, se estiver vivo, é ainda da minha família? E outro tripulante há ali por quem eu tenho muita amizade. Para não mencionar os restantes. Também eles têm os seus direitos.
— Ah, sim! No entanto, por outro lado, naturalmente que tomaste em conta o bem-estar de Lis, de Bárbara e Mike, para não falar de centenas de pessoas que têm o seu ganha-pão na Chehalis.
Caitlín pegou-lhe na mão.
— Dan, meu querido, há qualquer coisa mais por detrás de tudo isto. Qualquer coisa mais que te fez agir. Que será? Sim, muitas vezes me disseste que seria maravilhoso que os humanos tivessem a liberdade de andar pelas estrelas. Mais maravilhoso ainda do que o fogo ou a escrita ou o domínio da doença. E discordei eu de ti? Mas porquê agora esta pressa, essa decisão a todo o custo? Nós haveremos de morrer, meu bem, haveremos de morrer velhos e renitentes, se assim o entendo, antes de chegarmos a conhecer tudo quanto há para conhecer aqui mesmo, em Deméter.
Brodersen cerrou os punhos, enquanto o seu espírito procurava um pouco de clareza naquilo tudo.
— Pegeen, vi muito bem na Terra o que as grandes convicções, as convicções apaixonadas, fazem do povo, especialmente quando são os governos a usar delas. Comecei então a ler a História e vi os horrores que daí tinham advindo no passado. Isso me fez jurar que ficaria objetivo. Pelo menos, calculei que podia'abster-me de andar a catequizar aqueles a quem encontrasse no meu caminho. Excepto ... Creio que quando vamos diretamente ao fundo das coisas já não posso guardar numa prateleira as minhas certezas mais fortes e ficar à espera que surja um momento mais conveniente do que outro.
Em resumo, uma parte dele perguntava a si mesma se Caitlín dava por aquela metáfora intrincada. Mas ela beijou-o e pediu-lhe:
— Diz-me quais são elas, as tuas certezas. Como eu desejaria que o tivesses já feito.
Brodersen apercebeu-se de como era tensa a voz de Caitlín, mas não podia apaziguá-la.
— É disto que estou receoso: se a raça humana não partirem breve para as estrelas, vai morrer. A União está a debater-se em sérias dificuldades. Pensei, quando saí do Comando de Paz — era eu jovem ainda —, que conseguiríamos nós próprios fazer o nosso caminho por meio do trabalho. A Terra parecia ordeira e sã. Pois estava enganado. Acotovelavam-se no planeta muitos animais de duas pernas. Estão em ebulição cada vez mais idiotices. Religiões como o transdeísmo. Heresias como o Novo Islão. Fés políticas como o asianismo. Nações onde turbas ou ministros uivam por secessão se não
puderem atingir aquilo que querem, quando querem, sem mesmo se darem ao esforço de saber se é praticavel. E o pior ainda é que uma boa quantidade dessas animosidades contra a União são justificadas. Cada vez mais o Governo mundial está a procurar tudo dominar, tudo dirigir, a partir de um único centro de decisão. Como se um maricultor dos oceanos, um cavaleiro do Himalaia, um mercador de Nairobi e um astronauta a trabalhar ao largo de uma base iliádica não conhecessem melhor os seus próprios problemas e a maneira de resolvê-los. Com milhentos demônios! Sabes porventura que se está a falar muito a sério no Conselho em ressuscitar a política fiscal keynesiana? Espero que te tenham poupado o trabalho de saber em que consiste essa política.
“A questão é esta: sempre que visito a Terra, encontro-a em estado ainda mais lastimável. Uma série de sociólogos defende que a revelação a respeito dos Outros, uma raça de seres autenticamente superiores, teve considerável influência nos acontecimentos que levaram às Perturbações. Não sei, talvez ... Mas, se assim foi, a Convenção nada nos trouxe de bom a não ser uma pausa para respirar. Ainda não chegamos a harmonizar os nossos pontos de vista sobre a existência dos Outros. De resto, nunca chegaremos a isso a não ser que consigamos dar um passo em frente. Não, estou certo de que, pela maneira como as coisas estão a andar, a Terra irá acabar por explodir muito em breve. O melhor que poderíamos esperar de tudo isto seria o aparecimento de uma espécie de César. E os Césares não tiveram lá grande duração. O pior que pode acontecer... E preferível não pensarmos nele, Caitlín.
“E não julgues que nos podemos livrar do desastre, aqui. A minha experiência pessoal, nestas últimas semanas, diz-me o contrário. Deméter pode encontrar-se a duzentos e vinte anos-luz da Terra. É o mais recente cálculo dos astrônomos, que conheço. Mas isso não passa de um salto através da passagem, para uma nave armada com mísseis de fusão.
Brodersen acrescentou, a concluir:
— Sim, talvez eu esteja a ser demasiado apocalíptico. Disse-te que procuro manter o meu raciocínio frio, sem fanatismo. Talvez eles se desvencilhem de qualquer maneira. Mas tenho a certeza, pelo menos, de que a Terra não vai adquirir novas idéias a não ser que elas vão das estrelas. E, entretanto, as velhas idéias estão a matar as pessoas. Tal como mataram a minha primeira mulher.
Deteve-se, exausto.
— Dan, tens o coração a sangrar — murmurou Caitlín, quase com as lágrimas nos olhos, e estreitou-o bem contra si.
— Nunca realmente me disseste o que se tinha passado com Antónia — exclamou ela, por fim. — Tu amava-la, casaste com ela, e teve uma morte deplorável. Queres contar-me toda a história, esta noite?
Brodersen olhou fixamente para diante de si.
— E para quê atormentar-te?
— Para que eu possa compreender, meu querido. Compreender-te a ti e ao que se passa contigo. Claro que me apercebi de que esse é o golpe mais
profundo da tua vida, e ele explica porque não podes ficar quieto quanto à Emissário.
— Talvez — resmungou Brodersen. — Vê bem: foi um assassínio político, e casos destes não teriam existido se não estivéssemos para aqui agarrados a estes dois miseráveis sistemas planetários.
— Conta, Dan. Conta a respeito da tua Antónia. Eu poderia fazer uma canção à sua memória, se isso te agradasse.
— Agradava, agradava sim.
— Então primeiro tenho de saber. Brodersen não se sentia muito senhor de si, atormentado pela dor. Hesitou e resmungou:
— Pois seja! Para começar, vou dizer-te como nos conhecemos. Depois de eu sair do Comando de Paz, quis ir para engenharia espacial e tive a felicidade de ser aceite na academia, na Confederação dos Andes. Quando cheguei ao fim do curso, fui trabalhar para a Aventureros Planetários — a grande companhia, tu sabes, que é controlada pelo clã dos Ruedas. Fiz bom trabalho, fui convidado para algumas recepções que eles deram, e aí encontrei a Toni. Também ela disse que estaria perdida se nos puséssemos simplesmente a sugar a chupeta da timocracia. Toni estava em astrografia, e era uma autoridade na matéria. Conseguimos lugares para ambos em Nueva Cíbola. Trata-se de um satélite iliádico, como te deves lembrar, mas há ali uma agência da Aventureiros e também um Observatório Arp.
“Seis anos da Terra ... Viajei um pedaço, como não podia deixar de ser, e fui mesmo até Júpiter. Mas tu compreendes, Pegeen; embora trabalhassem conosco algumas mulheres, fui realmente monógamo durante esse tempo todo. Não que Toni me censurasse. Mas ela existia, e era tudo.
Calou-se, enquanto Caitlín o animava.
— Por fim — retomou ele —, por fim decidimos fundar família. Toni gostava de crianças. E de animais e ... de tudo quanto vivia. Quis ter o filho em casa, na mansão Rueda, por causa dos avós. Eles já não sentiam muitas forças para saírem da Terra, más seria maravilhoso verem chegar a nova geração.
“E porque não? Eu tinha trabalho a fazer na Lua, trabalho esse que me iria levar umas semanas. Toni podia, por sua vez, regressar ao clã imediatamente, e isso lhes daria imenso prazer. São gente muito respeitada ali. Eu esperava acabar o trabalho antes de a criança nascer, pedir uma licença e ir para junto de Toni.
“Aconteceu porém que, logo depois de ela chegar, rebentou uma bomba na residência. Bomba posta por terroristas. Deixaram uma declaração anônima a dizer que queriam protestar assim contra os Ruedas, por estes gozarem de benefícios resultantes do progresso no espaço, em detrimento das massas. Foi um incidente numa vaga de violência revolucionária que se desencadeou por toda a América do Sul. Isso abrandou, temporariamente, mas de novo se está agora a levantar. Os Ruedas são mais uma vez o objetivo. Claro, são ricos porque os seus antepassados tiveram a visão de instalar uma empresa espacial privada no Peru. Mas apoderarem-se da riqueza? Essa agora! Supõe tu que aquele dinheiro era repartido por igual pelos “oprimidos”. Quanto caberia a cada pessoa? E donde viria depois o capital para o investimento seguinte? Pegeen, Pegeen, quando é que os tipos que pretendem salvar o mundo aprenderão umas noções de economia?
“De qualquer maneira ... aquela bomba não fez lá muito. Destruiu uma ala da casa e matou três criadas que ali haviam trabalhado quase toda a vida. E — ai de mim! — morreu Toni e o nosso filho. Toni não morreu logo. Levaram-na à pressa para o hospital. Ela pediu que a deixassem ver a Lua no céu. Foi a última coisa que pediu. Mas a Lua não estava em fase propícia. E eu andava longe, no Extremo, num carro lunar, com a chama solar a perturbar as comunicações...
“Bem, esta é a história. Andei à deriva, amargurado, durante um ano, mas os Ruedas ampararam-me, reconfortaram-me, apoiaram-me quando decidi vir para Deméter e lançar um negócio como o deles. Estás a ver agora porque me preocupo com Carlos, a bordo da Emissário?
Brodersen e Caitlín permaneceram em silêncio algum tempo. A manhã já não vinha longe.
— Toni parecia-se muito contigo — disse ele, finalmente.
Como bardo, ela sabia quando não devia falar. Apenas lhe deu o que lhe podia dar. De início Brodersen ficou passivo, depois procurou responder e Caitlín deu-lhe a entender que não era necessário. Em seguida ele percebeu lentamente com todo o seu ser que o passado acabara para sempre, mas que ela estava ali.
Mais tarde dormiram um bom pedaço.
Foi Caitlín quem primeiro acordou. Ao despertar, Brodersen viu-a sentada à entrada da gruta, contra o azul misterioso que nos planetas parecidos com a Terra se espalha logo antes do alvorecer. Caitlín tinha programado o seu sonador para guitarra sem acompanhamento, e fez soar o instrumento. Muito serenamente, cantou para Brodersen as últimas estâncias da sua canção para o festival:
Os picos levantam-se dourados, o oriente embranquece.
Uma brisa suave anuncia o fim
Da noite de Verão,
E ao longo de um vasto campo
Os pares voltam para casa
De mãos dadas.
Contentes vamos a subir, contentes a descer.
A dança a voar, a voar como riso,
Dos campos em flor ao cume das montanhas.
Regozijemo-nos na alegria que vem depois!
Eu era uma lagarta que se arrasta, uma crisálida que dormita, uma borboleta da noite que voa à procura da Lua. Tão profundas eram as transformações, que o meu corpo não se podia lembrar daquilo que havia sido antes. Era como renascida para ter asas. Nem tinha meios para me maravilhar disso. Simplesmente existia. No entanto, quão brilhante era o meu ser!
Mesmo ao despontar, bichito peludo e esfomeado, vivia no meio das riquezas: o suco e a ondeada suavidade numa folha, a luz tépida do sol ou o frio do orvalho ou as brisas a levantarem-se sobre a pele, odores sem fim, trazendo cada um deles a sua subtil mensagem. Então, por último, os dias já a minguarem falaram à sua intimidade. Ele encontrou um ramo abrigado e espalhou seda das suas entranhas para tecer para si próprio um casulo, e enroscou-se na obscuridade, e morreu de morte lenta. Durante uma estação a sua carne trabalhou na sua própria transformação, até que aquilo que rompeu o casulo e saiu dali pertencia a um mundo completamente novo. Não tardou que a minha pele exterior se desprendesse de mim. As minhas asas, agora libertas, cresceram, secas e fortes, e eu lancei-me pelos céus fora.
Minha era a noite. Nos meus olhos a noite reluzia e cintilava, repleta de formas vagas, que eu reconhecia melhor pela sua fragrância. O meu alimento era o néctar das flores, colhido enquanto eu pairava no ar num trêmulo bater de asas, embora por vezes a seiva fermentada de uma árvore me pusesse, a mim e a um milhar como eu, a dançar vertiginosamente em torno dela. Mais penoso era lutar com toda a tenacidade depois da lua cheia, mais perdido no seu brilho do que no meio de uma grande bátega de água. E quando o odor de uma fêmea pronta para a cópula flutuava à minha volta, todo eu me tornava Desejo alado.
Outro instinto cego lançava o nosso bando numa viagem por aí fora. Noite após noite, passávamos por cima de montanhas, de vales, de cursos de água, de florestas, de prados, com as luzes dos homens a tremular como estrelas perdidas atrás de nós. Dia após dia, ficávamos em alguma árvore, enfeitando-a, numerosos como éramos. Enquanto eu estava assim a enfrentar ventos estranhos, Um recolheu-me, fazendo-me retornar à Unidade, e agora Nós sabemos o que tinha sido toda a minha vida desde que estou no ovo. Muitas foram as suas maravilhas. Eu era Inseto.
Fria e vazia, a Emissário girava em órbita em torno do Sistema Solar, a 100 km por detrás da Roda de San Jerónimo. Minúscula no seu afastamento, o Sol apenas lhe dava uma luz pálida, e parecia perdida entre as estrelas. A Roda, essa, era mais impressionante, com 2 km de diâmetro, rodando majestosamente para fornecer peso terrestre às oficinas e apartamentos que se espalhavam pelo seu aro. O cubo, ao meio dos raios que eram vias de passagem, facilmente podia ter albergado a nave na sua doca. Com a sua blindagem de chapa de alumínio contra radiações, toda a estrutura brilhava como se estivesse a arder.
No entanto a Roda era um fracasso. Os homens tinham-na construído um século atrás, para servir de base de operações entre os asteróides. Disseminados como estavam aqueles restos de um mundo nado-morto, podiam ser proveitosamente manobrados por robôs, tal como acontecia às luas jovianas por vezes em torno de uma conjunção inferior. Não tardou que naves espaciais mais perfeitas-tornassem toda aquela idéia obsoleta. Ficava mais barato, e era mais rendoso, que os homens ali fossem em pessoa, lançando-se continuamente a um G ou mais, diretamente entre essas regiões e os satélites industriais da Terra. A Roda ficou então ao abandono. Falou-se de recuperar o metal para sucata, mas o resultado que daí se poderia obter não era compensador. Já então o preço dos vários metais estava a baixar. Por fim, a responsabilidade daquilo passou para o Governo da União, que restaurou tudo e declarou a Roda monumento histórico. Poucos visitantes atraiu.
Quando Ira Quick, ministro da Investigação e Desenvolvimento, autorizou a sua ocupação, ninguém prestou muita atenção ao fato. Declarou ele que a Roda estava muito bem situada para estudos sobre gases interplanetários. Isto seria mero trabalho de pormenor, sem nada de fundamental para descobrir, mas presumivelmente valia a pena tentar. Além disso, uma instituição privada estava a apoiar o projeto. Como as medições a fazer eram delicadas, a Roda e as suas vizinhanças tinham de ser fechadas aos estranhos durante umas semanas ou meses. Isso não trazia praticamente inconveniente nenhum a ninguém, nem sequer ao pessoal de guarda, que ficava com direito depois a licença com vencimentos. O assunto mereceu uma linha ou duas em várias publicações de astronáutica e cerca de trinta segundos em cerca de uma dezena de jornais falados.
Uma janela no apartamento de Joelle Ky permitia-lhe contemplar os céus, e a vista era vertical por meio de uma série de prismas. Eles não rodavam muito depressa, pois uma volta demorava cerca de três horas e o panorama era magnífico. Mas Joelle não tardou a aborrecer-se daquilo e teria passado mais tempo no seu estado holotético se tivesse o equipamento à mão. Até àquele momento, os guardas da prisão haviam recusado retirá-lo da nave ou levar Joelle para lá.
Pediam muita desculpa, explicando que não podiam fazer nada sem ordens. Os vinte homens que guardavam a tripulação da Emissário e os seus passageiros eram gente bastante decente à sua maneira, agentes do serviço secreto norte-americano para missões especiais. Acreditavam sinceramente que aquilo que estavam a fazer era justo e necessário. Haviam sido escolhidos um a um, treinados no culto da disciplina e da obediência tal como elas eram praticadas no antigo regime militar. O seu chefe, que presidia ao interrogatório dos cativos e às exortações que lhes eram feitas, era menos “simpático”. Não era bruto, no entanto, e quando disse a Joelle que o próprio Quick viria ali em pessoa para os ver, prometeu pedir-lhe autorização para lhe ir buscar a aparelhagem.
— Claro, Drª Ky — acrescentou ele —, se a senhora cooperasse um bocadinho mais conosco, se compreendesse melhor qual o seu dever, não há dúvida que teria então total liberdade.
Ela sentia-se demasiado cansada para responder.
Joelle tinha-se refugiado nos seus livros, na arte visual e na música. O diretor não tinha recusado que se transferisse para ali o enorme banco de conhecimentos da nave, com o seu material de passatempo e os seus elementos de consulta, especialmente porque o mais importante da sua tarefa consistia em descobrir o que os exploradores tinham feito e aprendido nos oito anos que haviam estado ausentes. Salvo para as refeições, Joelle afastou-se praticamente da vida social.
Os seus antigos companheiros, esses, mostravam-se mais dados. Embora o capitão Langendijk fosse friamente correto para com os agentes, Rueda Suárez calculadamente distante e Benedetti por vezes agressivo, os restantes fraternizavam em graus variáveis. Frieda von Moltke encontrou mesmo entre os agentes uma nova satisfacção sexual há muito desejada. As outras mulheres desprezavam aquilo, guardando os seus favores para os amigos, mas não fugiam a um jogo de cartas ou de andebol.
Mais isolado ainda, não propriamente da mesma maneira como se encontraria um humano entre não humanos, Fidélio procurou primeiro uma espécie de consolação junto de Joelle e depois desejou cada vez mais a sua companhia. Pedia que Joelle o esclarecesse sobre coisas que o intrigavam. Tinha estudado espanhol antes de embarcar, mas não as milhares de culturas de uma espécie estrangeira. Joelle podia ajudá-lo melhor do que ninguém, porque se tinha dedicado com afinco a aprender as duas linguagens de Fidélio, servindo-se inicialmente da holotética para ajudar Alexander Vlantis, e tomando depois a seu cargo a marcha das pesquisas quando uma onda na maré alta afogou o lingüista.
Joelle estava a acompanhar Swinburne no écran quando o betano entrou. Muita ficção e poesia deixavam-na impassível, ou mesmo perplexa. Tinha experiência muito limitada das relações emocionais correntes, demasiado larga experiência daquilo que constitui a base do universo. No entanto, as suas vísceras sentiam uma atração pelos sensualistas românticos, tal como o seu cérebro a sentia pelos espíritos matemáticos. Pensava ela que compreendia ...
... O tempo e os deuses estão em conflito; vós estais no meio deles,
Sorvendo um pouco de vida naqueles mamilos quase secos de amor.
Digo-vos: par ai, descansai.
Sim, digo-vos a todos, ficai em paz,
Até que cesse o leite amargo e seque de vez o peito estéril.
Os pensamentos de Joelle desviaram-se do texto, como já se estavam a desviar desde que começara a leitura. O impulso que movia a ambos era o mesmo. Ela tinha mostrado estas palavras a Dan Brodersen, da última vez que estiveram juntos. No seu presente isolamento, a imagem de Dan surgia com muita freqüência, cada vez mais intensamente, até poder sentir o cheiro do seu cachimbo e quase contar as pequenas rugas em torno dos seus olhos. Perguntava a si mesma se aquilo era porque ele estava vivo (oh, deve estar vivo), ao passo que Christine tinha morrido, e porque a virilidade de Dan era um tanto mais forte do que a lembrança dela ou ... Perdoa-me, Chris, era o sentimento que fluía através de Joelle enquanto se conformava com aquilo que pertencia ao passado.
— Belo, na verdade — disse ele. — Não, mais do que isso. O poeta estava a falar de qualquer coisa de real.
Fez uma pausa. Depois continuou:
— Desculpa-me, porém: não haverá nisto um pouco de verbosidade? Kipling poderia ter exprimido o mesmo numa só página, quando muito.
— E talvez por isso que eu nunca consegui apreciar Kipling — respondeu ela.
Ele alçou as sobrancelhas, curioso, para Joelle:
— Nem mesmo os poemas sobre a maquinaria? E no entanto tu, holoteta, com uma alma que deves ser um programa de computador, extasias-te diante de Swinburne?
Com um encolher de ombros, prosseguiu:
— Não há dúvida, as pessoas são um poço de paradoxos. De súbito, inexplicavelmente ferida, Joelle observou:
— Não te compreendo muito bem. Podes ter a certeza disso. Mas supunha eu que vocês, tipos normais, ressoavam uns com os outros. Queres dizer que tu não?
Por um momento Joelle imaginou que se encerrava dentro de si um antigo mito. Dir-se-ia, em verdade, que era como se o demônio daquele lugar a possuísse. Estavam a passar juntos os poucos dias que haviam podido conseguir, numa ilha do arquipélago de Tuamotu, ilha que ele conhecia há muito (sim, com outra mulher, reconheceu ele sem embaraços). Da varanda onde se encontravam, Joelle via passar um conjunto vermelho e verde de hibiscos, a descer um regato para a baía que se desenhava em torno de uma lagoa. Uma álea de palmeiras agitava-se num doce murmúrio, com as folhas embaladas por suave brisa. A água era um espelho lápis-lazúli, semeado de estrelas, salvo nos recifes, onde era creme e se desfazia em espuma. As únicas nuvens estendiam-se do lado oposto ao Sol, desdobrando-se como uma cortina que tivesse o arco-íris como pórtico. Joelle não encontrava nomes para a suavidade e para as sensações que o ar fazia nascer no seu íntimo. Durante aquela manhã ela e Brodersen tinham errado de mãos dadas pela praia fora, sem uma peça de roupa em cima do corpo (a não ser as sandálias para caminharem por cima dos belos corais que feriam os pés). Foram nadar e depois disso ficaram a preguiçar. A luz infiltrava-se-lhes através da pele até à medula, e por fim Brodersen falou do risco de queimaduras e vestiram-se. No regresso encontraram um homem trigueiro que sorriu. Pôs-se a cavaquear em mau espanhol, convidou-os para irem a sua casa,* mesmo ao lado, comer uma bucha, e depois sacou do violão e tocou algumas músicas com Brodersen. A chuva que então começou a cair parecia o céu e a Terra num duelo de amor.
Agora aquele que tinha vindo para junto dela de Deméter dava a entender que também estava confinado para sempre entre paredes. Um horror! A dor subia.
— Oh, bem, não sei! Nunca me preocupei em falar disso. Deteve-se. Depois prosseguiu:
— Então, que se passa? De repente pareces couraçada. Joelle sacudiu a cabeça, olhos bem fechados:
— Não é nada — conseguiu a sua língua formar.
Brodersen avançou, pegou-lhe com os dois braços, com as mãos a tremerem um pouco, e rosnou:
— Com que então não é nada! Qualquer coisa que te possa perturbar, Joelle...
— Não sei, não sei — respondeu ela antes de se poder deter. Dominou-se depois. — Eu ... Também eu tenho os meus ... momentos irracionais.
Observando a estupefacção de Brodersen, perguntou:
— Não te apercebeste disso?
Brodersen sentiu um nó na garganta, o que a fez espantar. Sem dúvida que tinha bastante experiência de mulheres e dos seus caprichos. Passado um momento, disse vagarosamente:
— Bem, deve agradar-te a minha companhia, independentemente da cama, é claro. O que não faz muito sentido...
Joelle viu que, por baixo da familiaridade que Brodersen tinha adquirido com ela no decorrer dos anos, ele se sentia ainda fascinado pelo seu intelecto.
— Mas se tens também um verdadeiro fraco...
Brodersen deixou sumirem-se as palavras à medida que Joelle se lançava contra ele.
— Aperta-me bem, Dan — suplicou ela, e, como não queria lembrar-se da desprezível psique que estava por baixo da sua mente bem consciente ordenou: — Vamos para dentro. Vamos apaziguar a parte animal.
Mas desta vez Joelle já não conseguiu que o seu corpo funcionasse em pleno. Brodersen era amável, forte como sempre, mas havia qualquer coisa de vazio em tudo aquilo, e depois mais ainda ao assegurar-lhe que estava apenas mal disposta e que tudo voltaria ao normal em breve. O que era sem dúvida verdade.
Todavia ... Nenhum de nós escapa ao fato de que é com freqüência difícil, muitas vezes impossível — pensava Joelle na Roda. Pior para os betanos, é claro. Como será isto de termos de depositar as nossas esperanças de amor numa raça estranha e apenas meio civilizada? Essa é uma das razões, fora a holotese que compartilhamos, porque me sinto tão próximo de Fidélio?
Tocaram à porta.
— Entre! — disse ela, e ficou muito contente por ver que era ele. Não apenas tinha estado a pensar nele. No meio daquele frio quarto funcional que a tinta de tom pastel nada fazia para alegrar, ali estava ele como sólida afirmação de que a realidade não era só aquilo.
— Buenos dias! — saudou ele na voz áspera, gutural, da sua raça quando em solo firme. Tonalidades sibilantes tornavam as palavras difíceis de seguir.
— Bienvertido! — replicou Joelle, e sugeriu que ele falasse a sua própria língua, aquela que devia usar no ar. Quanto a ela, ficaria com o espanhol. Sem equipamento voder computorizado, não podia Joelle exprimir-se em vocábulos betanos, e não tinha vontade de o levar para o laboratório para ali falarem os dois sob o olhar do guarda que estava na antecâmara e que se podia aproximar. Se a conversa precisasse de frases dele, podia Joelle escrevê-las. O fato é que, faltando-lhe o equipamento holotético, Joelle tinha apenas um limitado conhecimento. As línguas apresentavam para ela mais subtilezas estranhas do que um cérebro podia dominar, sem os seus aparelhos auxiliares. (A “língua” submarina era pior, tanto do ponto de vista de pronúncia como de compreensão.) Contudo, se as coisas não se complicassem hoje, podiam compreender-se um ao outro.
— Está você comprometida, fêmea de intelecto? — perguntou ele polidamente. — Eu não queria interromper um sonho lógico.
Era a sua tradução de um certo conceito, tradução não muito satisfatória mas sem dúvida melhor do que “meditação” ou “pensamento filosófico” ou “devaneio refletido”.
— Não, não tenho que fazer, e até gostava de conversar — assegurou-lhe ela. —Como está você? Não o vi desde ... Nem sei! O tempo não tem sentido num lugar diabólico como este.
— Eu estava no banho — disse ele.
Logo de início, os biólogos da Emissário haviam prevenido que Fidélio não tardaria a adoecer e a morrer se não pudesse passar várias horas por semana em água como a do seu próprio mar de origem. A composição não era a mesma dos oceanos da Terra, mas não era também difícil de reproduzir. Qualquer laboratório químico podia fornecer os ingredientes necessários. Eles tinham sido trazidos da nave para a Roda e construíra-se ali uma pequena piscina. O comércio de sal entre as comunidades do litoral e do interior.tinha moldado em grande parte a história de Beta.
— Excelente! — exclamou Joelle, e pensou em quão inadequado era aquilo. Que tragédia não seria perdê-lo! Para ambas as espécies, e talvez para muitas mais. Além disso, Fidélio era brilhante e amável. Valia um milhão de Ira Quicks.
Mas vamos perdê-lo se o seu alimento se acabar — lembrou-se ela. Fidélio não podia consumir alimento nenhum extraído dos tecidos nascidos da Terra. A maior parte eram venenosos para ele. A expedição, ao regressar, tinha-lhe trazido mantimentos para um ano, principalmente sob a forma de gêneros secos e congelados. Tinham partido do princípio de que, muito antes de um ano, a União poria a funcionar carreiras regulares com Beta.
Joelle não se deixava dominar pela raiva, mas de repente sentiu-a subir dentro de si. Procurando acalmar-se, olhou para Fidélio, ali sentado sobre os pés e a cauda, diante da sua cadeira. Joelle descobria-lhe sempre qualquer coisa de novo, uma nova particularidade de forma ou de movimento ou então uma subtileza menos facilmente identificável e de que se não tinha apercebido ainda.
Não há dúvida: nós os dois somos produtos de quatro bilhões de anos de evolução separada, a partir dos tecidos primitivos que foram parar aos nossos planetas tão diferentes um do outro. São necessários nomes, mas eles apenas conduzem a engano. Dão-nos a impressão de que estamos de posse de j um conhecimento que realmente não temos.
O caráter arbitrário dos nomes tornou-os duplamente decepcionantes. Os exploradores chamaram “Centrum” ao sol a que a passagem através das. estrelas os levou. Isto por falta de termo mais adequado. E aos seus planetas chamaram Alfa, Beta, Gama ... por ordem, de dentro para fora. “Fidélio” foi o nome dado por Torsten Sverdrup, que adorava Beethoven, e ficou. Entre eles, o ser era chamado qualquer coisa como “K'thrru'u” em terra, “Gaoung Ro Mm” na água. Mas nenhum alfabeto da Terra poderia reproduzir com rigor qualquer destas designações.
Fidélio era um exemplo típico da sua espécie, tal como Joelle o era da sua, que se estendia dos Chineses aos Papuas, dos Celtas aos Pigmeus, dos Negros aos Esquimós, e assim por diante. Concretamente, vinha ele da orla marítima a leste do principal continente no hemisfério norte, a uma latitude média, e pertencia àquela sociedade que havia tomado a cabeça de uma revolução industrial um milênio atrás. As civilizações pareciam não se formarem e declinarem em Beta da mesma maneira do que na Terra. No entanto, hoje todo aquele mundo, e as suas colônias em torno de outras estrelas, se debatiam numa crise bem especial...
Fidélio era um bípede de seis membros. O seu corpo era do tamanho de um homem alto, mas sem forte corpulência, terminando numa espécie de barbatanas horizontais que lhe aumentavam ainda de metade o comprimento. Por causa da sua posição inclinada para a frente, ficava com uma altura de cerca de metro e meio, e a gordura escondia-lhe os formidáveis músculos. As pernas, que a Joelle faziam lembrar o Tyrannosaurus Rex, terminavam em pés palmípedes, os braços superiores em longas garras com membranas a uni-los, os braços inferiores, mais pequenos, em mãos com três dedos mais um polegar, que estavam longe de se parecer com os humanos. A anatomia do esqueleto tornava os membros e os dedos, mais o torso, a cauda e o esbelto nariz, tão flexíveis que quase pareciam sem ossos. A cabeça era estreita, formando bojo para trás para conter o cérebro. Um focinho pequeno, pontiagudo, rodeado de duras sedas, apresentava uma única venta fechável e uma boca com uma variedade onívora de dentes que incluíam um par de caninos de alarme. As duas orelhas eram pequenas. Os dois olhos, grandes e de um azul uniforme. As suas propriedades ópticas podiam ser modificadas por membranas nictantes, para verem debaixo de água. Uma pele lustrosa, castanho-escura, cobria por inteiro o seu corpo, e tornava-se mais ligeira no ventre. Desprendia-se dele um cheiro intenso, como a iodo. Como roupa, usava uma espécie de camisa e calças com alças e bolsos. Como os seus órgãos de reprodução eram retráteis e de qualquer modo pouco semelhantes aos do homem, não era evidentemente macho... salvo no seu mundo, onde, para principiar, tinha dois terços do tamanho da fêmea média...
A sua visão ao longo do ar não era igual, à dos humanos, embora visse muito melhor quando submerso ou no escuro, e razoavelmente bem a curta distância. O seu ouvido era superior. Além disso, possuía uma quimiossensibilidade que Joelle havia decidido não designar por “gosto” nem por “olfato”. Por sua parte, Fidélio ficava espantado a todo o momento com as distinções que Joelle podia fazer com as pontas dos dedos.
Aqui está, pensou Joelle, o embaixador de boa vontade, confiante, do seu povo, atirado para a cadeia. E eu nem mesmo sei como encara ele tudo isto. Tentou dizer-mo, mas não lhe é possível exprimir-se com clareza a não ser quando eu estou a funcionar como holoteta, e talvez nem mesmo então o consiga muito bem.
— Em que o posso ajudar, Fidélio? — perguntou ela em voz macia.
— Estou a tentar reunir as minhas correntes de sonho [saber com todo o seu ser?] sobre a maneira como a vossa espécie chegou pela primeira vez aos engenhos de transporte e ao conhecimento a respeito dos Outros.
— Mas você já sabe! — exclamou ela, surpreendida. — Encontramos simplesmente a máquina no Sistema Solar, da mesma maneira que os vossos exploradores interplanetários encontraram antes aquela que está em órbita em Centrum.
Antes? — perguntou ela a si própria. Que significa isso? A simultaneidade não é conceito que se aplique através das distâncias interestelares. Por outro lado, acontece que o “T” na “máquina T” não designa apenas “Tipíer” e “Transporte”, mas também “Tempo”. Os próprios Betanos estão curiosos de saber se, circulando através de um sistema diferente, não irão deparar com o seu próprio futuro ou com o seu passado. Nesse campo, não ignoramos qual é a nossa situação temporal relativamente à nossa colônia em De meter. Tudo quanto os astrônomos podem determinar é que as três passagens dão para a mesma era geral desta galáxia.
E, por aquilo que valha, e que pode não ser nada, temos o fato de os Betanos terem atrás de si alguns séculos mais de científico-civilizados do que nós na Terra... Se é que nós já somos civilizados.
— Essa é a verdade lançada para um recife e deixada secar ao sol — disse Fidélio. — Eu ando à procura do coral vivo. [Claro, Beta não tem corais, mas tinha um celenterado que se comportava de modo semelhante.] Disse-me você, Joelle [pronúncia indescritível], que não havia previsto esta detenção. Começo a perguntar se aquilo que aconteceu não é o resultado de um desvio [Malvadez? Desencaminhamento? Desajustamento? A palavra continha a possibilidade de Quick e os seus apaniguados terem razão.] O impacte desta original revelação foi tremendo em Beta. Deve ter sido comparável na Terra. No entanto, a onda que ela levantou produziu um aspeto peculiar na vossa espécie, fosse qual fosse o estado em que se encontrava a humanidade contemporânea. E as repercussões não se podem ainda ter extinguido... Tenho andado a ler histórias, Joelle, mas elas estão atulhadas de referências a acontecimentos e personalidades que nada significam para mim.
— I see — respondeu ela lentamente. (Compreendo = apreendo. As línguas inglesa e espanhola não são equivalentes. A este respeito, no mar Fidélio teria dito: “Os meus dentes fecham-se sobre isso.” Em terra teria dito: “Sinto-o nas minhas vibrissas.”)
— Olhe, Fidélio — prosseguiu ela —, penso que será difícil dar-lhe uma resposta completa, pois também eu estou um pouco perdida. Mas vamos fazer uma tentativa.
Joelle afagou o queixo, a meditar:
— Sim, lembro-me agora de um documentário sobre todo este assunto. Um documentário preparado para as escolas e que contém muito material original. Vou tentar descobri-lo.
Como todos os outros apartamentos na Roda, o de Joelle dispunha de um terminal de computadores, com painel e saída de dados impressos. O documento que ela tinha em mente era um clássico, e foi procurá-lo um certo número de anos atrás, à época em que todos esperavam que se fixasse ali uma população permanente, incluindo crianças. Supôs que estivesse nó banco de dados. Acionou o teclado e pediu o que pretendia.
O documento lá estava.
(Vista da máquina, tomada de longe, com um milhar de quilômetros de extensão, semelhante a uma agulha a flutuar no espaço, dominada pela Via Láctea.)
NARRADOR
... sondas sem tripulação trouxeram indicações de qualquer coisa de curioso, em órbita à volta do Sol, com o mesmo circuito da Terra mas distanciada dela 180°, de modo a situar-se sempre no lado oposto. Um vôo rápido confirmou que aquilo era de fato estranho. Asteróide nenhum podia ter uma forma perfeitamente cilíndrica. Não havia dúvida: nenhum podia ser tão maciço, nem girar a tal velocidade ...
(Um astrofísico, famoso na época, fala sentado à secretária, mostrando uma vez ou outra um diagrama animado, para apoiar as suas palavras.)
IONESCU
... não seria possível. Essa coisa é tão densa como um colapsar, praticamente sem existir nela o buraco negro. Os seus átomos devem ter sido comprimidos a ponto de já não serem verdadeiros átomos, mas sim matéria nuclear quase contínua, aquilo a que chamamos neutrônio. Apenas o campo gravitacional de uma estrela maior do que o Sol, abatendo-se sobre si mesma depois de os seus focos de calor estarem extintos, os pode levar a tal estado. O cilindro não. Embora seja gigantesco, a sua massa é muitíssimo pequena.
Na realidade, não é suficiente para perturbar os planetas de maneira perceptível. Além disso, um corpo natural formaria um esferóide.
No entanto, a coisa existe. Forças de uma natureza sobre a qual nada conhecemos deram-lhe forma, deram-lhe a sua inimaginável energia rotacional e mantêm-na coesa. Não tenho dúvida nenhuma de que se trata do produto de uma tecnologia mais avançada em relação à Idade da Pedra...
(Cenas de excitação, discursos, massas, manifestações, sermões, vigílias de preces, por toda a parte, na Terra e nos satélites. Excerto de uma conferência de imprensa dada por Manuel Fernández-Dávila, Donald Napiere Saburo Tonari, os três homens que vão partir, o grupo internacional mais homogêneo que a situação caótica do mundo permitiu reunir. O lançamento na rampa, uma esteira de gases sobre uma austera cordilheira. Encontro no espaço com a Discover. A nave. A transferência para ela.
Cenas durante o vôo, que naquele tempo levou semanas, a maior parte em queda livre. Vistas tiradas através das aberturas: o cilindro a crescer na imagem até começar a distinguir-se o seu enorme volume e até ficarem visíveis outros corpos reluzentes que aparecem também. Homens vestidos de fatos espaciais vêm para fora, presos à extremidade de cabos, para tirarem fotografias e fazerem medições com vários instrumentos. Falam para Terra por meio de um relê que foi lançado em órbita especialmente para eles. As palavras são habitualmente secas, mas carregadas de medo.)
FERNÁNDEZ-DÁVILA
... não são satélites. Não andam à volta do cilindro. Permanecem no mesmo lugar em relação ao Sol e entre si mesmos. Sabe Deus como isto é feito, mas presumimos que se conservam assim graças a alguma da energia que mantém o corpo principal coeso numa só peça. Contamos dez. Parecem sem características bem definidas, salvo no tocante aos vários comprimentos de onda em que emitem. Estão espaçados em tomo do eixo de rotação do cilindro — eixo que é rigorosamente normal à elíptica —, a várias distâncias e orientações, sendo a mais afastada a cerca de um milhão de quilômetros, a mais próxima a cerca de mil. Quando observamos todo o sistema através do nosso telescópio principal, temos uma vista maravilhosa. Bem, qualquer coisa astronômica é ...
(Em data posterior, quando o objetivo já está a tomar forma.)
TONARI
... os corpos reluzentes são propriamente esferas, de um diâmetro estimado em 10 km. Parecem não ser materiais. Mais como bolas de energia, nexos num campo de forças. Confirmamos que não são absolutamente estáticos. A configuração muda, extremamente devagar mas continuamente, de harmonia com um plano que não conseguimos decifrar...
(Vista exterior tirada por Tonari em EVA: um instantâneo de nave, uma filmagem direta do cilindro, cujo comprimento enche agora o écran, e um par das suas luas que não são luas, e por detrás e à volta de tudo as estrelas.)
NAPIER
(entretanto a bordo)
... satisfatória curva de aproximação. Vamos andar à volta dele a uma distância de 90 500 km, para depois retirarmos para 100 000 km e nos fixarmos numa órbita circular e... Santo Deus, que será isto?
Voz (melodiosa, andrógina, falando apenas espanhol como um habitante de Lima com boa instrução)
Atenção, por favor. Atenção, por favor. Uma mensagem para vós. Uma mensagem daqueles que construíram a instalação que estais a ver. Damo-vos as boas-vindas. Mas deveis mudar de rota. O trajeto que estais a seguir é perigoso para vós. Preparai-vos para acelerar e aguardai instruções. É favor gravarem. Ireis precisar das informações que vos vamos dar. Daqui a cinco minutos serão repetidas estas palavras para esse efeito, seguidas pelos elementos necessários. São palavras de boas-vindas, de regozijo por vós terdes finalmente chegado até aqui, tão longe. Obrigados.
(Imagem do interior. Fernández-Dávila pôs a funcionar as máquinas de filmar a fim de recolher imagens destinadas aos livros de história.)
NAPIER
Que diabo será isto?
FERNÁNDEZ-DÁVILA
Provavelmente vibrações sônicas fixadas no casco. Nada difícil para eles ... Saburo! Saburo, ponha o seu equipamento de novo a funcionar.
(Não foi reproduzida de novo a saudação. Este documentário utilizou a repetição que foi prometida, pois o original foi captado apenas ao cabo de um trajeto pela rádio de duzentos e dez milhões de quilômetros, depois do que foi retransmitido por igual distância para a Terra, perdendo qualidade no decorrer de todo este percurso.)
voz
... compreender que não é fácil tornar clara toda a verdade. Agora, enquanto vos acalmais, deveis retirar-vos para aproximadamente 500 000 km e ficar aí em órbita. De contrário, é provável que não vejais de novo os vossos lares. Vamos dar-vos o programa e os vetores ...
(Várias imagens, exteriores e interiores, tomadas durante os dias que se seguiram: a construção titânica, a Via Láctea, Nuvens de Magalhães, a galáxia-irmã de Andrômeda, os homens, que de uma maneira ou outra continuam a sua rotina, agora a conversar ou a jogar, entre graves discussões sobre aquilo que aprendem sempre que lhes chega uma mensagem.
voz (excertos)
Estais a ouvir uma espécie de computador-efetor, um robô, se quiserdes. Nenhum ser vivo tinha possibilidade de permanecer aqui, à espera que vós chegásseis ...
O universo é uma cornucópia de vida ...
Os construtores existiram pelo tempo fora, de idade para idade. Desejam o bem do cosmos, mas por isso mesmo não procuram ser senhores de tudo, para não dizer deuses. Melhor será que cada raça trace o seu próximo destino, por muito trágico que ele possa vir a ser. Só assim lhe será possível crescer em fortaleza, desenvolver a sua mentalidade, o seu espírito. Também os construtores têm as suas próprias vidas para viver, os seus próprios sonhos a realizar. Assim, pouco mais ouvireis do que isto a seu respeito, e para todo o sempre. Para vós, para inúmeros outros seres por entre os sóis, eles devem continuara ser os Outros, desconhecidos ...
No entanto, eles interessam-se por vós. Eles amam-vos. Fácil de ver, eles têm-vos observado desde há muito, em profundidade. Havendo conseguido chegar até aqui, podereis utilizar livremente o que eles construíram, para as vossas viagens interestelares. Sereis guiados para um sistema onde ireis encontrar um planeta muito semelhante ao vosso próprio mundo, salvo que não nasceu ali qualquer ser sensível para o proclamar... Está em vossas mãos avançar, se assim o decidirdes ...
NARRADOR
Quando as transmissões da Discover chegaram à Terra, poucas foram na verdade as pessoas que conservaram uma certa calma. (O gabinete do astrofísico.)
IONESCU
... as especulações que se começaram a ouvir quando chegaram as observações do vôo de reconhecimento parecem agora confirmar-se. Tanto quanto podemos dizer, trata-se de uma máquina Tipler.
Chamo-lhe assim em honra do cientista que, na continuação do trabalho de Kerr e de outros, publicou em 1974 um estudo precisamente sobre esta matéria, estudo esse que desenvolveu mais tarde com imaginação e também, com rigor matemático. Como é evidente, foi forçado a assentar sobre certas proposições, para simplificar. No entanto, fez uso estrito, rigoroso, de princípios bem estabelecidos de Física para demonstrar que o transporte através do espaço-tempo era teoricamente realizável, embora necessitasse, na aparência, de condições impossíveis de reunir no universo real. (Sorrindo.) Receio que a prova seja um tanto exotérica. O que ela representa, em termos correntes, é isto: um cilindro de matéria ultradensa, girando a uma velocidade que exceda metade da velocidade da luz, criará um campo. Não um campo de forças, no sentido em que nós o entendemos, chamemos-lhe antes uma região, na qual algumas quantidades variam conforme a nossa posição. Um corpo que circule através daquele campo pode ser transportado diretamente de acontecimento para acontecimento. Em linguagem mais popular, dependendo do caminho que seguir, pode ir de qualquer ponto no espaço-tempo para qualquer outro ponto dentro do alcance da máquina.
Como eu disse, este efeito parecia exigir condições impossíveis de reunir. Por exemplo, requeria á existência de densidades da matéria com ordens de grandeza superiores às dos próprios núcleos, e tais como poderiam teoricamente existir dentro de um buraco negro mas em mais lado nenhum. Suspeito, portanto, que a densidade que medimos para aquele cilindro, por muito elevada que seja, constitua apenas uma média. Que ela aumente no interior, até ao ponto de ocorrerem os fenômenos típicos de um buraco negro. Que precisamente no centro se encontra uma verdadeira particularidade. Como conseguiram isto os Outros? Esta uma pergunta a que não podemos dar resposta precisa. Podemos, sim, especular e dizer que o estado de mais fraca energia pode, no fim de contas, em determinadas circunstâncias, ser violado, e muito provavelmente até mesmo as nossas suposições são totalmente erradas. Com um pouco mais de confiança, pensamos que a extensão finita deste objeto do mundo real limita o âmbito do seu efeito, embora obviamente esse âmbito seja interestelar e talvez interepocal.
Começamos também agora a entrever como pôde o cilindro permanecer na sua posição em relação à Terra. Essa posição não é estável. As perturbações planetárias levariam um corpo que estivesse ali a afastar-se, relativamente em pouco tempo. No entanto, é de supor que aquele engenho se encontre ali há séculos, pelo menos. O que lhe dá a possibilidade de se manter naquela posição? Analisando os elementos de que dispomos, achamos provável que haja uma contínua interação com os campos magnéticos interplanetários e galácticos, embora também isto se deva realizar através de distâncias impressionantes.
Espero viver o suficiente para nos ver adquirir um pouco mais de conhecimento sobre a criação que os Outros acrescentaram à Criação. Podemos mesmo, por fim, encontrar meios de tornar as nossas descobertas compreensíveis para os leigos... ou para nós próprios.
(Acentua-se neste ponto a expressão professoral daquele rosto.) Mas isso não importa agora. O que hoje importa, acima de tudo, isso sim, é que nos foi dada a possibilidade de iniciarmos uma nova caminhada!
NARRADOR
Antes de a Discover regressar, a Voz ofereceu-se para a conduzir através da passagem pelas estrelas e trazê-la de volta. Lembremos o que Fernández-Dávila disse mais tarde: “Como poderíamos nós ter recusado?”
(Imagens de uma nave que posteriormente traçou a rota, fotografada de uma outra nave irmã. Estão entremeadas com esboços e esquemas, assim como com fotografias tiradas durante a viagem inicial. Isto e a narração tornam claro o que se passa. O aparelho espacial desloca-se de esfera para esfera, numa ordem precisa.)
Os globos são simplesmente balizas, auxiliares de navegação. Com a sua ajuda, podeis seguir o caminho exato através do campo de transporte que vos levará ao local para vós preparado.
Cuidado! Qualquer caminho diferente vos levará a um destino completamente diferente. Pode muito bem acontecer que não exista ali nenhuma máquina. Vós acabaríeis por perecer, perdidos, naqueles anos-luz. Quando os construtores desejam estabelecer um novo ponto de apoio, devem mandar para lá todos os materiais necessários e todo o equipamento, por meio de um engenho já existente, e preparar outro no novo local, antes de poderem regressar.
Mesmo se vós emergísseis numa máquina, nunca mais encontraríeis o caminho de regresso. Vede bem: dez globos, tomados nas suas várias seqüências, definem 3 628 800 trajetos diferentes. Na realidade, as combinações são muito mais numerosas ainda, pois nem todos os trajetos passam obrigatoriamente por todas as balizas. Se não entrarmos em linha de conta apenas com as balizas, o número de caminhos a seguir tornar-se-á praticamente infinito. Vós erraríeis pelo espaço, cegos, até morrer, ou mais provavelmente até chegar a um lugar qualquer onde não encontraríeis máquina nenhuma.
Deveis ter notado que a configuração das esferas não é sempre a mesma, mas muda gradualmente. Sem dúvida haveis deduzido que isso se destina a compensar as mudanças de posição das estrelas. Não vos apoquenteis a tal respeito. Segui simplesmente a mesma ordem, bem estrita, na passagem por cada uma delas, conforme vos foi indicado. Da mesma maneira, se tomardes a ordem devida ao cabo dessa vossa viagem, isso vos trará sempre de lá para cá. Havereis de notar que é inteiramente diferente do trajeto que vos levou de cá para lá.
Cuidado, repetimos! Deveis ter cuidado, não vos desviardes de qualquer destes dois modos de proceder. Mandai sondas não tripuladas, escolhendo trajetórias ao acaso se assim quiserdes, mas nunca uma nave com gente a bordo, pois poderia dar-se o caso de jamais voltar.
(A sala de trabalho de um famoso filósofo.)
SAMUELSON
... Não creio que qualquer humano esteja preparado para compreender os Outros. Eles devem ter o que é infinitamente mais importante do que uma ciência e uma tecnologia superiores à nossa, talvez em milhões de anos. Estou convencido de que têm espíritos superiores... E, sim, suponho eu, almas superiores também, e mais nobres. Não acredito que tenham existido durante tão vastas extensões de tempo, com tais poderes como os deles, e que não hajam evoluído.
No entanto, no caso das máquinas T, arriscarei uma hipótese sobre os seus motivos. Por que razão não nos descreveu a sua Voz nenhumas vias de acesso a não ser a que vai do Sol àquela única estrela distante? Por que razão não deu [ sequer uma indicação de qual é a relação matemática entre um determinado trajeto e dois pontos escolhidos no espaço-tempo, de modo a podermos ; calcular como ir de A, onde nos encontramos, para um ponto B que gostávamos de visitar? Por que razão, vejamos, não disse mais nada a Voz desde a chegada dos primeiros humanos?
Em meu entender, isso faz parte da sua doutrina de não interferência.
Reflitamos: eles instalaram a máquina do Sistema Solar em posição oposta à Terra, e nós nem sequer sonhávamos que ela existisse, antes de aperfeiçoarmos uma técnica notável que nos permitiu andar no espaço. Mas a máquina no outro sistema gira em órbita muito mais à mão, numa rota estável, 60° à frente do planeta que nós vamos provavelmente colonizar, e nitidamente Visível de qualquer astrônomo que ali estivesse. No entanto, e ao que parece, não há astrônomo nenhum naquele planeta, nem nasceram ali criaturas verdadeiramente pensantes. Ninguém que pudesse ser levado por aquela visão a empreender com afinco esforços desmedidos ou uma luta de vida ou de morte j pelo domínio.
Disse a Voz que os Outros nos amam. Podem amar-nos. Deram-nos todo , um mundo novo. Mas devem amar todas as raças sensíveis. Suspeito que uma casta como a nossa, com a sua história de guerras, de opressão, de pilhagem, levaria consigo o desastre se irrompesse de súbito pela galáxia dentro. Suspeito também que não somos excepcionalmente maus, nem de vistas curtas. Que muitas espécies se tornariam em igual ameaça se lhes fosse dada a oportunidade.
Ao mesmo tempo, os Outros recusam-se, ao que parece, a tomarem-nos, a nós ou a quem quer que seja, sob a sua tutela. Estou seguro de que, do seu ponto de vista, têm coisas muito mais interessantes para fazer. E do ponto de vista do nosso bem-estar, podem sentir que seria um erro domesticarem-nos.
Por isso nos deixam em liberdade. Permitem que utilizemos as suas passagens por entre as estrelas, mas não nos oferecem mais do que isso. Temos de suportar a frustração, vendo a Alfa do Centauro e Sirius a brilhar sem ainda as podermos atingir, nos nossos céus, a não ser que tacteemos o nosso próprio caminho para o cosmos. Espero que eles esperem que o longo esforço de cooperação que isto exige nos amadureça um pouco ...
(Imagens de um engenho espacial a completar o seu trajeto. De súbito, desaparece. Imagens da máquina T e do Sistema Febiano. De súbito aparece o engenho espacial, a cerca de 500 000 km do cilindro.
Série de imagens da viagem inicial. Fernández-Dávila, Tonari e Napier observam, da sua estreita cabina. Murmuram. Dois deles rezam. Depois dominam-se e olham para fora com olhos experimentados. Um leigo não consegue distinguir constelações no espaço: são demasiadas as estrelas visíveis. Um astronauta, sim. Aqui, nenhuma é familiar. Ao cabo de um momento, os homens pensam que podem designar algumas, modificado como está o seu aspeto. E os objetos extragalácticos não parecem diferentes. Calculam grosseiramente que se deslocaram mais de cem e menos de quinhentos anos-luz para noroeste do Sol.)
VOZ
... O planeta que mais vos irá interessar está no céu muito próximo da nebulosa Caranguejo ...
(A imagem fixa-se num ponto cor de safira, infinitamente belo.)
NARRADOR
O mundo que a partir de então chamamos Deméter... (Fotografia de Febo. Vista da cabina da Discover e de três homens cobertos de glória.)
VOZ
A vossa nave não tem reservas para ir ali. Melhor será regressardes ao Sistema Solar imediatamente. Por certo que outras naves, equipadas para trabalhos de exploração, virão depois. Vós próprios podeis vir a bordo...
(Cenas do regresso através da passagem, cenas a seguirem-se umas às outras de maneira inteiramente diferente à seqüência anterior. Cenas de preparativos ao cabo da viagem, e de júbilo, de solenidade, no longo percurso para aterrar. Cenas de tumulto, cortejos, cerimônias, festas, predições extravagantes, e no meio de tudo isto uma ou outra palavra de mau agouro.)
NARRADOR
... estamos preparados, finalmente, para mandar os nossos primeiros colonos. Antes disso, tivemos de passar anos em investigação, a aprender as coisas mais elementares acerca de Deméter. Os Outros asseguram-nos que o nosso esforço seria compensado, mas que aquilo não seria o Éden...
(O lar de um famoso astronauta.)
FERNÁNDEZ-DÁVILA
E elevado o preço por pessoa que mandamos, e não sabemos ainda o que nos poderão trazer depois estes homens para compensar o dispêndio feito. Ouvimos por isso protestos, ouvimos pedidos para que se ponha de parte todo o projeto. Quanto a mim, continuo a pensar que o estímulo que ele imprimiu à tecnologia espacial, o aperfeiçoamento substancial que trouxe às naves e aos instrumentos, já nos compensaram pela totalidade do custo de tudo isto e já nos deram um elevado lucro. Depois, há a revolução científica, especialmente em biologia, que proveio de Deméter. Um conjunto inteiramente independente de formas de vida! Necessitamos de décadas, talvez de séculos, para as examinar melhor, com todas as implicações que daí resultam para a medicina, para a genética, para a agricultura, para a maricultura, e nem sabemos que mais. Isso exige uma fixação permanente.
Por outro lado, nos termos econômicos mais rudimentares, posso afirmar que dentro de uma geração os humanos em Deméter estarão a compensar o investimento feito pela Terra, mandando para a Terra mil vezes mais do que isso. Lembrem-se do que a América representou para a Europa. Lembrem-se do que a Lua e os satélites representam para nós, hoje.
Muito para além disto, pensem no imponderável, no imprevisível: desafio, oportunidade, desenvolvimento intelectual, liberdade... O início do nosso crescimento em relação aos Outros...
Joelle viu que tinha sido acrescentado um seguimento. Pensou que era igualmente honesto, mas a honestidade era agora de uma geração posterior.
Entrava pela história de Deméter. Apenas escassos milhares de indivíduos por ano podiam ser lançados pela passagem e mandados para o planeta. A capacidade de transporte ampliou-se à medida que a colônia ia começando a assegurar dividendos ... mas lentamente, por causa das pretensões divergentes que se levantavam sobre aquela riqueza. Os emigrantes partiam sob os auspícios das suas nações, de harmonia com um sistema de contingentes prefixados. Contudo, por meio de corrupção ou de acordos legais, muitos deles viajavam sob bandeiras diferentes das suas.
As razões que os levavam a partir eram tão variadas como as pessoas que partiam. Ambição, aventura, esperanças utópicas, eram algumas delas. Mas certos governos subsidiavam a ida de cidadãos dissidentes, e faziam pressão sobre eles para que aceitassem emigrar. Alguns tinham em mente estabelecer postos avançados que ficassem depois em suas próprias mãos; outros tinham motivos mais obscuros, como era o caso de certas organizações não oficiais e de certos indivíduos.
De início, toda a gente devia viver em Eópolis ou nas vizinhanças, e para sobreviver era essencial uma estreita cooperação entre todos. A solidariedade que existia era reforçada pelo pressentimento de que os Outros pudessem estar ali por perto a observar. Isto foi desaparecendo com o andar do tempo, e entretanto crescia a população, desenvolvia-se a economia. A par disso, aumentavam os conhecimentos. As pessoas aprendiam a viver sem dependerem da cidade. As regiões no campo tornaram-se uma verdadeira manta de retalhos de grupos étnicos, e foram-se tecendo as ligações sociais entre estes grupos.
Por fim começou a sentir-se a necessidade de um corpo legislativo demeteriano. Ficou subordinado à Terra, representada pelo governador-geral, e a sua autoridade permaneceu ainda mais limitada pelo fato de a maior parte das comunidades resolverem os seus próprios problemas sem recorrerem a ele.
Por outro lado, os tempos também haviam mudado. A ordem precária que ainda se mantinha na Terra acabou por ruir, e começaram as Perturbações. Não foram poucos os retóricos a proclamar que haviam sido os Outros os causadores daquilo tudo. Deparava-se uma situação demasiado confusa, a suscitar heresias. Coisas havia, diziam alguns, que melhor seria o homem não conhecer. Na opinião de Joelle — opinião resultante em grande parte de conversas com Dan Brodersen, que tinha uma maneira de ver muito sua —, aquilo era um disparate. Se algum milagre havia, consistia ele em que o equilíbrio se tinha mantido, sempre oscilante, até aí. E o fato da existência dos Outros deu bastante motivo para reflexão, permitindo que a insensatez não tivesse assolado o mundo inteiro. Fosse como fosse, era incontestável que, embora tivessem morrido milhões de homens e tivessem desaparecido nações inteiras, o mundo sobrevivia. A civilização sobrevivia em mais zonas do que aquelas donde tinha desaparecido. Os empreendimentos no espaço sobreviviam. Não havia dissonâncias importantes para além da Terra, nem na indústria, nem na exploração, nem ainda no povoamento de Deméter.
Um esforço houve que foi considerado mais importante até do que o envio de sondas não tripuladas para as estrelas próximas. Foi o lançamento de tais aparelhos através das passagens, seguindo rotas arbitrárias, programados para regressarem donde quer que fossem, tomando igualmente rotas arbitrárias. Nenhum regressou.
Lentamente, o gênero humano parecia reajustar-se à nova situação. Em Lima foi assinada a Convenção.
(O gabinete de um famoso astrofísico ainda vivo.)
ROSSET
... a teoria que temos estado a desenvolver diz que uma máquina T tem um campo de ação limitado. Estimamo-lo em quinhentos anos-luz no espaço, talvez mais, talvez menos. A questão é que, se quisermos vencer uma distância maior do que esta, teremos de passar por uma máquina intermédia, a funcionar como relê.
Até agora não tivemos sorte, assim tão longe, com as nossas sondas. Mas deixem-nos prosseguir o tempo necessário, e as próprias estatísticas garantem que por fim uma dessas sondas há-de acabar por encontrar o caminho do regresso, trazendo um registro das rotas que seguiu. Deixemos que isso aconteça certo número de vezes, e teremos por fim os elementos de que precisamos para chegar a essas muitas estrelas. Podemos também começar a ter uma ligeira indicação dos princípios fundamentais, de como estabelecer urna rota por nós mesmos.
Isto acontecerá, especialmente se encontrarmos outra raça que esteja também a fazer as mesmas tentativas. Podemos então comparar notas ...
A apresentação findou neste ponto, vinte e tal anos atrás. Joelle perguntava a si própria como é que aquela gravação tinha chegado ali. Talvez um conservador meticuloso tivesse decidido que, uma vez considerada a Roda de San Jerónimo um monumento, se deviam guardar também testemunhos históricos no seu banco de dados.
Durante um minuto Joelle imaginou outra data, anterior, começando quatro anos atrás pelo tempo de Sol ou de Febo, doze anos atrás na sua própria vida.
Vista, tirada da nave de vigilância na máquina febiana, de um aparelho desconhecido, subitamente a chegar. Comprido, com a frente achatada, denteado, envolvido numa bruma azul, percebia-se que não era obviamente construído pelo homem. Não há qualquer resposta aos sinais, a altas acelerações o aparelho deixa uma marca entre as balizas, marca essa de que os oficiais de bordo da nave de vigilância tomam nota com todo o cuidado, até que o aparelho acaba por desaparecer.
Cenas de fúria pública e imagens de um debate secreto depois de a notícia ter rebentado. As entidades oficiais atingiram o desespero por causa do elevado custo das sondas-robôs e não mandaram nenhuma durante bastante tempo. Chegou-se à decisão de também não mandar nenhuma agora, mas, em vez disso, lançar uma nave tripulada, que seguiria a mesma rota. Não haveriam de faltar voluntários para a tripulação.
A Emissário lá vai através da passagem desconhecida e acaba por desaparecer.
Espantosamente cedo, a Emissário volta.
Entrevista com uma famosa holoteta, que explica o que aprendeu dos Betanos. Eles têm estado a usar há três séculos aquele aparelho de transporte, que descobriram ao cabo de longas experiências, mas servem-se dele com pouca freqüência de ou para uma parte da galáxia que raras vezes têm ocasião de visitar. Nenhum planeta no sistema os atrai como local para aí estabelecerem uma colônia e, no que respeita a investigação científica, têm mais em curso do que podem utilizar. Precipitadamente de regresso, habituada a empregar neutrinos de preferência a rádio ou a laser para comunicações no espaço, a tripulação deste aparelho não deu pela presença dos recém--chegados.
Esta seqüência difere das anteriores em que a famosa holoteta não se está a dirigir a todo o gênero humano, mas àqueles poucos homens que a mantêm cativa.)
— Bem — perguntou Joelle —, compreende agora melhor?
— Não — confessou Fidélio.
— Nem eu — disse Joelle.
As palavras que Lis pronunciou fizeram Brodersen olhar em torno de si. 0 único telefone público em Novy Mir estava instalado numa parede da sua estalagem. No entanto, a conversa parecia não ter despertado o interesse de ninguém. A luz do Sol entrava pelas janelas e por uma porta aberta ao mesmo tempo que o cheiro a terra e a vegetação, para dar um tom de ícone àquela sombria sala e a iluminar um pouco. Um par já de certa idade bebericava chá e jogava xadrez. Um homem bastante mais novo estava sentado junto do samovar, embora bebesse vodca, e falava despreocupadamente com o dono do estabelecimento. O olhar dos dois vagueava, mas prendia-se mais em Caitlín, sentada sozinha à mesa e que franzia a testa para aquilo que aqueles russos imaginavam ser cerveja. De qualquer modo, pouca gente por aqui sabe inglês, lembrou-se Brodersen. Talvez ninguém.
— Muito bem! — e voltou-se de novo para o écran. — Como vão as coisas por aí, minha querida?
Por um instante, ao ver-lhe o rosto e os sinais de cansaço, sentiu quanto estavam separados. A distância física não era lá muita. Mas não ousava aproximar-se dela, nem ela dele, a ponto de se poderem tocar. Nem mesmo se podiam falar um ao outro diretamente. Dali a voz de Brodersen ia para a cabana no lago Ártemis, onde era misturada e retransmitida para casa, e em casa a aparelhagem de Lis lançava a conversa já gravada entre “ Abner Croft” e o marido — o que devia ajudar a convencer o pessoal de escuta de Hancock de que ele estava em casa — e reconstruía a mensagem. A resposta de Lis devia seguir as mesmas vias.
— Disse eu que apenas cinco dos membros da tripulação estão dispostos a partir — e Lis deu o nome deles. — Os restantes prometeram guardar segredo, e estou convencida de que assim farão. Mas, olha bem, a maneira como Ram Das Gupta pôs a questão foi que tem família, que tem de pensar nela, e que esta aventura não é apenas desesperada mas poderia, além disso, ser ilegal.
— Essa agora! — rosnou Brodersen. — Mas eles estavam prontos a atravessar a passagem, para onde quer que a Emissário fosse, se conseguíssemos ter ordem de marcha e indicação sobre o trajeto a seguir. E sabe Deus o que encontraríamos do lado de lá, à chegada!
— Não é a mesma coisa. Quanto a mim, compreende o que ele sente. A União representa muito. Desafiá-la é uma espécie de blasfêmia.
— Os culpados são aqueles que a estão a desafiar, que a estão a subverter.
— Talvez estejas enganado, meu querido. E, estejas ou não, se tentares uma coisa destas e falhares ...
Lis esforçou-se por conter a dor nas suas palavras e nos seus gestos. E continuou:
— Orgulhar-me-ei sempre muito de ti, sabes isso. Mas talvez não consiga convencer a Bárbara e o Mike de que o papá não morreu como criminoso.
Brodersen deu um murro na parede. Os que se encontravam na sala olharam para ele com espanto. Respirou fundo e sentiu a garganta descontrair-se-lhe um pouco.
— Já falamos disto uma noite destas — lembrou ele. — De novo te digo: não é minha intenção cometer imprudências.
Brodersen forçou um sorriso.
— Teria eu agüentado até agora se fosse temerário?
— Desculpa, desculpa — e Lis teve um pestanejar carregado. — Não posso deixar de me sentir preocupada por causa de ti. Se pudesse ir contigo, daria tantos anos da minha vida como àqueles que possa ter de viver sem ti.
Impressionado, Brodersen só pôde murmurar:
— Então, querida? Coragem! .
Mostrando apenas a cabeça de Lis, o écran dizia-lhe no entanto que todo o corpo se revigorava um pouco.
— O apoio que te dou é a minha maneira de te acompanhar — observou ela. — Faz o que tens a fazer, Elisabet Leino, e fá-lo bem!
— Olha, repara, eu nunca quis dizer...
— Sejamos objetivos — atalhou ela com vivacidade. — Podes arranjar--te com cinco tripulantes?
Brodersen recolheu-se à sua espécie de calma:
— No que respeita a irmos com a Chinook ou com a Williwaw, claro, não há problema. Além disso, lembra-te, a primeira coisa que tenciono fazer é contactar o Señor. É muito provável que ele possa tomar o caso inteiramente a seu cargo a partir daí. Talvez tudo venha a ser extremamente simples e fácil.
— E, se assim for, quando regressares haveremos de fazer uma festarola entre nós.
— Isso mesmo!
O sorriso perpassou entre eles e dissipou-se.
— Muito bem — retomou Brodersen —, conseguimos o essencial, de uma tripulação. E quanto a licença para sairmos?
— Estou a tratar disso. Brodersen franziu as sobrancelhas:
— Hum! Quanto calculas tu que demore ainda? A Hancock não tardará a ter as suas suspeitas de que eu me pus a andar.
— Estou a ser o mais discreta possível, para que ela não se lembre de nós. Por outro lado, tenho na mão o Barry Two Eagles.
Como comissário do Conselho de Controlo Astronáutico do Sistema Febiano, Barry Two Eagles tinha poderes sobre o tráfego no espaço.
— A título confidencial, compreendes — continuou ela: — Jantamos ontem à noite, en tête-à-tête, na Apollo House. Ele vinha com o coração a bater por mim, tu sabes ... Ou não sabias? — Lis riu. — Não és assim tão depravado como te proclamas, Dan, meu querido.
— Ah, sim, ele é bom camarada! — volveu Brodersen com uma relutância que o surpreendeu.
— E sou amiga dele. Não gosto de me servir da nossa amizade, pois ele nada tirará satisfacção nenhuma daí, embora não o saiba ainda. De qualquer maneira, nada fará de ilegal, é evidente. Mas estava dentro das suas atribuições dar luz verde à Chinook para Sol, sem necessidade de falar à governadora. Especialmente uma vez que ele não sabe da tua situação de detido em casa.
Expliquei-lhe que te encontravas muito ocupado mas que tiveste conhecimento de que a Aventureiros precisa com urgência de fretar a tua nave e que me pediste para eu tratar do assunto. Para ele isto tem todo o aspeto de uma decisão típica, imprevista, Brodersen-Leino.
“Expliquei-lhe, além disso, que a Aurie Hancock vetaria a saída se soubesse qualquer coisa de antemão, pois tanto ela como o marido têm interesses numa empresa rival. Haverias de te deliciar com a história que lhe desfiei. Ele sentiu-se chocado, quis me convencer de que a Hancock não era assim tão venal, mas eu insisti para que me prometesse guardar segredo, e depois falei-lhe de uma lembrança nossa. Ele está a pensar no assunto.
— O quê? Barry não se deixa corromper com luvas.
— Não são exatamente luvas. Mas quando eu observei que, se tudo corresse bem, estávamos dispostos a contribuir com um importante donativo para as investigações sobre os espasmos clónicos do tecido cerebral...
Lis viu o homem contrair-se e contraiu-se também. Two Eagles tinha mandado a um médico desligar a máquina que mantinha em vida o que restava do seu filho, depois de um acidente que lhe fraturara o crânio.
— Dan, haveremos de conseguir. Aconteça o que acontecer!
— Tenho a certeza que sim. Gostava, porém, que não tivesses sido obrigada a uma coisa destas.
— E eu também. Mas teve de sei-. Após um momento, Brodersen perguntou:
— Bem, e esperas que ele concorde?
— E quase certo. Deve vir ver-me esta tarde.
— E quanto a virem-me buscar?
— Também falei do assunto. Disse-lhe que vários dos tripulantes da Chinook tinham ainda assuntos da última hora a tratar e, dada a necessidade de sermos discretos, não podiam ir todos juntos, depois, para a nave. Reunir-se-iam num sítio onde a Williwaw os pudesse ir buscar, se o homem passar a autorização.
Lis fez uma pausa e perguntou:
— Onde deve ser? Brodersen já tinha pensado nisso.
— Na margem leste do lago Spearhorn. Bastante dentro da floresta, deves lembrar-te. Há ali uma espécie de estrada. Fácil local de aterragem. Está bem?
— Muito bem — e Lis lançou um olhar ao relógio. — Aguarda ainda. Brodersen apercebeu-se de que ela estava a tocar num teclado.
— Pronto — retomou Lis. —Era a nossa gravação que estava a chegarão fim. Pus o prolongamento.
— És uma jóia — e ficou com pena de não lhe poder dar um beijo. — Uma jóia, minha querida!
— Não me parece que tenhamos ainda muito de que falar — disse ela com ar triste. — Se a nave não chegar esta noite, melhor será procurares um telefone e falares comigo amanhã de manhã.
— Naturalmente, querida.
— Os pequenos estão bem. e apenas sentem a tua falta. A Bárbara está a dar uma soneca. Eu podia acordá-la.
— Não, não faças isso.
— Disse-me que te desse um beijo e do orosauro dos Pés Revirados.
— Um beijo também para ela e ... e ...
Hesitaram ambos durante um minuto ou dois, até que Brodersen explodiu:
— Diacho! Isto não nos leva a nada, não é verdade?
— Não, a nada. Melhor é tu andares. O lago é ainda longe de Novy Mir.
— Tens razão, Lis. És adorável.
— Adeus, querido.
Ela manobrou os botões, para prolongar a despedida:
— Adeus. Hasta Ia vista. Mas não te preocupes se demorares por lá algum tempo. Eu cá estou!
O écran ficou branco. Não muito à vontade, Brodersen procurou a mesa de Caitlín. A cadeira rangeu com o peso dele. Caitlín aproximou-se para lhe pegar na mão.
— Tudo bem, meu amor? — perguntou ela, em voz baixa.
— Parece que sim — murmurou Brodersen, fixando os olhos no chão.
— E, no fundo, tudo vai mal. Aquela pobre senhora! Foi uma decisão acertada que tomaste ao escolhê-la, Dan. Não há dúvida.
Brodersen contemplou os olhos verdes de Caitlín e esboçou um sorriso:
— Sou bom juiz em mulheres. Bebe e vamo-nos daqui.
— Terei muita satisfacção em ir contigo para qualquer lado, meu bem, mas... — e fez uma carantonha — tenho de beber tudo?
— Não, deixa lá. Fica para os pobres.
— O quê, e não vai isso desencadear uma revolução?
Um pouco mais animado, Brodersen fez um gesto ao dono do estabelecimento — Adiós! — e saiu com Caitlín. Febo estava a aproximar-se do pico, a maior parte dos colonos estavam fora, nos seus campos comunitários de semeadura. As casas estendiam-se umas ao lado das outras ao longo da única estrada poeirenta. O madeiramento dessas casas desprendia um cheiro a pez, ao calor tépido, embora brilhantes imagens adornassem as empenas. Um gato vagueava por ali. Uma babushka estava sentada na sua varanda a fazer renda, enquanto olhava por duas crianças a brincar e cujos gritos eram quase o único som a quebrar o silêncio. Mais além, o vale estendia-se, verde, até às montanhas que o fechavam quase a pique. Dir-se-ia uma cena tirada de um livro de contos infantis, pensou Brodersen.
Mas as naves espaciais acionadas pelo processo de fusão tinham trazido para ali os seus criadores. Agroquímicos orientaram a conversão do solo até nele florescerem plantas da Terra, modificadas pelos genetistas. A tecnologia ecológica, trabalhando sobretudo a nível microbiano, contivera a vida própria do planeta, vida que de outro modo irromperia de novo e reconquistaria todo o terreno. De noite, as constelações tinham nomes como Enéias e Grifo, e só com um poderoso telescópio se podia descobrir a estrela que se chamava Sol.
— Aonde vamos nós? — perguntou Caillín, abrindo a campânula do carro.
— Vamo-nos encontrar com a nave que me há de levar — disse Brodersen. — Queres fazer o favor dc entregar depois este carro à agência que mo alugou?
— O quê? Não tem autopiloto que possas regular para isso?
— Tem, mas será, tu a regressar nele, de qualquer maneira.
— Que queres dizer?
— Espera um pouco, não pensas que...
— Entra — disse ela. — Guia enquanto discutimos o assunto de modo que tudo esteja acabado quando chegarmos, podendo-nos então ocupar de passatempos mais divertidos.
— Pegeen — suspirou Brodersen, desfazendo-se do sentimento dc culpa, pois não lhe invejaria os motivos dc consolação que ele pudesse alcançar — tens idéias fixas.
— Não há dúvida — reconheceu ela. — E não pensas que é uma bela idéia?
A Chinook deslizava em torno de Deméter como uma lua que estivesse muito próxima. Daí a pouco seria como um cometa.
Construída segundo o modelo da Emissário, pois se destinava ao mesmo fim se os deuses fossem propícios a Brodersen. Era uma esfera com 200 m de diâmetro, a cintilar como um espelho. (O seu equipamento motor podia facilmente mantê-la aquecida. Desembaraçar-se do calor era um problema que por vezes se apresentava.) A cauda, o tubo do reator traçava, com a carcaça, um belo desenho em forma de tulipa. A meio da nave estavam instalados os motores auxiliares, tipo de foguetão, de funcionamento químico, dispostos como fusos. À frente encontravam-se as instalações dc comando, as torres, os aposentos para a tripulação, e alguns discos eletrônicos sobressaíam da fuselagem. No pólo oposto ao comando principal, dois guindastes ladeavam uma grande porra circular.
A tripulação estava a bordo. Tinha sido mais fácil do que Leino indicara a Two Eagles. O pessoal havia tomado o ferry regular para Perséfone passando despercebido entre os demais passageiros. No porto alugaram uma nave particular, cujo proprietário-piloto tomara primeiro o rumo de Erion e depois, em vez disso, os levou à outra nave. O tráfego inter-satélites não era controlado com rigor e muitos eram os astronautas dispostos a passarem por cima de uma ou outra prescrição se isso fizesse jeito a um camarada.
Ir buscar o comandante sem dar nas vistas era, porém, problema mais serio.
Foi dada ordem. A porta abriu-se. Um tapete rolante lançou a Williwaw para fora até meio. Os guindastes seguraram a nave. puxaram por ela, fizeram-na deslizar de modo a não tocar na nave-mãe. No seu tamanho, com 75 m de comprido, fazia lembrar um torpedo, planos de deriva atrás, asas retráteis, botaló lanceolado a projetar-se da frente.
Esguichavam dela gases demasiado quentes para serem visíveis. Os guindastes deixaram-na partir, e ela acelerou. Uma parte da água condensou-se quilômetros atrás, formando uma nuvem que ficou a pairar como um espetro, branca, antes de se dissipar. Era um sistema ineficiente comparado com o acionamento por plasma, mas podia suportar a dura passagem por uma atmosfera. Dado todo o seu tamanho e as inimagináveis energias que o seu motor produzia e canalizava, a Chinook era demasiado frágil para aquilo, ou mesmo para pousar em qualquer lado.
Em obediência a um plano de vôo oficialmente aprovado, a Williwaw passou algumas horas a fletir para o planeta antes de atingir as proximidades da sua estratosfera. Muita velocidade restava ainda a dissipar. Lentamente, a nave deixou perdê-la. As curtas asas estenderam-se então. Os mecanismos de propulsão ficaram silenciosos: as válvulas desligaram-nos. Durante algum tempo o piloto e o seu computador deixaram a nave planar. Por fim ela atingiu um nível em que os motores de propulsão nas asas podiam entrarem funcionamento. Imprimiu-se-lhes aceleração. Um gemido crescente encheu a cabina. Ainda a desacelerar fortemente, a Williwaw era agora um avião. Transmissores ópticos de estados sólidos revelaram ao piloto um mar de nuvens iluminadas pela luz solar, muito e muito abaixo. Tinha ainda de dar a volta a metade do globo para pousar.
As luas de Deméter circulam nas suas órbitas a mais velocidade do que a Lua da Terra. Naquela noite, Erion não aparecia e Perséfone só se levantaria quase ao alvorecer. Via-se assim maior número de estrelas do que habitualmente, mergulhadas numa obscuridade azul-violeta. Tinha passado a hora dos pirilampos e das coristas. Por toda a parte reinava a quietude. Cercado por massas sombrias de floresta, o lago resplandecia cor de zibelina. Pelo meio dele, Zeus desenhava uma perfeita clareira. Porque o vale que o envolvia ficava muito menos alto do que a gruta, espalhava-se um calor moderado, levantando fantasmas de nevoeiro, com um agradável aroma que vinha dos girassóis por entre o lódix do descampado em que Brodersen e Caitlín estavam sentados.
Brodersen pôs-se a andar de um lado para o outro, por cima de um relvado macio. Estava a espalhar-se a umidade.
— Vê bem, Pegeen — disse Brodersen —, não podes ir conosco, e é tudo.
No fundo de si mesmo, sentia que aquele tom categórico de voz profanava a paz que os rodeava.
Caitlín sentou-se, as pernas cruzadas, apoiou-se contra ele, despenteou-lhe o cabelo, mordiscou-lhe a orelha.
— Gosto muito de ti quando és firme — murmurou ela. — Podes tomar isto no sentido que mais te agrade.
— É ridículo! Quantas, quantas vezes tenho eu de repetir a mesma coisa? Tu não estás preparada para ...
— Mas prometeste-me que me ensinavas. É fácil de aprender, e não há nada que iguale as lições práticas.
— Falemos a sério, está bem? Eu referia-me a uma pequena viagem, a uma viagem de recreio, a Afrodite ou Ares quando muito.
Caitlín assentou a mão para nela repousar o peso do corpo. O antebraço, o quadril e a coxa continuavam a fazer pressão com suavidade sobre Brodersen. Este sentia-lhe a respiração contra a sua face à medida que o tom daquela voz perdia a alacridade.
— Fica combinado, e a sério que eu vou, meu bem-amado. Confessaste í que não tens contramestre a bordo e, o que é pior, que não tens médico. Porque
não posso eu fazer o trabalho dos dois? Hei-de deixar-te partir para o perigo sem mim, quando te posso ajudar? Pensa também na tua tripulação, capitão
Brodersen. Ir-lhe-ás porventura negar aquilo que pode salvar uma vida, e isso apenas para não teres de te preocupar comigo?
— Mas a viagem não será perigosa.
— Nesse caso, porque me hás-de recusar a experiência? Sabes perfeitamente que as naves de emigrantes não passam de casernas voadoras. Tenha mais a noção de um universo à minha volta aqui, ou quando estou a ver uma reportagem sobre o espaço, do que quando viajei a bordo da Isabella.
— Olha, não vamos falar do que irá acontecer. Estamos a aproximar-nos muito da borrasca e ...
— E a tua amante não deve estar a teu lado, não é? Daniel, Daniel, tens de reconhecer que eu iria contigo se tivesse mais qualidades.
— Não digas uma coisa dessas, Pegeen! — e fez um movimento para a puxar ainda mais contra si.
— Claro — acrescentou ela com uma ponta de malícia —, se receias escândalo, eu posso guardar as aparências contigo. Não há dúvida: qualquer parceiro a bordo se encarregaria de me consolar.
— E se acabasses com isso, minha tonta?
Brodersen sabia que era a última escaramuça de uma batalha que Caitlín tinha ganhado com as suas armas muito especiais, pouco depois de eles terem chegado àquele local.
— Está bem, vais.
Aquela rendição fê-la rejubilar. Caitlín selou a vitória esperando que Brodersen a beijasse — trinta segundos? —, embora imediatamente depois ninguém soubesse ao certo qual havia perdido.
Ficaram- se por ali, poi s a nave podia surgir de um momento para o outro, e sentaram-se um pouco deixando serenar a alma. Daí a nada Caitlín levantou-se:
— Vou fazer as minhas despedidas — disse ela.
Brodersen viu-a avançar no crepúsculo. Transformou-se numa sombra um pouco irreal, com as cores da Via Láctea, a deslizar num prado. Caitlín mergulhou uma das mãos no lago e bebeu. Colheu uma pétala de girassol e esmagou-a amorosamente entre os lábios e os dentes. Enlaçou um arbusto do tamanho de um homem e apertou os ramos contra si, enterrando a cara pela folhagem dentro... Por fim voltou para o pé de Brodersen.
— Procuras realmente fazer parte de tudo isto, não é verdade? — perguntou ele, quase num murmúrio.
— Não. Eu faço parte.
A mão de Caitlín traçou um arco das estrelas até à água e através da floresta.
— E tu também, Dan. Participamos de tudo. Porque não podem as pessoas sentir isso?
— Porque não podemos ser diferentes, suponho. Disseste qualquer coisa uma vez a respeito de termos talvez sangue de fada. Pensei que fosse mera figura de retórica, da tua parte. Esta noite, nem sei.
Caitlín olhava fixamente para o vazio, diante dela.
— E eu também não. Surpreende-me o meu próprio eu.
— Pensas isso? Eu quase podia acreditar, velho agnóstico que sou.
— Ah, não! Não te dei nenhuma água milagrosa. Nem mesmo a Yeats lhe tolero a metafísica.
Caitlín olhou para o firmamento e continuou:
— Na verdade, este é um estranho cosmos. Mais estranho do que podemos imaginar. Não é assim, meu bem?
Ele fez que sim com a cabeça e discorreu:
— Só a extensão dele! Tentei e voltei a tentar imaginar um ano-luz, um simples ano-luz, mas não consigo. Depois procurei imaginar a pequenez do átomo, e não consigo também. Mecânica ondulatória. Radiação de fundo que ficou do Princípio. Expansão contínua — para onde? Buracos negros. Quasares. Máquinas T. Os Outros. Sim, tudo isso.
Após um silêncio, prosseguiu, tocando nela ao de leve.
— Julgo, no entanto, que nos estávamos a aproximar de um mistério muito particular.
— Sim, é verdade. Era de uma história verdadeiramente estranha que minha mãe me contou, e minha mãe era católica praticante.
— Queres contá-la?
— Conto, mas olha, nem sei como começar. Porque não é realmente um história. Não é qualquer coisa que tenha realmente acontecido, mas também não é nada de inventado. Não, tudo está na maneira e no tempo de a contar.; de quem a contou. Gostavas, na verdade, de a ouvir?
Brodersen estreitou o braço em torno dela:
— Porque me perguntas isso?
— Obrigada, meu amorzinho — respondeu Caitlín. — Deves primei” saber que minha mãe era de Lahinch, em County Clare. É uma das regiões da Irlanda que empobreceram durante as Perturbações, e empobreceram a tal ponto que no fim só lá ficaram uns pequenos rendeiros, e muitos deles quase analfabetos. Acreditavam de novo ali no Side, se é que alguma vez tinham deixado de acreditar, embora eu suponha que Lady Gregory não reconheceria as suas histórias. E, ouvindo falar dos Outros, porque é que sob as estrelas, no Inverno, não haviam de acreditar?
Lá fora, no lago, o enorme vulto negro de um monstro marinho emergia à superfície, lançava o seu uivo horrendo e mergulhava para as profundezas.
— Pois, como já te disse, minha mãe foi para Dublim com uma bolsa de estudo para seguir música, depois de um professor que ali fora pescar a ter ouvido cantar — prosseguiu Caitlín. — Mas pouco tempo esteve na ópera, porque se casou com Padraig Mulryan e em breve lhe deu dois filhos, dois rapazes. Começou então a sentir nostalgia da sua terra natal. Mulryan, médico, não se podia ausentar, mas mandou-a passar uns tempos a casa dos pais, e ela sentiu-se deliciada por vaguear de novo à vontade por aquelas leiras de que tanto gostava.
Caitlín sentou-se muito direita, retorcendo os dedos com força uns contra os outros como à procura dos seus pensamentos.' Brodersen aguardava. O perfil de Caitlín, a recortar-se contra a noite.clara, deliciava-lhe os olhos.
— Isto contou-me minha mãe muito tempo depois, e fui eu a primeira a sabê-lo depois do padre. O meu pai, um bom homem de feitio um tanto seco, quinze anos mais velho do que ela, ter-lhe-ia chamado mero sonho, pois provavelmente o era. Mas minha mãe estava a procurar recuperar-me quando me viu a quebrar os laços com a fé e com a família. Queria que eu soubesse que também ela já havia sentido o mesmo que eu estava a sentir, de modo a poder-me acautelar. E, no entanto, não podia adiantar mais nada do que isto. Tinha ido fazer uma viagem de uma semana, a pé, durante a qual dormiria em qualquer casa que estivesse próxima quando descesse a noite, e aquela gente ficava sempre radiante por ter uma cara nova com quem falar. Mas naquela noite de luar, abaixo de Slieve Bernagh, o tempo estava tão doce que minha mãe estendeu o seu cobertor no musgo e aí ficou, a contemplar o céu que a cobria.
“Foi então que do luar se desprendeu um cântico, como o doce crepitar de uma chama, e surgiu alguém de uma beleza tal que minha mãe ficou a contemplá-lo entre lágrimas. Pediu a minha mãe que fosse com ele até à montanha. Mulher nenhuma podia recusar, ou seria uma santa se recusasse — disse-me minha mãe. Deixou o musgo como uma avezinha, e ele acariciou-a nos seus braços e levou-a consigo. Mas quanto ao que se seguiu, minha mãe apenas pôde falar de arcos-íris e de sóis, púrpura e ouro, de ventos e mares encapelados, e de todo um esplendor. Se foi assim que os dois fizeram amor, só eles o sabem. Minha mãe acordou depois onde de início se tinha deitado, e um raio de sol acariciou-lhe o nariz até que ela espirrou... Já te cantei em inglês, Dan, uma canção que eu fiz a este respeito em gaélico, pois a minha mãe faltavam as palavras. A mim também me faltam, mas vi os seus olhos e ouvi-lhe a voz.
Brodersen ficou um momento a olhar para ela sem saber o que dizer.
— Nove meses depois nasci eu, e cresci à imagem de minha mãe — continuou Caitlín após uma pausa durante a qual um meteoro cortou o céu. — Sei perfeitamente no que estás a pensar. O meu pai, o pobre, nunca se apercebeu disso. Para ele, podia minha mãe trazer-me no ventre um pouco mais de tempo ou um pouco menos. Pouco importava. E gostaria que visses como ele me mimou, pois eu era a sua única menina e o terceiro filho que tiveram. Dan, ele tinha razão. Hás-de concordar comigo, não é verdade? Hás-de concordar que leio no coração das pessoas. Minha mãe nunca conheceu outro homem que não fosse o meu pai. Nunca!
— Oh, eu não queria dizer isso! — protestou Brodersen, de forma desajeitada. — Não que eu tivesse feito mau juízo, mas ... Não, apenas creio talvez numa fantasia que tua mãe andasse a alimentar ... Concordas que podia ser, não? Possivelmente mesmo sem se aperceber disso ... E foi um pouco longe...
— Minha mãe nunca foi dada a beber.
Quando Brodersen procurou desculpar-se, Caitlín pôs-lhe a mão nos lábios.
— Queres dizer que se embebedou com o luar?
— Acontece — respondeu Brodersen quando ela o deixou falar. — Olha, lembro-me de um velho zimbro por detrás da minha casa. Pois ele falou comigo. Esqueci o que me disse, mas recordo-me tão bem de ele me falar como de aprender a montar a cavalo na mesma idade, aí pelos quatro, cinco anos. Os sonhos gravam-se em nós das maneiras mais singulares. E ... se tu és como a tua mãe, Pegeen, então ela é como tu, e és uma sonhadora ... — salvo, por vezes, quando és tão prática que me assustas.
Caitlín não se descontraiu nem riu como ele esperava. Apenas sorriu.
— Sou simplesmente uma mulher, Dan. Vocês, os homens, são o sexo romântico.
— Seja! E que supões tu que tenha acontecido? Se pensas que tua mãe entrou realmente em Elhoy — como lhe chamamos no lugar donde eu venho —, se pensas isso, não troço de ti. No mesmo mundo do que os Outros, não há qualquer dificuldade em aceitar o Mundo Subterrâneo.
— Ou os demônios?
Brodersen sentiu que por ela passava um calafrio.
— Era o que minha mãe receava que aquilo fosse: o diabo a tentá-la e ela a ceder-lhe. O padre disse que não, que não acreditasse nisso. O mais provável era não passar de imaginação. No entanto, minha mãe conservou o medo na alma até hoje. O meu pai contou-me como ela era alegre na juventude. Mas a partir mais ou menos dessa época tornou-se muito religiosa.
A tendência já lá estava, com certeza, refletiu Brodersen. Quando a revelação da existência dos Outros não destruiu religiões, inspirou outras novas ou deu mais vigor às antigas. Seria intenção deles?
— Que pensas tu a tal respeito? — perguntou ele.
— Eu? Não tenho a mínima idéia. Sei em que consiste a prova científica, e em tudo isto não se vislumbra sombra dessa prova.
— Mas deves ter imaginado uma teoria. É assunto grave, não há dúvida, representa muito para ti.
— Naturalmente ... Norah é minha mãe. Por muito que me tenha afastado, conservo imenso amor por ela, e por meu pai, e por meus irmãos, e espero vê-los de novo na nossa viagem.
Caitlín pegou-lhe na mão e apertou-lha.
— Lembras-te de que começamos a falar disto quando fizeste aquela pergunta sobre o fato de nos sentirmos uma parte integrante de todo o universo? Penso que a minha mãe sentia o mesmo naquela noite, e mais forte do que eu jamais senti. Se minha mãe fosse budista, falaria do Nirvana ou de iluminação interior ou de qualquer coisa maravilhosa do mesmo gênero. Como era uma camponesa da Irlanda, uma sólida camponesa embora tivesse casado com um médico de Dublim e cantado na ópera, recuou com horror, e é terrível isso. Mas quanto ao que provocou a sua experiência e lhe deu aquela forma, não faço idéia nenhuma.
— Posso dar a minha opinião? — perguntou Brodersen. — Tua mãe era aventureira por natureza, sedenta de vida, mas nunca abriu o caminho para a liberdade da maneira que tu fizeste. Assim ...
Veio do céu um sussurro. Puseram-se ambos de pé, com presteza. O metal lá em cima refletia luz do Sol escondido e tremeluzia. Depois mergulhou outra vez na sombra. No entanto, podiam-no seguir, e ele aproximava-se. O sussurro tomou-se em som áspero, as folhas agitaram-se,.a brisa tornou-se ventania. A nave espacial fazia rodar as asas, descia na vertical, baixava as rodas, tocava o solo, desligava os motores e ficava por fim parada, ali diante deles. De novo o silêncio envolvia tudo em redor.
Brodersen e Caitlín pegaram nas suas coisas e correram para a nave.
O auditório na Roda de San Jerónimo tinha ao lado uma saleta onde os oradores ou os artistas podiam aguardar, preparando-se, se necessário, antes de se apresentarem ao público. Ira Quick não precisava de se preparar, mas passou alguns segundos diante de um espelho a analisar o seu aspeto. O espelho deu-lhe a imagem de um homem caucasóide, elegante, 44 anos, bem em forma, fronte alta a dominar feições regulares e finas, olhos castanhos, barba preta à Van Dyke e cabelo negro, ondeado, já a criar cãs, e que começava a rarear no alto mas caía abundante por detrás das orelhas e até meio do pescoço. Era essa a moda, tal como o discreto colorido da sua túnica e o brilho das suas calças escuras, brilho aliás menos acentuado que no ano anterior: na moda sim, mas não com o último padrão. “Não sejas tu o primeiro a lançar uma novidade.”
O meu caso é perfeitamente o do ator a criar fôlego para uma entrada que prenda uma assistência hostil, não será assim? — pensou ele, jogando com a sua capacidade de rir de si próprio. No fundo, sentia quanto estava consciente da profunda gravidade da sua passagem por ali. Quanto estava consciente da tragédia que envolvia tudo aquilo. A tragédia não consistia num embate entre o puramente bom e o horrendamente mau. Isso seria mero melodrama. Desenrolava-se uma tragédia, isso sim, quando era inevitável o conflito entre pessoas de igual moralidade, de igual (bem, de quase igual) inteligência e sensibilidade.
Henry Troxell, diretor dos guardas, agitou-se:
— O senhor está quase pronto, não? — perguntou ele.
— Quase — respondeu Quick. —Nada de apresentações fantasiosas, por favor.
— Nem eu as saberia fazer, pode crer. Estamos, pois, de acordo. Troxell saiu. O seu tom possante de touro ressoou através da porta aberta:
— Damas y caballeros. Tenho o prazer... Expliquei-vos muitas vezes que os meus homens e eu estávamos aqui a cumprir o nosso dever, tal como nos foi determinado pelo nosso e pelo vosso Governo. Vós pedistes para falar com alguém de responsabilidade. Esse alguém chegou. Tenho a honra de vos. apresentar Ira Quick, membro do Médio Oeste na Assembléia da Federação Norte-Americana, ministro da Investigação e Desenvolvimento no Conselho da União Mundial. O senhor Quick.
Troxell saiu pelo fundo do palco enquanto o ministro entrava, cadenciando os aplausos até que se apercebeu de que era o único a bater palmas.
Quick aproximou-se da estante e sentiu que ela iria ser para si um valioso apoio psicológico. Sorriu. Concebida para centenas de pessoas, a sala parecia vasta e vazia. Doze prisioneiros estavam ali sentados na fila da frente, olhos cravados nele... Quick era o estranho naquilo tudo, e tomou consciência disso, sem saber se devia ficar constrangido ou aliviado. Os guardas, sentados ou de pé, eram quase tantos como os prisioneiros. Os restantes guardas estavam lá fora de sentinela, embora fosse remota a probabilidade de uma intervenção de surpresa. Toda a gente usava fato de astronauta. Os agentes do serviço secreto traziam pistolas-metralhadoras ao ombro, a maior parte armas sônicas e algumas pistolas.
A cortar o silêncio, Quick ouviu o zumbir das ventoinhas. Do ar desprendia-se um odor a frescura. Talvez restasse também um nadinha de mofo, ou seria idéia sua? Por estar quase vazio, o auditório tinha má acústica, com um ressoar de ecos. Bem, pensou ele, já falei em pior do que isto. Perpassaram rapidamente por ele recordações antigas. Uma escola, numa pequena aldeia. Abarrotada de trabalhadores rurais a cheirarem a terra estrumada. Uma tarde de chuva numa loja maçônica parcialmente destruída pelas bombas da última guerra civil, e ainda não reparada. Uma sinistra madrugada de Inverno, do lado de fora do portão de uma fábrica, a abeirar-se dos operários que sabiam irem para o desemprego quando o trabalho fosse automatizado. Coisas a que se tem de habituar um jovem e brilhante advogado que se transformou num jovem e brilhante político. Situações desejáveis à sua maneira. Ajudaram-me a compreender o homem comum.
— Importam-se se eu falar em inglês? — principiou ele. — É a minha língua materna e sei que a falam a bordo da vossa nave, ao mesmo tempo que o espanhol. Não é verdade?
Seguiu-se um silêncio obstinado, que ninguém quebrou.
— Obrigado!
Após esta nota para criar ambiente, Quick apoiou os dedos na estante e deu livre curso à sua famosa voz de barítono. ;
— Bom dia, minhas senhores e meus senhores! E espero que venha a ser realmente um belo dia, este, para vós e para o gênero humano. Mais do que qualquer linguagem pode exprimir, sinto muito, lamento muito, o que se passou convosco. Eis-vos aí, de regresso da vossa expedição, uma expedição cujo significado apagou a de Colombo. Vós lidastes, vós sofrestes, haveis perdido três camaradas que vos eram queridos. E a tudo resististes com ânimo forte. Por fim, trouxestes-nos o prêmio que sinceramente acreditávamos iria abrir uma nova e brilhante era. Tínheis todo o direito a esperar que vos recebêssemos em triunfo, cumulando-vos de honras para o resto da vida, e consagrando-vos a imortalidade nas páginas da história. Em vez disso...
— Basta! Acabe com essa merda! — exclamou uma mulher alta, loura. — Não nos besunte mais com ela. Já nos basta toda a que temos em cima.
Devia ser Frieda von Moltke, atiradora e piloto da nave como o homem trigueiro, Sam Kalahele, que ali estava sentado ao lado dela. O capitão Willem Langendijk voltou-se daquela maneira ultracorreta de que Quick se lembrava, para a mandar calar. O imediato, Carlos Francisco Rueda Suárez, imprimiu às sobrancelhas um movimento nada aristocrático, para lançar um olhar de desprezo ... para o palco. As expressões dos restantes variavam de risos abafados a embaraço, menos aquela mulher magra, de cabelo grisalho, Joelle Ky, que permaneceu impassível.
Quick levantou a mão.
— Não me sinto ofendido — assegurou ele. — Creiam-me, compartilho dos vossos sentimentos. Fiz toda esta viagem, da Terra até aqui, a fim de podermos ter um diálogo proveitoso e chegar a um modus vivendi que vos satisfaça também a vós. Eu pensava dirigir-vos duas palavras e ter convosco em seguida uma discussão franca. Concordam com isto?
— Ouçam-no — ordenou Langendijk.
O contramestre Bruno Benedetti cruzou os braços, recostou-se na cadeira e abriu a boca num bocejo artificial.
— Fale então! — disse ele. — Como não temos mais nada que fazer...
— Por favor! — interveio timidamente Esther Pinski, médica e bióloga assistente (embora tivesse atravessado a passagem para destino desconhecido como os restantes, na intenção de lá estudar formas de vida que, por tudo quanto sabia, se iriam revelar nocivas). — Sejamos polidos.
— Sim — acrescentou o mecânico Dairoku Mitsukuri. — De que outra maneira podemos recuperar a liberdade?
A tripulação aquietou-se. Quick retomou a sua pose de orador.
— Obrigado — disse ele. — Sois muito amáveis.
São mas é mortalmente perigosos, pensou ele. E de imediato: A culpa não é deles. Não conhecem mais do que isto. Devo tentar educá-los. A Educação é a chave do futuro. Sentiu a tolerância crescer dentro de si.
— O coronel Troxell, e sem dúvida os seus homens, fizeram o melhor que puderam para vos esclarecer, dizendo-vos as razões por que haveis ficado detidos todo este tempo — começou ele. — Contudo, e com o devido respeito, talvez não sejam eles as pessoas mais indicadas para o fazer. Falar não é propriamente a sua função. É a minha. Ou, melhor, há-de ser, se eu quiser continuar no meu posto.
Ninguém achou graça àquela subtileza. A planetologista Olga Razumovski beliscou as asas das narinas.
— Era minha intenção falar também com o betano — continuou Quick. — Posso saber porque não está ele aqui presente?
Todos os olhos se voltaram para Joelle Ky. Esta cruzou as pernas e explicou num tom neutro:
— Aconselhei-o a não vir. Vamos gravar toda esta cena para ele e procuraremos interpretar-lha depois, ponto por ponto.
Quick afastou-se da estante, deu uns passos e abrandou o sorriso. Nada fazia perder mais depressa uma audiência do que uma posição fixa ou uma expressão sem vivacidade. Além disso, os holotetas causavam-lhe arrepios. Não eram humanos... Nunca conseguiu desfazer-se daquele preconceito. Quick era, no entanto, suficientemente lúcido para reconhecer que se tratava de um preconceito.
Marie Feuillet, química, adoçou a resposta de Joelle Ky e desabafou:
— Fidélio já está tão espantado com tudo isso! É tão chocado, penso eu!
— Bem, os camaradas de bordo conhecem-no melhor — concordou Quick. — Fidélio, queira aceitar os meus melhores cumprimentos e as boas-vindas do meu Governo. Desejamos-lhe uma feliz estada no Sistema Solar.
Dirigindo-se à assistência:
— Um desagradável acolhimento, reconheço. Vim aqui para pedir desculpa e ao mesmo tempo para vos expor as razões pelas quais o meu Governo não tem outra alternativa. Os vossos guardas só vos puderam delinear essas razões muito por alto. Eu tenciono ir ao fundo da questão, com pormenores. Fazei-me as mais difíceis perguntas que puderdes e eu vos darei as melhores respostas que estiverem dentro das minhas possibilidades. Primeiro, porém, penso que será conveniente descrever-vos a situação desde início, e a maneira como os meus colegas e eu a vemos. Peço-vos o favor de não dizerdes para vós mesmos: “Já ouvimos isto antes.” É melhor escutarem. Talvez não tenhais ouvido tudo quanto eu tenho para vos dizer.
“Todos vós haveis compreendido, logo à partida, que provavelmente teríeis de ficar retidos de quarentena durante um período não especificado no regresso, independentemente daquilo que as vossas pesquisas parecessem provar. Mesmo no caso de Deméter, que a Voz dos Outros nos assegurou estar isento de qualquer doença que se pudesse transmitir à nossa raça, mesmo nesse caso — repito —, decorreram dez anos antes que qualquer cientista que ali foi pusesse os pés de novo em qualquer corpo do Sistema Solar. Vós não tereis de aguardar tanto em órbita, é evidente. Mas o tempo pode muito bem ser mais longo do que aquele que já passastes aqui na Roda.
Floriano de Carvalho, biólogo-chefe, não se pôde conter:
— Uma diferente espécie de tempo, Quick! — gritou ele, a ferver de indignação.
O orador retraiu-se ligeiramente no palco, como um matador de antigamente.
— Sim, sem dúvida, sem dúvida. Vós ficaríeis em contato audiovisual com aqueles que vos são queridos e com todo o mundo. Receberíeis prendas. Teríeis, como é compreensível, melhor comer e beber do que vos foi dado até hoje. Sim, teríeis. E acima de tudo — ou estarei eu enganado? — transmiti-ríeis a vossa mensagem. A mensagem a dizer que o gênero humano tem agora a liberdade de andar pela galáxia.
— Bem, não será perfeitamente assim, ainda — atalhou um sujeito alto e magro. — No decorrer de um milhar de anos, os Betanos descobriram as rotas que os levam a cerca de uma centena de estrelas e os trazem de novo ao seu planeta. Isso é um começo, na verdade.
Durante um instante, Quick não reconheceu aquele homem. Uma falha na sua memória. Tinha falado pessoalmente com cada um dos membros da tripulação, com cada um dos cientistas, e havia estudado cada caso individual, quando viu que era impossível evitar a expedição. Mas esperava que passassem entretanto alguns anos. E até, se se realizassem as suas esperanças, talvez a Emissário nunca mais voltasse Eis, porém, que chegara a notícia catastrófica, e Quick quase desejou ter um deus para lhe render graças por ser Tom Archer a comandar a nave de vigilância naquele momento. Poucas probabilidades teria de convencer outros oficiais a cooperar no sentido que desejava. Em qualquer caso, parecia remota a eventualidade de uma máquina T poder deslocar tão facilmente alguém através através do espaço. Teoricamente admitia-se, pois E = me2 o justificava...
Foi então que chegou a mensagem de Archer: a Faraday havia escoltado a Emissário através da passagem para o Sistema Solar, depois de habilmente desviar do seu caminho o comandante da outra nave, e tinha-a agora à sua guarda. Que devia fazer? Quick mais tarde sentiu orgulho pela rapidez com que havia posto em prática as medidas qjje tomou a respeito da Roda e, de resto, a respeito da Faraday também. (Mandá-la de novo para o seu posto no Sistema Febiano. Antes de a nova viagem chegar ao seu termo, destacá-la para um trabalho de levantamento de mapas apressadamente autorizado e a efetuar no distante Hades, com as habituais chorudas gratificações à tripulação. Isso lhe dava umas boas semanas para procurar qualquer coisa de mais permanente.) Por outro lado, tinha sido um verdadeiro pesadelo levar a cabo a tarefa e mantê-la ao mesmo tempo em segredo. Nenhum homem só por si podia fazer aquilo. Ficaria para sempre a existir uma ligação mais do que fraterna entre aquela gente, em altos lugares e em baixos. Gente vinda de uma dúzia de países diferentes, que havia traçado a sua carreira na disciplina, enquanto se esforçava por detrás da cortina por evitar o desastre.
E depois disso ... Mensagens de rádio entre a Roda e a Terra não podiam evidentemente seguir em código, quando em princípio só ali estavam uns tantos cientistas inofensivos. As naves de correio levavam dias e, em qualquer caso, não podiam fazer viagens muito freqüentes. Isso suscitaria também reparos. (Por outro lado ainda, os fundos discricionários de que se dispunha não dariam para tudo. Malditos reacionários, sovinas, sempre a cortarem as asas às pessoas de visão!) Assim, Quick chegou aqui com a mais vaga das noções sobre o que a equipa de Troxell sabia.
Felizmente, apreendo com rapidez qualquer situação. O seu lampejo habitual quebrou o feitiço. Não tinha durado mais de um segundo, e ao mesmo tempo sentia-se subjugado pela grandeza daquilo que estava a fazer pela humanidade. Sabia o nome deste novo fautor de perturbação, o segundo mecânico da Emissário, e conhecia a mulher dele.
— Eu estava a servir-me de uma linguagem metafórica, Sr. Sverdrup —• observou Quick. — Pelo que depreendo das suas palavras, no entanto, os Betanos podem guiar-nos para planetas que nós podíamos colonizar depois de havermos enchido Deméter. Mais importante ainda — estarei eu a compreender bem? —, eles podem pôr-nos em contacto com cerca de vinte raças sensíveis, de cada uma das quais teremos possibilidade de aprender coisas incalculáveis: ciência, arte, filosofia, e quem sabe o que mais?
— Começando pelos próprios Betanos — interrompeu Rueda. — Tecnologicamente, são os mais avançados. Em comparação com os seus engenheiros, os nossos andam ainda a brincar com pauzinhos num caixote de areia. Apenas para começar, eles podem mostrar-nos como fazer naves espaciais com possibilidades que para nós estão ainda no campo da ficção científica, e isso tão barato e tão facilmente como nós fabricamos automóveis. E estão dispostos a ensinar-nos. Oferecem-nos condições de intercâmbio tão generosas que ainda estou pasmado. Ora nós dissemos-lhes que na Terra a pessoa de um embaixador é sagrada. E eu pergunto-lhe agora a si, Sr. Quick, onde está o embaixador dos Betanos no momento presente? Que intenções tem o senhora respeito dele?
O matador ladeou a acusação:
— Por favor, Sr. Rueda, essa é a questão que vamos debater hoje. Por certo que o senhor não me considera um inimigo da ciência. Sou ministro da Investigação e do Desenvolvimento.
Rueda respondeu com as sobrancelhas. O estupor! Passou a rida adulta como astronauta, pensou Quick, mas continua membro fiel do seu clã timocrático. De um clã já desfeito. E aquela gente deve ter falado de política na sua presença. Sabe muito bem que não me encaminhei para a Investigação e o Desenvolvimento no governo porque tinha a intenção de dar plena liberdade àquelas forças cegas. Não, a minha missão é domá-las. Bons criados são, mas péssimos amos... Ah, Ira, estás a recitar a ti próprio o discurso habitual, não é assim?
— Permiti-me que volte ao passado, que volte ao século xx — reatou Quick — e à moratória sobre investigação nas técnicas recombinantes de ADN, moratória que os cientistas responsáveis impuseram até haverem elaborado rigorosas prescrições de segurança. O resultado foi que nenhuma nova praga avassalou o mundo. Pelo contrário, o homem colheu os benefícios sem conta que advieram dos novos conhecimentos básicos no campo da genética.
“Minhas senhoras e meus senhores, estais hoje na posição daqueles pioneiros. Curvo-me perante o vosso heroísmo, compartilho das vossas preocupações, meço os benefícios imensos que podem provir dos vossos feitos.
No entanto, estou certo de que não desejaríeis de maneira nenhuma lançar qualquer horrível doença sobre a humanidade. O meu apelo não é para que se ponha termo à exploração do cosmos, mas sim para que se estabeleça uma pausa. Solicito-vos que aceiteis”.
“Que doença? — perguntareis vós. Meus amigos, a mesmíssima pergunta foi repetida nos laboratórios de genética. Que doença? Ninguém sabia. Se soubessem, já não haveria problema. Contudo, aquela gente teve o bom senso de reconhecer as limitações do seu próprio conhecimento.
“O vosso Governo toma muito a sério a tarefa de velar pelo bem-estar de todos. Quando aquela nave betana foi observada a avançar pela passagem em Febo, só ao cabo de longo debate, tanto em público como nos meios oficiais, foi autorizada uma expedição para a seguir. Depois de uma tremenda batalha política, que o meu lado perdeu, embora tenhamos obtido algumas concessões e alguns de nós se terem unido para planearem a maneira de ganhar a batalha seguinte. Em larga medida, a decisão de ir por diante com as explorações assentava na suposição de que vós ficaríeis por lá uns longos anos. Quando mais não fosse, parecia claro que vós havíeis de necessitar de muito tempo para estabelecer comunicação com uma espécie totalmente desconhecida. Entretanto, nós, no nosso planeta, podíamos imaginar contingências e prepararmo-nos para elas. E cerrar fileiras, para ver a quem haveria de caber a última palavra. Mas, em vez disso, havendo passado por lá todos esses anos, vós regressais dentro de meses!
Quick mudou de tom, passando da excitação para a solenidade:
— Fidélio, querido amigo que nos veio das estrelas, desculpe-me o que tenho para dizer. Estou moralmente certo de que você e os seus estão a agir por bem. No entanto, a certeza moral não basta quando um governo tem de velar por bilhões de vidas. E, de fato, que sabeis vós a nosso respeito? Tendes uma prova concreta da nossa honestidade e das nossas intenções pacíficas? Penso que o nosso dever para com as nossas posteridades é que tenhamos, uns e outros, o maior dos cuidados.
Alguns dos ouvintes esboçaram um sorriso. Frieda von Moltke, essa, ria a bom rir e gritava:
— Fidélio apenas sabe espanhol, Mister Estadista Eloqüente. Quer que eu traduza?
Quick dominou um acesso de raiva, considerou a vantagem de repetir tudo aquilo na segunda língua, chegou à conclusão de que isso apenas iria trazer mais um contratempo, e respondeu com o seu sorriso mais mordente:
— Se quiser, se lhe der prazer, madam. A resposta, porém, parecia inútil para ela. Quick dirigiu-se de novo aos ouvintes:
— Pondo inteiramente de lado possíveis intenções agressivas, que eu concordo não são prováveis, pondo isso inteiramente de lado, pensemos no impacte sobre a sociedade. Os Outros deram-nos Deméter. Também nos trouxeram as Perturbações. A União permanece desoladoramente vulnerável. O Comando de Paz está cada dia mais sobrecarregado. Vós sois idealistas. Imaginais que uma avalancha de novidades revolucionárias, de tecnologia, de idéias, de filosofia, de fés, só pode ser desejável, só pode estimular um renascimento.
“Meus amigos, lembro-vos que o Renascimento Europeu, o autêntico, foi na verdade brilhante na arte e na ciência, mas trouxe consigo uma era em que a própria civilização explodiu. A era não foi apenas de Leonardo da Vinci e de Miguel Ângelo, mas também dos Bórgias e dos Cenci. E o sistema mais eficiente que eles tinham para matar era a pólvora. Nós, hoje, temos ogivas nucleares.
“Peço-vos muita desculpa de estar a trazer para aqui argumentos que já vos foram repetidos e repetidos antes de vós partirdes. Mas, no fim de contas, haveis passado oito anos da vossa vida fora de nós, num ambiente exótico. O próprio entusiasmo da descoberta e os vossos altos feitos esbatem estas precauções na vossa memória. E, evidentemente, nem o coronel Troxeil nem o seu pessoal devem ter conseguido mostrar-vos com toda a clareza a gravidade da questão. Deixai-me, pois, repetir: nós, os que velamos pelo bem comum, contávamos dispor de alguns anos para nos prepararmos para o vosso regresso. Prevendo o perigo, tencionávamos não só fortalecer as instituições da lei e da ordem como também educar o público. Francamente, com a vossa chegada assim tão cedo, haveis precipitado uma situação crítica. Rueda levantou o braço.
— Não sabe, não, porque foi assim a nossa chegada? — rosnou ele. Desconcertado, o ministro ouviu a sua própria voz:
— Como? Bem ..Bem, não sei. Suponho que não. Sem dúvida que isso consta dos relatórios ... O coronel Troxeil diz-me que vós fostes perfeitamente francos... Mas trata-se de um enorme volume de material e eu não queria deixar-vos para aqui a esperar por mais tempo ...
Reuniu forças e continuou:
— Muito bem, Sr. Rueda. Parti do princípio de que era assim que a passagem funcionava.
— E enganou-se, Sr. Quick — replicou o imediato. — Os Betanos tiveram mil anos para estudar as máquinas T. Aperfeiçoaram sondas baratas, que podiam mandar aos bilhões, ao passo que nós mandamos escassos milhares. Assim, eles puderam recuperar algumas. Dadas as múltiplas informações que colheram, puderam começar a ver indícios de um modelo, começar a esboçar uma teoria. Estão longe de um conhecimento total, é verdade. Mas descobriram como ligeiras variações numa determinada rota — variações não suficientes para levarem a um destino diferente no espaço — conduzirão a diferentes momentos no tempo. O alcance não é grande: à volta de uma década ou duas, em cada sentido. Para além disto, os elementos de que dispõem são ainda muito incompletos. Mas disseram-nos que podiam calcular uma rota em torno da máquina em Centrum que nos conduziria para antes ou depois da hora em que partíssemos de Febo — para onde e para quando desejássemos —, no espaço de vários anos.
“Escolhemos voltar a alguns dias depois de havermos partido. Que esses dias se tenham, afinal, tornado em meses deve-se ao fato de não conseguirmos ajustar a Emissário com tanta precisão como eles comandam as suas naves. A decisão foi nossa. Nossa.
Langendijk franziu as sobrancelhas. Rueda sacudiu a cabeça para o comandante.
Consternado (sentia os lábios a cerraram-se-lhe), Quick suspirava:
— Porquê? — perguntou, embora já soubesse a resposta.
— Não esquecemos de” debater a questão previamente — disse Rueda.
— Não, passamos oito anos a refletir. Vimos o risco de a sua facção, Sr. Quick, vir a dominar, pois ela sabe muito bem o que pretende, ao passo que a gente da nossa espécie nada mais promete a não serem esperanças. Chegamos à conclusão de que melhor seria regressarmos bastante cedo.
Para além da sua consternação (porque — santo Deus! — havia ainda por cima a deslocação no tempo!), Quick sentiu-se satisfeito ao notar como era pronto o seu contra-ataque.
— Obrigado, Sr. Rueda — ronronou ele. — Gostava que me dissesse o que pretende a minha facção , como o senhor lhe chama. Tinha muito interesse em sabê-lo. Pensava eu que o Partido da Ação e as organizações que funcionam dentro do mesmo espírito têm como único objetivo o bem-estar da humanidade.
Rueda encolheu os ombros e perguntou:
— O que é o bem-estar da humanidade? Quem o define? Permita-me que eu lhe lembre também uma pequena história. Aqui há séculos, os xóguns do Japão não aceitavam os estrangeiros. Excluíam tudo quanto fosse novidade, tudo quanto trouxesse consigo um pouco de frescura. Contou-me o Sr. Mitsukuri como os xóguns procuravam disciplinar toda a vida do país. Iam ao ponto de fixar o preço que um pobre diabo podia pagar por uma boneca para dar à filha.
— Festung Menschenheim — interveio a Von Moltke, sem cerimônia.
— Mas aquele reino eremita podia-se manter isolado. Instalem mísseis em qualquer máquina T e façam em frangalhos tudo quanto possa surgir de estranho. Bela solução!
A idéia não é inteiramente má. Quick levantou as mãos:
— Porque espécie de monstro me tomais? — gritou ele. — O que esperais que eu responda a acusações desta natureza? Serei eu um vândalo? Minhas senhoras e meus senhores, não quero acreditar que esses anos em Beta tenham feito de vós paranóicos. Peço-vos, parem de falar dessa maneira.
Interveio o capitão Langendijk:
— Façam favor, escutem todos. Continuemos a ser gente civilizada. Levantou-se e dirigiu-se a Quick:
— Devemos dizer-lhe, Sr. Quick, que não adiantamos a nossa chegada movidos por qualquer complexo de perseguição. É um ponto que parece bem evidente. Por outro lado, o senhor pode imaginar motivos pessoais. No decorrer de oito anos teriam morrido muitos dos que nos são queridos. Os restantes teriam envelhecido. Nós esperávamos escapar a esse drama.
Quick tentou uma resposta. A voz sonora de Langendijk, habituada ao poder, prosseguiu:
— Como disse o Carlos, não esquecemos os grandes argumentos de antes de nós partirmos. Vezes sem fim os analisamos ... Incluindo o perigo de reacender as Perturbações. Achamos que esse perigo é diminuto.
“O senhor fala de uma enxurrada de novidades. A realidade, porém, é que tal não acontecerá. Numa centena de anos, apenas começamos a conhecer Deméter e mal. E ele não era habitado por nenhuma raça inteligente. Quanto a Beta, os Betanos — que estão a tentar entrar em contacto conosco e com outras espécies — estimam que se vão passar cinqüenta anos antes de eles e nós podermos ultrapassar a fase da troca de missões culturais e científicas. Precisaremos de todo esse período para nos conhecermos. A Terra terá tempo mais que suficiente para se adaptar.
“Por favor, deixe-me acabar. A tecnologia desenvolver-se-á mais rapidamente do que isso, não há dúvida. Mas que tecnologia? A tecnologia mais imediatamente ligada a tudo isto será a astronáutica. Rotas através das passagens. Naves espaciais baratas, e em abundância, que possam assegurar um serviço aceitável. Planetas como a Terra, mas desabitados — a válvula de escape, não vê isso? A liberdade de partir e de começar vida nova. Não apenas para uns milhares por ano, encurralados como gado nos aparelhos de transporte, mas um número sem limites. A liberdade! —é isso o que nós trazemos conosco.
Sentou-se, com a cara a arder, pouco habituado como estava à oratória, e aguardou. Toda a sala aguardou.
Quick deixou o silêncio prolongar-se, para dar mais relevo às palavras que estava a escolher. Em seguida aproximou-se de novo da estante, retomou a sua atitude de predicador e recomeçou:
— Sois todos uns idealistas. Não teríeis, aliás, ido a Beta se o não fosseis. Também eu não trabalharia em Toronto e em Lima se o não fosse. Neste capítulo, os homens que têm estado a velar por vós aqui não teriam aceitado tão árdua tarefa, tão ingrata tarefa, se não o fossem igualmente.
Estou a matizar um pouco a crueza da verdade, pensou ele. Emocional-mente falando, devo ser eu, Ira Wallace Quick, a dar ao destino a sua forma. Não há sensação que se compare a essa. Do ponto de vista mais prosaico, ouvir uma multidão a aclamar-me, vê-la a adorar-me, é melhor ainda do que levar uma mulher para a cama.
Até que ponto sou honesto para comigo mesmo? (Estou a ser fingido. Com freqüência o sou. Gosto deste traço do meu caráter, com moderação.) Portanto, ouso ser franco e acrescentar que alguém tem de assumir o governo, e eu, pelos anos fora, cheguei ao ponto de conhecer o homem comum e aquilo de que precisa.
— Capitão Langendijk — tornou ele —, reconheço que o senhor é sincero. Já considerou, porém, as conseqüências de pôr em prática essa nova astronáutica sem as devidas precauções? O senhor falou de válvula de escape. Permita-me que fale, em vez disso, da nossa pobre Terra, de nações inteiras que ainda não saíram da sua confrangedora barbárie, de milhões de pobres e oprimidos que vivem nos chamados países avançados? Não terão direito a que olhemos por eles? Por certo que o senhor não vai imaginar que essa gente possa simplesmente fazer a trouxa e partir. Onde iriam buscar o dinheiro para pagar o bilhete, mesmo o mais barato? E também para comprar as ferramentas que lhes seriam necessárias ao chegarem a destino? Onde iriam adquirir a instrução indispensável para sobreviver? Deméter já exigiu centenas de vidas, vidas de emigrantes cuidadosamente selecionados para se fixarem num mundo cuidadosamente investigado. Onde iriam os pobres, eles, encontrar o incentivo para partir, a própria energia para partir?
“Não, aquilo que o senhor propõe seria desviar recursos vitais, e mão-de-obra especializada ainda mais vital para as nossas necessidades. Em benefício de um punhado de privilegiados, seria lançada uma imensidade de pessoas no sofrimento mais profundo e mais prolongado. Não terá o senhor o sentido da responsabilidade para com o seu semelhante?
— Mama mia! — desabafou Benedetto. — E o senhor não tem o sentido da economia mais elementar? Por certo que não acredita nessa sciocchezza![1]
Quick empertigou-se.
— Eu acredito num governo sensível aos males alheios — declamou ele. Joelle Ky remexeu-se na cadeira.
— Governo sensível aos males alheios — repetiu ela. — O que o senhor nos diz é uma frase em código. Tem um sentido muito preciso: “Não haverá piedade de qualquer espécie para o contribuinte.”
Isto não pode ser coisa dela, pensou Quick, encolerizado. Anda demasiado divorciada das realidades. Eu ia apostar que ouviu aquilo a Daniel Brodersen, àquele filho da mãe que vive em Deméter. Os detetives contaram-me que os dois têm relações muito temas.
Quick dominou-se, distendeu músculo após músculo, apoiou-se um pouco à estante e exortou com toda a blandícia de que era capaz:
— Minhas senhoras e meus senhores, eu compreendia que vós sentísseis azedume. Não previ, porém, que a nossa reunião fosse até este ponto e se tornasse tão hostil. Vede bem, eu pus de lado as minhas outras responsabilidades e passei dias a viajar da Terra até aqui no intuito de elaborar convosco um plano que vos satisfizesse na vossa vida privada e que salvaguardasse ao mesmo tempo o dever que temos para com todo o gênero humano e a civilização. Esforcemo-nos por chegar a autêntico diálogo. Não será melhor?
Algumas horas depois, Quick estava sentado no apartamento que lhe fora reservado, uísque e soda na mão, e procurava uma saída para aquilo tudo. Não tardaria a encontrar-se com Troxell para o jantar. Sem dúvida que podia esquivar-se a perguntas e sugestões indesejáveis, alegando cansaço. Não seria fingido, no fim de contas. Em circunstância nenhuma podia ser sincero. E não devia ficar ali engaiolado durante muito tempo no espaço enquanto os acontecimentos se desenrolavam na Terra de maneira tempestuosa. Para ele, a Roda trazia azar. Assim, se conseguisse estruturar a conversa daquela noite, podia obter indicações sobre a melhor maneira de proceder. Mas isso implicava a necessidade de ter pelo menos um esquema preliminar de ação, o que por sua vez o obrigava a encarar alguns fatos um tanto desagradáveis.
Um banho quente tinha-o libertado do suor, e o mudar de roupa restituíra-lhe uma sensação de frescura. A moleza insinuava-se-lhe agora pelo corpo. O copo que tinha na mão estava frio, húmido, e cada gole lhe lembrava o fumo: a fogueira a aquecer uma festa política, o lume num acampamento nas Rochosas, o fogo da chaminé apres ski num chalé da Suíça, um charuto depois de jantar num quatro-estrelas, tendo diante de si, na mesa, uma mulher jovem, adorável, do grupo das programadoras do Estado ... Haydn como música de fundo. As estrelas deslizavam, magníficas, através de uma abertura na parede. Mal dava por elas.
Que fazer? Que fazer?
Tragédia, autêntica tragédia, um ano-luz para além daquilo que ali tinha passado como adjunto no gabinete do presidente do Tribunal no antigo governo militar, ajudando a perseguir malfeitores que eram, na verdade, o produto de uma sociedade em decomposição. Aqueles que seguiram na Emissário na viagem para Beta eram, à sua maneira, os espíritos mais brilhantes que a Terra tinha para oferecer: homens e mulheres de talento, instruídos, de sentimentos nobres. Nem mesmo lhes podia chamar empedernidos tecnófilos, da mesma maneira que também eles não o podiam classificar de empedernido xenófobo. Detinham, apenas, distintas parcelas da verdade, como os cegos a reconhecerem pelo tacto um elefante.
Tinha de enfrentar perguntas difíceis, isso tinha, ou então deixar de pensar em si como homem de Estado. Qual a posição que se aproximava mais da conveniente, a menos errada? Que era mais importante no elefante: a cauda ou o tronco?
Vi demasiado sofrimento no turbilhão das Perturbações, e continuei a ler as estatísticas muito mais ainda. Haveria de ser perseguido para todo o sempre por uma pobre miudita que nem conhecia. Deflagrara um conflito de fronteiras entre as forças dos Estados Unidos e da Santa República do Ocidente. Voou um estilhaço de um morteiro. Como oficial da comissão conjunta de armistício, tinha procurado ali à volta provas de culpa. Em vez disso, encontrou a pequenita que levava um ursito de pelúcia de encontro à ferida que sangrava e lhe iria causar a morte. Ao ver-se esvaírem sangue, tinha corrido para as ruínas do seu lar. A fome foi pior, a pelagra pior ainda. Que razão de ser tem o Governo senão velar pelo bem-estar do povo? E quem se ocupará desse bem-estar senão o Governo?
Quick bebeu mais um pouco, sentiu o uísque descer-lhe pela garganta, tornou-se conscientemente cínico. Agora vou desbobinar o discurso J7-B. Isso o ajudou a acalmar-se, sem modificar os fatos.
O fato mais evidente era que o Homo sapiens nada tinha a fazer no meio das estrelas. No fim de contas, quando estivesse bem senhor de si, vá lá, deixassem-no ir. Mas primeiro tinha de porem ordem a sua própria casa. Na verdade, podia-se argumentar que as tentativas interplanetárias, desde o primeiro sputnik, tinham sido um erro. Claro, isso era uma heresia. Quick nunca a tinha manifestado em público. Os tecnófílos cairiam sobre ele como uma avalancha, com as suas demonstrações matemáticas de crescimento da riqueza geral, proveniente de minérios e de manufaturas, com as suas tiradas de progressos ainda a fazer no conhecimento científico e do que isso representa em todos os domínios, desde a previsão dos tremores de terra à medicina. E aos olhos de toda a gente teriam carradas de razão. O que para eles constituía uma permanente interrogação era o que o gênero humano podia ter feito no sentido de construir um mundo decente, estável, se os homens houvessem ficado tranqüilamente no seu próprio planeta.
Seja como for... que o diabo leve os Outros! Que uma calamidade caia sobre eles, se já não estão no Inferno! Bastam aqueles malditos para que um homem acredite no mafarrico.
A corrida desordenada para Deméter, sem olhar a custos em canseiras e material, para dar nova esperança a milhares de homens dentre os bilhões que povoam a Terra ... Sim, sim, o investimento já estava a dar os seus resultados. Deméter trazia-nos agora um belo lucro, uma parte do qual beneficiava o público sob a forma de salários mais elevados e de preços mais baixos. Mas que dizer dos pobres que tinham de penar em condições degradantes enquanto se estava a fazer tal investimento? Aquele capital ter-lhes-ia proporcionado sensíveis melhorias sociais.
Mais importante, fundamental, e irreparável, era o desvio de atenção. O melhor que havia na Terra, em quantidades sempre crescentes, já não se preocupava muito com o governo da própria Terra. Encontrava-se longe, no espaço. O fato de essa gente se afastar por completo, de deixar entrar os Betanos, iria precipitar o fim do programa de Ira Quick no sentido de uma civilização humana e racional.
Quick afagou a barba. A serenidade estava a voltar, minuto após minuto, à medida que ele continuava a rever os acontecimentos. O seu interesse estava longe de ser o único que se encontrava em jogo. Não havia dois dos seus | aliados com motivos idênticos. Stedman, da Santa República do Ocidente, receava o colapso de uma fé e de um estilo de vida já debilitado pelas influências seculares dos Terrestres. Makarov, da Grande Rússia, entrevia que o seu velho sonho de reunificação com a Bielo Rússia, a Ucrânia e a Sibéria se tornaria irrealizável. Abdalá, do Califado de Meca, suspeitava que o Irão, já empenhado na indústria de alta energia, iria ganhar vantagem decisiva sobre a outra porção do Islã. Garcilaso, da Confederação Andina, tinha levado a sua companhia a um entendimento viável com o principal concorrente, Aventureiros Planetários, e não queria que isto se modificasse, não tanto porque iria perder dinheiro, mas sobretudo porque a sua família perderia a posição social que detinha. Broussard, da Europa, falava uma linguagem de política pragmática, mas receava fundamentalmente o estado de esquecimento em que podia cair a sua cultura e as suas tradições; E a lista prosseguia.
Quick deteve-se no seu devaneio e apertou o copo, para beber. Um realista tem de aceitar a realidade. Ele não podia negar Deméter, nem as passagens a caminho das estrelas, nem os Outros, nem mesmo a Liga Iliádica. Os regatos não correm para as montanhas. Quando muito, é possível abrir uma vala para os deter. Depois disso, talvez, com um pouco de sorte e de trabalho, se consiga instalar uma bomba e levar a água de novo para onde ela estava. Confirmei hoje os meus receios. Não há maneira de levar esta tripulação a cooperar conosco. Por muito feliz me posso dar por nenhum destes homens e destas mulheres ter a habilidade de simular, com o fito de me traírem mais tarde.
Trata-se de seres humanos de valor. E sem dúvida que o estrangeiro entre eles merece o mesmo respeito, na minha consciência. Não os podemos manter cativos até morrerem de velhos, não é assim? São demasiadas as probabilidades de o segredo vir a transpirar.
Qual então a alternativa? Pô-los em liberdade? Isso não só seria a negação de tudo por quanto temos lutado, mas iria também causar a ruína do Partido da Ação e de qualquer agrupamento que colaborasse comigo. E que seria então das minhas esperanças?
Vejamos: quais são os fatos? A tripulação da Emissário tinha falado com toda a franqueza, quando foi interrogada.
Não que Ira Quick quisesse estabelecer campos de concentração ou qualquer outra coisa do gênero. O exemplo mostrava com eloqüência o que podia fazer um poderoso esforço de propaganda, para o bem ou para o mal. A maior parte das vezes uma determinada doutrina era propagada, não por aqueles que a aceitavam no seu todo, mas pelos que admitiam, simplesmente, como ponto assente que certos dos seus princípios básicos eram verdadeiros. E depois aquilo entrava nos manuais...
Porque a história não era meramente que ela tinha chegado aonde chegou: era exatamente a revelação que Rueda e Langendijk disseminavam...
E podia-se também esquecer o que se relacionava com a justiça social. Mais a carreira de Ira Quick. Oh, os meus amigos e eu evitaríamos um processo judicial. Examinamos todos os aspetos da questão, do ponto de vista legal, e com o maior cuidado. A Lei das Atividades Perigosas dava ao seu ministério amplos poderes para seqüestrar o material que ele entendesse susceptível de constituir uma ameaça. O caso dos finalistas — membros de uma seita niilista a respeito da qual surgiram provas de que tinha descoberto várias ogivas nucleares que ainda haviam ficado das Perturbações — abrira um precedente para manter pessoas incomunicáveis. Ainda mesmo que o assunto da Emissário trouxesse consigo um clamoroso escândalo, ele, Quick, ficaria isento de qualquer ação judicial. A menos que retivesse os presos demasiado tempo, digamos mais de três meses. Talvez que eu pudesse retomar a minha prática no foro depois de a onda ter passado. Com o mundo virado do avesso, suponho que os jurisconsultos teriam então a sua grande oportunidade. Mas aonde levaria tudo siso?
Em suma, que fazer?
Para o bem da humanidade.
Quick bebeu mais um trago. Troxell era homem cordato. Havia-lhe sido dito que o Governo da União, numa reunião de trabalho, decidira aquelas prisões. Não era estritamente verdade. Só um determinado grupo dentro do Governo tinha agido.
E agora?
Quick tinha dúvidas de que a própria União pudesse, de maneira franca e límpida, levar Troxell a concordar com um morticínio.
Repugnante palavra. Para uma repugnante idéia.
E, no entanto, facílima de levar a cabo. Por exemplo, com um gás misericordioso.
Render a equipa de Troxell. Destacar depois aqueles homens, um a um, para missões que os dispersassem. A seguir, dois ou três indivíduos perfeitamente dedicados...
Na minha cabeça e na dos meus colegas é fácil. Nunca mais podia lavar estas mãos.
Mas aquela pequenita que morreu? Pobreza. Ignorância. Os melhores e os mais brilhantes a partirem à cata de mera aventura, quando tão úteis podiam ser! Será porventura esta situação fundamentalmente diferente de uma guerra?
Quick esvaziou o copo e pousou-o.
Não sei. Tenho de meditar. De consultar. De partilhar a culpa. Não há dúvida, porém, que alguma coisa de concreto se tem de fazer a respeito desta tripulação, e muito em breve.
— Não compreendo — disse Fidélio.
— Nem eu — respondeu Joelle, agora no seu alojamento.
— Nem também o macho chamado Quick [Krfeh-yih-kh-h-h]. Então ele não viu nos sumários nem ouviu contar qual é o dilema no nosso próprio mundo? Não percebe como nós desejamos aproximarmo-nos de vós, se vocês nos receberem?
— Nem percebe nem quer perceber — atalhou Joelle. — Talvez seja demasiado subtil para ele. Ou ... nem sei! Não sinto pena nenhuma de estar tão distanciada como estou de todas estas coisas.
O olhar de Joelle voltou-se para a abertura que dava para o espaço. Na noite cristalina, viam-se agora as Plêiades, enquanto a Roda ia girando. Naquela direção geral, tinham os Betanos calculado, ficava Beta. Aí jaziam três humanos, idos de recantos diferentes de um planeta estranho que se chama Terra.
— Se a Chris aqui estivesse — murmurou Joelle, num tom de voz que mal se ouvia —, talvez ela pudesse explicar isto.
O BANCO DE MEMÓRIA
O sol a que os Humanos chamaram Centrum é uma anã com uma luminosidade de 0,183 em relação ao Sol. Girando à volta dela a uma distância média de 0,427 unidades astronômicas, o segundo dos seus planetas, Beta, recebe quase tanta radiação total como a Terra — com mais infravermelhos e muito menos ultravioletas. O período orbital é aproximadamente de 118 dias terrestres. A rotação ficou circunscrita a dois terços disto. Assim, o tempo que vai do alvorecer até ao escurecer naquele mundo é um ano betano, e a inclinação axial faz que o hemisfério sul esteja permanentemente coberto de glaciares. (A precessão modifica isto, mas no decorrer das épocas geológicas, pois Beta não tem lua.) Encontra-se também uma espessa camada de gelo no Pólo Norte.
A lenta rotação cria um fraco campo magnético. Por esse motivo, as auroras são poucas e pálidas, o brilho do céu à noite mais forte do que na Terra ou em Deméter. Da mesma maneira, são fracos os ventos ciclonicos. É freqüente, contudo, o mau tempo ao longo do terminador, onde o dia encontra a noite. Nas zonas temperadas e tropicais ao norte, o ciclo característico é: degelo logo ao amanhecer; fortes chuvadas do meio da manhã ao meio-dia; tempo seco durante a tarde; fortes chuvadas à noite; formação de gelo e pouco vento até ao amanhecer, altura em que novas rajadas anunciam o degelo seguinte. A vida evoluiu para se adaptar a estas condições climáticas.
A vida é fundamentalmente da mesma natureza que na Terra ou em Deméter: proteínas em solução na água, plantas que operam a fotossíntese, animais que comem a vegetação e que se comem uns aos outros. Isto não é para surpreender, num globo tão semelhante — com um diâmetro médio de 11 902 km, densidade média de 5,23 g/cm3, água a cobrir 65% da superfície. Comparados, digamos, com Mercúrio ou Júpiter, os três mundos são praticamente trigêmeos.
Porém, as suas ligeiras diferenças condicionam a natureza e o destino de tudo quanto há de vivo neles.
Joelle Ky e Christine Burns vagueavam ao longo da orla oriental. À volta delas estendia-se o descampado. Ficava dentro de 50 km de um complexo megalopolitano que abrigava quinze milhões de almas. Mas os Betanos tinham muito amor às suas zonas rurais. No fundo, difícil seria reconhecer uma cidade vendo-a de cima. Deparava-se com uma parte central, histórica, e com construções apinhadas num milhar de hectares ou menos. A seguir, uma extensão de parque cortado por uma estrada aqui e ali, com um jardim em torno de um largo artificial, ou um elegante obelisco. A maior parte da cidade era subterrânea. Até às regiões agrícolas faltava o aspeto arregimentado dos campos humanos e das nossas pastagens.
Joelle e Christine tinham deixado o seu carro aéreo e haviam continuado o passeio a pé. O veículo havia-lhes sido emprestado — sem a mínima dificuldade, logo que o pediram — por uma matriarca local, desejosa de ser prestável. Nem os assentos nem os mecanismos de comando se ajustavam aos seus corpos, mas foi o autopiloto a conduzi-las depois de Joelle lhe ter dado instruções, e num pequeno vôo como aquele podiam-se sentar de qualquer maneira, à antiga.
Caminharam, pois, durante um pouco, em silêncio, até que Joelle tomou a decisão de dizer:
— Você queria que encontrássemos um lugar tranqüilo, onde pudéssemos conversar à vontade, sem ninguém nos ouvir, Chris.
Perguntava a si própria porquê aquelas precauções. Estaria, no fundo de si mesma, com receio daquilo que iria ouvir?
A operadora de computadores da Emissário respirou fundo:
— Sim, queria — respondeu ela, num inglês melodioso da Jamaica. Christine era alta e esbelta, de feições delicadas e olhos fulvos. A pele tinha o tom do ébano, o cabelo esvoaçava, muito preto. Usava naquele dia um vestido de um vermelho que desafiava a paisagem.
— Mas não precisava de nos trazer assim para tão longe! — observou ela. — Qualquer outro lugar servia, desde que estivéssemos ao abrigo de ouvidos indiscretos.
Riu. Desde que se conheciam, Joelle invejava-lhe aquela facilidade de rir. E após o riso continuou:
— Será agora difícil aos nossos anfitriões colarem o ouvido à escuta, não lhe parece?
— Oh, e mudamos também de cena! — respondeu a holoteta. Esta fez um esforço para se exprimir: Você tem qualquer coisa para me confiar. O meu frio leu sente o calor da sua necessidade. Não merece você um belo ambiente para iseu confessionário? Não ousou. — É um lugar que já conheço. Gosto dele.
— Eu também. Por que razão nunca nos falou disto?
— Há muitos sítios igualmente bonitos. Você sabe que preciso de andar jpor fora, sozinha, de quando em quando.
— Bem, isso é mesmo seu, Joelle.
Aquilo despertou nela uma consciência da natureza que se estendia à sua volta, e apercebeu-se da paisagem quase folha por folha. A habituação cessou e sentiu então como a força da gravidade lhe havia tirado sete ou oito quilos do ; seu peso na Terra e lhe modificara ligeiramente a maneira de andar, o delinear de cada movimento. Não podia sentir que a pressão de ar era agora menor, mas notava o calor libertado por uma lufada de sal vindo do mar, à sua direita, e chegava-lhe odor após odor: doce, sulfuroso, a rosas, a queijo, a especiarias, indescritível. A ressaca abatia-se com violência. O vento uivava. Ao longe grasnava um bicho qualquer, um bicho voador, de asas espessas.
O céu era de um intenso azul-arroxeado. Centrum brilhava a oeste, levemente acima da linha do horizonte, quase sem movimento, três quartos de novo do tamanho angular do Sol visto da Terra. Era um disco laranja para o qual ela podia olhar sem perigo durante um segundo de cada vez. Do lado oposto, a oriente, adensavam-se nuvens imensas, negras de breu nas suas entranhas, salvo quando os relâmpagos rasgavam o céu dando-lhe um contorno vermelho e ouro. A tempestade lançava assim torrentes de luz no oceano, que se estendia cor de chumbo, recamado de vagas brancas de espuma que iam desfazer-se depois com estrépito numa praia coberta de seixos.
As duas terrestres caminhavam no meio de arbustos que lhes arranhavam as pernas e se fechavam em seguida atrás delas. Mais para dentro, murmuravam canaviais, e árvores solitárias agitavam as copas no alto de belos ramos delicados, a estalarem com violência. Os raios solares, quase horizontais, desenhavam sombras com infinitas gradações de cores: castanho, canela, carmim, damasco, ocre, dourado, numa sumptuosidade rembrandtesca.
Oito anos, pensou Joelle. Conseguirei lembrar-me ainda bem de um campo de milho no Cansas, de uma floresta verdejante no Tenessi?
Escapou-se ao que a rodeava, porque Chris lhe tinha pegado na mão.
Os dedos de Joelle corresponderam timidamente àquele gesto, e as duas mulheres prosseguiram o seu caminho. Por fim Christine afoitou-se a dizer, com a voz abafada:
— Espero que não me leve a mal se eu ... descarregar as minhas preocupações em cima de si.
— Não, não me importo. Diga-me o que se passa.
Na voz de Joelle percebia-se hesitação. Ela escolhia as palavras:
— Você há-de compreender, no entanto, que sou a pessoa menos indicada na tripulação para tentar dar-lhe uma opinião pessoal. Que sei eu de emoções?
— Mais do que os restantes de nós. Continuaria porventura você a ser holoteta praticante se não visse aí uma forma plena de se realizar?
— Mas está longe de ser uma existência verdadeiramente humana.
— Mas sim, que é humana. Até ao ponto em que um ser humano pode permanecer humano.
— Por definição, seja, se você insiste. Isso não significa que um asceta e um libertino sejam a mesma coisa. Não me restava mais para onde ir, a não ser para aqui onde estou.
Christine olhou para ela.
— Não quero ser indiscreta — desculpou-se, por fim. — Se o for, diga-me com franqueza, peço-lhe. Mas é minha opinião que você sabe muito mais do que pensa, a respeito das pessoas.
— Como? Eu cresci com o projeto que aperfeiçoou a holotética, pois tinha dois anos, era órfã de guerra, e fui adotada numa reserva de investigação militar. Acontece que uma holoteta tem de começar quase por essa idade. Você tinha dezoito anos — não foi o que me disse? — quando principiou a sua preparação de linker. As minhas primeiras recordações são já de estar ligada aos computadores. E isso marca uma pessoa.
Joelle apertou a mão que procurava a dela. E explicou:
— Não me estou a queixar. No conjunto, tive uma vida que me deu satisfação . Mas nada de parecido com a sua.
— Será assim? Eu ... Bem, você evitou relações ternas nesta viagem. Vi-a esquivar-se a galanteios, a instâncias que nem sempre eram ocasionais, mas ... Desculpe-me, eu não quero ser indiscreta. No entanto, ao que se diz — ou antes, ao que se sabe, para falar com toda a franqueza —, você teve os seus casos sentimentais.
Eric Stranathan, lembrou-se Joelle, e por uns momentos Beta desapareceu por completo do seu espírito. Estavam os dois no lago Luísa, e não havia mais ninguém. Depois disso, ele, homem altivo, filho do capitão-general do Fraser Valley, não podia suportar a idéia de ser mero linker em relação a ela (pois fora na altura em que viera à luz do dia o que significava ser holoteta) e disse-lhe adeus. Você, Chris, não deve ter ouvido falar de Eric. Você ainda não tinha nascido então. Está a pensar nos meus ocasionais amantes, depois disso. A maior parte deles, holotetas também. Prazer corporal e pouco mais. Exceto, suponho eu, e até certo ponto, Dan Brodersen.
— Nada de profundo — volveu ela. A mão enlaçada na de Christine desmentia-a.
— Você tem sido uma mãe para mim — suspirou a jamaicana. — É por isso que ouso recorrer a si, agora.
Uma mãe? Uma mãe? Não a imagem de uma mãe. No seu espírito, Chris, você é uma linker como há muitas. E eu sou holoteta, quase como uma deusa. A verdade é que eu tenho simplesmente sido uma superiora de excelente feitio, que lhe deu uma certa instrução mais avançada. (Você é jovem e bela. Eu estou subitamente a sentir o peso dos anos... Contra a minha própria vontade, esse peso aí está, e para ficar.)
Joelle sentiu o vento gemer mais forte, cada vez mais forte, de minuto para minuto. Tinha de levantar a voz:
— Obrigada! E se deixássemos de falar de mim e víssemos o seu problema? Conte-me o que a preocupa, minha querida.
Querida.
— Tenho andado a reunir coragem para isto, de há semanas para cá — principiou Chris, como perante um obstáculo. — Sempre estivemos todos de acordo em que já fizemos bastante. Podemos em breve voltar para a Terra. Não que eu receasse alguma coisa de si. Eu tinha receio era de mim, assustada ao olhar de frente para os conflitos que nasciam no meu íntimo. Pode ajudar-me?
— Posso tentar.
— Você ... Você deve lembrar-se de que era agradável, de princípio, a vida a bordo da nave. [Quando seis mulheres e nove homens, candidatos, alcançaram os lugares cimeiros nos testes para fazerem parte da tripulação, as moças ficaram em boa vantagem, especialmente depois de Joelle optar por não participar naquele desporto especial.] Depois Chi e eu ficamos noivos. Quando ele morreu... [Yuan Chichao, planetologista, foi a uma ravina para examinar um afloramento granítico e caiu morto. Uma análise posterior revelou que havia ali plantas que exalavam um gás mortífero ao calor do meio-dia, gás esse que era captado e concentrado numa camada de compensação. Os Betanos ficaram pesarosos. Não tinham a mínima idéia do perigo que aquilo representava. Aquele vapor era inofensivo para eles.] Relembrando agora o que se passara, suponho que fui um pouco selvagem por me sentir desolada, dando largas à minha fúria. [Levava a cabo o seu trabalho de maneira magnífica. Era-se ali bastante mesquinho também: exigia-se que uma operadora se fizesse pequena, quando a expedição procurava reunir conhecimentos sobre todo um mundo.] Torsten fez-me reconquistar a estabilidade. Foi inexcedivelmente amável, resoluto, sempre cheio de atenções para comigo. Tremo de pavor ao pensar que espécie de zumbi poderia eu ser neste momento se ele não me amparasse.
Eu não podia ter feito isto por si, não é verdade? — murmurava Joelle no seu íntimo. E em voz alta:
— Você está a desvalorizar-se aos seus próprios olhos. É saudável, refez-se por si mesma. — Com relutância, acrescentou: — Enfim, é claro que Torsten lhe deu um bom auxílio. Sente uma dívida para com ele.
Eu observei-os, a si e a ele, dia após dia, e observei-a a si hora a hora, Chris.
— Sim, eu sei. Quando voltarmos para a Terra, ele quer casar comigo.
— Ah, sim? Excelente! — exclamou Joelle, automaticamente.
Chris sentiu contrair-se-lhe a garganta:
— Mas estou apaixonada por Dairoku.
Por se parecer com Chi? Nunca pensei nisso, mas...
— E que sente ele por si?
— Para ele, sou uma amiga, uma camarada respeitada, uma companheira muito apreciada na cama — volveu Chris num ímpeto. — Tal como Frieda, Esther, Marie e Olga. E você sê-lo-ia também, se quisesse. Depois de sabermos da possibilidade de viajarmos no tempo, Dairoku tem andado a falar cada vez mais de uma rapariga que conheceu em Kyoto ... É delicado para comigo, cheio de atenções. Diria que é afetuoso, mas é aí... É por aí que ele fica.
— E você já lhe disse o que sente por ele?
— Não. Realmente não. As coisas que uma pessoa diz em cima de um colchão... pouca importância se lhes dá depois. Não será assim? Acha que eu deva?
— Tenho de pensar a esse respeito — observou Joelle.— E então, muito provavelmente, não acertarei.
Continuaram o caminho, a pé. O vento uivava, o mar encapelava-se. A leste, as nuvens levantavam uma muralha cada vez mais espessa, verdadeiramente aterradora. Outras nuvens mais ligeiras se despegavam dali para se espalharem pelo céu de anil.
Chris sentiu os ombros a encolherem-se por causa do frio que começava a entranhar-se-lhe no corpo.
— E que me diz de Torsten? — perguntou ela.
— Você não é obrigada a casar com toda a gente, sabe isso? — repontou Joelle, com um traço de incontida irritação.
— Claro que não. Mas ...
— Torsten não vai fenecer de amor. Há-de encontrar mais alguém quando regressarmos. Ou uma séria de “alguéns”.
— Sim, não há dúvida. Mas... Se eu não puder casar com Dai... Porque deixar partir Torsten? Gostava de lhe falar mais um pouco a respeito dele. Pequenas coisas. E de lhe pedir a sua opinião sobre o que devo fazer. Não que eu seja totalmente egoísta, suponho. Ele gosta de mim ... Mas então, você sabe, Dai... Você e Dai trabalharam juntos na conservação do motor e do reator. Talvez me possa dar uma idéia para o caso de eu... E talvez eu possa...
Chris apertou a mão de Joelle contra o seio.
Não respondas!
Como são curiosas as sendas do amor! Duvido que sejam menos fortes em nós do que nos Betanos, e aqui eles levaram a história a um ponto crucial. Joelle encontrou ânimo ao reexaminar os fatos.
Os antepassados dos Betanos eram onívoros que se tornaram caçadores ao longo da costa, sem se especializarem na terra nem no mar, embora pudessem nadar mais depressa do que correr. Talvez a destreza e a inteligência tivessem sido apuradas quando as mudanças nas correntes oceânicas, devidas a alterações na glaciação hemisférica, tornaram escassa a pesca, mas abundante a caça em terra, com corpulentos animais tais como aqueles que usualmente se desenvolvem nos climas frios. Por fim, perfeitamente consciente do seu meio, a espécie espalhou-se largamente. Alguns dos seus membros dirigiram-se para regiões muito distantes, no interior, e nunca mais voltaram ao pé do mar. Ficaram condicionados pelo ciclo do dia e da noite. A fêmea era maior do que o macho, excedendo-o em metade. O seu corpo era proporcionalmente mais robusto, mas os membros tinham o mesmo tamanho. Assim, a fêmea era mais forte, mais ágil na água, mas relativamente lenta e desajeitada em terra. Tinha quatro bicos para alimentar os filhos. Não se lhes podia chamar propriamente tetas, pois a sua estrutura era diferente. Também não se podia chamar leite ao que produziam. Como regra, a fêmea paria quatro filhos em cada ninhada, três dos quais eram machos. Era o equivalente de cromossomas da fêmea, e não do macho, que determinava o sexo da prole. Os óvulos haviam sido libertados um de cada vez durante um período de uma centena de horas na época do cio, e haviam em geral sido fertilizados por diferentes machos.
Isto acontecia por volta do meio-dia. O parto dava-se ao fim da tarde do dia seguinte, o que tornava o período de gestação comparável ao do homem. Os filhos chegavam, vindos de um ventre compartimentado, a intervalos mais ou menos correspondentes aos da concepção. Devido ao tamanho da mãe, o parto dava-se com mais facilidade do que entre os Humanos. A mãe amamentava os filhos pela noite dentro e durante esse tempo eles cresciam rapidamente. Depois começava o desmame, ao chegar a manhã. Enquanto amamentava os filhos, a mãe não podia procriar e continuava a segregar-lhes suco em quantidade decrescente, todo o tempo em que permanecia infértil, até ao meio-dia seguinte. Daí o espaçamento normal de nascimentos ser de quatro anos betanos ou dezessete meses terrestres.
Em meios primitivos, a mãe ficava em desvantagem em terra, e no entanto tinha de aí se manter para cuidar dos filhos durante a primeira noite da vida. Os seus machos — três, em média — levavam-lhe usualmente alimentos, enquanto ela trabalhava perto dos filhos e os guardava. (Os olhos dos Betanos adaptam-se admiravelmente ao escuro.) À medida que se desenvolveram os hábitos de casamento, este tomou naturalmente uma forma poliândrica.
Talvez por causa de pouco freqüentes relações sexuais, assim como da disparidade somática, tornaram-se muito mais acentuadas em Beta do que na Terra as diferenças psicomentais entre macho e fêmea. O macho tendia acentuadamente para ser agressivo, inventivo, habilidoso, dotado de grande poder de abstração, mas sem grande poder criador naquelas artes que se dirigem diretamente às emoções. As fêmeas, essas, tendiam a ser compenetradas, persistentes, implacáveis se necessário, de espírito prático mas artístico, com um sentimento pelo mundo vivo que os machos nunca podiam inteiramente aprofundar. Quase todas as sociedades eram matriarcais, e a Grande Mãe era o arquétipo religioso.
Aconteceu isto por causa dos laços que se criavam e que mantinham os pais unidos e asseguravam assim os cuidados a dar aos jovens, que iam amadurecendo lentamente. No homem, era a libido a manifestar-se todo o ano. No Betano, a atração sexual constituía por assim dizer uma força desagregadora, a despertar paixões que se podiam tornar indomáveis. Muitas instituições em muitas culturas distintas evoluíram para manter uma fêmea com o cio como companheira exclusiva dos seus maridos e para proteger a virtude de uma filha.
Mais ainda do que do permanente apetite sexual latente, a natureza em Beta servia-se da nutrição para manter unidos macho e fêmea. Para além de amamentar os filhos, a fêmea amamentava também o macho.
Interpretando, embora não muito corretamente, uma só palavra (havia milhares) para o fluido que a fêmea produzia, os cientistas da Emissário chamaram-lhe enin, e ao processo da sua produção deram o nome de eninação. O enin alimentava filhos de ambos os sexos. Continha também uma hormona que lhes assegurava o crescimento e que era essencial para a saúde do macho adulto. Este precisava apenas de escassas quantidades e o sugar aquele fluido da fêmea causava-lhe tamanho prazer que não tardava a ficar saciado. Mas tinha de voltar a sugar várias vezes em cada rotação planetária. (A fêmea sentia prazer em ser sugada, embora para ela as sensações fossem mais suaves e difusas.) Deste modo, tinha a fêmea normal a certeza de conservar os seus esposos.
No período da reprodução, o fluido secava. O feromona que a fêmea então exalava estimulava o apetite sexual dos seus companheiros. No fim do período estes estavam famintos. Quando, no início da prenhez, a fêmea recomeçava uma eninação ainda limitada, vivia-se um momento de júbilo e isso dava lugar às principais festas em numerosas crenças.
Esta dependência direta dava em geral aos machos uma sensação de mistério e de respeito em relação às fêmeas. Em algumas zonas os sexos tinham mesmo formado duas sub-sociedades bem distintas, com leis, rituais e línguas separadas. A linguagem comum podia ser um pidgin[2]...
Fundamentalmente, uma unidade básica eram os maridos de uma determinada fêmea, assim como os filhos adolescentes (do sexo masculino). Eram tomados como uma fraternidade indissolúvel. É claro, nem sempre assim acontecia na prática. O celibato era raro, exigindo ultrajantes formas de prostituição, e não se conhecia a homossexualidade. Depois de as civilizações se haverem tornado mais sofisticadas e cosmopolitas, cresceram os esforços para tornar os sexos, não “iguais”, o que era quase inconcebível, mas mais unidos entre si.
Tal como na Terra, apareceu finalmente o Estado, tanto na sua forma sedentária (ao longo das privilegiadas regiões costeiras) como nômade (nas inóspitas zonas do interior). Tal como na Terra, o Estado levou a cabo trabalhos públicos, deu origem a guerras, a conquistas, a escravizações, a tiranias, a corrupções, contendo já em si o germe do seu próprio declínio e queda. E tal ainda como na Terra, foi o agente de importante progresso material e intelectual.
No entanto, nenhum Estado betano se podia comparar aos Estados existentes na Terra. Os chefes eram invariavelmente fêmeas — e uma soberana podia ser considerada divina — e mantinha reprimida a combatividade masculina. A estrutura da família preservava os seus súditos de serem mobilizados em exércitos como máquinas de matar ou de serem atomizados em anomia. Além disso, tendo acesso ao mar, qualquer pessoa saudável podia viver à maneira antiga, dos recursos marítimos, e fugir assim à opressão. Nestes termos, a maior parte das nações ou eram quietistas e apegadas à tradição ou ativas mas racionais. As suas campanhas imperialistas eram usualmente desencadeadas com objetivos bem definidos, e cessavam uma vez alcançados esses objetivos.
No seu conjunto, portanto, a história betana, com os seus altos e baixos, era menos pungente que a da Terra. Por outro lado, era mais corrente a violência individual entre machos.
Por fim, surgiu uma revolução científico-industrial. Trouxe consigo os seus perigos e ameaças, mas nunca esteve tão à beira do abismo como a da Terra, em grande parte porque se realizou gradualmente, naquelas civilizações conservadoras dominadas pelas fêmeas, com a sua forte ética respeitadora do meio. A longo prazo, porém, mudou as características da vida em Beta mais profundamente do que a revolução ocorrida na Terra modificou a condição humana.
Produziu-se isto através da ciência biológica, a que se tinha dado primazia em relação à Física. Os investigadores aprenderam a maneira de obter por síntese a hormona-chave do enin.
O progresso não se operou de um dia para o outro. As forças que se lhe contrapunham eram os costumes enraizados, os hábitos feitos, a religião, a lei. Eram as emoções, incluindo as que estavam ligadas à sucção do enin. Eram os ciclos periódicos da sexualidade, o desejo de descendência. Apesar de tudo isso, os machos podiam agora viver separados das fêmeas todo o tempo que quisessem, e conservar o seu vigor.
Os indivíduos jovens começaram a adiar o casamento e a procurar companheiras que fossem mais do que pragmaticamente adequadas. Pela primeira vez, Beta viu qualquer coisa de parecido com amor romântico. Entretanto, começou a dissipar-se a mística que rodeava a fêmea no espírito do macho (e com freqüência no da própria fêmea).
Alguns machos preferiram o celibato para se dedicarem à exploração — à exploração de Beta e dos planetas vizinhos — e à ciência, à filosofia, a obras que perdurassem. Foram fundadas ordens monásticas. O extremo idealismo engendrou o fanatismo, com tudo o que ele comporta. Uma maior quantidade de machos compreenderam simplesmente que eram livres de ir tão longe quanto quisessem em domínios tais como a engenharia, para os quais as matriarcas mostravam pouco entusiasmo. Surgiu assim uma indústria de alta energia, e proliferou.
A revolução não se realizou, de maneira nenhuma, numa única convulsão. Indivíduos prudentes, de ambos os sexos, esforçaram-se por contê-la. Um resultado disso foi o Governo Mundial. Outro, foram as viagens espaciais. Uma vez que persistia ainda muito do antigo respeito pela vida, encarnado na fêmea, tornou-se natural dirigir a nova tecnologia para o exterior, onde não pudesse causar prejuízo ao planeta-mãe, mas de modo que lhe trouxesse, pelo contrário, novos recursos.
O livre empreendimento, no sentido humano, nunca tinha existido ali. Como para compensar essa falta, a guerra e outras loucuras semelhantes tinham-se desenrolado em escala incrivelmente diminuta pelos padrões humanos. O Estado Mundial dispunha de amplas reservas para um programa espacial.
Os Betanos não tardaram a descobrir a máquina T a girar em torno de Centrum, numa posição exatamente oposta ao seu planeta. Nos dez séculos que se seguiram, com vasto esforço e paciência, descobriram rotas que os levaram através de uma centena de passagens por entre as estrelas. Colonizaram meia dúzia de globos desabitados. Encontraram uma vintena de outras raças inteligentes. Aprenderam com elas a enriquecerem assim de maneira extraordinária a sua própria civilização.
Ao mesmo tempo, porém, estavam a ser corroídos, e cada vez mais, os alicerces dessa mesma civilização. A revolução biológica desenrolava-se muito mais vagarosamente do que qualquer coisa de semelhante que se tivesse passado com o gênero humano. No entanto, prosseguia inexorável. Enquanto os machos, vencida que foi a sua dependência física das fêmeas, estavam também a acabar com a sua dependência espiritual geração após geração, a Química tornou controlável o ciclo reprodutor. A fêmea podia estar no cio ou não, conforme quisesse e sempre que quisesse.
Os efeitos psicológicos de tudo isto foram desde logo libertadores e devastadores. A harmonia primordial com o sol e as estrelas já não existia — ou era, quando muito, matéria de decisão consciente. Se a fêmea entrasse num domínio até aí reservado ao sexo masculino, como eram as viagens no espaço, tinha de ajustar, não apenas as suas relações de trabalho, mas também a sua própria identidade, definindo quem e como realmente era. Nunca o conseguiu por completo. Espalhava-se a confusão e o ressentimento também entre aqueles que não tomavam parte na aventura do espaço. Com muita freqüência a sexualidade se tornava numa arma.
Profetas, filósofos e também muita gente comum procuravam um ideal viável que os satisfizesse. O exemplo de experiências alheias, o conhecimento da existência dos Outros, fizeram redobrar de intensidade as suas pesquisas, tornaram os seus desapontamentos muito mais pungentes.
Quando chegou a Emissário, os dilemas psicossexuais tinham levado Beta a uma crise. A efervescência, a excentricidade, as doenças mentais, o crime, o tumulto, cresciam sem parar. Por muito ocupados, por muito prósperos e interessados que estivessem naquilo que faziam, poucos dos mais afortunados se sentiam perfeitamente felizes, e a melancolia constituía o fundo do seu próprio ser.
Alguns houve que fizeram mesmo pressão para que as viagens no tempo fossem utilizadas de modo a impedir o pleno desenvolvimento da ciência. Mas, de qualquer maneira, isso era impossível porque não se conhecia trajeto nenhum à volta de Centrum que levasse uma nave para muito longe no passado, nem parecia que fosse encontrado. As propostas que se ouviam com muita freqüência para que se empreendesse com determinação um “retorno à natureza” eram igualmente quixotescas. Sem a tecnologia moderna, quase toda a população, provavelmente mesmo toda a espécie, iria morrer. E essa tecnologia apenas podia ser assegurada pelos sexualmente emancipados. Não havia outro caminho a percorrer senão para a frente ... Mas em que direção?
Foi então que a Emissário chegou.
À medida que a comunicação melhorou, ano após ano, cresceu a agitação entre os betanos mais esclarecidos. Aquilo que havia sido um excitante projeto acadêmico tomou um significado gigantesco. Aqueles bípedes não eram simplesmente um novo tipo de sofómanos: eram por direito de nascimento aquilo que os Betanos se esforçavam por ser.
O seu comportamento sexual encontrava-se também em outras raças, em outros lados, mas existiam aí igualmente muitas diferenças, e muito profundas, que afetavam grandemente as formas que ele tomava. (Por exemplo, uma raça, alada, era perpetuamente migratória, sempre em torno do seu mundo. Nenhuma das suas instituições, usos, atitudes, crenças, era adaptável àqueles que viviam apenas ao nível do solo.) Os Humanos, apesar de muito diferentes, tinham no fundo uma semelhança com aqueles seres que os recebiam no seu mundo. A prova disso foram as afinidades que se desenvolveram entre indivíduos das duas espécies.
Do estudo científico, da literatura, da amizade, os Betanos podiam esperar aprender o que significava ser aquela espécie de macho e fêmea, e qual a sua natureza. Isso não aconteceria numa única geração ou num século apenas. Fosse qual fosse a visão geral a que se chegasse, ela podia levar um milhar de anos a transformar a civilização. O resultado final não seria seguramente uma cópia do modelo, mas uma criação genuinamente betana. No entanto, podia muito bem haver uma aproximação, para um entendimento. A estrela-guia que tantos haviam procurado durante tanto tempo, cegos na sua dor, bem podia ser o Sol.
Fidélio tinha pedido a Joelle:
— Ensine-nos as vossas maneiras no amor.
Nem ela nem Christine prestaram muita atenção ao tempo que fazia. As ventanias do sol-pôr eram por vezes perigosas, mas o Centrum estava a alguns dias terrestres acima do horizonte. Além disso, os venda vais chegavam do ocidente. A chuva assim tão cedo era rara mas bem-vinda, dando depois lugar ao calor. Se chovesse um pouco, as roupas e o calçado não tardariam a secar. Continuaram o caminho as duas, albergando dentro de si também as suas próprias tormentas.
Mas, por fim, Chris puxou para si a mulher mais idosa, pois de outro modo o ar iria dispersar as palavras saídas da sua boca:
— Diga-me, não acha que seria melhor regressarmos?
Joelle olhou em torno. O céu estava de breu. Os relâmpagos pareciam árvores carregadas de luz. Os trovões ressoavam, medonhos. Nuvens cinzentas, aos farrapos, flutuavam baixas. A espuma das ondas fustigava a costa, açoitada por um mar que se encapelava, avançava, explodindo em seguida com fragor, abrindo na negrura vagas brancas que depois iam bater contra os rochedos com um ruído medonho de gigantescas mós de moinho. Joelle não conseguia ver muito longe à sua frente, mas lá no fundo distinguia arbustos a ondular com tons castanhos, dourados, vermelhos. Tremulavam árvores. Voavam folhas arrancadas pela tormenta e eram arrastadas para as trevas. O vento rugia e uivava. Fechava-se um turbilhão à volta das duas mulheres e comprimia-as numa vaga gelada, irresistível, como a erupção solar que havia afogado Alexander Vlantis. E o vento cada vez soprava mais forte.
— Sim — gritou Joelle. — Vamo-nos abrigar no carro. Não tente sair enquanto isto não passar.
Voltaram para trás. Agora a chuva feria, primeiro como lanças, depois como machados, a seguir como marteladas, sempre a cair, cadenciada, sem se lhe entrever o fim. A chuva formou torrente por cima do solo endurecido que se lhes agarrava aos pés até se começar a desfazerem lodo. As duas mulheres escorregavam, caíam, avançavam de gatas, agarravam-se uma à outra para se ajudarem, e lá iam a cambalear. A tempestade penetrava no próprio crânio de Joelle, inundando-o de ventania, de gritos lancinantes, de uivos. Os trovões pareciam dilacerar-lhe os ossos.
Isto é impossível! — clamava uma parte do seu íntimo. Em oito anos terrestres, vinte e cinco anos betanos, nunca vimos nada de parecido... Assim, antes de anoitecer... Nunca!
A holoteta dentro dela respondia friamente: Mas que são vinte e cinco anos na duração de um mundo? Se dermos tempo ao tempo, tudo o que pode acontecer acontecerá. Provavelmente uma espessa frente fria, a descer do Ártico com um trajeto caprichoso, trouxe à sua frente as tempestades do terminador. Devíamos ter consultado o boletim meteorológico antes de virmos para aqui. Mas não te deixes subjugar por um complexo de culpa. Só quando estás em ligação com a tua máquina podes pensar em tudo.
O vento cresceu e cresceu. Os relâmpagos davam à chuva uma tonalidade de mercúrio, e depois a escuridão adensou-se de novo, ainda mais pesada. Surgiu então o granizo. Autênticas pedras saltavam de encontro ao solo e cobriam-no de brancura. Batiam contra a carne, abriam feridas donde brotava sangue, imediatamente levado pela água. Não havia meios de lutar contra aquela fuzilaria. As duas mulheres dirigiram-se às apalpadelas para ocidente, voltando as costas aos elementos, à procura de refúgio.
Pela frente surgiu uma sombra, uma árvore onde se acolheram um pouco. Caminharam para ela, quase sem verem, surdas, abraçadas uma à outra.
Um ramo fino como um chicote fustigou a cabeça de Joelle. Esta caiu de gatas, no lodo e na enxurrada. Um relâmpago deixou-lhe ver uma pernada enroscada ao pescoço de Christine.
A pernada oscilou, deixou cair a sua amiga. Como um quadrúpede, Joelle arrastou-se até junto dela. Um fio de sangue brotava da boca de Christine, que se estendeu, batida pelo granizo. Joelle abaixou-se, curvou-se sobre ela, procurando servir-lhe de abrigo. As mãos de Christine caíram, para o lado, os olhos reviraram-se-lhe nas órbitas, e os relâmpagos deixaram ver toda a sua palidez. Joelle colou lábios contra lábios.
Nada a fazer. Uma laringe fraturada é rapidamente fatal.
Joelle ajoelhou debaixo da árvore, com o corpo de Christine nos braços.
No momento apropriado da sua órbita em torno de Deméter, a Chinook pôs a funcionar o motor principal. Durante uns segundos, foi desligada a proteção eletromagnética contra a radiação cósmica. Foi reposta depois, formando rapidamente um alto potencial positivo no casco, logo que o reator de plasma atingiu o equilíbrio dinâmico. À velocidade normal de uma gravidade de aceleração, que era aproximadamente o seu limite máximo quando os depósitos de massa de reação estavam cheios, a nave espacial seguia livremente em espiral em direção à máquina T. Uma vez atingido o ponto L4, na mesma rota à volta de Febo do que o planeta mas 60° à frente dele, a viagem — com flexão no ponto médio, seguida de frenagem — levaria teoricamente setenta e três horas, mas na prática um pouco mais.
Quando tudo ficou pronto, Brodersen deu instruções para que os vários sistemas fossem postos no automático e pára que toda a tripulação se reunisse na sala comum. Ao dirigir-se para ali, ido do centro de comando (que no seu espírito, lembrando cruzeiros ao longo de Juan de Fuça e mais para o norte no meio da severa beleza da Passagem Interior, ainda chamava a ponte), sentiu o peso da Terra a exercer-se sobre ele — um quarto mais do que se produzia em Deméter. Brodersen fazia bastantes viagens interplanetárias todos os anos e sabia portanto que se iria adaptar à nova gravidade muito em breve, assim como aos relógios regulados pelo dia terrestre. Mas cada vez o seu corpo era mais lento a adaptar-se àquilo. Depois de descer a escada das cabinas e de passar por um corredor circular coberto com um mole tapete verde e com as paredes pintadas de cinzento e branco, perguntou a si próprio se não estaria a envelhecer, quanto mais não fosse para Caitlín.
Além do mobiliário e do material de passatempo, a sala comum não tinha mais nada. Dado o pouco tempo com que Brodersen havia avisado da partida, ninguém tivera ocasião de decorar um pouco aquela sala ou de fazer qualquer coisa para lhe dar um ar mais acolhedor. No entanto, quando viu Caitlín, a sala tornou-se radiosa para ele.
Caitlín havia retirado da mochila um curto vestido cor de açafrão. Ficava--lhe bem. Dir-se-ia um sol, contra o largo écran à frente do qual ela aguardava de pé, extasiada. Nesse écran, Deméter enchia um quarto da cena. Mostrava, no lado de dia, um azul-cobalto a escurecer para turquesa e safira, com remoinhos de branco muito puro que aqui e ali mostravam nesgas vermelhas do solo; do lado de noite, toda a beleza de luar. O brilho intenso ofuscava as estrelas, escondendo-as à vista, até que os olhos se desviassem para a moldura e se preparassem depois para as contemplarem às miríades.
— Que esplendor, que esplendor! — ouviu Brodersen ela cantar, a meia voz. — E como não havias tu de ser uma fonte de vida?
— Era fácil! — não de pôde ele impedir de dizer.
Caitlín voltou-se, surpreendida, riu com alacridade e, descalça, dirigiu-se para ele. Parecia não sentir sobre o seu corpo o acréscimo de peso. Bem, ela não pode escapar à gravidade, foi o pensamento que perpassou por Brodersen antes de a massa querida colidir e se abraçar a ele. Caitlín cheirava a sabonete e a banho, mas cheirava também a ela própria. Desprendia-se dos seus cabelos soltos um odor a frescura, a uma frescura soalheira. Os seios comprimiam-se contra o peito dele. O beijo não tardou.
— Vamos, vamos, minha bichinha! — murmurou Brodersen quando procuraram respirar um pouco. — Os outros estão aí a chegar, não tarda nada.
— Os Outros?
Ela tinha pronunciado aquilo com um tom tão incisivo, com um ricto tão expressivo, que Brodersen ouviu a maiúscula.
— São indiscretos? — perguntou ela. — Talvez aprendam alguma coisa. Talvez até possamos permutar informações técnicas.
— Sabes muito bem que estou a falar da tripulação, minha tolinha. Brodersen desprendeu-se e continuou:
— As coisas já se hão-de complicar bastante por si mesmas, sem necessidade de esta gente ver, ainda por cima, nos teus braços o seu velho comandante, pelo qual em princípio devem ter uma certa veneração.
— E deveria esta gente encontrá-lo porventura nos braços de alguém mais? Não vais supor, pois não, que me tomariam aqui por tira puríssima tia? Não me ajusto à situação, por duas coisas pelo menos.
A alegria dele desvaneceu-se:
— E isso há-de ocasionar pior do que inveja, receio bem. Especialmente... Mais tarde... Explicarei mais tarde. Mas olha, Pegeen, meu amor, compreendo perfeitamente que esta seja uma grande aventura para ti. A menos que não seja. É assunto muito escuro. Parece que vamos entrar no gênero que continua a ser lembrado como “Quanto mais divertido, mais gente é abatida...”
Bateu com o punho na palma da mão. E continuou:
— Tu podias estar entre ela, Deus meu! Se podias! Retomando o sentido das realidades, Caitlín respondeu baixinho:
— Ou tu. Não tenhas dúvida. Se quiseres que eu dê menos nas vistas, hei-de fazer o melhor que puder, por ti.
O ardor voltou, e ela passou-lhe os dedos pela cabeça e pela linha do queixo, acariciando-lhe a barba.
— Mas — com os diabos, Daniel!, o pessimismo assenta-te mal, lutador nato que és.
— Sou realista, ou tento sê-lo. Tu vives num universo que é bom e sereno como tu. É por isso que te amo. Tu iluminas o meu em toda a extensão. A realidade, porém, a autêntica realidade, não dá alimento aos nossos caprinhos.
Brodersen sentiu as orelhas a aquecer, ouviu as suas próprias palavras pouco seguras. Precisava de uma saída para acabar com aquele sermão, e apegou-se àquilo que lhe parecia mais a propósito:
— Deixa-me dar-te um exemplo. Quando eu cheguei, apanhei-te a dizer que Deméter tinha de ser ... bem ... tinha de ser vivífero porque é belo. Isso não tem sentido. Cada um dos planetas que eu vi é belo à sua maneira, e quase todos estão mortos e sempre estiveram. Tu extrais mais vida da matéria do que a própria matéria.
Caitlín reagiu com um sorriso:
— Pensas porventura que nunca encarei á dor e a morte, sendo eu uma paramédica? Ou que nunca me sentei a contemplar um fóssil e ...
Deteve-se. Acabava de entrar um dos tripulantes.
Os restantes vinham logo atrás. Brodersen apertou a mão a cada um deles, apresentou Caitlín àqueles que ainda não a conheciam. A todos perguntou pela saúde, pediu cerveja e refrescos da geleira, e por fim mandou sentar a tripulação diante dele, com a sua jovem na ponta, com ar reservado. Aproximou-se da mesa de jogo, balouçou as pernas, preparou o cachimbo e o tabaco.
— Okay! — observou ele em inglês, que os seus companheiros utilizavam como língua comum com mais freqüência do que o espanhol. — Para começar, deixem-me dizer que não sei como lhes hei-de agradecer, e melhor será não o tentar. Não devemos ser muito duros para com aqueles que preferiram não virem conosco. No caso presente não podemos com certeza dizer que haja decisões absolutamente boas ou más. Uma pessoa tem de escolher. E pode suceder, quando chegarmos ao fim, vermos que melhor teria sido se houvéssemos escolhido de maneira diferente. Penso que não. Mas, aconteça o que acontecer, posso assegurar-vos do fundo do coração e com toda a veemência que nunca esquecerei a vossa dedicação de hoje.
Não simples dedicação, refletiu Brodersen. Eles são demasiado conscientes e demasiado independentes para se tornarem em instrumentos servis, seja de quem for. De contrário, não os teria eu recrutado. Mas que são eles? Sabê-lo-ão eles próprios? Arriscar os ossos a enfrentar estrelas hostis não é a mesma coisa que arriscar a honra a enfrentar os poderes públicos devidamente constituídos. Em catorze, nove recusaram. Não creio que entre estes cinco que aqui estão eu vá encontrar duas motivações idênticas. Como posso fazer uma idéia das razões que os levaram a aceitar? Impossível perguntar-lhes abertamente. Para não falar do que isso poderia suscitar. No entanto, não há dúvida, o conhecimento deste aspeto é da mais alta importância, “no es verdad”, meu velho? O seu olhar deteve-se em cada um deles.
Stefan Dozsa, imediato e oficial de eletrônica. Com ares de importante como sempre.
Philip Weisenberg, mecânico. Observador calmo.
Martti Leino, mecânico assistente. Passando os olhos ferozmente de Caitlín para Brodersen e vice-versa.
Susanne Granville, operadora de computadores. Solícita, curvada para a frente na cadeira, parecia não perder um gesto do comandante.
Sergei Nikolayevitch Zarubayev, atirador e principal piloto da nave. O seu aspeto usualmente sóbrio iluminou-se quando Caitlín lhe deu um enérgico beijo ao encontrarem-se. Pareciam velhos amigos.
Basta de divagações. Vamos ao que interessa!
— A minha mulher já lhes explicou a embrulhada em que estamos metidos — retomou Brodersen —, mas naquelas circunstâncias — comunicação por escrito e falatório apenas para despistar, não é verdade? —, é provável que ela não tenha podido entrarem muitos pormenores. Eu vou dissertar sobre o assunto, dando-vos os esclarecimentos que desejem, aqui em conjunto hoje ou individualmente mais tarde. Por agora, porém, permitam-me que resuma a situação.
Brodersen enumerou os pontos, com os grossos dedos:
— O robô de observação na passagem, que vocês conhecem, assinalou aquilo que eu ia jurar ser a Emissário, de regresso. Ela foi escoltada para o Sistema Solar — para onde mais o poderia ser? — e depois disso não se ouviu mais nada a seu respeito. Alguns de vocês que por acaso estavam mais perto de mim ouviram-me rosnar as minhas suspeitas. Posteriormente, certas investigações elementares confirmaram-nas plenamente. Quando fui falar com a governadora, ela contou-me toda uma história da carochinha, entremeada de alusões a perigos pavorosos que estavam a ameaçar toda a galáxia, e acabou por me pespegar com prisão em casa e impor silêncio à Lis. Ora eu pus-me a andar, e aqui estamos nós.
“Isto não é exatamente o que vocês tinham em mente quando se inscreveram como voluntários para a Chinook e quando depois ficaram a trabalhar para mim, pois a vossa esperança era terem uma oportunidade de irem às estrelas. Felicito-vos pelas vossas qualidades intelectuais. Vocês viram o caminho que tiveram de escolher, e compreenderam que se não fizermos o que vamos fazer ninguém mais o fará.
“Suponho que Lis vos explicou aquilo de que eu suspeito. Não se trata do Governo da União a agir no seu conjunto, mas antes de uma facção dentro dele. A simples divulgação do que se passa faria varrer do céu os conspiradores, se nós não lhes dermos tempo para consolidarem aquilo que eles pretendem.
“A minha intenção é ir à Terra e falar com várias pessoas que eu conheço, em especial com a família Rueda. Isto será feito com toda a discrição para evitar possíveis alarmes. Entretanto vocês podem aguardar a bordo, na nau. Oficialmente são apenas uma tripulação a operar a Chinook para os seus fretadores. E talvez tudo fique por aqui, pelo que nos diz respeito. Talvez as pessoas com quem vou contactar possam fazer o resto. Muito gostava que assim fosse. Mas se tal não acontecer ... Bem, a minha mulher preveniu-vos, não é verdade? Não faço a mínima idéia do que acontecerá. Vou utilizar os meus trunfos de harmonia com as cartas do adversário, e se fizer má jogada vocês perdem também.
Brodersen apontou para eles a ponta do cachimbo antes de enchê-lo. E prosseguiu:
— Não sei se ainda restam nos livros quaisquer leis sobre a pirataria. Vocês podiam ficar sujeitos a elas. Escutem. Se isto vai além do que vocês contavam, façam-me um último favor e digam-mo. Entendido? Eu ponho-vos oficialmente fora da questão. Deixo exarado no livro de bordo que vocês protestaram. Manter-vos-ei sob as mais ligeiras restrições e deixar-vos-ei partir no primeiro lugar seguro que cada qual queira escolher. Concordam? Digam a vossa opinião.
Calcou o tabaco e acendeu-o enquanto esperava. Seguiu-se o silêncio.
— Era o que eu imaginava — disse ele, na devida altura. — A oferta fica em aberto enquanto seguirmos sem novidade. Uma vez, porém, que alguém nos ataque, será demasiado tarde para voltarmos atrás. Compreendido?
Irei eu matar quem recuar sob o fogo ... entre estes meus amigos? Sim, tem de ser. E invocarei a lei do espaço em minha defesa, a menos que todo este safari provenha de um terrível erro da minha parte. Nesse caso, terei o destino que os meus antepassados reservavam aos bandidos.
A ventilação funcionava a toda a velocidade. O fumo dava à língua de Brodersen uma sensação calmante.
— Por mim, é tudo — observou ele. — Perguntas? Comentários? Protestos?
— Sim — disse Martti Leino, inclinando-se para a frente, num movimento que fez salpicar a cerveja da caneca que segurava na mão. Em tom duro, perguntou: —E o que está a fazer aqui a bordo Miz Mulryan?
Era de esperar. Brodersen estudou-o antes de responder. O irmão mais novo de Lis não se parecia com ela, apresentando mais traços do ramo Ladogan da sua ascendência: pequeno, atarracado, nariz achatado, um contorno ligeiramente asiático na face, com cabelos lisos muito pretos e olhos azuis um tudo-nada oblíquos. A sua jovialidade habitual tinha desaparecido por completo.
— Foi quem me escondeu depois de eu fugir — disse Brodersen..— Sem ela, eu teria de ficar em qualquer lugar habitado, com risco de ser reconhecido. E sobretudo ela vai ser a nossa médica.
— Ela?
Era um sarcasmo sem disfarces.
— Trabalha no Santo Henoch e está perfeitamente à altura de cuidar de nós no caso, por exemplo, de ferimentos. Além disso, pode desempenhar as funções de contramestre. — Brodersen inclinou a cabeça e rematou: — Temos trabalho adequado para ela.
Leino lançou um olhar de poucos amigos a Caitlín, que permanecia sentada, mãos cruzadas sobre os joelhos, e lhe dirigiu um leve sorriso de conciliação.
— Sim, não há dúvida que a trará sempre muito ocupada. E evidente! — retorquiu ele.
— Calma! — pediu Weisenberg.
Brodersen empertigou-se e pôs nas suas palavras as chicotadas cáusticas do soldado-aristrocrata:
— Basta, Sr. Leino. Se tiver alguma queixa contra alguém, incluindo o comandante, queira formulá-la de maneira precisa. De contrário, trate a sua colega de bordo com o respeito que ela merece.
O homem recostou-se na cadeira como se tivesse recebido um soco no estômago. Pu-lo no seu lugar com rudeza, não foi assim? — concluiu Brodersen. Mesmo que eu tivesse perdido a cabeça por causa da Pegeen, preciso de ser comedido.
— Calma, calma! — repetia Weisenberg. — Deixemos as palavras desagradáveis, por favor. Não é este o momento para elas. Miz Mulryan, seja bem-vinda à nossa nave. — As rugas cavaram-se em torno do seu sorriso.
— Eu não esperava de maneira nenhuma compartilhar o meu trabalho de contramestre.
— Estou-lhe muito grata — suspirou ela, e deixou pousar nele por mais uns segundos um olhar ardente. Weisenberg era um homem de estatura média, descarnado, anguloso, com uma saliente maçã-de-adão, pequenos olhos castanhos por baixo de espessas sobrancelhas. Por hábito, usava boné escocês a cobrir o cabelo branco, cortado rentinho, assegurando àqueles que inquiriam que desempenhava as funções de mecânico-chefe da nave.
Também eu lhe estou agradecido, Phil, procurava exprimir o comandante. Era provavelmente desnecessário. Os Weisenbergs e os Brodersens eram velhos amigos.
Susanne Granville pousou a mão ao de leve no ombro de Caitlín.
— Sim, seja bem-vinda — disse ela no seu inglês com acento francês.
— Há-de compreender que os astronautas têm horror a pessoal sem experiência. Não é assim, Martti? Mas estas coisas, estou convencida, poderá aprendê-las rapidamente. Se a puder ajudar, diga-me. Peço-lhe.
Belo gesto de Su, quando ela é tão apagada e Pegeen tão maravilhosa, foi o pensamento que passou por Brodersen. Conteve-se. Que diabo estou eu para aqui a magicar? Su é uma excelente moça, e é tudo.
Zarubayev levantou a mão. O atirador era um homem alto, sólido, com aparência de magro. Cabelo louro a cair até aos ombros e uma barbicha, ambos fora de moda em Deméter, salvo na área da sua residência em Novy Mir, serviam de quadro a uma expressão tolstoiana.
— E quanto a exercícios de combate? — perguntou ele.
— Como? — rosnou Brodersen.
— O senhor disse que devíamos estar preparados para combater, se fôssemos às estrelas. “Meramente no caso de ser necessário”, foram as suas palavras. Temos portanto armas já montadas como as da Emissário, e certo número de outras mais pequenas. Agora o senhor fala de um possível reencontro. Pirataria foi o que disse.
— Espere um momento — protestou Stefan Dozsa.
— Não, deixe-o continuar — disse Brodersen ao imediato.
— Capitão — respondeu Dozsa no seu próprio acento —, não tenho objeções a levantar à idéia, mas apenas à linguagem. Aprendi em rapaz que o Estado é o inimigo natural do povo. Se aceitarmos a sua semântica, perdemos meia batalha. Nós não somos piratas: somos libertadores.
Caitlín sentiu-se excitada. A emoção dava uma tonalidade especial à sua voz:
— O senhor está a falar com fanatismo. O meu país lembra-se muito bem. Pode crer, muito bem.
Dozsa riu. Era um homem -trigueiro, um pouco para o gordo, com olhos de amêndoa numa cara larga, um tanto achatada.
— Chame-nos polícia privada, então. Ou evangelistas. Ou lunáticos. Talvez até seja esta a melhor designação. Piratas, não. Os piratas lutam com a ganância do dinheiro.
— Diga da sua justiça, Sergei — pediu Brodersen.
— Julgo que devíamos ter instrução e treino com armas pequenas — declarou Zarubayev. — Não há dúvida que toda a gente a bordo sabe atirar, mas só o senhor e eu, capitão, estivemos no Comando de Paz e aprendemos técnicas de combate. De combate no espaço, também. Podemos ser os instrutores. Temos diante de nós alguns dias antes de chegarmos à máquina T, mais alguns dias ainda para chegarmos da passagem solar à Terra. E quem pode dizer quantos mais dias para além disso? Tempo suficiente para exercitarmos os outros em meia dúzia de princípios, para ganharmos um pouco de prática.
— Bem... — murmurou Brodersen, despegando as ancas apoiadas à mesa de jogo. — Não vamos procurar complicações.
— Um pouco de treino não faz mal a ninguém — volveu Dozsa. — Nesta viagem, a maior parte de nós não vai ter muito com que se ocupar. Eu receberia de braços abertos uma coisa destas que me ajudasse a preencher as horas de folga. E os restantes? — Lançou um olhar a Leino, ali sentado, impassível. — Talvez isso ajude a sentirmo-nos todos mais unidos.
A discussão generalizou-se. Depois de se chegar a acordo sobre a proposta e sobre alguns pormenores que dela resultavam, surgiram mais assuntos. Haviam-se passado duas horas quando Brodersen deu por finda a conversa com a tripulação. Os que não estavam de serviço podiam ainda ter ficado na sala comum, mas ninguém ficou.
À saída, Weisenberg murmurou:
— Vou ver o que posso fazer deste Martti, Dan, mas o assunto é realmente consigo. Não é assim?
— Ufa! — exclamou Brodersen quando ficou sozinho com Caitlín. Ela pegou-lhe nas mãos.
— Pobre de ti! Não restam dúvidas, não é nada agradável ser-se comandante. Tenho razão no que digo?
Brodersen levantou um canto da boca e respondeu:
— Também não hás-de achar muito divertido ser contramestre, minha querida. A tarefa é um pouco mais complexa do que cozinhar e tratar da despensa, embora isto não te deixe mãos a medir. Tu distribuis os gêneros,
manténs os registros em dia, olhas para que a carga não se desequilibre ... Melhor seria que eu começasse desde já a ensinar-te. Caitlín aproximou-se ainda mais dele.
— É assim tanta pressa? — perguntou ela.
— Receio que sim. Caitlín suspirou:
— Ah, bem! Mais tarde! •— e fez um gesto para o écran perto dela. — Ali, ao longe, há também sempre um “mais tarde”, enquanto vivemos. Não é assim, meu amor?
Brodersen não respondeu, pois estava com os olhos presos nela, tendo como fundo as estrelas.
Eu era um grande e soberbo salmão, mas não tinha palavras para grandeza nem para orgulho. Eu era-os. Os meus flancos luziam com o azul do aço, o meu ventre espelhava o branco da prata, mas tudo quanto conhecia de metais era um anzol que eu tinha mordido e que havia dilacerado a minha carne até que dele me libertei. Eu era um com a água, e sempre o tinha sido. Nos primeiros dias da minha vida, ela ondeava e sussurrava à minha volta enquanto eu me enroscava no cascalho e a sombra de um lúcio deslizava entre centelhas amarelas da luz solar. Mais tarde a água cresceu, formou cachão, acariciou-me, envolveu-me, à medida que eu me lançava rio abaixo para o mar. Quando a água se tornou salgada, despertou em mim um pressentimento que eu já tivera no ovo, e pulei cheio de alegria, através de uma catarata repleta de esplendor. O ar cravou então um fino gume através das minhas guelras. Depois, durante anos sem conta vagueei pelo mar, cacei, apanhei, cravei os dentes na suavidade a debater-se, e exultei.
Mas por fim? como trazida pelo vento, surgiu uma fragrância que despertou em mim nostalgia, e lancei-me com todo o vigor para o recanto donde tinha vindo.
Éramos muitos. Éramos muitos a subir um rio que rugia contra nós, embora se animasse de vida com o cintilar dos nossos corpos. Éramos nós agora a presa. Morríamos e morríamos. Mas não havia dúvida de que cada morte trazia consigo o mesmo júbilo que os vivos sentiam. Atingi o meu objetivo. A vida cantava dentro de mim.
Na paz de uma lagoa encravada nas montanhas escavei com a cauda no cascalho que outrora me havia albergado, e abri uma cova para os meus próprios filhos. Eu não compreendia que era assim que eles iriam nascer — eu teria comido qualquer deles se os encontrasse —, e no entanto nesse momento eu amava-os. E agora ele procurava por mim, ele. Foi o momento mais alto da minha vida.
Havia muito que eu estava preparado para morrer. Foi então que chegou o Enviado e pegou em mim, levando-me para a Unidade. Eu era Peixe.
Deméter diminuiu rapidamente no céu, reduzindo-se de um mundo para um globo, para uma pequenita foice azul, para um ponto a brilhar no meio de uma infinidade de outros pontos. A tripulação tomou os seus postos por turnos. Tinha sobretudo de estar bem atenta ao que pudesse surgir, quando a Chinook seguia num vôo inteiramente automático como este. Só o trabalho da contramestre era diferente. Enquanto esta, muito satisfeita, se ocupava da cozinha, preparando a primeira refeição da viagem que não seria simplesmente retirada da despensa e aquecida, Brodersen estava sentado nos aposentos do comandante sem mais nada que fazer a não ser permanecer acessível. A sua cabina interior era de tamanho confortável e bem mobilada: cama de casal (uma cama de dobrar durante o dia, para dar mais espaço), cadeiras, armário, cômoda, lavabo, estantes, mesa, terminais de dados e de comunicações, lava-louça, aquecedor de pratos, uma pequena geleira, écrans para captar imagens tanto do exterior como do interior. Num suave murmúrio, os ventiladores mantinham o ar continuamente em circulação, sempre puro apesar do cachimbo de Brodersen. Na fase em que se encontrava do seu ciclo de temperatura e ionização, o ar tinha um aroma parecido ao do cair da noite. As divisórias, de um cinzento-pálido, raiadas de azul, estavam sem quadros, as estantes sem livros, todo o alojamento sem quase nada de pessoal, pois não houvera possibilidade de trazer senão aquilo que Brodersen e Caitlín tinham nas mochilas. No entanto, aquele apartamento podia-se tornar cheio de vida sempre que eles quisessem, pois se encontrava no banco de memória da nave uma boa porção de toda a cultura do gênero humano.
Brodersen sabia que devia fazer uma sesta e aproveitar uma boa tirada de sono depois de jantar. Havia muito que não descansava. Extenuado, não podia mais. O tabaco só por si não o acalmava, e no espaço recorria muito pouco ao álcool e ao haxixe. Resolveu renovar velhos conhecimentos. Puxando pelas alavancas nos braços da sua cadeira, abriu as câmaras de vácuo que a mantinham contra as variações da aceleração e deslocou-a para a frente dos terminais, onde o peso do seu corpo a fixou de novo ao chão. Depois de marcar num quadro os códigos de referência e de os estudar por uns momentos, deu início à Quinta Sinfonia de Beethoven no sistema de áudio e a “Trinta e Seis Vistas de Fuji”, de Hokusai, na parte vídeo, a intervalos que iria regular manualmente e instalou-se de novo. Talvez a seguir um Monet ou mesmo um Van Vogh, pensou ele, ou então nenhum quadro mas ... hum ...um pouco de Kipling. Há anos que não leio “Soldiers Three”.
Isto era quase tão exotérico quanto o seu gosto artístico exigia. Brodersen considerava-se a si mesmo um homem prosaico, embora não desprezasse os prazeres da Terra — tais como os finos manjares que Caitlín e Lis, assim como a maior parte das mulheres apetitosas sabiam preparar — ou outras subtilezas. Os seus pais haviam tido o cuidado de lhe darem uma sólida instrução, mas o seu espírito ficara perfeitamente pragmático até entrar para o Comando de Paz. Despertou nele então o desejo de compreender melhor aquilo com que deparava em volta da Terra e mais além. Isso levou-o a ler muito de história, antropologia e disciplinas afins, que por sua vez despertaram nele o desejo de conhecer os grandes criadores. A sua primeira mulher tinha encorajado nele aquele interesse e a segunda estava ainda a fazer o mesmo.
“Não sou um intelectual”, observava por vezes. “Prefiro os pensadores.” No entanto, tinha dotado a Universidade de Eópolis com uma cadeira de humanidades. A espécie precisava de ser preservada, para compreender e apreciar a sua própria herança ... à face dos Outros, no conjunto do cosmo.
Estava a começar a sentir os músculos do pescoço e das espáduas a descontraírem-se quando tocaram à porta. Diabo! Maçadas ainda! O comandante está sempre disponível. Ergueu o corpo e dirigiu-se para a cabina exterior. Era pequena, estritamente um sólido gabinete, e só tinha de especial as complicadas ligações eletrônicas para o centro de comando. Já sentado à secretária, carregou no botão para abrir. A porta deslizou, deixando-lhe ver um pouco do corredor que rodeava aquele piso onde estava alojada a tripulação.
Era Martti Leino. Avançou pé ante pé e, como se estivesse a recitar um ritual bem planeado, lançou-se numa fórmula muito polida de cortesia:
— Solicitava-lhe uma entrevista em privado, comandante — articulou ele.
Claro, eu já sabia que havia de acontecer.
— Sim, senhor — volveu Brodersen, e fechou a porta. — Diga-me apenas: desde quando precisa a minha tripulação de ser tão protocolar para comigo, para já não falar do meu próprio cunhado? — Acenou com a mão: — Puxe por uma cadeira. Qualquer delas.
O homem, ainda novo (37 anos demeterianos), obedeceu com movimentos irregulares. Corava e empalidecia, com as feições a modificarem-se-lhe. A respiração era aos repelões. %
— Mas você parece o profeta Naum, todo comprometido — observou Brodersen. — Ponha-se à vontade. Uma vez que não fuma, quer tomar alguma coisa?
— Não.
— Então diga lá.
— Você já sabe.
Como aquela cara ali diante dele permanecia bem atenta, Leino explicou:
— Aquela sua fêmea.
O rapaz não está descontrolado de todo, apercebeu-se Brodersen. Bem. Detesto que ele lhe chame qualquer nome que não me deixe uma alternativa.
Saboreou o gosto picante do seu cachimbo, enquanto ia escolhendo as palavras. A voz, essa manteve-se macia:
— Quer referir-se a Miz Mulryan? Para sua orientação, devo dizer-lhe que ela não é fêmea de ninguém. E senhora de si mesma. Se você pensa de maneira diferente, tente arrastá-la para qualquer caminho que ela já não tenha escolhido.
— Ela veio para aqui... descaradamente ... consigo.
— E será assunto que interesse a mais alguém a não ser a nós mesmos?
— A Lis, seu sacana! — gritou Lein. Levantou-se até meio, punhos cerrados. Voltou depois a encostar-se na cadeira e colou os queixos.
— É evidente: quando eu disse “nós mesmos” queria referir-me de fato a “nós mesmos”. Lis sabe, e não se importa.
— Ou será demasiado altiva e demasiado leal para exprimir aquilo que sente? Conheço-a há mais tempo e melhor do que você, Daniel Brodersen.
Há mais tempo, sim, pensou o capitão. Melhor? Pode ser, também. A família na fazenda de Trollberg era grande. Sete filhos. Lis a primeira, Martti o quinto. Para mais, uma enorme região inculta a rodeá-la. Partilhavam todo o trabalho e o prazer e a descoberta e por vezes o perigo, o que os tinha unido estreitamente. Por quaisquer razões obscuras, os laços entre ambos foram sempre particularmente fortes. Quando Martti chegou a Eópolis para estudar engenharia nuclear, tinha-se Lis divorciado, e partilhavam os dois o mesmo apartamento. Ela foi trabalhar para a Chehalis, tornou-se cada vez mais imprescindível e atraente para o seu chefe ... e em tom amigável recusou as suas propostas, o que era bastante raro, até que por fim se casaram. Porque ela assim o quis, o irmão foi padrinho do modesto casamento.
— Deixe-me lembrar-lhe que sou marido de Lis há quase dez anos — observou Brodersen, com serenidade.— Não lhe parece que isso me permite compreendê-la melhor do que você em certos aspetos?
— Dez anos, sete da Terra. Não há um ditado na Terra acerca da comichão dos sete anos?
A expressão de Leino era a de uma criança em ar de desafio.
— Quer insinuar qualquer ligação ocasional?
Brodersen continha a sua cólera. A confissão sardônica agitava-se dentro dele, pois já tivera várias ligações ocasionais. Desnecessário deixar transparecer aquilo. Inclinou-se para diante, braços apoiados na mesa, cachimbo na mão direita com a extremidade virada para o seu interlocutor, e agitou-se um pouco.
— Marti — retorquiu ele. — Escute. Escute bem. Você não sentiu ainda, evidentemente, que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Ia apostar em como lá chegará, mas isso não interessa de momento. 0 que agora nos interessa aos dois é isto: a sua irmã aprova este entendimento que existe entre Caitlín e eu. Lis e Caitlín Mulryan são excelentes amigas. — Exagero um pouco, mas evidentemente porque nós os três só raras vezes nos encontramos juntos. Por certo que elas são boas amigas, e mais amigas se hão-de tornar. — Se não quiser acreditar na minha palavra, dou-lhe licença para lho perguntar, a Lis, quando regressarmos. Está bem?
Leino remascou:
— Não. Porque ela iria sem dúvida nenhuma mentir — e caiu no seu dialeto de origem —-, para o defender a si, a quem jurou fidelidade, escondendo de mim as suas mágoas.
Brodersen cravou os olhos nele:
— Você também me conhece um pouco. Pensa a sério que sou o tipo de querer deliberadamente ferir a minha mulher?
Leino mordeu o lábio. O rapaz procura ser razoável, pensou Bordersen. Está a reconsiderar.
Acabados os estudos, também Leino havia ido trabalhar para a Chehalis. Se assim se pode dizer, aquilo era nepotismo ao inverso, pois Deméter tinha uma falta crônica de técnicos experientes. A unida medida de favor que Brodersen tinha mostrado, por sua vez, havia sido destacá-lo para alguns projetos no espaço — exploração, prospecção, estabelecimento de bases mineiras num asteróide e num cometa — em que também ele, Brodersen, havia participado. Não o teria feito se Leino não fosse competente. Os humanos consolidam estreitas relações entre si em tais condições.
O comandante aprofundou a sua vantagem:
— Nem Lis nem eu vemos nisto qualquer coisa de desleal. Use da sua imaginação. Há um milhão de diferentes infidelidades que um esposo monógamo pode cometerem relação ao outro, e muitos deles as cometem. Mesquinha crueldade. Negligência. Esquivar-se à parte que a cada um cabe na responsabilidade. Simples baixeza, desprezível e vexatória, ano após ano. Desonestidade, em certos casos mais extremos. E assim seguidamente. Você tem razão, a sua irmã não se sentaria tranqüila para julgamento — para um autêntico julgamento. Acalme-se, portanto. Você teve uma surpresa, e nada mais. Acabará por venceria.
— A humilhação — objetou Leino. —Andar assim a exibir em público a sua amante.
O cachimbo de Brodersen estava a apagar-se. Ele recostou-se, espicaçou o fogo, esboçou um sorriso contrafeito e replicou:
— Nos tempos que vão correndo? Vejamos, estou de acordo em que Lis e eu somos excepcionais. Fazemos o melhor que podemos para manter em recato os nossos casos privados.
— Os vossos casos? — repontou Leino. — E você gostava que ela lhe fizesse o mesmo a si?
Brodersen escolheu os ombros:
— E maior e vacinada. Além disso, não creio que Lis me engane. De qualquer maneira, Caitlín veio para bordo numa situação de emergência. Só com a ajuda dela podíamos estar a caminho. E nenhum de nós, elas ou eu, nenhum de nós tem muita vantagem em ser hipócrita.
Isso, pensou ele, no que se refere a mim próprio, pode ser a minha mais refinada hipocrisia até hoje. Bem, um homem totalmente sincero seria um monstro.
O tom de censura estava a atenuar-se. Acabou de todo quando Leino se pôs de pé bruscamente, mãos crispadas ao alto, rosto contraído, e gritou:
— Significa isso, seu porco imundo, que você também corromperia a Lis? Estou-me a marimbar para o que se passa consigo. Mas, por Deus que a criou a ela, você há-de tirar as unhas da alma de Lis.
O instinto levou Brodersen a responder:
— Silêncio! — Deu à voz o peso necessário. E continuou: — Fique sentado. É uma ordem.
Os astronautas aprendem logo desde a primeira hora que uma nave cheia de vidas humanas depende da imediata obediência, Leino cedeu. Salvo o ventilador e o seu respirar pesado, nada mais se ouviu no gabinete durante um momento, momento esse que Brodersen mediu até reatar, em voz pausada: — Martti, irmão de Lis, escute-me. Você falou do orgulho dela. Você admira-lhe também a inteligência. Então que diabo o leva a supor que pudesse ser corrompida? Simplesmente, Lis escolheu seguir caminho um pouco diferente daquele que você desejaria para ela. Se está preocupado com a fidelidade de sua irmã, com a sua moral, então porque não levantou a mínima objeção quando ela se divorciou do primeiro marido? Lis havia-lhe feito, a ele, um juramento sobre a Bíblia, lembre-se disso. O primeiro marido é da Santa República do Ocidente.
Leino olhava fixamente, de boca aberta.
— Porque você sabia que, apesar de ele ter um cérebro impressionante, não passa de um arrogante fideputa, sem consideração nenhuma para com os outros. E de uma delicadeza de vistas confrangedora.
Após breve pausa, Brodersen continuou:
— Se algum dia Lis chegar à conclusão de que eu sou tão mau como ele, manda-me pastar também, e você rejubilará, não é verdade? É minha intenção fazer que ela não chegue a isso. No entanto, diga-me: que é o divórcio e o recasamento senão poligamia no tempo em vez de o ser no espaço?
Deixou a pergunta a pairar, antes de prosseguir:
— Não faça mau juízo de mim. Eu respeito os seus princípios. Nas terras donde você vem, eles são veneráveis. Tradições feitas e consolidadas. A família acima do indivíduo. O lar a apresentar ao mundo uma aparência sem falhas... Tudo cantigas! Sim, eu também aprendi isso desde mocinho. Não quero dizer que no fundo seja errado. Por tudo quanto sei, é verdade absoluta. Acrescento apenas que não é a única idéia com que uma pessoa possa viver, ou com que viva. E você, Martti — sem que eu pretenda defender um fato, mas meramente assinalá-lo —, não tem estado muito exposto a alternativas. Foi para Eópolis, que a si própria se chama cosmopolita, diretamente das florestas do interior. Ora Eópolis não é cosmopolita. É um cacho de cidades rústicas, diferentes umas das outras, aglomeradas em escassos quilômetros quadrados. Você nunca viu a Terra. Lis viu. Além disso, você tem trabalhado no duro toda a vida, e com freqüência anda no espaço, o que lhe limitou ainda mais os contactos humanos. Repito: não pretendo que mude a sua maneira de ver. Em minha opinião, você não teve grandes oportunidades de aprender a tolerância, a verdadeira tolerância, quando ela é precisa, quando estão em causa aqueles que você estima. Procure aprendê-la, meu amigo.
— Mas a lei de Deus ... — murmurou Leino.
Brodersen, agnóstico desde a puberdade, encolheu os ombros de novo:
— Não se preocupe com Deus. Deixe-nos arrumar às coisas com os Outros, primeiro.
Em seguida voltou ao ataque:
— Sem o andar a espiar, já reparei que você uma vez ou outra não dorme, para se dedicar às suas rezas depois de um jogo de pôquer até tarde ou de outra coisa no gênero. E ouvi dizer que se gaba um pouco do que fez com as senhoras. E já o vi a assediar uma ou duas de quem se murmurava. Isto para não mencionar as bacanais do Verão na sua região de origem. Leino corou e desculpou-se:
— Mas eu sou solteiro.
— E, é claro, imagina que vai esposar uma virgem. E que não haverá mal nenhum se depois de longe em longe fizer uma folia, desde que seja discreta.
Brodersen riu alto e acrescentou:
— Martti, eu já estive nas Terras Altas bastante tempo. Disse-lhe que elas me lembravam muito o meu país. Deixemo-nos de jogar às escondidas, está certo?
A troca de palavras continuou assim de cá para lá, de lá para cá, durante meia hora. Leino ia-se aquietando à medida que o tom descia. Para concluir, Brodersen resumiu a situação:
— Está bem, você não aprova, e eu não esperava que aprovasse assim tão de repente, mas há-de concordar que a nossa missão é demasiado importante para corrermos riscos por causa de uma questiúncula pessoal. E Caitlin é importante também. Concorda?
Leino procurou dominar-se (estava à beira das lágrimas) e fez que sim com a cabeça.
— Bem, é tudo quanto ela e eu podíamos razoavelmente pedir — disse Brodersen. — No seu próprio interesse, no entanto, assim como no nosso, vou-lhe fazer um pequeno pedido. Estritamente um pedido, compreenda.
Os dedos de Leino contraíram-se, unidos, sobre os joelhos.
— Se puder — continuou Brodersen —, não a ponha a distância de maneira fria e solene. Lembre-se: Lis não procede assim. Seja um pouco amigo. Por certo que Caitlin gostaria também de ser sua amiga. E eu gostaria que vocês os dois o fossem. No fim de contas, já lhe expliquei que não houve qualquer doidejar súbito entre nós. Eu estou a tentar pensar com anos de avanço. — Sorriu. — Dê-lhe um poucochinho de oportunidade e haverá de apreciar a sua companhia. Por exemplo, você gosta de baladas. Pois Caitlin canta-as às mil maravilhas.
— Estou seguro de que assim é — disse Leino.
— Verifique por si mesmo — insistiu Brodersen. — Terá mais do que tempo para isso, mesmo depois de iniciarmos os exercícios militares. Noventa por cento dos altos feitos consiste em aguardar com paciência que aconteça qualquer coisa. Caitlin pode animar essas horas sem fim.
Depois disso, sozinho, cismava com o seu cachimbo e com uma gota de uísque que se havia permitido. Fazemos assim mais um sórdido compromisso que não vai durar muito. Afim de que o nosso empreendimento — esqueçamos a nossa vida de todos os dias —possa ir para a frente. E sempre gostava de saber: terão os Outros de proceder também desta maneira?
Se soubéssemos com precisão para onde olhar, veríamos a máquina T a cintilar como o mais pequeno ponto de luz no meio das estrelas, à popa, pois a Chinook tinha fletido e estava-se agora a afastar dela. Susanne Granville havia, no entanto, regulado o écran na sua cabina para apanhar Febo. Reduzido pela distância a um mero brilho lunar, de tal modo que a coroa e a luz zodiacal lançava as suas luminosidades naturais como nácar, aquele disco excedia ainda em intensidade muitos dos distantes sóis aos olhos de um observador.
— Um último panorama familiar — explicava ela a Caitlín. — A passagem agora já é desconhecida para mim. Nunca guiei uma nave através dela, a não serem simulações no treino. Está a ver, nós tínhamos ... imaginado? ... Sim, tínhamos imaginado diversas tentativas entre aqui e Sol, antes de arrancarmos para qualquer outro destino.
— É necessário realmente que você aqui esteja? — perguntou Caitlín. — Disseram-me que este tipo de passagem é exato — sem passos de dança, sem nada que se pareça com uma marcha de parada, mas antes como uma peça de xadrez a saltar de casa para casa — e que qualquer autopiloto pode conduzir uma nau assim.
— Quase sempre isso é verdade, e de fato o autopiloto assegura o trabalho. Mas é pequena a variação permissível. Se excedermos a tolerância, enfiaremos por outra passagem. E para onde nos levaria ela? Só Deus sabe, e eu não acredito em Deus. Muito possivelmente iríamos dar a qualquer ponto no espaço interestelar, sem qualquer máquina que nos valesse, e apenas com o vácuo à nossa volta, até morrermos. Nenhuma sonda partida do Sistema Solar voltou de lá, nunca.
Susanne sentiu um calafrio com estas últimas palavras. E prosseguiu:
-— É uma regra de prudência que uma linker deve estar permanentemente em circuito durante este trajeto, pronta a tomar imediatas medidas no caso de surgir qualquer imprevisto ... Aqui temos o chá. Que quer tomar com ele?
— Leite, se faz favor. Não, esquecia que não temos leite fresco. O mesmo que você tomar, e muito obrigada.
Caitlín deixou a sua colega servir o chá, trazido na louça da nave. Deixou vaguear os seus olhos verdes.
Pouco encontrou a não ser a imensidade, no écran. Como todos os outros, Susanne havia embarcado à pressa. À parte os alojamentos do comandante, todas as instalações diferiam apenas entre si nas cores. O compartimento de Susanne era rosa e branco. A não ser isto, nada mais que não fosse o aroma da chaleira e das chávenas o distinguia dos restantes.
Duas pessoas a ocuparem o mesmo compartimento dar-lhe-iam uma nota diferente, e tudo havia sido concebido tendo em vista essa possibilidade. Mas dir-se-ia que a operadora de computadores haveria de ficar solitária. Pequena, magra, de ombros arqueados, braços compridos, feições ligeiramente raninas, cabelo preto muito fino a cair-lhe em rabo-de-cavalo, parecia mais velha do que era, com os seus 28 anos terrestres. Uma voz forte e um quimono sem elegância não a beneficiavam. As pessoas tinham tendência para se concentrarem nos seus olhos, que eram belos: grandes, com longas pestanas, de um castanho muito claro.
— Eu podia ter trazido melhor chá do que este, se tivesse tempo — desculpou-se ela. — Aquilo que você põe na nossa mesa, dos mantimentos habituais, sei eu apreciá-lo, pois conheço suficiente cozinha para isso. Quando eu tiver uns momentos livres, se você quiser, vou ajudá-la.
— O meu trabalho não me cansa lá muito — disse Caitlín. — No entanto, se quiser entreter-se um pouco, terei muito prazer na sua companhia.
— Penso que nos devíamos conhecer melhor — propôs Susanne timidamente. E pegou numa cadeira, sentando-se em frente da sua colega. — Esta viagem pode vir a ser longa ou perigosa.
— Ou ambas as coisas. E somos nós as duas únicas mulheres a bordo. Além disso, você pode falar-me do resto da tripulação. Que diabo de sorte a minha em não conhecer mais nenhum homem além de Sergei Zarubayev, a não ser para os cumprimentar ou para os seringar com perguntas técnicas! Dan tem-me sempre muito ocupada, a aprender as minhas funções.
Susanne corou:
— Ele sabe explicar melhor do que ninguém. Tem jeito para isso. Eu não vou longe ...
— Em qualquer caso, você pode dar-me uma opinião extra. Para mais, quando estamos livres os dois, nem ele nem eu perdemos tempo em conversas.
O largo sorriso de Caitlín dissipou-se quando Susanne ficou mais encarnada e sorveu o chá com ruído. Estendendo a mão, acariciou o joelho da sua colega.
— Desculpe. Perdoe-me aquilo que eu disse. Vou procurar ficar tão pouco desavergonhada quanto a felicidade mo consentir.
— Você e ele gostam muito um do outro, não? Aquelas palavras mal se ouviam.
— É verdade. Um amor acompanhado do canto das aves, rosas e uísque com cem anos de velho. Mas não receie pelo seu casamento. Nunca eu o ameaçaria, pois Brodersen gosta também da mulher, e ela gosta dele. É uma excelente senhora.
Susanne desviou o olhar da chávena para o sol e pousou-o e depois de novo na chávena. Perguntou:
— Como se conheceram vocês?
— Por intermédio de Lis, quiseram-no os deuses. Você sabe, sem dúvida, que ela se dedica bastante ao Teatro Apoio, organizando espetáculos, recolhendo fundos, apaziguando os ânimos — especialmente aqueles ânimos! Ora eu estive no mesmo palco uma vez, para desempenhar um papel insignificante ou para cantar algumas canções. Lis deu uma pequena festa aos artistas, em sua casa ... Você nunca assistiu a nenhum espetáculo em que eu entrasse?
Susanne abanou a cabeça.
— Não saio lá muito.
Caitlín amaciou o seu tom:
— Diz-se que as linkers se interessam por coisas mais elevadas do que as outras pessoas.
— Não é bem assim: simplesmente se interessam por coisas diferentes, e apenas quando estamos no nosso trabalho. Fora disso, somos como toda a gente ...
Susanne levantou a palma da mão e fixou o olhar forte da outra.
— Realmente, os anos de dura preparação, o trabalho lui-même, têm influência. É verdade, muitas vezes, aquilo que se ouve dizer a nosso respeito. Somos extremamente introvertidas. A profissão atrai este tipo. — Susanne tentou um sorriso, concluindo: — Há exceções. Uma minoria de nós são normais.
— Eu não vos chamaria outra coisa, penso eu — assegurou-lhe Caitlín. — Tímidas, talvez, no que eu acho até certo encanto, bastante folgazã que sou. O seu inglês com esse acento é engraçado, também. Você é natural do Sul da França?
— Não, mas os meus pais são. Nasci em Eópolis. Você conhece La Quincaillerie, aquele grande estabelecimento na Avenida Tonari? É deles. Bem, eu era filha única, e insociável, e todos os amigos mais próximos de meus pais eram franceses. Assim ...
Pousada a chávena na mesa próxima, Susanne alargou os braços.
— Dan contratou-a como vinda da Terra.
— Ele viu o meu curriculum vitae, mas viu também a minha juventude. Porque se devia ele lembrar? Os meus pais tinham-me mandado estudar para lá aos 16 anos terrestres... E os testes mostraram que eu tinha talento. Deméter não dispõe de meios de ensino para formar linkers. Eu vivia com a minha tia e o meu tio e, depois de acabar os estudos, trabalhei para uma firma em Bordéus. Ao cabo de seis anos de por lá andar, senti saudades e regressei. O capitão Brodersen não tardou então a contratar-me.
Desceu sobre elas o silêncio, um pouco pesado e incomodativo. Foi Caitlín a quebrá-lo:
— Agora eu, se você está interessada.
A operadora fez que sim com a cabeça, com viva impaciência.
— Embora tenha menos para dizer do que você. Nasci em Baile Atha Cliath — em Dublim, como é mais conhecida. O meu pai era medido, com boa clientela. Podia mandar os filhos para lugares famosos, de férias, incluindo para a sua região, Susanne. Mas o que eu preferia era calcorrear o Eire, por caminhos quase desconhecidos. Uma colleen[3] má, rebelde, receio eu, que se sentia cada vez mais contrafeita, até que aos 19 anos terrestres me inscrevi para emigrar. O contingente irlandês já estava quase preenchido — temos metade do nosso país para repovoar depois das Perturbações. Escolheram-me logo. Depois disso, fiquei sempre em Deméter.
Caitlín suspirou e prosseguiu:
— Não imagina quanto eu anseio por voltar de novo àquelas terras verdejantes, verdejantes, e abraçar os meus pais! Apesar das nossas disputas e dos desgostos que causei, as cartas deles foram sempre repassadas de ternura.
— Estou surpreendida por você conservar o seu patoá ao cabo de tantos anos.
— Bem, o gaélico é a nossa língua principal, você sabe, e depois fazemos também um esforço para conservar a nossa identidade dentro do Cantão das Ilhas, e da Europa por cima de tudo isso, e da União Mundial ainda mais por cima.
Caitlín mudou de entoação:
— Posso falar inglês de Eópolis quando quiser. Ou inglês britânico — sabe? — ou uma mistura de escocês, ou ianque da costa atlântica, ou do Sul. Uma cantora que anda a recolher baladas aprende muito.
— Vive em Eópolis?
— Vivo, numa cabana na margem do rio em Anyway Bank, com um cão atravessado, um par de ratos caseiros, um aquário de peixes-pavões, uma velha gata e um número variável de gatitos. E trabalho como paramédica. Quando não ando a flanar por outro lado. Isto será suficiente a meu respeito, estou convencida... Você ficou a olhar para mim de maneira estranha, Susanne.
— Anyway Bank não é bairro muito recomendável — desabafou a linker. Caitlín riu.
— É um bairro poliglota. Um bairro barato, animado e divertido. Mas não é mau, se criarmos amizades e não perdermos a cabeça. Aquilo que restou da minha virtude foi muito mais duramente posto à prova na asseada sala de Santo Henoch ou nas elegantes casas de Anvil Hiil do que ali.
— Viaja pelo planeta, disse você?
— Sim, viajo.
— E quem toma conta da sua bicharada, quando você não está?
— Um velhote, um vagabundo chamado Matt Fry. Como conseguiu ele lugar numa nave nunca o saberei, nem eu nem ninguém. O diabo do homem não conta a mesma história duas vezes da mesma maneira. Também não tem ofício que justifique a passagem. O que lhe posso dizer é que é o mais perfeito velhaco que veio ao mundo depois de Falstaff. Eu, pelo menos, podia prometer tirar medicina, pois meu pai me havia dado boas bases. Matt é carinhoso, compreensivo para com os animais, e conserva aquilo tudo muito limpo. Vela por que tudo ande em ordem. E só pede para ali dormir, e que eu lhe deixe umas garrafitas de lado, com um pouco de vinho lá dentro.
Caitlín abanou a cabeça, explicando:
— Eu gostava de lhe dar abrigo todo o ano, mas então nenhum de nós se sentiria à vontade, e nesse caso os meus amigos ... — Deteve-se. — Diabos me levem! Embaracei-a de novo! Desculpa-me?
— Não, não, não! — balbuciou Susanne, toda encarnada. — Não me ofendeu. Pensava eu que... você e Daniel... Não, como você diz, a vida privada... Allons, e se mudássemos de conversa, não?
— Sim, é melhor — concordou Caitlín calmamente. — A minha língua desata-se com facilidade. Um fraco dos Irlandeses, como beber. Dan anda sempre a tentar refreá-la.
— Falar e beber. Penso que são problemas da espécie, e não problemas nacionais.
As palavras saíam-lhe rápidas e Susanne encaminhava a conversa para longe dos assuntos pessoais, ganhando confiança à medida que o fazia.
— É a primeira pessoa da Irlanda que encontro. Li alguns dos vossos autores, e vi algumas das vossas peças de teatro, e também alguns comentários ... Talvez nesta viagem você me possa mostrar o país...
— Mas com certeza! Terei muita satisfação nisso.
— E depois eu levo-a até à Provença. Mais longe, se tivermos tempo. Mas primeiro vamos à Irlanda, por causa dos seus pais.
— Excelente! Que prefere você: uma cidade moderna — dizem-me que Dublim é uma cidade impressionante, hoje em dia —, ou monumentos históricos, paisagens, o campo com a sua beleza e a sua solidão? Talvez tenhamos de escolher: ir para um lado ou para o outro.
— O campo. As cidades na Terra são hoje muito parecidas. No campo temos a diversidade: cada região é única, sem igual.
— Na nossa chove bastante — preveniu Caitlín. — Temos a chuva miudinha e as bátegas de água, o nevoeiro, e mais chuva, e talvez caia um pouco de neve. Já me esqueci de como será nesta época do ano.
— Cela ne fait rien. Seja como for, hei-de gostar de ver. A nossa campagne francesa está agora demasiado civilizada. Agrodomínios, parques, comunidades. No meio de tudo isso, só alguns locais conservam o pitoresco para os turistas.
Caitlín sorriu com tristeza e aconselhou:
— Não perca tempo então, e vamos à Irlanda. Pelo que ouvi, está a tomar rapidamente o mesmo caminho. Feliz me sinto porque a conheci selvagem. Oxalá Deméter o fique também enquanto eu viver.
Caitlín cantarolou um compasso ou dois de música.
— Que está você a cantar? — perguntou Susanne.
— Oh!, é o que se chama uma velha canção de embalar. Escrevi nova letra para ela ainda não há muito tempo, depois de minha mãe me ter escrito de Lahinch, onde estava a passar férias.
— A letra? Não quer cantar?
— Porventura já viu algum dia um bardo recusar? — perguntou Caitlín a rir. — Felizmente que é curta.
Atrair turistas para nós,
Atrair turistas à nossa volta,
Atrair turistas para nós,
Debitando-lhes o céu,
Atrair turistas para nós,
Cantarolando melodias
A Pedra de Blarney,
É uma indústria irlandesa.
Depois disto, ficaram as duas cada vez mais alegres.
Quando a Chinook chegou aproximadamente a um milhão de quilômetros da máquina T, a nave de vigilância Bohr estabeleceu contacto com laser. Já tinha sido transmitida para ali a comunicação a autorizar a partida para Sol. Faltava apenas uma formalidade ou duas e o envio prévio de um pequeno dispositivo-piloto automático, o qual anunciaria à guarda na .entrada da passagem que ia ali chegar uma nave e que deviam ser postas em prática as habituais medidas de segurança. Todas estas prescrições foram cumpridas enquanto a Chinook manobrava para se aproximar da primeira baliza pela qual devia passar.
Não era esta a mais afastada. A rota que a nave devia seguir serpenteava entre sete globos resplandecentes. Não era semelhante à rota para Febo à volta do engenho solar, a qual tinha dez balizas. Muito se tinha especulado sobre o motivo destas variações. Os viajantes espaciais vindos de outros mundos tinham provavelmente encontrado as suas respostas, pensou Brodersen.
Sentou-se Brodersen no centro de comando. Eram enormes as probabilidades de ser ele o único passageiro durante a viagem. Os sistemas cibernéticos deviam ocupar-se de tudo. Se neles surgisse uma falha ou mesmo indícios de ela poder ocorrer, Su Granville ao computador, Phil Weisenberg e Martti Leino na sala das máquinas — sob a direção dela — se encarregariam das operações. No entanto, Brodersen sentia-se na obrigação de permanecer no seu posto, e sem Pegeen para o distrair, embora tanto um como o outro muito desejassem viver juntos aquelas horas. Brodersen nunca se cansava de observar. Para os olhos, a aproximação de uma passagem era menos espetacular do que muitas outras coisas no espaço. Mas ele iria refletir sobre o significado que ia ver e procuraria compreender melhor que existiam seres que haviam feito aquilo tudo. Sentia a alma como mergulhar num receio misterioso e a emergir dele.
Cada viagem era ligeiramente diferente da anterior, pois as balizas estavam constantemente a mudar de configuração consoante a deslocação das estrelas na galáxia (e quem sabe que outros aspetos variáveis do universo?).. As mudanças eram demasiado pequenas para serem apercebidas pelos sentidos a não ser ao cabo de décadas. Eram facilmente contrabalançadas e, em qualquer caso, uma nave dispunha sempre de uma certa margem de tolerância. Se se desviasse alguns quilômetros em determinado trajeto, chegaria apesar disso onde desejava, embora a hora exata e a posição em que julgava encontrar-se nem sempre fossem perfeitamente as que deviam ser. Mesmo assim, a lei do espaço prescrevia justamente o cuidadoso traçado de um trajeto, com ampla margem de erro.
No fim de contas, um erro sério levaria uma nave para o desconhecido. Partindo do princípio de que se tinha sempre de passar entre duas ou mais balizas, sete delas conduziriam a 5913 destinos possíveis. (As sondas-robôs haviam verificado esta hipótese, partindo dali, assim como do Sistema Solar, para nunca mais voltarem.). Além disso, existia ainda um número infinito de rotas que não iam diretamente de baliza a baliza, e cada uma dessas rotas iria dar a qualquer parte. (As sondas-robôs tinham também verificado isto, até que as entidades responsáveis cancelaram as experiências por já terem perdido demasiadas dessas sondas.)
Brodersen sabia que uma determinada rota o levaria aonde a nave desconhecida tinha ido — e a Emissário, que depois disso regressou para desaparecer numa ratoeira de outra espécie. Como o resto do público, Brodersen não havia sido informado dessa rota. (Na altura, havia concordado que o segredo era uma política sensata.) Deveria encontrar-se uma máquina no fim dessa passagem. Uma das sondas lançadas pelos homens já ali devia ter aparecido antes. Mesmo, porém, que os estrangeiros a houvessem notado, não tinham nenhuma possibilidade de dizer quem a tinha mandado, nem donde.
Como quase toda a gente, Brodersen tomou como ponto assente que muitos, talvez mesmo todos os restantes trajetos de baliza a baliza levavam igualmente a máquinas T. A dificuldade estava em saber, uma vez que se tivesse avançado, qual seria o caminho para regressar. Andar-se-ia às cegas de passagem para passagem até que os mantimentos se esgotassem, a menos que se viesse a encontrar uma sociedade avançada que nos pudesse ajudar. A Emissário tinha-se posto a caminho com essa esperança, mas a Emissário sabia que tal civilização existia. No entanto, a próxima máquina T podia simplesmente ficar num ponto relê em local perfeitamente vazio ... Era certo que muitos trajetos levavam a rotas que eram reconhecíveis nestes aspetos. O Sistema Febiano, por exemplo, estava desprovido da vida sensível, só contando com a civilização dos viajantes do espaço, até que a Voz guiou os homens para ali...
Passaram horas.
A maior parte do tempo a Chinook avançava em vôo livre e Brodersen flutuava, ligado à cadeira, na posição curiosa de gravidade zero. Depois, quando a nave atingiu a distância prescrita em relação a uma baliza, o giroscópio, movendo-se suavemente, corrigia-lhe a posição. Os reatores inflamavam-se. Durante minutos, Brodersen tinha um ligeiro peso. E de novo se sentia em suspenso. O silêncio era profundo. Brodersen podia ter utilizado o intercomunicador para falar com Pegeen, mas isso faria que toda a tripulação os ouvisse. Mais ninguém tinha também qualquer coisa a anunciar, enquanto as imagens do espaço perpassavam, majestosas, pelos écrans.
Uma esfera na escuridão, esfera que aos olhos parecia do tamanho de uma lua, a brilhar verde como a Irlanda, até se esbater e perder de vista.... A máquina T na sua face mais próxima, um cilindro em perspectiva, cobrindo uns poucos graus de arco, branco com um leve brilho opalino através das estrelas, dando uma impressão de ziguezaguear, sem se poder avaliar quanta massa estava ali e até que ponto ela se comprimia sobre si mesma, e com que fúria ... Uma esfera com uma cor que não fazia parte do espetro visual... A Via Láctea, e as nebulosas, as galáxias para além da nossa galáxia...
E agora o céu estava a modificar-se de forma a Brodersen se poder aperceber disso: esta estrela refulgente e aquela estrela refulgente a aproximarem-se ou a distanciarem-se, sumindo-se por fim, acabando por desaparecer no escuro como pirilampos, à medida que a Chinook avançava cada vez mais para o interior do campo criado por aquela massa monstruosamente grande, em turbilhão ...
O tempo era longo e o tempo não era nada, até que uma sereia chamou: “Atenção!” A pulsação de Brodersen galopava. Agarrou-se aos braços da cadeira. A nave rodou pesadamente, parou e ficou assim por um momento. A força dominava-a. A manobra final para qualquer rota consistia agora numa forte aceleração diretamente para a máquina.
Brodersen não sentia nada a arrastar a nave. Nada, a não ser o movimento livre, quando os reatores pararam. Nos seus écrans, o universo parecia momentaneamente oscilar. Firmou-se logo a seguir. Tratava-se de uma ilusão óptica devida à persistência de visão. Por toda a parte em torno, Brodersen deparava com uma serenidade impressionante. Um cilindro, reduzido pela distância a um fiozito, e que já não era o cilindro que tinha estado a ver. E um disco como o de Febo, mas mais branco, mais incandescente, que era o disco do Sol.
A Chinnok tinha transposto a passagem.
Brodersen retomou o comando.
— Aram Janigian, a comandar a nave de vigilância Copernicus — disse uma cara no seu aparelho de comunicação para o exterior, em espanhol bem acentuado. — Seja bem-vinda, Chinook.
— Daniel Brodersen, a comandar. Obrigado — foi a resposta, igualmente ritual. — Nada de especial a assinalar a bordo.
— Bom. A sua posição e os seus vetores são aceitáveis. De momento, nenhuma correção a fazer.
Embora habituado àquilo, mais uma vez Brodersen se sentia impressionado pelo fato de uma nave sair sempre com a mesma velocidade em relação à segunda máquina T, tal como havia acontecido em relação à primeira no momento em que a transpusera. De uma forma ou de outra, as diferenças de energia entre as estrelas eram compensadas no interior dos campos de transporte — a menos que estivesse a atuar qualquer lei da conservação a respeito da qual o homem nada soubesse.
— Vou dar-lhe a sua posição — anunciou Janigian.
Esta foi transmitida diretamente de computador para computador, a começar pela hora exata. Uma leitura mostrou a Brodersen que ele estava dentro de duas horas do tempo que havia previsto para chegar ali. Excelente.
Seguiram-se as condições de vento solar, a posição de outras naves no Sistema, etc, etc. Feito isto, Janigian deu pessoalmente algumas notícias escolhidas. Porto Helena, na Liga Iliádica, estava fechado por causa de uma greve; havia sido dada máxima prioridade a um carregamento de água cometária e de hidrocarbonetos destinados à Lua; um asteróide, vindo do espaço interestelar e a descrever uma órbita hiperbólica, iria aproximar-se muito de Marte a 3 de Fevereiro; até novo aviso, está interdita a quem quer que seja, sem autorização especial, e a transportadores, entrar numa esfera de um milhão de quilômetros de raio em torno da Roda de San Jerónimo...
Brodersen teve um sobressalto, segurou-se bem às correias e reclinou-se na cadeira.
— O quê! — exclamou ele. — Que se passa?
— Um trabalho científico que não deve ser contaminado por gases. Pelo menos foi o que percebi — disse Janigian, aborrecido. — Porque se preocupa? Tem o caminho livre para a Terra.
— Hum!... Eu esperava visitar a Roda, uma vez que estou aqui — mentiu Brodersen com rapidez. — Queria reviver momentos felizes do passado. De que trabalho se trata?
— Não sei. Passo-lhe a notícia completa para o seu banco, se quiser. Talvez o senhor consiga licença.
— Obrigado. É favor continuar.
Completada a conversa, trocadas as palavras de despedida, calculados os vetores, a Chinook pôs-se em movimento a um G. Precisamente entre quatro e cinco dias terrestres para dar a volta ao Sol e chegar à Terra. Devia ser uma viagem perfeitamente de rotina.
Brodersen carregou para obter uma leitura da proibição. Depois de lançar para ela um olhar feroz, desligou as correias e pôs-se a passear por entre a aparelhagem, as superfícies brancas e os écrans repletos de estrelas, no centro de comando. Por fim, dirigiu-se ao intercomunicador.
— Do comandante para o primeiro mecânico — anunciou ele. — Phil, quer fazer o favor de aqui chegar?
No seu íntimo, imaginou o desapontamento de Caitlín por não lhe dizer nada a ela. Mais tarde, mais tarde ... A ela e a todos os outros. Primeiro precisava de consultar um técnico bem experiente, e que era também o seu mais velho amigo a bordo.
Weisenberg abriu a porta e entrou. Eram calmos os traços no seu rosto: raramente ele se excitava.
— De que se trata, Dan? — perguntou no seu inglês um pouco arrastado. Os pais, neochasidins, tinham ido para Deméter fugindo às perseguições na Santa República do Ocidente.
— Você estava a ouvir, não é verdade?
Como de costume, Brodersen havia ligado para o intercomunicador a sua conversa com Janigian. Por isso acrescentou:
— Queria que me confirmasse esta história da Roda de San Jerónimo E diga-me o que lhe parece tudo isto.
Weisenberg acomodou a sua ossatura de homem alto e magro, junta por junta, numa cadeira diante do terminal. Seguiu-se o silêncio. Brodersen sentiu o suor a romper-lhe da pele e passou a mão a limpá-lo.
— E então? — inquiriu ele por fim, num tom seco. Weisenberg olhou para o comandante e disse:
— É um tanto nebuloso tudo isto, não lhe parece?
— Nebuloso, o diabo! Quem esperam eles que tome a sério essa estúpida historieta de transformar um monumento público, durante meses, em centro de investigação, de maneira assim tão bizarra?
— Qualquer pessoa que não seja paranóica, Dan. As fundações contribuem com dinheiro para empreendimentos dos mais estrambóticos. E o monumento em questão é monumentalmente sem importância para quase toda a gente.
Brodersen bateu com o punho contra o tabique, com toda a violência.
— Está bem, eu sou paranóico. E você também. Todos nós o somos. E temos motivos para isso. A Emissário está a ser retida em qualquer parte, não sei onde, se é que ela e a tripulação não foram mesmo destruídas. Num caso destes, não parece lógica a Roda?
Weisenberg fez que sim com a cabeça. E acrescentou:
— Bem, se insiste, parece. Não é provável que qualquer nave passe próximo da zona interdita. Se alguma por lá passasse, não teria motivo nenhum para apontar para ali as objetivas a fim de obter imagens em tamanho natural, identificando uma nave da classe Reina, transformada, a girar em órbita muito perto da Roda.
Os seus longos dedos afagaram o seu longo queixo. E Weisenberg prosseguiu:
— Onde está a Roda habitualmente?
Susanne tinha acabado o seu trabalho. Senão Brodersen podia ter obtido imediatamente aquela informação. Assim, transmitiu o seu pedido ao teclado. Ele e Weisenberg olharam para o quadro visual que acompanhava os números.
— Aí está! —disse ele. —Não longe da conjunção inferior com a Terra. O que lhe dá uma nova qualidade como prisão.
Da sua cadeira, Weisenberg examinava as feições do comandante, que continuava debruçado por cima dele.
— Quer você dizer que nos devíamos desviar para dar uma espreitadela?
— E porque não?
— Vejamos: e se continuássemos para a Terra em conformidade com o nosso plano de vôo e alertássemos os Ruedas, como também tínhamos planeado?
— Arriscado! — rosnou Brodersen. — Seria necessário algum tempo para eles encontrarem uma justificação para lançarem uma nave e darem andamento a todos os preparativos e às formalidades da praxe. Entretanto tudo pode acontecer. Pelo menos, Aurie Hancock vai começar a ter suspeitas a meu respeito, mais cedo ou mais tarde — e eu ia apostar que será cedo. Belo traste que ela me saiu! Agora, chegamos à altura do salto. Se é ali que está a Emissário, podemos levar a história para Lima — até com fotografias — e fazer uma declaração pública e espalhar tudo isto aos quatro ventos, para reduzir a frangalhos toda esta sórdida conspiração. E rematou com um rugido.
— Calma, calma! — recomendou Weisenberg. — Esse desvio vai acrescentar dois, três dias à viagem, como sabe. Suponha agora que não vemos nada. Como vamos nós justificar a demora quando chegarmos à Terra?
— Se é por causa disso, arquitetamos entretanto uma história — volveu Brodersen, impaciente. — Como, por exemplo, o súbito aparecimento de um meteoróide que veio contra nós e nos avariou as comunicações, de modo que não podíamos informar do que se passava, o que nos deixou à deriva até fazermos as reparações. Impossível, como uma cobra a andar de muletas, reconheço isso. Mas não totalmente impossível, e nós podemos simular vestígios. Além disso, a Aventureros pode persuadir a comissão de inquérito que melhor será considerar o caso como um incidente sem importância. Ou talvez consigamos imaginar melhor estratagema. Temos alguns dias para isso.
Brodersen afastou-se do terminal, pôs-se a andar pelo compartimento, mãos fincadas atrás das costas, a martelar os passos. Sempre que passava por um écran, a sua fronte ficava cercada de estrelas.
— Vamos consultar o resto da tripulação, é claro. Mas estou certo de que todos hão-de concordar. Para já, vamos mudar imediatamente de vetores, em direção à Roda.
— Não — disse Weisenberg. — Espere um pouco.
— Porquê? — perguntou Brodersen, detendo-se.
— Até estarmos suficientemente longe da máquina T para que a nave de vigilância não note que nos vamos desviar — explicou o mecânico.
— Tem razão — concordou Brodersen, fazendo estalar os dedos.
— Você também tem razão, camarada. Vamos tomar o risco. Talvez seja a última maneira possível de chegarmos aos Outros.
Weisenberg permaneceu tranqüilamente sentado e não levantou a voz. Mas nos seus olhos apareceu uma luz que o Baal Shem Tov[4] teria reconhecido.
A chuva havia vindo do lado do mar para cobrir Eópolis. Aurélia Hancock, governadora-geral de Deméter a representar a União Mundial, tinha aberto as duas janelas junto da sua mesa de trabalho, para poder respirar a frescura. Envolveu-a uma fria humidade, que lhe afagava as narinas, acompanhada pelo tamborilar da água a cair, a bater na folhagem, a gorgolhar pela Terra, tudo isto envolvido num odor de rosas úmidas e erva, num fundo de robles gigantes com um cheiro a gengibre. A vista, emoldurada em pálidos painéis de dafne, era de um cinzento-prateado, entrecortado de um preto--azulado, com tons de verde-escuro e vermelho. Para além do relvado e da sebe, passavam os carros como sombras a fugirem. O lado de lá da estrada esbatia-se em mistério.
O telefone arrancou-a à contemplação:
— A sua chamada para Miz Leino.
— Hum! — rosnou para consigo. Ninguém havia respondido quando tentara falar para ali uma hora antes. Pusera então o aparelho no “insista” e ficara a folhear resumos de notícias. Caíra depois em devaneio... Nem mesmo havia fumado, como lhe lembrou o seu palato. Sentia agora formigueiros nas pernas e o seu sacro protestava. Deixei-me ficar para aqui pespegada nesta cadeira demasiado tempo, concluiu ela. Na minha idade, tornamo-nos num saco de banha se não nos mexermos um pouco.
— Ligue! — disse ela, enquanto deixava vaguear o espírito. Não há dúvida: tenho de fazer mais exercício. Retomar o tênis, e com regularidade. Hei-de reconhecer que não sinto disposição nenhuma para fazer ginástica, só por mim, todos os dias. Mas quem quer fazer ginástica comigo. Jim? Praticavam desporto os dois, ela e o marido. Não era só o tênis o que jogávamos, também. Ele tinha-se apegado bastante ao álcool nos últimos tempos. Nada de escandaloso, é verdade. Afável como sempre, aquilo tomou nele a forma de intolerância, e via-se que não estava interessado na cura. Então quem? Não lhe agradava a idéia de andar a exibir as pernas, já a engordarem e com tendência para as varizes, nem de saltar no corte disputando uma partida com um jovem funcionário. E Deus a livrasse de pedir a qualquer mulher colonial, entre as do clube, para jogarem juntas, depois da afronta que ela e Jim haviam sofrido.
Surgiu então no écran Elisabet Leino, esbelta , bronzeada pelo sol, feliz no seu lar e sem dúvida na cama, com um ar polidamente hostil.
— Como está, governadora Hancock? — disse ela, mais do que perguntou. — Tenho muita pena de só agora responder. Andava a tratar das minhas plantas na estufa, e não ouvi tocar.
Ou andou a fugir de mim durante uma boa meia hora? Os aparelhos assinalam que a maior parte de vocês demoram a responder. Aurie colou um sorriso à sua cara:
— Porquê essa fórmula de tratamento, assim tão solene, Lis? Somos velhas adversárias no jogo das cartas. E em atividades sociais temos trabalhado juntas.
Uns olhos com ligeiro astigmatismo e de azul intenso deixavam transparecer uma ponta de desprezo:
— A senhora sabe porquê, governadora Hancock.
Aurie pôs-se muito direita. Os dedos encontraram um cigarro.
— Como quiser. Se não pus as coisas a claro até agora, inútil tentar. Posso falar com o seu marido?
As feições de Atena não se moveram, a não serem os lábios:
— Não.
— Como?
Por um instante, foi como se a chuva lá fora se tivesse posto a correr de baixo para cima.
— Está doente. Atacar!
— Realmente? Suponho que não foi aí nenhum médico.
— Então os seus agentes andam a tomar nota de tudo quanto se passa na nossa vida?
Aurie acendeu o cigarro e aspirou aquele fumo áspero, como um desafio à chuva. Entretanto ia preparando a réplica.
— Miz Leino, se prefere este tratamento, o seu marido deve-lhe ter explicado a situação. Quando lhe pedi que cooperasse comigo e ele rejeitou, não tive outra solução que não fosse pô-lo com residência vigiada e a si sob vigilância também, durante algum tempo.
“Depois disso, certas conversas ao telefone ... Sim, nós estamos a escutadas. Uma vez passada a situação de emergência, a senhora tem o direito legal de pedir uma indenização. Entretanto, estamos atentos. Duas conversas telefônicas indicavam que ele continuava onde devia estar. Acontece, porém, que a segunda dessas conversas chegou quando a senhora saiu de casa e se escapou aos agentes incumbidos de a vigiarem.
Ela foi até à floresta, deixou o carro num parque, entrou pelo arvoredo dentro, trocou as voltas aos agentes, habituados a andarem apenas na cidade. Horas depois, a banda gravou uma conversa entre Dan Brodersen e Abner Croft. Algumas horas mais tarde, Lis Leino voltou para o carro e regressou a casa.
Seriam simuladas ambas as conversas com Croft? Ira Quick transmitiu--me uma nota confidencial a respeito de um sistema destes. Leino podia ter mandado afilha receber uma chamada. A criança não necessitava de saber o que se estava a passar. E os meus detetives ainda não conseguiram provar que Abner Croft existisse.
Aurie prosseguiu com o que tinha em mente:
— E agora, minha querida — disse ela com todo o desplante—, ao passar os olhos por uns papéis de rotina, descobri de repente que a Chinook tinha saído para Sol aqui há dias. Não me disseram nada a tal respeito. A lei não exige que eu seja informada. Mas a Chinook é a nave predileta de Dan, e o comissário Two Eagles é um dos vossos melhores amigos. A senhora compreende, estou certa disso. Preciso de falar com Dan.
— Está doente, já lhe disse — declarou Lis, abominavelmente fria. — Precisa de dormir. Não o vou acordar.
— Então vai dar-me licença para que a polícia confirme que ele está aí? Pela primeira vez, Lis corou.
— De maneira nenhuma. Guarde o seu maldito mandado de busca.
— Vou passá-lo eu mesma — preveniu Aurie. — E se o seu marido não estiver em casa, a senhora será inculpada também, Miz Leino.
Arrogância:
— Faça o que quiser, Miz Hancock. Quanto a mim, vou consultar o meu advogado.
Nada mais naquela expressão.
Aurie deixou-se cair na cadeira. Lá fora, a chuva caía com violência e o crepúsculo adensava-se.
Brodersen partiu, sabia ela agora. Fugiu, sabe-se lá como, e tomou a sua nave espacial e chegou ao Sistema Solar.
Como posso eu apanhá-lo? Ou como reparar o mal?
Informar Ira.
Devia pôr tudo aquilo em marcha sem perder um minuto. Mas de momento a sua mão apenas pôde pegar num cigarro, levá-lo aos lábios e pousá-lo de novo. Ira, refletia ela, meu belo Ira Quick, você deixou-me tão bem expresso como a nossa primeira preocupação deve ser a justiça social e como os Outros e o andar à busca deles são ... como o Lúcifer de Milton, não foi o que você disse? ... Belo Ira Quick, eu farei o que puder por si.
Uma mensagem lançou um fluxo luminoso de Eópolis para um satélite de comunicação, que o passou para o potente transmissor em órbita à volta de Deméter, a maior distância dele. Daí cruzou o espaço interestelar para a máquina T, perto da qual a Bohr captou a mensagem. A primeira parte era um nome e dois endereços na Terra, seguidos por URGENTE oficial. O resto era em código. Disciplinadamente, o oficial de telecomunicações da nave de vigilância colocou a banda onde a mensagem havia sido gravada num dispositivo-piloto, que foi mandado através da passagem para o Sistema Solar e se encaminhou para a Copernicus.
O oficial ali retransmitiu-a, por sua vez, numa onda ajustada, para um posto relê que girava na mesma órbita da Terra e da máquina T a 90° de uma e outra, e que a fez chegar ao planeta. Naquela zona realizou-se uma série de complicadas operações eletrônicas. Por fim — ao cabo de escassos milissegundos — tocou um telefone e acendeu-se uma pequena lâmpada em ambos os gabinetes de Ira Quick, em Lima e Toronto. Não estava ninguém, por ser de noite, nem ele deixara indicação donde o poderiam encontrar. (A título de curiosidade, diga-se que estava a deliciar-se com um conhaque, depois de jantar com uma bela e ambiciosa funcionária da estatística, com quem iria passar depois outros momentos agradáveis.) Não recebendo qualquer resposta, os telefones deixaram a mensagem, conforme as instruções, num banco especial para playback, de que só ele conhecia a chave.
Aconteceu que Ira Quick estava em Toronto. Tinha para ali ido após o seu regresso da Roda, e levara consigo a família, pois tudo indicava que ficaria em Toronto durante algum tempo. Era deplorável ter de velar pelo aspeto nacional da sua carreira depois de tanto se haver concentrado no internacional. O Inverno na parte central da América do Norte parecia-lhe mais desagradável de ano para ano, como para refutar os especialistas que diziam que a Terra estava a encaminhar-se lentamente para uma nova idade glaciária. (Para fazer face a isto seria necessária uma imensa organização estatal. No entanto, os fanáticos dos Outros iriam deixar as pessoas, os esforços e os recursos esvair-se sem controlo para as estrelas!)
Na manhã que se seguiu, começou a soprar das tundras uma violenta ventania, acompanhada de neve que envolveu toda a cidade em flocos brancos. As obrigações forçavam Ira Quick a ir aos seus serviços. Nem mesmo um perfeito sistema de hologramia com som de estéreo podia substituir sempre, de maneira aceitável, o aperto de mão a um humilde eleitor ou o almoço com um eleitor de categoria. Do hotel, ira Quick poderia ter-se metido facilmente no metropolitano para o Edifício Churchill, mas primeiro tinha de ir a casa, nos subúrbios, mudar de roupa. Havia pensado em alugar um quarto na baixa da cidade por causa de freqüentes situações como aquela, mas acabou por desistir. Se viesse a saber-se, podia haver falatório a tal respeito.
A sua mulher deu-lhe o pequeno-almoço sem fazer perguntas. Por sua vez, Ira Quick deu-lhe um grande beijo antes de partir. Merecia-o bem, ela. Alice McDonough não era apenas sobrinha do homem que reunificara o Canadá depois das Perturbações, e portanto um elo em valiosíssimas ligações políticas: era também mulher atraente, excelente dona de casa, mãe de três filhos, e muito dedicada ao marido ... ou pelo menos desejosa de, por decência, manter as zangas estritamente entre os dois.
O carro de Ira Quick abriu caminho em direção ao complexo do Capitólio. O vento uivava e fustigava-o, a neve deslizava em torno da capota, o frio insinuava-se, mais forte que o aquecimento. Sentiu-se inexplicavelmente contente ao entrar na zona de parqueamento. Aquelas tempestades despertavam nele terrores primitivos. Saudando o pessoal com a mesma afabilidade de sempre, dirigiu-se para o seu gabinete e ligou o enorme écran, para ter uma vista direta de uma praia havaiana.
Agora o espetáculo era outro: uma imagem quente, inundada de azul e branco, e o prazer do surf; uma ampla secretária, sólida, com todo o equipamento; a suavidade de um tapete a acariciar-lhe os pés, depois de haver tirado os sapatos; retratos autografados de celebridades, caricaturas originais, diplomas honorários, certificados de membro de várias agremiações, cartas emolduradas, tudo isto sinais de estima e de apreço. O trabalho à sua frente, se menos importante do que aquele que fazia para a União, tinha também os seus próprios atrativos. E a noite anterior prolongava-se-lhe no espírito com um gosto picante.
— Ah! — murmurou ele. Sorriu depois e carregou no playhack do telefone.
Acendeu-se uma lampadazita vermelha. Que diabo será isto? Formou a necessária seqüência de números. O écran iluminou-se com o seu nome e com o da remetente: Aurélia Hancock. O coração bateu-lhe mais forte. Carregou para ver o que se seguia. Deparou com uma salgalhada, precedida de um número de identificação, e introduziu-lhe o programa de descodificação apropriado. Apareceu então o texto em inglês corrente:
Meu caro Ira,
Faço votos para que não seja uma notícia funesta a que lhe vou dar e para que lhe chegue a tempo de fazer o que lhe parecer melhor. Lembra-se de Daniel Brodersen, não é verdade? Referência: [Mais números e letras. Quick podia ter pedido ao arquivo os antecedentes, mas não achou necessário. Estava bem vivo na sua memória o calor com que havia aprovado a sugestão de Hancock para reter em casa aquele homem que andava a criar complicações.] Pois descobri que fugiu daqui e vai agora a caminho da Terra. [Seguiram-se pormenores até àquele momento, com o insolente mutismo de Elisabet Leino e o palavreado de um advogado a quem ela recorrera. Não parecia prático prendê-la. Tinha muitos amigos. Aurie, porém, ameaçara-a com as Disposições sobre Poderes de Emergência, com a lei das Atividades Perigosas e com o precedente finalista, em caso de nova infração.]
Consultei o registro de saída de naves, a pretexto de verificar como se processava o tráfego, e vi que a Chinook tinha transposto a passagem exatamente de harmonia com o seu plano de vôo [anexo]. Já deve ter chegado à Terra, ou está a chegar quando receber esta mensagem.
Não sei ao certo quais as intenções de Brodersen. Talvez ele também não saiba. E pessoa que joga pelo seguro. Assim, há-de procurar contatar com a família da primeira mulher, os Ruedas, e obter o seu auxílio.
Ira, querido Ira [ela não era fisicamente o seu tipo de mulher, mas encontrara-a sensível aos seus galanteios, o que tinha ajudado a ligar de maneira bem sólida à sua causa a indubitável competência daquela mulher], não lhe sei exprimir o que sinto ao ter de lhe anunciar isto. Tudo faria para o reparar. Fico ao seu dispor para o que precisar. Entretanto, não tomarei quaisquer novas disposições, na medida do possível. Estou certa de que o senhor poderá resolver o problema, da mesma maneira como resolve todos os outros, mas lamento que tenha ainda mais este trabalho e esta maçada.
Sinceramente, Aurélia
Quick orgulhou-se da sua pronta e fria reação. Ligou o intercomunicador para saber da nave. O seu pessoal obteria prontamente a informação, de maneira discreta. Depois releu com cuidado a mensagem e os anexos, sentou-se, afagou a barba e refletiu sobre o que havia a fazer.
Primeiro, evitar o pânico resultante de quaisquer boatos que aparecessem. Segundo, submeter Brodersen a uma vigilância total, assim como todos os do seu grupo, a partir do momento em que aterrassem ou a partir de agora mesmo se já tivessem chegado. (Que incerteza dos diabos! A hora a que uma nave saía de uma passagem, medida ali, dava apenas uma vaga indicação da hora a que ia entrar no outro sistema, provavelmente por causa de variações no trajeto que se tinha de seguir à volta da máquina T. Nenhuma nave tinha ainda chegado antes do seu mecanismo-piloto, mas algumas tinham chegado logo atrás, com curtíssimo intervalo, e outras uns três dias depois.) Ele podia requisitar a intervenção dos serviços secretos norte-americanos — ou antes, de alguns agentes bem escolhidos desses serviços —, recorrendo às mesmas vias que havia utilizado para obter cooperação quanto à Emissário.
Sim, observar Brodersen e ver o que se passasse, o que se pudesse saber. Mas no instante em que qualquer deles procurasse aproximar-se dos Ruedas, deitar-lhe a mão e a todo o bando. Com a mensagem de Hancock vinha um mandado para captura de toda aquela gente. Podiam ir juntar-se, todos, aos prisioneiros que estavam na Roda, e partilhar depois da sorte que a estes fosse reservada.
Quick mudou para outros assuntos. Uma hora depois apareceu o seu chefe de estado-maior. Chauveau parecia preocupado.
— É a respeito da nave espacial Chinook — disse ele. —A nave está atrasada, e não mandou ainda mensagem.
— O quê? — e Quick agarrou os braços da cadeira. — E o Controlo do Tráfego não tomou qualquer medida?
— Eu não sabia qual o sistema de trabalho deles nem a quem pedir esclarecimentos no Conselho de Controlo Astronáutico e foi-me necessário algum tempo para descobrir. Parece que quando uma nave entra no Sistema Solar a nave de vigilância transmite o plano de vôo para destino — neste caso, a Terra —, mas que esse plano vai simplesmente para o banco de dados. Pensam ali no Conselho que qualquer coisa mais que se fizesse seria complicar desnecessariamente o assunto, pois uma nave forçada a alterar os seus planos pode em qualquer momento avisar um dos postos que recebem chamadas de emergência.
“Bem, a pessoa a quem me dirigi procurou-me o registro, o qual diz que a Chinook devia ter entrado na órbita da Terra ontem. A seguir ela confirmou a posição no Controlo de Tráfego, depois na organização iliádica correspondente e, em resumo, ninguém sabe nada. A pessoa com quem contactei está preocupadíssima, mas eu consegui fazer que ela aguardasse — dando a entender uma missão especial que talvez pudesse ter originado qualquer ligeira falha. Portanto, que aguardasse antes de alertar a Divisão de Segurança. A funcionária não aguardará por muito tempo, infelizmente.
— Meu caro — disse Quick com uma boa dose de cordialidade. Acendia-se nele uma esperança. O acidente, numa probabilidade de um para um milhão, e que até aí nunca se dera, poderia ter-se dado agora, destruindo-os a todos. Concentrou idéias. Não.
— E que devo fazer? — perguntou Chauveau.
Os pensamentos de Quick sobrepunham-se uns aos outros. Nenhum dos funcionários sabia porque estava ele preocupado. Para dar seguimento ao assunto com todas as medidas radicais que fossem necessárias, tinha de contar uma história. Já entretanto a arquitetara.
Tomando o ar mais sério, explicou:
— Jacques, isto é estritamente confidencial, e talvez nem lho devesse contar. Mas tenho confiança em si, e quero que tenha plena consciência do que se passa. Já ouviu falar do descontentamento que grassa em Deméter. Já sabe, com certeza, das queixas, protestos e abaixo-assinados. No fundo, uma atmosfera precursora de motins. — Em particular, as empresas coloniais resistem ao pagamento de impostos às mães-pátrias e à União (e afirmam que nada recebem em troca), como seja não fossem parte integrante da humanidade, obrigadas a auxiliarem os irmãos mais pobres... Desnecessário catequizar-te a ti próprio, Ira Quick! E tenho de reconhecer que algumas das queixas são legítimas. O Governo não se tem preocupado tanto como devia com o bem-estar daquelas gentes. — O que não tem sido tornado público é a crescente onda do sentimento revolucionário, a tomar formas cada vez mais violentas. De discursos sediciosos está-se agora a passar à ação. — Não estritamente mentira. Estou já a anunciar aquilo que receio venha a tornar-se pura realidade um dia destes, se as entidades responsáveis não se mantiverem atentas e não dominarem a situação. — É claro, tudo isto se passa no seio de uma escassa minoria, por enquanto. Mas você sabe muito bem quanto mal pode fazer um punhado de terroristas.
“ A governadora Hancock avisou-me que o comandante e proprietário da Chinook talvez esteja implicado nisto e talvez tenha vindo aqui com um objetivo que nada tem de inocente. Ela dirigiu-se a mim de preferência a outrem porque nos unem estreitas afinidades políticas, você sabe, e ela confia em que eu proceda com toda a discrição. Lembre-se: a governadora Hancock não tem qualquer prova concreta contra esse Brodersen. Brodersen pode estar inocente. Uma prisão injustificada iria provocar mais um motivo de atrito conosco , e seria uma violação dos seus direitos. — Quick passou os dedos pela barba. — O comportamento de Brodersen parece suspeito — concluiu ele. — O melhor é começarmos por ver onde pára ele.
— Seria preferível eu pôr o senhor em contacto com a comissária-adjunta Palamas, a pessoa com que falei no Controlo Astronáutico — observou Chauveau.
— Muito bem. E enquanto eu falo com ela estabeleça também ligações com...
Quick disse o nome deles. Alguns tinham-no ajudado a tomar a iniciativa de seqüestrar a Emissário. Outros nada sabiam a tal respeito, mas, de uma maneira ou de outra, podiam ser persuadidos a exercerem a sua influência em sentidos úteis, sem exigirem uma grande elaboração na sua história. Confiavam nele, ou deviam-lhe favores, ou sentir-se-iam satisfeitos por ele lhes ficar a dever algum. Entre todos, detinham bastante poder.
A conversa de Quick com Palamas deu bons resultados. Ela iria levar a cabo uma busca, por todo o Sistema se necessário, e dar-lhe-ia conhecimento direto do que viesse a saber.
Depois disso, porém, as lentas horas de ansiedade pareciam nunca mais acabar.
Aquelas extensões infinitas, centenas de milhões e centenas de milhões de quilômetros, não eram patrulhadas com rigor. Aqui e ali — em naves, luas, asteróides, estações construídas pelo homem — encontravam-se poderosos radares ou outros instrumentos tais como espectrômetros amplificadores, sobretudo para fins científicos. Eles podiam ser postos em serviço, mas não do pé para a mão, tanto mais que tinham de passar largas frações de uma hora, muitas das vezes, entre a mensagem e a resposta. E depois tinham de percorrer distâncias mais impressionantes ainda, de grau em grau de arco, enquanto o tempo se ia escoando.
Quick teve uma súbita idéia donde se encontrava provavelmente a Chinook. Ousara apenas sugeri-la a Palamas, insinuando que os estudos que se estavam a fazer na Roda de San Jerónimo eram mais importantes do que o Governo havia indicado e que seria desastroso se um afluxo de íons os fosse prejudicar. A sua esperança era que alguém lá no espaço concordasse e estivesse em condições de ver este ponto. Não seria conveniente, por certo, comunicar diretamente com Troxell.
De qualquer maneira, continuou o seu dia de trabalho, apertou a mão do humilde, felicitou o contemplado com uma bolsa de estudo, conferenciou sobre a estratégia a seguir para as próximas eleições no decorrer de um almoço em que mal se apercebeu da excelência da comida, tratou de vários assuntos correntes, sempre com uma afabilidade profissional afivelada na cara. As cinco da tarde telefonou a Alice a dizer que não ia a casa nessa noite também.
— Fico a trabalhar até bastante tarde, talvez toda a noite — explicou ele.
— Sim — respondeu a mulher, num tom neutro.
O aspecto dela mete-me pena. Sou um homem sensível.
— E verdade o que te digo, hem! —acrescentou. —Telefona depois para aqui, se não quiseres acreditar.
— E para quê? — suspirou ela. Ira Quick franziu as sobrancelhas:
— Estás a sentir-te deprimida de novo, minha querida? Já te disse mil e mil vezes que, lá simplesmente porque as minhas funções me obrigam a andar de um lado para o outro, não és forçada a fechar-te em casa, a definhar. Precisas de criar interesses no exterior. Precisas de atividades...
— Mas disseste-me para não me inscrever no Clube da Galáxia. Que se tratava em grande parte de um grupo de pressão que defende as explorações interestelares. Segui o teu conselho e não me inscrevi. Já atingi agora o limite das coisas a que tu queres que eu pertença.
— Essa agora! Não vamos começar a discutir, não?
— De maneira nenhuma. O meu problema é que gosto de ti. A voz dela arrastava-se, lenta, cansada. Continuou:
— E depois, as crianças. Entendo que precisam que eu olhe por elas. A propósito: já alguma vez te puseste a imaginar que espécie de relações amorosas existirão entre dos Outros?
Espicaçado, Ira Quick repontou:
— Já ouvi, isso sim, cinqüenta mil especulações sobre tudo quanto se possa conceber a respeito desses segregados Outros. E exigências de contatos, crendices, conversa fiada, más cantigas, piores escritos. Jamais uma coisa verdadeiramente construtiva. Tudo pretextos para se fugir aos verdadeiros problemas da nossa condição humana.
— Boa noite, Ira — atalhou ela. E desligou.
Quick desviou os olhos para o teto. “Deus meu, dá-me forças se é que existes” — declamou ele. — “E se não existes, dá-me forças também, de qualquer maneira.”
Os preparativos para a noite acalmaram-no um pouco, como a um são-bernardo que andasse à roda da cauda antes de se enrodilhar na relva. Não era a sua primeira vigília ali, e o lugar estava preparado para aquilo. Em teoria, Quick podia tratar de todos os assuntos a partir de casa. Na prática, porém, isso exigia interligações — por exemplo, a sistemas especiais de dados — que seria dispendioso instalar ali, e pouco seguro.
Mandou buscar o jantar, transformou o sofá em cama, desapertou a roupa do corpo, deitou-se ao comprido junto de um pilar, e perguntou a si mesmo o que iria fazer para passar o tempo. Talvez ouvir um clássico que sempre tivera intenção de ler, ou então ligar para um belo espetáculo a que nunca pudera assistir. Mas não: sentia-se demasiado tenso e preocupado. Melhor deixar o espírito vaguear à deriva, ou então ocupá-lo em qualquer coisa de construtivo. Talvez ouvir de novo um dos excelsos discursos dos fundadores do Partido. Ou — esperem! — porque não alguns dos seus próprios discursos, para lhes estudar a forma e possivelmente descobrir certos pormenores a limar? Estendeu o braço para carregar no botão.
O telefone tocou.
Já estava meio levantado quando se acalmou de novo. Mas ainda suava e sentia calafrios no seu íntimo.
— Tenho finalmente notícias — disse Palamas. O fundo da cena mostrava que ela estava a falar do seu apartamento ou qualquer coisa assim.
— Parece que localizaram a Chinook, a aproximar-se da Roda, do lado de lá. Brodersen, que a tua alma danada fique a arder para todo o sempre nas
profundas do Inferno, se o Inferno existe.
— Diga-me concretamente o que sabe, por favor.
Pela resposta de Palamas, parecia grande a probabilidade. Um objeto metálico aproximadamente do mesmo tamanho havia sido detectado à beira da zona interdita. Estava a aproximar-se, avançando com pouca aceleração, ou nenhuma. Alguns dias antes, um funcionário dos serviços meteorológicos do Sistema Solar tinha observado o rasto de reatores ao longo daquilo que podia ser uma trajetória apropriada. Todos os fatos se conjugavam para indicar que a Chinook se havia dirigido para as proximidades da Roda de San Jerónimo, ladeando-a, com um impulso suficiente para dar a volta e se dirigir de novo para Sol, e contornando-a uma vez mais (para ver melhor), provavelmente no intuito de acelerar depois para a Terra a alta velocidade e de chegar com qualquer história que a tripulação tivesse inventado. Não, chegar antes com uma notícia pela rádio, que milhares de pessoas pudessem apanhar, logo que a Terra estivesse dentro do seu alcance.
— Espero que possamos entrar em contacto com a nave — acrescentou Palamas. — Os laseres talvez não, mas se a Chinook tem a rádio aberta como mandam os regulamentos, deve ouvir um forte sinal.
— Não ... Quero dizer: aguarde ainda — e Quick escolhia as palavras.
— Aprecio muito os seus esforços, Miz Palamas, e não os esquecerei. Mas este assunto é mais grave do que me é permitido dizer-lhe. Desculpe se tenho de fazer ainda um apelo à sua paciência.
Inclinou-se mais para o aparelho e prosseguiu:
— Temos de tratar disto no maior segredo possível — recomendou ele. — Não deve transpirar nada para os órgãos de informação. Não lhes despertar a mínima suspeita. Não fazer a mínima alusão a este assunto. Fundamentalmente, estou a invocar os meus poderes ministeriais nos termos da Convenção da União. Devem ser dadas instruções a essa nave para se dirigir imediatamente para a máquina T e regressar ao Sistema Febiano, mantendo em silêncio os seus meios de comunicação para o exterior, sob pena das mais severas sanções se isso não for respeitado.
“Está a compreender-me, Miz Palamas? As mais severas sanções. A senhora e eu vamos ter uma longa noite de trabalho à nossa frente. Quanto a mim, tenho de dar conhecimento às entidades competentes, tenho de conferenciar com elas, de tomar as medidas que se impõem. A senhora tem de telefonar aos seus superiores, pô-los em contacto comigo, assegurar-se de que eles vão aparecer enquanto a senhora põe em marcha unidades espaciais que dêem cumprimento à minha ordem. Está a compreender-me bem, Miz Palamas?
— Penso ... Penso que sim, senhor ministro.
— Ótimo! — e Quick esboçou um sorriso tenso. — Repito, o seu trabalho neste caso concreto não será esquecido. Agora, durante uns minutos, vamos examinar ai do o que significa isto, e a melhor maneira de conduzirmos as coisas.
Palamas era uma mulher de meia-idade, a puxar para o gordo. Uma diligência feita durante o dia revelara que era casada, com uma vida familiar tranqüila, e membro efetivo do Partido da Constituição. Mas Quick tinha obtido perfeita colaboração em casos mais árduos do que este.
O medo começou a dissipar-se nele. Brodersen e a Companhia tinham infringido a lei em Deméter, haviam fugido dali, acusados de conspirarem contra a ordem pública. Tinha nas suas mãos o mandado de captura a afirmá-lo. Também ele — se lhe fosse dado apoio por quem de direito — tinha autoridade para os mandar.para trás, através da passagem, incomunicáveis, sujeitos a serem alvejados com uma ogiva nuclear ao mínimo sinal de rebelião. Entretanto avisaria Aurie e ela podia preparar as coisas para se ocupar deles à chegada.
Eram inúmeros, é claro, os pormenores e os imprevistos que podiam surgir. Por exemplo, nave nenhuma estava suficientemente próxima da Roda, a não ser a própria Chinook e a Emissário, vazia. Brodersen podia tentar qualquer manobra desesperada. Por muito bem que tudo se passasse, Ira Quick tinha um enorme trabalho diante de si, e depois disso iria precisar de imenso esforço para apagar o rasto de tudo aquilo e para dar uma explicação satisfatória. Haveria de precisar de uma forte ajuda, sim, e ao mais alto nível.
Além disso, esta crise fê-lo ver de maneira perfeitamente clara que tanto ele como os seus parceiros tinham ido longe de mais, por felicidade sem haverem tomado soluções extremas quanto ao destino final a dar à Emissário e ao seu pessoal. Era agora mais do que tempo de agir, por amor da humanidade.
O conhecimento disto era inesperadamente reconfortante. Quick forçou um ricto de combate. Com mil demônios, Brodersen! — pensou ele. Encurralei-te! Estou quase a pôr-te a pata em cima, e hei-de apertar-te o cachaço e domar-te ... mas obrigado pelo repto!
Quando as instruções chegaram à Chinook, a primeira reação do comandante foi dar uma ordem bem precisa:
— Desligar o motor. Cortar todos os circuitos, por cinco minutos. Uma sereia lançou o aviso. Todos se apressaram a segurar os objetos soltos e a procurar onde se agarrarem. Entretanto a embalagem da nave diminuiu fortemente, até ela ficar a planar em vôo livre, sem qualquer aceleração a não ser a que, reduzida pela distância, provinha da atração do Sol para o qual se dirigia.
Caitlín deu uma corrida do seu apartamento para a sala onde estava Brodersen. Tinha-se rapidamente habituado com bom humor ao movimento na ausência de gravidade. Não podia esconder por completo das suas feições a perplexidade nem do seu corpo a alegria de voar. A sua figura magra, vestida com um fato-macaco, fechou atrás de si a porta, afastou dois tabiques sucessivos com uma mão e um pé, chegou à secretária, agarrou-se a uma barra ao longo dela, deteve-se com um esforço que atirou o sangue para as maçãs do rosto realçando as madeixas que caíam à volta delas e, flutuando, avançou para dar um beijo na boca do homem.
— Calma, calma! — disse ele. Com a sua corpulência, estava sentado, preso a uma cadeira. — Temos uma decisão ou mais a tomar, e rápido.
— Que foi que te pôs num estado desses? — perguntou Caitlín, preocupada.
— Aquela chamada de Stef — respondeu ele, desnecessariamente. O imediato, de quarto no centro de comando, tinha recebido a mensagem e prevenido Brodersen pela linha privada.
— Mas tens um ar preocupado. Que aconteceu, Deus meu?
— Vais sabê-lo, assim como os outros.
O braço de Brodersen tocou nela e quase a afastou, ao procurar o botão do intercomunicador.
Caitlín aproximou-se para lhe dar uma palmada nas costas:
— Irás tu agora andar aos encontrões a mim como se eu fosse um boneco de palha?
— Raios para isto! — vociferou ele, meio a rosnar, meio a pedir desculpa. — Talvez tenhamos de ir para a Roda e em cada segundo estamos umas centenas de quilômetros mais perto de passar por ela.
Imediatamente arrependida, Caitlín não perdeu tempo a pedir desculpa, mas passou-lhe os dedos pela cabeça, numa carícia.
— Comandante à tripulação — declamou ele. — Atenção. Recebemos instruções da Terra, lançadas com longo alcance, e devem ter tido ali muita dificuldade para nos localizarem e para nos identificarem. Trazia indicativo de chamada das entidades oficiais. Pretendem que voltemos para Deméter, onde somos procurados por, cito, “graves acusações de conspiração contra a ordem pública e a segurança”. Querem que nos dirijamos diretamente para a máquina T. Não, não bem diretamente. Dão-nos os parâmetros de vôo. Que não nos aproximemos o suficiente de qualquer zona para nos anunciarmos, com o equipamento de comunicação para o exterior. Além disso, estamos proibidos de falar com quem quer que seja, a não ser com uma nave oficial que nos contate, ela, primeiro. Somos avisados de que foram destacadas naves de vigilância para fazerem cumprir tudo isto, cito, “pelos meios mais adequados”. A ordem vem assinada por Ira Quick, ministro da Investigação e Desenvolvimento da União, e invoca nada mais nada menos do que os seus plenos poderes para casos de emergência. Brodersen respirou fundo e continuou: — Em suma, meus amados irmãos e irmãs, o inimigo está no nosso encalço, mais depressa do que eu receava, e estamos destinados a ficar no mesmo isolamento do que a Emissário, ou ainda pior. Que fazer?
— Jesus, Maria e José! — exclamou Caitlín, antes de se conseguir dominar. Agarrou-se muito pálida à barra, e fixou nela uns olhos onde transparecia agora a dureza da esmeralda. Do intercomunicador vinha um murmúrio de vozes.
— Calem-se! — gritou Brodersen. Quando todos se calaram, disse ele:
— Ou aceitamos como bons cordeirinhos, bem ajuizados, ou tomamos contramedidas. Mas as contramedidas têm de começar já, creio eu. Foi por isso que mandei parar os motores. O que não nos dá muito tempo, no entanto. Pensem com rapidez, todos.
— Era preferível reunirmo-nos, de modo a não sermos apenas vozes uns para os outros — protestou Caitlín.
— Sim, já te disse, a nossa velocidade em direção ao Sol...
— Não podíamos detê-la entretanto e dirigirmo-nos para essa maldita Roda? Se ao fim e ao cabo decidirmos submeter-nos, não saberão na Terra o que fizemos antes. Não achas?
— Raios para isto! Talvez tenhas razão. Manda esperar, toda a gente. Brodersen afagou o queixo e refletiu em voz alta:
— Vejamos ... Sairmos do nosso vetor atual e adotar outro para um encontro ... Sim, eu tinha calculado que podíamos manobrar durante duas, três horas antes de os radares que estão tantas unidades astronômicas distantes de nós poderem descobrir a diferença ... velocidade finita de sinal, largo erro provável... E, além disso, o trajeto que em princípio devemos seguir fica naquela direção geral... Sim!
Assentou uma palmada no tampo da mesa, com o ruído de um tiro e com um violento movimento do corpo, todo coberto de correias.
— Aposto, Pegeen, aposto tudo quanto quiseres, que podemos estabelecer um trajeto direto para a Roda de maneira que ninguém lá em baixo, para lá da órbita de Marte, possa dizer que nos estamos a desviar da rota que nos marcaram.
O seu tom aproximava-se de um rugido:
— Stef e Phil! Comecem a frenar. Meio G. Isso não nos vai comprometer sem remissão por algumas horas.
— E não seria melhor lançarmos uma mensagem imediatamente para a Terra a dizer que obedeceremos? — perguntou Zarubayev.
— Claro, claro! — concordou Brodersen. — A ordem especifica a forma da nossa resposta. Nada mais do que o número um-zero-um, endereçado a determinado funcionário do Conselho da Astronáutica, mas sem qualquer identificação nossa. Eles estão realmente a tratar tudo em segredo, não é assim? Pois então mande isso por laser.
“Su — prosseguiu ele —, você compreende alguma coisa do que se passa? Antes de podermos planear, necessitamos de conhecer mais fatos. Ocupe-se disso e faça os cálculos para ver se podemos chegar à Roda dando a aparência, do Sistema interior, que estamos simplesmente a dirigir-nos para a rota prescrita. Quer dizer, podemo-nos ocultar por este meio? Tome em conta todos os postos que nos possam estar a observar, mas não esqueça de calcular até que ponto pode o disco de radar da Roda ser ampliado pela sua armadura contra a radiação. Pode ser?
— Com uma certa aproximação apenas.
A resposta de Granville era mais fria do que podiam esperar todos aqueles que não a conhecessem bem. E ela acrescentou:
— Sem garantia.
— Que coisa danada! Tudo o que fazemos neste universo é jogar ao rapa. De quanto tempo vai você precisar?
— Meia hora, talvez. Sobretudo para procurar os elementos.
— Está bem. Se a sua resposta for positiva, iniciaremos o avanço pelo trajeto que lhe parecer melhor, a fim de chegarmos à Roda sem sermos notados. Reunimo-nos então daqui a pouco na sala comum para debatermos o assunto. Quanto a mim, sou por uma operação de salvamento, para libertarmos a tripulação da Emissário. Vocês podem não concordar — disse Brodersen à sua tripulação em geral. — Examinem juntos os vossos pontos de vista enquanto aguardam. Pensem bem. Rezem para que o céu vos ilumine, se for esse o vosso desejo ... mas pensem!
Depois disso, repassou na sua mente aquilo que eles disseram. Não as palavras exatas, em si, palavras que estavam agora dispersas, em fragmentos, saídas de várias bocas, desarticuladas como são sempre as palavras quando certo número de seres humanos procuram raciocinar juntos, mas uma espécie de síntese, uma tentativa para estabelecer um quadro das diferentes opiniões ao saírem daquela reunião.
Sergei Zarubayev, prático e frio: “ Que alternativa deixou a própria cabala, além de nos matar?”
Stefan Dozsa, com rudeza, a bater com o punho no joelho: “E eles continuarão no Governo. Podem mesmo tornarem-se no Governo. Vamos assim do despotismo para a tirania.”
Philip Weisenberg, cheio de emoção, que só raramente mostrava: “Parece ser esta a nossa primeira possibilidade, a primeira possibilidade do homem se encontrar com os Outros. Iremos nós permitir que seja a última?”
Martti Lei no, furioso: “Não e não! Raios para tudo isto, Daniel Brodersen! Já não meteu você em demasiadas complicações a família pela qual se devia sentir responsável?” Mas depois amansou, conservando ainda um fundo de rabugice. Amansou em parte porque se sentia isolado, em parte porque Dozsa troçava da sua coragem. Até que o comandante acabou com aquilo.
Caitlín Mulryan, em voz alta e excitada: “Que queres dizer quando falas de eu ficar a bordo enquanto fazem o ataque? Muito gostaria que soubesses ...” E também ela precisou de se acalmar antes de dar consentimento, com relutância, àquela táctica.
Susanne Granville, em voz mansa: “Para que vim eu, meu comandante, senão para acompanhá-lo?”
Ele próprio: “Talvez eu tenha visado demasiado alto, ao partir para aqui. Sinceramente, penso que não. Subestimei o adversário, principalmente Aurie Hancock, suponho eu. Mas é de crer que eles agiriam tão rápido e de maneira tão decisiva se tivéssemos ido diretamente para a Terra. E teríamos então menos espaço de manobra. E, é evidente, não conseguiríamos a prova que conseguimos, de que a Emissário regressou.
“Pois bem, será extremamente fácil mandá-la para Sirius, levando consigo os cadáveres da tripulação, e fácil também darem-nos destino a nós. Não quero dizer que isso aconteça, mas não me surpreenderia. Querem ficar de braços cruzados perante um risco destes?
“Se pudermos arrancar o grupo de Langendijk daquela prisão — quanto a mim, estou convencido de que se trata de uma prisão —, que se passará depois? — perguntam vocês. Não sei, a não ser que estaremos então de posse da verdadeira prova, da prova irrefutável. As fotografias que tiramos à Emissário por meio das sondas podíamos tê-las falsificado. Mas como podíamos nós falsificar as pessoas? E, como sabem, elas podem ter adquirido alguns conhecimentos muito úteis, lá por onde andaram.
“Devemos contar com isso, é evidente. Concebi uma série de planos de batalha tendo em conta as diferentes situações, planos esses que gostaria de vos esboçar. São estritamente provisórios ainda. Temos de analisar como se apresentam os fatos. Já não estamos agora a divertir-nos ao pôquer e vocês compreendem-no. Estamos, sim, a dar tudo por tudo.
“Se vocês aceitarem a minha maneira de ver, terei em seguida de tentar descobrir se haverá possibilidade de extrair qualquer coisa de útil da Roda. Talvez não.”
Weisenberg talhou dragonas de uma folha metálica, Caitlín fez um pouco de costura e Brodersen ficou vestido como um contra-almirante do corpo espacial do Comando de Paz. Sozinho no centro de comando, aguardava que se estabelecessem comunicações para o exterior.
O silêncio envolvia-lhe a cabeça, silêncio tanto mais profundo quanto era pequeno o peso que o mantinha sentado na cadeira. Ouvia apenas o ar a passar-lhe pelo nariz, sentia o colarinho na garganta. As estrelas tremeluziam em número incrível nos écrans, a Via Láctea resplandecia a estender-se por faixas de escuridão, o disco solar pairava faraônico entre asas de luz. Uma forte ampliação numa das imagens mostrava a Brodersen o seu objetivo, raios e aro rodando lentamente como se estivessem a moer um grão desconhecido. A nave cativa não estava naquele campo de visão e Brodersen não reajustou a sonda para ela porque já a tinha visto e feito uma gravação. Tinha visto.
O protesto inicial de Leino ressuscitou dentro dele, enquanto aguardava, e ficou ali como um fantasma a apoquentá-lo. Terei eu o direito? Estou agora lançado nisto, mas devia ter começado? Pode ser que Quick e os seus estejam a tentar proteger-nos de qualquer coisa de horrível.
Ah! — respondiam juntos o seu eu racional e o seu eu voluntarioso.
Bem, mas devia eu porventura ficar de braços cruzados? — perguntava o fantasma. Menos por causa de Lis, embora fosse nela que Martti pensava, do que de Bárbara e de Mike. As suas imagens queridas vieram sentar-se-lhe nos joelhos. Quase podia sentir o calor e o suave odor que apenas se encontra nas crianças. Não que Deméter não seja amplo para elas viverem. Defato, uma abertura para a galáxia traria consigo uma revolução em todos os sentidos. Talvez para bem — penso que sim, mas posso estar enganado — ou talvez para mal, mas nada de tão estável, com certeza ... Aquele gênero de estabilidade que o seu pai lhes devia assegurar...
Brodersen empertigou-se. Porcaria! — resmungou ele, como num exorcismo. Tenho então de passar de novo por tudo isto? A União não é estável. País nenhum o é. O verdadeiro Inferno está a ser ateado na própria Terra, e Deméter encontra-se a um salto de distância, para lá da passagem. Porém, tudo em redor é um universo recheado de novidade, de novos mundos, de novos conhecimentos, de novas idéias. A única coisa que a exploração não nos trouxe foi a tranqüilidade absoluta. Em parte nenhuma a encontramos. O mais próximo que podemos chegar dela é quando aproveitamos da oportunidade.
Olá, aí temos a chamada! Eim do sermão, hem?
Apressou-se a ligar. No écran apareceu a imagem de um homem bastante novo, vestido à paisana mas perfilado como militar. No seu rosto lia-se a estupefação . A ansiedade de Bordersen diminuiu um pouco. Parecia evidente que a Roda não tinha recebido aviso nenhum.
— Missão especial do Comando de Paz — anunciou ele. — Matthew Fry, almirante, a comandar o transporte Chinook.
O nome falso era o do homem que tomava conta da cabana de Caitlín. Quanto à nave, não era aconselhável dar-lhe um nome fictício. Os aparelhos da classe Reina eram muito poucos.
Passaram cerca de três segundos até que as ondas de luz levassem as suas palavras através do espaço, mais o tempo para a resposta chegar. Ao todo, onze pulsações do coração. Brodersen contou-as e no fundo do seu cérebro ficou muito satisfeito por não serem ainda mais.
— Desculpe, meu almirante — e a voz do homem era hesitante. — Não tínhamos nenhuma indicação de que estava alguém próximo de nós.
Era o que eu calculava. Porque razão havia você de estar de vigilância? E porque haveria Quick de os prevenir? Isso levaria a que vocês ficassem um pouco perplexos. Nem os radares dele irão mostrar se formos em direção a si, porque vocês nos irão ocultar durante horas.
Eu receava é que vocês pudessem ter ouvido a mensagem da rádio que nos mandaram. Mas, neste particular ainda, não havia razão nenhuma para vocês estarem à escuta. Qualquer comunicação para aí chegar-lhes-á por raio laser, bastante econômico, pois a vossa órbita é conhecida com precisão.
— Não havia motivo para vos darmos conhecimento — disse Brodersen. — Ligue para o seu chefe: circuito fechado.
Pausa.
— Acabou o trabalho, está a dormir. Pode esperar?
Brodersen estava preparado para uma eventualidade destas, a fim de saber mais coisas. Afivelou ares de militarão:
— Não desconhece os seus deveres, julgo eu? — rosnou ele. — Diga-me o seu serviço, posto e nome.
Pausa. Era difícil intimidar uma pessoa com interrupções como estas nas comunicações. No entanto, um oficial superior do Comando de Paz era sempre impressionante, em especial no espaço, onde tinha poderes quase de vida e de morte.
— Desculpe-me, meu almirante. Sim, é claro, vou já fazer a chamada para o coronel Troxell. Imediatamente.
— Perguntei a que serviço pertence, o seu posto e o seu nome. Pode responder-me a isto?
Pausa. O homem na Roda empalideceu e articulou sem grande vontade:
— Serviço Secreto Norte-Americano, tenente Samuel Webster, meu almirante.
É então com esta gente que eu estou agora a tratar! Sim, Quick é norte-americano. Bate certo.
— Será melhor que aprenda a cumprir as ordens, se não quiser baixar de posto, tenente Webster. Bem, desta vez não vou proceder contra si. Chame --me o coronel.
Pausa.
— Sim, meu almirante. E obrigado!
Passou mais algum tempo. Minutos. Brodersen desejou que a sua imagem lhe permitisse acender o cachimbo.
Apareceu então no écran um homem corpulento, cabelo escovado à pressa e túnica vestida à pressa também.
— Fala Troxell — e cravou o olhar nele, a sondá-lo. — Almirante, como?
Fry? Seja bem-vindo. Apanhou-nos de surpresa? Desculpe, e estamos ao seu dispor.
O fechar dos lábios a significar que tinha acabado de falar, refletia um vigor militar.
— Muito bem — volveu Brodersen. — Primeiro, vai manter silêncio total, não comunicando para mais lado nenhum no exterior, a não ser para esta nave. Se porventura receber uma mensagem, quero saber o que ela diz e ditar a resposta. Em breve lhe explicarei porquê. Em segundo lugar, quero aumentar a minha aceleração para um G, o que me permitirá descer na Roda dentro de cinco ou seis horas. É possível?
Pausa.
— Bem ... é ... mas, almirante, como medida de rotina, gostava de ver as suas ordens.
Já esperava!
— E quer-me transmitir as suas, coronel? Pausa.
— Como? Desculpe. Podia explicar?
Brodersen forçou um sorriso como aquele que seria de esperar do almirante Fry:
— O senhor está a trabalhar com extremas precauções. O Serviço Secreto da América do Norte não costuma mostrar documentos confidenciais à toa. Nem o Comando de Paz. Poremos ambos as nossas bobinas ômega no seu leitor quando eu chegar, e compararemos então.
A divisão da imagem para transmissão iria automaticamente eliminar as informações em código. Pausa.
— A sua missão é realmente assim tão secreta?
— Uma vez que se relaciona com a sua, é. Coronel, arme-se de toda a coragem. O senhor tem estado a guardar os membros da expedição Emissário. Está disposto a acrescentar-lhes um carregamento adicional de não humanos?
O efeito foi tão fulminante quanto Brodersen esperava. (De contrário, podia ter voltado para trás então e procurado transmitir as suas notícias a mais uma nave ou duas, a uma base isolada num asteróide ou duas, antes de as naves de vigilância os caçarem, embora fossem escassas as probabilidades de resultar daí qualquer coisa de bom.) As dúvidas de Troxell desvaneceram-se. Tinham sido poucas desde princípio, pois não tinha razão nenhuma para suspeitar que alguém, a não ser o Governo e a tripulação da Faraday, estivesse ao corrente dos fatos.
No entanto, Brodersen tinha de proceder cautelosamente, embora com enorme desplante. Com efeito ele, praticamente sem trunfos, estava a tentar deitar sal nos olhos a toda a gente. Fingindo-se no segredo de informações que de fato não possuía, tinha de as extrair de Troxell sob pretexto de lhe contara sua própria história.
Assim: depois de a Emissário regressar, o Comando de Paz tinha destacado uma guarda extra para a máquina T no Sistema Febiano. Aparecera uma nave estranha. Foi abordada e fizeram prisioneira a tripulação, sem resistência. Tendo já fretado a nave de exploração da Chehalis, uma nave bem equipada mas inativa, o Comando de Paz levou os prisioneiros e os seus artigos de primeira necessidade para os reter em segurança. A fim de se adiantar a quaisquer especulações, Fry declarou, quando entrou no Sistema Solar, que o seu destino era Vesta e seguiu nessa direção, diferente do seu verdadeiro objetivo, antes de virar depois para ele.
Troxell acreditou. Sem ser tolo, era homem predisposto para acreditar. Brodersen tinha previsto isso. Os guardas da Roda (vinte e um ao todo, como ele veio a saber fingindo um ligeiro mal-entendido) deviam ser mais ou menos da ideologia acionista. De outro modo, estudando os seus processos individuais e sem dúvida mandando fazer exames psicotécnicos a esses voluntários “para uma missão confidencial da mais alta importância”, Quick não os teria escolhido. .
Não tardou que Troxell sentisse também desejo de falar. Necessidade de se justificar, ele que havia vivido enclausurado todas aquelas semanas com os seus prisioneiros, que eram também seus acusadores. Brodersen ouviu-o pacientemente, encorajando todos os argumentos antiestelares. Durante um momento esteve tentado a negar que a detenção daquela gente fosse justificada, que fosse um acto decidido pelo Conselho. Mas não. Algumas frases não podem transformar as idéias de um homem.
Entretanto o seu coração batia apressado. Brodersen sentia gelar-se-lhe a pele, perpassar nele arrepios, com a alma excitada por baixo de uma calma aparente, dificilmente contida. Porque entre tudo aquilo que ouvia, entre toda aquela ladainha ia apanhando a verdade. A tripulação da Emissário havia estado oito anos para lá da passagem. Tinha perdido três dos seus elementos. Carlos e Joelle estavam vivos. Sustentavam os prisioneiros que os estrangeiros eram amigos e que estavam desejosos de iniciarem um intercâmbio cultural. Tinham ali um estrangeiro com eles.
Tinham ali um estrangeiro com eles...
Brodersen não encontrou maneira segura de saber com que se parecia aquela criatura. Depreendeu que ela podia viver nas condições terrestres, tinha aproximadamente o tamanho dos homens e declarava ser o único representante que a sua raça iria mandar, a menos que o gênero humano escolhesse livremente estabelecer relações ...
— E depois disso mandaram eles então uma nave de sua própria iniciativa, apesar de tudo? — perguntou Troxell. — Pensarão que nós somos tolos?
—Talvez haja surgido entretanto qualquer fato novo que os haja levado a mudar de opinião — sugeriu Brodersen. — É assunto a investigar, uma vez que o senhor tem aí a única gente com experiência destes seres.
“Além disso, e talvez mais importante, o Conselho entende que será preferível conhecê-los primeiro muito melhor, antes de permitirmos que se concretize qualquer coisa. Espero que a própria circunstância de havermos capturado este grupo faça plena luz sobre o assunto e não tenhamos de tomar medidas mais drásticas. O senhor compreende muito bem, coronel: também não podemos dar largas à histeria pública. Daí o segredo.
Pausa.
— Não há dúvida, almirante Fry. E nada a opor. Vamos então examinar em conjunto as medidas práticas, quer? Que precauções tem o senhor em mente?
Por fim terminou a conferência.
Voltava agora a sentir-se a força de gravidade como na Terra, enquanto a Chinook avançava. A Roda estava mais perto, e já se via bem. Quando a comunicação para o exterior cessou, a tripulação ficou livre para lançar pelo intercomunicador tudo quanto tinha a dizer. Brodersen sabia que era imprescindível organizarem-se muito bem. Iriam correr um grande risco, na melhor das hipóteses.
Brodersen levantou-se, estírou-se e pôs-se à vontade; estirou-se ainda mais, até distender os músculos. Temos de andar depresssa! — pensou ele. Vou mostrar-lhes o que há afazer e exercitá-los o melhor que puder. Mas não é tudo. Para isso basta uma hora ou duas. Primeiro, descansemos. Mas, primeiro, vou até ao pé da Pegeen. Pode ser a última vez que estejamos juntos.
Avançando com suavidade por meio dos seus motores auxiliares, a Chinook foi pôr-se em linha com o cubo aberto da Roda. Brotavam da noite vapores com laivos de chamas, e dissipavam-se, Isso tornava possível um rápido escoamento do enorme potencial eletrostático que protegia a Roda dos raios cósmicos. Quando a nave ficou numa posição conveniente, deslizando por uma trajetória cuidadosamente calculada, começou a mover-se dentro dela um giroscópio. A fuselagem adquiriu um movimento de rotação até que ficou a rodar ligeiramente mais rápida do que a estação. Nessa altura já a nave estava muito próxima.
A tripulação sentou-se ainda para evitar o enjôo resultante das variações radiais de peso e da força Coriolis. Brodersen sentiu-se reconfortado pelo tom de voz, seguro, do oficial de controlo, à sua frente. A história que contara justificava só por si a ausência de quaisquer distintivos exteriores na Chinook, além do número de registro e do espampanante emblema da companhia, assim como a existência de uma torre blindada, contrabalançada por um tubo de mísseis. No entanto poderiam ter sido levantadas suspeitas — talvez na Terra —, fazendo que mandassem para aqui um aviso, à velocidade da luz. Mas era evidente que tal não acontecera. O coração de Brodersen batia forte, contudo. Os seus queixos fizeram um esforço para não ficarem colados. O suor escorria-lhe, frio, pelas costas, e ele sentia vapores. Havia-se passado mais de um quarto de século terrestre desde a última vez que entrara em combate.
A nave espacial abeirou-se do cubo à velocidade de poucos metros por segundo. Estava agora ligeiramente afastada do centro. (Era preferível assim. Uma nave daquele tamanho tinha escassa folga para as operações de acostagem.) Avançaram braços da parede do cilindro. Rolamentos de rolos, de superfície suave, fizeram parar a Chinook com a proa a projetar-se para a frente, a popa e a tubagem salientes atrás. O seu movimento de rotação tornou-se igual ao daquilo que a rodeava, a partir do instante em que as suas aberturas principais para o pessoal e para a carga ficaram em face das correspondentes portas de entrada do tubo. Isto fazia que a Roda adquirisse um momento angular, mas a alteração era diminuta. Depois de um número apreciável de acostagens terem afetado significativamente a rotação, um reator no aro ajustá-la-ia de novo.
Uma vez que a nave chegada não tinha carga a descarregar, só um tubo foi avançado para saída da tripulação. Um depósito de reserva encheu-o de ar. A pressão, agora igualizada, ativava um sensor que por sua vez fazia acender uma luz verde e provocava um zumbido. Podem entrar.
Brodersen passou a língua seca pelos lábios que pareciam lixa. Fora isso, sentia-se como outrora, frio, demasiado ocupado para estar nervoso.
— Okay — disse ele aos seus homens. — Lembrem-se do combinado e dos sinais.
Mandou um beijo a Caitlín, que estava por trás dele com uma pistola--metralhadora em punho. Susanne ficara ligada ao seu computador e, através dele, a toda a nave, que responderia a qualquer ordem de comando que ela desse. A reduzida energia que agora lhe chegava apenas lhe permitia algumas decisões fundamentais, mas Brodersen sentia-se feliz mesmo por esse apoio.
Caitlín tocou com os lábios a boca da sua arma e acenou na direção dele. Brodersen afastou-se do fascínio daquela mulher.
— Boa sorte! — desejou Brodersen a toda a sua gente. E avançou.
A força centrifuga, igual a cerca de um décimo de G, estendeu o fole por baixo dele, mas o fole tinha anéis. Para além da válvula exterior, o tubo de desembarque oferecia-lhe outro caminho estreitamente espaçado, pois tinha pregas com escassas dimensões. A luz fluorescente lançava sombras estranhas por entre essas pregas. Brodersen saltou. A quase ausência de peso tinha o seu encanto.
Ao surgir do outro lado, agarrou-se a uma pequena escada fixa que levava a uma plataforma semelhante a uma varanda, destinada a facilitar a descarga da bagagem. Daí, uma segunda escada levava à ponte. Mas Brodersen parou onde estava e olhou. Era o momento de atacar ou fugir.
Com 5 m de alto, estendia-se ali um largo corredor em arco, a perder de vista de cada lado, convexo por cima dele, côncavo por baixo. Viu portas ao longo desse corredor, portas que impediam a passagem para instalações fora de serviço. Uma escotilha levava a um raio, ponto de passagem para o aro. Encontrou uma antessala pintada de bege e alcatifada. A aragem vinda das grades de ventilação chegava pesada, com um tênue cheiro a óleo, sinal de recente negligência.
Um pouco abaixo, viu um grupo de homens. Salvo Troxell, que vestia túnica de serviço e calças, todos usavam fatos-macaco. Cada um deles tinha uma arma no coldre: armas de bala e não imobilizantes. Brodersen contou-os. Vinte e um. Despertou nele um pouco de otimismo. A operação estava a andar bem, até agora. Eilos ali, a todos, incluindo os oficiais de comunicações e de controlo, os técnicos de manutenção, o contramestre ...
Era o que ele pretendia que o coronel aceitasse. Fechar no auditório os seus prisioneiros. (Brodersen tinha observado com atenção onde ficava o auditório.) Trazer todo o pessoal a fim de ele receber os que iam chegar e escoltarem para lugar seguro os não humanos (que podiam — quem sabe? — usar de meios não humanos para tentarem a fuga).
— Seja bem-vindo, meu almirante! — disse Troxell em inglês. A sua voz de baixo ressoou um pouco entre as paredes nuas. — Tudo em ordem?
— Tudo em ordem — confirmou Brodersen.
— Venha daí então.
— Espere um pouco. Quero um homem atrás de mim.
— Como?
— Todo o cuidado é pouco, não é assim? Avance, Sergei. Apareceu Zarubayev, com uma pistola-metralhadora. Apressou-se a ir juntar-se ao comandante. Os agentes mostraram surpresa. Barbudo, cabelo comprido, vestido como eles, o russo contrariava o que esperavam.
E aqui vamos nós, Súbito, Brodersen sacou da pistola. A pistola-metralhadora de Zarubayev deslizou, pronta a disparar.
— Nem um movimento! — gritou Brodersen. — Mãos ao ar, ou atiramos!
— Que diabo é isto?
O rugido de Troxell foi cortado pelo matraquear da arma de Zarubayev. A rajada de aviso cravou-se na parede oposta. Os guardas ficaram petrificados.
— Mãos na nuca! — ordenou Brodersen. — Rápido! ... Muito bem, minha gente. Avancem.
Weisenberg e Leino juntaram-se a ele. Empunhavam espingardas automáticas, e traziam às costas mais armas de fogo.
— Fiquem onde estão e ninguém vos fará mal — ordenou Brodersen. — Mas atenção, quem se fizer engraçado já sabe: damos cabo dele. Compreendido? Damos cabo dele!
No seu íntimo, fazia votos para que tal não acontecesse. Aquela gente, afinal, não fazia mais do que o seu dever. Brodersen tinha, no entanto, encontrado outros homens como aqueles, quando envergava de verdade o uniforme da União, homens que ajudaria a matar. De um lado e do outro haviam-se tornado irreconciliáveis nos seus ódios.
O seu olhar voltava-se para a direita e para a esquerda. Zarubayev sorria, como se tivesse prazer naquilo. E talvez tivesse. Weisenberg estava tenso, com a boca alongada de maneira quase disforme, embora a sua arma nunca vacilasse. A cara de Leino, essa, transpirava, com as feições vincadas, cabelo úmido. Respirava com ruído, mas também não parecia ter medo. £ quanto a mim, vejamos, costumavam chamar-me o Grande Rosto de Pedra, lembrou--se Brodersen.
Atrás, no tubo de passagem, Dozsa e Caitlín eram as suas reservas, a guardarem a retirada. Brodersen perguntava a si mesmo como estavam eles. Não era brincadeira nenhuma levar a cabo uma operação paramilitar daquelas com amadores. Tinha distribuído os postos o melhor que era possível. Zarubayev, embora nascido em Deméter, havia sido sempre incansável e tinha passado alguns anos no Comando de Paz, no corpo interplanetário, antes de ir trabalhar para a Chebalis. Nunca tinha visto um combate, mas tinha feito muitos exercícios, havia participado em muitas manobras. Leino, crescido nas regiões agrestes, era um atirador de primeira ordem. Weisenberg podia fazer de qualquer ferramenta um órgão do seu corpo. E que era uma arma senão uma ferramenta? Todos três tinham vasta experiência do espaço. Dozsa também, mas não com armas e só raras vezes fora de uma nave. Pegeen ... Quanto a Pegeen, fiz tudo quanto podia no pouco tempo de que dispunha. Se avaliei bem, vou sabê-lo agora.
A raiva cavava-se no rosto de Troxell.
— Mas o senhor endoideceu? — gritava ele. — Que vem a ser esta pirataria? Imaginam porventura que podem sair daqui à vontade, seus filhos de uma cabra? — e sentia-se sufocar.
— Não se exalte! — protestou Brodersen. — Já-lhe disse que não fazíamos mal a ninguém, a menos que nos forcem a isso. Escute. O que nós queremos é libertar a tripulação da Emissário. Ela está aqui detida sem qualquer motivo para isso. Vocês foram ludibriados. Ira Quick é um canalha, e não há-de tardar muito que o vejam no banco dos réus.
— Prove isso! — desafiou um agente. Brodersen abanou a cabeça:
— Vou-lhe responder como Antônio respondeu a Cleópatra: não estou disposto a alongar-me em considerações. Os serviços noticiosos hão-de informar-vos disso depois. Por hoje, resta-vos cumprir ordens.
“Saiam daqui por aquela porta 14 — e apontou. Viu-se que era a entrada para o raio. — Juntem-se mais uns aos outros. Quero-vos bem ao alcance deste amigo — e levantou um dedo para Zarubayev. — Ele tomará conta de vocês enquanto vamos libertar os prisioneiros. A seguir, desarmamo-vos e fechamo-vos aqui. Deixamo-vos uma máquina de furar ou um martelo e um formão ou o que vocês acharem melhor para se libertarem uma hora ou duas depois de nós partirmos. Compreendem? Não queremos por nada fazer mal a ninguém. Não somos salteadores. Estamos a tentar reparar uma tremenda injustiça, que é também uma ameaça sobre a União. Considerem-se presos, obedeçam-nos, e tudo correrá pelo melhor. Mas, repito, nós atiramos se formos obrigados a isso. Vamos! Conservem as mãos na nuca. Para a frente!
Eles lá foram. Brodersen tinha plena consciência de quanto aquilo era arriscado. Sentia palpitação e tremores, chegavam-lhe as pragas resmungadas, no meio do suor e olhares ferozes.
— Parem! — gritou ele. E para Leino e Weisenberg: — Avancem!
Eles não utilizaram a escada e saltaram, tombando como folhas no Outono. Brodersen seguiu-os. O impacte foi ligeiro nos pés e nos joelhos. A entrada era mesmo ali. Estava aberta. Brodersen fez sinal aos seus companheiros para prosseguirem. Quando eles passaram, a sua mão livre agarrou-se a um corrimão, e ele deslizou também por um pequeno corredor.
Um tiro de pistola fê-lo parar. Segundo tiro. Terceiro. Eram estocadas nos seus ouvidos. Sentiu um calafrio. O grupo de agentes estava a desconjuntar-se como uma bolha de mercúrio que tivesse caído no chão. Havia homens a correr precipitadamente ou a cair para & ponte. Puxaram das armas e fizeram fogo. Zarubayev estava desvairado, com corpos mais abaixo, estendidos, e pôs-se a recuar aos ziguezagues. O sangue jorrava-lhe do pescoço e do ventre.
Brodersen sentiu-se furioso contra o inimigo. As idéias sucediam-se dentro dele: um fanático, um devoto, um herói... Deve ter agido enquanto dois ou três o escondiam ... Sacou da arma e atirou ... Prevendo que quase por certo falharia, mas desencadearia o tiroteio ... Nunca saberei quem foi...
Ouviu Troxell lá em baixo, viu a retirada dos sobreviventes quando Dozsa chegou à plataforma, curvado por cima de Zarubayev, e espalhou uma rajada pelo corredor. As balas zuniam e faziam ricochete, no meio do estrondo das explosões. O grupo de Troxell desapareceu na curvatura daquele mundo.
Ele não vai continuar uma luta assim nestas condições. As pistolas são muito pouco seguras, especialmente aqui... com fraca gravidade, vetores Coriolis, pontaria mais do que incerta...
Dois homens estavam estendidos ali, com os corpos hirtos. Três outros, muito feridos. Um afastava-se com as pernas a arrastarem-se; outro olhava pasmado para uma rótula do joelho despedaçada e soluçava; outro sentara-se, deixando-se cair como uma massa, contra o tabique, em estado de choque. O sangue de Zarubayev gotejava da plataforma, lento e vermelho, lento e vermelho. Dozsa rosnava a um canto. Caitlín estava agora ao lado dele, fora de si, com uma torrente de imprecações, mas apontando a arma com firmeza para trás e para a frente.
O que Troxell vai tentar fazer é impedir-nos de libertarmos os prisioneiros.
O entorpecimento de Brodersen acabou. Durara apenas escassos segundos.
— Mantenham as posições! — gritou ele. — Conservem-se bem a resguardo! Vamos voltar!
Trepou por uma pequena escada de caracol para o elevador.
Weisenberg e Leino estavam ali. O mecânico-chefe tivera naturalmente de obrigar o mais novo a refrear-se, a não se ir meter na luta, o que seria inútil ou agravaria as coisas. Estavam ainda a altercar.
— Vamos! — disse Brodersen, e carregou no botão.
O elevador quase não passava de uma larga prancha de aço disposta ao comprido, com um cabo a puxá-la. Três outros destes elevadores serviam a mesma passagem. Entre eles, fáceis de subir, viam-se escadas de mão, liberalmente munidas de espaços para descansar. Eram para uso em casos de emergência. O buraco estendia-se por quase 900 m. Olhando lá para o fundo, palidamente iluminado, Brodersen viu que ele convergia em perspectiva para um ponto muito mais estreito, e sentiu vertigens.
Weisenberg deixou-se cair sobre um banco e olhou para o chão:
— Eloí, Eloí — murmurou ele —, tinha de ser.
Leino, de pé, agarrou-se ao corrimão como se o quisesse amarfanhar e levantou a espingarda acima da cabeça. As suas palavras, com o acento das Terras Altas, soaram na sua crueza:
— Caíram na própria ratoeira, os sabujos!
— Ainda não nos desembaraçamos deles — foi a resposta de Brodersen, uma resposta automática. Dentro de si uma voz gemia: e eu trouxe Pegeen para isto. Pegeen! — Estou convencido de que esperam apanhar-nos no auditório.
Weisenberg levantou os olhos, imediatamente alerta:
— E será possível?
— Não sei. Você ouviu o que eu consegui tirar a Troxell a respeito do local. Não me atrevi a ir demasiado longe nas minhas perguntas.
— Jesu Kriste! — rosnou Leino. — Isto está a fugir-me debaixo dos pés!
— É assim mesmo — explicou-lhe Weisenberg. — A diferença de gravidade e a pressão do ar. Você vai precisar de tempo para se adaptar. Seja qual for o caminho que o inimigo escolha, não será mais rápido. E eles afastaram-se de nós a descreverem uma grande curva. O auditório é para o lado oposto. Temos uma ligeira vantagem sobre eles.
— Sim, e precisamente três de nós ainda os metralhamos — acrescentou Brodersen. — Sente-se aqui, Martti. Recupere um pouco as suas forças.
Brodersen deu o exemplo, depois de escolher uma espingarda do carregamento de Leino, mas o seu espírito não se aquietava. Pegeen, Lis, Bárbara, Mike. As estrelas.
Uma vez em rapaz, num cruzeiro à vela pelas ilhas de San Juan, tinha-lhe surgido uma dor violenta num ouvido. Nada a fazer senão suportá-la até que o tímpano rebentasse e amainasse assim aquela dor horrível. Isso levou umas boas horas. Agora, esta corrida de cinco minutos parecia-lhe mais longa.
Mas acabou. Brodersen adiantou-se com fúria para uma escada de caracol que levava a uma porta, em direção à ponte. Durante mais de 100 m podia ver o caminho, até a curvatura fechar a visão. O corredor estendia-se diante dele como uma rampa. Embora nunca estivesse a trepar, enquanto avançava por aquela cavidade o peso arrastava-o. A respiração tornava-se-lhe ruidosa na garganta.
Uma porta dupla por baixo de um foto-mural, Armstrong na Lua... Brodersen esperava ter de despedaçar a fechadura, mas o que fechava a porta era um mero trinco, uma barra de aço entre dois suportes que deviam ter sido soldados à pressa depois de ele ter chamado do espaço. Puxou o trinco e abriu.
Alinhadas às centenas, as cadeiras dispunham-se em frente de um estrado tão vazio como elas. A um canto, os exploradores da Emissário levantaram--se, estupefatos. A maior parte estavam despreocupadamente vestidos. Fixaram os olhos em Brodersen, enquanto este se apressava em direção a eles, até que viu Joelle. Com mil diabos! Com os cabelos a embranquecerem e magra. Sempre foram oito anos... E viu o estrangeiro. Dir-se-ia um cruzamento imaginário entre uma lontra, uma lagosta, uma foca, um pato, um canguru, um jacaré, um porco-espinho. Não, não se parecia realmente com nenhum destes bichos, nada a que Brodersen pudesse dar um nome. Nada para que a sua imaginação estivesse preparada> Um vulto castanho...
— Vimos libertar-vos! — gritou Brodersen. — Somos amigos. Vimos tirar-vos daqui para fora. Joelle, não me conheces?
— Liberdade, liberdade, liberdade! —cantava Leino.
Do grupo avançou um homem alto. Brodersen reconheceu o capitão Langendijk. Weisenberg correu para ele. Brodersen e Joelle pararam, olharam um para o outro, estenderam as mãos.
Weisenberg e Langendijk detiveram-se.
— Isto é uma operação de salvamento — disse o mecânico, quase sem poder respirar. — Vocês estão presos ilegalmente. Viemos para vos porem liberdade... Para dar a conhecer a verdade... Encontramos resistência... Podemos ter de abrir à força o caminho de regresso à nossa nave... Atenção, armem-se também...
— Dan! — exclamava Joelle, maravilhada. Os seus olhos eram enormes, uns olhos de ébano numa face de marfim.
Brodersen recuperou o sentido das realidades:
— Vamos depressa! — acudiu ele, e agarrou-a pelo pulso. Joelle, por sua vez, fez um gesto para o não humano, que avançava para ela.
Veio juntar-se-lhes um homem.
— Daniel! — exclamou ele. — Por todos los santos!...
Era Carlos Francisco Miguel Rueda Suárez. Estava agora calvo.
Seguia-se uma mulher sólida, loura. Brodersen lembrou-se de súbito do nome de Frieda von Moltke. Os restantes vinham depois, perplexos. Brodersen tomou o caminho da ala onde já estivera. Era preciso evitar que ficassem ali bloqueados.
— Vamos depressa! Mais rápido! — clamou ele. Uma vez passadas as portas, Weisenberg e Leino podiam distribuir as armas que traziam. Depois disso, podiam deixar Troxell tomar as medidas que quisesse. Os dois mecânicos iam logo atrás de Brodersen, a vociferar, a agitarem os braços. A maior parte dos cativos ainda estavam desorientados. Langendijk mandou-os avançar, mas eles não eram soldados, nem tinham nada a ligá-los àqueles bárbaros invasores. O clamor e as armas despertaram neles o instinto para se esconderem. Precisavam de alguns minutos para compreender o que se passava.
Brodersen voltou para o corredor. A mão direita segurava a espingarda, a esquerda Joelle. O estrangeiro vinha logo atrás, perto dela. A seguir vinha Leino. Weisenberg deteve-se à porta para fazer sinal aos retardatários. Von Moltke aproveitou a ocasião para lhe tirar uma das pistolas-metralhadoras e para a pôr a tiracolo. Rueda Suárez começou a fazer o mesmo.
Na curva da ponte surgiu Troxell e os seus homens. A fila da frente trazia, seguras pelos pés, grandes mesas com os tampos voltados para os atacantes. Abrigos.
Depois disso, Brodersen nunca conseguiu lembrar-se por completo do que aconteceu. De novo a fuzilaria. Ele e os que o acompanhavam recuavam para a entressala. Ziguezagueavam, ajoelhavam, caíam, davam mais uns passos, continuavam a atirar, e no entanto nenhum era atingido. Fosse como fosse, o inimigo tinha partido quando chegaram ao raio seguinte.
Brodersen observou que o fogo deles tinha sido- demasiado intenso, deixando às pistolas pouca oportunidade de acertarem. Ou então os agentes já não tinham munições. Ou ambas as coisas. Troxell teria conservado as suficientes para manter fechados os seus prisioneiros da Emissário que não saíram logo. Um regresso ao auditório seria puro suicídio.
Joelle bateu no ombro de Brodersen para lhe chamar a atenção:
— Escuta, Dan, temos de ir a uma sala, ali. Fidélio, o betano, o estrangeiro, não come da nossa comida. Temos mantimentos para ele.
— Como? — perguntou Brodersen. — Não. Demasiado arriscado.
— Não será arriscado, se nos apressarmos — interveio Rueda. — Santo Deus, Daniel, Fidélio é a nossa ligação com toda a sua raça!
— Está bem! — decidiu Brodersen. — Levem-nos até lá. Mas depressa. A sala não era muito longe, nem estava fechada à chave, e as rações já estavam embaladas — a maior parte delas, ao que parecia, congeladas. Carregando com aquilo, o grupo procurou a saída mais próxima, subiu para o elevador e pô-lo em movimento para o tubo.
Quase não falaram durante o trajeto. Estavam aturdidos. Brodersen contou: ele, Joelle, o estrangeiro, Weisenberg, Rueda, Leino, Von Moltke. Quatro salvos. Isso bastava, se pudessem levar o testemunho à Terra. Se não pudessem, ele ficaria nas páginas da história como um tresloucado que havia perdido a vida num ataque de surpresa, tentado por qualquer motivo obscuro.
O elevador conduziu-os até final. Desceram numa saleta que era acentuadamente arredondada. Ali estava a plataforma. E ali encontraram Pegeen, Dozsa, Pegeen, Pegeen. Ela rejubilou. Brodersen não viu Zarubayev, que devia ter sido levado para bordo. Podia ter sido ela a levá-lo, naquelas condições de ausência de peso. Estaria Zarubayev vivo? A pergunta tinha de ficar em suspenso. Não tardaria que Troxell decidisse a maneira de agir. Melhor seria que eles partissem antes.
Todos treparam pela escada para a nave, seguidos de Brodersen. Este dirigiu-se ao intercomunicador mais próximo.
— Su, prepare tudo para seguirmos viagem! — rosnou ele.
As válvulas fecharam-se. O motor arrancou. A baixa aceleração, a Chinook desprendeu-se da maquinaria à sua volta e regressou ao espaço.
Brodersen sentiu uns dedos a cravarem-se-lhe na manga. Voltou a cabeça e viu Von Moltke.
— Se faz favor, comandante — articulou ela com um acento rouco. — Dizem-me que o seu atirador foi abatido. Dizem-me também que o armamento desta nave é igual ao da Emissário.
— Sim — respondeu ele, quase entorpecido na sua exaustão. — Sim, é.
— Eu era atiradora na Emissário — lembrou-lhe ela. — Posso ajustar pormenores com os seus mecânicos. Deixe-me alvejar os discos de transmissão na Roda e na nave deles. Melhor eu pôr fora de combate a nave também. Assim, já não podem dizer à Terra o que se passou conosco .
Como Brodersen hesitasse, Von Moltke prosseguiu:
— Duvido que eles já tenham anunciado, mas não tardarão a fazê-lo, a menos que nós o impeçamos. Se impedirmos, não haverá perigo para aquela gente. Podem ficar ali tranqüilos até que alguém se lembre deles e mande um engenho ver o que se passa. Entretanto, pode o senhor levar a cabo o seu plano. Tenho razão?
— Tem razão — reconheceu Brodersen. — E autorizo. Coordene a operação com Phil, isto é, com o mecânico-chefe Weisenberg, e com a nossa linker, Granville.
Enquanto isto se passava, não se preocupava ele com mais nada a não ser com Caitlín.
Minutos depois, um cortante raio de energia silenciava a Roda de San Jerónimo. Não fez ali mais estragos. Mas um míssil deixou a Emissário num turbilhão de destroços que causavam pena.
Mais dois actosdefelonia, pensou Brodersen. Melhor será concebermos desta vez uma boa ação para merecermos o perdão dos poder es públicos.
Nem pensar nisso agora. O objetivo imediato é sobreviver.
Não. Primeiro de tudo, dormir. Mal conseguiu pôr as coisas provisoriamente em ordem e lançar a nave para uma nova corrida no rumo que julgava indicado, antes de cair na cama.
Sergei tinha morrido. Caitlín estreitava Brodersen contra si.
De novo com uma gravidade igual à da Terra, a Chinook avançou para a máquina T. Na rota que havia sido traçada, a viagem duraria seis dias terrestres.
— O melhor que temos a fazer é submetermo-nos por agora, enquanto procuramos delinear uma estratégia — tinha Brodersen explicado. — De contrário, eles cairão em cima de nós, e uma nave de vigilância anda mais depressa do que a nossa. Nem por sombras podemos fugir a um míssil dirigível.
Von Moltke tinha-o provavelmente salvado disso, a ele e aos seus companheiros, acrescentou no seu íntimo. A notícia do assalto teria fornecido uma perfeita justificação para ordenarem que esta nave fosse alvejada e destruída. Isso não libertaria Quick e os seus dos embaraços criados pelos viajantes da Emissário que ainda tinham ficado na Roda, para não mencionar outras questões relacionadas com o grupo de Troxell; mas possivelmente podiam desvencilhar-se. Iriam por certo procurar desvencilhar-se e um erro da sua parte podia ser mortal.
Como as coisas estavam, enquanto a Chinook permanecesse com os movimentos livres havia possibilidade de dar a conhecer tudo o que se havia passado. A equipagem de Langendijk estaria a salvo também de qualquer coisa pior do que ficar presa. Na verdade, do ponto de vista táctico fora bom que Brodersen não tivesse conseguido libertar toda a gente. Agora a causa — da liberdade? — não tinha todos os ovos num só cesto, sujeitos a partirem-se todos ao mesmo tempo. Em grande parte devido às circunstâncias, a operação decorrera bem neste aspeto.
Não. Não decorrera. Havia feridos, havia mortos. Os agentes ali na Roda estão em maus lençóis. Mas posso viver sem remorsos, pois o combate que eles travaram conosco foi quase criminosamente temerário. Talvez o haverem ficado encurralados durante umas semanas lhes tenha feito um pouco perder o juízo ... Mas Sergei morreu, um tripulante dos nossos e meu amigo.
Acordara ao lado de Caitlín, por um momento consciente apenas dela. Depois começou a recordar-se do que se havia passado. A sua respiração aos sacões acordou-a. Caitlín abraçou-o e ficaram a falar baixinho os dois durante muito tempo:
— É numa guerra que estamos metidos, Daniel, meu querido. E em todas as guerras morrem homens. A tua luta é justa, uma luta como a que se travou contra os tiranos e os dominadores estrangeiros tantas e tantas vezes à face da Terra, e nós hoje somos mais felizes por causa disso. Também eu conhecia o Sergei, ai de mim! Conhecia-o melhor do que te contei. Ele sentia prazer no universo. Mas se teve de o deixar, orgulhar-se-ia de ser pelo que foi.
Assim lhe deu ela suavemente coragem, até que Brodersen se pôde levantar e retomar o trabalho.
Mais tarde, no entanto, ao entrar nos seus aposentos para procurar qualquer coisa, Brodersen encontrou Caitlín sentada, em silêncio, com sinais de lágrimas no rosto. Quando lhe perguntou o que se passava, disse-lhe ela quase num sussurro que estava a idealizar uma canção e desejava ficar sozinha.
Estava ela ausente, de serviço, quando Brodersen se encontrou com Joelle Ky, Carlos Rueda Suárez e o não humano. Daí a pouco iria reunir toda a gente para que ouvissem a história da Emissário. Não queria, contudo, retardar um exame global dos fatos para seu próprio conhecimento, a fim de lhe permitir delinear planos, e isto seria mais rápido com um reduzido número de pessoas. Apesar da sua gratidão para com Frieda von Moltke, não a convidou, porque o fato de não se conhecerem iria sem dúvida atrasar uma tomada de decisões. Carlos era primo de Antónia, primeira mulher de Brodersen. Embora fosse criança quando ela morreu e não se houvesse encontrado muitas vezes depois disso com Brodersen, tinham muitas coisas em comum. Brodersen havia encontrado Joelle pela primeira vez no decorrer das suas ocupações havia dezenove anos terrestres. Depois de se transferir para Deméter, ia-a ver sempre que visitava o planeta-mãe, e durante a última década...
Sem nunca saber ao certo o que sentia a respeito dela, pois Joelle não se parecia com nenhuma outra mulher das que haviam partilhado da sua vida, sentiu-se mais uma vez perturbado quando ela entrou no gabinete. Faziam anos os dois com um mês de diferença, mas de súbito ela tinha 58 anos, havendo passado longo tempo num lugar cujas condições estranhas deviam ter contribuído para tornar grisalho aquele cabelo de que ele se lembrava como bem preto, com um brilho azulado. Enrugara-se-lhe a testa, que ele sempre vira serena. E amoleceram-se-lhe os tecidos, dando-lhe um aspeto de engelhados sobre ossos que continuavam tão franzinos como antes. Brodersen levantou-se.
— Joelle — disse ele num tom rouco —, como estás? É maravilhoso ver-te aqui.
Ela sorriu. O sorriso e a voz não tinham mudado. Ambos agradáveis e um pouco distantes, como composições de Brancusi ou Delius.
— Obrigada por tudo, Dan. Muito gostaria de saber o que significa este “tudo”. Por certo qualquer coisa enorme ...
Quatro mãos se apertaram e podiam ter-se beijado se nesse momento não entrasse Rueda, que em estilo peruano abraçou o comandante.
— Daniel, Daniel, que estupendo! — e o seu espanhol quase cantava. — O nosso libertador, o nosso combatente... Tenho estado a falar com a tripulação. Sabe? Quando eu era miúdo, olhava para si como um ídolo. E tinha razão. Com mil diabos, você é realmente um homem!
Recuando um pouco, assumiu de novo a dignidade própria de um aristocrata. Brodersen estudou durante um segundo. Nas feições retilíneas de Rueda, naquele nariz pequeno e nos seus olhos cor de avelã subsistiam uns traços de Toni. De estatura média, Rueda trazia um pequeno poncho em cima do seu tronco esbelto quando andava por fora, e Brodersen avaliava como ele devia ressentir aquela sombra do que fora outrora: sem dúvida pior do que ficar apenas com uma simples madeixa castanha de cabelo. Pelo menos o seu bigode, esse, estava na mesma.
Chegou depois o não humano e atirou para segundo plano as outras impressões. As probabilidades eram que ele (ou ela?) não tivesse tal intenção, pensou Brodersen. Se alguma coisa se podia ler na atitude daquela criatura era o embaraço, mas como o avaliar? O aspeto ... Seria necessário algum tempo antes de se ter uma percepção exata daqueles contornos... O modo de andar... O cheiro, que fazia lembrar maresia, mas não realmente ...
— Permita que lhe apresente Fidélio — disse Rueda, sorrindo.
O estrangeiro estendeu o braço direito inferior. Brodersen deu um acerto de mão. Tinha feito o mesmo uma vez a um gibão domesticado, na Ásia, quando estava no Comando de Paz, e estremecera. O polegar do macaco ficara em má posição e não se conseguiram ajustar. O aspeto da mão de Fidélio era em tudo semelhante à do gibão.
Brodersen fixou aqueles olhos que não se pareciam com os olhos der nenhum animal da Terra nem de Deméter, e esqueceu os apertos de mão. Qualquer coisa ressoava dentro dele: Trata-se de um ser não humano inteligente. Não há dúvida de que ele existe. Estou a viver o sonho que sempre alimentei.
— Fidélio — balbuciou ele —, seja bem-vindo. Bienvenido.
— Buenos dias, senor, y muchas gradas — tossiu e sibilou aquela boca com presas.
De súbito, Brodersen riu alto. Não ria de ninguém, nem de nada. Ria simplesmente, com a sua alegria que renascia.
— Venham para a cabina — insistiu ele depois de ter acabado. — Que vos posso oferecer? Fidélio, importa-se que eu fume? Podemo-nos também instalar confortavelmente.
Duas horas depois, tinham todos uma idéia rudimentar do que se havia passado em torno do Sol, de Febo e de Centrum.
Rueda não podia ficar mais tempo sentado. Andava pelo compartimento, de um lado para o outro, fazendo gestos como golpes de karate. O sangue tinha-se retirado das suas feições, dando-lhe um tom pardacento à tez cor de azeitona, e olhava com espanto para a estreiteza que o envolvia, da mesma maneira que os seus antepassados haviam olhado com espanto através de pontas de espada num campo de duelo.
— Não se pode suportar isto — protestou ele. —Não, e não. Eles rasgam a Convenção, poderiam fechar a passagem para as estrelas. O rapto e o assassínio pouco são comparados aos seus crimes. Daniel, Joelle ... Fidélio ... Nunca receiem que possamos estar enganados a lutar contra aquela gente. Não podemos.
De pernas cruzadas numa cadeira de braços, cachimbo aceso na mão e o fumo a morder-lhe a língua chamuscada, Brodersen disse:
— Suponho que é evidente, Carlos. A questão que se nos põe neste momento consiste em saber aonde vamos agora. E como. E se podemos ir.
Joelle tinha escolhido uma cadeira vulgar. Sentara-se em frente de Brodersen e quase não se tinha mexido a não ser para falar. A maior parte das vezes, para fazer uma desapaixonada descrição de Beta. As mãos assentavam-lhe, quietas, no regaço. Fidélio estava sentado ao seu lado, num banco de três pés espalmados no fundo. Mexia-se pouco também, e só as suas barbas tremiam.
— Deves ter uma idéia ou duas, Dan — disse Joelle.
— Sim! — apoiou Rueda, detendo-se e olhando para o comandante. — Você sempre foi valente, mas nunca imprudente.
Brodersen franziu a testa:
— Talvez tenha sido imprudente desta vez. Ou então talvez tenham sido demasiados os tipos ali na ponte. E fui também, posso dizê-lo, um pouco infantil ao esperar que vocês, os da Emissário, tivessem trazido convosco um trunfo inesperado que pudéssemos lançar no jogo.
Os lábios de Joelle crisparam-se, num movimento quase imperceptível: —: Se tivéssemos um trunfo desses, não teríamos ficado para ali a penar, na Roda.
— Não, mas ... — e Brodersen encolheu os ombros, puxou pelo cachimbo, pousou-o no cinzeiro, e enfrentou aqueles olhares. — Muito bem — disse-lhe ele. — Naturalmente que os meus companheiros e eu examinamos várias possibilidades. Nenhuma delas me agrada muito, mas vejamos o que vocês pensam.
Começou a descrever pelos dedos:
— Podemos enfrentar esses canalhas imediatamente, fugir deles, vaguear à volta do Sistema Solar. Não podemos andar assim para sempre, mas temos uma boa quantidade de delta V antes de os nossos depósitos secarem. Os mantimentos chegam-nos para alguns anos, e a renovação de ar e de água podem continuar enquanto tivermos combustível para as celas migma, o que representa mais, alguns anos... Oh, é verdade, Fidélio está limitado a... A quanto tempo? Alguns meses? Mas não ficaríamos no espaço durante tanto tempo, de qualquer maneira.
“Vocês compreendem, as naves de vigilância podem caçar-nos. Um aparelho de aceleração é um alvo difícil, e nós podemos sem dúvida desviar--nos de alguns dos seus mísseis, mas acabariam por dar cabo das nossas defesas. Entretanto, manter-nos-iam afastados da Terra e de qualquer colônia. Todo esse esforço podia depois vir a mostrar-se impraticavelmente longo e visível para a oposição. Nem sempre eles podem evitar a divulgação de outras notícias que em nada correspondem às do seu próprio fabrico, mas eu não contaria muito com isso. Não esqueçam que aquela gente deitou a mão a muitas das alavancas do Poder. Foi por isso que já conseguiu coisas como prendê-los a vocês.
— Ah, mas espere! — atalhou Rueda. — Também temos uma palavra a dizer, não temos? Suponho que o vosso transmissor de rádio é como o nosso, sem capacidade para levar uma mensagem através de uma distância astronômica. Aliás é provável que ninguém o escutasse, em todo o caso. Mas os rádios são assim limitados precisamente porque os laseres podem atingir maiores distâncias.
— Dois problemas aí — observou Brodersen. — Primeiro, uma mensagem como essa para a Terra ou para a Lua ou para os satélites é captada por um satélite de telecomunicações, você sabe, e retransmitida daí para o destino. O que talvez não saiba, porque é raro apercebermo-nos disso, é que o programa inclui censura. Apenas certas categorias de comunicações oficiais podem ir em código. Tudo o resto é passado ao crivo pelo computador, e se o computador assinala qualquer referência a um assunto “encoberto”, a mensagem é desviada para um funcionário que a examina à lupa, para ver se é inofensiva ou não. O sistema remonta às Perturbações, e tenho mesmo de reconhecer que não é mau de todo, em si. Foi assim, por exemplo, que apanharam os finalistas quando eles já tinham tudo a postos para lançarem as suas bombas atômicas. Mas você pode estar seguro, absolutamente seguro, de que quando a gente de Quick começou a planear o que devia fazer no caso de a. Emissário regressar, uma das primeiras medidas foi pôr discretamente tudo aquilo sob controlo — instalando os programas necessários e dispondo o pessoal competente, de maneira a poderem interceptar a mínima indicação que pudesse ameaçar o segredo.
“Segundo, talvez pudéssemos conseguir entrar em comunicação com mais alguém, dirigindo a nossa mensagem para uma nave ou um asteróide ou uma base em Marte ou qualquer coisa do gênero. Digo “talvez pudéssemos”, porque os serviços de escuta que ali existem são, por via de regra, muito limitados. Seria necessário que nos aproximássemos bastante. E só as naves estão permanentemente à escuta. Bem, em todo o caso era de tentar. Mas, ainda que alguém nos ouvisse, iria esse alguém acreditar no que lhe disséssemos? E, se acreditasse, iriam outros acreditar também? Lembrem-se: não estamos em luta contra um rebelde como eu. Enfrentamos algumas das maiores e das mais respeitadas figuras políticas dos nossos dias ... Figuras que chegaram àquela posição, a maior parte delas, porque são mestras em propaganda e em relações públicas. Bem vistas as coisas, parece-me que o ataque direto tem escassíssimas probabilidades de êxito. Tudo indica que seríamos exterminados antes de conseguirmos fazer fosse o que fosse.
“Que mais consideramos nós? Vejamos: quando chegarmos perto da máquina, poderemos entrar em comunicação com a sua nave de vigilância. Entretanto, e nas atuais circunstâncias, é provável que esteja ali mais uma nave de vigilância. Presumo que os oficiais e as tripulações, na sua maioria, não são má gente. Estão simplesmente a cumprir ordens que podem deixá-los, isso sim, um tanto perplexos. Se lhes contarmos a nossa história, se lhes mostrarmos Fidélio, estão a ver?
“A dificuldade assenta em que também a cabala deve ter pensado nisso e fechado as saídas. De outro modo não nos teriam dito para irmos para ali, não lhes parece? Talvez não saibam que temos o Fidélio a bordo, mas sabem que vimos e fotografamos a Emissário. Isso já é bastante perigoso para eles. A minha suposição é que uma nave terá uns tantos oficiais-chave metidos na conspiração. No momento em que começarmos a contar histórias, atiram sobre nós. As explicações depois são fáceis. Andamos visivelmente armados, e estou convencido de que em Deméter foi emitido um mandado de captura contra nós. Não seria difícil alegar que, na opinião daqueles oficiais, estávamos prestes a abrir fogo nós próprios.
“A terceira possibilidade é transpormos a passagem para Febo e vermos o que se passa do outro lado. Talvez estejam ali menos bem preparados, menos equipados, e possamos escapar-nos ou fazer qualquer coisa mais que valha a pena. Eu encarei realmente — uma vez que vos temos aqui, que temos aqui os vossos conhecimentos —, encarei tentarmos seguir pela rota que nos leve de Febo a Centrum, e pedir auxílio em Beta. Mas é uma idéia fantasista, pois os vigilantes não nos vão consentir muito espaço de manobra.
“Na verdade, o que me preocupa quanto a fazermos a viagem que temos em mente é ... é Deméter ser pouco povoado e relativamente isolado. Daí não ser difícil controlar as notícias. Seria simples porem-nos a corda ao pescoço. Por exemplo, logo que estejamos bem longe da máquina T e da tripulação de vigilância habitual, a nave que nos escolte pode lançar um míssil contra nós. O mundo ouviria falar depois do trágico acidente que destruíra a Chinook. Desagrada-me pensar que Aurie Hancock fosse capaz disso, mas é uma possibilidade a encarar. Ou então podíamos ser internados para o resto da vida. O Sistema Febiano dispõe de inúmeros recantos onde seria facílimo estabelecer um campo-prisão secreto. E não me custa a crer que se fosse juntar a nós o resto da vossa tripulação.
“E são estas as nossas deduções até agora. O meu próprio instinto me diz que devíamos preparar um plano para tentarmos voltar a Febo e fazer o que nos parecer melhor quando lá chegarmos, embora mantendo os olhos bem abertos e conservando as nossas opções até então. Talvez eu esteja enganado. Muito gostaria quê me dessem as vossas sugestões. Uf! — concluiu Brodersen. — Que valente discurso! E se eu tomasse outra cerveja? Alguém mais quer?
Levantou-se para ir à geleira.
— Espere — pediu Joelle.
— Como? — e parou.
Raras vezes — quando surgia de longe em longe um problema ou quando as coisas iam perfeitamente bem na cama — lhe tinha ele visto um resplendor como o que inflamava agora aquelas feições.
— Dan — disse-lhe ela, com a sua voz quente —, podemos ir direta-mente de Sol para Centrum.
— O quê?! — uivou ele.
— Sim, podemos — e Joelle inclinou-se para a frente na cadeira. — Os Betanos andam há um milhar de anos a explorar as passagens. Ultrapassaram a fase das tentativas. Não têm ainda, é certo, uma teoria completa. Nada comparável àquilo que os Outros sabem...
— Os Outros! — murmurou Rueda.
— ... mas atingiram a compreensão de certas coisas — prosseguiu Joelle. — Tomemos três pontos, três estrelas se quiser. Sejam A, B, C, com passagens conhecidas — rotas da máquina T —, de A para B e de B para C. A partir daí podem os Betanos calcular um trajeto direto entre A e C.
Era como se uma nova tivesse explodido em Brodersen.
— Não com absoluta certeza — explicou Joelle. — Eles não mediram as curvaturas locais do contínuo lá muito bem, Mas é grande a probabilidade de êxito. Com toda a certeza, maior do que nos projetos que descreveste.
— E... e ... — hesitou Brodersen entre maravilhosas soluções entrevistas. — Podemos ir à máquina de Sol... fazer de conta que partimos para Febo ... depois trocar as voltas, suscitar falsas aparências, ameaçar ou coisas assim, enquanto estivermos tão longe no campo de transporte que sejamos um alvo impossível de atingir... Emergiremos em Centrum. Iremos a Beta. Voltaremos depois trazendo conosco uma frota betana.
— Cuja única arma ofensiva só precisa de ser a verdade — acrescentou Rueda. Tivesse ou não já ouvido falar de Física, a idéia era nova também para ele. Ficou estupefato pela revelação.
Brodersen pegou no copo de cerveja que tinha ficado ao lado da cadeira e riscou círculos por cima da cabeça.
— À honra da casa! — rugiu ele com o seu entusiasmo. — Havemos de conseguir. Sim, havemos!
— O cálculo é difícil — preveniu Joelle. — Fidélio e eu precisamos de levar a cabo um trabalho de investigação, e tenho de usar a holotética. Tens meios holotéticos a bordo, não tens?
A chama que dela se desprendia não se parecia com nada que Brodersen houvesse conhecido. Vou voltar a ser aquilo que sou, irradiava-se dela. O calor e o frio perpassavam pelos seus zigomas. Vou ser de novo Um com o Todo.
Rueda pousou nela um olhar atento. Era como se Brodersen pudesse ler na mente do peruano. Tornar-se-á você para nós o que os Outros recusam ser?
Fariam a Sergei Nikolayevitch Zarubayev um funeral de astronauta, lançando por uma escotilha o seu corpo amortalhado numa bandeira, numa urna levada por um foguete de sinalização, enquanto os seus camaradas se perfilavam e ouviam o comandante ler o ofício dos defuntos.
Primeiro, Caitlín, como médica, encarregou-se de levá-lo e de estendê-lo na sua cabina. De quatro malgas que ela encheu com óleo, e com torcidas de fio postas a flutuar em pedaços de uma rolha, fez lamparinas para ficarem à cabeceira e aos pés. Fechou a luz fluorescente e pediu uma vigília por ele. Deparou com certa surpresa, com certa objeção. Costume bárbaro.
A maneira civilizada era reunirem-se depois, com café, mas Brodersen, Dozsa, Granville e Von Moltke compreenderam aquilo, embora não estivesse dentro das suas próprias tradições, e fizeram que os restantes o aceitassem. (O comandante sentia que ele e a sua gente precisavam de se embebedar, nesta pausa entre batalhas, e Sergei muito teria apreciado dar ocasião para isso.)
Reuniram-se na sala comum. Su e Stefan tinham-na decorado um pouco, fazendo flores de papel e coisas semelhantes. Apareceram bebidas alcoólicas, além dos refrescos usuais. Os écrans abriam-se sobre o universo, como pano de fundo. Ouviram-se gravações da música preferida de Sergei e dos baileis que ele tanto apreciava. Aquela gente ficou ali a relembrá-lo.
Ao cabo de algumas horas, Martti Leinasaiu. Sentia-se então uma espécie de exaltação. Abraçados, 'Brodersen, Weisenberg e Dozsa estavam a cantar, desafinados, Ford of Kabul River. Von Moltke e Rueda acariciavam-se a um canto. Granville e Ky conversavam sobre assuntos sérios. Fidélio observava aquela raça exótica.
Leino atravessou a saleta circular em direção aos aposentos de Zarubayev. A porta estava aberta. Ouviu algumas notas, hesitou, franziu as sobrancelhas e avançou.
Tão nu como os restantes, o compartimento encontrava-se envolvido em sombras, apenas iluminado com as lamparinas, que lhe davam uma cor amarelenta. Zarubayev lá estava estendido na cama, envergando o seu uniforme. O cabelo e a barba luziam àquela luz pálida. Por outro lado, a sua cara era agora mais seca. As chamas à volta desprendiam um odor suave e uma doce quentura. Caitlín estava sentada a seu lado. Vestia um cafetã azul, a melhor roupa que tinha. Os cabelos caíam-lhe, desfeitos. No braço esquerdo segurava o sonador enquanto com a mão direita extraía dele sons como os de uma flauta, em surdina.
Parou de tocar quando Leino entrou.
— Oh! — suspirou ela.
— O que... — pronunciou ele, estacando. — Não se incomode. Desculpe se a interrompi.
— Não. Espere. Não se vá embora — e Caitlín preparou-se para se levantar, viu-o hesitar um pouco e deixou-se cair de novo na cadeira. — Você vinha para dizer adeus. Não quero impedi-lo disso.
Leino fechou os punhos e abriu-os depois rapidamente:
— Não me impede, Miz Mulryan.
— Você não tem amabilidade nenhuma para comigo.
— Essa agora! Não é este o momento para admoestações.
— A única coisa que tenho para lhe dizer, Sr. Leino, é isto: se é sozinho que quer ficar com o seu amigo, posso muito bem voltar mais tarde. — E Caitlín levantou-se.
Espantado, ele exclamou:
— Pare com isso. Por favor. Eu sabia que você o conhecia antes, mas não que você ... o amava.
Ela sorriu, com gentileza:
— Mas é verdade, era um homem tranqüilo, não era? Silêncio. Depois em voz baixa:
— Mesmo quando me ensinava, nesta viagem, como nos servirmos de armas em combate, nunca se aproveitou de nenhuma das muitas oportunidades para entrar em familiaridades, embora soubesse muito bem que eu não desgostaria delas. Isto porque me via agora como mulher de Daniel. Não do seu comandante, mas do seu amigo. O que revela muito a respeito dele, não é verdade?
Leino corou e perguntou:
— Quando a encontrou pela primeira vez?
— Antes de conhecer Daniel. Foi para o meu hospital, ferido como você se deve lembrar. No meio dos seus sofrimentos, ainda dizíamos piadas. As pessoas supunham que ele não tinha o sentido do humor, mas não é verdade. Contou-me a situação embaraçosa em que se encontrava, ele, russo, que não gostava de xadrez ... Depois de ficar bom, encontrávamo-nos sempre” que podíamos, até que comecei a passar o meu tempo livre em Eópolis com Daniel. Nunca estivemos profundamente apaixonados, Sergei e eu, mas ele representava imenso para mim.
— E para mim — disse Leino vagarosamente, cravando os olhos nela, ali em frente do morto. — Vocês estiveram a trabalhar juntos no espaço, onde você podia partilhar a vida com o seu companheiro. Em Deméter teríamos ido fazer campismo, andar à vela, ir a festas ...
A conversa arrastou-se. Por fim, Caitlín sacudiu a cabeça:
— Aquilo que se passa entre homem e homem, mulher nenhuma o compreenderá verdadeiramente. Por mais precioso que seja,
Meio bêbado, ele lançou-lhe:
— E entre homem e mulher?
Ela voltou-se para tocar ao de leve no rosto que havia sido de Zarubasev:
— Mais difícil ainda encontrar palavras para isso, por mais que os poetas o tenham tentado.
Voltou os olhos para Leino e prosseguiu:
— Na realidade, Sergei e eu partilhávamos mais do que simples prazer. De novo procurou com os olhos aquele que já não se movia.
— Nunca ninguém o compreendeu — acrescentou ela, quase num murmúrio. — Tomavam-no por severo, quando ele era apenas tímido. Mas como era engraçado, uma vez que se sentisse à vontade! Tomavam-no por ser prático como una máquina, mas lembro-me de uma noite que levamos um telescópio para fora de casa e, depois de nos perdermos no infinito, ele começar a falar dos Outros. Pensava que os Outros não podiam ignorar-nos como parecia, mas a maior parte têm um amor e uma compaixão que nós somos demasiado pequenos para sentir... Caitlín deteve-se. Depois prosseguiu:
— Bem, você não há-de querer que eu fique para aqui a divagar, antes de se despedir dele também. Boa noite, Martti Leino.
— Não! — e levantou a palma da mão para lhe impedir a passagem. — Peço-lhe que fique. Não conheci mais ninguém que estivesse tão próximo dele. — Esfregou um punho nos olhos. — Desculpe-me. Posso perguntar-lhe o que estava a fazer aqui?
— Nada de especial.
— Mas estava a cantar — insistiu ele, Caitlín encolheu os ombros.
— Sim, é verdade, estava a cantar uma daquelas baladas que nós cantamos no campo, na Irlanda. Mas seria errado fazer disto um espetáculo, quando não é esse o costume dos meus companheiros de bordo. Boa noite!
Leino estendeu um braço para lhe cortar a saída.
— Por favor, Miz Mulryan... Caitlín... Não vá.
Os olhos verdes de Caitlín encontraram os olhos azuis de Leino.
— E porque não?
— Porque, já lho disse, nós compartilhamos de uma grande perda e ... e eles estão a cantar Kipling na sala comum. E você? Que estava a cantar?
Caitlín cerrou os olhos.
— Apenas um ochlán. Um cântico fúnebre, diria você.
— Quer repeti-lo?
Caitlín olhou para ele durante um minuto, antes de responder.
— Pois se é esse o seu desejo ... Ele também gostaria que eu o repetisse. Sentaram-se um de cada lado da cama. As luzes tremulavam, desenhavam sombras nas paredes; os ventiladores sussurravam. Sons tímidos, dispersos, que provinham da vigília não pareciam deslocados. No sonador, os dedos de Caitlín começaram a Ária de Londonderry. Depois cantou, baixinho:
Oh, se as estrelas pudessem tomar luto por este nosso camarada,
Chorar lágrimas de luz no meio de um céu a fender-se,
Ou se a chuva a cair na sua pátria
Estivesse a despedir-se dele em longo e último adeus,
Ou pelo menos caísse uma flor para o beijar,
De uma árvore agitada pela brisa da Primavera!
Porque então não ficaríamos só nós na nossa dor.
O mundo sentiria a amargura também, o mundo que ele tanto amava.
Mas o silêncio reina por entre os sóis e os planetas,
As folhas estão silenciosas, o tempo é surdo e cego.
Somos os únicos no cântico por este camarada
E sabemos que ele foi brilhante e forte e gentil.
Ochone, ochone![5] Ele foi-se como o sol nascente.
Ochone, ochone! Ele ria enquanto aqui estava.
Ochone, ochone! Partiu para todo o sempre.
Aquilo que nos deixou permanece ainda, e é muito querido.
Eu era um corvo. Os meus primeiros sonhos, sonhos obscuros, terminaram em fome quando o universo ficou vazio. Enfurecido, bati contra a sua carapaça até que ela se quebrasse. E fez-se dia. Os meus olhos encheram-se de luz. Abri a boca e procurei alimento. Nasceram-me asas que me cobriram com a sua sombra. Um bico grande e duro penetrou pela minha garganta. O amor foi derramado então nas minhas entranhas. E não tardei a ver que outros como eu, nus e indefesos, se estavam a apertar contra min. E assim eu encostei-me também a eles e soltei o meu grito tão forte como eles.
A plumagem cresceu em nós, e passamos muito do nosso tempo a admirar, enternecidos, a nossa negrura tão luzidia. Mas não tardou que os nossos pais nos encaminhassem para fora do ninho. Depois do primeiro momento de terror e de um desajeitado bater de asas, aprendi como o vento me podia suster e quanto eu podia alcançar com as minhas asas. Aspirei o ar bem para dentro de mim, elevei-me no céu, desci a pique como ave de rapina, deixei-me planar, deleitei-me. O céu era meu, minha era toda a terra por baixo dele, a convidar-me para as minhas incursões.
Eu pertencia ao bando, sim, pertencia, e tinha o meu lugar nas suas fileiras, e também os meus deveres, tais como vigiar. Estar de atalaia aos falcões e aos homens, quando perscrutávamos os campos para além das nossas matas. Nunca desejei que as coisas fossem diferentes. Os bandos são engraçados. Nós conversávamos, intrigávamos, dávamos largas à nossa alegria, lançávamos expedições, perseguíamos mochos, descobríamos guloseimas para comer e belas coisas para trazer para casa. Divertíamo-nos a mais não com as bobices das outras criaturas, e tudo dominávamos no cimo das árvores. No mais forte do frio, sem uma folha nos ramos, ainda podíamos tirar o nosso alimento por baixo do manto de neve. Que belos, depois, os verões verdes e sussurrantes! E a minha fêmea e os nossos queridos corvitos!
Por último, comecei a envelhecer, a sentir-me fraco, lento de movimentos, embora a minha consciência disso fosse nebulosa. Um dia uma raposa apanhou-me no chão. Libertei-me dos seus dentes, mas o sangue escoou-se--me do corpo até eu já não poder voar. Procurando um bosque cerrado, estendi-me no chão úmido coberto de cogumelos, longe do céu, ofegante, enquanto a escuridão descia cada vez mais densa sobre mim. Veio então o Arauto e, ainda com uma réstia de vida, parti para sempre deste país onde eu tinha sido ave.
Na cabina que Joelle agora ocupava soou a campainha.
— Entre! — disse Joelle.
Era Brodersen. Entrou, e fechou a porta atrás dele. Na atmosfera impessoal daquele compartimento, Brodersen parecia agora maior e mais enérgico. Lia-se nos olhos de Joelle que ela o queria.
Acaba com essa tolice! — ordenava Joelle a si própria. Não vês que ele está cheio de trabalho, cheio de preocupações? Repara naquela palidez, como os braços robustos lhe descaem para o lado, e os olhos sombrios se perdem obliquamente no chão. Além disso, vou começar em breve também o meu trabalho. A maravilha da Unidade vai possuir-me e só isso importará.
No entanto, o desejo persistia-lhe nas veias, a insinuar-se com moleza. Oito anos. Não, quase nove. E Brodersen tinha sido o seu último amante, quando visitou a Terra ... Joelle não tinha achado difícil a vida celibatária na expedição, quando cada hora de vigília estava repleta de descobertas. O risco de um homem se deixar emocionalmente dominar e a importunar quando ela queria levar a cabo um projeto (como tinha acontecido algumas vezes na Terra) era preço demasiado alto para a satisfação de um desejo que surgia, aliás, com pouca freqüência. E claro, por fim paguei. Christine — Chris ficou sepultada em Beta. E Dan estava ali agora, a dois metros de si.
— Entrei para ver como vais — disse ele com a sua voz cheia.
— Excelente, e obrigada! — respondeu Joelle, acima do seu tom. — Não há dúvida que estamos com sorte por seres suficientemente cauteloso, pois tens sempre esta nave bem abastecida, pronta a largar.
— Cauteloso, o diabo! — volveu ele, com um sorriso forçado. — Eu estava era a estalar de impaciência, e imaginava que se qualquer coisa surgisse — como vocês regressarem mais cedo — eu devia estar pronto a descolar antes de qualquer manga-de-alpaca descobrir uma justificação para me recusar a saída.
Passou o olhar à sua volta e continuou:
— Aliás, acabamos por ser apanhados da mesma maneira, e lindamente! Vocês, os que estavam na Roda, ficaram ainda pior do que antes. E a respeito de roupa para mudares? Pegeen — Caitlín Mulryan, a nossa contramestre, deves lembrar-te dela — te emprestará com prazer algumas coisas. Vocês têm mais ou menos o mesmo corpo. E, quando puder, Caitlín fará uns retoques em outras roupas extra que trouxemos, para ti e para os que precisarem. E boa costureira. Podias ver as roupas de que necessitas.
Joelle, encolhendo os ombros, respondeu:
— Sabes que não me preocupo muito com isso, desde que tenha qualquer coisa de confortável para vestir. Mas agradece-lhe por mim, está bem? Vou tentar lembrar-me de fazê-lo pessoalmente, mas sabes quanto sou esquecida sobre estas coisas do dia-a-dia.
— De que mais podes precisar? Por exemplo, a maior parte de nós tem uma pequena reserva de alimentos e bebidas. Imagino que preferes não tomar todas as refeições na cantina.
— Se não se importarem por eu ser pouco conservadora, não tenho dúvidas em me sentar a uma mesa com os outros. Fecho os ouvidos ao barulho ... Mas seria agradável se te pudesse oferecer... oferecer a um amigo um refresco.
Joelle fez um gesto, observando ao mesmo tempo como era desajeitado o movimento. Depois continuou:
— Não te queres sentar? E, podes crer, não adquiri nenhuma aversão ao cachimbo, enquanto por lá andei.
— Verifiquei isso na reunião, com agrado — e pegou de uma cadeira. Joelle aproximou outra e colocou-a em frente dele. Procurando a sua bolsa de tabaco, Brodersen adiantou:
—t Só posso ficar por uns momentos. Tenho de ir tomar disposições para o banho de água salgada de que, dizes tu, o Fidélio precisa. Nós temos os produtos químicos, é evidente, e o metal ou plástico, ou outra coisa assim, para uma tina, mas seria bom que tomássemos também algumas medidas para recuperar os ingredientes, prevendo a hipótese de esta viagem se alongar mais do que espero.
— E o problema não é para os teus técnicos?
— Sim, é, mas primeiro Fidélio tem de explicar com exatidão o que será preciso fazer. Isso vai ser lento, mesmo com Carlos a ajudar, pois conhece um pouco da língua betana. Melhor, das línguas betanas, não é verdade? És tu a especialista nelas, mas, ao que sei, vais agora para o computador. Julgo que posso ajudar ao desenvolvimento da conversa. Para não mencionar milhares outras coisas que precisam de ser bem examinadas antes de completar o trabalho.
— Chama-me, se tiveres difíceis problemas lingüísticos. A propósito, já pensaste em modificar o conjunto de ligações encefálicas para o Fidélio, de modo que ele se possa ligar comigo? O Fidélio é holoteta.
— Como? Não tenho idéia nenhuma a esse respeito.
— Parece que isso afeta menos a personalidade entre os Betanos do que entre os Humanos.
Desceu sobre eles o silêncio, enquanto Joelle tentava dizer o que pretendia dizer. Transpondo de súbito a barreira que a reprimia, desabafou com alvoroço:
— Dan, é maravilhoso ver-te de novo. Mais maravilhoso do que ser libertada. Foste tu o homem que nos libertou.
Brodersen estava entretido a encher o cachimbo.
— Não, fomos nós, todo o grupo. E Sergei... Talvez não vos tenhamos prestado grande serviço. Continuamos rumo ao perigo.
— E não estávamos em perigo na Roda?
— Na verdade ... Suponho que sim ... De qualquer maneira,.tenho de afastar de mim esta noção de pesadelo, de que erramos profundamente no que andamos a tentar fazer. E que estou a pôr vidas em perigo para nada.
Joelle conseguiu inclinar-se para a frente e pousar a mão no joelho de Brodersen.
— Não te inquietes. Sinto-me sempre desorientada em política, mas tu sentes-te à vontade nesse campo e conhecê-lo. Confio no teu bom senso, tal como ai tens de confiar nos meus cálculos. Tem confiança em ti, Dan.
— É melhor — volveu ele com secura. Os seus dedos continuavam ocupados com o cachimbo. — Vejamos, estás preparada para fazer aquela análise, Joelle?
Ter-me-ia eu tornado demasiado mirrada e envelhecida para ele? Retirou a mão.
— Sim, seria mais fácil, talvez mais seguro, se Fidélio e eu pudéssemos funcionar como uma unidade holotética e tirar una estrutura teórica completa de um banco de memória. De qualquer maneira, eu domino os princípios físicos que os Betanos viram que se aplicam às máquinas T — esses princípios estavam bem dentro da minha formação, como deves imaginar — e ele e eu acabamos de examinar toda a coleção de dados da tua nave para estabelecer os parâmetros exatos do espaço-tempo local. Os elementos obtidos parecem ser suficientes. Julgo que vou precisar de um ensaio preliminar hoje, para amanhã traçar rumo em pormenor.
No rosto de Brodersen vincavam-se agora rugas de preocupação entre as sobrancelhas, aquelas mesmas rugas que tinha quando se encontraram pela primeira vez, ele como engenheiro da Aventureros a consultá-la sobre um espinhoso problema que surgira no decorrer dos trabalhos. Havia nascido então em Brodersen um autêntico respeito pela inteligência de Joelle, embora ela duvidasse que tivesse mais talento do que ele. Um talento de orientação diferente, mas não intrinsecamente superior, salvo quando Joelle estava ligada à sua máquina. Brodersen tinha encontrado pretextos para se voltar a encontrar depois com Joelle, o que levou a francas saídas para jantares depois de ele ter ficado viúvo e de ter ido para Deméter, fazendo viagens de vez em quando à Terra. Joelle gostava da sua companhia, e apreciava um vendaval no mar. Por fim, num ato impulsivo, foram para a cama, e ficou surpreendida ... Como aquelas rugas de preocupação o tornavam jovem!
— Suponhamos que chegamos a Beta — disse ele. — Irão os Betanos ajudar-nos? Tu e o Carlos salientaram que eles não querem interferir, que sempre tiveram a maior das preocupações em respeitarem as espécies menos avançadas.
— O gênero humano é especial para eles, no entanto — assegurou-lhe Joelle. — Teremos de fazer um grande esforço para lhes explicarmos o que se passa e para os persuadirmos a ajudarem-nos — e eu reconheço-o. Mas quando nós, os da Emissário, descrevemos a nossa história e a nossa sociologia, o pouco que lhes pudemos transmitir, não as acharam mais grotescas do que aquilo com que já haviam deparado em outras raças. Os seus dirigentes pensam que os podemos ajudar na sua crise psicossexual..
— Então eles querem ... O quê?
— Aparecerem no Sistema Solar, imagino eu, invencíveis, mas protegendo-nos simplesmente enquanto nós transmitimos os fatos para a Terra.
— E oferecem-nos uma fabulosa compensação, disseste tu. A sua tecnologia em troca do direito de explorarem Júpiter e Saturno, que nós, de qualquer maneira, não estamos em condições de explorar.
Brodersen acendeu o tabaco, ficando a observar Joelle através do fumo. E prosseguiu:
— É claro, isto irá destruir o Partido da Ação, e todos os outros partidos do mesmo gênero. Além do escândalo, penso eu. Será a morte de toda a filosofia.
— Como?
— Mas é evidente. Logo que tenhamos adquirido essa mesma tecnologia, vamo-nos precipitar por todas as passagens interestelares que os Betanos assinalaram, assim como montar o nosso próprio programa para descobrir outras. O verdadeiro proveito a tirar, em inúmeros locais e de inúmeras maneiras, deve desafiar a imaginação. De outro modo, porque haveriam os Betanos de se preocuparem com os nossos planetas gigantes? Assim, antes mesmo de iniciarmos a emigração em larga escala, deslocar-se-á da Terra o equilíbrio do poder econômico. Deslocar-se-á também dos governos, dos sindicatos, das grandes empresas, para pequenos grupos e indivíduos. Lá se vai o bem esquematizado sistema de segurança social que o Partido da Ação esperava construir. Quick está sem dúvida a prever o mesmo.
Joelle franziu as sobrancelhas, esforçando-se por compreender.
— Mas não é lógico, Dan. É de crer que as medidas de bem-estar social correspondam a uma necessidade. Se a necessidade deixar de existir, quem quererá continuar com elas?
Brodersen riu com o riso ressonante que ela conhecia. O fumo irrompeu--lhe da boca. Tinha um odor bem masculino.
— Minha querida, estás outra vez na mesma. A partir do princípio de que as pessoas são lógicas. Mas não são. O estado social — qualquer estado — é um fim em si mesmo. É a maneira de uma minoria impor a sua vontade à maioria. E, com mil diabos, como esse punhado de gente sente ganas disso! Como necessita disso!
Brodersen lançou para o ar o fumo do cachimbo e prosseguiu:
— Fala com Stef Dozsa, se estás interessada. O seu país passou por maus bocados, bastantes vezes. O Santo Império Romano, o Império Mongol, o Império Otomano, o Império Austríaco, o Império Soviético, o Império Balcânico... Não, talvez seja preferível não o consultares. Toda essa história fez dele um anarquista ferrenho. Inofensivo no seu caso, mas se ele te convertesse ... Olha, Joelle, sob o teu exterior bastante rígido, dorme em ti uma boa dose de impetuosidade. Sei isso.
Sabes, sim, Dan! Brodersen agitou-se.
— A minha fraqueza pessoal é pôr-me a divagar — disse ele. — Melhor seria que eu deixasse de estar para aqui a aborrecer-te e deitasse mãos ao trabalho.
— Mas tu não me estás a aborrecer — contestou Joelle, com um esforço. Sentia o calor subir-lhe pela cara e pelos seios. — Nunca me aborreceste. Pelo contrário, sempre foste fascinante. Talvez porque somos diferentes, penso eu.
— Sim, somos diferentes. De uma maneira ou outra — e levantou-se. Joelle também se levantou.
— Porque não passas por aqui esta noite depois de ambos acabarmos o serviço? — sugeriu ela. — Eu podia trazer alguma coisa para comer e um pouco de vinho. Lembras-te de como costumavas cozinhar? Eu continuo a ser terrível nesse aspeto, mas ... ia apostar que fizeste progressos.
— Não muitos — e Brodersen olhava para a ponta dos pés. — Além disso... Acontece que tenho um compromisso. E pena, mas um compromisso daqueles a que não se pode faltar.
— Posso perguntar de que se trata? — inquiriu ela, ressentida.
— Caitlín e eu temos uma pequena festa de anos. Pelo calendário de Deméter, Chega com mais freqüência dessa maneira. — E Brodersen levantou os olhos. — Não sabias? Julgava que era do teu conhecimento ... Não, não somos casados. Continuo ainda com Lis, e não tenciono mudar, mas Caitlín... Bem, Caitlín e eu sentimos imensas afinidades.
— Compreendo. Brodersen pegou-lhe nas mãos.
— Olha, Joelle, ela não é ciumenta. Quero dizer ... Com os diabos, é maravilhoso ter-te aqui, e... Não te estou a fazer uma proposta, mas se quisesses ... mais tarde ...
Joelle esboçou um sorriso, curvou-se para diante, tocou os lábios nos dele, e concordou:
— Pode ser. Não precisamos de ter pressa, no entanto. E não te sintas na obrigação.
Porque receio que seja isso o que sentes neste momento: uma obrigação. Caitlín é como uma Chris de pele doce.
Além disso, vou ficar daqui a pouco transumana.
— Está bem, Dan. Até breve!
Pequena de estatura, simples, humilde sem nunca ser servil, Susanne Granville aguardava na sala principal dos computadores. Tinha regulado o écran, com a imagem virada para o Sol, e sentou-se a observar. Enublado mas ampliado, o disco era um turbilhão de manchas, de chamas, de protuberâncias a jorrar fogo, num fundo coronal de nácar. Tudo isso banhado em música. Joelle reconheceu a Fynsk For ar de Nielsen. A música, como a arquitetura, era uma das poucas artes formais humanas que ela pensava corresponder bem às suas aspirações. Joelle e Susanne tinham falado a esse respeito durante uma hora ou mais por ocasião da vigília em honra do atirador morto.
— Olá! — exclamou Joelle. — Não esperava encontrá-la aqui. Susanne levantou-se.
— Eu sabia que você haveria de vir fazer uma inspeção final aos programas, Drª Ky, e pensei que talvez lhe pudesse ser útil. Por isso mesmo, dispensei-me de ir ajudar a contramestre [Caitlín Mulryan] fazer o jantar.
Ah, sim! Joelle não respondeu. Quantas vezes não deparei eu com isto! Você é apenas “linker” e eu a suprema holoteta.
O seu vivo desejo é saber que me foi prestável. Como Chris, como Chris.
Vai ver-me ligada ao computador, num trabalho de que você não é capaz. A ascender a um céu a que você nunca poderá aspirar, mas de que já vislumbrou uns fragmentos. Eu vou tocar no Absoluto, vou estar no Númeno, conhecer a Realidade Final. Não como construção matemática, mas imediatamente, no meu cérebro e nos meus ossos.
Ó Susanne! — pensou ela. Muito desejava beijar-te e reconfortar-te, como não pude fazer a Chris, como não pude fazer a Eric.
O seu espírito mudou de rumo (e isso irritava-a, aumentava ainda mais o seu desejo de entrar no circuito, onde não se passavam coisas assim tão desordenadas), para perguntar até que ponto fora inicialmente atraída por Brodersen porque a mãe dele era uma Stranathan e ele tinha visitado aquela família muitas vezes em rapaz. Eric Stranathan era também dessa família. O primeiro amante de Joelle e o mais inesquecido, filho do capitão-geral do Fraser Valley. E ele também linker.
Haviam sido eles os dois, Joelle e Eric, os primeiros a saber que a diferença entre linker e hototeta não era de grau mas de qualidade. Que havia entre eles uma distância imensa. Sem qualquer justificação aparente, o seu espírito voou para uma fastidioso conferencista numa sala fechada, sem ar, em Calgary ... Mas a razão era evidente: nessa noite tinha-o conhecido a ele.
O BANCO DE MEMÓRIA
— O cérebro humano, e portanto todo o sistema nervoso, pode ser integrado num computador com as características adequadas para esse fim — estava o conferencista a salmodiar. — Fizemos muitos progressos desde a fase dos “fios na cabeça”. Basta a indução eletromagnética para estabelecer uma conexão, uma linkage como nós dizemos. O computador fornece então a sua vasta capacidade de armazenamento e processamento de dados, a sua possibilidade de executar operações lógico-matemáticas em microssegundos ou menos. O cérebro, embora mais lento, fornece a criatividade e a flexibilidade. Com efeito, é o cérebro que reajusta continuamente o programa. Existem, é claro, computadores que podem fazer isso eles próprios, mas para muitos dos problemas que se põem não funcionam tão bem como uma ligação computador-operador, e talvez nunca os possamos aperfeiçoar para lá de certos limites. No fim de contas, o cérebro contém trilhões de células numa massa de cerca de um quilograma. Além disso, a ligação com o computador dá aos seres humanos acesso direto àquilo que de outro modo eles apenas conheceriam indiretamente.
“Para os objetivos presentes, práticos, são duplas as vantagens deste sistema, a) Como deixei dito, os programas podem ser7 alterados a cada momento, na própria altura em que estão a ser executados. Antigamente era necessário levá-los até ao fim, conferir os resultados, o que implicava um trabalho bastante penoso, e em seguida refazê-los, com grandes possibilidades de erro e sem qualquer garantia de que as novas versões fossem verdadeiramente o que se pretendia. Uma vez que os linkers e o seu equipamento entrem em uso corrente, ficaremos livres de tais inconvenientes, b) Pela própria experiência, como também sugeri, adquire o linker finuras de conhecimento que de outra maneira não poderia alcançar, e daí o tornar-se um cientista com mais capacidade — e até mesmo um melhor preparador de programas — quando está a trabalhar independentemente do aparelho, também.
Santo Deus! — refletia Joelle. Teremos realmente de suportar isto?
Não havia dúvida: a conferência era um importante acontecimento, não só político mas também científico. O segredo militar em que Joelle havia crescido estava agora a começar a quebrar-se. Ali, em Calgary, podiam-se debater livremente os progressos alcançados, progressos esses que haviam sido escondidos durante décadas e décadas. Reconhecia-se ao público o direito de ser informado, em termos populares, no decorrer das inaugurações e das cerimônias que as rodeavam.
A dificuldade estava em que as palavras não podiam descrever o que era a ligação cérebro-computador, criando-se espaços com n dimensões e curvas de variação no tempo para elas, e tensores aí, e funções e operações que ninguém antes disso pudera imaginar. Estava-se a dar forma a um cosmo conceptual, apreendia-se que ele era indispensável e anulava-se depois, concebia-se outro e outro, até que por fim se via o que se tinha feito e — reparem! — era muito bom. De cada vez que os números se lançavam em catadupa através de nós para serem conferidos e nos apercebíamos de quanta realidade se havia abraçado, era uma erupção de revelações. As esperanças cristãs de se ficar por toda a eternidade na presença de Deus, as esperanças budistas de nos tornarmos um com o todo no Nirvana, as esperanças do linker de superar o gênio — haveria qualquer diferença significativa entre elas? Sim, havia: o linker realiza-as em vida.
Em dias, horas, frações de segundo. Depois disso ele, ou ela, não podem compreender inteiramente o que se passou. O momento alto no amor também se situa fora do tempo; mas nós percebemo-lo melhor, quando em paz, do que o linker percebe aquilo que o linker conheceu.
O olhar de Joelle vagueava. Olá, que belo rapaz, umas dez cadeiras à sua direita! Porque não o vira antes? Francamente, ela não era muito hábil em descobrir as pessoas. Órfã de guerra, educada desde a infância no programa holotético dos pioneiros, mais tarde mandada para a academia quando as Perturbações cessaram, virgem sem saber o que fazer do sexo oposto e sem mesmo estar segura de o desejar...
— ... ao passo que a ligação com uma maquinaria macroscópica demonstrou ser compensadora, a situação veio a mostrar-se diferente no que se refere a dirigir e controlar instrumentos científicos. Para isto é inadequado fornecer ao cérebro do operador números tais como leituras de voltímetros e nada mais. Por exemplo, pode-se avaliar melhor um espetro — apreciá-lo racionalmente — quando o operador o vê e, simultaneamente, conhece o exato comprimento de onda e a intensidade de cada linha. Por meio de hardware e software[6] apropriados, pode-se fazer isto agora. Subjetivamente, é como aperceber os dados diretamente pelos sentidos, como se o sistema nervoso tivesse adquirido novos órgãos de percepção, com um poder e uma sensibilidade sem precedentes.
“Cientistas em outros campos experimentaram isto. A coisa principal que fez o Projeto Ítaca [e Joelle foi educada em parte dele] foi dar o passo seguinte. Qual o significado desses dados, dessas sensações?
“Na nossa vida de todos os dias não apreendemos o mundo como um amontoado de percepções em bruto, mas como uma estrutura ordenada. Não vemos ali uma mancha verde e castanha: vemos uma árvore, de tal ou tal espécie, a tal ou tal distância. Embora isso seja feito inconscientemente, e por instinto, uma vez que o mesmo se passa entre os animais, podemos dizer que construímos teorias, modelos do mundo, dentro dos quais as nossas percepções diretas são levadas a formarem sentido. Naturalmente, vamos modificando esses modelos sempre que isso nos pareça razoável. Por exemplo, podemo-nos aperceber de que não estamos realmente a ver uma árvore mas uma camuflagem. Podemos concluir que avaliamos mal a distância pelo fato de o ar estar mais claro ou mais escuro do que havíamos pensado à primeira vista. Fundamentalmente, porém, por meio dos nossos modelos compreendemos os fatos e podemos agir sobre eles, num universo objetivo.
“A ciência tem estado desde há muito a acrescentar novos elementos aos conhecimentos que já possuímos e a forçar-nos assim a modificar o nosso modelo do cosmo como um todo, até que ele abraça hoje bilhões de anos e anos-luz, nos quais deparamos com galáxias, com partículas subatômicas, com a evolução da vida e tudo o mais de que os nossos antepassados nem sequer suspeitavam. Para a maior parte de nós, esta parte da Weltbil[7] permaneceu incontestavelmente bastante abstrata, independentemente do impacte mais ou menos imediato da tecnologia que daí resulta.
“A fim de aumentar a capacidade laboratorial, o Projeto Ítaca começou a trabalhar em meios para fornecer a um operador diretamente a teoria, assim como os dados. Isto era mais do que aprender uma determinada matéria, com caráter permanente ou provisório. Qualquer operador tem de fazer o mesmo, a fim de pensar sobre uma determinada tarefa. E, na verdade, surgiram notáveis realizações do Instituto Turing aqui, métodos pioneiros para o computador ligado dar ao seu parceiro humano o conhecimento necessário. O Projeto Ítaca melhorou muito esses sistemas, e os seus sucessores no campo civil continuam a fazer progressos. Chamamos-lhes holotéticos.
“O trabalho levou a um resultado imprevisto. Aqueles operadores que Ítaca formou desde a infância, linkers que são hoje adultos fazendo avançar a arte por sua vez, estão a penetrar cada vez mais numa modalidade a que chamarei intuitiva. Um jogador de basebol, um acrobata, ou simplesmente uma pessoa a passear, estão constantemente a resolver complexos problemas de Física sem quase nunca darem por isso. O organismo apercebe-se por si de qual a melhor forma de agir. De maneira semelhante, atingimos, por exemplo, o ponto de manipularmos aminoácidos isolados dentro de moléculas de proteínas, utilizando íons dirigidos por campos de forças que são dirigidos por um holoteta, de um modo que talvez só os Outros possam planear passo a passo. O mesmo acontece com qualquer número de empreendimentos. A percepção direta por meio da holotética está a conduzir a uma compreensão a um nível não verbal.
“Isto é duplamente verdade, na medida em que o nosso conhecimento teórico está longe de ser perfeito. Acontece com muita freqüência, hoje em dia, que um homem sente que as coisas não se estão a passar como se pretendia, que há qualquer coisa de errado no modelo. E tem a intuição das correções a fazer, da verdadeira situação, tal como sucede na vida corrente. Depois disso, um estudo metódico confirma geralmente a intuição.
“Os meus colegas irão expor vários aspetos da ligação holotética. Este meu esboço mais não é do que uma introdução ...
Quando o homem acabou aquela parlenga, monótona, e a assistência passou às bebidas, Eric aproximou-se e apresentou-se. Também ele havia reparado em Joelle.
Numa canoa no lago Luísa, recolheram os remos e deixaram-se ir ao sabor da brisa. A água dançava, azul, verde, diamante. À volta, para lá da floresta, erguiam-se as montanhas em silêncio. O barco balouçava com suavidade a cada movimento que eles faziam.
Joelle mergulhou um dedo por cima da borda e observou a leve ondulação que se espalhou.
— As interferências dos elétrons também produzem um ondeado — murmurou ele como num sonho. — É maravilhoso encontrar a mesma coisa aqui. Nunca tinha prestado atenção a isto. — Olhou para ele e saboreou o prazer. — Obrigada por me ter trazido. — Um pouco inquieta, deixou os olhos vaguearem a distância. — Os elétrons fazem isto em três dimensões. Não, em quatro, mas eu não me tinha apercebido disso... ainda.
Joelle havia-lhe feito observações semelhantes depois de eles terem ido ao ballet em Calgary. Tomado o café e o conhaque, ela tinha-lhe dito como achava sublimemente newtoniano o Lago dos Cisnes e Ondina, ao passo que para Eric — confessou ele — eram sublimemente sensuais. Mais: ele, como linker, encontrava tanta matemática como melodia num recital de Bach, ou admirava acima de tudo as subtis perspectivas em Monet. (Olhando para as mesmas figuras trifaciais, ela punha em relevo interações de cores a que, no dizer de Eric, os críticos dos últimos séculos tinham andado cegos.) Hoje, por qualquer razão, Joelle via que ele não estava à vontade.
— Escute, Joelle, não se perca em abstrações... Espere. Por favor. Deixe-me explicar o que eu quero dizer. Não há dúvida, você e eu trabalhamos com dados, estabelecemos paradigmas, calculamos resultantes. Isto é bem claro. Bom. Magnífico trabalho. Mas não deixemos que ele vá interferir com o que se nos depara em lugares como este. Em especial, na nossa vida privada. Isto ... — e passou a mão à volta do horizonte — isto é que é o real. Tudo o resto, inferimo-lo nós. É nisto que vivemos.
Joelle olhou-o por largo tempo, durante o qual Eric sentia o calor subir-lhe no corpo. Nessa noite tornaram-se amantes.
Ele, canadiano; ela, norte-americana. Numa época em que os governos militares estavam paranóicos após as Perturbações, antes de os seus países se federarem e se integrarem na União Mundial... Eric e Joelle ficaram separados mais de um ano. Entretanto a holotética ia evoluindo exponencialmente, de mero aperfeiçoamento na ligação homem-máquina até toda uma nova ordem de percepção e de existência.
Joelle sentia-se avançar nesse campo longe dele, e isso feria-a, mas já não podia resistir àquilo em que se estava a tornar, tal como um feto não se pode opor ao crescimento no ventre materno. Na altura em que Eric conseguiu finalmente vir para o pé dela, para a Universidade de Cansas, para trabalhos de investigação, sabia Joelle o que ele devia aprender e tinha feito as necessárias inscrições para isso.
Quando Eric chegou ao gabinete dela, entregaram-se ao amor. Ao amor físico. Almoçaram em seguida com sanduíches e conversaram. Por fim, Joelle curvou-se para ele e beijou-o longamente, com ternura, quase como se dissesse adeus a uma criança.
— Vamos-nos — murmurou ela. Enquanto se adiantava para o laboratório, o seu passo largo tornava-se triunfante.
Uma vez ali, preveniu-o:
— As palavras para nada servem aqui. Hás-de verificá-lo por ti mesmo. Vamo-nos tornar ainda mais íntimos do que na cama. Imensamente mais.
Tinham sido anunciados efeitos quase telepáticos quando um linker passivo num circuito holotético não só recebia os mesmos dados e as mesmas teorias no seu cérebro que o linker ativo, mas “sentia” as operações que se estavam a desenrolar na mente deste último.
— O quê? Vais então submeter a minha unidade à tua? — perguntou Eric. — Pelo que vi na literatura, isso não conduz a uma impressão lá muito reconfortante ou clara.
— Nem tudo consta da literatura que por aí anda. Disse-te já que eu ... que nós ... Bom, que eu estou a fazer rápido progresso. Adquiri, não sei, uma percepção, quase um instinto, e um fluir mútuo entre mim e o sistema, o contínuo reprogramar em cada sessão ...
Joelle puxou-lhe pela manga:
— Anda, vem ver.
— Que tens tu na cabeça?
Joelle franziu ao de leve as sobrancelhas:
— Isso em parte há-de depender de ti, do modo, como encarares o que acontecer. Começamos contigo e o 707. Pensa um pouco nele, vamos a isso. A seguir, por meio das interligações, vou pôr-te em comunicação comigo e com o meu computador. Tu limitas-te estritamente a receber, sem nenhum acesso aos afetores, pois de contrário podias estragar algumas experiências delicadas. Vou também tomar parte nisto, como vês. O meu auxílio é pedido com tal freqüência que temos canais constantemente abertos entre os interessados e o meu sistema. Genética num laboratório, precisamente nesta universidade; Física Nuclear no grande acelerador em Minesota; Cosmologia em Sagan Orbital. Espero poder dar-te uma idéia do que estou a fazer atualmente. Eu saberei, porque terás uma espécie de canal de saída para mim. Com efeito, irei ler na tua mente. Sim — disse Joelle, para estupefação dele —, atingi essa fase. Depois disso... — e Joelle apertou-o contra si e beijou-o. — Deixa que haja um “depois disso”.
Eric correspondeu, mas Joelle sentiu que ele sentia que na entoação dela havia mais amabilidade do que insistência.
Eric baixou-se no sofá, reclinou-se tomando o ângulo que lhe agradava. Deixou distenderem-se os músculos e repousarem os ossos, antes de assentar o capacete na cabeça, de o ajustar e de o prender. Passou os pulsos pelas fixações, tamborilou com os dedos através de uma chapa de controlo e verificou se tudo estava bem. Enquanto dispunha também as suas ligações, Joelle via o frêmito de outrora a libertar-lhe a alma dê toda a inquietação.
— Ativar? — perguntou Eric.
— Sim, ativar — respondeu ela.
— Amo-te — disse Eric, e carregou no botão principal.
Depois disso, ela sentia e pensava o que ele sentia e pensava, com uma pequena fração da sua própria consciência.
Momentaneamente, sentidos e intelecto agitavam-se em turbilhão. Eric imaginou que tinha ouvido um silvo agudo, penetrante. As recordações há muito sepultadas brotavam de novo, como se ele tivesse recuado no tempo até à infância, como se estivesse a nadar na água fria e verde numa cova aberta na rocha, com um falcão a rondar no ar e a macieza de um edredom em torno do corpo. O seu sistema nervoso assegurou então o seu domínio. A indução eletromagnética, a amplificação dos mais leves impulsos, um programa básico que ele tinha aperfeiçoado no decorrer dos anos para se adaptar ao seu próprio eu, tudo isso se pôs a funcionar. Homem e computador tornaram-se num todo.
Pensa, disse ela. E Joelle conhecia a resposta: como podia ele não pensar quando era agora um gênio com uma capacidade intelectual mais vigorosa do que qualquer outra que houvesse aparecido na Terra até aos nossos dias?
São inúteis as palavras aqui, disse-me ela.
Tinham ambos perfeito conhecimento do meio que os rodeava. Se quisessem, podiam tê-lo examinado nos seus ínfimos pormenores. Podiam ter analisado uma arranhadura e uma reverberação em metal polido, o oscilar de um ponteiro num amperímetro, o gluglu abafado, monótono, do óleo na ventilação, e a lenta pulsação do sangue nas veias. Mas Joelle sentia que já nem mesmo isso era verdadeiramente de interesse para ele. Eric tinha um universo perceptual a conquistar.
Nos poucos milissegundos que se seguiram, enquanto Eric procurava um problema que merecesse ser abordado, uma fração do seu espírito calculava o valor de uma integral elíptica até uma centena de decimais. Era um curioso exercício semiautomático. Os algarismos iam-se justapondo uns aos outros, de maneira perfeita, como tijolos alinhados pelas mãos do pedreiro. Ah! — apercebeu-se ele. Sim, a estabilidade dos turbilhões da Mancha Vermelha em planetas como Júpiter. Ouvi falar disso em Calgary. O ponteiro grande num relógio de parede mal se tinha mexido.
Eric traçou uma lista dos dados que, em seu entender, lhe seriam necessários, e emitiu uma ordem. Para ele, era como se estivesse a procurar na sua memória normal um acontecimento ou dois, salvo que tudo se passou fantasticamente mais rápido e com mais rigor, apesar de recorrer a bancos que se encontravam a centenas de quilômetros de distância. Chegava-lhe a teoria, chegavam-lhe as fórmulas, e valores específicos de quantidades. A primeira vista, determinada equação diferencial seria um espinhoso problema a resolver. Mas de repente viu-a fácil. Mas seria a equação realmente plausível? Não podia ele imaginar um conjunto de relações que descrevessem melhor as condições num sol rudimentar?
Surgiu uma chama, límpida como o gelo. Eric estava a mergulhar nela. Estava a ficar embriagado na clarividência.
Eric — chamou Joelle. Chamou sem voz, sem pronunciar um nome, só num toque.
Ele teve de desviar a sua atenção de Júpiter, com uma promessa: voltarei.
Eric, estás pronto para me acompanhar?
Não era propriamente uma pergunta, era uma determinação que ele sentia. Era Joelle. A velocidade vertiginosa, como redes de neurônios adaptadas aos correspondentes tipos de sinapse, Joelle fundiu-se com ele. Os remoinhos informes que rodopiam por detrás das pálpebras cerradas não tomavam qualquer configuração no espírito dela. Eric sentia fugitivas impressões de si mesmo, antes de a presença de Joelle o inundar. Seria da feminilidade de Joelle que ele se apercebia, como um segredo a correr-lhe no sangue, uma espera de receber e depois de acariciar e finalmente de dar, uma ordem que ela escolheu, não para escutar mas para permanecer sempre ali? Eric não o podia dizer. Talvez nunca o viesse a saber, pois que a união era apenas parcial. Eric não tinha aprendido como aceitar e compreender a maior parte dos sinais que estavam a penetrar nele, e havia muitos mais que o seu corpo nunca poderia receber. Aquilo tornava-se doloroso para o seu espírito, como doloroso o era para o dela.
Eric, nisto também és o meu primeiro homem, e suponho que o último.
As camadas frontais dos cérebros, mais ainda do que o todo dos seus organismos, interpenetravam-se. Para mais, Joelle tinha praticado o intercâmbio àquele nível e aperfeiçoado a técnica dele com outros linkers até a dominar com perfeição. A comunicação entre ela e Eric reforçava-se e clarificava-se segundo a segundo. Não era uma comunicação direta, mas através dos seus computadores, cujas traduções eram inevitavelmente imperfeitas. As impressões surgiam com freqüência fragmentárias e distorcidas, ou não passavam de um amontoado desconexo — uma avalancha de números ao acaso, de formas, clarões, ruídos, não símbolos menos reconhecíveis, que o teriam enchido de pavor se não fosse o constante apoio de Joelle. Isso lhe sensibilizava o espírito, pois os pensamentos de Joelle eram seguramente reconstruções, pelos reforçados poderes lógicos de Eric, daquilo que ela devia estar a pensar em dado momento. As palavras reais que passavam de um para o outro seguiam na forma mortal comum, dos lábios para o ouvido.
No entanto, Eric recebeu os propósitos de Joelle com uma inteireza, uma profundidade, que nunca tinha sonhado poder atingir, ali, no pórtico daquele universo que ela lhe abria.
— Genética — disse Joelle em voz alta. Era a única indicação de que ele precisava. Joelle o guiaria para a investigação nesta escola. Os conhecimentos jorravam. O trabalho desenrolava-se a nível submolecular, nas autênticas bases do ser vivo. Joelle era freqüentemente chamada a executar as mais exigentes tarefas, a inventar outras novas, ou a interpretar resultados. Hoje o ajustamento estava em parte à decorrer automaticamente, em parte com apoio. Joelle, porém, tinha acesso a ele a qualquer momento.
O seu cérebro mandava fechar os circuitos adequados, e Joelle unia-se então ao conjunto de instrumentos, sensores, efetores, e à inteira compreensão que o homem tinha da química da vida. Recebendo dela, Eric compreendia.
Não procurou qualquer quadro de quantidades, quaisquer leituras em manômetros cuja significação se tornasse clara após longo cálculo. Isto é, os números estavam presentes, mas na experiência Eric não sentia mais consciência deles do que do seu próprio esqueleto. Não estava a olhar de fora e a tirar conclusões, mas estava lá dentro.
Estava a ver, a sentir, a ouvir, a deslocar-se, embora não se concentrasse em nenhuma dessas coisas, porque ia além do que a própria criatura humana, tão limitada, podia receber ou fazer. Muito e muito além.
A célula vivia. As pulsações cruzavam a sua membrana, como cores. A célula era um globo iridescente, pulsando para a intrincada corrente de fluido que a embalava numa atmosfera deliciosa; bebendo com avidez energias que se precipitavam em cachoeira para ele, por declives constantemente a mudar. As distâncias verdes tocavam com a imensidão dourada. Por baixo de cada nova fase andada residia a paz. O cosmo da célula era um nirvana que dançava.
Agora lá dentro, através dos arcos-íris, para o oceano interior. Aqui ia um turbilhão de... sabores... e ali dominava uma gigantesca tenacidade subjacente. Dentro da célula, o trabalho prosseguia sempre e sempre, conduzido por uma lei tão ampla que podia ter sido Deus Todo-Poderoso. Flutuavam orgânulos, que pareciam cantar enquanto iam tecendo fragmentos químicos para formarem tecidos que se convertiam em vida. À medida que a essência do seu conhecimento se tornava mais subtil, Eric via-os alongados em flechas góticas, repletos de mistério e de música. À sua frente, o núcleo crescia de uma ilha de florestas moleculares para uma galáxia de átomos constelados, cujos campos de força brilhavam como nuvens de estrelas dispersas pelo vento.
Eric penetrou no núcleo, traçou uma dupla hélice, contorno após contorno de labirintos de uma majestade impressionante e perfeitamente harmoniosos. Estava com Joelle quando ela evocou o fogo e remodelou uma parte do templo, que não ficou menos belo depois disso. Partilhou do orgulho e da humildade de Joelle, ali no âmago da vida.
A voz de Joelle chegou longínqua e enigmática, a ecoar através de um sonho: “Segue-me.” Eric deslizou da célula, através do espaço e através do tempo, à velocidade da luz por pradarias nunca vistas, metendo-se no meio das tempestades desencadeadas por um forte acelerador de partículas. Eric tornou-se um com elas, possuído pela impetuosa turbulência dessas, partículas. A mesma velocidade se apoderou dele, e lançou-se para o objetivo como se fosse ao encontro da amada.
Aquele mundo sobrepujava o mundo material. Eric transcendia o cometa de que se havia tornado méson, pois era também uma onda entremeada num trilhão de outras ondas, como uma crista que.tivesse cruzado todo um mar para se erguer por fim bem alto e se quebrar em espuma, beijada pelo sol por entre o fragor do trovão — embora estas ondas fossem de configuração infinitamente mais precisa e rapidamente a mudarem, fluíam juntas para criar uma unidade que acendia e fazia ressoar à sua volta uma imperturbável serenidade. Bach podia falar um pouco disto — passava através dele, pois tinha também a sua mente a raciocinar (esta era uma larga parte do esplendor do espetáculo) —, mas só Bach podia, e apenas seria um pouco ...
O átomo esperava por ele. O núcleo, onde as energias se amalgamavam, era indescritivelmente majestoso. As paredes dos elétrons feericamente cintilantes, escondiam-se dele. Eric mergulhou, as forças envolveram-no em indizíveis carícias, o núcleo brilhou, ele próprio uma inteira criação. Eric atravessou as barreiras exteriores e a alma encheu-se-lhe de uma sensação de êxtase. E Eric penetrou mais e mais.
O núcleo rebentou. Não era um desastre, mas um desdobramento. O átomo abraçava Eric, amoldava-se a ele. O eu de Eric respondia aos menores movimentos de Joelle, e Eric conhecia-a. A radiância explodia para o exterior. As estrelas da manhã cantavam em conjunto, e todos os filhos de Deus exultavam de alegria.
— Cosmologia — disse Joelle, a onipotente. Eric tateava à procura dela nas trevas vacilantes. Joelle envolvia-o e eles voavam juntos, num raio laser, por intermédio de um satélite a servir de relê, até um observatório em órbita por detrás da Lua.
Não tardou a Eric acompanhar o movimento das estrelas como se fosse com os seus próprios olhos, sem que nenhum céu as enevoasse. A sua infinidade, azul-metálico, branco de gelo, dourado como o pôr do Sol, vermelho como carvão ao rubro, quase fazia resplandecer a noite no firma-mento. A Via Láctea estendia-se num leito de prata; descortinavam-se as nebulosas onde novos sóis e novos planetas estavam a nascer; uma galáxia--irmã lançou o seu pálido fulgor através da brecha de Ginnunga. Mas imediatamente Eric se ligou ao equipamento que estava à procura dos confins mais remotos do espaço-tempo.
Primeiro apercebeu-se dos espetros ópticos. Falaram-lhes eles de luz que dimanava de gás a saltar e a redemoinhar. Falaram-lhe de marés no corpo de um sol — um corpo mais parecido com a célula viva do que ele podia ter imaginado —e das fornalhas por baixo, onde os átomos davam origem a mais altas gerações de elementos e onde os fótons a correrem velozes pelo espaço fora eram o grito do nascimento. E Eric partilhava desse jogo de brâmanes. A seguir sentiu um vento solar a soprar, sorveu-lhe a riqueza, sentiu vibrar-lhe a finura, e reconheceu a subtileza milenária do seu trabalho. Depois disso entregou-se a espetros de rádio, a espetros de raios cósmicos, a campos magnéticos, fluxos de neutrinos, princípios de gravidade que asseguravam uma passagem por entre as estrelas e pareciam assegurar a viagem pelo tempo, na curva de contínuo que é o todo.
No Grande Canhão do Colorado podem ver-se estratos que remontam a um bilhão de anos, e no meio deles descobre-se um zimbro encarquilhado, e pode saber-se alguma coisa da Terra. Assim também soube Eric alguma coisa das profundezas e da ordem no espaço-tempo. A bola de fogo inicial tornou-se mais real para ele do que a violência do seu próprio nascimento. A questão de saber o que a tinha provocado tornou-se terrificante. Com isso, ele dissecou as espirais das galáxias e a molécula ADN com energia que nunca mais lhe reverteria a ele, e viu corno essa molécula envelhecia enquanto amadurecia, tal como qualquer de nós. A Lei é Uma. Eric viveu a vida das estrelas. Viu quão numerosas eram as ondas que as formavam, quão forte a ligação depois disso a uma existência inteira! No meio da massa impressionante das gigantes azuis e dos buracos negros, encontrou espaço para forjar planetas onde pudessem crescer cristais e flores. Eric apercebeu-se do que era ainda desconhecido — a esmagadora maioria de tudo aquilo, desconhecida agora e para todo o sempre — e como Joelle ansiava por continuar na sua busca.
No entanto, em todos os momentos, a parte observadora nele sentia que, se não fora Joelle, a sua percepção estava enevoada e a sua compreensão acorrentada. Quando Joelle o trouxe de novo à simples existência de homem de carne e osso, Eric gritou.
Sentaram-se os dois, ali naquele gabinete. Separava-os a mesa de trabalho de Joelle. Esta havia levantado a persiana por detrás de si e aberto a janela. Apressavam-se sombras pela relva. A luz do Sol que se seguiu era brilhante, mas um tanto como se o ar através do qual ela caía a houvesse gelado. As rajadas uivavam, cavernosas, e traziam consigo para o gabinete um cheiro a húmus, odores do Outono que se aproximava.
A voz de Joelle era macia, cheia de doçura:
— Não podíamos ter falado com o perfeito sentido dos fenômenos antes de ali haveres penetrado, não é verdade, Eric?
O olhar de Eric foi para o sofá vazio:
— Até que ponto houve um sentido no que se passou entre nós, mesmo de princípio?
Joelle suspirou.
— Eu queria que houvesse — e o seu rosto foi banhado por um sorriso.
— Agradava-me.
— Só isso, agradar?
— Nem sei. Gosto de ti e de tudo quanto me ensinaste. Mas tive de prosseguir, até onde tentei levar-te.
— Até que ponto aí cheguei eu?
Joelle olhou para as mãos, dobradas sobre a secretária, num abandono, e murmurou:
— Menos ainda do que eu receava. Era como se estivesse a mostrar uma pintura a um cego. Ele podia colher uma pálida idéia com a ponta dos dedos quanto à textura, quanto às zonas escuras, levemente mais espessas do que as claras. Mas que idéia tão exígua!
— Ao passo que tu abarcas tudo, desde os quanta aos quasares — volveu ele com aspereza.
Joelle, levantando a cabeça como num protesto por aquela infelicidade partilhada, explicou:
— Não, eu apenas estou no começo, e é claro nunca poderei acabar. Mas não vês que é próprio desta maravilha? Haverá sempre mais para descobrir. A experiência direta, tão direta como a visão ou o tacto ou a fome ou o sexo, a experiência da realidade real. O mundo no seu conjunto, aquele mundo que os seres humanos conhecem, é apenas um reflexo passageiro, acidental, da realidade. De cada vez que a procuro, à realidade, conheço-a melhor, e ela revela-se-me também melhor. Como poderia eu parar?
— Suponho que eu não possa aprender.
Joelle sabia que Eric não alimentava qualquer esperança.
— Não, não podes. Um holoteta tem de começar como eu, de muito novinho, e não fazer quase nada na vida, especialmente nos anos de juventude, em que está a formar o espírito. — Os olhos de Joelle ardiam-lhe.
— Desculpa-me, meu amor. Tu és bom e amável e ... como eu desejava que me pudesses seguir nisto! E como tu o mereces!
— E não gostavas de voltar atrás, no entanto, àquilo que eras quando nos conhecemos?
— E tu?
Eric não conseguia, por mais que tentasse, reconstituir verdadeiramente o que se passara naquele dia. Contudo...
— Não — disse ele. — De fato não ouso tentar de novo. Isso podia tornar-se um acto repetitivo. Para mim, nada mais do que um hábito feito, que levava à loucura. Para ti... — Eric encolheu os ombros e perguntou: — Conheces o Rubáiyát?
— Já ouvi falar — disse ela —, mas não tive ocasião de me cultivar. Eric recitou:
Vede: se a Alma pode lançar fora o que é Pó,
E correr, nua, pelos ares, pelo céu,
Não será uma Vergonha — Vergonha para ele
Deixar-se ficar, sem dar um passo, na sua carcaça de argila?
Joelle meneou a cabeça.
— O homem tinha razão, não tinha? Li uma vez que Ornar era matemático e astrônomo. Deve ter sido um solitário.
— Como tu, Joelle?
— Eu tenho alguns colegas, lembra-te disso. Estou a ensiná-los ... Joelle deteve-se por um momento, curvou-se por cima da mesa de trabalho, e disse ainda com uma nova preocupação:
— E quanto a nós os dois? Vamos colaborar. Tu és suficientemente forte para agüentar, para levares a cabo a tua tarefa. Estou certa disso. Mas as nossas vidas pessoais ... O que preferes tu?
— E tu? Vamos considerar isso primeiro.
— Tudo o que quiseres, Eric. Serei com prazer tua mulher, tua amante, qualquer coisa.
Eric quedou-se sem um movimento, à procura das palavras — supôs ela — que não a pudessem ferir. Nenhuma saiu.
— Estás a dizer-me que não te preocupa o quê — observou ele. — Queres tratar-me o melhor que puderes porque isso, no fundo, não tem grande importância para ti.
Eric levantou a mão para deter a resposta de Joelle, e continuou:
— Não há dúvida de que seria muito restrito o prazer que terias em viver comigo. Um prazer limitadíssimo mesmo na minha conversa. Quando muito, eu ajudaria a preencher-te as horas em que não pudesses estar ligada ao teu computador... Até tu e esses teus colegas atingirem um ponto em que deixarias de ter tempo para te ocupar de coisas insignificantes.
— Mas eu tenho-te verdadeiro amor — protestou ela. E duas lágrimas corriam-lhe devagar pela face.
— Acredito em ti — reconheceu Eric. — Simplesmente esse amor já não tem validade para o além, naquele mundo sublime. Queres ver? Eu sentia afeição pelos cães que tinha em casa. Mas... — chama-lhe orgulho, chama--lhe preconceito, chama-lhe teimosia ou o que quiseres — não posso fazer o papel de cachorrinho.
Levantou-se.
— Manteremos, com certeza, uma colaboração eficiente até eu regressar à minha terra — rematou ele. — Hoje, no entanto, enquanto ainda me resta uma bela recordação da minha querida, dir-lhe-ei adeus.
Joelle aproximou-se dele. Eric estreitou-a nos braços enquanto ela chorava. Mas quando por fim Joelle o beijou os lábios dela pareciam frios.
— Volta para o teu computador — aconselhou Eric.
— Sim, volto — respondeu Joelle. — Obrigada por mo teres dito.
Eric saiu e começou a caminhar contra o vento, que tinha arrefecido com o cair da noite. Joelle ficou à porta e acenou-lhe com a mão. Ele não se voltou para olhar. Talvez não quisesse ver quanto tempo levaria a porta a fechar-se atrás de Joelle.
A companhia dos recém-chegados era naturalmente muito procurada a bordo da Chinook. Foi portanto uma pequena surpresa para Weisenberg quando Rueda Suárez o convidou a ir tomar um aperitivo com ele antes do jantar. Ao entrar à hora combinada, o mecânico ouviu uma canção popular do planalto andino, canção que lhe chegava baixinho, e viu que o mecanismo leitor estava a dar uma página de poesia.
Rueda seguiu o olhar de Weisenberg.
— Garcia Lorca — disse o peruano. — Foi um prazer encontrar aqui o banco de dados com todos estes tesouros: os meus favoritos, ele, Neruda, Cervantes, e bastantes outros, sem falar de música.
— A verdade é que tínhamos feito planos na previsão de andarmos lá por fora durante anos, tal como aconteceu a vocês — respondeu Weisenberg.
— Além disso, e como vocês, esperávamos mostrar alguma da cultura humana a não humanos.
— Anos ... no vosso caso? E não é casado?
— Sim, casado, e com cinco filhos. Mas o mais novo está agora a principiar a universidade, e os outros já se governam por si. Sarah inscreveu--se para vir também na expedição, como contramestre. Claro, uma vez que fomos forçados a partir nestas circunstâncias, eu não a deixaria vir.
Weisenberg esboçou um sorriso, embora persistisse a dor lá por dentro. E explicou:
— Para ser mais preciso, eu não lhe disse nada. Raspei-me, deixando-lhe uma mensagem. Porque uma pessoa necessita de um belo refúgio, muito seguro, para se abrigar quando Sarah (Já asas ao seu orgulho judaico.
— Compreendo. Não se quer sentar? Que prefere? Tenho aqui para beber de tudo o que trazemos a bordo.
— Uísque então, e obrigado. Simples; e um copo de água fresca. Weisenberg aconchegou o seu corpo magro numa cadeira. Rueda serviu o mesmo para ambos e sentou-se em frente dele.
— Pensei que nos devíamos conhecer um pouco melhor — disse Rueda.
— Daqui a quarenta horas estamos na máquina T, e só Deus sabe o que vai acontecer. Se o plano de Daniel tiver êxito e chegarmos a Beta, poderemos contar ainda com um longo e árduo esforço à nossa frente. Se não tiver, a nossa vida correrá um grande perigo. Melhor sabermos até que ponto nos podemos apoiar uns aos outros. E ... talvez você possa encontrar um trabalho para mim. Sinto-me inútil, aborreço-me, bebo demasiado.
O seu sorriso era um tanto amargo. E explicou:
— Frieda podia manter-me ocupado, mas está a explorar os novos homens que a rodeiam.
Weisenberg bebeu um pouco. Depois perguntou:
— E não pode pedir ao comandante que lhe dê trabalho?
— Detesto criar-lhe ainda mais preocupações. Além disso, você é o nosso técnico geral. Se me pudesse dar uma sugestão para eu lhe falar... Está a ver? Você e eu podemos comunicar melhor entre nós do que a maior parte dos que nos rodeiam. Disseram-me que você passou anos no Peru, a trabalhar para a Aventureros.
Weisenberg fez que sim com a cabeça e afirmou:
— Estudei engenharia nuclear em Lima. Não havia na altura nenhuma escola da especialidade em Deméter. Depois disso, entrei para a vossa companhia. Foi isso o que me levou a ir para o espaço. Mas gostava da cidade também. É bela e deu-me muitos momentos soberbos. Estava lá quando foi assinada a Convenção!
— E porque regressou, se não é indiscrição da minha parte?
— Olhe, sobretudo por causa dos meus pais. Não era fácil trabalhar em terra, embora o cuidar da família me mantivesse razoavelmente satisfeito. Quando Dan arrancou com a Chehalis, mudei para ir trabalhar com ele.
Rueda olhou para o seu copo, bebeu, e olhou de novo, como se sondasse um presságio.
— O espaço... — murmurou ele. — Sim, cada um de nós deve estar obcecado pelo espaço, não? Por que outro motivo estaríamos nós aqui? Suponho que fui atraído pelo espaço logo na infância, numa noite fria e brilhante em Machu Picchu. As estrelas por cima das ruínas dos Incas eram como uma hoste de anjos.
— Ou de Outros — acrescentou Weisenberg em voz baixa. Rueda voltou para ele uns olhos perscrutadores:
— Você é daqueles que consideram os Outros como fazendo parte de Deus?
— Não, realmente não sou.
A conversa estava rapidamente a tornar-se cordial. Mas restavam apenas quarenta horas de paz. E Weisenberg continuou:
— No entanto, fui para a escola neochasídica em Eópolis. Um homem, uma vez ali entrado, pode trazer as marcas daquilo por toda a vida. Mesmo quando tenha perdido a fé.
— Bom, sou vagamente católico, suponho eu. Mas devo reconhecer que aqueles anos em Beta me deixaram um pouco abalado. Até então, eu quase tinha aceitado a existência dos Outros como uma realidade. Porém, quando os Betanos, com as suas capacidades fantásticas, nos apareceram como mortais e perturbados, da mesma maneira que nós — desorientados e receosos dos Outros, tal como nós —, tudo isso provou em mim uma grande reviravolta.
Rueda fez uma careta e prosseguiu:
— Eu era também conservador em política. Vejo agora como certas coisas, com as quais nem sonhava, têm andado a corromper o aparelho do
Estado, e também essa fé vacila. — Acabou o seu uísque e observou: — Continua a ser possível acreditar no poder, cordura e benevolência dos Outros. Oxalá isso continue sempre a ser possível!
Bebido um gole de água, levantou a garrafa de uísque da mesa ao lado dele e fez um gesto a Weisenberg, a oferecer mais um pouco. O mecânico fez que não com a cabeça. Rueda serviu-se a si e começou de novo a beber.
— Não tenho o culto deles — observou Weisenberg.—Por exemplo, não acredito que estejam a trabalhar em segredo para nos dirigirem e ao universo inteiro. Talvez estejam, mas a Voz deles negou-o também aos Betanos. No fim de contas, sinto-me agnóstico a respeito deles, e agnóstico ficarei até conseguirmos algum conhecimento direto, que talvez nunca nos chegue.
— Porém, eles são importantes para a sua alma — observou Rueda. Weisenberg fez de novo um gesto com a cabeça.
— Fundamentais. Em especial quando observo o céu no espaço. Embora eles provavelmente não se divirtam a serem deuses, parece impossível
— bem, impossível para mim aceitar, pelo menos — que estejam indiferentes para conosco ... Que nos deixem utilizar as suas passagens meramente porque não podemos causar dano a nada que seja deles. E a mostrarem-nos o único caminho para um novo planeta por mera bondade, como um homem que dá de comer aos pombos com a sanduíche que, assim, deixa ele próprio de comer. Não, parece-me claro que eles nos estudaram, de qualquer maneira, e de perto, mesmo antes de Fernández-Dávila haver partido da Terra. Terão depois disso perdido o interesse por nós?
— Talvez tenham ido para outro lado — observou Rueda. — Lembre-se: ninguém, incluindo os Betanos, ninguém viu até hoje uma nave deles.
— Talvez conservem as suas naves invisíveis. Ou nem precisem de naves. Não faz sentido que houvessem abandonado aquelas máquinas T
— pense no investimento de energia e de meios — ou, estou certo, que nos tivessem abandonado. Posso facilmente imaginar que eles se conservam afastados dos nossos olhos. Podíamo-nos sentir subjugados pela sua presença, esmagados. Mas, com todos os diabos!, eles devem ser bem intencionados. Devem interessar-se por nós.
— Esta é uma grande galáxia. Ao que parece, milhões de raças inteligentes, ou bilhões. Não olharão eles ao tempo?
— Se podem construir por aí máquinas T — quantos sóis? —, podem também seguir o que se passa nos planetas.
— Como Deus? “O seu olhar vela sobre as avezinhas.”
— É improvável que os Outros tenham poderes infinitos. Talvez não possamos dizer qual é a diferença, no entanto.
Rueda mostrou-se apreensivo:
— Não estão a fazer muito no sentido de nos ajudarem, a bordo desta nave, não lhe parece?
— Eles nunca fizeram milagres em benefício individual, que eu saiba — reconheceu Weisenberg. — Experimentei repetidas vezes, e repetidas vezes não consegui saber qual é a atitude deles em relação a nós, como se exprime a sua solicitude. Estou apenas convencido, até à medula, de que eles se interessam por nós, que a Voz não mentiu quando disse que eles nos amavam.
Eram horas de preparar ainda outra refeição. Caitlín entrou na sala comum a caminho da cozinha e estacou.
O estrangeiro... o betano... Fidélio estava ali, dir-se-ia sentado, ou acocorado, ou equilibrado diante de um dos largos écrans, a olhar o infinito. A iluminação interior obscurecia o céu aos olhos de Caitlín, mas ela podia ver a Via Láctea a estender-se para além da cabeça dele. Fidélio estava sozinho.
— Oh! — acudiu ela. — Bom dia!
Sem lançar um olhar em torno de si, Fidélio respondeu com uma entoação rouca que ao mesmo tempo parecia um silvo:
— Buenos dias, senora Mulryan. Caitlín mudou para o espanhol:
— Conhece-me então, já, sem mesmo olhar para mim?
— A minha raça tem o ouvido mais apurado do que a sua.
Sem prática, era necessário, em contrapartida, um ouvido bem dotado para apreender a maior parte daquilo que Fidélio dizia. Mas ele falava com fluência, num espanhol gramaticalmente correto. A natureza, porém, não o tinha destinado a emitir sons daquela espécie. Como se compreendesse que talvez houvesse sido demasiado seco, prosseguiu ele:
— Além disso, cada um tem o seu odor próprio. Esta é outra característica de que vocês não conseguiram aperceber-se. No entanto, a vossa visita ao ar é muito mais perfeita do que a minha para longo alcance, e não posso deixar de admirar também a vossa sensibilidade táctil.
Fidélio voltava-se agora, num simples movimento fluido — com a luz a brilhar ao longo da sua pele — a fim de ficar de frente para Caitlín. Esta avançou por sua vez, até ficar diante dele.
— Gosto do seu cheiro — disse Caitlín. — Faz-me lembrar o meu país natal, quando era pequena, a brincar na areia, com o mar a fazer os seixos rolarem uns de encontro aos outros como mós de moinho ... Mas é também bastante diferente, e sinto-me ao mesmo tempo criança a sonhar na praia, vendo o país das fadas nas nuvens ... Desculpe. Você não pode compreender isto.
— Talvez possa. Também o meu povo tem os seus mitos, os seus fantasmas, que são mais fortes na infância.
Caitlín estendeu as mãos através das garras palmípedes de Fidélio, porque as mãos dele estavam um pouco mais para trás. Apertou-lhe as protuberâncias e disse com satisfação:
— Eu estava certa disso. Mas não imaginava que você tivesse tantos conhecimentos a nosso respeito. Por exemplo, para saber o sentido de uma expressão como “país das fadas”.
— O meu trabalho tem sido com outras espécies sapientes. Isso me ajuda a depreender o que se relaciona com a vossa.
Aquele olhar, perfeitamente azul, concentrou-se atento em Caitlín. Depois, Fidélio comentou:
— Eu tenho de estar surpreendido pela sua imediata compreensão das minhas palavras. O meu acento parecia muito carregado para alguém que não fosse da Emissário.
Caitlín retirou as mãos, encolheu os ombros e explicou:
— É que eu coleciono canções em várias línguas.
Aquele grande vulto castanho ergueu-se. Os pêlos da boca estremeceram.
— Quer dizer então que também canta? E que não é música formal, como aquela que a gente da expedição tocava para mim, mas sim uma música viva, corrente?
— Como? Então eles nunca cantaram?
— Sim, de vez em quando, mas ... — Fidélio hesitou. Prosseguiu por fim: — Observei que a minha raça tem ouvido relativamente fino.
Caitlín deixou transparecer um sorriso:
— Sei que você está a procurar ser diplomata a este respeito. Bem, se na verdade sentiu interesse pela nossa música, pelas nossas gravações ... eu nunca me consideraria uma notável intérprete, mas ...
— Bom dia! — disse uma outra voz.
Fidélio não precisava de ver quem falava. Caitlín, essa precisava. Era Joelle Ky que ali estava, à porta.
— Oh, bom dia, senora — apressou-se Caitlín a cumprimentar com afabilidade. — Posso ser-lhe prestável em qualquer coisa?
— Não. Passei por aqui...
A holoteta mantinha a sua magra figura tão rígida como o seu tom.
— Estávamos a principiar uma conversa ...
— É a primeira pessoa desta tripulação com quem posso falar à vontade — observou Fidélio.
— Não quer entrar, Drª Ky? — perguntou Caitlín, timidamente.
— Não — respondeu a outra mulher. A sua expressão era seca como as suas palavras. —Pouco teria para dizer. Continue, senorita Mulryan. O jantar pode esperar. Sem dúvida que é mais importante alargar a experiência que Fidélio tem da... humanidade.
E Joelle -foi-se embora.
Caitlín ficou a olhar para o espaço vazio, ali ao pé da porta, onde a holoteta tinha estado. A pergunta do betano chamou-lhe de novo a atenção para ele:
— Existe qualquer conflito entre vocês as duas?
— Não. Eu nunca ... Isto é ... — e Caitlín respirou fundo. — No fim de contas, raras vezes nos encontramos, ela e eu. Claro que eu sabia do seu feitio, e estava com receio, e já esperava ...
Caitlín suspirou ao de leve. O suspiro era ao mesmo tempo um estremecimento. Depois encolheu os ombros e disse:
— É possível que haja um conflito, se assim lhe podemos chamar — reconheceu ela. — O capitão Brodersen disse-me umas coisas. Talvez ela esteja ressentida por causa da minha intimidade com o comandante. Mas estou certa de que é assunto completamente estranho para si.
Fidélio arqueou o corpo, como na defensiva.
— Não compreendeu? Nós queremos que as coisas desta espécie não nos sejam estranhas.
— Bom, sim... — balbuciou Caitlín. — Suponho... Ouvi dizer... É profundamente espantoso, mas ...
As lágrimas entreluziram-lhe nos olhos, embora não tivessem passado as pestanas.
— Aquilo que você esperava fosse uma abertura para o amor tornou-se numa abertura para o ódio e o medo. Santo Deus!
Caitlín reuniu as suas forças:
— Nós tentamos o melhor — disse ela. — Dan Brodersen verá isso. Entretanto seria aconselhável que você chegasse a conhecer os humanos, para além dos poucos que foram até ao seu planeta. Somos muito diferentes uns dos outros. Claro que alguns de entre nós o podem ajudar. Também o travar conhecimento nos distrairá um pouco da perda que sofremos e da ação desesperada que vamos tentar daqui a alguns dias.
De novo Caitlín fez um gesto para Fidélio, pegando-lhe desta vez nas mãos, pois ele as tinha estendido.
— Deixe-me ser a sua guia. Posso interpretar-lhe os acontecimentos, combinar pequenos encontros e procurar que as coisas se passem sem grande dificuldade. Todos precisamos disso.
— Muito obrigado — respondeu ele. — Você é amável.
Ficou ainda curvado, e as palavras saíam-lhe mecanicamente. Caitlín observou-o com atenção, a destacar-se sobre um fundo de estrelas impiedosas.
— Você sentiu-se contente por um momento — murmurou ela por fim —, mas a satisfação já lhe fugiu.
Ele fez um ruído que podia corresponder a um suspiro.
— É uma coisa a respeito da qual você nada pode fazer, senorita. E, se conseguirmos libertar-nos, não vai tardar a passar.
— Importa-se de me dizer o quê?
— Eu sou holoteta, como Joelle Ky, e há muito fora do... do estado de comunhão. Você sabe que ele se torna essencial para nós, ou pelos menos para a nossa felicidade. — Fidélio levantou a cabeça e prosseguiu: — Mas não se preocupe. Não é pior para mim do que para ela.
— Mas você está entre estrangeiros! — exclamou Caitlín. — E temos equipamento a bordo, mas não se adapta a si, não é verdade? Compreendo quanto deve sentir-se infeliz!
Caitlín avançou para aquele corpo pesado, quente, apertou-o nos braços.. Ele tocou-lhe em tímida resposta.
— Escute, Fidélio — disse-lhe ela quando se separaram. — Você tem a lucidez de ver que de nada serve lamentar-se. O melhor é pôr de lado a sua tristeza por um pedaço. Era o que estava a fazer quando fomos interrompidos. Voltemos ao ponto em que nos encontrávamos nesse momento. Música. Você haveria de gostar de ouvir as nossas canções e, por meu lado, sentiria verdadeiro prazer em ouvir as vossas. — Com vivacidade, acrescentou:
— Agora tenho de ir preparar a comida, mas não há motivo nenhum para não podermos cantar ao mesmo tempo.
Fidélio mexeu-se, endireitando-se. A vida retornou à sua voz:
— Sim, faça favor, vamos. Posso ajudá-la no seu trabalho? Pela primeira vez desde que haviam saído da Roda, Caitlín riu.
— De que ri? — perguntou ele.
— Oh!... Obrigada ... Talvez você pudesse levar algumas coisas. Mas estava a lembrar-me era de uma casita primitiva, na Irlanda, e a vê-lo assim na cozinha a cantar, com o pano dos pratos na mão.
Como se se tivesse libertado de um peso, Caitlín dançava para a cozinha. Enquanto avançava, ia desfiando a primeira canção para Fidélio:
La cucaracha,
la cucaracha,
Ya no quiere caminar ...
— Ah! — e a respiração de Frieda von Moltke chegava quente e desordenada. — Foi bom. És estupendo!
Martti Leino abriu os olhos para aquela cara redonda, de nariz largo, boca cheia, ali por baixo dele. Leino não era alto; ela era. Frieda fora realmente capaz de o beijar nos lábios e dentro deles, até começar a crescer o desejo nela. Então rugiu, e foi como se estivesse a cavalgar num tremor de terra. Depois, os seus braços e as suas coxas ainda se quedaram entrelaçados a ele. O suor colava-lhe as loiras trancas à testa ligeiramente corada e às maçãs do rosto Leino sentia aquela mesma humidade contra o ventre.
— E tu também — disse ele. — Foi excelente, e não há dúvida de que precisava disto. Obrigado!
Ela riu.
— Mas ainda não estamos arrumados, meu amigo. Que dizes tu a uma cerveja, primeiro? E importas-te que fume?
— De maneira nenhuma. Eu, por mim, não fumo.
Leino desprendeu-se e encostou-se ao travesseiro, à cabeceira da cama .Os pés dela tamborilavam de encontro à barra. Frieda era pesada: não gorda salvo os vastos seios; sólida. Cruzando a sua cabina, tirou um charuto de uma caixa — a nave estava abastecida com o necessário para uma quantidade de pequenos vícios — e pô-lo entre os dentes, antes de se ocupar das garrafas. Ao voltar, deteve-se à beira da cama. Olhou para Leino com ar interrogativo:
— Martti, porque foi que fechaste os olhos quando começamos? O olhar de Leino desviou-se dela.
— Hábito! — murmurou Leino.
— Não é bem essa a minha opinião. Podíamos ter apagado a luz, se quisesses. Estavas a servir-te de todos os sentidos, até ... Resolveste imaginar que o meu corpo fosse de alguém mais?
— Por favor!
— Podes crer que não me sentia ofendida nesse caso. Não vamos discutir a esse respeito. Eu não quero também ser indiscreta. É apenas por curiosidade
Leino não disse palavra. Ela passou-lhe uma garrafa ainda húmida do gelo, e acendeu o charuto. O fumo redemoinhou, espalhando um cheiro intenso. Frieda foi para junto de Leino e sentou-se na cama, flanco contra flanco.
— Gosto muito de ti, acredita, Martti — disse-lhe ela. E com uma ponta de malícia: — Espero que faças boa figura, em comparação com os teus companheiros de bordo. Stefan Dozsa é interessante mas ... apressado? Talvez não deva esperar muito dele. Quanto aos outros dois, não alimento grandes esperanças. Weisenberg comporta-se perfeitamente como homem casado quando falamos, e Brodersen tem a sua amante, que é de longe mais bonita do que eu.
— Sim, tem — concordou Leino, franzindo a testa. Uma vez mais o olhar de Frieda se tornou apreensivo:
— Ela é uma pessoa encantadora. Prendada. Estava a cantar algumas das suas próprias baladas enquanto tomava medidas para me fazer umas roupas decentes. E, além disso, faz uma excelente cozinha. E parece desempenhar o resto das suas tarefas de contramestre com esmero. Que mais?
— Não sei — observou Leino, apressadamente. — Não a conheço bem, mas é moça interessante.
Súbito, voltando-se para a olhar de frente, pediu:
— Fala-me de ti, Frieda. Toda a gente se ocupa a falar, da política de Beta e da Terra e de coisas desse gênero. Agora resta-nos já pouco tempo antes de... Olha, que tens feito na vida?
Frieda encolheu os ombros e atirou para o ar um anel de fumo.
— Já passei o cabo dos trabalhos.
— Conta-me.
— Se me contares depois também a tua história.
— A minha resume-se a pouco — disse Leino. — Sou ainda muito novo ... Estou agora a ver como tenho tanto para aprender ... Viste muito mais do que eu.
Frieda recolheu a garrafa e o charuto na mão direita, para que a esquerda pudesse desalinhar o cabelo a Leino.
— És simpático, Martti.
Depois, espreguiçando-se de encontro ao travesseiro:
— Pois aí tens, em traços gerais, se quiseres. Nasci na Prússia Oriental há trinta anos, salvo que para mim foi há trinta e oito. A minha família não era rica, mas tínhamos sempre presente que através de séculos havíamos sido junkers, e mais tarde fornecemos oficiais para o Império Soviético, e depois de ele se desfazer ... A mansão que pertencera aos nossos antepassados via-se de nossa casa. O meu pai foi guerrilheiro durante as Perturbações. Eu ingressei na Freiheit Jugend. Nunca tivemos de combater, mas estávamos a todo o momento preparados para isso. Por fim aproveitei de um Wanderjahr[8] antes de me alistar no Comando de Paz. Treinaram-me para o espaço. Quando a Emissário começou a recrutar pessoal, ofereci-me e fui aceite:
— Não, não se pode dizer que sejas gata-borralheira — observou Leino. Prepassou nela um sorriso desencantado.
— Gostava de me casar, de acabar com a vida que levo, de ter filhos enquanto os meus pais ainda puderem gozar do prazer de serem avós. Se eles forem vivos ... E, afinal, podemos nós também estar neste momento a voar para a morte.
— É duro, na verdade, aguardar sem esperança, não é?
— Mas não é outra, em regra, a sorte reservada aos seres humanos. Aguardamos pelos resultados de uma análise médica, ou aguardamos pelo veredicto de um júri ou por saber a que distância de nós vai cair a próxima granada num campo de batalha ou por coisas deste gênero.
Frieda sorveu o charuto, avivando-lhe uma chama vermelha como Aldebaran. E seguiu os seus pensamentos:
— O que é terrível, agora, é que podemos ser a derradeira esperança do gênero humano para se chegar verdadeiramente às estrelas. Os nossos inimigos não se deterão se se desfizerem de nós, spurlos versenkt[9]. Hão-de recear que cheguem os Betanos ou alguém mais e, por essa razão, não param até conseguirem controlar bem a situação, até poderem instalar abertamente armas nas máquinas T em Sol e Febo, no intuito de conservarem bem fechado um reino isolado em si mesmo. É muito possível. O meu povo lembra-se dos Soviéticos.
— A menos que os Outros intervenham — observou Leino. — Será isso apenas sonhar no vazio? Conseguiram vocês alguma indicação na Emissário?
Os traços de Frieda vincaram-se.
— Não. Que outros sinais além da Voz nos deixaram entrever os Outros... ou os Betanos, ou qualquer outra dessas raças que os Betanos conhecem?
Frieda despejou a garrafa, pousou-a com um tinido e bateu com o punho no joelho.
— Martti, não gosto de pensar nos Outros. Pensamos neles durante oito anos. Eles trazem os Betanos obcecados, mais obcecados do que Jesus Cristo trouxe a Europa... Pude senti-lo quando comecei a aprender a língua e a ajudar nos nossos estudos. Pude sentir. Disse-te que vinha de um país repleto de sonhos e de pesadelos que não se esquecem. — E concluiu, com violência: — Esquece os sanguinários Outros! Somos nós que fazemos o nosso próprio destino!
— Bem, talvez — e a resposta de Leino era evasiva. — Também eu tinha as minha dúvidas. Sou cristão, embora não milito praticante, reconheço-o. Isso fez que eu me interrogasse quanto ao efeito que eles terão sobre nós. Sem dúvida que não passam de uma espécie bastante evoluída em relação à nossa, no campo da ciência e da tecnologia. São bons cérebros, suponho eu, mas contarão muito aqui os cérebros? Não me surpreenderia nada se os nossos holotetas fossem tão inteligentes como eles. Ou mais, até. Se eles são anjos como pretendia o pastor da minha terra natal, ou se ficaram simplesmente isentos do pecado original, então porque deixaram eles que as Perturbações caíssem sobre nós? E as heresias, os cultos selvagens que se centram neles. Podiam realmente ser réprobos, ou ser puros demônios? Não sei. Não sei Surpreendida, Frieda propôs:
— Deixemos os assuntos religiosos.
Quedou-se em silêncio um minuto ou dois. A seguir perguntou:
— Posso ligar música, Martti? Beethoven. Gosto da Primeira Sinfonia, quando ele era ainda perfeitamente feliz, a aprender de Haydn e Mozart. Quero ouvir felicidade.
— Claro! — respondeu Leino, e acariciou-a.
Frieda voltou para junto dele, envolvidos os dois numa girândola de harmonias. Pôs de lado o charuto e aninhou-se-lhe nos braços.
— É maravilhoso um fundo musical assim, para uma hora de amor na cama — disse ela.
— Mas, espera ... — objetou Leino. — Preciso de descansar. Frieda lançou-se sobre ele.
— Tenho a certeza de que vais encontrar recursos como pessoa nenhuma descobriu em ti até agora.
Pausa; cálculo; arremetida:
— Caitlín Mulryan pode fazer o mesmo, ou engano-me muito. Vendo-lhe um gesto de contrariedade:
— Não te apoquentes, que eu estava a brincar. És um homem maravilhoso. Vamos aproveitar deste pouco tempo que nos resta antes de entrarmos na passagem.
De novo Leino fechou os olhos.
[1] Italiano: tolice. (N. do T.)
[2] Linguagem deformada, como, por exemplo, o inglês que era falado entre chineses e europeus. (N. do T.)
[3] Na Irlanda: rapariga. (N. do T.)
[4] Professor da Ucrânia, fundador de um movimento religioso; o movimento chasidim. (N.doT.)
[5] Irlandês: ai de nós, ai de nós! (N. do T.)
[6] Nos computadores, hardware é o material, software os programas. (N. do T.)
[7] Alemão: imagem do mundo. (N. do T.)
[8] Alemão: ano de viagem. (N. do T.)
[9] Alemão: desaparecidos sem deixarem rasto. (N. do T.)
O AVATAR II
A coragem e a determinação de Brodersen tinham salvo a tripulação da Emissário. Mas o grande problema continuava por resolver. Com a sua nave, Brodersen vai forçar a passagem e lançar-se, através do espaço e do tempo na demanda louca dos Outros, já que são eles a única esperança que a todos resta...
Poul Anderson
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