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O CANTO DAS SEREIAS / Val McDermid
O CANTO DAS SEREIAS / Val McDermid

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

A gente sempre se lembra da primeira vez. Não é o que dizem sobre o sexo? Talvez isso seja mais verdadeiro quando se trata de um assassinato. Nunca me esquecerei de nenhum momento delicioso desse drama estranho e invulgar. Muito embora hoje, com o benefício da experiência e da visão retrospectiva, considero aquela uma performance amadora, ainda consigo me empolgar, por mais que não alcance a satisfação.
Apesar de não ter percebido antes que a decisão de agir me fosse imposta, eu vinha preparando o terreno para o assassinato com muita antecedência. Imagine um dia de agosto na Toscana. Um ônibus turístico com ar-condicionado nos levando a toda a velocidade de cidade em cidade, lotado de abutres da cultura do norte, todos desesperados para preencher cada instante de nosso precioso pacote de duas semanas com algo memorável que compensasse Castle Howard e Chatsworth.
Eu apreciara Florença, as igrejas e galerias de arte cheias de imagens estranhamente contraditórias de martírio e madonas. Havia escalado as alturas estonteantes do domo de Brunelleschi que coroava a imensa catedral. Minha empolgação era a escada sinuosa que leva da galeria até a minúscula cúpula acima, os degraus de pedra gastos, espremidos como sanduíches entre o teto do domo e o próprio telhado. Era como estar dentro do meu computador, uma aventura real de RPG, percorrendo a trilha do labirinto lentamente e com dificuldade até chegar à luz do dia. Só faltavam monstros para exterminar pelo caminho. E depois, emergir no dia claro e com a surpresa de que lá em cima, no final dessa subida comprimida, havia um vendedor de cartões-postais e suvenires, um homenzinho moreno e sorridente, curvado por puxar suas mercadorias para cima há tantos anos. Se fosse mesmo um jogo, eu poderia ter comprado alguma magia com ele. Do modo como eram as coisas, comprei mais cartões-postais do que tinha para quem enviar.
Depois de Florença, San Gimignano. A cidade surgia da planície verde da Toscana, suas torres em ruínas fincando-se no céu como dedos que se agarram ao solo, da beirada de uma cova. O guia tagarelava sobre “uma Manhattan medieval”, outra comparação grosseira para adicionar à lista que nos tinha sido impingida desde Calais.
À medida que nos aproximávamos da cidade, minha empolgação crescia. Em toda a Florença, eu vira os anúncios da única atração turística que realmente desejava ver. Penduradas esplendidamente em postes de iluminação, deslumbrantes em vermelho vivo e dourado, as faixas insistiam que eu visitasse o Museo Criminologico di San Gimignano. Consultando meu livro de frases de viagem, confirmei o que achava que as letras miúdas diziam. Um museu de criminologia e tortura. Não é preciso dizer que ele não constava em nosso itinerário cultural.
Não tive trabalho de procurar meu destino; um folheto sobre o museu, completo com o mapa de ruas, foi-me entregue passados menos de dez metros do portal de pedra localizado nas muralhas medievais. Saboreando o prazer da expectativa, perambulei por algum tempo, maravilhando-me com os tributos à desarmonia civil representados pelas torres. Cada família poderosa tivera sua própria torre fortificada que defendia contra os vizinhos com todos os meios, de chumbo derretido a canhões. No auge da prosperidade da cidade, havia, segundo dizem, cerca de duzentas torres. Comparada à San Gimignano medieval, a noite de sábado nas docas depois do expediente parece o jardim de infância; os marinheiros, meros amadores em desordem.
Quando não pude mais resistir à atração do museu, cruzei a praça central, lançando uma moeda de duzentas liras bicolor no poço para dar sorte, e caminhei alguns metros por uma rua lateral, onde as agora familiares tapeçarias enfeitavam as antigas muralhas de pedra. Com a excitação zunindo em mim como um mosquito sedento por sangue, adentrei o frio foyer e calmamente comprei meu ingresso e um exemplar do guia do museu ilustrado em papel brilhante.
Como posso começar a descrever a experiência? A realidade física era muito mais avassaladora do que eu me preparara com as fotografias, vídeos ou livros. A primeira peça em exposição era um potro, e o cartão que o acompanhava descrevia sua função em adoráveis detalhes em italiano e inglês. Os ombros se soltavam de seus encaixes; quadris e cintura se separavam, com o som de cartilagem e ligamentos sendo rasgados; a coluna se esticava, perdendo o alinhamento até que as vértebras se desmontavam como contas de um cordão partido. “As vítimas”, o cartão dizia laconicamente, “muitas vezes mediam entre quinze e vinte e três centímetros a mais depois do potro.” Que mentes extraordinárias tinham os inquisidores. Não satisfeitos em interrogar seus hereges enquanto estavam vivos e sofriam, eles precisavam buscar mais respostas de seus corpos violados.
A exposição era um testemunho da engenhosidade do homem. Como alguém poderia não admirar as mentes que examinaram o corpo humano com tanta intimidade a ponto de arquitetar um sofrimento tão sofisticado e precisamente calibrado? Com sua tecnologia de relativa rusticidade, aqueles cérebros medievais criaram sistemas de tortura tão apurados que ainda hoje estão em uso. Ao que parece, o único aperfeiçoamento que nossa sociedade pós-industrial conseguiu conceber foi o frisson extra fornecido pela aplicação da eletricidade.
Eu andava pelas salas saboreando cada um dos brinquedos, dos espetos grosseiros da Dama de Ferro ao mecanismo mais sutil e elegante das peras, aqueles corpos ovoides delgados e segmentados que eram inseridos na vagina ou no ânus. Depois, quando o roquete era girado, os segmentos se separavam e expandiam até que a pera se metamorfoseava numa estranha flor, com as pétalas orladas de dentes metálicos afiados como navalha. Em seguida, era removida. Às vezes, as vítimas sobreviviam, o que provavelmente era um destino mais cruel.
Percebi o mal-estar e o horror no rosto e na voz de outros visitantes como eu, mas reconheci a hipocrisia contida nisso. Secretamente, eles estavam adorando cada minuto daquela peregrinação. No entanto as a respeitabilidade proibia qualquer demonstração pública de entusiasmo. Apenas as crianças eram sinceras em sua fervorosa fascinação. Eu teria apostado, de bom grado, que estava longe de ser a única pessoa naquelas salas frias em tom pastel que sentia o surto do desejo sexual entre as pernas enquanto éramos arrebatados pelas peças expostas. Muitas vezes me perguntei quantos encontros sexuais de férias foram apimentados pelas lembranças secretas do museu de tortura.
Lá fora, num pátio banhado de sol, um esqueleto agachado numa gaiola, com os ossos limpos como se tivessem sido desnudados por abutres. No tempo em que as torres estavam de pé, essas gaiolas eram penduradas nas muralhas externas de San Gimignano; uma mensagem tanto para os habitantes quanto para os forasteiros de que esta era uma cidade onde a lei cobrava uma dura pena se não fosse respeitada. Senti uma estranha afinidade com esses habitantes dos burgos. Eu também respeitava a necessidade de punição após a perfídia.
Próximo ao esqueleto, uma enorme roda com raios de metal estava encostada à muralha. Ela teria parecido perfeitamente adequada a um museu agrícola. Mas o cartão fixado na parede atrás dela revelava uma função mais imaginativa. Os criminosos eram atados à roda. Primeiro, eram esfolados com um azorrague que arrancava a carne dos ossos, expondo suas entranhas para a multidão ansiosa. Depois, seus ossos eram quebrados com barras de ferro na roda. Flagrei-me pensando na carta de tarô, a roda da fortuna.
Quando percebi que teria de me tornar homicida, a lembrança do museu de tortura surgiu diante de mim como uma musa. Sempre trabalhei bem com as mãos.
Depois da primeira vez, parte de mim esperava que não houvesse a compulsão de repetir o ato. Mas eu sabia que, se tivesse de fazer de novo, da próxima vez seria melhor. Aprendemos com nossos erros as imperfeições de nossas ações. E, felizmente, a prática leva à perfeição.

 

 

 


 

 


1

Cavalheiros, tive a honra de ser escolhido por seu comitê para a árdua tarefa de proferir a Conferência Williams sobre Assassinato considerado como uma das belas-artes; uma tarefa que podia ser fácil o bastante há três ou quatro séculos, quando a arte ainda era pouco compreendida, e poucos modelos notáveis haviam sido expostos; mas hoje, quando obras-primas de excelência foram executadas por profissionais, deve ser evidente, que no estilo da crítica que lhes foi aplicada, o público procurará algo com um aprimoramento correspondente.

Tony Hill colocou as mãos atrás da cabeça e fitou o teto. Havia uma fina teia de rachaduras em torno da elaborada roseta de gesso que circundava a luminária, mas ele não tomou consciência dela. A luz fraca do amanhecer, tingida com o laranja das lâmpadas de vapor de sódio da rua, foi filtrada por uma abertura triangular na parte de cima da cortina, mas ele não tinha nenhum interesse nela tampouco. Com o subconsciente, ele registrou o boiler do aquecimento central entrando em ação, aprontando-se para suavizar o frio do inverno úmido que penetrava pela porta e pelos vidros da janela. Seu nariz estava frio, e ele tinha uma sensação de areia nos olhos. Não conseguia se lembrar da última vez que tivera uma noite inteira de sono. Sua preocupação com o que tinha de enfrentar naquele dia era parte da razão dos sonhos interrompidos da noite, mas havia mais do que isso. Muito mais.

Como se o dia de hoje não fosse preocupação mais do que suficiente. Ele sabia o que se esperava dele, mas cumprir era outra história. Outras pessoas lidavam com essas coisas sem nada além de um breve tremor na barriga, mas não Tony. Era preciso usar toda a sua habilidade para manter as aparências e chegar ao final do dia. Em circunstâncias como aquela, ele compreendia o quanto exigia dos atores profissionais compor os desempenhos atormentados e intensos que cativavam o público. À noite, ele não serviria para nada, salvo outra tentativa vã de obter oito horas de sono.

Tony mudou de posição na cama, liberando uma das mãos e a passando pelos curtos cabelos escuros. Cofiou os fiapos de barba no queixo e suspirou. Ele sabia o que queria fazer hoje, mas da mesma forma tinha perfeita consciência de que, se o fizesse, seria suicídio profissional. Não importava que soubesse que havia um serial killer à solta em Bradfield. Não podia dar-se ao luxo de ser o primeiro a afirmar isso. Sentiu um aperto no vazio do estômago e fez uma careta de dor. Com um suspiro, empurrou o edredom e saiu da cama, sacudindo as pernas para esticar as dobras de seu pijama folgado.

Tony se arrastou até o banheiro e acendeu a luz. Enquanto esvaziava a bexiga, estendeu a mão livre e ligou o rádio. O locutor de tráfego da Bradfield Sound estava anunciando os prováveis engarrafamentos da manhã com uma alegria que nenhum motorista poderia igualar sem grandes doses de Prozac. Felizmente, ele não dirigiria naquela manhã. Tony se virou para a pia.

Ele contemplou os olhos azuis afundados em suas órbitas e ainda turvos de sono. Quem quer que tenha dito que os olhos são os espelhos da alma gostava de uma boa conversa fiada, pensou com ironia. Provavelmente era melhor assim, ou ele não teria um espelho intacto na casa. Abriu o botão de cima do pijama e abriu o armário do banheiro, esticando a mão para pegar a espuma de barbear. O tremor que identificou nela o interrompeu no meio da ação. Com raiva, fechou a porta com um estrondo e procurou o barbeador elétrico. Odiava o resultado que ele produzia, nunca o deixando com a sensação de frescor e limpeza que vinha de um barbear molhado. Mas era melhor se sentir vagamente desleixado que dar as caras como uma ilustração ambulante da morte, com mil cortes no rosto.

A outra desvantagem do barbeador elétrico era que ele não precisava se concentrar tanto no que estava fazendo, deixando a mente livre para abarcar o dia à frente. Às vezes, era tentador imaginar que todo mundo era como ele, levantando-se pela manhã e selecionando um personagem para o dia. Mas ele aprendera, após anos examinando a vida de outras pessoas, que não era assim. Para a maior parte das pessoas, a seleção disponível era limitadíssima. Sem dúvida, algumas ficariam agradecidas pelas escolhas que a habilidade, o conhecimento e a necessidade proporcionaram a Tony. Ele não era uma delas.

Quando desligou o barbeador, ouviu os acordes frenéticos que precediam todo resumo de notícias na Bradfield Sound. Com uma sensação de mau agouro, virou o rosto para o rádio, tenso e alerta como um corredor de meia distância à espera do tiro de partida. No fim do boletim de cinco minutos, suspirou aliviado e abriu a cortina do chuveiro. Ele esperara uma revelação que lhe teria sido impossível de ignorar. Mas, até agora, a contagem de corpos ainda estava em três.

No outro lado da cidade, John Brandon, o chefe de polícia assistente da Polícia Metropolitana de Bradfield (divisão de crimes), curvou-se sobre a pia dirigindo um olhar triste para o espelho do banheiro. Nem mesmo o sabão de barbear que cobria seu rosto como uma barba de Papai Noel poderia lhe conferir um ar de benevolência. Se não tivesse escolhido a polícia, ele teria sido um candidato ideal para uma carreira de agente funerário. Media um metro e oitenta e oito centímetros de altura, era magro a ponto de ser esquelético, com olhos fundos escuros e cabelos prematuramente grisalhos. Mesmo quando sorria, seu rosto comprido conseguia manter um ar melancólico. Hoje, pensou, ele parecia um sabujo com resfriado. Pelo menos havia um bom motivo para seu infortúnio: estava prestes a seguir um procedimento que seria tão bem-recebido pelo chefe de polícia quanto um padre numa fraternidade protestante.

Brandon suspirou profundamente, espirrando espuma no espelho. Derek Armthwaite, seu chefe, tinha os olhos azuis intensos de um visionário, mas não havia nada revolucionário no que eles viam. Era um homem que considerava o Antigo Testamento um manual mais apropriado para policiais do que a legislação aprovada pelo parlamento. Acreditava que a maior parte dos métodos policiais modernos não apenas era ineficaz, mas herética. Na opinião que Derek Armthwaite expressava com frequência, trazer de volta a vara de marmelo e o chicote de nove pontas seria muito mais eficaz na redução dos índices criminais do que qualquer número de assistentes sociais, sociólogos ou psicólogos. Se tivesse alguma ideia do que Brandon tinha planejado para aquela manhã, ele o teria transferido para o departamento de trânsito, o equivalente dos dias de hoje a Jonas ser engolido pela baleia.

Antes que sua depressão pudesse superar sua determinação, uma batida na porta do banheiro assustou Brandon.

— Pai — chamou sua filha mais velha. — Você ainda vai demorar muito?

Antes de responder, Brandon ainda pegou a navalha e raspou-a numa das faces.

— Cinco minutos, Karen — gritou ele. — Desculpe, querida.

Numa casa com três adolescentes e apenas um banheiro, raramente havia muita oportunidade para refletir.

Carol Jordan deixou seu café pela metade ao lado da pia e cambaleou até o chuveiro, quase tropeçando no gato preto que se enroscava em seus tornozelos.

— Um minuto, Nelson — murmurou ela, enquanto fechava a porta para o miado interrogativo. — E não acorde o Michael.

Carol tinha imaginado que a promoção à detetive-inspetora e a saída concomitante do plantão da rota lhe concederiam as oito horas regulares de sono por noite que vinham sendo seu desejo constante desde a primeira semana de trabalho. Que falta de sorte que a promoção tinha coincidido com o que sua equipe estava chamando sigilosamente de Assassinatos de Gays. Por mais que o superintendente Tom Cross protestasse tanto na imprensa quanto na sala do esquadrão que não havia conexões da perícia forense entre os assassinatos, e nada que sugerisse a presença de um serial killer em Bradfield, as equipes de homicídio pensavam de modo diferente.

Enquanto a água quente rolava em cascata sobre Carol, tornando cinzentos seus cabelos louros, ela pensou, não pela primeira vez, que a atitude de Cross, como a do chefe de polícia, servia a seus próprios preconceitos ao invés da comunidade. Quanto mais ele negava que houvesse um serial killer atacando homens, cuja fachada respeitável escondia uma vida homossexual secreta, mais gays morreriam. Se não era mais possível tirá-los das ruas prendendo-os, deixe que um assassino os remova. Não importa muito se ele fizesse isso através do homicídio ou do medo.

Era uma política que tornava absurdas todas as horas que ela e seus colegas estavam empregando nas investigações. Sem mencionar as centenas de milhares de libras do dinheiro dos contribuintes que esses inquéritos estavam custando, especialmente uma vez que Cross insistia que cada assassinato fosse tratado como algo inteiramente distinto. Cada vez que uma das três equipes surgia com algum detalhe que parecia ligar os casos, Tom Cross o rejeitava com cinco pontos em que havia divergência. Não importava que cada vez os elos fossem diferentes e as desculpas sempre o mesmo velho quinteto. O chefe dos detetives-inspetores tinha se retirado completamente do conflito, entrando de licença médica com seu oportuno problema nas costas. Quem mandava, então, era Cross.

Carol esfregou o xampu nas mãos até formar uma espuma volumosa e sentiu-se acordar gradualmente debaixo da ducha quente. Bem, sua parte da investigação não ficaria encalhada nos recifes de preconceito de Popeye Cross. Mesmo que alguns de seus policiais menos graduados estivessem inclinados a se apegar à falta de visão do chefe como uma desculpa para as suas próprias investigações pouco inspiradas, Carol não aceitaria nada menos que cem por cento de compromisso, e na direção correta. Ela havia trabalhado como um mouro por quase nove anos, primeiro para conseguir um bom diploma e depois para justificar seu lugar na fila rápida das promoções. Não queria que sua carreira fosse por água abaixo só porque cometeu o engano de escolher uma força regida por neandertais.

Determinada, Carol saiu do chuveiro, com os ombros retos e um brilho rebelde nos olhos verdes.

— Venha, Nelson — disse ela, mexendo os ombros para entrar no roupão e puxando para cima com a mão o feixe muscular de pelo negro do gato. — Vamos atacar a carne vermelha, garoto.

Tony examinava a imagem projetada na tela sobre sua cabeça pelos últimos cinco segundos. Como a maior parte da plateia expressara claramente sua falta de compromisso com a palestra ao não tomar notas, ele queria pelo menos oferecer ao subconsciente dos presentes a oportunidade máxima de absorver seu fluxograma do processo de criação de perfis criminais.

Ele se virou de novo para a plateia.

— Não preciso lhes dizer o que já sabem. Os analistas criminais não capturam criminosos. São os agentes da lei que fazem isso.

Ele sorriu para sua audiência de policiais veteranos e funcionários do Ministério do Interior, convidando-os a compartilhar sua autodepreciação. Alguns o acompanharam, embora a maioria tenha permanecido com o rosto sem expressão e a cabeça caída para um lado.

Por mais que enfeitasse, Tony sabia que não conseguiria convencer a maioria dos policiais veteranos de que não era um acadêmico sem contato com a realidade tentando lhes dizer como fazer seu trabalho. Suprimindo um suspiro, ele olhou para suas anotações e continuou, tentando fazer o máximo de contato visual que podia, copiando a linguagem corporal descontraída dos comediantes de stand-up bem-sucedidos que ele estudara visitando as boates do norte.

— Porém, às vezes, nós analistas criminais vemos as coisas de modo diferente — disse. — E essa nova perspectiva pode fazer toda a diferença. Mortos contam histórias, e as histórias que eles contam aos analistas não são as mesmas que contam aos policiais.

“Por exemplo: um cadáver é encontrado nos arbustos a três metros da estrada. Um policial observa esse fato. Ele verifica todo o terreno em volta em busca de pistas. Há pegadas? Algo foi descartado pelo assassino? Alguma fibra ficou presa nos arbustos? Mas, para mim, esse fato isolado é apenas o ponto de partida para especulações que, tomadas em conjunto com todas as outras informações à minha disposição, podem me levar a conclusões úteis sobre o assassino. Eu me pergunto: o corpo foi colocado ali deliberadamente? Ou o assassino estava cansado demais para continuar carregando? Ele tentou escondê-lo ou descartá-lo? Ele queria que fosse encontrado? Por quanto tempo ele esperava, ou queria, que ficasse escondido? Qual o significado desse lugar para ele?”

Tony ergueu os ombros e estendeu as mãos num gesto aberto de questionamento. A plateia continuou olhando, sem se mexer. Meu Deus, quantos truques ele teria que tirar da cartola antes de obter uma resposta? A sensação de suor na nuca estava se tornando uma gota, deslizando para baixo entre sua pele e a gola da camisa. Era uma sensação desconfortável que lhe lembrava quem ele realmente era por trás da máscara que assumira para sua apresentação pública.

Tony limpou a garganta, concentrou-se no que estava projetando, em vez de no que sentia, e prosseguiu:

— A geração de perfis criminais é só mais uma ferramenta que pode ajudar os policiais a restringir o foco da investigação. Nosso trabalho é compreender o bizarro. Não podemos lhes dar nome, endereço e telefone de um criminoso. Contudo, podemos direcioná-los quanto ao tipo de pessoa que cometeu um crime com características específicas. Às vezes, podemos indicar a área onde ele pode morar, o tipo de trabalho que esperamos que tenha.

“Sei que alguns de vocês questionaram a necessidade de montar uma Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais. Vocês não estão sozinhos. Os liberais também estão fazendo um estardalhaço quanto a isso.”

Finalmente, pensou Tony com profundo alívio. Sorrisos e gestos afirmativos na plateia. Ele precisou de quarenta minutos para chegar lá, mas finalmente quebrou a resistência deles. Não significava que poderia relaxar, mas aliviava seu desconforto.

— Afinal — continuou —, não somos como os americanos. Não temos serial killers à espreita em cada esquina. Ainda temos uma sociedade em que mais de noventa por cento dos assassinatos são cometidos por familiares ou pessoas que eram conhecidas das vítimas.

Ele os estava conduzindo agora. Vários pares de pernas e braços se descruzaram, organizados como um exercício militar.

— Mas a geração de perfis não se restringe à captura do próximo Hannibal, o Canibal. A técnica pode ser usada em uma extensa gama de crimes. Já tivemos notável sucesso nas medidas antissequestro em aeroportos, capturando “mulas”, escritores de cartas anônimas, chantagistas, estupradores compulsivos e incendiários. E tão importante quanto isso, a criação de perfis criminais foi usada com muita eficácia para aconselhar policiais quanto a técnicas de interrogatório e formas de lidar com suspeitos em importantes inquéritos criminais. Não que falte aos seus policiais as técnicas de interrogatório; só que nosso histórico clínico indica que desenvolvemos abordagens diferentes, que muitas vezes podem ser mais produtivas que as técnicas comuns.

Tony respirou fundo e se inclinou para a frente, segurando a borda do atril. Seu parágrafo final tinha soado bem em frente ao espelho do banheiro. Ele rezou para que acertasse em cheio o alvo em vez de pisar no calo das pessoas.

— Minha equipe e eu estamos agora no primeiro ano de um estudo de plausibilidade de dois anos para montar a Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais. Já entreguei um relatório provisório para o Ministério do Interior, que me confirmou ontem que o órgão está comprometido com a formação da força-tarefa assim que o relatório final for entregue. Senhoras e senhores, essa revolução na luta contra o crime vai acontecer. Vocês têm um ano para se certificarem de que ela ocorrerá de uma forma com a qual se sintam confortáveis. Minha equipe e eu temos mentes abertas. Estamos todos do mesmo lado. Queremos saber o que vocês pensam, porque queremos que dê certo. Queremos criminosos violentos e perigosos atrás das grades, do mesmo modo que vocês querem. Creio que nossa ajuda lhes seria útil. Sei que podemos contar com a ajuda de vocês.

Tony deu um passo para trás e saboreou os aplausos, não porque fossem especialmente entusiasmados, mas porque sinalizavam o fim dos quarenta e cinco minutos que ele vinha temendo há semanas. Falar em público sempre esteve absolutamente fora dos limites de sua zona de conforto, de tal maneira que ele recusou a carreira acadêmica depois de obter seu doutorado porque não conseguia encarar o espectro constante do auditório. A habilidade de se apresentar em particular não era um motivo. De algum modo, passar os dias vasculhando as partes remotas e distorcidas da mente de criminosos insanos era bem menos ameaçador.

Quando as breves palmas cessaram, o relações-públicas do Ministério do Interior levantou num salto de seu assento na primeira fila. Enquanto Tony provocava uma desconfiança cautelosa na parte do seu público formada por policiais, George Rasmussen gerava mais irritação generalizada que picada de pulga. Seu sorriso ansioso revelava dentes demais e uma semelhança perturbadora com o comediante George Formby, que estava em desacordo com a antiguidade de seu cargo no serviço público e com o corte elegante de seu terno cinza risca de giz. Os zurros retumbantes de seu sotaque de escola pública eram tão exagerados que Tony ficou convencido de que Rasmussen tinha realmente sido educado em algum colégio inclusivo. Tony ouvia sem muita atenção enquanto ele mexia nas anotações e recolocava as transparências em suas respectivas pastas. Agradecidos pelas fascinantes explicações blá-blá-blá... Café e esses biscoitos absolutamente deliciosos, blá-blá-blá... Oportunidade para perguntas informais, blá-blá-blá... Lembrá-los de que todas as apresentações de propostas para o dr. Hill devem ser feitas até...

O som dos pés se arrastando abafou o resto da fala cheia de lábia de Rasmussen. Quando a escolha era entre o discurso de agradecimento de um funcionário público e uma xícara de café, não havia competição. Nem mesmo para os funcionários públicos. Tony respirou fundo. Hora de abandonar o papel de palestrante. Agora ele precisava ser o colega charmoso e bem-informado, ansioso para ouvir, assimilar e fazer seus novos contatos sentirem que ele realmente estava do lado deles.

John Brandon se levantou e ficou na lateral da fileira de assentos para permitir que as outras pessoas se retirassem. Observar a apresentação de Tony Hill não tinha sido tão elucidativo quanto ele esperava. Informara muito sobre a geração de perfis psicológicos, mas quase nada sobre o homem, exceto que ele parecia confiante sem ser presunçoso. Os últimos quarenta e cinco minutos não lhe trouxeram nenhuma certeza de que o que estava planejando era a coisa certa a fazer. Mas ele não conseguia ver outra alternativa. Permanecendo colado à parede, Brandon avançou contra o fluxo de pessoas até que estivesse no mesmo nível de Rasmussen. Vendo que sua plateia expressava sua insatisfação indo embora, o funcionário público tinha encerrado seu discurso abruptamente e desfeito o sorriso. Enquanto Rasmussen coletava os papéis que tinha largado no assento, Brandon passou por ele de mansinho e foi até o lado oposto, onde estava Tony, que fechava sua surrada valise de couro.

Brandon limpou a garganta e disse:

— Dr. Hill? — Tony olhou para cima, com um educado olhar interrogativo no rosto. Brandon engoliu seu receio e continuou: — Não nos conhecemos, mas você vem trabalhando na minha área. Sou John Brandon...

— O chefe de polícia assistente de investigações criminais? — interrompeu Tony, com um sorriso de orelha a orelha. Ele ouvira o bastante sobre John Brandon para saber que ele era um homem que queria do seu lado. — É um prazer conhecê-lo, sr. Brandon — disse, injetando simpatia em sua voz.

— John, pode me chamar de John — respondeu Brandon, de modo mais abrupto do que pretendia. Ele percebeu com uma onda de surpresa que estava nervoso. Havia algo na serena segurança de Tony Hill que o desconcertava. — Podemos ter uma palavrinha?

Antes que Tony pudesse responder, Rasmussen estava entre eles.

— Com licença — interveio, sem nenhum sinal de humildade, o sorriso de volta em seu lugar. — Tony, se puder ir agora para a sala de café, sei que nossos amigos na polícia estão ansiosos para conversar com você de um modo mais próximo. Sr. Brandon, se quiser nos acompanhar...

Brandon podia sentir seus pelos se eriçando. Estava desconfortável o bastante com a situação sem ter que lutar para manter a confidencialidade de sua conversa numa sala cheia de policiais bebedores de café e figurões intrometidos do Ministério do Interior.

— Se eu pudesse só ter uma palavrinha em particular com o dr. Hill?

Tony olhou de relance para Rasmussen, notando o leve aprofundamento das linhas paralelas entre suas sobrancelhas. Normalmente, teria sido divertido provocar Rasmussen, continuando sua conversa com Brandon. Ele sempre gostou de cutucar gente pomposa, reduzindo a arrogância à impotência. Mas havia coisas demais que dependiam do sucesso de seu encontro com outros policiais hoje, de modo que decidiu se privar do prazer. Em vez disso, desviou o olhar de Rasmussen sem disfarçar e disse:

— John, você vai voltar de carro para Bradfield depois do almoço?

Brandon fez que sim.

— Talvez pudesse me dar uma carona, então? Vim de trem, mas se não se importar, eu preferia não enfrentar a British Rail no caminho de volta. Sempre há a opção de me deixar nos limites da cidade, se não quiser ser visto confraternizando com esse pessoal que segue o que está na moda.

Brandon sorriu, o rosto comprido se vincando em rugas símias.

— Acho que não será necessário. Ficarei feliz em deixá-lo na sede da força.

Ele ficou atrás e observou Rasmussen guiar Tony para as portas, preocupando-se em todo o caminho. Brandon não conseguia se livrar da sensação ligeiramente desconcertante que o psicólogo lhe tinha dado. Talvez o hábito adquirido de estar no controle de tudo em seu mundo tivesse tornado um simples pedido em uma experiência estranha que automaticamente lhe deixava desconfortável. Não havia outra explicação óbvia. Com um gesto de indiferença, seguiu o grupo até a sala do café.

Tony fechou o cinto de segurança com um clique e saboreou o conforto do Range Rover sem identificação. Ele não disse nada enquanto Brandon manobrava para fora do estacionamento do comando de Manchester e se encaminhava para a rede de rodovias, não querendo interferir na concentração necessária para evitar se perder numa cidade não familiar. Enquanto passavam lentamente pela via secundária que dava acesso à rodovia principal e se juntavam ao tráfego que fluía rapidamente, Tony quebrou o silêncio:

— Se isso ajuda, acho que já sei sobre o que você quer falar comigo.

As mãos de Brandon ficaram tensas no volante.

— Achei que você fosse um psicólogo, não um vidente — brincou. Ele se surpreendeu. O humor não fazia parte de seu modo de ser natural; normalmente recorria a ele apenas quando estava sob pressão. Brandon não conseguia se acostumar a como se sentia nervoso ao pedir esse favor.

— Alguns de seus colegas me dariam mais importância se eu fosse — disse Tony ironicamente. — Então, você quer que eu tente adivinhar e corra o risco de bancar o idiota?

Brandon deu uma rápida olhada em Tony. O psicólogo parecia relaxado, com as palmas das mãos para baixo em suas coxas e os pés cruzados nos tornozelos. Ele dava a impressão de que estaria mais à vontade de jeans e suéter do que no terno que até Brandon identificava como muito ultrapassado em relação à moda atual. Podia se identificar com isso, lembrando-se dos comentários mordazes que as filhas rotineiramente faziam sobre as suas roupas de passeio.

Brandon disse de modo abrupto:

— Acho que temos um serial killer agindo em Bradfield.

Tony deixou escapar um pequeno suspiro de satisfação.

— Estava começando a me perguntar se você tinha notado — respondeu ele, com ironia.

— Está longe de ser uma opinião unânime — disse Brandon, sentindo a necessidade de alertar Tony antes mesmo de pedir sua ajuda.

— Deduzi da cobertura da imprensa. Se lhe serve de consolo, pelo que li, tenho certeza absoluta que sua análise está correta.

— Não foi exatamente a impressão que deu nas suas declarações no Sentinel Times depois do último assassinato.

— Meu trabalho é cooperar com a polícia, não prejudicá-la. Suponho que você tenha suas próprias razões operacionais para não tornar públicas as pistas do serial killer. Enfatizei com eles que o que estava dizendo não era mais que uma teoria baseada em informações de conhecimento público — acrescentou Tony, seu tom contradizendo a súbita tensão de seus dedos que faziam pregas no tecido de suas calças formando um plissado solto.

Brandon sorriu, ciente apenas da voz.

— Touché. Então, você está interessado em nos dar uma mãozinha?

Tony sentiu uma onda quente de satisfação. Era isso que vinha aguardando ansiosamente havia semanas.

— Tem uma parada na estrada daqui a alguns quilômetros. Aceita uma xícara de chá?

A detetive-inspetora Carol Jordan olhava fixamente o caos de carne despedaçada que antes havia sido um homem, forçando os olhos com determinação para mantê-los fora de foco. Ela queria não ter se interessado naquele sanduíche velho de queijo da cantina. Por alguma razão, ninguém reclamava quando policiais jovens vomitavam diante de vítimas de morte violenta. Angariavam até certa simpatia com isso. Mas, apesar do fato de que, supostamente, faltava coragem às mulheres, quando as policiais femininas vomitavam nas áreas adjacentes às cenas do crime, elas perdiam instantaneamente qualquer respeito que tivessem conquistado e se tornavam objetos de desprezo, os alvos das piadas machistas. Não há nenhuma lógica nisso, pensou Carol amargamente enquanto cerrava as mandíbulas com mais força. Ela enfiou as mãos no fundo dos bolsos de sua capa de chuva e cerrou os punhos, cravando as unhas nas palmas.

Carol sentiu a mão de alguém em seu braço, um pouco acima do cotovelo. Grata pela oportunidade de desviar o olhar, ela se virou e encontrou seu sargento se avultando sobre ela. Don Merrick era uns bons vinte centímetros mais alto que sua chefe, e tinha desenvolvido uma estranha corcunda quando falava com ela. A princípio, ela achara isso divertido o bastante para contar às amigas durante um jantar ocasional ou quando conseguiam programar uma saída à noite para tomar uns drinques. Agora, ela nem notava.

— A área já está isolada, chefe — disse ele, com seu sotaque do nordeste da Inglaterra. — O legista está a caminho. O que acha? Estamos diante do número quatro?

— Não deixe o supervisor ouvir o que diz, Don — recomendou ela, não inteiramente de brincadeira. — No entanto, eu diria que sim. — Carol olhou em volta. Eles estavam na região de Temple Fields, no pátio de um pub que servia principalmente ao público gay, com um bar em cima frequentado por lésbicas, três noites por semana. Ao contrário do que sugeriam os gracejos dos machões que ela ultrapassou nas disputas de promoção, esse não era um bar no qual Carol teria motivo para entrar algum dia.

— E o portão?

— Pé de cabra — disse Merrick, laconicamente. — Não está ligado ao sistema de alarme.

Carol inspecionou os altos depósitos de lixo e as caixas empilhadas de garrafas vazias.

— Nenhuma razão para estar ligado — falou ela. — O que o proprietário tem a dizer?

— Whalley está falando com ele nesse momento, chefe. Parece que ele fechou ontem à noite por volta de onze e meia. Eles têm lixeiras com rodas atrás das grades para as garrafas vazias e, na hora de fechar, eles as levam para o pátio lá atrás. — Merrick acenou para a porta de trás do pub, onde estavam três lixeiras plásticas azuis, cada uma do tamanho de um carrinho de supermercado. — Eles só separam à tarde.

— E foi assim que encontraram isso? — perguntou Carol, fazendo um gesto com o polegar sobre o ombro.

— Simplesmente estava deitado lá. Ao relento, pode-se dizer.

Carol assentiu com a cabeça. O arrepio que a percorreu nada tinha a ver com o vento nordeste gelado. Ela deu um passo em direção ao portão.

— Tudo bem. Vamos deixar isso com a perícia por enquanto. Estamos só atrapalhando aqui. — Merrick a seguiu pelo beco estreito atrás do pub. Era um pouco mais largo do que o necessário para um veículo passar. Carol olhou para cima e para baixo do beco, agora cercado com fitas da polícia e protegido em cada extremidade por dois policiais uniformizados.

— Ele conhece seu território — murmurou ela ao andar para trás ao longo do beco, mantendo o portão do pub constantemente à vista. Merrick a seguia, esperando por novas ordens.

No fim do beco, Carol parou e girou para verificar a rua. De frente para o beco havia um prédio alto, um ex-armazém que tinha sido convertido em oficinas de artesanato. À noite, costumava ficar deserto, mas no meio da tarde quase todas as janelas enquadravam rostos ansiosos, olhando do calor interno para o drama abaixo.

— Não há muita chance de que alguém estivesse olhando pela janela no momento crucial, imagino — comentou.

— Mesmo que alguém estivesse, não teria notado nada — disse Merrick incredulamente. — Depois que tudo fecha, as ruas por aqui ficam uma agitação. Todas as portas, todos os becos e metade dos carros têm um par de veados comendo o rabo um do outro. Não admira que o chefe de polícia chame Temple Fields de “Sodoma e Gomorra”.

— Sabe, muitas vezes fico pensando. É bem claro o que eles estavam fazendo em Sodoma, mas qual você acha que era o pecado em Gomorra? — perguntou Carol.

Merrick tinha uma aparência perplexa. Isso aumentava de modo perturbador sua semelhança com um labrador de olhos tristes.

— Não estou entendendo, senhora.

— Não importa. Estou surpresa que o sr. Armthwaite não tenha feito a Delegacia de Costumes removê-los todos com acusações de obscenidade — disse Carol.

— Ele chegou a tentar há alguns anos — confidenciou Merrick. — Mas a corregedoria encheu o saco dele por causa disso. Ele os enfrentou, mas eles o ameaçaram com o Ministério do Interior. E depois do problema com Holmwood Three, ele sabia que já estava na corda bamba com os políticos, então recuou. Isso, porém, não impede que ele os recrimine sempre que uma oportunidade aparece.

— Bem, espero que dessa vez nosso amável assassino do bairro tenha-nos deixado um pouco mais de indícios para prosseguirmos, ou nosso querido líder pode escolher outro alvo para sua próxima recriminação. — Carol endireitou os ombros. — Certo, Don. Quero visitas às lojas, agora. De porta em porta. E, hoje à noite, nós todos estaremos nas ruas, falando com os michês.

Antes que Carol pudesse concluir suas instruções, uma voz de trás das fitas interrompeu.

— Inspetora Jordan? Penny Burgess, do Sentinel Times. Inspetora? O que temos aqui?

Carol fechou os olhos por um breve momento. Lidar com os obstinados intolerantes da cadeia de comando era uma coisa. Lidar com a imprensa era algo infinitamente pior. Desejando ter ficado no pátio com o medonho cadáver, ela respirou fundo e caminhou até o cordão de isolamento.

— Deixe-me entender isso direito. Você quer que eu faça parte da equipe durante esse inquérito de homicídio, mas não quer que eu conte a ninguém? — O olhar divertido de Tony mascarava sua raiva pela relutância dos policiais influentes em aceitar o valor do que ele sabia fazer.

Brandon suspirou. Tony não estava facilitando as coisas para ele, mas, também, por que deveria?

— Quero evitar qualquer insinuação na imprensa de que você está nos ajudando. A única chance que tenho de envolvê-lo formalmente na investigação é persuadir o chefe de polícia de que você não vai roubar os holofotes dele e de seus policiais.

— E que não vai ser do conhecimento público que Derek Armthwaite, a Mão Divina, está recorrendo aos homens do vocabulário difícil em busca de ajuda — disse Tony, com uma aspereza na voz que revelava mais do que ele desejava.

O rosto de Brandon se contorceu num sorriso cínico. Era bom ver que era possível enrugar aquela superfície lisa.

— Se é isso que diz, Tony. A rigor, é uma questão operacional, e ele não deve interferir a menos que esteja fazendo algo que seja contrário às políticas da força e do Ministério do Interior. E faz parte da política das práticas recomendadas de gestão lançar mão de ajuda especializada sempre que for apropriado.

Tony bufou com uma risada.

— E você acha que ele vai me aceitar como “apropriado”?

— Acho que ele não quer outro confronto com o Ministério do Interior ou com a corregedoria. Ele vai se aposentar daqui a dezoito meses; está desesperado pelo título de cavalheiro.

Brandon não podia acreditar no que dizia. Ele não expressava esse tipo de deslealdade nem para a esposa, que dirá para alguém que era praticamente um estranho. O que Tony Hill tinha para fazê-lo se abrir de modo tão imediato? Esse papo de psicologia devia ter algum valor no final das contas. Brandon se confortou de que, pelo menos, ele tinha aplicado o tal valor em prol da justiça.

— Então, o que me diz?

— Quando começo?


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 002

Mesmo naquela primeira vez, planejei o evento com mais cuidado do que um diretor de teatro planeja a estreia de uma nova peça. Na minha cabeça, produzi a experiência, até que ela fosse um sonho claro e brilhante, disponível todas as vezes que fechava meus olhos. Eu verificava e reverificava cada movimento coreografado, certificando-me de que não tinha deixado escapar nenhum detalhe vital que colocaria em risco minha liberdade. Revendo o passado hoje, percebo que o filme mental que criei era quase tão prazeroso quanto o próprio ato.

A primeira etapa era encontrar um lugar onde eu pudesse pegá-lo com segurança, um lugar em que pudéssemos ficar a sós. Descartei imediatamente a minha casa. Consigo ouvir as discussões sórdidas de meus vizinhos, o latido histérico do pastor-alemão deles e a batida irritante dos graves de seu aparelho de som; não tinha nenhum desejo de compartilhar minha exaltação com eles. Além disso, havia bisbilhoteiros demais nos terraços da minha rua. Eu não queria nenhuma testemunha da chegada nem da partida de Adam.

Cogitei alugar uma garagem com tranca, mas rejeitei a ideia pelos mesmos motivos. Além de que parecia infame demais, muito semelhante a um clichê do mundo da televisão e do cinema. Eu queria algo em harmonia com o que estava para acontecer. Foi então que me lembrei da tia de minha mãe, Doris. Doris e o marido, Henry, costumavam criar ovelhas nas charnecas de Bradfield. Porém, cerca de quatro anos atrás, Henry morreu. Doris tentou manter as coisas caminhando por um tempo, mas quando seu filho Ken a convidou para sair por férias prolongadas com a família rumo à Nova Zelândia, ela vendeu as ovelhas e arrumou as malas. Ken havia escrito para mim no Natal, dizendo que sua mãe tinha sofrido um leve ataque cardíaco e não voltaria no futuro próximo.

Naquela noite, aproveitei uma calmaria no trabalho para ligar para Ken. A princípio, ele ficou surpreso de ouvir minha voz, depois murmurou:

— Imagino que esteja usando o telefone do trabalho.

— Venho querendo ligar há um bom tempo — respondi. — Queria saber como tia Doris estava indo. — É muito mais fácil fingir preocupação via satélite. Fiz os ruídos apropriados enquanto Ken me entediava com a saúde de sua mãe, sua esposa, seus três filhos e suas ovelhas.

Depois de dez minutos, decidi que tinha suportado o bastante.

— Ah, outra coisa, Ken. É que me preocupo com a casa — menti. — É tão isolado lá, alguém devia ficar de olho no lugar.

— Você tem razão — disse ele. — Era para o advogado dela estar fazendo isso, mas não acho que ele tenha passado nem perto da casa.

— Você quer que eu vá lá e verifique? Agora estou morando de novo em Bradfield, não seria nenhum incômodo.

— Você pode fazer isso? Tiraria um peso das minhas costas, não vou negar. Cá entre nós, não tenho certeza de que mamãe algum dia vai estar bem o bastante para voltar para lá, mas odiaria pensar que algo pode acontecer com a casa da família — explicou Ken, com ansiedade.

Odiaria pensar que algo pudesse acontecer à herança dele, isso sim. Eu conhecia Ken. Dez dias depois, estava com as chaves. Quando tive uma folga, dirigi até lá para verificar a precisão das minhas lembranças. O caminho sulcado que levava à Fazenda Start Hill estava com mato muito mais crescido do que da última vez que eu estivera lá, e meu 4x4 lutou para subir os cinco quilômetros pela pista única mais próxima. Desliguei o motor a uns dez metros da horrível casinha de campo e permaneci de ouvidos atentos durante cinco minutos. O vento cortante da charneca farfalhava a cerca viva crescida, pássaros cantavam aqui e ali. Mas não havia sons humanos. Nem mesmo o som monótono do trânsito distante.

Saí do 4x4 e dei uma olhada em volta. Um lado do galpão das ovelhas tinha caído, formando uma pilha de pedras de arenito, mas o que me agradava era que não havia sinal de visitas humanas casuais; nada de restos de piquenique, nem latas de cerveja carcomidas, jornais amassados, pontas de cigarro ou camisinhas usadas. Voltei andando para a casa e entrei.

A casa era pouco mais que um sobrado com duas salas embaixo e dois quartos em cima. No lado de dentro, era muito diferente da casa de fazenda aconchegante de que me lembrava. Todos os toques pessoais — fotografias, ornamentos, placas decorativas de arreios de cavalos, antiguidades — não estavam mais lá, e sim embalados em caixas num depósito, uma preocupação típica de Yorkshire. De certa forma, era um alívio para mim. Não havia nada ali que pudesse acionar lembranças que interfeririam com o que eu tinha que fazer. Era uma tábula rasa, com todas as humilhações, embaraços e dor apagados. Nada do meu passado estava à espreita para me surpreender. A pessoa que eu tinha sido estava ausente.

Atravessei a cozinha até a despensa. As prateleiras estavam vazias. Só Deus sabe o que Doris teria feito com suas fileiras entulhadas de geleias, picles e vinhos caseiros. Talvez ela as tenha enviado para a Nova Zelândia para se resguardar de ser alimentada com comida exótica. Fiquei na entrada e olhei para o chão. Eu podia sentir um sorriso bobo de alívio se espalhando pelo meu rosto. Minha memória não tinha me decepcionado. Havia um alçapão no chão. Agachei-me e puxei o anel de ferro enferrujado. Depois de alguns segundos, a porta se moveu para trás, sustentada por dobradiças que rangiam. Enquanto aspirava o ar do porão, tive ainda mais convicção de que os deuses estavam do meu lado. Eu temia que estivesse úmido, fétido e cheio de mofo. Mas, em vez disso, estava frio e fresco, ligeiramente doce.

Acendi meu lampião a gás de acampamento e desci cuidadosamente o lance de escadas de pedra. O lampião revelou um recinto de tamanho considerável, de cerca de seis por nove metros. O piso era coberto de placas de pedra, e um grande banco também de pedra se estendia pelo comprimento de uma parede. Ergui o lampião e vi as toras sólidas do teto. O forro de sarrafos e argamassa era a única parte do porão que mostrava sinais de falta de manutenção. Eu podia consertar isso facilmente com placas de reboco, que serviriam ao duplo propósito de impedir que alguma luz escapasse pelas tábuas de assoalho expostas acima. À direita do banco estava um tanque. Lembrei que a fazenda dispunha de sua própria fonte. A torneira estava dura, mas, quando finalmente consegui abri-la, a água correu pura e límpida.

Próximo da escada ficava uma bancada, cheia de tornos e grampos, as ferramentas de Henry penduradas em fileiras organizadas acima. Sentei-me no banco de pedra e me congratulei. Algumas horas de trabalho bastariam para transformar aquele lugar numa masmorra muito superior a qualquer coisa que os programadores de jogos um dia já criaram. Para começar, eu não tinha que pensar em criar um ponto fraco interno de modo que meus aventureiros pudessem escapar.

Até o final da semana, saindo para a fazenda no meu tempo livre, tinha concluído o trabalho. Nada sofisticado; consertei o cadeado e os parafusos internos do alçapão, consertei o teto e cobri as paredes com duas camadas de cal. Eu queria que o lugar fosse o mais claro possível para garantir a qualidade do vídeo. Até puxei uma extensão da instalação para ter acesso à eletricidade.

Havia pensado por um longo tempo antes de resolver como punir Adam. Finalmente, decidi pelo que os franceses chamam chevalet; os espanhóis, escalero; os alemães, ladder; os italianos, veglia; e os poetas ingleses, The Duke of Exeter’s Daughter [a filha do duque de Exeter]. O nome eufemístico do potro se deve ao talentoso John Holland, duque de Exeter e conde de Huntingdon. Depois de uma carreira bem-sucedida como soldado, o duque se tornou condestável da Torre de Londres e, por volta de 1420, ele apresentou o esplêndido instrumento de persuasão a estas paragens.

A versão mais antiga consistia numa estrutura retangular aberta, sustentada sobre pernas. O prisioneiro era deitado sobre ela, preso por cordas em torno dos pulsos e calcanhares. Em cada canto, as cordas eram ligadas a um sarilho operado por um carcereiro que puxava alavancas. Esse dispositivo deselegante e que exigia trabalho intenso se tornou mais sofisticado ao longo dos anos, terminando mais como uma mesa ou escada horizontal, muitas vezes incorporando um cilindro com pontas de ferro no meio, de modo que, à medida que o corpo do prisioneiro se movia, suas costas eram rasgadas pelos ferros. Foram projetadas também polias que ligavam todas as quatro cordas, possibilitando que o maquinismo fosse operado por uma única pessoa.

Felizmente, aqueles que aplicavam punição ao longo das eras foram meticulosos em suas descrições e desenhos. Eu tinha também as fotografias no manual do museu para consultar e, com a assistência de um programa de CAD, projetei meu próprio potro. Para o mecanismo, desmontei um enxugador manual de roupas que escolhi numa loja de antiguidades. Também comprei uma mesa de jantar antiga de mogno num leilão. Levei-a imediatamente até a fazenda e a desmembrei na cozinha, admirando o trabalho artesanal que tinha sido aplicado à madeira sólida. Foram necessários alguns dias para construir o potro. Só faltava testá-lo.


2

 

Que o leitor então descubra por si mesmo o puro frenesi de horror quando, nesse silêncio de expectativa, olhando e, efetivamente, desejando que o braço desconhecido batesse mais uma vez, mas sem crer que qualquer audácia pudesse se igualar a tal tentativa naquele momento, enquanto todos os olhos observavam (...) um segundo caso da mesma natureza misteriosa, um assassinato no mesmo plano de extermínio, foi perpetrado no mesmíssimo bairro.

Assim que Brandon deu partida no motor, o celular posicionado no painel vibrou. Ele agarrou o telefone e gritou: “Brandon.” Tony ouviu a voz computadorizada dizer: “Você tem novas mensagens. Por favor, ligue para 121. Você tem novas mensagens...”

Brandon tirou o telefone do ouvido, apertou as teclas e o pressionou contra o ouvido novamente. Dessa vez, Tony não conseguiu escutar o que foi dito. Depois de um momento, Brandon ligou para outro número.

— Minha secretária — explicou ele brevemente. — Desculpe por isso... Alô, Martina? John. Estava me procurando?

Alguns segundos depois da resposta, Brandon apertou os olhos, como se sentisse dor.

— Onde? — perguntou, com voz monótona. — Certo, entendi. Chego aí em meia hora. Quem está cuidando disso?... Ótimo, obrigado, Martina.

Brandon abriu os olhos e terminou a ligação. Recolocou cuidadosamente o aparelho no lugar e se virou no assento para encarar Tony.

— Você queria saber quando podia começar? Que tal agora?

— Outro corpo? — perguntou Tony.

— Outro corpo — assentiu Brandon, com gravidade, virando-se novamente e ligando o carro. — O que acha de cenas de crime?

Tony deu de ombros.

— Provavelmente vou perder o almoço, mas é um bônus para mim se eu conseguir vê-las num estado intocado o bastante.

— Não há nada intocado na forma como esse canalha doente deixa os corpos — resmungou Brandon enquanto entrava rapidamente na rodovia e ia direto para a pista externa. O velocímetro marcava cento e cinquenta quilômetros por hora antes que ele aliviasse o pé no acelerador.

— Ele voltou a Temple Fields? — perguntou Tony.

Surpreso, Brandon deu-lhe uma rápida olhada. Tony fitava o que havia à frente, com as sobrancelhas escuras franzidas.

— Como sabia disso?

Essa era uma pergunta que Tony não estava preparado para responder.

— Chame de palpite — tergiversou. — Acho que dá última vez ele estava com medo de que Temple Fields pudesse estar se tornando visado demais. Largar o terceiro corpo em Carlton Park mudou o foco, talvez tenha feito a polícia parar de se concentrar numa área. Provavelmente relaxou a vigilância das pessoas um pouco. Mas ele gosta de Temple Fields. Seja porque conhece a área muito bem, ou porque é importante para sua fantasia. Ou talvez para ele isso seja algum tipo de declaração — refletiu Tony em voz alta.

— Você sempre cria meia dúzia de hipóteses diferentes toda vez que alguém lhe apresenta um fato? — perguntou Brandon, piscando as luzes para um BMW que relutava em desistir da via rápida. — Mude de pista, seu canalha, antes que eu arranje trânsito para você — rosnou ele.

— Eu tento — respondeu Tony. — É como faço o trabalho. Gradualmente, os indícios me fazem eliminar algumas suposições iniciais. Por fim, algum tipo de padrão começa a se formar. — Ele silenciou, já fantasiando sobre o que encontraria na cena do crime. Sentiu um vazio no estômago, os músculos trêmulos como os de um músico antes de um concerto. Não importa a qualidade do fotógrafo e dos outros peritos, era sempre a visão de outra pessoa que ele precisava traduzir. Dessa vez, ele estaria o mais próximo de um assassino do que já estivera. Para um homem que passava sua vida sob a proteção dos comportamentos aprendidos, penetrar a fachada de um assassino era a única opção possível.

Carol disse: “Nada a declarar”, pela décima primeira vez. A boca de Penny Burgess se comprimiu e seus olhos se moveram rapidamente pela cena, na busca desesperada por alguém que parecesse menos com um muro de pedra que Carol. Popeye Cross podia ser um porco chauvinista, mas entre os comentários condescendentes ele temperava algumas declarações memoráveis. Como a tentativa não deu em nada, ela se concentrou em Carol de novo.

— E onde fica a camaradagem entre as mulheres, Carol? — reclamou ela. — Poxa, dê uma ajudinha. Tem de haver alguma coisa que você possa me dizer sem ser “nada a declarar”.

— Lamento, sra. Burgess. A última coisa que seus leitores precisam ouvir é especulação desinformada e fora de hora. Assim que eu tiver algo concreto para dizer, prometo que você será a primeira a saber. — Carol suavizou suas palavras com um sorriso.

Ela se virou para ir embora, mas Penny agarrou a manga de sua capa impermeável.

— Em off? — suplicou ela. — Só para eu me orientar? Para que eu não acabe escrevendo algo que me faça parecer uma idiota. Carol, eu não preciso lhe dizer como é. Trabalho num escritório cheio de caras que estão fazendo apostas sobre quando vai ser minha próxima mancada.

Carol suspirou. Era difícil resistir. Apenas o pensamento do que Tom Cross falaria sobre isso na sala de reunião da delegacia manteve sua boca fechada.

— Não posso — disse. — Mas, de qualquer forma, até onde eu sei você está indo muito bem até agora.

Enquanto falava, um Range Rover familiar virou na esquina.

— Ah, merda — murmurou ela, puxando o braço para longe da repórter. Tudo que ela precisava era que John Brandon decidisse que ela era a fonte policial por trás da histeria do serial killer do Sentinel Times. Depressa, Carol andou até o automóvel de Brandon, que tremeu até parar por completo, e esperou que alguém movesse as fitas que isolavam a cena do crime. Ela parou e aguardou enquanto os policiais corriam para impressionar o chefe de polícia assistente com sua eficiência. O Range Rover se moveu lentamente para a frente, dando a Carol a oportunidade de identificar o estranho no assento do carona de Brandon. Enquanto os dois homens desciam, ela examinou cuidadosamente Tony, armazenando os detalhes no banco de memória que ela se treinou a desenvolver. Nunca se sabe quando vai ser necessário criar um retrato falado. Cerca de um metro e setenta e três centímetros, magro, ombros fortes, cintura estreita, pernas e tronco proporcionais, cabelos curtos escuros, partidos para o lado, olhos de tom intenso, provavelmente azuis, olheiras, pele clara, nariz médio, boca grande, lábio inferior mais cheio que o superior. Pena que não soubesse se vestir, porém. O terno está ainda mais fora de moda que o de Brandon. Não parecia gasto, no entanto. Dedução: esse era um homem que não trabalhava de terno. Do mesmo modo, não gostava de jogar dinheiro fora, então o terno seria usado até cair aos pedaços. Segunda dedução: ele provavelmente não era casado nem estava num relacionamento permanente. Qualquer mulher cujo parceiro precisasse de um terno ocasionalmente o teria convencido a comprar um modelo clássico à prova do tempo, que não pareceria tão absurdo cinco anos depois da compra.

Quando ela chegou a essa conclusão, Brandon estava a seu lado, acenando para que sua companhia se juntasse a eles.

— Carol — disse ele.

— Sr. Brandon — cumprimentou ela.

— Tony, gostaria que conhecesse a detetive-inspetora Carol Jordan. Carol, este é o dr. Tony Hill, do Ministério do Interior.

Tony sorriu e estendeu a mão. Sorriso atraente, adicionou Carol à sua lista de detalhes enquanto apertava a mão dele. Bom aperto de mão, também. Seco, firme, sem a necessidade machista de esmagar os ossos que muitos policiais veteranos demonstravam.

— Prazer em conhecê-la — disse ele.

Uma voz surpreendentemente grave, com leve sotaque do norte. Carol manteve seu próprio sorriso de lábios fechados. Nunca se sabe com o Ministério do Interior.

— Igualmente — respondeu.

— Carol está liderando uma das equipes de homicídios que temos sobre esses assassinatos. Número dois, não é, Carol? — perguntou Brandon, já sabendo a resposta.

— Exato, senhor. Paul Gibbs.

— Tony está no comando do estudo de viabilidade da Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais do Ministério do Interior. Pedi a ele que desse uma olhada nesses homicídios, para ver se sua experiência podia nos oferecer algumas indicações.

Os olhos de Brandon se dirigiam aos de Carol, certificando-se de que ela percebesse que havia entrelinhas.

— Eu agradeceria qualquer ajuda que o dr. Hill pudesse nos fornecer, senhor. Pela breve verificação que fiz da cena do crime, não acho que tenhamos mais para prosseguir que nos casos similares anteriores.

Carol sinalizou que havia entendido o que Brandon estava dizendo. Os dois estavam andando na mesma corda bamba, mas cada um numa extremidade diferente. Brandon não podia ser visto solapando a autoridade operacional de Tom Cross, e, se Carol quisesse uma existência tolerável na força de Bradfield, ela não podia contradizer abertamente seu superior imediato, ainda que o chefe de polícia assistente concordasse com ela.

— O dr. Hill gostaria de verificar a cena do crime?

— Vamos todos dar uma olhada — disse Brandon. — Você pode ir me atualizando enquanto isso. O que temos aqui?

Carol guiou os dois.

— Aqui é o pátio do pub. A cena do crime obviamente não é a cena da morte. Nem um pouco de sangue. Temos um homem branco, vinte e tantos anos, nu. Identidade desconhecida. Ele parece ter sido torturado antes de morrer. Os dois ombros dão a impressão de terem sido deslocados, e possivelmente também o quadril e os joelhos. Alguns tufos de cabelo estão faltando no couro cabeludo. Ele está deitado de bruços, por isso não tivemos chance de ver toda a extensão de seus ferimentos. Suspeito que a causa da morte seja um ferimento profundo na garganta. Parece que o corpo foi lavado antes de ser descartado.

Carol terminou sua recitação monótona no portão do pátio. Olhou para Tony, atrás dela. A única diferença que suas palavras tinham causado era um aperto nos lábios.

— Pronto? — perguntou ela.

Ele assentiu e respirou fundo.

— O mais pronto possível — respondeu ele.

— Fique fora das fitas, por favor, Tony — pediu Brandon. — Os peritos criminais ainda têm muito a fazer, e eles não precisam que deixemos vestígios forenses por toda a cena do crime.

Carol abriu o portão e acenou para que os dois entrassem. Se Tony pensara que as palavras dela o tinham preparado para a visão do que havia lá dentro, bastou uma olhada para lhe dizer o contrário. Era grotesco, e a anormal ausência de sangue ressaltava isso. A lógica clamava que um corpo tão desfigurado devia ser uma ilha num lago sanguinolento, como um cubo de gelo num Bloody Mary. Ele nunca vira um cadáver tão limpo fora de uma funerária. No entanto, em vez de jazer tranquilamente como uma estátua de mármore, este corpo estava retorcido numa paródia do esqueleto humano, com os membros soltos; uma marionete desconjuntada, esquecida onde caíra quando os fios foram cortados.

Quando os dois homens entraram no pátio, o fotógrafo pericial parou de registrar imagens e fez um sinal de reconhecimento para John Brandon.

— Tudo bem, Harry — disse Brandon, aparentemente não perturbado pela visão diante de si. Ninguém podia ver os punhos fortemente cerrados dentro dos bolsos de seu casaco impermeável.

— Já fiz toda a parte de longo e médio alcance, sr. Brandon. Só tenho agora que fazer os close-ups — disse o fotógrafo. — Há muitas feridas e hematomas; quero ter certeza de que peguei tudo.

— Bom garoto — incentivou Brandon.

De trás deles, Carol acrescentou:

— Harry, quando terminar, pode tirar fotos de todos os carros estacionados nas proximidades?

O fotógrafo ergueu as sobrancelhas.

— De todos?

— É, de todos — confirmou Carol.

— Bem pensado, Carol — interveio Brandon, antes que o fotógrafo, que nesse momento franzia a testa, pudesse dizer mais alguma coisa. — Sempre existe a chance remota de que esse indivíduo tenha deixado a cena do crime a pé ou no carro da vítima. Ele pode ter deixado o dele aqui para buscar depois. E é muito mais difícil o sumário da defesa argumentar contra fotografias do que contra um caderno de policial.

O fotógrafo se voltou outra vez para o cadáver, bufando violentamente. A breve conversa tinha dado a Tony tempo para controlar seu estômago revirado. Ele aproximou-se do corpo, tentando captar alguma compreensão primitiva da mente que havia reduzido um homem àquilo. “Qual é o seu jogo?”, pensou ele. “O que isso significa para você? Que operações estão acontecendo entre essa carne fragmentada e seu desejo? Achei que era um especialista em manter as coisas preparadas para uma emergência, mas você é outra história, não é? É realmente especial. É o controlador dos maníacos controladores. Você vai ser um desses que vira tema de livro. Bem-vindo à fama.”

Reconhecendo que estava perigosamente próximo da admiração por uma mente complexa de um modo que o perturbava, Tony se forçou a se concentrar nas realidades que estavam diante de si. O corte profundo na garganta tinha praticamente decapitado o homem, deixando a cabeça inclinada como se fosse articulada na nuca. Tony suspirou profundamente e disse:

— O Sentinel Times noticiou que todos morreram com a garganta cortada. É verdade?

— É — confirmou Carol. — Todos sofreram torturas antes de morrer, mas foram as feridas no pescoço que causaram a morte em todos os casos.

— E todos foram tão profundos quanto esse?

Carol balançou a cabeça, em dúvida.

— Só estou completamente familiarizada com o segundo caso, e nele a ferida não chegou nem perto da violência deste. Mas vi as fotografias dos outros dois, e o último deles era quase tão ruim.

Graças a Deus por algo perceptivelmente clássico, pensou Tony. Ele deu alguns passos para trás e analisou a área. Fora o corpo, não havia nada que o distinguisse do pátio de qualquer outro pub. Caixas de garrafas vazias estavam empilhadas contra as paredes, as tampas das grandes latas de lixo industriais com rodas estavam firmemente fechadas. Nada óbvio fora levado, nada óbvio fora deixado para trás, exceto o próprio cadáver.

Brandon limpou a garganta.

— Bem, tudo parece estar sob controle aqui, Carol. É melhor que eu vá dar uma palavra com a imprensa. Vi Penny Burgess tentando arrancar a manga do seu casaco quando cheguei. Sem dúvida, o resto do bando já está uivando nos calcanhares dela a esta altura. Vejo você de novo no comando mais tarde. Apareça no meu escritório. Quero ter uma conversa com você sobre o envolvimento do dr. Hill. Tony, vou deixá-lo nas mãos capazes de Carol. Quando terminar aqui, talvez deva marcar uma reunião com ela, para que possa lhe dar acesso aos arquivos do caso.

Tony assentiu com a cabeça.

— Parece uma boa ideia. Obrigado, John.

— Vou manter contato. E obrigado de novo. — Com isso, Brandon foi embora, fechando o portão atrás de si.

— Então, você cria perfis criminais — disse Carol.

— Eu tento — respondeu Tony, com cautela.

— Graças a Deus, finalmente as autoridades resolveram agir — disse ela, sem emoção. — Estava começando a pensar que nunca chegariam a admitir que temos um serial killer em nossas mãos.

— Então, somos dois — respondeu Tony. — Estava preocupado desde o primeiro, mas fiquei convencido a partir do segundo.

— E imagino que não seja da sua alçada dizer isso a eles — disse Carol, exaurida. — Maldita burocracia.

— É uma questão delicada. Mesmo quando tivermos uma força-tarefa nacional montada, suspeito que ainda teremos que esperar que cada força policial nos procure.

Carol ia responder quando foi cortada pela batida no portão do pátio, aberto com violência. Os dois se viraram. Enquadrado pelo umbral, estava um dos maiores homens que Tony já vira. Ele tinha a força bruta de um atacante de rúgbi fora de forma, e sua barriga de chope precedia seus ombros largos por uns bons quinze centímetros. Seus olhos eram protuberantes como groselhas estufadas num rosto carnudo, origem do apelido do detetive-superintendente Tom Cross. Sua boca, como a do seu homônimo dos desenhos animados, era um arco de cupido, pequena a ponto de ser incongruente. O cabelo cor de rato margeava sua calvície como a coroa de um monge.

— Senhor — cumprimentou Carol.

Sobrancelhas pálidas se curvavam numa careta de descontentamento. A julgar pelas linhas profundas entre elas, era uma expressão familiar.

— Quem diabos é você? — interpelou ele, movendo um dedo grosso na direção de Tony. Automaticamente, ele notou a unha roída. Antes que pudesse responder, Carol falou com inteligência.

— Senhor, este é o dr. Tony Hill, do Ministério do Interior. Ele é responsável pelo estudo de viabilidade da Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais. Dr. Hill, este é o detetive-superintendente Tom Cross. Ele está no comando geral de nossos inquéritos de homicídios.

A segunda metade da apresentação de Carol foi abafada pela resposta explosiva de Cross.

— Que diabos você está aprontando, mulher? Isso aqui é uma cena de homicídio. Não se pode deixar qualquer burocrata do Ministério do Interior ficar andando por aqui.

Carol fechou os olhos por uma fração de segundo mais longa que uma piscada. Depois, disse com uma voz cujo tom alegre assustou Tony.

— Senhor, foi o sr. Brandon quem trouxe o dr. Hill. O chefe de polícia assistente acha que o dr. Hill pode nos ajudar a criar o perfil criminal do nosso assassino.

— O que quer dizer com assassino? Quantas vezes tenho de lhe dizer? Não temos um serial killer à solta em Bradfield. Temos só um bando de bichas perigosas copiando crimes. Sabe qual o problema com vocês, graduados em rápida ascensão? — interpelou Cross, inclinando-se agressivamente em direção a Carol.

— Tenho certeza de que o senhor me dirá — respondeu Carol, com doçura.

Cross parou momentaneamente, com o ar levemente desconcertado de um cachorro que consegue ouvir a mosca, mas não consegue vê-la.

— Vocês estão todos desesperados pela glória. Querem glamour e manchetes. Não querem se dar ao trabalho de fazer o trabalho policial corretamente. Não querem levantar a bunda da cadeira para trabalhar em três inquéritos de homicídio, então tentam juntar todos eles num só para minimizar o esforço e maximizar a cobertura da imprensa. E você — acrescentou ele, girando em direção a Tony. — Você pode sair da minha cena de crime agora mesmo. A última coisa de que precisamos são esquerdistas com esse sentimentalismo barato nos dizendo que estamos em busca de algum pobrezinho que não pôde ter um ursinho de pelúcia quando era menino. Não é essa lenga-lenga que captura criminosos, é o trabalho da polícia.

Tony sorriu.

— Não poderia estar mais de acordo, superintendente. Mas o seu chefe de polícia assistente parece pensar que posso ajudar no direcionamento mais eficaz do seu trabalho policial.

Cross era muito macaco velho para ceder em nome da civilidade.

— Eu comando a equipe mais eficiente desta força — retorquiu ele. — E não preciso que a porcaria de um doutor me diga como capturar um punhado de veados homicidas.

Ele se voltou para Carol.

— Acompanhe o doutor Hill até a saída, inspetora.

Ele conseguiu fazer o título soar como um insulto.

— E, quando terminar, pode voltar aqui e me atualizar sobre o que conseguiu descobrir a respeito do nosso último assassino.

— Muito bem, senhor. Ah, a propósito, o senhor talvez deseje se juntar ao chefe de polícia assistente. Ele está dando uma coletiva improvisada para imprensa lá na frente. — Desta vez, a doçura tinha um toque de aspereza.

Cross deu uma olhada superficial no corpo que jazia exposto no pátio.

— Bem, ele é que não vai a lugar nenhum, não é? — comentou. — Certo, inspetora, espero um relatório assim que eu tiver terminado com o chefe de polícia assistente e a imprensa.

Ele girou nos calcanhares e saiu com violência, fazendo tanto barulho quanto na entrada.

Carol pôs uma das mãos no cotovelo de Tony e o guiou para fora do portão.

— Vai valer a pena ver isso — murmurou ela em seu ouvido enquanto o liderava pelo beco nas pegadas de Cross.

Meia dúzia de repórteres tinham se juntado a Penny Burgess atrás das fitas plásticas amarelas. John Brandon os encarava. Quando Tony e Carol chegaram mais perto, conseguiram ouvir a cacofonia de perguntas lançadas pela imprensa ao chefe de polícia assistente. Carol e Tony ficaram a curta distância enquanto Cross forçava o caminho por um policial ao lado de Brandon e gritava:

— Um de cada vez, senhoras e senhores. Todos vocês serão ouvidos.

Brandon deu meia-volta e fitou Cross, com o rosto sem expressão.

— Obrigado, superintendente Cross.

— Temos um serial killer à solta em Bradfield? — interpelou Penny Burgess, sua voz cortando o silêncio momentâneo como o grito de uma ave de mau agouro.

— Não há razões para supor... — iniciou Cross.

Brandon o cortou com frieza.

— Deixe isso comigo, Tom — disse ele. — Como dizia há pouco, nesta tarde encontramos o corpo de um homem branco no final de seus vinte ou no início de seus trinta anos. É muito cedo para ter certeza absoluta, mas há indícios de que este homicídio pode estar ligado aos três anteriores que ocorreram em Bradfield ao longo dos últimos nove meses.

— Isso significa que vocês estão tratando esses assassinatos como o trabalho de um serial killer? — perguntou um jovem com um gravador estendido à frente como uma vara de tocar bois.

— Estamos examinando a possibilidade de que um criminoso seja responsável pelos quatro crimes, sim.

Cross dava a impressão de querer bater em alguém. Suas mãos estavam fechadas em punhos nos lados do corpo, as sobrancelhas tão abaixadas que deviam reduzir sua visão a uma fenda.

— Embora seja somente uma possibilidade neste estágio — acrescentou ele, obstinadamente.

Penny interveio à frente da concorrência novamente:

— Como isso afetará a sua abordagem da investigação, sr. Brandon.

— A partir de hoje, vamos reunir os três inquéritos dos homicídios anteriores com este último numa única força-tarefa para incidente de grande importância. Vamos utilizar amplamente o Sistema de Investigações do Ministério do Interior para analisar os dados disponíveis. Temos confiança de que isso permitirá a descoberta de novas pistas — anunciou Brandon, com o rosto lúgubre em contradição com o otimismo em sua voz.

— Cara, vai com tudo — sussurrou Carol.

— Vocês não estão atrasados? O homicida não tirou proveito do fato de vocês se negarem a reconhecê-lo como um serial killer? — gritou do fundo uma voz raivosa.

Brandon endireitou os ombros e assumiu uma aparência severa.

— Somos policiais, não clarividentes. Não teorizamos à frente dos indícios. Fiquem sossegados, faremos tudo ao nosso alcance para levar esse assassino à justiça tão rápido quanto for humanamente possível.

— Vocês vão usar um psicólogo criminal? — Era Penny Burgess de novo. Tom Cross dirigiu a Tony um olhar puramente de ódio.

Brandon sorriu.

— Isso é tudo por enquanto, senhoras e senhores. Haverá um boletim mais tarde através da assessoria de imprensa. Agora, se me dão licença, temos muito trabalho a fazer. — Ele acenou com a cabeça de forma benevolente para os repórteres, depois se virou, levando Cross firmemente pelo cotovelo. Eles andaram de volta até o beco, as costas de Cross rígidas de raiva. Carol e Tony acompanhavam alguns passos atrás. Enquanto prosseguiam, a voz de Penny Burgess soou alta e clara atrás deles:

— Inspetora Jordan? Quem é o novato?

— Meu Deus, essa mulher não perde uma — murmurou Carol.

— É melhor mantê-la fora do caminho, então — comentou Tony. — Se eu terminar na capa dos jornais pode ser um risco sério à saúde.

Carol ficou perplexa.

— Você quer dizer que o assassino poderia ter você como alvo?

Tony sorriu.

— Não, quero dizer que seu chefe de polícia teria um derrame.

A necessidade irresistível de espelhar o sorriso dele atingiu Carol. Esse homem era diferente de todos os nerds funcionários do Ministério do Interior que ela já encontrara. Não só tinha senso de humor como não se incomodava em ser indiscreto. E, pensando bem, ele com certeza se encaixava na categoria que sua amiga Lucy descrevia como “pegável”. Ele estava dando sinais de ser o primeiro homem interessante que conhecia no trabalho em muito tempo.

— Você pode ter razão — limitou-se a dizer, conseguindo não se comprometer a ponto de que suas palavras pudessem ser usadas contra ela.

Eles chegaram à esquina do beco a tempo de ver os ataques verbais de Tom Cross contra Brandon.

— Com o devido respeito, senhor, mas acaba de contradizer tudo que venho dizendo a esses bostas desde que esse showzinho começou.

— É hora de usar uma abordagem diferente, Tom — disse Brandon, com tranquilidade.

— Então por que não conversa comigo em vez de me fazer parecer um idiota na frente daquela multidão? Isso sem falar nos meus próprios homens. — Cross se inclinou para a frente de modo beligerante. Uma das mãos estava para cima, com o indicador esticado, como se ele fosse bater no peito de Brandon com ela. Mas o bom senso na gestão da carreira prevaleceu, e a mão desceu novamente ao seu lado.

— Você acha que se eu tivesse chamado você no meu escritório e sugerido uma nova abordagem eu conseguiria aplicá-la? — Havia austeridade sob a brandura da voz de Brandon, e Cross a reconheceu.

Seu maxilar inferior se projetou para a frente.

— No final das contas, as decisões operacionais cabem a mim — disse ele. Por baixo da beligerância, Tony visualizava um garotinho, valentão e agressivo, ressentido dos adultos que ainda tinham a capacidade de lhe dar um jeito.

— Mas estou no comando da polícia assistente de investigação criminal, e a responsabilidade é minha. Sou eu quem toma as decisões de diretrizes e acabo de tomar uma que, por acaso, impactou sua esfera de operações. De agora em diante, esta é uma investigação única de incidente. Está claro, Tom? Ou quer que leve o caso adiante?

Pela primeira vez, Carol tinha visto por si mesma por que John Brandon tinha subido tanto na carreira. A ameaça em sua voz não era pura pose. Ele estava claramente preparado para fazer o que fosse preciso para atingir seus objetivos, e agia com toda a segurança de um homem acostumado a vencer. Não havia alternativa restante para Tom Cross.

O superintendente resolveu atacar Carol.

— Não tem nada melhor para fazer, inspetora?

— Estou aguardando para fazer meu relatório, senhor — respondeu ela. — O senhor me disse para esperá-lo depois da entrevista à imprensa.

— Antes que vocês comecem... Tom, permita-me apresentá-lo ao dr. Tony Hill — disse Brandon, puxando Tony para perto.

— Já fomos apresentados — avisou Cross, emburrado como um estudante de colegial.

— Dr. Hill concordou em trabalhar em contato direto conosco nesta investigação. Ele tem mais experiência na criação de perfis de serial killers que praticamente qualquer pessoa do país. E também concordou em manter seu envolvimento em sigilo.

Tony deu um sorriso diplomático autodepreciativo.

— Exatamente. A última coisa que quero é transformar sua investigação num espetáculo secundário. Se houver algum crédito quando pegarmos esse canalha, quero que vá para sua equipe. São eles quem farão o trabalho, afinal.

— Você está certo nisso — murmurou Cross. — Não quero você no nosso pé, no meio do caminho.

— Nenhum de nós quer isso, Tom — disse Brandon. — É por isso que pedi a Carol para atuar como oficial de ligação entre nós e Tony.

— Não posso me dar ao luxo de perder um policial graduado numa hora como essa — protestou Cross.

— Você não a está perdendo — retorquiu Brandon. — Está ganhando uma policial com uma visão única de todos os casos. Isso pode ser algo inestimável, Tom. — Olhou para o relógio. — É melhor eu ir. O chefe vai querer um relatório sobre isso. Mantenha-me informado, Tom.

Brandon esboçou um aceno, voltou à rua e saiu de vista.

Cross puxou um maço do bolso, tirou um cigarro e o acendeu.

— Sabe qual é o seu problema, inspetora? — recomeçou ele. — Você não é tão esperta quanto gosta de pensar que é. Um passo fora da linha, moça, e lhe arranco as tripas.

Ele tragou profundamente seu cigarro e se inclinou para a frente, soprando a fumaça na direção de Carol. O gesto foi arruinado pelo vento que carregou a fumaça para longe antes de atingi-la. Dando a impressão de estar enojado, Cross deu meia-volta e andou até a cena do crime.

— Não existe flor que se cheire neste emprego — disse Carol.

— Pelo menos, agora eu sei para onde o vento sopra — respondeu Tony. Enquanto falava, ele sentiu uma gota de chuva em seu rosto.

— Ai, merda — reclamou Carol. — É tudo de que precisamos. Escute, podemos nos encontrar amanhã? Posso pegar os arquivos hoje à noite e dar uma olhada neles antes. E então você poderia colocar a mão na massa.

— Ótimo. No meu escritório, às dez?

— Perfeito. Como encontro você?

Tony deu orientações a Carol, depois observou enquanto ela corria de volta para o beco. Uma mulher interessante. E atraente também, a maioria dos homens concordaria quanto a isso. Houve épocas em que quase desejou que conseguisse encontrar uma resposta descomplicada em si mesmo. Mas, desde então, havia passado do ponto em que se permitira sentir-se atraído por uma mulher como Carol Jordan.

• • •

Já passava das sete quando Carol finalmente conseguiu chegar de volta ao comando da força. Quando ligou para o ramal de Brandon, sentiu-se agradavelmente surpresa ao encontrá-lo ainda em sua mesa.

— Venha aqui em cima — disse-lhe ele.

Quando passou pela porta de sua secretária e o encontrou servindo duas canecas fumegantes na cafeteira, Carol ficou ainda mais surpresa.

— Leite e açúcar?

— Nenhum dos dois — respondeu ela. — Esse é um prazer inesperado.

— Eu larguei o cigarro há cinco anos — confidenciou Brandon. — Agora só a cafeína me mantém estruturado. Entre.

Carol adentrou o escritório, excitada de curiosidade. Ela nunca passara por aquele batente antes. A decoração era a tinta creme do regulamento, e a mobília era idêntica à do escritório de Cross, exceto pela madeira que estava brilhando, sem arranhões, queimaduras de cigarro ou marcas deixadas por xícaras quentes. Ao contrário da maioria dos policiais graduados, Brandon não tinha enfeitado as paredes com fotografias da polícia e suas comendas em quadros. Em vez disso, ele escolhera meia dúzia de pinturas da virada do século que retratavam cenas urbanas de Bradfield. Coloridas, ainda que sombrias, muitas vezes encharcadas de chuva, elas espelhavam a vista espetacular da janela do sétimo andar. O único item na sala que correspondia às expectativas era o retrato da esposa e dos filhos na escrivaninha. Mesmo que não fosse uma fotografia posada, feita em estúdio, era uma ampliação de uma foto de férias a bordo de um veleiro. Dedução: apesar da impressão que Brandon se esforçava para passar, de um policial tradicional, franco e objetivo, por dentro, ele era na verdade muito mais complexo e profundo.

Ele indicou a Carol um par de cadeiras em frente à sua mesa, depois se sentou na outra.

— Eu gostaria de esclarecer uma coisa — avisou Brandon sem preâmbulos. — Você se reporta ao superintendente Cross. Ele está no comando desta operação. Porém, quero ver cópias dos relatórios feitos por você e pelo dr. Hill, e quero saber qualquer teoria que vocês dois imaginem, mas que não estejam prontos para declarar por escrito. Acha que consegue dar conta desse malabarismo?

As sobrancelhas de Carol se ergueram.

— Só há uma maneira de descobrir, senhor — disse ela.

Os lábios de Brandon se torceram num meio sorriso. Ele sempre preferiu sinceridade à conversa mole.

— Tudo bem, assegure-se de que receberá acesso aos arquivos de todos. Qualquer problema com isso, qualquer impressão de que alguém está tentando cercear suas ações ou às do dr. Hill, quero que me diga, não importa quem seja o responsável. Falarei com o esquadrão pessoalmente pela manhã, vou me certificar de que ninguém tem dúvidas sobre quais são as novas regras do jogo. Alguma coisa que precise que eu consiga?

Mais doze horas no dia seria um começo, pensou Carol com cansaço. Amar desafios era muito bom, mas dessa vez parecia que o amor seria uma verdadeira luta.

• • •

Tony fechou a porta da frente atrás de si. Deixou cair a pasta onde estava e se recostou na parede. Havia conseguido o que queria. Era uma batalha de inteligências agora, sua intuição contra a fortaleza do assassino. Em algum lugar no padrão daqueles crimes existia um caminho labiríntico que ia direto ao coração do homicida. De alguma forma, Tony precisava seguir por aquele trajeto com cuidado, para evitar se perder na ardilosa vegetação rasteira.

Ele se afastou da parede, sentindo-se de repente exausto, e se encaminhou à cozinha, retirando a gravata e desabotoando a camisa pelo caminho. Uma cerveja gelada, e depois ele poderia percorrer sua pequena coleção de recortes de jornal dos três homicídios anteriores. Acabara de abrir a geladeira para pegar uma lata de Boddingtons quando o telefone tocou. Fechou a porta com violência e agarrou a extensão, segurando ainda a lata gelada.

— Alô.

— Anthony — respondeu a voz.

Tony engoliu em seco.

— Essa não é uma boa hora — disse ele, cortando com frieza o contralto rouco que vinha da linha. Largou a cerveja na bancada e puxou o anel da lata com uma das mãos.

— Está se fazendo de difícil? Ah, bom, isso é parte da diversão, não é? Achei que tinha resolvido esse problema de você tentar me evitar. Achei que tínhamos deixado tudo isso para trás. Não me diga que vai regredir e desligar na minha cara de novo, é tudo que peço.

A voz era provocadora, debaixo da superfície havia o murmúrio de uma risada.

— Não estou me fazendo de difícil — rebateu ele. — Não é mesmo uma boa hora.

Ele conseguia sentir a leve queimação de raiva subindo do fundo do estômago.

— Isso você decide. Você é o cara. O chefe. A menos, é claro, que queira coisas diferentes para variar, se é que me entende.

A voz era quase um sussurro, provocando-o com seu aspecto fugidio.

— Afinal, isso é estritamente entre mim e você. Consentimento entre adultos, como se diz.

— Então, neste momento, não tenho o direito de dizer não? Ou são só as mulheres que têm esse direito? — disse ele, ouvindo a tensão em sua voz à medida que a raiva subia como bile em sua garganta.

— Meu Deus, Anthony, sua voz fica tão sexy quando você está nervoso — ronronou.

Perplexo, Tony segurou o telefone à distância do ouvido, olhando para ele como se o aparelho fosse uma invenção de outro planeta. Às vezes, ele se perguntava se o que saía de sua boca eram as mesmas palavras que chegavam aos ouvidos de seus interlocutores. Com um distanciamento que não podia oferecer à pessoa que ligara, ele observou que segurava o telefone com tanta força que seus dedos estavam pálidos. Depois de um momento, pôs o aparelho de novo no ouvido.

— Só ouvir sua voz já me deixa molhada, Anthony — dizia ela. — Não quer saber o que estou usando, o que estou fazendo agorinha mesmo?

A voz era sedutora, a respiração mais audível do que tinha sido no começo.

— Olhe, eu tive um dia difícil, tenho muito trabalho a fazer e, por mais que goste dos nossos joguinhos, não estou a fim esta noite.

Agitado, Tony olhava desesperadamente pela cozinha como se procurasse a saída mais próxima.

— Você parece tão tenso, querido. Deixe-me acabar com toda essa tensão. Vamos brincar. Pense em mim como uma técnica de relaxamento. Você sabe que vai trabalhar melhor depois. Sabe que vou fazer você se divertir como nunca. Com um garanhão como você e uma rainha do sexo como eu, não há nada que não possamos fazer. Para começar, vou lhe proporcionar o telefonema mais safado, sexy e excitante que já tivemos.

De repente, sua raiva encontrou uma fraqueza nas barreiras que a continham e explodiu.

— Não esta noite! — gritou Tony, batendo o telefone com tanta força que a lata de cerveja pulou. Uma espuma cremosa subiu pelo orifício triangular no topo da lata. Tony olhou para ela com nojo. Pegou a lata e a jogou na pia. O objeto fez um barulho ao bater contra o aço inoxidável, depois rolou de um lado para outro. Cerveja e espuma saindo em esguichos de cor marrom e creme enquanto Tony se agachava, com a cabeça baixa e as mãos no rosto. Esta noite, encarando a profundidade dos pesadelos de outras pessoas, ele não queria de jeito nenhum o confronto inevitável com suas próprias deficiências, que as chamadas telefônicas sempre traziam em seu rastro. O telefone tocou novamente, mas ele permaneceu imóvel, os olhos apertados. Quando a secretária eletrônica atendeu a ligação, a pessoa desligou.

— Vaca — xingou ele, com violência. — Vaca.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 003

Quando meus vizinhos saem para trabalhar pela manhã, eles deixam o pastor-alemão deles solto no quintal. O dia inteiro, ele corre saltitante para cima e para baixo, incansável, percorrendo o terreno de concreto com a diligência de um carcereiro que realmente adora seu trabalho. Ele é corpulento, preto com manchas marrom e pelo felpudo. Sempre que alguma pessoa entra no quintal por qualquer um dos lados, ele late; uma cacofonia longa que vem do fundo da garganta e dura muito mais do que qualquer invasão. Quando os lixeiros vêm pela passagem dos fundos para empurrar nossas lixeiras com rodas até o caminhão, o cachorro fica histérico, de pé sobre as patas traseiras; as dianteiras arranhando inutilmente o portão pesado de madeira. Já o observei do ângulo privilegiado da minha janela no quarto dos fundos. Ele é quase tão alto quanto o próprio portão. Perfeito, na verdade.

Na manhã da segunda-feira seguinte, comprei cerca de um quilo de bife e cortei em cubos de dois centímetros, como todas as melhores receitas dizem. Depois, fiz um pequeno corte em cada cubo e inseri um dos tranquilizantes que meu médico insiste em prescrever para mim. Nunca os quis e certamente jamais os usei, mas tinha a sensação de que eles podiam ser úteis algum dia.

Saí pela porta dos fundos e ouvi com alegria a salva de latidos do cão. Podia me dar ao luxo de ficar alegre; seria a última vez que teria de suportá-lo. Mergulhei a mão na tigela de carne úmida, apreciando seu contato gelado e escorregadio. Depois atirei-a sobre o muro com as mãos cheias. Voltei para dentro, lavei-me e fui até o andar de cima, para minha posição privilegiada ao lado do computador. Escolhi o ambiente atmosférico de Darkseed, tranquilizando minha excitação com o submundo gótico e macabro que vim a conhecer tão bem. Apesar do envolvimento no jogo, no entanto, não podia evitar olhar de relance para fora da janela em intervalos de poucos minutos. Depois de um tempo, ele despencou no chão, com a língua pendente para fora da boca. Saí do jogo e peguei meus binóculos. Ele parecia estar respirando, mas não se movia.

Desci correndo as escadas, pegando a bolsa de viagem que havia preparado mais cedo, e entrei no 4x4. Fui de ré pelo beco até que a porta traseira estivesse ao nível do portão do quintal do vizinho. Desliguei o motor. Silêncio. Não pude resistir a certa satisfação arrogante enquanto peguei o pé de cabra e pulei para fora. Forçar o portão do vizinho foi uma questão de instantes. Enquanto entrava, pude ver que o cachorro não se moveu. Abri a bolsa e agachei ao lado dele. Joguei a língua dele de volta para a boca e fechei seu focinho com um rolo de esparadrapo. Atei suas pernas, as dianteiras e as traseiras, e o arrastei até o carro. Ele era pesado, mas me mantenho em forma, e não foi muito difícil carregá-lo.

Quando chegamos à fazenda, sua respiração vinha em roncos suaves, mas não havia vislumbre de consciência, mesmo quando abri suas pálpebras com os dedos. Coloquei-o no barril que deixara lá fora, rolei-o pela casa e despejei-o no final do lance de escadas. Acendi as luzes e joguei o cão no potro como um saco de batatas, virando-me para estudar minhas facas. Eu prendera uma fita imantada na parede, e todas elas estavam penduradas lá, afiadas até atingir um gume profissional: cutelo, faca para desossar, faca de trinchar, faca de legumes e estilete. Escolhi o estilete, cortei a fita das pernas do cão e o estendi com a barriga para baixo. Fechei a correia em volta do meio do seu corpo para firmá-lo contra o potro. Foi então que percebi que havia um problema.

Em algum momento nos últimos minutos, o cachorro havia parado de respirar. Enfiei a cabeça contra os pelos ásperos do seu peito, procurando um batimento cardíaco, mas já era tarde. Eu havia obviamente calculado errado a dosagem da droga e administrado demais a ele. Fiquei com muita raiva, preciso admitir. A morte do cachorro não afetaria o lado prático de testar cientificamente meu aparato, mas esperava ansiosamente por esse sofrimento; uma pequena vingança pelas tantas vezes que seu latido demente havia me acordado, especialmente quando eu chegava após um difícil turno da noite. Mas ele morrera sem um minuto de sofrimento. A última coisa que tinha conhecido fora cerca de um quilo de carne. Não me agradava que ele tivesse morrido feliz.

E isso não era tudo; também descobri um segundo problema. As correias que instalei eram suficientes para tornozelos e pulsos humanos, mas o cachorro não tinha mãos nem pés para impedir que seus membros escorregassem livremente.

Minha confusão não durou muito tempo. Estava longe de ser uma solução elegante, mas serviu ao meu propósito. Eu ainda tinha alguns pregos de quinze centímetros que sobraram dos reparos e consertos que fiz no porão. Coloquei cuidadosamente sua pata dianteira esquerda de modo que ela cobrisse um vão nas madeiras. Com o tato, procurei o espaço entre os ossos e, com uma martelada, fiz o prego atravessar nos ângulos certos da pata, logo acima da última junta. Prendi a correia abaixo do prego e puxei. Achava que ela seguraria por tempo suficiente.

Fixei as outras patas em cinco minutos. Depois que ele estava preso com segurança, eu finalmente podia começar os afazeres do dia. Mesmo com a perspectiva singela de um experimento puramente científico, conseguia sentir a excitação crescendo em mim até que se tornasse um grande nó na garganta. Ao que parecia, quase inconscientemente, minha mão desgarrou-se e foi à manivela do potro. Eu a observei, com desprendimento, como se fosse a mão de uma pessoa estranha. Ela alisou os dentes da engrenagem, correu levemente sobre a roda e, finalmente, foi repousar na manivela. O leve aroma do óleo lubrificante estava suspenso no ar, misturando-se ao ligeiro cheiro de tinta e ao odor bolorento canino do meu assistente de experimento. Suspirei fundo, tremi de expectativa e comecei a girar a manivela lentamente.


3

 

Não sustento a afirmação de que qualquer homem que se envolva em assassinato deve ter modos muito incorretos de pensar e princípios verdadeiramente inexatos.

Don Merrick abriu o zíper da braguilha. Com um suspiro de alívio, relaxou os músculos e permitiu que sua bexiga, que estava quase estourando, se esvaziasse. Atrás dele, a porta do cubículo se abriu. Seu prazer foi interrompido de modo abrupto quando uma pesada mão desceu em seu ombro.

— Sargento Merrick. Justamente o homem que eu queria ver. — disse Tom Cross com seu vozeirão. Inexplicavelmente, Merrick descobriu que não conseguia terminar o que tinha começado.

— Bom-dia, senhor — cumprimentou ele, com cautela, sacudindo-se e rapidamente tirando o pênis da vista de Cross.

— Ela contou sobre a nova missão dela, não contou? — perguntou Cross com toda camaradagem.

— Ela mencionou, sim, senhor. — Merrick olhava com ansiedade para a porta. Mas não havia escapatória. Não com a mão de Cross ainda agarrando seu ombro.

— Fiquei sabendo que está pensando em fazer os exames para inspetor — comentou Cross.

Merrick sentiu um aperto no estômago.

— É verdade, senhor.

— Então vai precisar de todos os amigos no alto escalão que puder encontrar, não é, meu rapaz?

Merrick forçou a abertura dos lábios no que esperava que fosse um sorriso para corresponder ao de Cross.

— Se o senhor diz, sim, senhor.

— Você tem o que é preciso para ser um bom policial, Merrick. Contanto que se lembre a quem deve ser leal. Sei que a inspetora Jordan vai ser uma moça muito ocupada nas próximas semanas. Ela pode nem sempre ter tempo de me manter completamente a par das coisas. — Cross dirigiu-lhe um olhar sugestivo. — Vou contar com você para me manter informado de todo os desdobramentos. Entendeu, meu rapaz?

Merrick fez que sim.

— Sim, senhor.

Cross abaixou a mão e se encaminhou à porta. Enquanto a abria, ele se virou novamente para Merrick e disse:

— Principalmente se ela começar a transar com nosso amigo doutor.

A porta se fechou atrás de Cross.

— Puta que pariu — disse Merrick baixinho para si mesmo enquanto andava até a pia e começava a esfregar as mãos vigorosamente sob a água quente.

• • •

Tony estava em sua mesa desde as oito. Até agora, apenas fizera algumas fotocópias do Relatório de Análise Criminal que tinha criado para a força-tarefa projetada. Baseado amplamente no questionário do Programa de Apreensão de Criminosos Violentos do FBI, ele pretendia estabelecer uma classificação padrão para todos os aspectos do crime, da vítima aos indícios forenses. Arrumou os formulários distraidamente, depois recolocou seus recortes de jornal numa pilha organizada. Justificava sua falta de atividade dizendo a si mesmo que até que Carol chegasse com os arquivos da polícia, havia pouco que ele pudesse fazer. Mas isso era apenas uma desculpa.

A verdade era que havia um bom motivo para que lhe fugisse a concentração. Ela estava em sua cabeça novamente. A mulher misteriosa. No princípio, ele se sentira vulnerável, não desejando tomar parte em seus jogos. Do mesmo modo que seus pacientes, pensou com ironia. Quantas vezes ele tinha proferido a máxima de que todo mundo, em algum nível, relutava em cooperar com a terapia? Perdera a conta do número de vezes que tinha batido o telefone nos primeiros dias. Mas ela persistira, continuando pacientemente a administrar sua persuasão tranquilizante até que ele começara a relaxar e até mesmo a participar.

A mulher o tinha desequilibrado completamente. Dava a impressão, desde a primeira vez, de ter um instinto para identificar seu calcanhar de aquiles, embora nunca o tenha atacado. Era tudo que qualquer um poderia desejar numa amante de fantasia, do gentil ao vulgar. A questão central, para Tony, era se ele era patético porque conseguia se envolver com telefonemas pornográficos de uma estranha, ou se devia se felicitar por ser tão bem-ajustado que compreendia o que precisava e o que funcionava para si próprio. Mas ele não podia escapar ao receio de que, se ainda não estivesse dependente dos telefonemas, estaria em risco de sucumbir a esse perigo. Já incapaz de sustentar um relacionamento sexual normal, será que ele estava laborando com a piora de sua condição ou se encaminhando para a recuperação? Tentar passar da fantasia à realidade era a única forma de saber qual das duas opções estava correta, mas ele ainda estava muito receoso da humilhação da carne para isso. Por enquanto, precisava se contentar com a desconhecida misteriosa que conseguia fazê-lo se sentir um homem por tempo suficiente para afastar seus fantasmas.

Tony suspirou e pegou sua caneca. O café estava frio, mas ele o bebeu assim mesmo. Contra a própria vontade, começou a reconstituir em sua cabeça conversas passadas. Como se não as tivesse repetido o suficiente durante as primeiras horas da manhã quando o sono lhe foi tão fugidio quanto o serial killer de Bradfield. A voz da mulher zumbia em seus ouvidos, inescapável como o walkman de outra pessoa num vagão de trem. Ele tentou bloquear suas emoções e tratar as chamadas com a objetividade intelectual que aplicava em seu trabalho. Tudo que precisava fazer era se isolar, da maneira que fazia quando estava examinando as fantasias pervertidas de seus pacientes. Certamente tivera experiência suficiente de se recusar a reconhecer ecos em si mesmo.

Pare a voz. Analise. Quem era ela? O que a motivava? Talvez, como ele, ela simplesmente gostasse de explorar mentes perturbadas. Pelo menos, isso explicaria como ela havia conquistado sua simpatia passando por suas barreiras. Não havia dúvida: ela era completamente diferente das mulheres vulgares que trabalhavam oferecendo sexo por telefone. Antes de começar esse estudo para o Ministério do Interior, ele estivera envolvido numa pesquisa sobre o assunto. Uma quantidade considerável dos criminosos recém-condenados com quem ele tinha lidado admitiu que fazia ligações frequentes para esses serviços telefônicos. Assim, podiam despejar suas fantasias sexuais, por mais bizarras, obscenas e pervertidas que fossem, nos ouvidos de mulheres pagas de modo irrisório, incentivadas por seus chefes a satisfazer os usuários pelo tempo que estivessem dispostos a pagar. Chegara mesmo a telefonar para alguma dessas linhas, só para ter uma ideia do que era oferecido e descobrir, usando as transcrições de algumas de suas entrevistas, até que ponto era possível ir antes que a repulsa superasse o objetivo do lucro ou a necessidade desesperada de ganhar a vida.

Por fim, ele entrevistara uma seleção das mulheres que trabalhavam atendendo os telefonemas. A única coisa que todas tinham em comum era a sensação de terem sido violadas e degradadas, embora algumas delas a encobrissem no desprezo que exprimiam por seus clientes. Ele chegara a vários resultados, mas o documento que escreveu posteriormente não incluía todos eles. Deixou algumas dessas conclusões de fora porque eram muito disparatadas, outras porque temia que pudessem revelar demais sobre sua própria psique. Isso incluía sua convicção de que a reação de um homem que já tivesse ligado anteriormente para uma linha de disque-sexo a uma ligação de cunho erótico com um membro do sexo oposto seria radicalmente diferente à de uma mulher na mesma situação. Em vez de bater o telefone, ou denunciar o número à empresa de telefonia, a maioria desses homens se divertiria ou ficaria excitado. Em qualquer das alternativas, o homem ia querer ouvir mais.

Tudo que ele tinha de descobrir era por que, ao contrário das funcionárias do disque-sexo, essa mulher achava sexo por telefone com um desconhecido algo tão atraente. O que ele precisava era saciar a curiosidade intelectual que era pelo menos tão forte quanto seu desejo de explorar a satisfação sexual que ela havia descortinado para ele. Talvez ele devesse pensar em sugerir um encontro. Antes que pudesse continuar, o telefone tocou. Tony se moveu, mas sua mão parou no meio do caminho em sua travessia automática até o aparelho.

— Ah, pelo amor de Deus — sussurrou ele impaciente, balançando a cabeça como um mergulhador que chega à superfície. Pegou o telefone e disse: — Tony Hill.

— Dr. Hill, aqui é Carol Jordan.

Tony não disse nada, aliviado que seus pensamentos tivessem fracassado em conjurar a mulher misteriosa.

— Aqui é a inspetora Jordan. Polícia de Bradfield — continuou Carol no silêncio que se seguiu.

— Olá, sim, desculpe, estava só tentando... limpar um espaço na minha mesa — titubeou Tony, e sua perna esquerda começou a tremer como uma xícara de chá num trem.

— Sinto muito, mas não vou conseguir chegar às dez. O sr. Brandon convocou uma reunião, e acho que não seria prudente perdê-la.

— Tudo bem, eu entendo — disse Tony, pegando com a mão livre uma caneta e desenhando sem se dar conta um narciso. — Já vai lhe ser difícil o bastante agir como intermediária sem que pareça que não faz parte da equipe. Não se preocupe com isso.

— Obrigada. Escute, não acho que essa reunião vai demorar muito, estarei com você assim que puder. Provavelmente por volta das onze, se isso não interferir em sua agenda.

— Está ótimo — respondeu ele, aliviado que não teria muito tempo para refletir antes que eles pudessem começar a trabalhar. — Não tenho nada agendado, então leve o tempo que precisar. Não será nenhum incômodo.

— Certo. Até lá.

Carol colocou o fone de volta no gancho. Até aqui tudo estava bem. Pelo menos Tony Hill não parecia um prisioneiro de seu ego profissional, ao contrário de vários dos especialistas com quem ela lidava. E, ao contrário da maioria dos homens, ele compreendera sua possível dificuldade sem ser condescendente com ela, e tinha aceitado com boa vontade um modo de agir que minimizaria os problemas dela. Com impaciência, ela afastou a lembrança da atração que sentira por ele. Ultimamente, ela não tinha tempo e nem interesse em se envolver emocionalmente. Dividir um apartamento com o irmão e encontrar tempo para manter algumas poucas amizades íntimas tomava toda a energia de que podia dispor. Além disso, o fim de seu último relacionamento tinha causado um baque muito grande em sua autoestima para que ela entrasse despreocupadamente em outro.

O caso com um cirurgião da ala de emergência em Londres não sobrevivera à sua mudança da Polícia Metropolitana para Bradfield três anos antes. Até onde Rob sabia, foi decisão de Carol se mudar para o congelante Norte. Então, viajar para cima e para baixo por rodovias e conseguir passar algum tempo juntos era responsabilidade dela. Ele não tinha nenhuma intenção de desperdiçar seu valioso tempo de folga acrescentando uma quilometragem desnecessária ao seu BMW só para ir a uma cidade cujo único atrativo compensatório era Carol. Além disso, as enfermeiras eram bem menos críticas e estressadas, e compreendiam turnos e expedientes longos tão bem quanto uma policial, se não melhor. Seu egoísmo brutal tinha perturbado Carol, que se sentia traída na emoção e na energia que investira em amar Rob. Tony Hill podia ser atraente, charmoso e, se sua reputação estivesse correta, inteligente e intuitivo, mas Carol não iria arriscar seu coração de novo. Especialmente com um colega de trabalho. Se ela estava achando difícil tirá-lo da cabeça, era porque estava fascinada pelo que poderia aprender com ele sobre o caso, não porque se interessara por ele.

Carol passou uma das mãos pelos cabelos e bocejou. Ela estivera em casa durante precisamente cinquenta e sete minutos nas últimas vinte e quatro horas. Vinte desses minutos foram gastos no chuveiro numa tentativa inútil de se vacinar contra os efeitos da falta de sono. Ela havia passado uma grande parte da noite indo de porta em porta com sua equipe do Departamento de Investigações Criminais em averiguações infrutíferas entre os nervosos habitantes, funcionários e frequentadores de Temple Fields e de seus estabelecimentos homossexuais. As reações dos homens tinham variado da total falta de cooperação ao insulto. Carol não se surpreendeu. A área estava fervilhando com uma grande quantidade de sentimentos contraditórios.

Por um lado, os estabelecimentos para gays não queriam a área infestada de policiais porque isso era ruim para os negócios. Por outro, os ativistas gays, cheios de raiva, exigiam proteção adequada agora que a polícia concluíra com atraso que um serial killer de gays estava à solta. Um grupo de clientes ficou horrorizado de ser interrogado, já que sua vida homossexual era um segredo muito bem-escondido de esposas, amigos, colegas de trabalho e pais. Outro grupo bancava alegremente os machões, gabando-se de que nunca estariam numa situação em que pudessem ser assassinados por algum maníaco de olhar gélido. Já um terceiro grupo estava ansioso por detalhes, empolgado de forma obscura e, aos olhos de Carol, obscena pelo que podia ocorrer quando um homem saía do controle. E havia ainda algumas lésbicas separatistas que faziam o estilo linha-dura e não escondiam sua alegria pelos homens serem o alvo dessa vez.

— Talvez agora eles entendam por que ficamos tão indignadas durante a caça ao estripador de Yorkshire quando os homens sugeriram que as mulheres solteiras deveriam ter um toque de recolher — dissera uma delas em tom de escárnio a Carol.

Exausta por causa de toda essa confusão, a inspetora tinha dirigido de volta à sede da força para começar a pesquisa exaustiva nos arquivos das investigações existentes. A sala da divisão de homicídios estava estranhamente quieta, já que a maioria dos detetives estava fora em Temple Fields, seguindo diferentes linhas de investigação ou aproveitando para pôr a bebida, a vida sexual ou o sono em dia. Ela já tivera uma rápida conversa com os responsáveis pelas outras duas investigações de homicídio, e eles, com certa relutância, tinham concordado em lhe fornecer acesso aos seus arquivos desde que ela devolvesse o material em suas mesas no início da manhã. Não era exatamente o que esperava: a aparência era de colaboração, mas em termos reais era uma resposta calculada para lhe causar ainda mais problemas.

Quando entrou em seu escritório, ela ficou assombrada pelo volume de papel. Pilhas de declarações, relatórios forenses e patológicos e arquivos de fotografias praticamente enterravam seu local de trabalho. Por que, em nome de Deus, Tom Cross não decidira usar o sistema Holmes para os primeiros homicídios? Pelo menos assim todo o material estaria acessível no computador, indexado e com referências cruzadas. Tudo que ela teria que fazer então seria convencer um dos indexadores do Holmes a imprimir os itens relevantes para Tony. Com um gemido, ela fechou a porta na bagunça e andou pelos corredores vazios até o escritório do sargento de farda. Era chegada a hora de testar a instrução do chefe de polícia assistente de que todas as patentes colaborassem com ela. Sem outro par de mãos, ela nunca terminaria o trabalho da noite.

Mesmo com a ajuda de um policial, concedida com insatisfação, foi uma luta chegar ao final do material. Carol tinha passado os olhos pelos relatórios da investigação, extraindo tudo que parecia indicar alguma possibilidade de interesse e pedindo que o policial fizesse cópias. Mesmo assim, ainda havia uma desafiadora pilha de material em que Tony e ela trabalhariam. Quando o assistente terminou o trabalho às seis, Carol carregou com cansaço as fotocópias para algumas caixas de papelão e cambaleou até seu carro com elas. Ela reuniu conjuntos inteiros de fotografias de todas as vítimas e cenas de crime, preenchendo um formulário para solicitar novas cópias para as equipes de investigação substituírem as que ela pegara.

Só então Carol se encaminhara para casa. Mesmo lá, não teve trégua. Nelson aguardava atrás da porta, miando de um jeito aborrecido enquanto entrelaçava seu corpo sinuoso em torno dos calcanhares dela, forçando-a a ir direto para a cozinha pegar o abridor de latas. Quando ela largou a tigela de comida na frente dele, o animal a olhou com suspeita, fazendo uma careta. Depois a fome sobrepujou seu desejo de puni-la e ele devorou todo o conteúdo da tigela sem fazer nenhuma pausa.

— Bom ver que sentiu minha falta — disse Carol ironicamente enquanto ia para o chuveiro. Quando saiu, Nelson tinha claramente decidido perdoá-la. Ele a seguia, ronronando como um tom de discagem, sentando-se em cada roupa que ela escolhia do armário e colocava na cama.

— Você é mesmo o fim — rosnou Carol, puxando seu jeans preto debaixo dele. Nelson continuou a adorando, nem um pouco abalado. Ela vestiu o jeans, admirando o corte no espelho do armário. Eles eram Katharine Hammett, mas só custaram vinte libras num brechó semestral na Kensington Church Street, onde ela sempre ia atrás das grifes que adorava, mas que não podia comprar, mesmo com o salário de inspetora. A blusa de linho creme era French Connection e o cardigã cinza com reforços de uma cadeia de loja de departamentos masculina. Carol limpou alguns pelos pretos da peça e notou o olhar de reprovação de Nelson.

— Você sabe que eu amo você. Só não preciso sair vestida de gato — disse ela.

— Você ficaria chocada se ele respondesse — disse uma voz masculina na entrada.

Carol se virou para encarar o irmão, que se inclinava contra a ombreira da porta, vestindo shorts, com o cabelo louro despenteado, olhos turvos de sono. Seu rosto tinha uma estranha congruência com o de Carol, como se alguém tivesse digitalizado a fotografia dela num computador e alterado sutilmente traços femininos para masculinos.

— Não acordei você, acordei? — perguntou ela, com ansiedade.

— Nada. Preciso ir a Londres hoje. O homem do dinheiro chegou.

Ele bocejou.

— Os americanos? — perguntou Carol, agachando-se e alisando o gato atrás das orelhas. Nelson prontamente rolou de costas, expondo toda a barriga para ser acariciado.

— Sim. Eles querem uma demonstração completa do que fizemos até agora. Venho dizendo a Carl que nada parece muito impressionante no momento, mas ele diz que quer alguma garantia de que não está só jogando o dinheiro do desenvolvimento pela janela.

— As alegrias do desenvolvimento de software — disse Carol, eriçando os pelos de Nelson.

— Desenvolvimento de software de ponta, por favor — retrucou Michael, meio de brincadeira. — E você? O que aconteceu lá na fábrica de homicídios? Ouvi no noticiário ontem que vocês tinham encontrado mais um.

— É o que parece. Pelo menos os chefões finalmente admitiram que temos um serial killer à solta. E eles trouxeram um analista de perfil psicológico para trabalhar conosco.

Michael deu um assobio.

— Puta merda, a polícia de Bradfield chegou ao século XX. Como o Popeye recebeu a notícia?

Carol fez uma careta.

— Ele gostou tanto disso quanto gostaria se lhe enfiassem um espeto nos olhos. Acha que é um completo desperdício de tempo — disse Carol, engrossando a voz e imitando o sotaque de Bradfield de Tom Cross. — Depois, quando me indicaram como intermediária com o analista de perfil criminal, ele ficou mais animado.

Michael assentiu com a cabeça, com uma expressão cínica no rosto.

— Dois coelhos com uma cajadada só.

Carol sorriu.

— É, bem, vai ter de passar por cima do meu cadáver.

Ela se levantou e Nelson deu um pequeno miado de protesto. Carol suspirou, dirigindo-se à porta.

— De volta ao trabalho, Nelson. Obrigada por tirar minha cabeça dos cadáveres — disse ela.

Michael chegou para o lado da porta para permitir que ela passasse e lhe deu um abraço.

— Não faça prisioneiros, maninha — disse ele.

Carol bufou.

— Acho que você não compreende muito bem os princípios do trabalho da polícia, maninho.

Quando ficou atrás do volante, o gato e Michael foram esquecidos. Ela estava de volta com o assassino.

Agora, algumas horas e uma pilha de relatórios noturnos da equipe de homicídios depois, a casa parecia uma lembrança tão distante quanto suas férias de verão em Ithaca. Carol forçou-se para fora da cadeira, pegou a papelada e entrou no escritório principal do Departamento de Investigações Criminais.

Todas as cadeiras estavam ocupadas quando ela chegou; os detetives, normalmente baseados em outras delegacias, esforçando-se para conseguir um lugar na multidão. Dois de seus policiais se moveram para dar espaço para ela, um deles ofereceu sua cadeira.

— Merda de puxa-saco — disse uma voz de forma audível do outro lado da sala. Carol não conseguiu ver quem tinha falado, mas reconheceu que não era ninguém de sua própria equipe. Sorriu e balançou a cabeça negativamente para o policial não graduado, escolhendo sentar-se na beira da mesa dele ao lado de Don Merrick, que acenou numa saudação morosa. O relógio indicava nove e vinte e nove. A sala cheirava a charuto barato, café e jaquetas úmidas.

Um dos outros inspetores captou o olhar de Carol e começou a andar em direção a ela. Mas, antes que pudessem falar, a porta se abriu e Tom Cross entrou rapidamente, seguido por John Brandon. O superintendente parecia tranquilo de um jeito perturbador ao entrar com passos decididos. Os oficiais lhe davam passagem automaticamente, deixando um caminho livre para ele e Brandon andarem até o quadro branco na outra extremidade da sala.

— Bom-dia, rapazes — disse Cross, cordialmente. — E moças — acrescentou, como algo que só lhe tivesse ocorrido depois. — Não há ninguém aqui que não saiba que temos quatro assassinatos não solucionados em nossas mãos. Temos a identificação dos três primeiros corpos: Adam Scott, Paul Gibbs e Gareth Finnegan. Até agora não fizemos nenhum progresso quanto à quarta vítima. O pessoal no laboratório de patologia está trabalhando nele agora, tentando produzir um rosto que não embrulhe o estômago do público quando divulgarmos a imagem para a imprensa.

Cross respirou fundo. Talvez sua expressão tenha se tornado ainda mais benevolente.

— Como todos vocês sabem, não sou um homem dado a teorizar além do que apontam as evidências. E, oficialmente, tenho relutado a conectar esses assassinatos por causa da histeria de mídia que isso traria para nós. Julgando pelas manchetes desta manhã, eu estava certo quanto a isso.

Ele apontou para vários dos jornais que os detetives seguravam.

— Contudo, à luz do homicídio mais recente, precisamos rever nossa estratégia. Desde ontem à tarde, reuni os quatro inquéritos de assassinato numa única investigação.

Houve um murmúrio de apoio. Don Merrick se inclinou para a frente e murmurou no ouvido de Carol:

— Troca mais de opinião do que de roupa.

Ela concordou.

— Queria que ele trocasse as meias com a mesma frequência.

Cross lançou um olhar furioso na direção deles. Ele não podia ter ouvido os comentários, mas ver os lábios de Carol se moverem era desculpa suficiente.

— Fiquem quietos — ordenou ele com severidade. — Não terminei ainda. Pois bem, não é preciso muito em matéria de habilidade investigativa para ver que esse lugar é muito pequeno para nós e mais as atividades normais do posto policial, então, assim que tivermos terminado aqui nesta manhã, mudaremos nossa operação para a antiga delegacia na Scargill Street, que como alguns de vocês devem lembrar foi desativada seis meses atrás. Durante a noite, uma equipe de funcionários de manutenção, peritos em computadores e engenheiros de telecomunicação foi até lá e a colocou num estado operacional.

Isso levantou um coro de protestos. Ninguém derramara uma lágrima quando o velho prédio vitoriano na Scargill Street foi fechado. Inconveniente, sujeito a correntes de ar, com poucas vagas de estacionamento, banheiros femininos — tudo, a não ser celas —, o prédio tinha sido designado para demolição e reconstrução. Como era típico, não houve dinheiro suficiente no orçamento para levar o projeto adiante.

— Eu sei, eu sei — disse Cross, cortando as reclamações. — Mas todos estaremos sob o mesmo teto, assim poderei ficar de olho em vocês. Estarei no comando geral das investigações. Vocês terão dois inspetores a quem se reportar: Bob Stansfield e Kevin Matthews. Eles vão listar suas atribuições num minuto. A inspetora Jordan não estará envolvida nisso, mas numa iniciativa do sr. Brandon. — Cross pausou. — Com a qual tenho certeza de que todos vocês vão querer cooperar.

Carol manteve a cabeça erguida e olhou em volta. Grande parte dos rostos que ela podia ver mostrava flagrante cinismo. Várias cabeças se viraram para ela. Não havia cordialidade em seus olhares. Mesmo aqueles que talvez apoiassem a iniciativa de criação de perfis criminais estavam irritados que aquele trabalho importante tinha sido dado a uma mulher em vez de um dos homens.

— Pois bem, Bob assumirá as responsabilidades operacionais da inspetora Jordan para Paul Gibbs e Adam Scott, e Kevin cuidará do cadáver de ontem e também de Gareth Finnegan. A equipe HOLMES foi acionada, e eles começarão a inserir seus dados tão logo os nerds tenham instalado os cabos em seus lugares. O inspetor Dave Woolcott, de quem alguns de vocês se lembrarão de quando ele foi sargento aqui, será o chefe da investigação no comando da equipe HOLMES. A palavra está com o senhor, sr. Brandon.

Cross deu um passo atrás e acenou para o chefe de polícia assistente ir à frente. Seu gesto por pouco não ultrapassou os limites da educação, indo recair na insolência.

Brandon parou por um momento para olhar a sala em volta. Ele nunca tinha precisado fazer um discurso de convencimento mais importante. A maioria dos detetives na sala estava entediada e frustrada. Muitos deles vinham trabalhando num dos homicídios anteriores há meses, com muito pouco para mostrar como resultado. A capacidade de motivação de Tom Cross era célebre, mas mesmo ele estava tendo dificuldades, em especial por causa de sua recusa intransigente em admitir anteriormente que os crimes estavam relacionados. Era hora de derrotar Tom Cross em seu próprio jogo. Agir com severidade nunca foi o ponto forte de Brandon, mas ele tinha praticado a manhã inteira em frente ao espelho em que se barbeava, enquanto comia seus ovos com torrada, e no carro a caminho do posto policial. Brandon enfiou uma das mãos no bolso da calça e cruzou os dedos.

— Esta é provavelmente a tarefa mais difícil de nossas carreiras. Pelo que sabemos, esse sujeito só está operando em Bradfield. De certa forma, estou satisfeito por isso, porque nunca vi um grupo melhor de detetives do que temos aqui. Se alguma equipe pode pegar esse canalha, essa equipe é a de vocês. Podem contar com cento e dez por cento do apoio de seus oficiais superiores e com todos os recursos de que precisam, quer os políticos queiram ou não.

O tom de beligerância de Brandon ganhou um murmúrio de aprovação na sala.

— Em mais de um aspecto, vamos desbravar um novo caminho. Todos vocês sabem sobre os planos do Ministério do Interior para uma Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais. Bem, nós seremos as cobaias. Dr. Tony Hill, o homem que vai dizer ao Ministério do Interior o que pensar, concordou em trabalhar conosco. Agora, sei que há alguns entre vocês que pensam que a criação de perfis não passa de um monte de bobagens. Mas gostem ou não, é parte do nosso futuro. Se cooperarmos e trabalharmos com esse sujeito, teremos muito mais chance de que essa força-tarefa termine do modo como queremos. Se nós enchermos a paciência dele, é capaz de termos um fardo enorme em nossas costas. Está claro para todo mundo aqui?

Brandon olhava com severidade em volta da sala, sem deixar de notar Tom Cross. Os gestos de assentimento variavam dos entusiasmados aos quase imperceptíveis.

— Estou satisfeito que nos entendemos. O trabalho do dr. Hill é avaliar os indícios que lhe fornecermos e criar um perfil do assassino para nos ajudar a concentrar nossas investigações. Indiquei a inspetora Carol Jordan como oficial intermediária entre o esquadrão de homicídios e o dr. Hill. Inspetora Jordan, pode se levantar por um minuto?

Assustada, Carol se levantou depressa, deixando cair os arquivos pelo caminho. Don Merrick imediatamente se ajoelhou e pegou os papéis que escapuliram.

— Para aqueles de outras divisões que não conhecem, essa é a inspetora Jordan.

Boa, Brandon, pensou Carol. Como se houvesse esquadrões de detetives femininas para escolher.

— A inspetora Jordan precisa ter acesso a cada folha de papel desta investigação. Quero mantê-la completamente informada sobre qualquer avanço. Qualquer um que esteja atrás de uma pista promissora deve discuti-la com ela e também com seu inspetor ou com o superintendente Cross. E qualquer pedido da inspetora Jordan deve ser tratado como uma solicitação urgente. Se chegar ao meu conhecimento que alguém está bancando o engraçadinho, tentando excluir a inspetora Jordan ou o dr. Hill da investigação, não vou livrar a cara de ninguém. O mesmo se aplica a qualquer um que deixe vazar qualquer coisa sobre este aspecto da investigação para a mídia. Então pensem bem. A menos que tenham uma intensa ambição de voltar a vestir uma farda e andar na chuva pelas ruas de Bradfield por todo o resto da carreira, vocês farão tudo o que for possível para ajudá-la. Isto aqui não é uma competição. Estamos todos do mesmo lado. Dr. Hill não está aqui para capturar o assassino. Esse é seu...

Brandon parou a frase no meio. Ninguém havia notado a porta se abrindo, mas as palavras do sargento da sala de comunicações captaram a atenção de todos mais rapidamente do que um tiro.

— Desculpe interromper, senhor — disse ele, com a voz tensa pela emoção contida. — Temos a identificação da vítima de ontem. Ele é um dos nossos homens.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 004

Foi um jornalista americano quem disse: “Eu vi o futuro, e ele funciona.” Sei exatamente o que ele quis dizer. Depois do cachorro, sabia que Adam não seria nenhum problema.

Passei o resto da semana num estado de tensão nervosa. Tive até a tentação de experimentar um dos tranquilizantes, mas resisti. Não era hora de ceder à fraqueza. Além disso, não podia me dar ao luxo de estar menos do que em completo autocontrole. Meus anos de autodisciplina foram recompensados; duvido que algum dos meus colegas tenha notado algo de estranho em meu comportamento no trabalho, exceto que eu não conseguia realizar os turnos extras de fim de semana para os quais eu geralmente me voluntariava.

Na manhã de segunda, eu estava no auge da prontidão. Tinha me preparado e estava impecável; sublime homicida à espera. Até o clima estava do meu lado. Era uma manhã de outono clara e límpida, o tipo de dia que abre um sorriso mesmo nas pessoas que precisam tomar conduções diariamente para ir e voltar do trabalho. Um pouco antes das oito, passei de carro pela residência de Adam, uma casa nova de três andares com terraço e garagem no piso inferior. As cortinas do quarto dele estavam fechadas, a garrafa de leite ainda aguardava na porta, metade de um Daily Mail estava para fora na caixa de correio. Estacionei a algumas ruas de distância, perto de uma fileira de lojas, e refiz meu caminho. Andei pela rua dele, com a satisfação de até agora estar em sincronia. As cortinas de seu quarto estavam recolhidas, o leite e o jornal tinham ido embora. No final da rua, atravessei para um pequeno parque e sentei-me num banco.

Abri meu próprio Daily Mail e imaginei Adam lendo as mesmas histórias que eu estava olhando sem ver. Mudei de posição de modo que pudesse visualizar a porta de entrada dele sem erguer meu jornal, e pus minha visão periférica em alerta. Às oito e vinte, a porta se abriu conforme o cronograma, e Adam surgiu. De modo casual, dobrei meu jornal, joguei-o na lixeira ao lado do banco e caminhei no encalço dele.

A estação de bonde ficava a menos de dez minutos de distância a pé, e eu estava logo atrás de Adam enquanto ele andava na plataforma lotada. O bonde chegou deslizando na estação momentos mais tarde e ele se adiantou com o fluxo de passageiros. Fiquei ligeiramente atrás e deixei algumas pessoas ficarem entre nós; eu não ia me arriscar.

Ele estava movendo a cabeça enquanto entrou no bonde. Eu sabia exatamente por quê. Quando seus olhos se encontraram, Adam acenou e avançou, contorcendo-se pela multidão de modo que eles pudessem conversar estupidamente por todo o caminho até a cidade. Observei-o enquanto ele se inclinava para a frente. Conhecia todas as expressões do seu rosto, todos os ângulos e gestos de seu corpo esbelto e musculoso. Seus cabelos, os cachinhos na nuca ainda úmida; a pele, rosa e brilhosa por ter feito a barba; o perfume de sua colônia Aramis. Ele riu alto de algo na conversa deles, e senti o gosto amargo da bile subindo na boca. O gosto da traição. Como é que ele tinha coragem? Deveria ser eu falando com ele, animando-lhe o rosto, provocando aquele belo sorriso nos lábios. Se minha firmeza de propósito tivesse por um momento fraquejado, a visão dos dois aproveitando aquele encontro matinal de segunda-feira teria solidificado minha resolução como granito.

Como de costume, ele saiu do bonde em Woolmarket Square. Eu estava a menos de dez metros atrás. Ele se virou para acenar de volta para o seu amor, que logo estaria de luto. Rapidamente virei para o outro lado, fingindo ler o quadro de horários do bonde. A última coisa que queria naquele momento era que ele me notasse, que percebesse que eu estava seguindo de perto seus passos. Esperei alguns segundos, depois retomei a perseguição. Esquerda, na Bellwether Street. Consegui ver seus cabelos escuros se movendo para cima e para baixo entre os funcionários de lojas e escritórios que lotavam as calçadas. Adam pegou um atalho por uma passagem à direita, e eu apareci na Crown Plaza bem a tempo de vê-lo entrar no prédio da Inland Revenue onde ele trabalhava. Contente por aquela ser só mais uma segunda-feira, continuei pela praça, passei pelo baixo e largo prédio comercial de vidro e metal, e entrei nas recém-restauradas arcadas vitorianas do shopping.

Tinha tempo para gastar. O pensamento trouxe um sorriso aos meus lábios.

Saí para fazer algumas pesquisas na Biblioteca Central. Eles não tinham nada novo, então eu me contentei com um velho favorito, Killing for Company. O livro sobre o caso de Dennis Nilsen nunca deixa de me fascinar e repelir ao mesmo tempo. Ele matou quinze homens jovens sem que ninguém jamais sentisse falta deles. As pessoas não tinham a menor ideia de que havia um serial killer de gays perseguindo os sem-teto e os sem raízes. Nilsen se tornou amigo deles, levou-os para casa, mas só podia lidar com eles depois que tivessem se tornado perfeitos na morte. Então, e só então, podia abraçá-los, fazer sexo com eles, tratá-los com carinho. Pois bem, isso é doentio. Esses jovens não tinham feito nada para merecer seu destino; não tinham cometido nenhuma deslealdade, nenhum ato de traição.

O único erro que Nilsen cometeu foi o descarte dos corpos. É quase como se, inconscientemente, ele quisesse ser pego. Cortá-los e cozinhá-los, tudo bem, mas jogá-los no vaso sanitário? Devia ser óbvio para um homem inteligente como ele que o sistema de esgoto sanitário não seria capaz de dar conta daquele volume de sólidos. Nunca entendi por que ele simplesmente não alimentou o cão com a carne.

Contudo, nunca é tarde demais para aprender com os erros dos outros. As mancadas dos assassinos nunca deixam de me surpreender. Não é preciso muita inteligência para compreender como a polícia e os peritos forenses trabalham e tomar as precauções adequadas. Principalmente porque os homens que ganham a vida tentando capturar assassinos escreveram gentilmente manuais detalhados sobre a própria natureza de seu trabalho. Por outro lado, raramente ouvimos sobre os fracassos. Eu sabia que jamais apareceria nesses catálogos de incompetência. Tinha planejado bem demais, cada risco minimizado e equilibrado com os benefícios que traria. O único relato do meu trabalho será este diário, que não verá a tinta da impressora até que meu último suspiro seja uma memória distante. Meu único arrependimento é que não vou estar presente para ler as resenhas.

Eu estava de volta ao meu posto às quatro, muito embora nunca tenha ficado sabendo que Adam deixou o trabalho antes de quinze para as cinco. Sentei-me à janela no Burger King da Woolmarket Square, no lugar perfeito para observar a entrada do beco que levava ao escritório dele. No momento certo, ele surgiu, às quatro e quarenta e sete, e se encaminhou para o ponto do bonde. Juntei-me ao emaranhado de pessoas que aguardavam na plataforma elevada, sorrindo com meus botões enquanto ouvia o apito do bonde a distância. Aproveite a viagem, Adam. Será sua última.


4

 

O fato foi que “gostei” dele e resolvi estrear minha atividade em seu pescoço.

Quando Damien Connolly não apareceu no início do seu turno como policial do serviço local de informações na delegacia da Divisão F, no lado sul da cidade, a sargento de plantão não ficou muito preocupada. Embora o policial Connolly fosse um dos melhores analistas de antecedentes criminais da força, e um policial com treinamento no sistema HOLMES, ele era conhecido por não cumprir horários. Pelo menos duas vezes por semana, entrava com violência pelas portas da delegacia uns bons dez minutos após o início do turno. Contudo, quando ainda não havia chegado meia hora depois, a sargento Claire Bonner sentiu uma pontada de irritação. Mesmo Connolly tinha juízo suficiente para perceber que, se ia se atrasar mais de quinze minutos, precisava ligar. Principalmente hoje, quando o comando da força estava exigindo o comparecimento de todos os oficiais HOLMES na investigação do serial killer.

Suspirando, a sargento Bonner verificou o número do telefone residencial de Connolly em seus arquivos e ligou. O telefone tocou e tocou, até que finalmente a linha foi desconectada automaticamente. Ela sentiu um arrepio de preocupação. Connolly era meio solitário fora do trabalho. Era mais quieto e talvez mais pensativo que a maioria dos policiais no apoio da sargento Bonner; sempre mantinha certa distância quando participava da vida social da delegacia. Pelo tanto que ela sabia, não havia namorada em cuja cama Connolly poderia ter dormido demais. Sua família estava toda em Glasgow, então não adiantava tentar contatar os parentes. Bonner forçou a memória. O dia anterior tinha sido um dia de folga para os substitutos do turno. Quando eles saíram do turno da noite anterior, Connolly viera tomar café da manhã com ela e meia dúzia dos outros rapazes. Ele não tinha dito nada sobre ter planos para seu tempo livre, a não ser recuperar o sono atrasado e trabalhar em seu carro, um velho conversível Austin Healey.

A sargento Bonner foi até a sala de comando e conversou com outro sargento, pedindo-lhe que uma radiopatrulha fosse até a casa de Connolly para verificar se ele não estava doente ou ferido.

— Veja se eles podem checar a garagem, certifique-se de que a porcaria do carro dele não caiu do macaco com ele embaixo — acrescentou enquanto voltava à sua mesa.

Já passava das oito quando o sargento da sala de controle apareceu no escritório de Bonner.

— Os rapazes foram à casa de Connolly. Ninguém respondeu à porta. Eles fizeram uma boa sondagem em volta, e todas as cortinas estavam abertas. Tinha leite na porta. Nenhum sinal de vida até onde eles podiam identificar. Só observaram algo um pouco estranho. O carro estava estacionado na rua, o que não é do feitio dele. Não preciso lhe dizer que ele trata aquele automóvel como as joias da coroa.

A sargento Bonner franziu a testa.

— Talvez alguém estivesse com ele. Um parente ou uma namorada? Talvez ele os tenha deixado colocar seus carros na garagem?

O sargento da sala de comando sacudiu a cabeça.

— Não. Os rapazes olharam pela janela da garagem, e ela estava vazia. E não se esqueça do leite.

A sargento Bonner deu de ombros.

— Não há muito mais que possamos fazer, então, há?

— Bem, ele já passou dos vinte e um. Achei que ele teria juízo suficiente para não entrar na lista de desaparecidos, mas você sabe o que dizem dos mais quietinhos.

A sargento Bonner suspirou.

— Vou arrancar as tripas dele quando ele aparecer. A propósito, pedi a Joey Smith para substituí-lo na função deste turno.

O sargento da sala de comando ergueu os olhos.

— Você sabe mesmo como fazer um homem ganhar o dia, não é? Não podia ter escolhido um dos outros? Smith mal domina o alfabeto.

Antes que a sargento Bonner pudesse discutir longamente o assunto, houve uma batida na porta.

— Sim? — gritou ela. — Entre.

Uma policial da sala de comando entrou com hesitação. Ela parecia ter um leve mal-estar.

— Chefe. — A preocupação em sua voz era óbvia nessa única palavra. — Acho que é melhor dar uma olhada nisto. — Ela segurava uma folha de fax com a extremidade inferior irregular onde tinha sido rasgada apressadamente do rolo.

Por estar mais perto, o sargento da sala de comando pegou a folha frágil e a olhou. Ele inspirou com força, depois fechou os olhos por um momento. Sem dizer nada, entregou o fax à sargento Bonner.

A princípio, tudo que ela viu foi o preto e branco nítido da fotografia. Por um momento, e com a proteção automática do horror que sua mente produzia, ela se perguntou por que alguém tinha passado por cima dela e comunicado o desaparecimento de Connolly. Depois, seus olhos converteram as marcas no papel em palavras.

“Fax urgente para todos os postos policiais. Esta é a vítima de assassinato não identificada descoberta ontem à tarde no pátio do pub Queen of Hearts, Temple Fields, Bradfield. Fotografia ainda na tarde de hoje. Favor circular e divulgar. Quaisquer informações ao detetive-inspetor Kevin Matthews na sala de ocorrências da Scargill Street, ramal 2456.”

A sargento Bonner olhava desolada para os outros dois policiais.

— Não há nenhuma dúvida, há?

A policial olhou para o chão, sua pele estava pálida e viscosa.

— Acho que não, chefe — disse ela. — É Connolly. Digo, não é propriamente um bom retrato, mas com certeza é ele.

O sargento da sala de comando pegou o fax.

— Vou contatar o detetive-inspetor Matthews imediatamente — avisou ele.

A sargento Bonner empurrou a cadeira para trás e se levantou.

— É melhor eu ir ao necrotério. Eles vão precisar de uma identificação formal o mais rápido possível para que possam avançar na investigação.

• • •

— Isso muda todo o jogo — constatou Tony, com o rosto sombrio.

— Certamente aumenta os riscos — disse Carol.

— A pergunta que me faço é se o Faz-tudo sabia que estava nos dando um policial — disse Tony baixinho, girando em sua cadeira para olhar pela janela os telhados da cidade.

— O quê?

Ele deu um sorriso torto e disse:

— Não, sou eu que tenho de me desculpar. Sempre lhes dou apelidos. Torna as coisas pessoais.

Ele girou de volta para encarar Carol.

— Isso incomoda você?

Carol negou com um aceno de cabeça.

— É melhor que o apelido da delegacia.

— Que é? — perguntou Tony, com as sobrancelhas erguidas.

— Assassino de Bonecas — respondeu Carol, com visível aversão.

— Isso levanta muitas questões — observou Tony, sem revelar sua opinião. — Mas, se os ajuda a lidar com o medo e a raiva, provavelmente não é uma coisa ruim.

— Eu não gosto. Não me parece pessoal chamá-lo de Assassino de Bonecas.

— O que parece pessoal para você? O fato de que ele pegou um dos seus agora?

— Já me sentia assim. Logo que houve o segundo assassinato, o que estava sob minha responsabilidade, eu estava convencida de que estávamos lidando com um criminoso em série. Foi quando se tornou pessoal para mim. Quero pegar esse canalha. Preciso. Profissionalmente, pessoalmente, tanto faz.

A veemência desapaixonada na voz de Carol deu confiança a Tony. Essa era uma mulher que ia mover céus e terra para se certificar de que ele tinha o que precisava para fazer seu trabalho. O tom de voz e as palavras que tinha escolhido eram também um desafio calculado, mostrando-lhe que ela não dava a mínima sobre o que ele pensava acerca de seu desejo. Ela era exatamente o que ele precisava. Profissionalmente, pelo menos.

— Não apenas você, como eu também — disse Tony. — E, juntos, podemos fazer isso acontecer. Mas apenas juntos. Sabe, na primeira vez que me envolvi diretamente com a criação de perfis criminais, era um incendiário em série. Depois de meia dúzia de grandes incêndios, eu sabia como ele fazia, por que fazia, o que lhe interessava nisso. Sabia exatamente o tipo de canalha maluco que ele era, e ainda assim eu não podia atribuir-lhe um nome ou um rosto. Por um tempo, a frustração me deixou maluco. Depois, percebi que não era meu trabalho fazer isso. Esse é o seu trabalho. Tudo que posso fazer é lhe apontar a direção certa.

Carol sorriu com gravidade.

— Basta apontar, e vou estar atrás dele como um cão de caça — disse ela. — Quando falou que se perguntava se ele sabia que Damien Connolly era um policial, o que quis dizer?

Tony passou a mão pelos cabelos, deixando-os espetados como os de um punk.

— Muito bem. Temos duas hipóteses aqui. O Faz-tudo podia não saber que Damien Connolly era um policial. Pode não ser mais que uma coincidência, uma coincidência particularmente desagradável para seus colegas, mas ainda assim uma coincidência. Essa não é uma hipótese com que eu esteja satisfeito, contudo, porque a minha interpretação, baseada no pouco que sei até agora, é que essas não são vítimas aleatórias selecionadas ao acaso. Acho que ele as escolhe com cuidado, e planeja em detalhes. Você concorda com isso?

— Ele não deixa as coisas ao sabor do acaso, isso é óbvio — disse Carol.

— Exato. A alternativa é que o Faz-tudo sabe muito bem que sua quarta vítima é um policial. Essa hipótese leva a duas outras possibilidades. A primeira: ele sabia que tinha matado um policial, mas esse fato é absolutamente irrelevante para o significado do assassinato para ele. Em outras palavras, Damien Connolly cumpria todos os outros critérios que o Faz-tudo precisava em suas vítimas, e ele teria morrido naquele momento quer fosse um policial ou motorista de ônibus. A outra hipótese é a de que gosto mais, porém: o fato de que Damien era policial é parte crucial do motivo pelo qual ele o escolheu como sua quarta vítima.

— Você quer dizer que ele está fazendo pouco caso da gente? — perguntou Carol.

Graças a Deus ela era rápida. Isso simplificaria muito o trabalho. Ela havia se saído bem na carreira, já que não lhe faltava aparência nem cérebro. Qualquer dos atributos isolado teria facilitado a promoção.

— Isso certamente é uma possibilidade — reconheceu Tony. — Mas acho que é mais provável que seja uma questão de vaidade. Acho que ele começou a ficar de saco cheio com a recusa do detetive-superintendente Cross em reconhecer sua existência. Aos seus próprios olhos, ele é muito bem-sucedido no que faz. Ele é o melhor. E merece reconhecimento. E esse desejo de reconhecimento foi contrariado pela recusa da polícia em admitir que há apenas um criminoso por trás desses homicídios. Tudo bem, o Sentinel Times vem especulando sobre um serial killer desde a segunda vítima, mas isso não é o mesmo que receber a glória oficial pela própria polícia. E eu posso ter posto lenha na fogueira, sem querer, depois do terceiro homicídio.

— Com a entrevista que deu ao Sentinel Times?

— É. Minha sugestão de que era possível que houvesse dois assassinos trabalhando pode tê-lo deixado com raiva por não estar sendo reconhecido como um mestre de sua arte.

— Meu Deus — disse Carol, dividida entre a repulsa e o fascínio. — Então ele passou a perseguir um policial para que o levássemos a sério?

— É uma possibilidade. É claro, não podia ser qualquer policial. Muito embora dar seu recado aos figurões seja importante para o Faz-tudo, a principal diretriz ainda é tentar encontrar vítimas que cumpram seus critérios personalíssimos.

Carol franziu a testa.

— Então você está dizendo que há algo em Connolly que o torna diferente da maioria dos outros policiais?

— Parece que sim.

— Talvez seja a questão da sexualidade — refletiu Carol. — Digo, não há muitos homossexuais na força. E os que são gays estão tão no armário que daria para confundi-los com um cabide.

— Calma aí. — Tony riu, levantando as mãos, como se ela fosse atacá-lo, e ele estivesse se defendendo. — Nada de teorizar sem dados. Não sabemos ainda se Damien era gay. O que pode ser útil, porém, é descobrir em que turnos Damien trabalhou recentemente. Digamos, nos últimos dois meses. Isso nos dará uma ideia dos horários em que ele estava em casa, o que pode ajudar os policiais que vão interrogar os vizinhos. Além disso, devíamos fazer perguntas aos policiais do turno dele para verificar se sempre ficava sozinho ou se já deu carona até em casa a alguém. Precisamos descobrir tudo que há para saber sobre Damien Connolly tanto como homem quanto como policial.

Carol sacou seu caderno e escreveu um lembrete para si mesma.

— Turnos — murmurou.

— Há algo mais que isso pode nos dizer sobre o assassino — disse Tony devagar, organizando as ideias que surgiam em sua mente.

Carol olhou para cima, com os olhos atentos.

— Prossiga.

— Ele é muito bom no que faz — constatou Tony, sem emoção. — Pense bem. Um policial é um observador treinado. Mesmo o cara mais lerdo é muito mais alerta sobre o que está acontecendo à sua volta que a média das pessoas comuns. Pois bem, pelo que você me contou, Damien Connolly era um sujeito esperto. Era analista de antecedentes criminais, o que significa que era ainda mais atento que a maioria dos policiais. Ao meu ver, o trabalho de um analista de antecedentes criminais é funcionar como uma enciclopédia ambulante da delegacia. Ter todas as informações locais sobre criminosos conhecidos e detalhes sobre o modus operandi em fichas de arquivo é muito bom. Mas se o analista não for esperto, então o sistema não tem nenhum valor, não é assim?

— Na mosca. Um bom analista vale meia dúzia de corpos no chão — concordou Carol. — E de acordo com todos os relatos, Connolly era um dos melhores.

Tony se reclinou na cadeira.

— Então se o Faz-tudo perseguiu Damien sem deixar soar nenhum alarme, ele tem que ser muito bom. Pense, Carol, se alguém estivesse continuamente lhe perseguindo, você ia perceber, não ia?

— Espero que sim — respondeu Carol, secamente. — Mas sou mulher. Talvez sejamos um pouquinho mais alertas que os homens.

Tony sacudiu a cabeça negativamente.

— Acho que um policial esperto como Damien teria notado qualquer coisa a não ser que fosse um perseguidor muito profissional.

— Você quer dizer que talvez estejamos procurando alguém da polícia? — indagou Carol, com a voz subindo de tom enquanto dizia o impensável.

— É uma possibilidade. Não posso defendê-la com mais ênfase até que tenha visto todas as provas. É isso aqui? — perguntou Tony, com um gesto para a caixa de papelão que Carol depositara ao lado da porta de seu escritório.

— Parcialmente. Tem outra caixa e outras pastas de fotografias ainda no carro. E isso depois de muita edição.

Tony fez uma careta.

— Antes você do que eu. Vamos lá pegar, então?

Carol se levantou.

— Por que não começa enquanto eu vou pegar o resto?

— Quero ver as fotografias primeiro, então posso ir e ajudar — disse ele.

— Obrigada — agradeceu Carol.

No elevador, eles ficaram em lados opostos, ambos conscientes da presença física um do outro.

— Esse seu sotaque não é de Bradfield — comentou Tony quando as portas se fecharam. Se quisesse ser bem-sucedido no trabalho com Carol Jordan, ele precisava saber o que a levava a agir como agia, tanto pessoal quanto profissionalmente. Quanto mais coisas pudesse descobrir sobre ela, melhor.

— Achei que tinha deixado o trabalho de detetive com a gente?

— Nós, psicólogos, somos bons em afirmar o óbvio. Não é isso que nossos críticos na força dizem?

— Touché. Sou de Warwick. Estudei na Universidade em Manchester e depois emendei na Polícia Metropolitana de Londres. E você? Não sou boa com sotaques, mas consigo identificar quem é do norte, embora você também não pareça de Bradfield — respondeu Carol.

— Nascido e criado em Halifax. Universidade de Londres, em seguida doutorado em Filosofia em Oxford. Oito anos em hospitais especiais. Dezoito meses atrás, o Ministério do Interior me contratou para fazer esse estudo de viabilidade.

Dar um pouco para receber muito, quem mesmo estava sondando quem?

— Então somos dois forasteiros — concluiu Carol.

— Talvez tenha sido por isso que John Brandon escolheu você para estabelecer essa ligação comigo.

As portas do elevador se abriram e eles caminharam pelo estacionamento subterrâneo até a parte de carros de visitantes, onde Carol havia deixado seu carro. Tony levantou a caixa de papelão do porta-malas.

— Você deve ser mais forte do que parece — disse, respirando com esforço.

Carol pegou as pastas de fotografias e sorriu.

— E sou faixa preta em jogar Detetive — disse ela.

— Escute, Tony, se esse maníaco estiver na polícia, que tipo de coisa esperaria encontrar?

— Não devia ter dito isso. Estava teorizando antes de ter acesso aos dados, e não quero que dê a isso nenhuma importância, está bem? Apague isso da memória — arfou Tony.

— Tudo bem, mas quais seriam os sinais? — insistiu ela.

Eles estavam de volta ao elevador antes que Tony a tivesse respondido.

— Um comportamento que exibe familiaridade com a polícia e o procedimento forense — explicou ele. — Mas, sozinho, isso não prova nada. Há tantos detetives realistas nos livros e na TV hoje em dia que qualquer um poderia saber esse tipo de coisa. Olhe, Carol, por favor, tire isso da sua cabeça. Precisamos manter a mente aberta. Caso contrário, o trabalho que fazemos não tem valor.

Carol suprimiu um suspiro.

— Tudo bem. Mas vai me contar se ainda pensa assim depois que tiver visto os indícios? Porque, se for mais do que uma possibilidade remota, talvez precisemos repensar a forma como lidamos com a investigação.

— Prometo que sim — disse ele. As portas do elevador se abriram, como se estivessem colocando seu próprio ponto final na conversa.

De volta ao escritório, Tony retirou o primeiro grupo de fotografias das pastas.

— Antes de começar, poderia me informar como você gostaria de proceder? — perguntou Carol, pronta para fazer anotações.

— Primeiro, analiso as fotos, depois pedirei que me atualize quanto à investigação até agora. Quando tivermos feito isso, analisarei os papéis eu mesmo. Depois disso, o que geralmente faço é traçar um perfil de cada uma das vítimas. Depois temos outra sessão com isso — disse ele, brandindo seus formulários. — E, em seguida, eu ando na corda bamba e estabeleço um perfil do criminoso. Isso parece sensato para você?

— Parece ótimo. Quanto tempo é provável que leve?

Tony franziu a testa.

— É difícil dizer. Alguns dias, com certeza. Porém, o Faz-tudo parece trabalhar num ciclo de oito semanas, e não há sinal de que ele esteja acelerando. Só isso já é incomum, a propósito. Depois que eu tiver estudado o material, terei uma ideia melhor de quanto ele está no controle, mas acho que provavelmente temos algum tempo antes que ele mate de novo. Tendo isso em conta, ele pode já ter selecionado sua próxima vítima, então temos de nos certificar de manter qualquer progresso que fizermos longe da imprensa. A última coisa que queremos é ser o estopim para ele agilizar o processo.

Carol resmungou.

— Você é sempre assim tão otimista?

— Faz parte. Ah, e mais uma coisa: se você encontrar qualquer suspeito, prefiro não saber nada sobre ele por enquanto. Há uma possibilidade de que meu subconsciente altere o perfil para se adequar.

Carol bufou.

— Quem dera.

— Ruim assim, é?

— Ah, detivemos todos que tinham um histórico de abuso sexual ou crimes violentos contra gays, mas nenhum deles parece nem uma possibilidade remota.

Tony fez uma cara de solidariedade, depois pegou as fotografias do cadáver de Adam Scott e passou lentamente a analisá-las. Puxou uma caneta e o bloco A4 para perto de si. Olhou para Carol.

— Café? — perguntou ele. — Queria ter perguntado antes, mas estava muito interessado no que estávamos falando.

Carol se sentiu como parte de uma conspiração. Ela vinha gostando da conversa deles também, embora com uma pontada de culpa porque múltiplos assassinatos não deviam ser uma fonte de prazer. Conversar com Tony era como falar com alguém semelhante a ela, que não escondia o jogo, e cuja principal preocupação era encontrar um caminho até a verdade, não uma forma de alimentar o ego. Era algo que ela sentira falta nesse caso até então.

— Eu também — admitiu. — Estou provavelmente chegando ao estágio onde o café é uma necessidade. Quer que eu vá pegar um pouco?

— Ah, meu Deus, não! — Tony riu. — Não é para isso que você está aqui. Espere aqui, já volto. Como gosta do seu?

— Puro, sem açúcar. Direto na veia, de preferência.

Tony pegou uma garrafa térmica grande no seu armário de arquivos e desapareceu. Ele estava de volta cinco minutos depois, com duas canecas de onde saía fumaça e a garrafa térmica. Ele entregou a Carol uma das canecas e fez um gesto em direção à garrafa.

— Está cheia. Imagino que vamos ficar por aqui algum tempo. Sirva-se como e quando quiser.

Carol tomou um gole, grata.

— Quer se casar comigo? — perguntou ela, num romantismo fingido.

Tony riu novamente, para esconder a súbita apreensão que lhe revolveu o estômago, uma resposta familiar mesmo ao flerte mais desinteressado.

— Você não vai dizer isso em alguns dias — respondeu ele, evasivo, voltando sua atenção às fotografias.

— Vítima número um: Adam Scott — disse ele baixinho, fazendo uma anotação no bloco. Tony analisava as fotografias uma de cada vez, depois voltava ao começo. A primeira imagem mostrava uma praça urbana, casas georgianas altas de um lado, um prédio de escritórios moderno no outro e uma fileira de lojas, bares e restaurantes no terceiro. No centro da praça ficava um jardim público, cortado por dois caminhos diagonais. No meio havia uma fonte vitoriana decorada com água potável. O parque era cercado por um muro de tijolos de noventa centímetros de altura. Ao longo dos dois lados do jardim havia arbustos cerrados. O ambiente era levemente gasto, a argamassa das casas descascando aqui e ali. Ele se imaginava de pé na esquina, assimilando a vista, inalando o ar urbano esfumaçado misturado com o fedor de álcool e lanches rápidos bolorentos, ouvindo os sons noturnos. O giro dos motores, o som dos saltos altos nas calçadas, risadas ocasionais e gritos transportados pelo vento, o chilrear de estorninhos, acordados pela luz de sódio dos postes de iluminação. Onde você ficou, Faz-tudo? De onde observava seu objeto de estudo? O que viu? O que ouviu? O que sentiu? Por que aqui?

A segunda imagem mostrava uma parte do muro e os arbustos do lado da rua. A fotografia era nítida o bastante para Tony identificar os pequenos quadrados de ferro na parte de cima do muro, que foi tudo que restou dos trilhos que presumivelmente foram removidos durante a guerra para construir armas e projéteis. Uma parte dos arbustos mostrava galhos quebrados e folhas esmagadas. A terceira foto exibia o corpo de um homem, com o rosto para baixo na terra, os membros estirados em ângulos estranhos. Tony se deixou atrair pela fotografia, tentando se colocar no papel de Faz-tudo. Como se sentiu? Estava orgulhoso? Estava com medo? Estava exultante? Sentiu um espasmo de arrependimento ao abandonar o objeto de seu desejo? Por quanto tempo ele se permitiu absorver essa visão, esse estranho quadro que criara? O som dos passos lhe fez se mover? Ou não se importou com isso?

Tony levantou o olhar. Carol estava olhando para ele. Para sua surpresa, desta vez não se sentiu desconfortável em ter os olhos de uma mulher sobre si. Talvez porque o relacionamento entre eles tivesse uma base profissional muito firme, mas sem competição direta. A tensão nele se relaxou um pouco.

— O lugar onde o corpo foi encontrado. Conte-me a respeito.

— Crompton Gardens. Fica no centro de Temple Fields, onde o bairro gay e o distrito de prostituição se encontram. É mal-iluminado à noite, principalmente porque os postes de iluminação estão sempre sofrendo a ação dos michês que querem um pouco de escuridão para encobrir suas atividades. Muito sexo acontece em Crompton Gardens, nos arbustos e nos bancos da praça, debaixo das árvores, nas entradas dos escritórios, nos porões das casas. Aluguel, prostituição e encontros casuais. Há movimento de pessoas durante toda a noite, mas eles não são do tipo que se apresentariam para falar sobre algo incomum que podem ter visto, mesmo que tenham notado — explicava Carol, enquanto Tony tomava notas.

— O clima — perguntou ele.

— Noite sem chuva, embora o chão estivesse bem úmido.

Tony voltou às fotografias. O corpo havia sido fotografado de vários ângulos. Em seguida, depois da remoção do cadáver, o local de descarte foi fotografado em close-up. Não havia pegadas visíveis, mas algumas tiras de plástico preto estavam debaixo do corpo. Ele apontou para elas com a ponta da caneta.

— Sabemos o que são esses plásticos?

— Sacos de lixo do Bradfield Metropolitan Council. Padrão para empresas, blocos de apartamentos... Onde quer que latas de lixo com rodas sejam inadequadas. Esse tipo de saco plástico está em uso pelos últimos dois anos. Não há aparentemente nada que indique se eles já estavam lá ou se foram descartados ao mesmo tempo que o corpo — explicou Carol.

Tony ergueu as sobrancelhas.

— Você parece ter assimilado um bocado de detalhes desde ontem à tarde.

Carol sorriu.

— É tentador fingir que sou a Mulher-Maravilha, mas preciso confessar que me esforcei para descobrir o que podia sobre as outras duas investigações. Estava convencida de que havia um vínculo entre os crimes, mesmo que meu chefe não estivesse. E, justiça seja feita aos meus colegas, os inspetores responsáveis pelas outras duas investigações tinham a mente aberta. Eles não se opunham a que eu fizesse uma análise nos assuntos sob responsabilidade deles. Rever todo o material durante a noite apenas refrescou minha memória, só isso.

— Você passou a noite em claro?

— Como você disse, faz parte. Vou estar bem até as quatro da tarde. Aí o sono vai bater em mim como uma marreta — admitiu.

— Mensagem recebida e entendida — respondeu Tony, voltando às fotografias.

Ele passou às séries de fotos da autópsia. O corpo jazia de costas na chapa branca, as feridas horrendas visíveis pela primeira vez. Tony prosseguiu devagar por toda a sequência de imagens, às vezes retornando às fotos anteriores. Quando fechava os olhos, conseguia visualizar o corpo intacto de Adam Scott, fragmentando-se devagar em feridas e hematomas como flores exóticas. Ele quase podia invocar a visão em câmera lenta das mãos que trouxeram a carne a esse estágio. Depois de alguns momentos, ele abriu os olhos e falou novamente.

— E quanto a esses hematomas no pescoço e no peito, o que foi que o patologista disse?

— Marcas de sucção. Como chupões, mordidas de amor.

Uma paródia bizarra e predatória do amor, que faz cabeças rolarem.

— E estas partes do pescoço e do peito. Três partes onde pedaços de carne foram retirados? — perguntou Tony, distanciado.

— Eles foram removidos depois da morte. Talvez ele goste de comê-los?

— Talvez — ponderou Tony, em dúvida. — Havia algum vestígio de hematomas nos tecidos remanescentes de que você se lembre?

— Acho que havia — disse Carol, com clara surpresa em sua voz.

Tony acenou com a cabeça.

— Vou checar com o laudo do patologista. Ele é um sujeito esperto, nosso Faz-tudo. Meu primeiro palpite é que não são suvenires nem sinais de canibalismo. Acho que podem ser lugares onde houve mordidas. Mas ele sabe o bastante sobre odontologia forense para perceber que marcas de mordida identificáveis seriam suficientes para identificá-lo. Então, depois de passado o frenesi, ele se acalmou e removeu os indícios. Esses cortes nos genitais: antes ou depois da morte?

— Depois. Segundo o patologista, eles pareciam bastante experimentais.

Tony deu um pequeno sorriso de satisfação.

— Ele disse o que causou o trauma nos membros? As fotos na cena do crime parecem de uma boneca de pano.

Carol suspirou.

— Ele não queria ser forçado a uma conclusão oficial. Pernas e braços foram deslocados, e algumas das vértebras estavam fora de alinhamento. Ele disse... — Ela fez uma pausa e imitou a declaração pomposa: “Não conte que lhe disse isso, mas esperaria ver ferimentos como esse depois de alguém ter sido colocado no potro pela Inquisição Espanhola.”

— O potro? Merda, estamos lidando com uma mente doentia de verdade. Tudo bem. Próximo conjunto de fotos. Paul Gibbs. Esse é o seu, não é?

Tony perguntou enquanto substituía as fotografias de Adam Scott e retirava o conteúdo da segunda pasta. Ele repetiu o processo que tinha realizado antes.

— Então, onde está esta cena em relação à primeira? — perguntou Tony.

— Espere um minuto. Vou lhe mostrar.

Carol abriu uma das caixas e pegou o mapa em grande escala que tinha levado. Ela o desdobrou e esticou no chão, enquanto Tony se levantava da escrivaninha e se agachava ao lado dela. Ela notou instantaneamente o cheiro dele, uma mistura de xampu e seu leve odor animal. Nenhum pós-barba masculino, nenhum perfume. Ela observou suas mãos quadradas e brancas no mapa, os dedos, curtos e quase grossos demais, com suas unhas bem-cortadas e uma escassa camada de finos pelos negros na falange. Perplexa, ela sentiu uma onda de desejo. Você é patética como uma adolescente, repreendeu-se brutalmente. Como uma adolescente que fica a fim do primeiro professor que diz algo gentil sobre seu trabalho. Cresça, Jordan!

Com a desculpa de apontar locais no mapa, Carol se afastou.

— Crompton Gardens fica aqui — explicou ela. — Canal Street fica cerca de oitocentos metros de distância, nesse ponto. E o pub Queen of Hearts fica aqui, a meio caminho entre os dois.

— Podemos presumir que ele conhecia bem a área — disse Tony, fazendo seu próprio mapa mental dos locais onde os corpos foram encontrados.

— Acho que sim. Crompton Gardens é um lugar de desova bem óbvio, mas os outros dois implicam um alto nível de familiaridade com Temple Fields.

Carol ajoelhou-se e se sentou sobre seus calcanhares, tentando descobrir se a configuração de locais implicava uma abordagem numa direção específica.

— Preciso dar uma olhada nas cenas dos crimes. Preferivelmente por volta dos horários em que os corpos foram descartados. Sabemos quando isso ocorreu? — perguntou Tony.

— Não sabemos no caso de Adam. O horário estimado de morte é entre onze da noite e uma da manhã, não antes que isso. Com Paul, sabemos que não havia nada na entrada um pouco depois das três da madrugada. A hora da morte de Gareth é estimada entre sete e dez da noite anterior à descoberta do corpo. E com Damien, o pátio estava limpo às onze e meia — recitou Carol, fechando os olhos para lembrar as informações.

Tony flagrou-se olhando fixamente para o rosto dela, feliz pela liberdade que as pálpebras fechadas lhe davam. Mesmo sem a animação de seus olhos azuis, ele conseguia ver que era bonita. Rosto oval, testa larga, pele branca sem marcas, e aqueles cabelos louros volumosos, de corte ligeiramente longo e desgrenhado. Uma boca forte e determinada. Linhas profundas que apareciam em sua testa quando ela se concentrava. E sua apreciação era tão clínica como se ela fosse uma fotografia num arquivo de um de seus casos. Por que algo sempre se fechava nele quando se deparava com uma mulher que qualquer homem normal consideraria atraente? Seria porque ele se recusava a sentir as primeiras sensações que poderiam levá-lo a um lugar onde não estivesse mais no controle, onde a humilhação o espreitasse? Os olhos de Carol se abriram, registrando surpresa quando ela percebeu que ele a observava.

Ele se voltou para o mapa ao sentir as orelhas formigarem e ficarem vermelhas.

— Então ele é um notívago — concluiu Tony de modo abrupto. — Eu gostaria de dar uma olhada na área hoje à noite, se puder. Talvez você possa arranjar outra pessoa para me mostrar os arredores para ver se recupera o sono perdido.

Carol negou com a cabeça.

— Não. Se conseguirmos chegar aqui até as cinco, vou para casa e tiro algumas horinhas de sono. Pego você por volta da meia-noite e podemos ir. Tudo bem? — perguntou ela, com certo atraso.

— Ótimo — concordou Tony, levantando-se e retornando para trás da escrivaninha. — Desde que não se incomode.

Ele pegou as fotografias e se esforçou para enxergar com os olhos do Faz-tudo.

— Ele deixou este aqui em frangalhos, não foi?

— Paul foi o único que foi espancado assim. Gareth tinha cortes no rosto, mas nada extremo. O rosto de Paul foi esmagado até virar uma polpa, nariz quebrado, dentes quebrados, zigomas quebrados, maxilar deslocado. Os ferimentos anais também são horrendos; ele foi parcialmente estripado. O grau de violência é um dos motivos pelos quais o superintendente achou que estávamos lidando com um criminoso diferente. Além disso, nenhum de seus membros foi deslocado, como ocorreu com os outros três.

— Foi este que os jornais disseram que estava coberto de sacos de lixo?

Carol fez que sim.

— Do mesmo tipo que as tiras encontradas sob o corpo de Adam.

Passaram a analisar Gareth Finnegan.

— Vou precisar pensar bastante neste daqui. — alertou ele. — Ele mudou seu padrão em pelo menos duas formas importantes. Primeiro, o local de descarte mudou de Temple Fields para o Carlton Park. Ainda é uma área de público gay, mas é uma aberração.

Ele se interrompeu e deu uma risada vazia.

— Olha só o que estou dizendo. Como se todo esse comportamento não fosse uma brutal aberração. A segunda coisa é sua carta e vídeo para o Sentinel Times. Por que ele decidiu anunciar este corpo e nenhum dos outros?

— Venho pensando nisso — disse Carol. — E me pergunto se teve algo a ver com o fato de que o cadáver poderia ter ficado lá por dias, mesmo semanas, caso não o fizesse.

Tony fez uma anotação em seu bloco e fez um gesto positivo para ela com a outra mão.

— Essas feridas nas mãos e nos pés. Sei que pode soar absurdo, mas por pouco não se parece com uma crucificação.

— O patologista também não estava muito disposto a declarar isso. Mas as feridas na mão, junto com o deslocamento dos dois ombros, torna difícil ignorar uma conclusão como a crucificação, especialmente ao pensarmos que isso provavelmente aconteceu no dia de Natal.

Carol se levantou, limpando os olhos. Ela não conseguiu reprimir um bocejo que forçou seu maxilar a se abrir. Ela ia e vinha pelo pequeno escritório, mexendo os ombros para soltar os músculos endurecidos.

— Canalha doente — murmurava.

— As mutilações dos genitais estão ficando mais severas — observou Tony. — Ele praticamente castrou este aqui. E as feridas fatais, os cortes na garganta, estão ficando mais profundos também.

— E isso nos diz alguma coisa? — perguntou Carol, quase ininteligível no meio de outro bocejo.

— Assim como o seu patologista, estou relutante em especular ainda — disse Tony. Ele passou para o grupo final de fotografias. Pela primeira vez, Carol viu sua máscara profissional cair. O horror tomou o rosto de Tony, arregalando seus olhos, puxando seus lábios para trás em uma inspiração sibilante. Ela não estava surpresa. Quando trouxeram Damien Connolly, um detetive jogador de rúgbi de um metro e oitenta e três tinha despencado no chão, desmaiado. Até o experiente patologista policial tinha desviado o rosto por um momento, lutando visivelmente para não vomitar.

A rigidez cadavérica tinha congelado os membros de Connolly numa paródia dos movimentos humanos. As juntas deslocadas se projetavam em ângulos esquisitos. Mas havia mais, e muito pior. O pênis tinha sido cortado e enfiado em sua boca. O torso estava marcado do peito à virilha numa padronagem bizarra e aleatória de queimaduras, como raios que lembravam a iluminação provocada pela explosão de uma estrela, nenhuma distante mais do que um centímetro.

— Santo Deus — suspirou Tony.

— Ele realmente está pegando o jeito dessa coisa, hein? — lamentou Carol, com amargura. — Tem orgulho do próprio trabalho, não é?

Tony nada disse, forçando-se a estudar as fotografias estarrecedoras com o mesmo nível de detalhe que os conjuntos de fotos anteriores.

— Carol — chamou ele, por fim. — Alguém já apresentou alguma teoria quanto ao que o assassino tem usado para fazer essas marcas de queimadura?

— Nenhuma.

— Elas são estranhas — observou ele. — O padrão varia. Não se trata de um objeto aleatório que ele usa e continua usando. Há pelo menos cinco formas diferentes. Você tem alguém que possa fazer análise estatística para reconhecimento de padrão? Para ver se há alguma mensagem oculta aqui? Deve haver dúzias dessas malditas queimaduras!

Carol esfregou novamente os olhos.

— Não sei. Eu e os computadores somos tão compatíveis quanto o príncipe Charles e a princesa Diana. Vou perguntar quando voltar ao escritório. E se não tivermos ninguém, pedirei ao meu irmão.

— Seu irmão?

— Michael é um gênio dos computadores. Ele trabalha com desenvolvimento de softwares de jogos. Se quer um padrão analisado, manipulado, transformado num jogo de tiro em primeira pessoa, é dele que precisa.

— E ele consegue manter a boca fechada?

— Se não conseguisse, não poderia fazer o trabalho que faz. Milhões de libras dependem de sua empresa avançar antes que as outras. Acredite em mim, ele sabe ficar calado.

Tony sorriu.

— Eu não queria ofender.

— Não ofendeu.

Tony suspirou.

— Quisera Deus que eu tivesse chegado antes nisso. O Faz-tudo não vai parar por aqui. Ele está apaixonado demais pelo próprio trabalho. Veja essas fotos. Esse canalha vai continuar capturando, torturando e matando até que o peguemos. Carol, esse sujeito está fazendo do assassinato uma carreira.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 005

Subi pelo caminho com confiança e apertei a campainha de Adam. Nos segundos anteriores a ele atender a porta, transformei meu rosto no que acreditava ser um sorriso de desculpas. Eu conseguia ver o contorno indistinto de sua cabeça e ombros enquanto ele andava pelo corredor. Depois a porta se abriu e estávamos frente a frente. Ele deu um meio sorriso confuso, como se nunca tivesse reparado em mim antes na vida.

— Desculpe-me por incomodá-lo — disse eu. — É só que meu carro enguiçou, e não sei onde tem um telefone público, então queria saber se podia usar o seu telefone para ligar para a seguradora. Eu pago a ligação, é claro... — Deixei minha voz se enfraquecer até sumir.

Seu sorriso se tornou mais amplo e relaxado; seus olhos intensos se enrugaram no canto dos olhos.

— Sem problema. Entre.

Ele deu um passo para trás, e eu entrei enquanto ele fazia um gesto apontando o final do corredor.

— Tem um telefone no escritório. Logo à direita.

Movi-me devagar pelo corredor, com os ouvidos alertas ao som da porta se fechando atrás de mim. Quando a tranca voltou ao seu lugar com um clique, ele acrescentou:

— Não tem nada pior que isso, né?

— Vou só procurar o número — avisei, parando na entrada para vasculhar minha mochila. Adam continuou andando, de modo que, quando puxei o spray de autodefesa, ele estava a apenas alguns passos de distância. Não poderia ter sido mais perfeito. Acertei-o em cheio no rosto.

Ele rugiu de dor e cambaleou para trás contra a parede, com as mãos como garras no rosto. Comecei rapidamente: um pé entre seus calcanhares, mãos nos ombros, um giro rápido e lá se foi ele para baixo, com o rosto pressionado no tapete, tentando respirar. Eu estava sobre ele em segundos, agarrando seu pulso e torcendo seu braço sobre as costas enquanto fechava as algemas nele. Ele lutava contra mim nessa hora, com lágrimas correndo pelo rosto, mas consegui agarrar seu outro braço que estava solto, fechando a outra ponta das algemas.

As pernas dele se debatiam debaixo de mim, mas meu peso foi suficiente para mantê-lo preso ao chão enquanto eu pegava um saco plástico Ziplock na minha mochila. Eu o abri, extraí um chumaço de algodão ensopado em clorofórmio e prendi sobre seu nariz e boca. O odor nauseante flutuou até minhas narinas, fazendo com que eu sentisse um pouco de tontura e enjoo. Esperava que o clorofórmio não estivesse deteriorado; tinha a garrafa há alguns anos, desde que a roubei do depósito de remédios de um navio soviético onde passara a noite com o imediato.

Adam lutou com ainda mais vigor quando sentiu o algodão frio impedir seu acesso ao ar, mas dentro de minutos suas pernas cessaram todo aquele agito inútil. Esperei um pouco mais, só para garantir, depois me virei e prendi suas pernas uma na outra com esparadrapo. Retornei o algodão com clorofórmio para seu recipiente seguro, depois tampei a boca de Adam com o esparadrapo.

Levantei-me e respirei fundo. Até agora, tudo tinha ido bem. Em seguida, coloquei um par de luvas de látex e reavaliei minha situação. Conheço a teoria do cientista forense Edmond Locard, demonstrada pela primeira vez num julgamento de homicídio em 1912, dando conta de que cada contato deixa um rastro; um criminoso sempre tira algo da cena do crime e deixa algo para trás. Com isso em mente, eu escolhera cuidadosamente meu vestuário para a ocasião. Estava de calças jeans Levi’s 501, a mesma marca que vira Adam usar com frequência. Completei o visual com um suéter claro folgado de gola V, a cópia exata daquele que o tinha visto comprar na Marks & Spencer algumas semanas antes. Qualquer fibra solta que eu deixasse para trás seria inevitavelmente atribuída ao conteúdo do próprio guarda-roupa de Adam.

Dei uma rápida olhada em volta do escritório, pausando ao lado da secretária eletrônica. Era do tipo antigo, com uma única fita cassete. Abri a máquina e fiquei com a fita; seria bom ter uma lembrança da voz dele soando normal. Eu sabia que a trilha sonora no vídeo não teria esse mesmo tom descontraído.

A porta da garagem estava trancada. Tratei de subir as escadas, onde encontrei o paletó de seu terno jogado sobre as costas de uma cadeira na cozinha. O molho de chaves estava no bolso esquerdo. De volta ao piso inferior, abri a porta da garagem e destranquei a mala de seu Ford Escort de dois anos. Depois voltei a Adam. Ele tinha, é claro, recobrado a consciência. Os olhos dele estavam repletos de pânico, e gemidos abafados saíam pela mordaça. Sorri para ele enquanto pressionava o algodão com clorofórmio sobre seu nariz novamente. Dessa vez, é claro, ele não conseguiu nem mesmo lutar de modo eficaz.

Puxei-o para colocá-lo sentado, depois trouxe uma cadeira do escritório. Consegui fazer com que sentasse na cadeira, e então fui capaz de escorregá-lo sobre meu ombro e andar aos tropeços até a garagem. Larguei-o no espaço do porta-malas e fechei com força a traseira do carro. Nenhum vestígio de seu corpo estava visível.

Olhei meu relógio. Passava um pouco das seis. Ainda teria de enrolar mais uma hora até que fosse escuro o bastante para ter certeza de que nenhum dos vizinhos de passagem notassem uma pessoa estranha saindo da garagem de Adam. Preenchi o tempo vasculhando sua vida. Pacotes de fotografias revelavam amigos, um jantar de Natal em família. Eu teria me encaixado nessa vida perfeitamente. Poderíamos ter tido tudo, se ele não fosse tão idiota.

Acordei de meu devaneio com o barulho do telefone. Deixei-o tocar e fui até a cozinha. Servi-me de uma garrafa de um limpador abrasivo e, com um pano, cuidadosamente limpei toda a tinta no corredor. Pus o pano usado em minha mochila, depois peguei o aspirador de pó. Percorri o corredor inteiro devagar e com cuidado, apagando todos os traços de luta do resistente tapete Berber. Fiz a trilha com o aspirador por trás de mim, direto até a garagem, onde o deixei num canto, como se sempre tivesse sido lá seu lugar. Depois de ter removido todos os meus vestígios, subi no carro de Adam, acionei o controle remoto em seu chaveiro e dei partida no motor enquanto o portão da garagem se levantava suavemente à minha frente.

Fechei a porta atrás de mim e dirigi para longe. Conseguia ouvir barulhos abafados na traseira do carro. Vasculhei o porta-luvas até que encontrei uma fita cassete da banda Wet, Wet, Wet. Coloquei-a para tocar e aumentei o volume. Eu cantava as músicas enquanto saía da cidade em direção à charneca.

Tive a preocupação de que o carro de Adam pudesse não conseguir subir todo o caminho da trilha, e com razão. A cerca de seiscentos metros de casa, a estrada se tornou perigosa e com mato muito crescido. Com um suspiro, saí e subi caminhando para pegar o carrinho de mão. Quando abri o porta-malas para jogá-lo no carrinho, os olhos dele estavam esbugalhados e me olhavam fixamente. No entanto, seus suplícios abafados foram um desperdício. Arrastei-o sem cerimônia para fora do carro até o carrinho. Foram seiscentos metros de difícil subida pela trilha, já que a luta constante dele dificultava a condução. Por sorte, tia Doris tivera o bom senso de comprar um carrinho de mão de obras adequado, com duas rodas na frente.

Quando chegamos à fazenda, abri o alçapão. O porão embaixo estava escuro e acolhedor. Os olhos de Adam se arregalaram, aterrorizados. Passei a mão por seus cabelos macios e disse:

— Bem-vindo à cúpula do prazer.


5

 

Quanto à... multidão de leitores de jornais, eles se satisfazem com qualquer coisa, desde que seja sangrento o suficiente. Mas a mente sensível exige algo mais.

Depois de ter acompanhado Carol até o carro, Tony caminhou pelo campus até uma das lojas e comprou um exemplar do jornal noturno. Se publicidade era o que o Faz-tudo estava ansioso por obter, ele finalmente tinha conseguido. Medo e ódio assombravam as páginas do Bradfield Evening Sentinel Times (BEST). Cinco delas, para ser preciso. Páginas 1, 2, 3, 24 e 25, fora o editorial, eram dedicadas ao Matador de Bonecas. A julgar pelo apelido, havia tantos vazamentos na polícia como num conselho de ministros.

— Você não vai gostar de ser chamado de Assassino de Bonecas, vai, Faz-tudo? — disse Tony baixinho para si mesmo enquanto caminhava de volta para sua sala. De volta, detrás de sua escrivaninha, ele estudou o jornal. Penny Burgess tinha tido um dia no campo. A primeira página gritava, assassino de bonecas ataca novamente!, em manchetes garrafais. Em letras menores, os leitores eram informados de que a polícia admite que serial killer está à espreita na cidade. Abaixo havia um relato chocante da descoberta do corpo de Damien Connolly, e uma fotografia dele no desfile de cadetes. A matéria do final da página 2 até a página 3 era um resumo sensacionalista dos três casos anteriores, mais um mapa esboçado.

— Tirar leite de pedra, com certeza — disse Tony com seus botões enquanto folheava as páginas centrais. Manchetes como gays aterrorizados pelo monstro assassino de bonecas não deixavam dúvida para o leitor quem o Sentinel Times decidira que estava em risco. A matéria se concentrava na suposta histeria que tomara a comunidade gay de Bradfield, com fotografias do interior de cafés, bares e boates que tornavam a cena decadente o bastante para satisfazer os preconceitos dos leitores.

— Cara — gemeu Tony. — Você vai mesmo odiar isso, Faz-tudo.

Ele retornou ao editorial.

“Finalmente”, leu ele, “a polícia admitiu o que muitos de nós já acreditávamos havia algum tempo. Há um serial killer à solta em Bradfield e seu alvo são os jovens solteiros que frequentam os sórdidos bares gays da cidade.

“É deplorável que a polícia não tenha até agora alertado os homossexuais da cidade para se protegerem. No mundo decadente dos encontros anônimos e do sexo casual, não é difícil que esse monstro predatório encontre vítimas dispostas. O silêncio da polícia só pode ter facilitado as coisas para o assassino.

“É provável que essa relutância em falar abertamente tenha aumentado a suspeita existente na comunidade gay em relação à polícia, levando-a a temer que as autoridades valorizem menos as vidas dos gays do que as de outros membros da comunidade.

“Da mesma forma que foi preciso haver mortes de mulheres ‘inocentes’ em vez de prostitutas para fazer a polícia prestar total atenção ao Estripador de Yorkshire, é errado que um policial precise ser morto para que a Polícia Metropolitana de Bradfield leve a sério esse Assassino de Bonecas.

“Apesar disso, conclamamos a comunidade gay a cooperar inteiramente com os policiais. E exigimos que esses assassinatos horrendos sejam investigados de forma diligente e com compaixão pelo interesse das causas homossexuais de Bradfield. Quanto mais rápido esse assassino cruel for pego, mais seguros todos nós ficaremos.”

— A mistura de sempre: falso moralismo, indignação e exigências fora da realidade — disse Tony para a jiboia plantada num vaso no parapeito da janela.

Ele recortou os artigos e os espalhou na mesa. Ligou seu microgravador de fita e começou a falar:

— Bradfield Evening Sentinel Times, 27 de fevereiro. Finalmente, o Faz-tudo ganhou as manchetes. Pergunto-me o quanto isso é importante para ele. Um dos princípios da criação de perfis psicológicos de criminosos em série é que eles anseiam pelo oxigênio da publicidade. Mas, dessa vez, não tenho certeza se ele se importa muito com isso. Não houve mensagens depois dos dois primeiros assassinatos, nenhum dos dois recebeu muita atenção depois da descoberta inicial dos corpos. E, embora houvesse uma mensagem direcionando a polícia ao terceiro corpo por meio do jornal, essa nota não fazia nenhuma afirmação sobre os assassinatos anteriores. Isso me deixou confuso até que a inspetora Carol Jordan surgiu com a seguinte explicação alternativa para a nota e para o vídeo, que a acompanhava: sem orientação, o corpo poderia ter ficado sumido por algum tempo. Então, embora o Faz-tudo possa não ser obsessivo quanto a criar manchetes e pânico, é claro que ele quer que os corpos sejam encontrados enquanto ainda são reconhecidamente obras de sua autoria.

Ele desligou o gravador com um suspiro. Embora tenha virado as costas ao circo acadêmico havia anos, ele não conseguia escapar de seu treinamento; cada estágio do processo tinha de ser gravado. Era difícil para Tony resistir à perspectiva de que essa investigação pudesse fornecer material para produção de artigos ou mesmo de um livro.

— Sou um canibal — disse à planta. — Às vezes, tenho nojo de mim mesmo.

Ele juntou os recortes e os enfiou na pasta de recortes. Abriu as caixas e retirou as pilhas de pastas de documentos que elas continham. Carol as havia etiquetado com esmero. Maiúsculas que fluíam, observou Tony. Uma mulher confortável com a palavra escrita.

Cada vítima tinha um laudo do patologista e um laudo forense preliminar. As declarações de testemunhas eram divididas em três grupos: Experiência (vítima), Testemunha (cena do crime) e Diversos. Selecionando os arquivos de Experiência (vítima), ele se movimentou em sua cadeira com rodinhas até a mesa onde ficava seu computador pessoal. Quando chegara a Bradfield, a universidade lhe oferecera um terminal conectado à rede. Ele recusou, não querendo perder tempo aprendendo um novo conjunto de protocolos, quando estava perfeitamente à vontade com seu próprio computador. Agora, ele estava satisfeito por não ter que adicionar segurança de dados à lista de preocupações que o mantinham acordado durante a noite.

Tony acessou o software personalizado que lhe permitiria fazer comparações entre as vítimas e começou o longo trabalho de inserção dos dados.

Cinco minutos na delegacia da Scargill Street eram suficientes para fazer Carol desejar que tivesse ido direto para casa. Para chegar ao local em que tinha sido alocada por quanto tempo durasse a investigação, ela precisava atravessar toda a sala principal do esquadrão. Exemplares do jornal noturno foram espalhados sobre metade das mesas, debochando dela com suas negras manchetes garrafais. Bob Stansfield estava de pé com alguns detetives no meio da sala e a chamou enquanto passava.

— O bom doutor já deu no pé, não foi?

— Pelo que tenho visto do bom doutor, Bob, ele podia dar a alguns dos nossos chefes umas aulas sobre trabalhar após o expediente — disse Carol, desejando que pudesse pensar em alguma resposta mais áspera. Sem dúvida lhe ocorreria horas depois no chuveiro. Por outro lado, talvez fosse bom não rebater com algo muito atrevido. Melhor não afastar os rapazes mais do que sua tarefa já tinha afastado. Ela parou e sorriu.

— Alguma novidade? — perguntou.

Stansfield se separou de seus subordinados, dizendo:

— Muito bem, rapazes, continuem com isso. — Andou até o lado de Carol e disse: — Nada assim. A equipe HOLMES está trabalhando a toda, batendo tudo o que temos até agora no computador para ver que conclusões eles podem tirar disso. Cross mandou deter todos os tarados de novo. Ele está convencido de que um deles é a nossa melhor aposta.

Carol sacudiu a cabeça.

— Perda de tempo.

— Você quem diz. Esse filho da mãe não tem ficha, eu apostaria nisso. Kevin tem um time que sairá esta noite para tentar algo um pouco diferente, no entanto — acrescentou ele, retirando o último cigarro e acendendo-o. Jogou o maço numa lixeira próxima, com uma expressão de nojo no rosto. — Se não tivermos uma merda de uma folga em breve, vou ter que solicitar oficialmente um aumento para cobrir a porcaria do meu consumo de nicotina.

— Já no meu caso, estou bebendo tanto café que minha agitação é constante — comentou Carol num lamento. — Então, qual é essa ideia do Kevin?

Gentileza funciona. Primeiro gerar afinidade, depois perguntar. Engraçado como obter informações dos colegas seguia as mesmas regras do interrogatório de suspeitos.

— Ele tem uma equipe à paisana frequentando os locais gays, com foco nos clubes e pubs de reputação S&M — bufou Stansfield. — Todos eles estiveram no Departamento de Trânsito esta tarde, pedindo calças de couro aos rapazes de motocicleta.

— Vale a pena tentar — disse Carol.

— Bem, vamos esperar que Kevin não esteja mandando para lá um monte de maricas no armário como Damien Connolly revelou ser — disse Stansfield. — A última coisa que queremos é que um bando de veados do Departamento de Investigações Criminais acabe usando suas próprias algemas.

Carol não se dignou a responder à insinuação e caminhou para sua sala. Ela estava com a mão na porta quando a voz de Cross ressoou no ambiente.

— Inspetora Jordan? Venha até aqui.

Carol fechou os olhos e contou até três.

— Estou indo, senhor — disse ela animadamente, virando-se e caminhando por toda a extensão do local até a sala temporária de Cross. Ele estava ali há apenas um dia, mas já o tinha dominado como um gato marca seu território. A sala cheirava a fumaça de cigarro. Havia guimbas de cigarro flutuando nos copos de plástico com café pela metade dispostos estrategicamente no parapeito da janela e sobre a mesa. Até mesmo um calendário com uma mulher estava pregado na parede, prova de que o sexismo permanecia como uma forte influência para a indústria da propaganda. Será que eles não tinham percebido ainda que eram as mulheres que iam ao supermercado, e que eram elas que decidiam qual marca de vodca comprar?

Deixando a porta aberta numa tentativa de conseguir um pouco de ar, Carol entrou no escritório de Cross e disse:

— Senhor?

— O que o Garoto-Prodígio concluiu então?

— É um pouco cedo para conclusões, senhor — respondeu ela, com vivacidade. — Ele precisa ler todos os relatórios que copiei para ele.

Cross resmungou.

— Ah, sim. Esqueci que ele é um professorzinho de merda.

Ele emitiu as palavras com sarcasmo.

— Tudo por escrito, né? Kevin tem mais alguma coisa sobre o negócio do Connolly; você vai ter que se atualizar com ele. Houve mais alguma novidade, inspetora? — perguntou com beligerância, como se fosse ela quem tivesse se imposto a ele.

— Dr. Hill tem uma sugestão, senhor. Sobre as marcas de queimadura no corpo do policial Connolly. Ele perguntou se havia alguém na equipe do sistema HOLMES que pudesse fazer uma análise estatística para reconhecimento de padrão.

— Que diabos é análise estatística para reconhecimento de padrão? — disse Cross, despejando a ponta de seu cigarro num copo de café.

— Acho que significa...

— Deixe para lá, deixe para lá — interrompeu Cross. — Vá ver se alguém sabe de que diabos vocês estão falando.

— Sim, senhor. Ah, senhor? Se não pudermos fazer aqui, meu irmão trabalha com computadores. Tenho certeza de que ele poderia fazer isso para nós.

Cross a fitou, sua expressão era impossível de interpretar dessa vez. Quando falou, estava todo afável.

— Muito bem. Vá em frente. O sr. Brandon lhe deu carta branca, afinal.

Então é assim que se passa a responsabilidade, Carol pensou enquanto se encaminhava para a sala do sistema HOLMES. Uma conversa de cinco minutos com um assediado inspetor Dave Woolcott confirmou o que ela já suspeitara. A equipe não tinha nem o software nem o conhecimento especializado para desempenhar a análise que Tony queria. No meio-tempo em que Carol se dirigia até a cantina à procura de Kevin Matthews, ela esperava que seu irmão Michael pudesse cumprir a tarefa em total confidencialidade. Manter-se de boca fechada sobre desenvolvimentos tecnológicos era muito diferente de resistir ao impulso de fofocar sobre uma investigação de homicídio de grande visibilidade. Se ele a decepcionasse, ela poderia dar adeus a um futuro fora dos Recursos Humanos.

Kevin estava sentado, curvado sobre um copo de café, um prato com as sobras de uma fritura ao seu lado. Carol puxou a cadeira de frente para ele.

— Posso me juntar a você?

— Fique à vontade — disse Kevin. Ele olhou para cima e lhe ofereceu o vestígio de um sorriso, empurrando para trás seus cachos ruivos indisciplinados que lhe caíam na testa. — Como vão as coisas?

— Provavelmente bem mais fáceis do que para você e Bob.

— Como é esse nerd do Ministério do Interior?

Carol refletiu por um momento.

— Ele é cauteloso. Pensa rápido, é esperto, mas não é um sabichão. E não parece querer nos dizer como vamos fazer nosso trabalho. É muito interessante observá-lo trabalhando. Ele vê as coisas de uma perspectiva diferente.

— O que quer dizer? — perguntou Kevin, parecendo genuinamente interessado.

— Quando analisamos um crime, procuramos pistas físicas, indícios, coisas que nos apontarão com quem podemos querer falar ou onde podemos procurar. Quando ele analisa um crime, ele não está interessado em todas essas coisas. Ele quer saber por que as pistas físicas aconteceram daquela determinada maneira para que possa descobrir quem cometeu o crime. É como se nós usássemos a informação para nos mover para a frente e ele a usa para movê-lo para trás. Isso faz sentido?

Kevin franziu a testa.

— Acho que sim. Acha que ele serve para o trabalho?

Carol deu de ombros.

— Ainda são os primeiros dias. Mas, sim, levando em conta a impressão inicial. Diria que ele tem algo a oferecer.

Kevin sorriu.

— Algo a oferecer à investigação ou algo a lhe oferecer?

— Cai fora, Kevin — disse Carol, cansada das indiretas que a perseguiam no trabalho. — Ao contrário de uns e outros, onde ganho o pão não como a carne.

Kevin pareceu momentaneamente sem jeito.

— Só estava brincando, Carol, sério.

— Piada sem graça.

— Tudo bem, tudo bem, desculpe. Como é trabalhar com ele? É ou não um sujeito legal?

Carol falava devagar, medindo suas palavras.

— Considerando que ele passa o expediente inserido na mente de psicopatas, até que parece um cara bem normal. Há algo bastante... fechado nele. Ele mantém a distância. Não revela muita coisa, mas me trata de igual para igual, não como uma policial imbecil. Ele está do nosso lado, Kevin, e isso é o principal. Acho que é um desses maníacos por trabalho que estão mais interessados em cumprir seus afazeres do que qualquer outra coisa. E falando em cumprir afazeres, Popeye disse que você descobriu algo sobre o Connolly?

Kevin suspirou.

— Não sei se conta para alguma coisa. Uma das vizinhas voltou do trabalho às dez para as seis. Ela lembra o horário porque tinha acabado de ouvir o início da previsão do tempo no rádio do carro. Connolly estava fechando o capô do seu carro e usava um macacão. A vizinha diz que ele deve ter trabalhado no veículo, pois fazia isso o tempo todo. Quando ela saiu do automóvel dela e entrou na garagem, Damien estava entrando de ré no local. A mesma vizinha saiu cerca de uma hora mais tarde para ir a um jogo de squash e percebeu o carro de Connolly estacionado na rua. Ela ficou um pouco surpresa, porque ele nunca deixava o carro muito tempo do lado de fora, principalmente depois que escurecia. E isso é tudo.

— É uma garagem separada? — perguntou Carol.

— Não, é anexa à casa, e tem uma porta da garagem que leva à cozinha.

— Então parece que ele foi capturado dentro de casa?

Kevin deu de ombros.

— Quem sabe? Não havia sinais de luta. Conversei com um dos peritos que reviraram o lugar, e ele disse para não esperar muita coisa.

— Parece com os dois primeiros.

— É o que diz o Bob.

Kevin empurrou sua cadeira de volta para o lugar.

— É melhor eu ir andando. Vamos sair para a cidade esta noite.

— Talvez esbarre com você mais tarde — disse Carol. — Dr. Hill quer um tour pelas cenas de crime mais ou menos na hora em que os corpos foram descartados.

Kevin se levantou.

— Só não deixe que ele converse com nenhum cara estranho.

Tony pegou o recipiente plástico de lasanha no micro-ondas e se sentou em sua cozinha. Ele havia inserido todos os dados que conseguiu encontrar sobre as quatro vítimas, depois transferiu os arquivos para um disquete de modo que pudesse trabalhar com eles em casa enquanto esperava Carol chegar. Assim que havia chegado à estação do bonde, percebeu que estava faminto. Então se lembrou de que não havia comido nada desde o cereal do café da manhã. Vinha trabalhando com tamanha concentração que nem havia notado. Achou a fome curiosamente satisfatória. Ela significava que ele estava envolvido demais no que estava fazendo para ter consciência de si mesmo. Sabia, por sua longa experiência, que seus melhores desempenhos surgiam quando perdia essa consciência, quando podia mergulhar nos padrões de outro ser humano, preso à lógica idiossincrática dessa outra pessoa, sintonizado com um conjunto diferente de emoções.

Ele atacou a comida com prazer, empurrando-a para dentro o mais rápido possível de forma que pudesse ir ao computador e continuar desenvolvendo os perfis das vítimas. Ainda havia algumas garfadas no prato quando o telefone tocou. Sem pausa para pensar, Tony agarrou o aparelho.

— Alô — falou ele, animadamente.

— Anthony — falou a voz. Tony deixou o garfo cair, derramando massa na bancada.

— Angelica — respondeu ele. Ele estava de volta ao seu próprio mundo, preso aos limites da própria mente ao ouvir o som da voz dela.

— Está se sentindo mais sociável hoje? — perguntou a doce voz rouca.

— Não estava me sentindo antissociável ontem. Só tinha coisas a fazer que não podia ignorar. E você me distrai — disse Tony, pensando por que se dava ao trabalho de se justificar para ela.

— Esse é o objetivo, em resumo — continuou ela. — Mas senti sua falta, Anthony. Estava com tanto tesão por você... Quando me dispensou como uma meia velha, todo o meu prazer diário foi embora.

— Por que faz isso comigo? — perguntou ele. Era uma pergunta que fizera antes, mas ela sempre mudava de assunto.

— Porque você me merece — disse a voz. — Porque quero você mais do que qualquer outra pessoa no mundo. E porque você não tem nenhuma outra pessoa em sua vida para fazê-lo feliz.

Era a mesma velha história. Dar um fim à pergunta com bajulação. Mas, essa noite, Tony queria respostas, não lisonjas.

— O que faz você pensar isso?

A voz deu uma leve risadinha.

— Sei mais sobre você do que sonha, Anthony. Você não precisa mais ficar sozinho.

— E se eu gostar de ficar sozinho? Não é justo presumir que sou solitário porque quero ser?

— Você não me parece um garoto feliz. Em alguns dias, você parece que precisa de um abraço mais do que qualquer outra coisa no mundo. Em outros, parece que não dormiu mais do que algumas poucas horas. Anthony, posso lhe trazer paz. As mulheres já o magoaram antes, nós dois sabemos bem. Mas não vou fazer isso. Posso acabar com a sua mágoa. Posso fazer você dormir como um bebê, sabe disso. Tudo que quero é fazer você feliz.

A voz era tranquilizadora, gentil.

Tony suspirou. Se ao menos...

— Acho isso difícil de acreditar — tergiversou. Desde o início dessas conversas, parte dele queria bater o telefone no meio dessa sofisticada tortura. Mas o lado cientista dele queria ouvir o que ela tinha a dizer. E o homem perturbado em seu interior se conhecia o bastante para saber que precisava se curar, e que esse bem podia ser o caminho. Ele se recordou de sua decisão anterior de não permitir que ela se tornasse uma obsessão para ele, de modo que, quando chegasse a hora, ele pudesse abandoná-la sem dor.

— Mas permite que eu tente. — A voz tinha tanta determinação. Ela estava confiante de seu poder sobre ele.

— Eu ouço, não é? Participo. Ainda não desliguei o telefone — disse ele, forçando uma simpatia artificial em sua voz.

— Por que não faz isso? Por que não larga o telefone, sobe até seu quarto e pega a extensão lá? A gente ficaria mais confortável.

Uma pontada de medo atingiu Tony no peito. Ele lutou para encarar a pergunta com um tom profissional. Não “como você sabe disso?”, mas “o que leva você a pensar que tenho um telefone no quarto?”.

Houve uma pausa, tão curta que Tony não conseguia ter certeza de que não a imaginara.

— É só um palpite — disse ela. — Já saquei tudo sobre você. É o tipo de homem que tem um telefone ao lado da cama.

— Bom palpite — respondeu Tony. — Tudo bem. Vou pôr o telefone no gancho e pegar a extensão no quarto. — Ao fazer isso, correu para o escritório, onde ativou o modo “gravar” da secretária eletrônica. Depois, pegou o telefone novamente.

— Alô? Voltei.

— Está sentado confortavelmente? Eu começo, então. — Mais uma vez aquela risadinha grave e sexy. — Vamos nos divertir de verdade esta noite. Espere só para ouvir o que tenho preparado para você hoje. Ah, Anthony — disse ela, com a voz baixando quase a um sussurro. — Tenho sonhado com você. Imaginado suas mãos no meu corpo, correndo os dedos pela minha pele.

— O que está vestindo? — perguntou Tony. Ele sabia que a pergunta padrão era essa.

— O que gostaria que eu estivesse vestindo? Tenho um vasto guarda-roupa.

Tony suprimiu a ânsia louca de dizer: “botas de pescador, saia de bailarina e uma capa de chuva.”

Engoliu em seco e disse:

— Seda. Você sabe como gosto do toque da seda.

— É por isso que adora minha pele. Eu me empenho muito para me manter em forma. Mas, só para você, cobri parte da minha pele com seda. Estou usando um conjunto de calcinha e camisola transparentes, de seda preta. Ah, eu adoro a sensação da seda no meu corpo. Ah, Anthony — gemeu ela. — A seda está roçando meus mamilos, suavemente, como os seus dedos fariam. Ah, meus mamilos estão duros como pedra, empinados para cima, inflamados por você.

Sem querer, Tony começou a sentir as ondas de interesse. Ela era boa nisso, sem sombra de dúvida. A maioria das mulheres que ele ouvira fazendo sexo por telefone dava a impressão de estar enfastiada e aborrecida, as respostas delas eram previsíveis e estereotipadas. Nada em sua conversa tinha provocado nele algo além do interesse científico. Mas Angelica era diferente. Em primeiro lugar, ela parecia realmente envolvida.

Ela gemeu levemente.

— Meu Deus, estou molhada — murmurou. — Mas você ainda não pode me tocar, precisa esperar. Deite-se de costas, isso, bom garoto. Ah, eu adoro tirar sua roupa. Minhas mãos estão debaixo da sua camisa, meus dedos correm pelo seu peito, alisando você, tocando em seus mamilos. Meu Deus, você é maravilhoso — suspirou.

— Isso é bom — disse Tony, aproveitando a carícia da voz dela.

— É só o começo. Agora estou montando você, desabotoando sua camisa. Eu me inclino sobre você, meus mamilos dentro da seda encostando no seu peito. Ah, Anthony! — exclamou com prazer. — Você realmente está feliz de me ver, não está? Você está duro como uma rocha embaixo de mim. Ah, mal posso esperar para você entrar em mim.

As palavras dela congelaram Tony. A ereção que ele sentia se enrijecendo em suas calças morreu como um floco de neve numa poça d’água. Lá estavam eles de novo.

— Acho que vou desapontá-la — disse ele, com a voz falha.

Aquela risadinha sexy de novo.

— De jeito nenhum. Você já é mais do que sonhei. Ah, Anthony, me toque. Diga, o que quer fazer comigo?

Tony não conseguia encontrar palavras.

— Não seja tímido, Anthony. Não há segredos entre nós, nenhum lugar onde não possamos ir. Feche os olhos, deixe os sentimentos fluírem. Toque meus seios, vá em frente, sugue meus mamilos, me chupe. Quero sentir sua língua úmida e quente por todo o meu corpo.

Tony resmungou. Isso quase ultrapassava os seus limites, mesmo em prol da ciência.

A voz de Angelica arfava agora, como se suas palavras a estivessem estimulando tanto quanto deviam estimulá-lo.

— Assim, ah, meu Deus. Anthony, isso é maravilhoso. Ai-ai-ai — disse ela num gemido com a voz trêmula. — Viu? Eu disse que estava molhada. Isso, mergulhe os dedos fundo na minha boceta. Ah, meu Deus, você é o máximo... Quero... Quero... Ah, meu Deus, quero chegar até você.

Tony ouviu o som de um zíper pela linha telefônica.

— Angelica... — começou a dizer. Estava desmoronando de novo, como sempre fazia, uma espiral fora de controle como um pássaro ferido.

— Ah, Anthony, que delícia. Esse é o pau mais lindo que já vi. Ah, deixe eu provar você... — A voz dela terminava com o som de algo sendo sugado.

O sangue correu para o rosto de Tony em uma onda súbita de vergonha e raiva. Ele bateu o telefone e imediatamente o retirou do gancho novamente. Céus, que tipo de homem não conseguia lidar com uma ereção nem mesmo pelo telefone? E que tipo de cientista não conseguia separar suas próprias falhas patéticas de um simples exercício objetivo de coleta de dados?

O pior era que ele reconhecia o próprio comportamento. Quantas vezes ele sentara à mesa em frente a estupradores, incendiários ou serial killers e observara-os atingindo o ponto em sua reconstituição dos eventos em que não conseguiam mais encarar a si mesmos? Da mesma forma, eles também se fechavam. Não podiam desligar um telefone, mas se protegiam do mesmo jeito. Por fim, é claro, com a terapia correta, abriam fissuras nas muralhas e conseguiam confrontar o que os trouxera até ali. Esse era o primeiro passo para a recuperação. Parte de Tony rezava para que Angelica soubesse o suficiente sobre a teoria e a prática da psicologia, de modo que continuasse com ele até que conseguisse também quebrar as barreiras e encarasse o que quer que tivesse gerado esse aleijado sexual e emocional.

Mas outra parte dele esperava que ela nunca ligasse novamente. Não importa o “quem não arrisca não petisca”. Ele só queria não arriscar.

• • •

John Brandon limpou escrupulosamente seu prato com o último pedaço de pão naan e sorriu para a esposa.

— Estava ótimo, Maggie — elogiou ele.

— Humm. — O filho Andy concordou com a boca cheia de cordeiro e curry de berinjela.

Brandon se mexeu intranquilo na cadeira.

— Se estiver tudo bem para você, acho que vou dar uma passada na Scargill Street por uma hora. Só para ver como vão as coisas.

— Pensei que oficiais graduados como você não tivessem que trabalhar à noite — disse Maggie com bom humor. — Achei que tivesse dito que sua equipe não precisa de você respirando no pescoço.

Brandon parecia encabulado.

— Sei, mas só quero ver como estão indo.

Maggie balançou a cabeça de um lado para outro, com um sorriso resignado no rosto.

— Prefiro que vá e tire isso de sua cabeça. Melhor do que ficar a noite inteira inquieto na frente da televisão.

Karen mostrou interesse.

— Pai, se vai voltar para a cidade, pode me deixar na casa da Laura? Temos que fazer um trabalho de história.

Andy bufou.

— Para você paquerar o Craig MacDonald, isso sim.

— Você não sabe de nada — protestou a filha. — Por favor, pai?

Brandon levantou-se da mesa.

— Só se estiver pronta agora. Vou pegá-la no caminho de volta.

— Ah, pai — reclamou Karen. — Você disse que só ia ficar por uma hora. Precisamos de muito mais para fazer o que queremos.

Foi a vez de Maggie Brandon bufar com uma risada.

— Se seu pai estiver de volta antes de nove e meia, vou fazer panquecas para o jantar.

Karen olhou para cada um dos pais, a angústia da escolha estampada em seu rosto de catorze anos.

— Pai? — disse ela. — Você pode me pegar às nove horas?

Brandon sorriu.

— Por que acho que fui enrolado?

Era pouco mais de sete e meia quando Brandon chegou à sala da equipe HOLMES. Mesmo tarde assim, todos os terminais estavam ocupados. O som da digitação nos teclados desaparecia sob as conversas tranquilas que ocorriam em algumas das mesas. O inspetor Dave Woolcott estava sentado ao lado de um dos analistas de antecedentes criminais, que apontava algum detalhe na tela. Ninguém levantou os olhos quando Brandon entrou.

Ele andou por trás de Woolcott e esperou até que tivesse terminado de falar com o policial sentado ao computador. Brandon suprimiu um suspiro. Decididamente, era hora de ele começar a pensar na aposentadoria. Não eram apenas os policiais que pareciam jovens para ele agora; mesmo os inspetores não pareciam velhos o bastante para estar sem as faixas de aspirante no quepe.

— Continue tentando encontrar uma correspondência, Harry. Faça a referência cruzada com os sistemas de registros criminais — ouviu Woolcott dizer. O rapaz no teclado assentiu e olhou fixamente para sua tela.

— Boa-noite, Dave — cumprimentou Brandon.

Woolcott girou em sua cadeira. Registrando quem era o recém-chegado, ele se levantou.

— Boa-noite, senhor.

— Estava a caminho de casa e pensei em dar uma passada aqui para ver como vocês estão — mentiu Brandon, com naturalidade.

— Bem, senhor, ainda são os primeiros dias. Temos equipes trabalhando vinte e quatro horas pelos próximos dias, inserindo todos os detalhes das declarações dos casos anteriores e também do policial Connolly. Estou em conexão com a equipe que controla os telefones do disque-sexo. A maior parte é rancor, vingança e paranoia, mas o sargento Lascelles está fazendo um bom trabalho em priorizar as mensagens.

— Alguma coisa já foi descoberta?

Woolcott esfregou a área calva, um gesto inconsciente que, de acordo com sua segunda esposa, lhe causara o problema.

— Coisas pequenas aqui e ali. Chegamos ao nome de alguns caras que estavam em Temple Fields ou nos arredores em pelo menos duas das noites em questão, e estamos tomando medidas com relação a eles. Também bombardeamos o sistema nacional de computadores da polícia com números de placa que apareceram regularmente por volta dos horários dos homicídios. Felizmente, desde o segundo homicídio, a inspetora Jordan pôs alguém para observar as placas em volta do bairro gay. É um trabalho demorado, senhor, mas vamos chegar lá.

Se ele estiver lá, pensou Brandon. Fora ele quem tinha sido inflexível na defesa de que este era um caso para a equipe HOLMES. Mas esse assassino era diferente de tudo que tivesse visto ou lido a respeito. Ele era cuidadoso.

Brandon não sabia muito sobre computadores. Mas uma máxima tinha ficado registrada: “Lixo que entra, lixo que sai”. Tinha viva esperança que não tivesse dado a seus homens um trabalho que devia ter ido para o Departamento de Limpeza.

Os olhos de Carol se abriram rapidamente, o coração palpitava. Em seu sonho, uma porta pesada de cela tinha batido, deixando-a prisioneira de paredes frias cobertas de condensação. Ainda zonza de sono, foi preciso um momento para que percebesse que o peso familiar do corpo de Nelson não estava deitado em seus pés. Ela ouviu passos, o chacoalhar de chaves sendo jogadas numa mesa. Uma fresta de luz escapou dos poucos centímetros de porta aberta que Nelson precisava para suas idas e vindas. Ela rolou com um gemido e agarrou o relógio. Dez e dez. Prejudicada em vinte minutos de seu precioso sono por causa da chegada barulhenta de Michael.

Cambaleando para fora da cama e vestindo seu pesado roupão de banho, Carol abriu a porta do quarto e caminhou até a sala espaçosa que ocupava a maior parte do apartamento no terceiro andar que ela compartilhava com o irmão. Meia dúzia de luzes direcionadas para cima em suportes no chão, posicionados em diferentes alturas, lançavam um brilho quente e elegante à sala. Nelson apareceu na porta da cozinha, saltando levemente no piso de madeira polida. Depois, abaixou-se e, num salto que parecia desafiar a gravidade, lançou-se no ar, tocando brevemente em um alto-falante grande e fino antes de pousar com delicadeza sobre uma estante de madeira dourada. De cima dela, o gato olhou desdenhosamente para Carol do outro lado da sala, como se dissesse: “aposto que não consegue fazer isso”.

A sala tinha cerca de doze metros por sete. Numa extremidade, um grupo de três sofás de dois lugares com uma cobertura leve e acolchoada circundava uma mesa de café baixa. Do outro lado ficava uma mesa de jantar com seis cadeiras no estilo de Rennie Mackintosh. Perto dos sofás havia uma TV e um vídeo sobre um rack preto. Cerca de metade da parede atrás estava ocupada com estantes abarrotadas de livros, vídeos e CDs.

As paredes tinham sido pintadas com uma cor fria, um tom claro de cinza, exceto a mais distante, que era de tijolos nus, com cinco janelas arqueadas e que davam vista para o centro. Carol andou pela sala até que pôde ver abaixo, com clareza, a extremidade do laço negro no canal Duke of Waterford. As luzes da cidade brilhavam como uma vitrine de joalheria ordinária.

— Michael — chamou ela.

O irmão pôs a cabeça para fora da estreita cozinha, parecendo surpreso.

— Não tinha percebido que você estava em casa — disse ele. — Acordei você?

— Eu ia me levantar cedo de qualquer jeito. Preciso voltar ao trabalho. Estava só dormindo umas horinhas — explicou ela, resignada. — O bule está aceso? — Ela andou pela cozinha e sentou-se no banco alto enquanto Michael fazia chá e continuava preparando um sanduíche com pão ciabatta, tomates grandes, azeitonas pretas, cebolinha e atum.

— Quer comer? — perguntou ele.

— Podia bem dar conta de um desses — admitiu Carol. — Como foi em Londres?

Michael deu de ombros.

— Sabe como é. Eles gostaram do que estamos fazendo, mas queriam saber se podíamos terminar para ontem.

Carol fez uma careta.

— Parece os editoriais do Sentinel Times sobre o serial killer. O que exatamente você está fazendo no momento, aliás? É possível explicar sem utilizar um palavreado muito difícil para uma analfabeta em tecnologia?

Michael sorriu.

— A próxima sensação serão os jogos de aventura de computador com a mesma qualidade que os vídeos. Você filma coisas de verdade, digitaliza e manipula para produzir jogos que são tão reais quanto um filme. Estamos buscando o estágio seguinte. Imagine que está num jogo de aventura no computador, mas todos os personagens são pessoas que você conhece. Você é o herói, mas não apenas na sua imaginação.

— Fiquei perdida agora — disse Carol.

— Tudo bem. Quando instala o jogo no computador, você conecta um scanner e digitaliza fotografias de si mesmo e de todos que quer no seu jogo. O computador lê as informações, e as converte em imagens na tela. Então, em vez de Conan, o Bárbaro, liderar a jornada, quem faz isso é Carol Jordan. Você pode importar fotos de seus melhores amigos ou de seus objetos preferidos para acompanhá-la no jogo. E pode transformar em vilão qualquer pessoa de quem não goste. Assim, é possível ter uma aventura com Mel Gibson, Dennis Quaid e Martin Amis lutando contra inimigos como Saddam Hussein, Margaret Thatcher e Popeye — explicou Michael com entusiasmo enquanto enfiava os ingredientes no pão.

Ele largou os sanduíches nos pratos, e os dois andaram juntos de volta para a sala de estar, sentaram-se e ficaram olhando o canal enquanto comiam.

— Está claro? — perguntou ele.

— O tanto que precisa ser — respondeu Carol. — Então, quando você tiver esse software pronto, supostamente você poderia pôr pessoas em posições comprometedoras? Como filmes pornográficos?

Michael franziu a testa.

— Teoricamente. O nerd médio nem saberia por onde começar. É preciso saber o que se está fazendo, além de um hardware caríssimo para obter instantâneos de qualidade ou vídeos com seu computador.

— Graças a Deus — disse Carol, com emoção. — Estava começando a pensar que você estava criando um monstro Frankenstein para chantagistas e jornalistas de tabloide.

— De jeito nenhum. De qualquer forma, uma análise cuidadosa revelaria a armação. E quanto a você? Como está sua busca?

Carol encolheu os ombros.

— Alguns super-heróis podiam ajudar, para ser franca.

— Como é o analista de perfil criminal? Ele vai alterar o funcionamento das coisas?

— Tony Hill? Ele já alterou. Popeye só anda de cara feia agora. Mas tenho esperanças de que possamos extrair dele algo construtivo. Já tivemos uma reunião, e ele está cheio de ideias. É um cara legal também, não é alguém com quem seja difícil trabalhar.

Michael sorriu.

— Essa deve ser uma mudança animadora.

— Pode crer.

— E ele faz seu tipo?

Carol arrancou um pedaço de casca de seu pão e o atirou em Michael.

— Meu Deus, você é igualzinho aos porcos chauvinistas com quem trabalho. Não tenho um tipo definido. E, mesmo que tivesse, e mesmo que Tony Hill fosse esse tipo, você sabe que não misturo trabalho e prazer.

— Considerando o fato de que você trabalha todas as horas do dia e passa todo o tempo livre dormindo, acho que está se encaminhando para uma vida de celibato — observou Michael, ironicamente. — E aí, ele é bonitão ou não?

— Não notei — respondeu Carol, tensa. — E duvido que ele até mesmo tenha notado que sou mulher. O homem é maníaco por trabalho. Na verdade, ele é o motivo pelo qual estou trabalhando de novo esta noite. Ele quer ver as cenas dos crimes por volta do horário em que os corpos foram descartados para poder sentir a atmosfera do local.

— Pena que você tenha de sair de novo — comentou Michael. — Faz séculos desde que tivemos uma noite para ver televisão e tomar algumas garrafas de vinho. Nos vemos tão pouco agora. Até parece que somos casados.

Carol sorriu, com tristeza.

— O preço do sucesso, hein, mano?

— Acho que sim — disse Michael, levantando-se. — Bem, se você vai trabalhar, posso ficar acordado ainda por algumas horas antes de descansar o esqueleto.

— Antes de você ir... preciso de um favor.

Michael se sentou novamente.

— Contanto que não envolva passar a sua roupa.

— O que você sabe sobre análise estatística para reconhecimento de padrão?

Michael franziu a testa.

— Não muito. Tive um pouco de experiência com isso quando fiz meu doutorado e trabalhei durante meio expediente, mas não sei o que está mais avançado agora. Por quê? Quer que algo seja analisado?

Carol fez que sim.

— É um pouco tétrico, devo dizer. — Ela descreveu as feridas sádicas de Damien Connolly. — Tony Hill acha que eles podem produzir algum tipo de mensagem.

— Claro, vou dar uma olhada para você. Conheço um sujeito que deve ter o software mais recente nesta área. Não tenho dúvida de que ele me deixaria usar sua máquina por algum tempo para mexer com isso.

— Nem uma palavra com ninguém a respeito disso — ressaltou Carol.

Michael parecia ofendido.

— É claro que não. O que pensa que sou? Escute, prefiro que eu me dê mal com o serial killer, não você. Vou manter minha boca fechada. Só traga o material para mim amanhã, e farei o melhor que puder, tudo bem?

Carol se inclinou e desgrenhou os cabelos louros do irmão.

— Obrigada, fico devendo essa.

Michael a tomou num rápido abraço.

— Este é um território bem esquisito, maninha. Tenha cuidado, está bem? Você sabe que não posso pagar sozinho a hipoteca deste lugar.

— Sempre tomo cuidado — disse Carol, ignorando a pequena voz dentro dela que a alertava a não brincar com o destino. — Sou uma sobrevivente.


DO DISQUETE DE 3 ½” COM A ETIQUETA: BACKUP. 007; ARQUIVO AMOR. 006

— Quis você desde a primeira vez que o vi — disse eu baixinho —, quero você há tanto tempo.

A cabeça pendente de Adam se endireitou levemente. Pressionei o botão de gravar da câmera de vídeo montada num tripé. Não queria perder nada. As pálpebras de Adam, pesadas por causa de todo o clorofórmio, lutavam para se abrir um pouquinho. Depois, quando lhe veio a lembrança, elas de repente se abriram completamente. Sua cabeça se debateu de um lado para outro enquanto ele tentava ver onde estava e o que o prendia. Quando percebeu sua nudez, identificou os detalhes das algemas de couro macio nos pulsos e no tornozelo. Ao compreender que estava atado no meu potro, um gemido de algo que soava como pânico escapou por trás da fita sobre sua boca.

Saí das sombras por trás dele e me movi para sua linha de visão, meu corpo coberto de óleo e brilhando nas luzes da noite. Eu usava apenas minhas roupas íntimas, cuidadosamente escolhidas para exibir meu corpo soberbo da maneira mais vantajosa. Quando me viu, seus olhos se arregalaram ainda mais. Ele tentou falar, mas tudo que saiu foi um tenso murmúrio.

— Mas você decidiu que não podia se permitir me querer, não foi? — questionei, com a voz hostil e acusadora. — Você traiu o meu amor. Não teve a coragem de escolher um amor que glorificaria nós dois. Não, você ignorou a si mesmo e foi atrás de uma vadia estúpida, aquela piranha de quinta categoria. Você não percebe? Apenas eu, no mundo inteiro, realmente compreendo o que você precisa. Poderia ter lhe proporcionado êxtase, mas você escolheu a opção segura e patética. Não tinha coragem para uma união sincera de almas e corpos, não é?

Pingos de suor escorriam pelas suas têmporas, apesar do frio do porão. Avancei e alisei seu corpo, correndo minha mão por seu peito pálido e musculoso, roçando meus dedos por sua virilha. Ele se encolheu convulsivamente, implorando com seus olhos azuis intensos.

— Como pôde trair o que sei que está em seu coração? — sussurrei, enterrando minhas unhas na pele macia sob o encaracolado grosso de seus escuros pelos pubianos. Ele se contraiu, protegendo-se de mim. A sensação me causou entusiasmo. Tirei minha mão e admirei as meias-luas escarlate que minhas unhas tinham deixado em sua pele. — Sabe que pertence a mim. Você me disse. Você me queria, nós dois sabemos que sim.

Outro gemido por detrás da mordaça. Agora o suor tinha se espalhado pelo seu peito, pingos revestindo como um tapete os pelos grossos e escuros que diminuíam em seu abdômen tornando-se uma fina linha que apontava para o pau pendente, curvado e inútil como uma lesma entre suas pernas. Muito embora fosse óbvio que ele não me queria, a mera visão de sua nudez vulnerável me excitava. Ele era lindo. Podia sentir o sangue fluindo mais rápido, minha pele se expandindo, pronta para recebê-lo, pronta para explodir. Tinha ódio de mim por causa dessa fraqueza e virei-me para o outro lado antes que ele pudesse ver o efeito que me causava.

— Tudo o que eu queria era amá-lo — continuei, de um jeito tranquilo. — Não queria que fosse assim.

Minha mão escapou para a manivela do potro e acariciou a madeira lisa. Virei a cabeça e fitei o belo rosto de Adam. De forma lenta, infinitamente lenta, comecei a girar a manivela. O corpo dele, já estendido, contraiu-se contra o puxão das correias. Sua tentativa foi inútil. As engrenagens no mecanismo de enrolamento multiplicavam meu pequeno esforço até que se igualava à força de vários homens. Adam não era páreo para minha máquina. Eu conseguia ver os músculos de seus braços e pernas incharem, seu peito se levantando enquanto ele lutava para respirar.

— Não é tarde demais — sugeri. — Ainda podemos ser amantes. Que tal?

Desesperadamente, ele moveu a cabeça. Não havia dúvida de que era um sinal afirmativo. Sorri.

— Assim é melhor — disse. — Agora, tudo que precisa fazer é me provar que está dizendo a verdade.

Corri uma das mãos por seu peito úmido, depois esfreguei meu rosto contra os pelos finos. Conseguia cheirar seu medo, sentir o gosto dele em seu suor. Enterrei minha cabeça em seu pescoço, sugando e mordendo, mordiscando suas orelhas. Seu corpo permaneceu rígido, mas não senti nenhum sinal de ereção embaixo de mim. Com frustração, retirei-me. Inclinei-me sobre ele e, com um movimento brusco e angustiante, puxei a fita de sua boca.

— Aaaaaah. — Ele deu um berro quando a cola adesiva rasgou sua pele, irritando a barba rala. — Por favor, me deixe ir embora — sussurrou, lambendo os lábios secos.

Fiz que não com a cabeça.

— Não posso fazer isso, Adam. Talvez se fôssemos amantes...

— Não vou contar a ninguém — disse com a voz rouca. — Juro.

— Você me traiu uma vez — falei, com tristeza. — Como posso confiar em você agora?

— Desculpe — disse ele. — Não percebi... Desculpe. — Mas não havia penitência em seus olhos, só desespero e medo. Reproduzi essa cena tantas vezes na cabeça. Parte de mim se empolgava por ter previsto tão bem seu formato que o diálogo era quase idêntico à situação que imaginei. Mas parte de mim sentia uma tristeza inexprimível de que ele fosse exatamente tão fraco e indigno de confiança quanto eu temia. E uma terceira parte de mim estava entusiasmada de um modo quase incontrolável pelo que me aguardava, fosse amor, morte, ou as duas coisas.

— É tarde demais para palavras — continuei. — É hora de ação. Você disse que queria que fôssemos amantes, mas não é isso que seu corpo está dizendo. Talvez esteja com medo. Mas não há necessidade de ter medo. Sou uma pessoa generosa, uma pessoa amorosa. Você pode descobrir isso por si próprio. Vou lhe dar uma última chance para reparar sua traição. Vou deixá-lo sozinho agora por um tempo. Quando voltar, espero que consiga controlar seu medo e me mostre o que realmente sente por mim.

Eu o deixei e caminhei até a câmera. Retirei a fita que vinha gravando nosso encontro e a substituí por uma nova. No topo das escadas, me virei.

— Caso contrário, serei forçado a prosseguir com o castigo por sua traição.

— Espere — gritou Adam desesperadamente enquanto eu desaparecia de vista. — Volte — suplicou ele, mas eu já havia fechado a porta do alçapão. Imagino que ele tenha continuado a gritar, mas não podia ouvi-lo. Subi ao quarto de tia Doris e tio Henry. Coloquei a fita no videocassete que tinha montado no baú ao pé da cama, liguei a TV e sentei-me entre os frios lençóis de algodão. Mesmo que Adam não me quisesse, eu não conseguia resistir ao meu desejo por ele. Observei-o no potro, minha mão me alisando, tocando-me com toda a técnica e engenhosidade que eu queria dele, imaginando seu belo pau inchando em minha boca. Toda vez que me aproximava do orgasmo, eu parava, forçando-me a aguardar o que vinha adiante. Depois que assisti a todo o vídeo pela quarta vez, decidi que ele tivera tempo o bastante.

Escorreguei para fora da cama e desci as escadas. Olhei para ele com os braços e as pernas esticados no potro.

— Por favor — disse ele. — Deixe-me ir embora. Farei tudo que quiser, mas me deixe ir. Estou implorando.

Sorri e fiz que não, balançando gentilmente a cabeça.

— Vou levá-lo de volta a Bradfield, Adam. Mas, primeiro, é hora da festa.

 

 


CONTINUA